CONSTITUCIONALISMO E DEMOCRACIA A DUALIDADE DO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE NO BRASIL

June 15, 2017 | Autor: Ana Catarina Lemos | Categoria: Constitutional Law, Participatory Democracy, Direito Constitucional
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CONSTITUCIONALISMO E DEMOCRACIA: A DUALIDADE DO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE NO BRASIL Ana Catarina Silva Lemos Paz1 Igor Santiago de Oliveira2

1.

Introdução

A tensão existente entre democracia e constitucionalismo instalou-se com a instituição do controle judicial de constitucionalidade das leis. Ora, embora constitucionalismo e democracia estejam intimamente ligados, uma vez que são interdependentes, eles se contrapõem, funcionando como limitadores recíprocos. Como colocou Frank Milcheman (MILCHEMAN, 1999:1), o paradoxo da democracia constitucional pode adquirir várias formas: enquanto que a democracia aparece como autogoverno do povo, ou seja, a população decidindo os conteúdos fundamentais das normas que organizam e regulam a comunidade política; o constitucionalismo é o próprio limite desse autogoverno, uma vez que aparece como uma contenção da decisão popular, na medida em que define como, por quem e de que forma as normas podem ser feitas. Sobrevive a tensão entre a afirmação da supremacia dos direitos fundamentais pelo constitucionalismo e a efetividade da democracia sustentada pela soberania popular, quando o fortalecimento do ideal constitucional se converte em freio para o processo democrático e, por outro lado, quando a expansão do segundo leva a um enfraquecimento do primeiro (NINO, 1997:14). Esse questionamento se resume a uma simples pergunta: como pode ser justificada a atuação do juiz constitucional no controle da atividade da maioria parlamentar, no âmbito democrático? 1.1. Noções de Democracia A democracia não é um termo de fácil definição, como aponta MORO (2005). Dentre aqueles que se aventuraram em seu estudo, podemos perceber dois posicionamentos distintos. Uns definem democracia de forma cética e restritiva, como sendo apenas o meio formal de destituição de um governo sem derramamento de sangue, como preleciona POPPER (1995). Outros, designam ao termo um contexto material, seja fundado no princípio da isonomia (DWORKIN, 2000), seja limitado pelos direitos fundamentais (TOURAINE, 1996). Um entendimento recorrente é o que se refere à própria etimologia da palavra, ou seja, democracia enquanto “governo do povo”. Nesse contexto, é essencial para a democracia a participação do povo no governo.

1  Aluna da graduação em Direito na Universidade Católica de Pernambuco; bolsista da PROCAD no programa “Tutela Multinível de Direitos Fundamentais”. 2  Aluno da graduação em Direito na Universidade Católica de Pernambuco.

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Ensina Claude Lefort (LEFORT, 1991:29) que a democracia não pode ser reduzida a um sistema de instituições, pois é antes, selvagem, sempre marcada pelo conflito, pela indeterminação e pela falta de defesas definitivas, estando sempre às voltas com sua própria definição. Na concepção de Sérgio Fernando Moro (MORO, 2005: 113), a democracia direta tornou-se inviável nos Estados modernos, sendo assim exercida através de representantes, que praticam indiretamente a vontade popular. Desta forma, devido à crise da representação política gerada pelo ceticismo em aceitar a vontade do representante individual como vontade do povo, torna-se mistificadora. Segundo Flávia Piovesan (PIOVESAN, 2000:102), a democracia não se vincula apenas ao modo pelo qual o poder político é exercido, envolvendo, fundamentalmente, a forma pela qual os direitos humanos são implementados. Dessa forma, antes de analisar de que forma a democracia está sendo exercida, é imperativo que se analise a real efetivação dos seus princípios. Este é também o entendimento de Robert A. Dahl (1998), segundo o qual a democracia é um princípio a ser perseguido, no qual a participação popular deve ser a mais ampla possível no regime democrático. Assim, explica Moro o pensamento de Dahl: Segundo Dahl, a palavra “democracia” é normalmente utilizada para designar um conjunto de regras ou princípios, uma constituição, que determina como serão tomadas as decisões de uma asssociação política, na qual todos os membros são tratados como se fossem igualmente qualificados para participar do processo de tomada de decisões. A democracia e o governo do povo estariam fundados no princípio material de que todos os membros da associação devem ser considerados como politicamente iguais (MORO, 2005:113)

Contextualiza Dahl sua afirmação, elencando o que ele defini como instituições essenciais à democracia moderna: ● oficiais eleitos ● eleições livres, justas e periódicas ● liberdade de expressão ● fontes alternaivas de informação ● liberdade de associação ● cidadania inclusiva Podemos perceber que a jurisdição constitucional não é um elemento imprescindível ao regime democrático. Mas, como evidenciamos no início, o intuito do presente estudo é identificar de que forma a jurisdição constitucional pode ser tida como elemento compatível e complementar à democracia; para tanto, expomos no próximo ponto algumas considerações acerca do tema do constitucionalismo. 1.2. Noções de Constitucionalismo O constitucionalismo se origina nos Estados Unidos, e implica na preservação de regras jurídicas fundamentais determinadas, limitadoras do poder do Estado (NINO, 2003, p. 16-17).

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Assim, o constitucionalismo pode ser definido, de forma prática, como uma técnica específica de controle do exercício do poder com fins garantísticos (CANOTILHO, 2003, p. 51). A Constituição, por sua vez, expressa não apenas um ser, mas também um dever-ser, devendo ser protegida por processos complexos de modificação (NINO, 2003, p. 16-17). E, por ser norma a constituição, seus princípios devem ser aplicados de maneira a compreender todas as demais espécies normativas, especialmente através da interpretação que fazem os órgãos públicos legais – em especial o judiciário – e o próprio povo. O constitucionalismo, portanto, carrega em sua essência a imposição de limites a um determinado exercício de poder. Com isso, o constitucionalismo vincula não apenas algumas espécies normativas, mas todas que estejam sob a égide da constituição, pois o princípio da constitucionalidade, ou soberania da constituição, implica a sujeição de todo ordenamento jurídico aos ditames constitucionais cuja expressão máxima é a rigidez constitucional. Assim, evidencia-se um dos desafios da teoria constitucional, qual seja, o de tornar viável a existência de uma constituição com estabilidade, mas que ao mesmo tempo seja capaz de garantir e proteger as liberdades e as garantias fundamentais, sem no entanto, abrir mão de uma limitação de poder mesmo que seja do autogoverno (GARGARELLA, 1996, p. 128). Partindo do pressuposto de que os estados para fazerem uso dos benefícios do constitucionalismo, precisam da democracia, para o constitucionalismo democrático, o espaço da deliberação democrática deve limitar-se pelos valores substantivos plasmados na Constituição. Dessa forma, a deliberação democrática não pode contrariar os direitos fundamentais garantidos na Constituição (BARBOZA, 2005, p. 16). Em síntese, como diz Barboza: O constitucionalismo tem como pedra angular, os direitos fundamentais, que, por sua vez, representam os valores substantivos escolhidos pela sociedade no momento constituinte – de máxima manifestação da soberania popular – que garantem o funcionamento da democracia, isto é, quando os direitos fundamentais impõem limites materiais aos atos de governo, estão na verdade a proteger o povo como um todo e não apenas maiorias eventuais. E quem está incumbido de proteger estes valores é o Poder Judiciário, conforme determinação do próprio Poder Constituinte (BARBOZA, 2005, p. 43).

A concepção de Barboza, é portanto, a de afirmar a importância da existência da democracia, para limitar o constitucionalismo, da mesma forma que este assegura aquele, por permitir a aplicação das normas constitucionais de direitos fundamentais. A supremacia constitucional também decorre da experiência americana e é hoje o postulado no qual se assenta o próprio direito constitucional, e dela se extraem diversos elementos, como a posição de preeminência do poder constituinte sobre o poder constituído, a rigidez constitucional, o conteúdo material das normas e seu carácter permanente. A fim de garantir esta posição de superioridade, a ordem jurídica contempla um conjunto de mecanismos chamados de jurisdição constitucional, o qual, por vias judiciais, tem o papel de fazer prevalecer os comandos contidos na constituição. Parte significativa da jurisdição constitucional consiste no controle de constitucionalidade, cuja finalidade é declarar a invalidade e paralisar a eficácia dos atos normativos que sejam incompatíveis com a constituição.

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É nesse contexto que se insere a problemática existente entre democracia e constitucionalismo, uma vez que o controle de constitucionalidade se apresenta como medida contramajoritária. Seria a decisão de um juiz constitucional acerca da validade ou não de atos normativos provenientes do próprio legislativo, como expressão maior da soberania popular. 1.3. Constitucionalismo versus Democracia Constitucionalismo e democracia foram percebidos como opostos inconciliáveis, uma vez que o constitucionalismo vincula e restringi a ação do governo atual e futuro por meio de normas editadas por uma geração pretérita. Tradicionalmente, se entende que a criação de normas constitucionais dotadas de supremacia – ou seja, aquelas que não são facilmente modificadas pelo legislador infraconstitucional, necessitando de um rito mais complexo para sua edição – significam uma restrição à ação do legislador, o qual é representante direto do povo, e portanto, uma limitação ao poder da maioria atual. Exerce, portanto, a jurisdição constitucional, mais precisamente o controle de constitucionalidade pelo judiciário, um papel importante nessa limitação. Ora, ao menos no Brasil, o Juiz constitucional não é representante eleito pelo povo. Indaga-se: de que forma pode ser ele legitimado para instituir a inconstitucionalidade de uma lei editada pelo legislativo? Esse impasse se deve a atribuição à Constituição de um sentido negativo de limitação, de restrição da vontade do povo, o qual não seria tão soberano. Mas, se o controle de constitucionalidade diminui a soberania popular, pode ele ser uma instituição democrática? Segundo Sérgio Fernando Moro (MORO, 2004; 114), a legitimidade da jurisdição constitucional não depende de sua compatibilidade com a democracia, primeiro porque a própria constituição brasileira prevê sua existência, e segundo por que algumas das teorias destinadas à justificação desse mecanismo, configuram-se em bases não democráticas, como no apelo exclusivo aos direitos fundamentais, ou como retromencionado, no governo limitado. Entretanto, é importante evidenciar, que, ainda sim são preferíveis os argumentos que tentem provar o carácter democrático da jurisdição constitucional, como pode ser percebido por argumentos de diversos autores. Um argumento recorrente é o de que o acesso ao juiz constitucional é mais fácil do que ao legislador, uma vez que grupos minoritários ou mesmo cidadãos isolados podem ter acesso ao controle de constitucionalidade. Entretanto, essa acessibilidade ainda não reprimi o fato de que a decisão final do processo ainda pertence ao juiz constitucional, que não foi eleito e não pode ser destituído do seu cargo por força popular. Uma resposta interessante para o impasse foi formulada por Dworkin e envolve a própria reformulação do conceito de democracia. Para o autor referido autor, a democracia é um ideal a ser seguido, é um princípio segundo o qual não basta que o Estado possua caráter procedimental democrático, não basta eleições majoritárias. Para que o povo, de fato, se autogoverne, é preciso que sintam que fazem parte de uma determinada comunidade e esse status é atingido quando é possível o tratamento igualitário entre os membros da comunidade. A partir das ideias de constitucionalismo e democracia, o papel da igualdade é determinar a mesma dignidade moral para todas as pessoas, e que essas são iguais em suas capacidades mais elementares. Da mesma forma, todo indivíduo tem igual direito

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de intervir na resolução dos assuntos que afetam a sua comunidade, vale dizer, todos merecem participar do processo decisório em pé de igualdade (GARGARELLA, 2004, p. 77). Por um lado, portanto, se presta o seu compromisso com a democracia, atrelando sentido material ao termo, também é possível manter a ligação com o constitucionalismo, uma vez que são preservados certos direitos fundamentais, responsáveis pela manutenção da vida segundo os ideais comunitários, e ainda preservando a estrutura da decisão democrática, ou seja, a equivalência de opiniões. Assim, a igualdade resulta no fundamento último da democracia e do constitucionalismo (DWORKIN, 2002, p. 305369). 2.

A participação popular no Estado Democrático

Fixado o ponto de partida sobre a ideia de democracia, cabe observar de que formas os postulados democráticos moldam a postura de organização e funcionamento do Estado, promovendo aqueles valores erigidos e para que se chegue a uma conclusão sobre a compatibilidade e viabilidade de uma jurisdição constitucional (controle de constitucionalidade). Segundo PASQUINO (2002), participação política é o conjunto de atos ou de atitudes convergentes a influenciar de forma mais ou menos direta nas decisões daqueles escolhidos para deter o poder no sistema político, com o propósito de manter ou modificar a estrutura e os valores do sistema de interesse majoritário. No cenário brasileiro, a participação popular ganha assento com o advento da democracia e a promulgação da Constituição de 1988, desdobrando-se em institutos constitucionais que declaram a soberania popular para além do sufrágio universal e do voto direto, secreto e com igual valor a todos, revelando as mais variadas experiências participativas. Efetivamente, o povo não só elege seus representantes a fim de uma democracia estritamente indireta, mas também terá a sua disposição mecanismos de participação direta, ensejando uma democracia semidireta, onde administrará, legislará e fiscalizará, chegando a atuar junto ao Poder Judiciário em determinadas circunstâncias; deste modo, a Constituição Federal de 1988, em seu art. 14, elenca como espécies de participação popular no processo legislativo brasileiro: plebiscito, referendo e iniciativa popular. Sendo de competência exclusiva do Congresso Nacional a autorização de referendo e a convocação de plebiscito (CF, art. 49, XV). O plebiscito e o referendo são verdadeiros instrumentos de consulta formulada ao povo, para que manifestem sua opinião acerca de matéria de acentuada relevância, onde, em ambos os casos, a aprovação ou rejeição será por maioria simples. A sutil diferença entre os dois é que, o referendo consiste na consulta que se faz à opinião popular depois de tomada uma decisão, para que esta seja ou não confirmada, enquanto o plebiscito resume-se numa consulta prévia à opinião pública, para que, dependendo do resultado adotem-se as devidas providências legislativas. Quanto ao instituto da iniciativa popular, este confere a um determinado número de eleitores o direito de propor um projeto de lei, onde, conforme o art. 61, § 2º da Constituição Federal, poderá ser exercida pela apresentação à Câmara dos Deputados de projeto de lei subscrito por, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco Estados, com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles.

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Como mencionado, no âmbito do judiciário, onde surge a discussão sobre o tema de estudo deste trabalho, também se apontam manifestações de abertura democrática como a figura do Tribunal do Júri, que segundo entendimento de Guilherme de Souza Nucci, trata-se de um órgão especial do Poder Judiciário, que dialoga com a sociedade através da participação popular direta nas suas decisões. Tratando-se aqui de uma instituição com apelo cívico, que demonstra compromisso de cidadania e de democracia. (NUCCI, 2008, p.45). O juri é, normalmente, a primeira instituição lembrada quando se fala sobre democracia no âmbito judiciário. Entretanto, o objetivo deste trabalho é abordar acerca de outros institutos de participação popular do âmbito do Poder Judiciário, cuja manifestação se dá, especificamente, em seara de controle de constitucionalidade. Como observado por DALLARI (2012), o que se pode concluir, tendo em conta experiências mais recentes, é que vem sendo ampliada a autoridade dos institutos de democracia participativa, com intuito intensificar o caráter democrático das decisões e ações das autoridades públicas. Tal ensinamento incita perfeitamente a discussão à qual pretendemos chegar. Acontece que em comparação com os outros Poderes, o Judiciário é o único o qual seus integrantes (no caso, os juízes) não foram eleitos através de um processo democrático e poucas são as oportunidades de participação popular nas atividades judiciárias. O debate se torna mais crítico quando se trata, mais especificamente da jurisdição constitucional, em que uma força contramajoritária deverá apresentar suas justificativas de adequação com os preceitos de um Estado Democrático, criando oportunidade para o surgimento de institutos de participação popular no controle de constitucionalidade. 3.

Jurisdição constitucional

Desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, muitas foram as mudanças inseridas no contexto do estudo constitucional brasileiro. É importante destacar a posição da jurisdição constitucional como tema relevante para a discussão proposta neste trabalho, e também as mudanças ocorridas no controle de constitucionalidade que vieram com a EC nº 3 e a inserção das Leis 9.868 e 9.882, ambas de 1999, o que tornou possível a inserção de dispositivos de ordem democrática como a maior participação popular no ordenamento jurídico brasileiro. A jurisdição constitucional é inaugurada nos Estados Unidos da América em 1803, com decisão da Suprema Corte norte-americana, sob presidência de John Marshall, acerca do notável caso Marbury v. Madison. Apesar de ser este o caso mais famoso e que de fato instituiu um sistema de controle de constitucionalidade das leis, na Inglaterra, em 1610, o Chief of Justice Edward Coke, no Dr. Bonham’s case, já havia admitido a possibilidade de controle judicial dos atos do parlamento (MORO, 2004). Marbury v. Madison foi, portanto, a inauguração do controle de constitucionalidade no constitucionalismo moderno, e deixou algumas consequências importantes, como o princípio da supremacia da Constituição, a subordinação de todos os poderes estatais e da competência do judiciário como seu intérprete final, podendo invalidar os atos que lhe contravenham (BARROSO, 2011: 32). Luís Roberto Barroso (BARROSO, 2012: 235), define jurisdição constitucional como a interpretação da constituição por órgãos judiciais. Essa competência é exercida, no caso do Brasil, por todos os juízes e tribunais, sendo o Supremo Tribunal Federal o topo máximo do sistema.

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Inseridos na jurisdição constitucional encontram-se duas particularidades. A primeira consiste na aplicação direta da constituição às situações nela contempladas. A segunda refere-se ao uso indireto da constituição, seja no controle de constitucionalidade de leis e atos normativos do poder público em geral, seja na interpretação do ordenamento infraconstitucional conforme a constituição. Imperioso elencar alguns dos motivos pelos quais levaram a implementação da jurisdição constitucional em muitos países da Europa e América Latina. Para começar, o reconhecimento da importância de um judiciário forte e independente para uma democracia saudável, foi de suma importância. Ora, entendendo a separação dos poderes, percebemos que não é interessante que o próprio legislativo julgue seus atos. Dessa forma, como pode o legislativo, mesmo que eleito segundo requisito majoritário, decidir sobre a constitucionalidade de atos normativos editados por ele mesmo? Cabe, então, essa função para o judiciário, que por competência originária de interpretar e aplicar as normas, uma vez que a constituição possui status de norma constitucional. Também, há o envolvimento de certa desilusão com a política majoritária, em razão da crise de representatividade e de funcionalidade dos parlamentos em geral. Hoje, no Brasil é fato notório o descontentamento popular com o sistema político vigente, causa que pode ser comprovada pelas grandes manifestações ocorridas no ano de 2013. Há também um terceiro fator, que é a abstenção dos atores políticos na discussão sobre temas de elevada controvérsia moral, preferindo deixar essas questões a cargo do judiciário, do que desgastar-se na deliberação desses temas, como é o caso da união homoafetiva, da interrupção da gravidez, da demarcação das terras indígenas brasileiras. Ainda, segundo Luiz Roberto Barroso (BARROSO, 2012), esse fenômeno tomou proporções ainda maiores no Brasil, devido a constitucionalização abrangente e analítica e do sistema de controle de constitucionalidade vigente entre nós, em que é amplo o acesso do Supremo Tribunal Federal através de ações diretas. 3.1. As mudanças inseridas pela CF88, a lei 9868, a lei 9882 Como modelo jurisdicional de controle de constitucionalidade, aderiu, a Constituição Federal de 1988, ao sistema misto ou híbrido de controle constitucional, como bem assevera (BARROSO, 2012). Assim, a Carta Magna combina o modelo difuso ou por via incidental (sistema americano), implantado no início da República, com o modelo concentrado ou por via principal (sistema continental europeu), que surgiu com a EC n. 16/65. Destaca o referido autor, um conjunto amplo de inovações no texto da Constituição de 1988, que revelam a tendência brasileira para o alargamento da jurisdição constitucional, as quais cita: a) a ampliação da legitimação ativa para propositura de ação direta de inconstitucionalidade (art. 103); b) a introdução de mecanismos de controle da inconstitucionalidade por omissão, como ação direta com esse objeto (art. 103, § 2º) e o mandado de injunção (art. 5º, LXXI); c) a recriação da ação direta de inconstitucionalidade em âmbito estadual, referida como representação de inconstitucionalidade (art. 125, § 2º); d) a previsão de um mecanismo de arguição de descumprimento de preceito fundamental (art. 102, § 1º); e) a limitação do recurso extraordinário às questões constitucionais (art. 102, III) (BARROSO, 2012: 87-88). Posteriormente, há a criação da ação declaratória de constitucionalidade, produto da EC n. 3, de 18 de março de 1993.

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No dia 10 de novembro de 1999, a Lei n. 9.868 veio a disciplinar o processo e julgamento, perante o Supremo Tribunal Federal, tanto da ação direta de inconstitucionalidade como da ação declaratória de constitucionalidade, ao passo que a Lei n. 9.882, de 3 de dezembro do mesmo ano, pretendeu regulamentar o processo e julgamento da arguição de descumprimento de preceito fundamental, nos termos do § 2º do art. 102 da Constituição, que até então, permanecera sem eficácia. 3.2. Inserção do amicus curiae e das audiências públicas no controle de constitucionalidade É certo que o final do ano de 1999 foi um divisor de águas para a efetividade do controle de constitucionalidade com a entrada em vigor da Lei 9.868/99 e da Lei 9.882/99. Além de disporem sobre o processo e julgamento de ações de controle de constitucionalidade, inovaram, demonstrando preocupação em aproximar jurisdição constitucional e democracia. Cuidaram, ambas as leis, de preverem institutos específicos de participação popular dentro do processo de controle constitucional exercidos pelo Supremo Tribunal Federal, quais sejam, o amicus curiae e as audiências públicas. A Lei 9.868/99, menciona sobre o amicus curiae em seu art. 7º, § 2º, onde “o relator, considerando a relevância da matéria e a representatividade dos postulantes, poderá, por despacho irrecorrível, admitir, observado o prazo fixado no parágrafo anterior, a manifestação de outros órgãos ou entidades.”; já em seu art. 9º, § 1º, prevê que “em caso de necessidade de esclarecimento de matéria ou circunstância de fato ou de notória insuficiência das informações existentes nos autos, poderá o relator requisitar informações adicionais, designar perito ou comissão de peritos para que emita parecer sobre a questão, ou fixar data para, em audiência pública, ouvir depoimentos de pessoas com experiência e autoridade na matéria”. Já na Lei 9.882/99, seu art. 6º, § 1º, diz que “se entender necessário, poderá o relator ouvir as partes nos processos que ensejaram a argüição, requisitar informações adicionais, designar perito ou comissão de peritos para que emita parecer sobre a questão, ou ainda, fixar data para declarações, em audiência pública, de pessoas com experiência e autoridade na matéria”, ao passo que o § 2º profere que “poderão ser autorizadas, a critério do relator, sustentação oral e juntada de memoriais, por requerimento dos interessados no processo. 4. Amicus curiae e audiências públicas como participação democrática no controle de constitucionalidade Já foi dito que a jurisdição constitucional foi inaugurada com o célebre caso de Marbury v. Madison, e que já em sua gênese, trouxe dois problemas fundamentais ao exercício do juiz constitucional: o primeiro é que ele não foi eleito pelo povo, sendo assim, um sistema contramajoritário, e o segundo é que suas decisões não ficam a par de nenhum controle democrático. A partir desse momento, a doutrina norte-americana veio buscando argumentos capazes de defender a legitimidade democrática da jurisdição constitucional. Dentre eles, destacam-se: (i) a Constituição é obra do poder constituinte originário e, portanto, a expressão mais alta da soberania popular, estando acima do poder constituído, podendo subordinar, inclusive, o legislador, e assim, prevalecer sobre as maiorias eventuais; (ii) se a constituição tem status de norma jurídica, cabe ao judiciário interpretá-la e aplicá-la; (iii) mesmo que o judiciário esteja decidindo questões de ordem política, os métodos e procedimentos utilizados são de ordem jurídica (GONÇALVES, 2008).

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Entretanto, esses argumentos não se sustentaram, por ainda se basearem em um positivismo mecanicista, o qual entende que a interpretação constitucional é uma atividade mecânica, em que o juiz apenas aplica a lei, sem espaço para qualquer interpretação. Sociedades que possuem como ponto centralizador o pluralismo, não podem admitir que a interpretação da Constituição seja monopolizada apenas pelos tribunais. Para a resolução desse impasse – quanto a legitimidade do controle de constitucionalidade pelo judiciário – é fundamental que as sociedades busquem meios de democratização desse instituto, a fim de calcar maior embasamento para a jurisdição constitucional pelo judiciário. Não se pode aceitar uma aplicação do direito que não seja comprometida com a realidade social, muito menos a construção de decisões públicas sem a participação popular. É nesse contexto que o direito brasileiro inseriu a possibilidade de exercício de dois institutos que pluralizam e ampliam a discussão constitucional: o amicus curiae e as audiências públicas. O amicus curiae tem origem norte-americana e já podia ser encontrado no ordenamento jurídico brasileiro desde 1976. Entretanto, ainda não exercia função no processo constitucional, apenas servindo como previsão de intervenção em processos que discutissem questões de direito societário perante a Comissão de Valores Imobiliários. O STF, por sua vez, em sua jurisprudência, já aceitava peças produzidas por amicus curiae em ADIs, mesmo antes da edição da Lei 9.868/99. Como o Advento da supracitada Lei, a inserção do instituto no controle de constitucionalidade brasileiro se deu através do § 2º do art. 7º. Essa previsão excepciona a regra de que no controle concentrado e abstrato não se admite a intervenção de terceiros de qualquer espécie, uma vez que não existe interesse jurídico subjetivo na causa que enseje tal intervenção. A previsão é que de que podem se manifestar como amigos da corte, indivíduos e grupos sociais, além de órgãos e entidade formalmente legitimados para a propositura de ADI, que tiverem interesse na causa, e sempre que a decisão do Pretório Excelso puder afetar seus interesses. A função do instituto do amicus curiae é, justamente, tornar os debates acerca da constitucionalidade da lei mais amplos e democráticos. Para Gustavo Binenbojm, o objetivo do instituto é pluralizar o debate constitucional na medida em que seja possível o conhecimento do tribunal, sempre que este achar relevante, a cercados elementos informativos e das razões constitucionais daqueles que embora não sejam legitimados para deflagrar o processo, sejam destinatários diretos ou mediatos da decisão proferida. Com isso, visa-se a alcançar um patamar mais elevado de legitimidade nas deliberações do Tribunal Constitucional, que passará a ter o dever de apreciar e considerar devidamente, as interpretações constitucionais dadas por setores diversos da sociedade. (BINENBOJM, 2005) A admissão do amicus curiae no processo compete do relator, segundo o disposto no §2º do art. 7º, e depende de dois requisitos principais, (i) a relevância da matéria em discussão e (ii) representatividade dos requerentes – aqui, a jurisprudência do STF tem requirido pertinência temática. A utilização desse instituto é frequentemente utilizado, causando uma maior flexibilização da jurisprudência quanto a alguns requisitos procedimentais para sua intervenção, como é o caso do seu ingresso no processo após o término do prazo processual

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para entrega de informações, após a inclusão do processo na pauta de julgamento, ou até mesmo após o início do julgamento, quando lhe será concedido o direito de realizar a sustentação oral. Por outro lado, as audiências públicas não são tão frequentemente utilizadas no processo de controle de constitucionalidade brasileira quanto os amicus curiae. Estão previstas, nos casos de ADI e ADC no art. 9º, §1º da Lei 9.868/99 e para ADPF, no art. 6º, §1º da Lei 9.882/99. E embora previstas no ordenamento brasileiro desde 1999, foi feita a primeira audiência pública em 2007, no julgamento da ADI nº3501, que discutiu sobre a pesquisa com células-tronco. Podem ser convocadas pelo Ministro Relator sempre que houver necessidade de esclarecimento sobre a matéria ou circunstância de fato, e quando os autos carecerem de informações para o julgamento. O fundamento para a inserção deste instituto é levar em consideração que os juízes não são capazes de proferir uma decisão justa e consciente sobre matéria que pouco ou nada conhecem. Dessa forma, dois são os objetivos traçados pelas audiências públicas: (i) preencher as lacunas do conhecimento dos juízes e, consequentemente, (ii) assegurar decisões coerentes respaldadas em outras ciências e culturas. Contudo, ainda possuem uma função mais importante: são responsáveis por ampliarem o debate constitucional e contribuir uma verdadeira sociedade dos intérpretes da constituição. É preciso destacar, no entanto, que a decisão das audiências não se sobrepõem a do juiz constitucional – uma vez que ao tribunal cabe a interpretação e a efetivação da constituição – e não podem conduzir a interpretações que não se vinculem a constituição e baseadas, apenas, na vontade popular. Assim, as audiências públicas ajudam a construir uma cidadania democrática e com maior participação popular, sendo mais um canal de acesso a um espaço público de deliberação, em que se exerce a liberdade de expressão e se manifesta os anseios populares. 5.

Considerações finais

A tensão existente entre jurisdição constitucional e democracia é um tema que vem repercutindo desde a inauguração do controle de constitucionalidade no célebre caso Marbury versus Madison. A crise de legitimidade da jurisdição constitucional é inerente a sua própria natureza. Muitas teorias foram editadas a fim de conferir legitimidade democrática para o instituto, entretanto, nenhuma foi bem-sucedida. O fato é que, o controle de constitucionalidade não é um instituto essencial para o exercício da democracia, mas também não é contrário a ela, uma vez que defende um dos pilares do Estado Democrático de Direito – os diretos fundamentais calcados na constituição – e, por tanto, passíveis de proteção pelo Tribunal Constitucional. A solução encontrada no ordenamento jurídico brasileiro, e apresentada neste trabalho, é o ingresso no processo constitucional, do amicus curiae e das audiências públicas, como formas de pautar maior legitimidade democrática para a prática do controle de constitucionalidade. Reconhece-se que o Supremo Tribunal Federal, dentro do contexto de uma sociedade plural e democrática deve ser o último interprete da constituição, mas jamais poderá ser o único. Não se pode aceitar uma aplicação do direito descomprometida com a realidade social, muito menos decisões públicas que não possuam em seu núcleo a participação popular.

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Nesse contexto, percebemos a importância dos institutos supracitados, sendo o amicus curiae e as audiências públicas instrumentos de ampliação para o debate sobre a constituição com potencial de produzir democrático de produção de decisões mais legítimas.

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