Constitucionalismo e direitos humanos: reflexões interdisciplinares na contemporaneidade

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Descrição do Produto

Prof. Ms. Gil Barreto Ribeiro (PUC GO) Diretor Editorial Presidente do Conselho Editorial Prof. Ms. Cristiano S. Araujo Assessor Engenheira Larissa Rodrigues Ribeiro Pereira Diretora Administrativa Presidente da Editora CONSELHO EDITORIAL Profa. Dra. Solange Martins Oliveira Magalhães (UFG) Profa. Dra. Rosane Castilho (UEG) Profa. Dra. Helenides Mendonça (PUC GO) Prof. Dr. Henryk Siewierski (UNB) Profa. Dra. Irene Dias de Oliveira (PUC GO) Prof. Dr. João Batista Cardoso (UFG) Prof. Dr. Luiz Carlos Santana (UNESP) Profa. Ms. Margareth Leber Macedo (UFT) Profa. Dra. Marilza Vanessa Rosa Suanno (UFG) Prof. Dr. Nivaldo dos Santos (PUC GO) Profa. Dra. Leila Bijos (UCB DF) Prof. Dr. Ricardo Antunes de Sá (UFPR) Profa. Dra. Telma do Nascimento Durães (UFG) Prof. Dr. Francisco Gilson (UFT)

ARNALDO BASTOS SANTOS NETO FELIPE MAGALHÃES BAMBIRRA SAULO DE OLIVEIRA PINTO COELHO (Organizadores)

Constitucionalismo e Direitos Humanos: reflexões interdisciplinares na Contemporaneidade

Goiânia-GO Editora Espaço Acadêmico, 2017

Copyright © 2017 by Arnaldo Bastos Santos Neto et al Editora Espaço Acadêmico Endereço: Rua do Saveiro, quadra 15 lote 22 casa 2 Jardim Atlântico CEP 74343-510 Goiânia Goiás – CNPJ:21.538.101/0001-90 Contatos: Prof Gil Barreto (62) 81061119 TIM / (62) 85130876 OI Larissa Pereira (62) 82301212 TIM (62) 3922-2276

Capa: O Resgate, de Honoré Daumier, de 1870 Programação Visual: Marcos Digues

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação C758 Constitucionalismo e Direitos Humanos: Reflexões interdisciplinares na Contemporaneidade. - Arnaldo Bastos Santos Neto, Felipe Magalhães Bambirra e Saulo de Oliveira Pinto Coelho (orgs.). – Goiânia: / Editora Espaço Acadêmico 2017

414 p. 15x21cm



ISBN: 978-85-69818-68-7



1. Direito constitucional. 2. Direitos humanos. I. Santos Neto, Arnaldo Bastos (org.). II. Bambirra, Felipe Magalhães (org). III. Coelho, Saulo de Oliveira Pinto (org). I. Título. CDU: 342

Arielle Lopes de Almeida CRB1/2785 Bibliotecária da PUC Goiás

DIREITOS RESERVADOS É proibida a reprodução total ou parcial da obra, de qualquer forma ou por qualquer meio, sem a autorização prévia e por escrito da autora. A violação dos Direitos Autorais (Lei nº 9.610/98) é crime estabelecido pelo artigo 184 do Código Penal.

Impresso no Brasil Printed in Brazil 2017

Os organizadores agradecem à CAPES/ FAPEG que, através de seu Programa DocFix, apoiou a realização da presente obra.

A cada pensamento, palavra ou gesto, renova-se a difícil escolha pela justiça.

AUTORES

A injustiça extrema como fórmula de contingência para lidar com violações aos direitos fundamentais cometidas durante regimes de exceção e o julgamento da lei da anistia ARNALDO SANTOS BASTOS NETO Doutor em Direito Público pela Unisinos – RS, professor da Universidade Federal de Goiás, no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Direitos Humanos, na Faculdade Alves Faria – GO e na Faculdade Sul-Americana. E-mail: [email protected]. NAYRON DIVINO TOLEDO MALHEIROS Aluno especial do Programa de Pós-graduação Interdisciplinar de Direitos Humanos - UFG. Advogado, Professor de Direito Constitucional e Processo Civil na UNIP – Goiânia. E-mail: [email protected]. A fundamentação jusfilosófica do direito à vida pós mortem a partir do transumanismo: interface filosófica, biotecnológica e jurídica DIÓGENES FARIA DE CARVALHO Doutor em Psicologia (economia comportamental) pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás, Mestre em Direito Econômico pela Universidade de Franca, Professor na Universidade Federal de Goiás, Pósdoutorando pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, gestor de prática jurídica pela Universidade Salgado de Oliveira, Conselheiro ti-

tular do Fundo de Defesa dos Direitos Difusos do Ministério da Justiça, membro diretor do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor e advogado do escritório Velasco, Vellasco e Simonini Advocacia. E-mail: [email protected]. ILANA PATRÍCIA N. SEABRA DE OLIVEIRA Aluna especial do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Direitos Humanos – UFG. Especialista em Direito Público, Previdenciário, Gestão Pública e Auditoria do Controle Externo. Servidora pública. E-mail: [email protected]. Reflexões sobre a utopia: um caminho entre a política e o direito FELIPE MAGALHÃES BAMBIRRA Mestre e doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais, com estágio doutoral na Universitãt zu Köln (Alemanha) e Max-Planck -Institut für ausländisches öffentliches Recht und Völkerrecht (Heidelberg – Alemanha). Pós-doutorando e Professor no Programa Interdisciplinar de Pós-Graduação em Direitos Humanos da UFG e na UNIALFA – GO. E-mail: [email protected] BRUNO ROCHA FARIA ARANTES Graduando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás, participante da disciplina de Direitos Fundamentais e Constitucionalismo no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Direitos Humanos – UFG. E-mail: [email protected].

Considerações sobre o princípio da dignidade humana em luís roberto barroso: a (in)efetividade entre o conceptualismo e a operacionalidade SAULO DE OLIVEIRA PINTO COELHO Mestre e Doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Goiás – UFG. Coordenador do Programa de Pós-Graduação (Mestra-

do Profissional) em Direito e Políticas Públicas da UFG; e professor do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Direitos Humanos da UFG. E-mail: [email protected] DIVA JÚLIA SOUSA DA CUNHA SAFE COELHO Doutora em Cidadania e Direitos Humanos pela Universidad de Barcelona, Mestre em Filosofia Política pela Universidade Federal de Goiás, graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Coordenadora da Especialização em Direito e Justiça do Trabalho da Faculdade Sul Americana. E-mail: [email protected]. Revolta, dignidade e humanização face a desumanização ANDRE VINÍCIUS DIAS CARNEIRO Aluno especial do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Direitos Humanos – UFG. Bacharel em Filosofia pela Universidade Federal de Goiás (UFG); bacharel em Direito pela Universidade Católica de Goiás (UCG); especialista em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC/MG); especializado em Criminologia Crítica e Ciências Penais pelo Instituto de Pós Graduação (IPOG); advogado criminalista e vice-presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil seção Goiás (OAB/ GO) triênio 2015/2018. E-mail: [email protected]. A dignidade como reconhecimento: uma análise sobre o consentimento prévio para o acesso aos conhecimentos tradicionais VILMA DE FÁTIMA MACHADO Graduada, especialista e mestre em História (UFG). Doutora em Desenvolvimento Sustentável pela UnB. Professora e Vice Coordenadora do no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Direitos Humanos da Universidade Federal de Goiás. E-mail: [email protected]. MARINA DIAS DALAT COELHO Mestranda no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Direitos Humanos da Universidade Federal de Goiás. Especialista em

Direito Constitucional. Advogada. E-mail: marina_dalat@hotmail. com. A perda do direito à privacidade na contemporaneidade informacional em prol do discurso social da segurança pública: uma leitura à luz dos direitos humanos ROSANA FERNANDES DA SILVA Aluna especial do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos – UFG. Mestre em Sociologia pela Universidade Federal de Goiás – UFG (2003). Graduada em Direito pela Universidade Estácio de Sá - UNESA/ RJ- (2011). Socióloga, graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Goiás – UFG – (2000). Advogada. E-mail: [email protected]. MICHELE CUNHA FRANCO Doutora em Sociologia UFG – PDSE/ CAPES University of Alberta, Pós-doutoranda, bolsista PNPD/CAPES, junto ao Programa de PósGraduação Interdisciplinar em Direitos Humanos – UFG e vice-coordenadora do Núcleo de Direitos Humanos – UFG. E-mail: [email protected]. ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS, DEMOCRACIA E DIREITOS FUNDAMENTAIS: considerações sobre o estado da arte do debate constitucional brasileiro. ALLINE NEVES Mestre em Direitos Humanos pela Universidade Federal de Goiás e especialista em Direito Constitucional e Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás. Servidora do Tribunal de Contas dos Municípios do Estado de Goiás. E-mail: [email protected]. SAULO DE OLIVEIRA PINTO COELHO Mestre e Doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Goiás – UFG. Coordenador do Programa de Pós-Graduação (Mestrado Profissional) em Direito e Políticas Públicas da UFG; e professor do Progra-

ma de Pós-Graduação Interdisciplinar em Direitos Humanos da UFG. E-mail: [email protected] Educação jurídica numa perspectiva democrática na educação infantil: aplicação do estatuto da criança e adolescente para direitos humanos JULIANA KELLY GOMES DOS SANTOS Aluna especial do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos – UFG. Bacharel em Direito. E-mail: [email protected] Ensino religioso nas escolas públicas: laicidade a serviço da educação em direitos humanos ANA CAROLINA GRECO PAES Mestranda no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Direitos Humanos da Universidade Federal de Goiás. Advogada. E-mail: paes. [email protected] ALINE MARQUES LEAL PEREIRA Aluna especial do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos – UFG. Bacharel em Direito. Servidora pública. E-mail: alineleal_adv@ yahoo.com.br As contradições entre a efetivação e o baixo acesso real das vítimas de violência: questões em análise no contexto brasileiro BIANCA KUHN B. DE CARVALHO Aluna especial do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Direitos Humanos - UFG. Assistente Social (2011), especialista em Políticas Sociais e Demandas Familiares pela Universidade do Sul de Santa Catarina. E-mail: [email protected].

“Que deus tenha misericórdia de nossa nação”: a primazia de uma visão de mundo religiosa no discursar do poder legislativo e suas implicações sobre os princípios democráticos brasileiros DANIEL ALBUQUERQUE DE ABREU Mestre em Direitos Humanos (UFG); especialista em Direito do Consumidor (UFG), Direito Público (UNIDERP) e Direito e Processo do Trabalho (UNIDERP). Advogado. E-mail: [email protected] Conciliação pré-processual, sem advogado, no direito de família: a insegurança jurídica do outro, numa visão kantiana, e do patrimônio num paradoxo aos direitos fundamentais ANTONIO FERNANDO FERREIRA DE SOUZA Aluno especial do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Direitos Humanos - UFG. Bacharel em Direito, especialista em Docência do Ensino Superior, em Direito Civil e Processo Civil. A luta antimanicomial como afirmação histórica do direito de pessoas com sofrimento mental ELIAS MENTA MACEDO Mestre em Direitos Humanos pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Advogado. E-mail: [email protected]. DOUGLAS ANTÔNIO ROCHA PINHEIRO Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB). Doutor em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB). E-mail: [email protected]. O desenvolvimento dos marcos normativos internacionais sobre direitos humanos e empresas FELIPE MAGALHÃES BAMBIRRA Mestre e doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais, com estágio doutoral na Universitãt zu Köln (Alemanha) e Max-Planck

-Institut für ausländisches öffentliches Recht und Völkerrecht (Heidelberg – Alemanha). Pós-doutorando e Professor no Programa Interdisciplinar de Pós-Graduação em Direitos Humanos da UFG e na UNIALFA – GO. E-mail: [email protected] A supraconstitucionalidade dos tratados de direitos humanos como uma possível solução ao conflito entre decisões na ordem jurídica internacional e na ordem jurídica interna: o caso da lei de anistia brasileira FERNANDA BUSANELLO FERREIRA Professora do PPGIDH (UFG), no qual realizou estágio pós-doutoral, e do Curso de Direto da UFG/REJ, Doutora em Direito (UFPR). E-mail: [email protected]. ALEX SILVA RAMOS Bacharel em Direito pela UFG/REJ, foi orientado pela Profa. Fernanda Busanello Ferreira em seu TCC, do qual este texto é um resumo. E-mail [email protected].

APRESENTAÇÃO

Este livro é fruto de investigações, leituras, aulas, e discussões realizadas no âmbito do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Direitos Humanos (PPGIDH), da Universidade Federal de Goiás. O esforço empreendido para a publicação das reflexões aqui elaboradas, que buscaram articular as diferentes linhas de pesquisa do PPGIDH entorno de novidades do constitucionalismo e direitos humanos, justifica-se não apenas pelo fato de registrar e trazer a lume a contribuição dos estudos dos autores, mas, igualmente, pela relevância que os seus dois grandes pilares temáticos – Direitos Fundamentais e Constitucionalismo – assumem na contemporaneidade. Ambos os temas passam por profundas transformações e questionamentos no mundo hiperglobalizado, visceralmente inovador e altamente dependente da tecnologia. Se este mundo oferta oportunidades, consideradas outrora utopias, hoje parecem apenas esperar o seu tempo para realizarem-se. Erradicação da fome, amplo acesso à educação e informação, à técnicas avançadas de tratamento de saúde, possibilidades de descortinar novos horizontes e se interconectar de forma apenas sonhada há poucas décadas são algumas das questões que se apresentam. A crise, todavia, emerge junto às promessas não realizadas. O globo, mesmo diante deste extraordinário arsenal técnico, continua contendo a pobreza, a guerra, a ignorância. A crise dos refugiados e deslocados internos, agravada pela guerra civil na Síria, demonstra a baixa internacionalização dos direitos humanos. O contraste entre aqueles

que podem usufruir deste progresso civilizacional e os dele desprovidos, que possuem como alternativa apenas a fuga de seu país, choca e demonstra ainda a baixa governabilidade internacional e dependência dos direitos humanos e fundamentais dos respectivos Estados. Além disso, sobre a ideia de direitos humanos e fundamentais – a grande utopia ocidental – começam a pairar dúvidas, pois, ao que tudo indica, estamos falhando na formação de cidadãos dela conscientes. A consequência é visível em nosso cotidiano: proliferam manifestações de intolerância no Brasil, Estados Unidos e Europa. Ao invés de se instaurar uma esperada convivência dialógica, mais de um século após o Iluminismo e depois de 70 anos do nazismo – isto é, sabidas as consequências de despir completamente o outro de sua dignidade – sobressai ainda o agir pautado estrategicamente na aniquilação do outro, revivendo-se uma já ultrapassada oposição radical entre esquerda e direita, digna de ser caracterizada como uma espécie de protoneofascismo, que, se não combatida, nada trará de edificante. Neste momento delicado, e que há de ser superado, é necessário o resgate destas noções fundamentais que pretendem erigir uma sociedade livre, igualitária, solidária e, assim, justa. Por essa razão, escolhemos como ilustração da capa deste livro a pintura de Honoré Daumier, intitulada exatamente de “O Resgate”. Daumier foi um ácido crítico de seu tempo – também um tempo de profundas transformações, o século XIX – e, apesar de sua genialidade, morreu na pobreza. Certamente, os textos aqui publicados representam uma faceta da complexidade de nosso tempo, e, assim, inserem-se na ordem do dia. Buscam dialogar com a realidade, que, aliás, só existe de modo contraditório e dialético. Que possam contribuir para fomentar diálogos transformadores, mas igualmente capazes de sustentar estes princípios tão caros à sociedade que desejamos e lutamos. Desejamos uma ótima leitura! Os organizadores.

SUMÁRIO

17 APRESENTAÇÃO 23 PREFÁCIO 31

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A INJUSTIÇA EXTREMA COMO FÓRMULA DE CONTINGÊNCIA PARA LIDAR COM VIOLAÇÕES AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS COMETIDAS DURANTE REGIMES DE EXCEÇÃO E O JULGAMENTO DA LEI DA ANISTIA Arnaldo Bastos Santos Neto Nayron Divino Toledo Malheiros A FUNDAMENTAÇÃO JUSFILOSÓFICA DO DIREITO À VIDA POS MORTEM A PARTIR DO TRANSUMANISMO: INTERFACE FILOSÓFICA, BIOTECNOLÓGICA E JURÍDICA Diogénes Faria de Carvalho Ilana Patrícia N. Seabra de Oliveira REFLEXÕES SOBRE A UTOPIA: UM CAMINHO ENTRE A POLÍTICA E O DIREITO Bruno Rocha Faria Arantes Felipe Magalhães Bambirra

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CONSIDERAÇÕES SOBRE O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA EM LUÍS ROBERTO BARROSO: A (IN)EFETIVIDADE ENTRE O CONCEPTUALISMO E A OPERACIONALIDADE Diva Júlia Sousa da Cunha Safe Coelho Saulo de Oliveira Pinto Coelho

113 REVOLTA, DIGNIDADE E HUMANIZAÇÃO FACE À DESUMANIZAÇÃO André Vinícius Dias Carneiro 125 A DIGNIDADE COMO RECONHECIMENTO: UMA ANÁLISE SOBRE O CONSENTIMENTO PRÉVIO PARA O ACESSO AOS CONHECIMENTOS TRADICIONAIS Marina Dias Dalat Coelho Vilma de Fátima Machado 147 A PERDA DO DIREITO À PRIVACIDADE NA CONTEMPORANEIDADE INFORMACIONAL EM PROL DO DISCURSO SOCIAL DA SEGURANÇA PÚBLICA: UMA LEITURA À LUZ DOS DIREITOS HUMANOS Rosana Fernandes da Silva Michele Cunha Franco 175 ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS, DEMOCRACIA E DIREITOS FUNDAMENTAIS: CONSIDERAÇÕES SOBRE O ESTADO DA ARTE DO DEBATE CONSTITUCIONAL BRASILEIRO. Alline Neves de Assis Saulo de Oliveira Pinto Coelho

225 EDUCAÇÃO JURÍDICA NUMA PERSPECTIVA DEMOCRÁTICA NA EDUCAÇÃO INFANTIL: APLICAÇÃO DO ESTATUTO DA CRIANÇA E ADOLESCENTE  PARA DIREITOS HUMANOS Juliana Kelly Gomes dos Santos 241 ENSINO RELIGIOSO NAS ESCOLAS PÚBLICAS: LAICIDADE A SERVIÇO DA EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS Ana Carolina Greco Paes Aline Marques Leal Pereira 273 AS CONTRADIÇÕES ENTRE A EFETIVAÇÃO E O BAIXO ACESSO REAL DAS VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA: QUESTÕES EM ANÁLISE NO CONTEXTO BRASILEIRO Bianca Kuhn B. de Carvalho 287 “QUE DEUS TENHA MISERICÓRDIA DE NOSSA NAÇÃO”: A PRIMAZIA DE UMA VISÃO DE MUNDO RELIGIOSA NO DISCURSAR DO PODER LEGISLATIVO E SUAS IMPLICAÇÕES SOBRE OS PRINCÍPIOS DEMOCRÁTICOS BRASILEIROS Daniel Albuquerque de Abreu 315 CONCILIAÇÃO PRÉ-PROCESSUAL, SEM ADVOGADO, NO DIREITO DE FAMÍLIA: A INSEGURANÇA JURÍDICA DO OUTRO, NUMA VISÃO KANTIANA, E DO PATRIMÔNIO NUM PARADOXO AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS Antônio Fernando Ferreira de Souza 335 A LUTA ANTIMANICOMIAL COMO AFIRMAÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO DE PESSOAS COM SOFRIMENTO MENTAL Elias Menta Macedo Douglas Antônio Rocha Pinheiro

363 O DESENVOLVIMENTO DOS MARCOS NORMATIVOS INTERNACIONAIS SOBRE DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS Felipe Magalhães Bambirra 385 A SUPRACONSTITUCIONALIDADE DOS TRATADOS DE DIREITOS HUMANOS COMO UMA POSSÍVEL SOLUÇÃO AO CONFLITO ENTRE DECISÕES NA ORDEM JURÍDICA INTERNACIONAL E NA ORDEM JURÍDICA INTERNA: O CASO DA LEI DE ANISTIA BRASILEIRA. Fernanda Busanello Ferreira Alex Silva Ramos

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PREFÁCIO

Apresentar o livro coletivo “Direitos Humanos e Constitucionalismo”, mais do que uma apresentação do tema, o que será debatido a partir de diversas perspectivas pelos artigos que compões este livro, exige uma apresentação do seu contexto, pois é nele que a relação entre direitos humanos e constitucionalismo ganha sentido. “Coletivo” é o primeiro adjetivo que caracteriza o livro, não como mera coletânea de artigos de autores diferentes, mas por tratar-se uma obra que é fruto de investigações e debates conjuntos. Os artigos que compõe esta obra são o resultado acadêmico da disciplina “Direitos Fundamentais e Constitucionalismo”, ministrada conjuntamente pelos professores doutores Arnaldo Bastos, Felipe Bambirra e Saulo Coelho, no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Direitos Humanos da Universidade Federal de Goiás. As leituras e debates em aula, bem como a elaboração conjunta de vários artigos, fazem com que o adjetivo “coletivo” esteja na base da produção do conhecimento que aqui se expõe convidando o leitor também a participar dos debates. Em que pese a formação em Direito de todos os professores da disciplina ministrada, todos eles assumiram o desafio proposto pelo Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Direitos Humanos de, partindo de sua área de formação e atuação, interrogar as próprias concepções por meio do diálogo com outras áreas do conhecimento. Foi com este espírito de dúvida, que move a investigação acadêmica, que os professores estruturaram a disciplina “Direitos Fundamentais e Consti-

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tucionalismo” e acolheram os alunos. Para estes, os alunos, do mesmo modo que a seus professores, a interdisciplinaridade proposta pelo Programa impõe repensar seus pressupostos, perceber os limites da própria formação, buscar o diálogo, integrar conhecimentos. Se partimos do adjetivo “coletivo” para caracterizar o presente livro, é preciso acrescentar “audacioso”. Essa audácia transparece, em primeiro lugar, no enfrentamento de um grave obstáculo da formação universitária no Brasil: o excesso disciplinar. Em que pese a importância de um estudo aprofundado e especializado, o diálogo entre as áreas concorre, igualmente, para o avanço das ciências. Este livro reúne, no debate que propõe, um conhecimento aprofundado em diálogo com outros saberes. Neste sentido, é audacioso também porque é arrojado, inovador. Ultrapassando o campo doutrinário-jurídico, põe o direito em confronto com a filosofia, a sociologia, a psicologia, a educação, a saúde, a religião a fim de pensar os problemas do tempo presente de modo alargado e comprometido com os direitos humanos. A estes dois adjetivos anteriores podemos juntar ainda um terceiro: “coerente”. O livro é coerente com a proposta de formação de profissionais do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar de Direitos Humanos. O Programa espera contribuir para formação de profissionais capazes de enfrentar problemas com base em uma perspectiva ampla e integradora e, ao mesmo tempo, comprometida com a proteção e a promoção dos direitos humanos. A recepção que a Constituição brasileira dá aos princípios e aos tratados internacionais de direitos humanos é uma ferramenta fundamental para esta proteção. Contudo, a dinamicidade dos direitos humanos ultrapassa a mera necessidade de proteção jurídica, na medida em que novas demandas surgem no seio da comunidade humana. Estar atento ao tempo presente, acolher o novo, integrar possibilidades é o que se espera de profissionais que não sejam apenas reprodutores/aplicadores de um conhecimento consolidado. Uma série de problemas do tempo presente relativos à violação/ proteção dos direitos humanos torna-se objeto de investigação acadêmica que contribui para esclarecer seus supostos, criticar situações,

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buscar soluções. Neste sentido, a discussão acerca da ditadura militar no Brasil vem à tona com o artigo de Arnaldo Bastos Santos Neto e Nayron Divino Toledo Malheiros: A injustiça extrema como fórmula de contingência para lidar com violações aos direitos fundamentais cometidas durante regimes de exceção e o julgamento da lei de anistia. Neste artigo, os autores fazem uma exposição das circunstâncias que levaram ao surgimento da chamada “Fórmula Radbruch” (segundo a qual o direito está em oposição à injustiça extrema) e interroga sobre a possibilidade de revisão da decisão dada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento que tratou da recepção da Lei da Anistia pela Constituição brasileira. O conceito de vida humana e vida digna em confronto com a mortalidade e a dinamicidade dos direitos humanos são postos em discussão por Diogénes Faria de Carvalho e Ilana Patrícia N. Seabra de Oliveira no artigo A fundamentação jusfilosófica do direito à vida ‘pos mortem’ a partir do transumanismo. ‘Interface’ filosófica, biotecnológica e jurídica. Com base na análise conceitual e histórica, os autores investigam a relação entre direitos humanos e direitos criônicos a fim de discutir hipóteses legais polêmicas. O artigo Reflexões sobre a utopia: um caminho entre a política e o direito de Bruno Rocha Faria Arantes e Felipe Magalhães Bambirra, problematiza a relação entre a política e o direito. Valendo-se de uma narrativa alegórica acerca de um rei que quer ensinar seus súditos sobre os limites do poder político, os autores do presente artigo investigam em que medida o direito, por meio da positivação de normas, tem o poder de inovar e de alterar a realidade. Diva Júlia Souza da Cunha Safe Coelho e Saulo de Oliveira Pinto Coelho, no artigo Considerações sobre o princípio da dignidade humana em Luís Roberto Barroso: a (in)efetividade entre o conceptualismo e a operacionalidade noticiam as transformações do constitucionalismo nas últimas três décadas, destacando o estado da arte e implicações no conceito e operacionalização do princípio da dignidade da pessoa humana, apontando ainda o longo caminho a se trilhar para a efetivação deste princípio basilar.

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O artigo de André Vinícius Dias Carneiro, Revolta, dignidade e humanização em face à desumanização, interroga a desumanização dos cidadãos pela estrutura burocrática do Estado. Partindo do conceito kantiano de dignidade humana, André apresenta a teoria da revolta de Camus e o conceito arendtiano de banalidade do mal para discutir a desumanização do sujeito diante da burocracia do Estado. A discussão acerca da autonomia dos povos tradicionais, no que diz respeito ao domínio de conhecimentos associados à biodiversidade, é trazida para este livro pelo artigo A dignidade como reconhecimento: uma análise sobre o consentimento prévio para o acesso aos conhecimentos tradicionais, de Vilma de Fátima Machado e Marina Dias Dalat Coelho. Neste artigo, é investigado se o consentimento prévio dos povos tradicionais para o acesso a seus conhecimentos respeita a noção de dignidade humana como um valor moral manifestado no reconhecimento mútuo das pessoas sujeitos de direito. A fragilidade da intimidade frente aos meios tecnológicos de invasão da vida cotidiana das pessoas é discutida por Rosana Fernandes da Silva e Michele Cunha Franco no artigo A perda do direito à privacidade na contemporaneidade informacional em prol do discurso social da segurança pública: uma leitura à luz dos Direitos Humanos. O objetivo da discussão é problematizar a justificativa que práticas invasivas da liberdade individual e violadoras do direito humano à privacidade encontram no discurso de proteção coletiva. Tomando o Brasil como um Estado democrático de direito e, portanto, comprometido com a justiça social por meio da eliminação das desigualdades sociais e a proteção da dignidade da pessoa, o artigo apresentado por Alline Neves de Assis e Saulo de Oliveira Pinto Coelho, Estado, Políticas Públicas, Democracia e Direitos Fundamentais: considerações sobre o estado da arte do debate constitucional brasileiro, questiona as ineficiências jurídicas em vista dos propósitos do Estado, tendo em vista a estruturação das políticas públicas à luz da hermenêutica e das patologias do Estado contemporâneo, que o transfigura de Estado Ético em Estado Poiético.

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Juliana Kelly Gomes dos Santos tematiza acerca da educação comprometida com a cidadania e direitos humanos de crianças e adolescentes. No artigo Educação jurídica numa perspectiva democrática na educação infantil: aplicação do Estatuto da Criança e do Adolescente para os direitos humanos, a autora parte de uma experiência vivenciada no Projeto Escola, idealizado pelo Juizado da Infância e da Juventude, para investigar uma forma de educação que possibilite a participação dos alunos na produção de sua existência, como sujeitos de direitos. Ana Carolina Greco Paes e Aline Marques Leal Pereira apresentam no artigo Ensino religioso nas escolas públicas: laicidade a serviço da educação em direitos humanos, a discussão sobre o espaço da religiosidade no âmbito escolar. Partindo do suposto que o fenômeno religioso é uma dimensão humana presente em todos os povos e culturas, o artigo argumenta que em uma sociedade democrática, a escola, enquanto espaço de educação de cidadãos, deve fomentar a tolerância e o respeito às diferentes opções e práticas religiosas fortalecendo a pluralidade que caracteriza a sociedade brasileira. Bianca Kuhn B. de Carvalho enfrenta delicadas questões de gênero ao investigar as dificuldades associadas à efetivação dos direitos das vítimas de violência sexual no Brasil, em vista da precariedade da assistência prestada pelos agentes públicos ao atendimento das mulheres. Nesta discussão, o artigo As contradições entre a efetivação e o baixo acesso real das vítimas de violência: questões em análise no contexto brasileiro argumenta, com base na Constituição Federal que prevê o princípio da dignidade da pessoa humana e, sob este fundamento, assegura direitos de igualdade e fraternidade. Destacando no título do artigo uma frase proferida por um parlamentar em sessão da Câmara de Deputados Federais: “Que Deus tenha misericórdia de nossa Nação”: a primazia de uma visão de mundo religiosa no discursar do Poder Legislativo e suas implicações sobre os princípios democráticos brasileiros, Daniel Albuquerque de Abreu discute os princípios de liberdade e igualdade democráticos. Trata-se, com base em pressupostos teóricos balizadores do conceito de democracia, de

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uma investigação acerca da atuação parlamentar quanto à impertinência do uso do discurso religioso para fundamentar as decisões públicas . Antonio Fernando Ferreira de Souza discute em Conciliação pré -processual, sem advogado, no Direito de Família: a insegurança jurídica do outro, numa visão kantiana, e do patrimônio num paradoxo aos direitos fundamentais o protagonismo e os limites do profissional do direito. Ao longo do texto, o autor investiga a relação entre o advogado e cônjuges em vista de divórcio no que diz respeito ao direito ao patrimônio e à garantia de preservação da dignidade humana. Elias Menta Macedo e Douglas Antônio Rocha Pinheiro, no texto A luta antimanicomial como afirmação histórica do direito de pessoas com sofrimento mental resgatam o processo histórico da luta antimanicomial como reivindicações pela inclusão de novos direitos fundamentais, oferecendo importantes subsídios para compreensão da pessoa com sofrimento mental como sujeito de direitos ao longo do último século, em um intervalo temporal que se inicia no surgimento da Psiquiatria e se prolonga até a promulgação da Lei n° 10.216/2001. Felipe Magalhães Bambirra apresenta, no artigo intitulado O desenvolvimento dos marcos normativos internacionais sobre direitos humanos e empresas o resgate de conceitos e da recente história também pela implementação de novos olhares e perspectivas concernente à aplicação e eficácia dos direitos humanos entre pessoas e instituições privadas, com destaque com a preocupação da ONU em desenvolver marcos normativos adequados a disciplinar esta relação. Por fim, Fernanda Busanello Ferreira e Alex Silva Ramos analisam uma possível solução para casos de conflitos interpretativo entre o Supremo Tribunal Federal e a Corte Interamericana de Direitos Humanos quando tratam de direitos humanos, no artigo A supraconstitucionalidade dos tratados de direitos humanos como uma possível solução ao conflito entre decisões na ordem jurídica internacional e na ordem jurídica interna: o caso da lei de anistia brasileira. Considerando as normas do ordenamento jurídico, a doutrina e a jurisprudência, sustenta-se a prevalência dos tratados internacionais sobre direitos humanos até mes-

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mo em relação à Constituição, quando estes forem mais favoráveis à dignidade da pessoa humana. Todos os artigos trazem à tona um debate tão atual quanto difícil. Seguramente a atualidade das questões é um elemento que cria dificuldades por si mesma, posto que não permite o necessário distanciamento crítico aos debatedores; mas também (e exatamente por isso) porque exige a sensibilidade para congregar uma diversidade de perspectivas de modo a, pelo menos, evidenciar as diversas faces de um mesmo objeto. Os artigos que compõe este livro revelam o esforço do coletivo, do audacioso e do coerente e entram no debate convidando seus leitores a refletirem e buscarem novas perspectivas e caminhos para o diálogo proposto. Profa. Dra. Helena Esser dos Reis

Faculdade e Programa de Pós-Graduação em Filosofia Núcleo e Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Direitos Humanos Universidade Federal de Goiás

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A INJUSTIÇA EXTREMA COMO FÓRMULA DE CONTINGÊNCIA PARA LIDAR COM VIOLAÇÕES AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS COMETIDAS DURANTE REGIMES DE EXCEÇÃO E O JULGAMENTO DA LEI DA ANISTIA

Arnaldo Bastos Santos Neto1 Nayron Divino Toledo Malheiros2

1. Injustiça extrema e a fórmula Radbruch Após o fim da Segunda Guerra Mundial, o sistema judicial alemão teve que lidar com uma variada gama de ações impetradas por pessoas que tiveram seus direitos violados durante o período da ditadura nazista. Um dos casos, por exemplo, referia a denúncia feita contra um cidadão chamado Göttig, acusado de ter escrito a seguinte frase numa parede de sua própria casa: “Hitler é um assassino do povo e tem culpa na guerra.” O autor da denúncia foi outro cidadão, de nome Puttfarken, funcionário judicial e vizinho 1

Doutor em Direito Público pela Unisinos – RS, professor da Universidade Federal de Goiás, no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Direitos Humanos, na Faculdade Alves Faria – GO e na Faculdade Sul-Americana. E-mail: [email protected].

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Aluno especial do Programa de Pós-graduação Interdisciplinar de Direitos Humanos - UFG. Advogado, Professor de Direito Constitucional e Processo Civil na UNIP – Goiânia. E-mail: [email protected].

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Arnaldo Bastos Santos Neto, Nayron Divino Toledo Malheiros

do denunciado. Como consequência, Göttig foi condenado à morte e executado. Após o fim da guerra, o caso foi levado perante a justiça de Turingia, em Nordhausen e Puttfarken foi condenado à prisão perpétua. Puttfarken foi denunciado como autor mediato da morte de Göttig, uma vez que o Código Penal alemão dispunha em seu art. 47, parágrafo 1: “Há de ser castigado como autor aquele que culpavelmente executa a ação punível por si mesmo ou por meio de outro, mesmo quando o outro atue juridicamente.”3 Em sua denúncia, o promotor de justiça alegou que o denunciante, até mesmo por conhecer o funcionamento do sistema judicial, sabia que estaria condenando o denunciado à morte. Recusando a alegação do réu de que agiu movido por suas convicções nacional-socialistas, o promotor lembrou que sequer existia, à época dos fatos, uma obrigação de efetuar tal denúncia. Também os magistrados, autores das chamadas “sentenças desumanas”, como a que condenou Göttig à morte, foram acusados. A promotoria alegou ainda que toda a legislação do Estado nazista, que serviu de base para condenações à morte, como esta, carecia de toda validade jurídica. Nas palavras do promotor Kuschnitzki, responsável pela acusação: Ningún juez puede invocar, ni ninguna jurisprudencia puede atenerse a una ley que no solo es injusta, sino que es delictiva. Invocamos a los derechos humanos, que están por encima de todas las leys escritas, el Derecho inextirpable y eterno, que rehúsa la validez a los mandatos ilegítimos de los tiranos inhumanos. Partiendo de estas consideraciones, mantengo la opinión de que tienen que ser acusados los jueces que hayan dado sentencias incompatibles con los principios de humanidad y hayan condenado a morte por bagatelas.4

3

RADBRUCH, Gustav. Leys que no son derecho y derecho por encima de las leys. In: RADBRUCH, G., SCHMIDT, E. WELZEL, H. Derecho injusto y derecho justo. Madri: Aguilar, 1971, p. 8.

4

RADBRUCH, Gustav. Leys que no son derecho y derecho por encima de las leys, p. 10.

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Radbruch resgata tal processo para ilustrar sua tomada de posição teórica em favor de uma revisão da compreensão positivista do direito a quem acusou de estimular uma atitude de obediência, que podia ser expressa sinteticamente na ideia de que “antes de tudo temos que cumprir a lei”. O jurista alemão lembrou que o positivismo imaginava ter provado a validade da lei tão somente pelo fato de a mesma ter força suficiente para impor-se. Todavia, a força pode gerar uma necessidade, mas nunca um dever ou validade, uma vez que estes demandam a existência de um valor que lhe seja inerente. Todas as leis, abstraídas de seu conteúdo, possuem um valor relevante, que é o valor da segurança jurídica. Radbruch, todavia, adverte que a segurança jurídica não é o único valor e nem sequer o valor decisivo para a realização do direito. Ao lado da segurança jurídica existem outros valores, que são os da utilidade e o valor da justiça. Nas palavras do próprio Radbruch: De ningún modo se de admitir que es Derecho “todo lo que es útil al pueblo”, sino que al pueblo le es util, en último término, tan solo lo que es Derecho, lo que trae seguridad y tiende a la justicia. La seguridad jurídica, que corresponde a cualquier ley ya por el hecho de su misma positividad, ocupa un lugar intermedio entre la utilidad y la justicia; la exige, por una parte, el bien común, y por otra, la justicia. El que el Derecho sea seguro, no aquí y ahora así, allá y mañana de otra manera, en su interpretación o en su aplicación, es también una exigencia de la misma justicia. Cuando hay un conflito entre la seguridad jurídica y la justicia, entre una ley que falla en su contenido, pero que es positiva, y un Derecho justo, pero que no ha adquirido la consistencia de una ley, estamos en realidad ante un conflito de la justicia consigo misma, un conflito entre la justicia aparente y la verdadera5.

Com esta formulação, Radbruch modificou sua compreensão do direito que havia esboçado no período anterior ao domínio nazista. Em 5

RADBRUCH, Gustav. Leys que no son derecho y derecho por encima de las leys, p. 13.

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sua fase precedente, Radbruch escreveu sobre o que considerava como elementos necessários da ideia de direito, que seriam a justiça, a utilidade e a segurança jurídica. Por justiça entendia a ideia de igualdade como tratamento igual de homens e das relações iguais bem como o tratamento desigual dos desiguais. A utilidade vista como adequação como um fim e finalmente a segurança jurídica como uma ideia de ordem que se encontra acima de tudo e todos expressa na positividade do direito. Porém ao contrário da formulação acima, onde o elemento mais importante era o elemento da justiça, na sua formulação anterior Radbruch pôs a tônica mais forte na ideia de segurança jurídica. Afirmava que, “a existência de uma ordem jurídica é muito mais importante que a sua justiça e utilidade; estas são as tarefas secundárias do direito, e a primeira consentida por todos igualmente é a segurança jurídica, quer dizer, a ordem, a paz”.6 Tais formulações remontam a 1914, data da primeira edição do seu clássico intitulado Filosofia do Direito. Logo após a Segunda Guerra, Radbruch participou de um programa de rádio que ficou famoso por sua abordagem da filosofia do direito de uma forma muito crítica com relação ao positivismo jurídico. Tal programa recebeu o nome de Cinco minutos de filosofia do direito. Já no “primeiro minuto”, Radbruch anota que as frases “Ordem é ordem” e “Lei é lei” terminam por equiparar o direito ao poder. Tal concepção da lei e da sua validade teria deixado os juristas e o povo inertes frente às normas mais arbitrárias, cruéis e criminosas. No “segundo minuto” criticou a ideia de utilidade colocando em xeque a concepção de que o direito é o que é útil para o povo. Radbruch inverte e afirma o contrário, para ele somente o que é direito é útil para o povo. No “terceiro minuto” retoma a ideia de que direito é vontade de justiça, o que significa julgar sem consideração de pessoas e medir a todos na mesma medida. Afirma ainda que quando as leis negam conscientemente a vontade de justiça e a própria ideia de Direitos Humanos, carecem de validade e os juristas corajosos devem 6

RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito. Tradução de Marlene Holzhausen. São Paulo: Martins Fonte, 2004, p. 109.

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lhes negar o caráter de direito. No “quarto minuto” lembra que o bem comum, ou seja, a utilidade do direito, permanece como uma finalidade do ordenamento, devido à imperfeição humana. Por conta disto, é por vezes difícil unir harmonicamente na lei os três valores do direito. Mas na consciência do povo e dos juristas deve estar gravado que se houverem leis injustas e nocivas para a comunidade também devemos lhes negar o caráter jurídico. E no último minuto, o quinto da transmissão radiofônica tornada célebre, comenta que existem princípios de direitos fundamentais mais fortes que toda lei positivada. Radbruch afirma que tais princípios são o que chamamos de direito natural ou de direito racional que se expressam nas declarações de direito do homem e do cidadão através do consenso universal.7 O resultado de tal mudança de paradigma ficou conhecido como “Fórmula Radbruch”, que pode ser expressa da seguinte forma: “A injustiça extrema não é direito.” A “Fórmula Radbruch” deu ensejo a muitas controvérsias, a primeira delas sobre se tal formulação manteria um vínculo de continuidade ou representaria uma clara ruptura com relação às obras precedentes do grande jurista alemão. Também os positivistas se defenderam alegando que não há na obra dos grandes autores desta corrente nenhuma defesa da obediência ao direito e que Radbruch atacou um “espantalho”. Na visão de pensadores como Hans Kelsen, por exemplo, a obediência ao direito seria tão somente um tema alheio à ciência do direito em sentido estrito, preocupada tão somente com a descrição do seu objeto, mas um tema relevante para a filosofia ou a ciência política. Mas não nos interessa entrar no mérito de tais divergências no âmbito do presente artigo. Com a reunificação da Alemanha e o fim do regime totalitário existente na República Democrática Alemã surgiu a controvérsia judicial sobre a culpabilidade das sentinelas do muro de Berlim acusadas da morte de inúmeras pessoas que tentaram atravessar para o lado ocidental. A primeira sentença, ocorrida em novembro de 1992, consagrou a jurispru7

RADBRUCH, Gustav. Relativismo y derecho. Bogotá: Temis, 1999, p. 71-74.

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dência, mantida posteriormente pelo Tribunal Supremo Federal, que determinou que os guardas fronteiriços deviam ser punidos. Dois anos mais tarde, o mesmo tribunal entendeu que os altos funcionários da República Democrática Alemã deveriam responder penalmente pelos homicídios na fronteira, na qualidade de autores mediatos. Do mesmo modo que os acusados do regime nazista, os réus afirmaram que obedeciam às leis e as ordens dos seus superiores. Contra tais alegações foi retomada a “Fórmula Radbruch” de que a injustiça extrema não é direito.8 Ou seja, nos dois momentos críticos do pós-guerra alemão, a “Fórmula Radbruch” foi invocada para servir como um mecanismo de contingência do ordenamento, possibilitando lidar com situações que não pertenciam à normalidade de um país democrático. As fórmulas de contingência permitem que o sistema jurídico lide com situações imprevistas, gerando decisões inovadoras. Aqueles que são contrários à aplicação dessa fórmula no caso da Lei da Anistia, entendem que haveria uma fragilização da Constituição, já que se desrespeitariam preceitos fundamentais, aproximando a um tribunal de exceção, onde seria julgado o período histórico e aqueles ainda vivos seriam culpados por todos os crimes realizados por aquele período, sem contar a dificuldade de delimitação do que realmente é extremamente injusto9. Robert Alexy defende a aplicação de tal fórmula ao afirmar que ela leva apenas à punibilidade daqueles atos cujo conteúdo injusto é tão extremo, e, consequentemente tão evidente que é mais fácil ser reconhecido do que em muitas infrações penais comuns.10 Segundo Alexy, a injustiça extrema existe quando viola-se os direitos humanos, os quais, correspondem a direitos: universalmente válidos, originariamente morais, obrigatoriamente traduzíveis em direito 8

ALEXY, Robert. La decisión del Tribunal Constitucional Federal Alemán sobre los homicídios cometidos por los centinelas del muro de Berlín. In: VIGO, Rodolfo Luis (org). La injusticia extrema no es derecho. Buenos Aires: La Ley, 2006, p. 197 e 198.

9

PETRY, Jessica Palma. A Lei de Anistia e o caso Brasileiro: Uma discussão sobre a (Im) possibilidade de persecução penal dos agentes da repressão. Disponível em Acesso em 10 de Agosto de 2016.

10 ALEXY, Robert. Conceito e validade do Direito. Editora Martins Fontes. São Paulo: 2011, p. 34.

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positivo, prioritários em relação ao direito positivo, fundamentais (ligados à satisfação de necessidades e interesses cuja insatisfação geraria a morte, um sofrimento grave, ou a perda da autonomia) e semanticamente indeterminados (cuja determinação semântica deve ser realizada à luz de cada situação social e histórica). Ou seja, configurado que houve a incidência de normas que possuíam um conteúdo extremamente injusto que viola claramente direitos humanos extremamente consolidados não pairam dúvidas sobre a aplicabilidade dessa norma, já que não se visa aqui um revanchismo, mas sim permitir que atos criminosos praticados sob o manto da legalidade, não sejam protegidos por uma norma que notoriamente foi criada como forma de validar e perpetuar o mecanismo auto-impunidade. Contra esse posicionamento deve-se ponderar que entender desta forma seria perpetuar uma lógica de dominação onde se banaliza a violência e cria um esquecimento forçado, sendo este tipo de postura o maior responsável pela disseminação da impunidade por violação dos Direitos Humanos11. No item seguinte, trataremos de uma situação vivida no contexto do declínio político do regime ditatorial brasileiro nascido com o golpe militar de 1964, ou seja, a Lei da Anistia que consagrou a impunibilidade de todos aqueles que cometeram crimes políticos e conexos durante o período, retirando da apreciação judicial incontáveis violações aos direitos fundamentais ocorridas especialmente na repressão à luta armada que se articulou contra o regime. O Supremo Tribunal Federal, com base na ideia que se tratava de uma lei de caráter transitório, resultante de um acordo político para viabilizar a abertura do regime, decidiu que a Lei da Anistia foi recepcionada. Entendemos, todavia, de modo contrário. Ou seja, tal norma poderia ser declarada como não recepcionada utilizando-se os argumentos da “Fórmula Radbruch”. 11 MARTINS, Fábio Henrique Araújo. Uma análise da ADPF 153 desde a fórmula de Radbruch e da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos. In: Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 9, p. 43-53, fevereiro/2011. Disponível em < http://www.egov.ufsc.br/ portal/conteudo/uma-análise-da-adpf-153-desde-fórmula-de-radbruch-e-da-jurisprudênciada-corte-interamerica> acesso em 11 de agosto de 2016.

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Ao analisarmos detidamente os reflexos práticos da Lei da Anistia, concluímos que a mesma se tornou um grande e eficaz mecanismo de proteção aos agentes da repressão contra possíveis processos criminais referentes àquelas atrocidades cometidas. Reconhecer a validade de tal norma, não significa apenas aceitar que são as “regras do jogo de transição entre a ditadura e a democracia exige sacrifícios”, mas sim o reconhecimento da injusta auto-impunidade arquitetada pelos militares, assim como no caso alemão. Faremos uma breve exposição sobre a própria Lei da Anistia e seus percalços dentro do sistema judiciário, apontando ainda as possibilidades práticas de uma revisão da posição adotada pelo STF. 2. Histórico da Lei de Anistia O período militar no Brasil foi marcado por grande autoritarismo, truculência e violência por parte dos agentes de repressão, onde foram cassados os direitos políticos de inúmeros brasileiros, demitidos vários servidores públicos, militares foram reformados, efetuadas diversas prisões, indiciadas várias pessoas, fechadas e controladas várias entidades sindicais, além de imposição de censura à imprensa, com o fechamento diversos jornais e editoras, além da extinção de partidos políticos.12 Somente com o enfraquecimento das ditaduras do Cone Sul e com a crescente onda de redemocratização que se fazia presente nos países governados pelos militares, e com o intuito de evitar um nítido sentimento de revanchismo que poderia acontecer caso saíssem do poder, que o presidente da República encaminhou ao Congresso Nacional o projeto de Lei da Anistia, em junho de 1979, a qual foi rapidamente aprovada sem nenhuma dificuldade, tornando-se a Lei n. 6.683, de 28 de agosto de 1979. 12 COELHO, Saulo de Oliveira Pinto e MANSO, Renata de Oliveira Manso. Duplo Controle Constitucional-Convencional de Legitimidade da Lei de Anistia: reflexões sobre a jurisdição constitucional de transição e as relações entre anistia e memória no contexto da redemocratização brasileira. Disponível em < www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=e84401ad27c4cfb9> acesso em 15 de Agosto de 2016.

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3. Do julgamento da ADPF n. 153 pelo Supremo Tribunal Federal (STF) O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil ingressou, em outubro de 2008, no Supremo Tribunal Federal (STF), com uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF n. 153). Tal ADPF possuía como pedidos que o parágrafo 1º do art. 1º13 da Lei da Anistia (Lei 6683/79) tivesse uma interpretação conforme a Constituição de 1988, declarando assim que, sob a ótica de seus preceitos fundamentais da isonomia (art. 5º caput), direito à verdade (art. 5º XXXIII), princípio republicano, democrático (art. 1º, parágrafo único) e da dignidade da pessoa humana (art. 1º III), que a anistia ali concedida aos crimes políticos e seus conexos não se estendem aos crimes comuns praticados pelos agentes da repressão (civis ou militares) contra seus opositores políticos, durante o regime militar. Ao se reconhecer tal interpretação conforme a Constituição, visava-se afastar qualquer tipo de argumento que validava a impunidade daqueles agentes da repressão militar que sustentavam haver sido anistiados, como no caso da morte do jornalista Vladimir Herzog, dentro das dependências do DOI/CODI, em 1975, o qual teve seu inquérito criminal trancado, em 1993, por meio do Habeas Corpus 131.798-3/401 do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo sob o argumento de que tais atos estavam contemplados pela Lei da Anistia14 . O ministro Eros Grau foi o relator desta ADPF e, em seu voto, o mesmo conheceu da Arguição, porém no mérito a julgou improcedente 13 = Art. 1º É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexos com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares. § 1º - Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política. 14 RAMOS, André de Carvalho. Supremo Tribunal Federal Brasileiro e o Controle de Convencionalidade: levando a sério os tratados internacionais de direitos humanos. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo v. 104, FDUSP, São Paulo: 2009, p. 241/282.

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alegando que a Lei da Anistia foi interpretada como produto do processo de abertura lenta, gradual e segura do regime militar para o democrático, e, a revisão desta lei acabaria rompendo com a boa fé dos atores sociais que estavam envolvidos no debate naquela época. Votaram com o relator as ministras Cármen Lúcia e Ellen Gracie, e os ministros Gilmar Mendes, Marco Aurélio, Celso de Mello e Cezar Peluso, e pela procedência da arguição os ministros Ricardo Lewandowski e Ayres Britto. Já o ministro Dias Toffoli não participou do julgamento porque estava à frente da Advocacia Geral da União (AGU) à época em que a ação foi ajuizada, chegando a anexar informações ao processo. O ministro Joaquim Barbosa não participou do julgamento porque estava de licença médica. Assim o placar final do julgamento foi de sete votos pela improcedência contra dois votos pela procedência. Logo em seguida o CFOAB ingressou com embargos de declaração a fim de sanar a dúvida se os crimes de desaparecimento forçado, cujas vítimas e seus corpos permanecem ocultos, também teriam sido anistiados ou se esses crimes são permanentes e não poderiam ser perdoados, porém, até à presente data, o STF não julgou tal aclaratório. 4. Do julgamento na CIDH – Caso Gomes Lund e outro (“Guerrilha do Araguaia”) vs. Brasil A Guerrilha do Araguaia foi um movimento de resistência ao regime militar no Brasil, o qual foi fortemente repreendido no período entre 1972 a 1974, sendo que esta ação resultou na morte e desaparecimento de todos os seus 62 membros que se instalavam às margens do Rio Araguaia, na atual divisa dos Estados do Tocantins e Pará15. Após o julgamento do ADPF 153 pelo STF que culminou na improcedência daquela ação, três ONGs brasileiras (Centro pela Justiça e o Direito Internacional; Grupo Tortura Nunca mais do Rio de Janei15 SEDH – Secretaria Especial dos Direitos Humanos. BRASIL, Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Direito à verdade e à memória. Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2007. Disponível em < http://www.sdh.gov.br/assuntos/mortos-e-desaparecidos-politicos> acesso em 11 de agosto de 2016. a

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ro e Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos de São Paulo) submeteram tal caso à CIDH, o Caso Gomes Lund e Outro (“Guerrilha do Araguaia”) vs. Brasil16. Em sentença de 24/11/2010 publicada em 14 de dezembro do mesmo ano, a CIDH responsabilizou o Brasil pelo desaparecimento dos membros da Guerrilha do Araguaia, bem como sustentou que a Lei da Anistia é manifestadamente incompatível com a Convenção Americana sobre os Direitos Humanos, e que esta carecia de efeitos jurídicos e que não poderia representar um obstáculo para a investigação, identificação e punição dos responsáveis pelas graves violações aos Direitos Humanos naquele período. E para fundamentar seu posicionamento elenca a jurisprudência daquela corte acerca da não aplicação das leis de anistia quando existem crimes contra os Direitos Humanos, apontando os casos da Argentina, Chile, Colômbia, Paraguai e Peru17. É importante perceber que a Corte Internacional, ao citar tais precedentes contra leis de auto-anistia em diversos países da América Latina acaba que por tangenciar no argumento da injustiça extrema ao retirar a validade de leis criadas como métodos de perpetuação da impunidade por atos praticados em regimes ditatoriais. Considerações Retirados do contexto, as duas fases do pensamento de Radbruch podem deixar escapar um ponto fundamental. Em sua formulação original contida no livro Filosofia do Direito, o jurista alemão dá mais ênfase à ideia de segurança jurídica. A Alemanha vinha de um prolongado período de paz e estabilidade para os padrões europeus de sua época. Já quando Radbruch reformula suas ideias, no pós-segunda guerra, seu 16 GOMES, Luiz Flávio, A Lei da Anistia viola convenções de Direitos Humanos. Conjur, 2011. Disponível em acesso em 10 de Agosto de 2016. 17 MORAES, Ana Luísa Zago de. O “Caso Araguaia” na Corte Interamericana de Direitos Humanos. Artigo publicado na Revista Liberdades - n° 08 – Set.- Dez. 2011. Disponível em: ; acesso em 15 junho 2016.

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país estava saindo de um conflito que resultou na sua destruição e divisão. Temos duas situações distintas vividas, todo momento, pelos povos que são a normalidade e a excepcionalidade. Momentos de normalidade, na visão contemporânea do direito, orientado pela afirmação dos direitos fundamentais, consiste na plena estabilidade do Estado Democrático de Direito, funcionando através das suas instituições, com a observância da separação dos poderes, da alternância dos governantes substituídos através do voto livre e do respeito aos direitos individuais. Os momentos de exceção são aqueles em que tal legado é dissolvido e a observância dos fundamentos da ordem democrática é posta de lado. Para lidar com os problemas jurídicos de uma sociedade democrática alicerçada nos fundamentos retro mencionados nos parece que a “Fórmula Radbruch” perde o seu alcance e influência, podendo até mesmo servir para desorganização da vida legal com o enfraquecimento da segurança jurídica. Já para lidar com os momentos de exceção, onde o ordenamento é posto como carente de legitimidade, é a ideia de segurança jurídica que passa a ser alvo de questionamento dando margem para o reavivamento da “Fórmula Radbruch”. Podemos apresentar esta duplicidade sob a forma da dialética entre a exceção e a normalidade considerando que tais modais não ocorrem de modo puro de tal forma que mesmo os regimes de exceção procuram estabelecer uma “capa de normalidade”. Do mesmo modo, também os regimes onde a normalidade democrática encontra-se plenamente estabelecida, convivem com momentos de excepcionalidade, resta ver qual dos dois modais deve prevalecer dentro da tensão dialética. Justamente nos momentos de transição, onde é preciso passar da exceção para a normalidade, que a “Fórmula Radbruch” pode nos ser útil como um instrumento para lidar com injustiças que iriam perpetuar. Entendemos que a transição de uma forma calcada na exceção para outra, calcada na normalidade, sempre ocorre sobre a forma de um embate, onde as características ainda vivas do modelo anterior tentam sobreviver no novo regime. É

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preciso fazer com que o pêndulo da normalidade tenha um impulso maior. No Brasil, com a retomada da democracia, na Constituição de 1988, também tivemos que nos haver com os fatos criminosos praticados ao arrepio da própria legalidade existente nos chamados “anos de chumbo”, como a tortura e o desaparecimento de presos políticos. No momento do julgamento da Lei da Anistia, nossos ministros trilharam um caminho equivocado imaginando que a afirmação da normalidade democrática se faria mais fácil com a convalidação da Lei da Anistia, quando, pelo contrário, a negação da validade da mesma seria fundamental para alterar o padrão de comportamento do Estado brasileiro para com os seus presos. Tanto que a tortura e desaparecimento de presos permanecem, mesmo no período democrático, desta feita, sendo praticada contra presos comuns. O STF privilegiou a segurança jurídica em detrimento da justiça, agindo em conformidade com o primeiro Radbruch, mas sem levar em conta as advertências do segundo. Faltou, a nosso ver, reafirmar a normalidade contra a exceção e assim superar as situações intoleráveis, aquelas que se expressam sob a forma de injustiças extremas. Referências ALEXY, Robert. The argument the injustice, A Reply to Legal Positivism. Translated by Bonnie L. Paulson, Stanley L. Paulson, Claredon Press Oxford, 2001. BRASIL, Comissão Nacional da Verdade. Mortos e desaparecidos políticos. (Relatório da Comissão Nacional da Verdade) Vol. 3, 2014. p. 964/967. Disponível em: http://www.cnv.gov.br/images/pdf/relatorio/Capitulo%2018.pdf. Acesso em 15 de agosto de 2016. COELHO, Saulo de Oliveira Pinto e MANSO, Renata de Oliveira Manso. Duplo Controle Constitucional-Convencional de Legitimidade da Lei de Anistia: reflexões sobre a jurisdição constitucional de tran-

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sição e as relações entre anistia e memória no contexto da redemocratização brasileira. Disponível em < www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=e84401ad27c4cfb9>. Acesso em 15 de agosto de 2016. CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Julia Gomes Lund e outros (Guerrilha do Araguaia) contra a República Federativa do Brasil. Sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos, de 24 de novembro de 2010. Disponível em: http://www. corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_219_por.pdf . Acesso em 01 de agosto de 2016. DIMOULIS, Dimitri. Justiça de Transição e função anistiante no Brasil: hipostasiações indevidas e caminhos de responsabilização. In: Justiça de Transição no Brasil. DIMOULIS, Dimitri (Org.). São Paulo: Saraiva, 2010. GOMES, Luiz Flávio. A Lei da Anistia viola convenções de Direitos Humanos. Conjur, 2011. Disponível em http://www.conjur.com.br/ 2011-mar-10/coluna-lfg-lei-anistia-viola-convencoes-direitos-humanos. acesso em 10 de agosto de 2016. MARTINS, Fábio Henrique Araújo. Uma análise da ADPF 153 desde a fórmula de Radbruch e da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos. In: Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 9, p. 43-53, fevereiro/2011. Disponível em < http://www.egov.ufsc.br/portal/ conteudo/uma-análise-da-adpf-153-desde-fórmula-de-radbruch-e-da-jurisprudência-da-corte-interamerica>. Acesso em 11 de agosto de 2016. MORAES, Ana Luísa Zago de. O “Caso Araguaia” na Corte Interamericana de Direitos Humanos. Artigo publicado na Revista Liberdades - n° 08 – Set.- Dez. 2011. Disponível em: http://www.revistaliberdades. org.br/site/outrasEdicoes/outrasEdicoesExibir.php?rcon_id=95. ; acesso em 15 junho 2016. NERY JUNIOR, Nelson NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil comentado e legislação extravagante. 15. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.

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NETO, Cláudio Souza. Não há obstáculo para STF rever julgamento da Lei da Anistia. 2014, Disponível em http://www.conjur.com.br/ 2014-abr-02/claudio-souza-nao-obstaculo-stf-rever-julgamento-lei-anistia PETRY, Jessica Palma. A Lei de Anistia e o caso Brasileiro: Uma discussão sobre a (Im) possibilidade de persecução penal dos agentes da repressão. Disponível em http://repositorio.upf.br/xmlui/handle/123456789/401. Acesso em 10 de agosto de 2016. RADBRUCH, Gustav. Arbitrariedad Legal y Derecho Supra Legal. trad. M. I. Azareto de Vásquez, Abeledo Perrot, Buenos Aires, 1962. RADBRUCH, G., SCHMIDT, E., WELZEL, H. Derecho injusto y derecho justo. Madri: Aguilar, 1971. RADBRUCH, Gustav. Relativismo y derecho. Bogotá: Temis, 1999. RAMOS, André de Carvalho. Supremo Tribunal Federal Brasileiro e o Controle de Convencionalidade: levando a sério os tratados internacionais de direitos humanos. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo v. 104, FDUSP, São Paulo: 2009. SEDH – Secretaria Especial dos Direitos Humanos. BRASIL, Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Direito à verdade e à memória. Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2007. Disponível em < http://www.sdh.gov.br/assuntos/mortos-e-desaparecidos-politicos>. Acesso em 11 de agosto de 2016. VIGO, Rodolfo Luis (org). La injusticia extrema no es derecho. Buenos Aires: La Ley, 2006.

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A FUNDAMENTAÇÃO JUSFILOSÓFICA DO DIREITO À VIDA POS MORTEM A PARTIR DO TRANSUMANISMO: INTERFACE FILOSÓFICA, BIOTECNOLÓGICA E JURÍDICA

Diogénes Faria de Carvalho1 Ilana Patrícia N. Seabra de Oliveira2

1. Transumanismo na ótica conceitual, historicidade e importância para os direitos humanos fundamentais. 1.1 Conceito O transumanismo, como teoria científica, sugere um aperfeiçoamento aos conceitos relacionados à transmutação de espécies e seleção natural ou evolutiva, de Charles Darwin. Agrega-se à síntese do neo1 Doutor em Psicologia (economia comportamental) pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás, Mestre em Direito Econômico pela Universidade de Franca, Professor na Universidade Federal de Goiás, Pós-doutorando pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, gestor de prática jurídica pela Universidade Salgado de Oliveira, Conselheiro titular do Fundo de Defesa dos Direitos Difusos do Ministério da Justiça, membro diretor do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor e advogado do escritório Velasco, Vellasco e Simonini Advocacia. E-mail: [email protected]. 2

Aluna especial do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Direitos Humanos – UFG. Especialista em Direito Público, Previdenciário, Gestão Pública e Auditoria do Controle Externo. Servidora pública. E-mail: [email protected].

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darwinismo, relativamente às modificações na frequência dos alelos3 de uma geração para outra, como um resultado de deriva genética4, fluxo gênico5 e seleção natural. Inclui à referência neodarwinista, a genética populacional de Gregor Mendel (SALMAN, 2007), quanto à visão da evolução, centrada nos genes, a abarcar fenômenos como a mutação genética (replicação e combinação genética), a seleção consanguínea, o altruísmo e a especiação6. O núcleo de crença possibilita transcender as limitações biológicas, mediante a finalidade de empoderamento humano do seu próprio processo evolutivo. Descarta o passado do homo sapiens e traz como legado futurista a reescrita do genoma nos vertebrados, o redesenho do ecossistema global, a abolição do sofrimento humano pelo abrangente imperativo hedonista7 e pela concepção de elevação biológica e antropológica, através um novo modo de começar e terminar da vida humana. A interface do conceito transumano possui bases filosóficas, biotecnológicas e jurídicas as quais serão analisadas sob o método dogmático-científico. A vertente filosófica é a mais expressiva, com vários representantes, dentre eles, Max More, Stefan Lorenz Sorgner, Friedrich Nietzshe, Anders Sandberg, Joterrand, Simon Young, Nick Brostrom, Francis Fukuyama, Julian Saveluscu, Ronald Bailey e Murilo Vilaça. No prospecto contemporâneo é um desdobramento filosófico do 3

Alelos são formas alternativas de um mesmo gene, estudado por Gregor Johann Mendel dentro das leis da hereditariedade, no que diz respeito à transmissão de caracteres hereditários (Leis de Mendel).

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Deriva genética ou oscilação genética é um mecanismo microevolutivo que modifica aleatoriamente as frequências alélicas ao longo do tempo.

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Fluxo génico ou migração é qualquer movimento de genes de uma população para outra.

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Especiação é processo evolutivo pelo qual as espécies se formam.

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Aristipo de Cirene (435-366 a. C), do período pós-socrático, discípulo de Aristóteles, desenvolveu o pensamento de que a virtude ética era o hábito de bem gozar o prazer, retendo a frase clássica: “conhece-te a ti mesmo” para definir o seu prazer e buscá-lo. Seguidamente, fora conceituado o hedonismo epicurista, por Epicuro (341-270 a. C), quanto ao prazer vinculado à ausência de dor.

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Humanismo secular ou laico e do Iluminismo, pelo lapidar de Immanuel Kant (2005), a “representar a saída dos seres humanos de uma tutelagem imposta a eles mesmos”. Em 1883, Nietzsche (1883) apurou esse campo de visão pelas influências da obra Assim Falou Zarathustra desenvolvendo uma espécie de aceleração de crescimento pessoal e refinamento cultural para superação humana: “O homem é algo que deve ser superado, o que você tem feito para superar isso? Todos os seres criados até agora criaram algo além de si mesmo”. Inicialmente, atribuiu-se a criação do termo ao biólogo Julian Huxley (1957) como novo e revolucionário a uma consciência cósmica, segundo citado em sua obra Em novas Garrafas para o Vinho Novo: “Eu acredito no transumanismo, uma vez que há um número suficiente de pessoas que pode realmente dizer que a espécie humana vai estar no limite de um novo tipo de existência.” A moderna forma principiológica apresentou-se por meio do princípio da extropia (extropy), pelas mãos Tom Bell e Max More (1988), como sendo a extensão da inteligência pela ordem funcional, vida, experiência, aptidão e motivação em prol do crescimento e do melhoramento de um sistema vivo ou organizacional. Sua filosofia enquadra a evolução aos padrões e valores contínuos à condição humana permissiva ao tempo indefinido. Conceitualmente, Nick Bostrom (2003) preleciona o transumanismo como um movimento que se desenvolveu nos últimos 20 anos de modo gradativo, promovendo uma abordagem interdisciplinar para compreensão e avaliação das oportunidades (enhance) da condição humana, aprimorando seu organismo, ampliando capacidades físicas, mentais e emocionais por meio das biotecnologias disponíveis ou em desenvolvimento. Savulescu (2006) o concebe como condição caracterizada por seres originalmente evoluídos ou desenvolvidos a partir de seres humanos, mas significativamente diferentes. Como filosofia de análise ao desenvolvimento evolucionário, o

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transumanismo promove a junção das seguintes correntes: cientificismo, humanismo, agatonismo, sistemismo e racioempirismo. Cientificismo, em sua polissemia, sinônimo do positivismo ló8 gico na construção do conhecimento sobre a realidade, já o humanismo secular mediante a inserção no conjunto ou no sistema de normas compatíveis e centradas no sujeito humano, na pesquisa e na busca do bem-estar. Serve como base moral, o agatonismo, relativamente às ações morais justificáveis e aos princípios avaliados, em suas consequências, vindo a interpenetrar no sistemismo pelo diálogo com os sistemas biológicos, físicos, psicológicos e sociais, especialmente pelo ramo da ciência cognitiva, filosofia da mente e neurociência. Pela vertente do racioempirismo ou racionalismo contemporâneo, os elementos utilizados mesclam a razão necessária e suficiente à realidade e à experiência, como condição de transformação humana presente no caminho filosófico de Heráclito (2005), aonde “tudo flui, nada permanece”. 1.1. Historicidade Para o fluir, resgata-se uma pouco da historicidade presente na interface da biotecnociência-transumanista, na controvertida forma de lidar com a natureza humana, precisamente, nas relações pos mortem como plataforma de discussão aos anseios humanos prospectos à longevidade (life extesion) e à imortalidade, em sua última ratio. Porquanto, persiste essa busca incansável desde os remotos tempos a um potencial manipulador e ressuscitador da vida humana, como uma utopia de saúde indefinida. Na Teologia, Gênesis (BIBLIA SAGRADA, 1996) 3:22 relata que o homem perdeu o direito à imortalidade e mediante do decreto divino 8

Postivismo lógico ou neopositivismo - corrente filosófica presente no círculo de Viena, através de intelectuais de grande relevância, no cenário da filosofia analítica, no começo do século XX. A tese assenta em proposições analíticas ou contraditórias e proposições cujo valor de verdade pode ser verificado empiricamente.

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ficou sujeito à morte, salvo Cristo por meio da ressurreição, segundo Timóteo 6:16: “Aquele que possui, ele só, a imortalidade, e habita em luz inacessível: a quem nenhum dos homens tem visto, nem pode ver, ao qual seja a honra do poder semieterno”. Frente à obsessão pela permanência “do estar vivo”, a grandiosa civilização do povo egípcio apoiou a crença na imortalidade da alma recorrendo à mumificação e à descrição em papiro da imagem do Livro dos Mortos (BARGUET, 1967), ilustrando a “Pesagem do Coração”9 por Anúbis. Na mitologia grega, o renascimento de suas próprias cinzas é a força do pássaro denominado Fênix (grego clássico: ϕοῖνιξ), cuja narrativa cerceia o desejo do imperador romano Heliogábalo (ANATALINO, 2007), em 204-222 d.C., de se alimentar de sua carne para atingir a imortalidade. Também pelo poeta persa Farid al-Din Attar (1984), na obra A Conferência dos Pássaros, em 1177, a Fênix é descrita por várias vidas: “Fênix vive cerca de mil anos e conhece de antemão a hora de sua morte.” Similarmente o herói Utnapishtim (LOREY, 1997) busca a vida interminável na Epopeia de Gilgamesh (sec. XXXII a.C.) e, na estética, temos o mito da Fonte da Vida Eterna, em Cleveland, Ohio, nos Estados Unidos da América. No curso da Idade Média, surge o elixir da longa vida pela pedra filosofal (lápis philosophorum) com a significativa transformação do metal inferior em ouro para a obtenção do líquido precioso, chamado pelos alquimistas de A Grande Obra, Magnum Opus, (FLAMEL). Na literatura irlandesa, o romance do escritor Oscar Wild (2012), O Retrato de Dorian Gray, problematiza o envelhecimento e a aparência e questiona a juventude eterna e a beleza. Nessa obra, o anti-herói vende sua alma pela perfeição e imortalidade, cuja prisão lhe é destinada ao retrato/espelho e a cada pecado que comete desconfigura a imagem. No Humanismo Renascentista, o arquétipo da alma humana é 9

O julgamento dos mortos no salão das duas verdades, o coração era pesado em balança, tendo no contrapeso a pena da Deusa Maat. O coração, que pesasse mais do que a pena, seria considerado indigno e condenado a passar a eternidade no submundo.

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negociado ao demônio pelo mito fáustico de que o homem estaria disposto a se perder para conhecer e dominar a natureza e os segredos do universo. Como ciência, o conhecimento floresce a partir do pensamento iluminista a despontar cientistas como Issac Newton e Albert Einsten quanto aos pilares da Física moderna, precipuamente, à Teoria da Relatividade espacial e dos campos gravitacionais, aptos a expandirem os limites da consciência humana. Albert Einsten (1995) no debate sobre o prolongamento artificial da sua vida, respondera: “Quero ir quando eu quiser. É de mau gosto ficar prolongando a vida artificialmente. Fiz minha parte e, na hora de ir embora, vou fazê-lo com elegância.” Contudo, seu cérebro foi removido, preservado em formol e dissecado em 240 (duzentos de quarenta) seções para estudo de sua genialidade. Pelo aprimoramento da Física desdobrou-se a mecânica quântica, através dos precursores Planck, Bohr, Einsten e Schorodinger até chegarmos a Max Tegmark (1998) com a Teoria da Imortalidade Quântica. Nas suas bases conceituais, a morte é raramente um evento binário, antes um processo progressivo, que reconhece a hipótese de que “todos nós seremos imortais”. Na referência quântica, a ausência de morte é um resultado possível da sobrevivência a qualquer evento que ameace a vida, dentre todas as possibilidades, contudo a retirada da superposição ilustrada não impede os efeitos do envelhecimento, remetendo a lenda de Tithonus (HOMERO, 2010). Segundo a lenda grega Τιθωνός, a apaixonada Aurora pede a Júpiter que lhe conceda a imortalidade sem, contudo, pedir a eterna juventude. Com relação à teoria avançada do Biocentrismo quântico-relativista, o professor médico Roberto Paul Lanza (2012) sugere que a morte da consciência não se realiza com a morte do veículo físico, explana a sua possível migração para universos paralelos na tese do multiverso (multi-universo). Nos estudos da consciência humana, o médico Stuart Hameroff

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(THOMAS, 1996) equipara o cérebro humano a um computador quântico e a consciência ao nível das informações armazenadas no cérebro, cujo salto quântico de transferência energética ocorre após a morte. A compreensão das correntes apresentadas liga-se ao dado novo de consciência humana na sua qualidade psíquica e fenomenal. Na qualidade psíquica possui denominações tais como a subjetividade, autoconsciência, senciência, sapiência e a capacidade de perceber a relação entre si e um ambiente muito pesquisado na Filosofia da mente, na Psicologia, na Neurologia e na Ciência cognitiva. Na fenomenal, a consciência é a experiência propriamente dita de acesso e processamento das coisas que vivenciamos durante o dia a dia. Segundo a percepção desprendida por Immanuel Kant (2011): “A consciência comum é elevada a um estado do ser que pode perceber as coisas como são.” 1.2. Importância para os Direitos Humanos Fundamentais Por meio da consciência elevada ao estado do ser e do perceber, alcançamos uma outra etapa evolutiva, apta a transcender o ser humano, antropologicamente a serviço dessa espécie, para a consciência do pós-humano, seguidamente, do transumano em uma realidade metafísica. A reconceituar um modo diferente de começar e terminar a vida humana. A vida, como direito humano-fundamental, está prevista nos preceitos contidos nos artigos 3º da Declaração Universal de Direitos Humanos10 e 5º da Constituição Federal11, alicerçada amplamente no positivismo macrojurídico12. 10 Artigo 3º da Declaração Universal de Direitos Humanos: Todas as pessoas têm o direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal. 11 Artigo 5º da Constituição Federal do Brasil: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (omissis). 12 O positivismo jurídico ou juspositivismo é a corrente do Direito que procura explicar o fenômeno jurídico a partir do estudo das normas positivas.

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Perfaz o existir humano da dimensão digna, segundo Cármem Lúcia Antunes Rocha (2008) “não basta o viver-existir. Há que assegurar que a vida seja experimentada em sua dimensão digna, entendida como qualidade inerente à condição do homem em sua aventura universal”. Em nome dessa aventura universal é que surge um novo significado da vida, capaz de alterar a consciência humana e modelar o seu desenvolvimento, conforme o teor da carta aberta do secretário geral da Organização das Nações Unidas – ONU – para os participantes do Segundo Congresso Internacional Global Future 2045, Ban Ki-Moon (2016). Cita-se em sua versão original: Humanity essentially faces this choice: slide into the abyss of global degradation, or find and realize a new model of development, a model capable of changing human consciousness and giving new meaning to life.  We believe that to move to a new stage of human evolution, mankind vitally needs a scientific revolution coupled with significant spiritual changes, inseparably linked, supplementing and supporting of each other. The vector of future development provided by technological advancement should assist the evolution of the consciousness of humanity, the individual and society, and be the transition to neo-humanity. (GOBAL FUTURE 2045, 2013, p. 15-16)

Traz em seu discurso um novo modelo de desenvolvimento que altera a consciência humana e resignifica a vida para a Neohumanidade. Nesse sentido Nick Bostrom (2005) apresenta como preocupação transumanista a segurança global da humanidade (global security) frente ao risco existencial (existencial risk) de extinção da própria espécie por um evento natural, catástrofe, ou por uma forma de aniquilação da vida inteligente na Terra ou sua drástica redução: Global security. While disasters and setbacks are inevitable

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in the implementation of the transhumanist project (just as they are if the transhumanist project is not pursued), there is one kind of catastrophe that must be avoided at any cost. Existential risk – one where an adverse outcome would either annihilate Earth-originating intelligent life or permanently and drastically curtail its potential (BROSTOM, 2005, p.10).

A influência do transumanismo para os Direitos Humanos é destacado por Gregor Puppink13 (2014), ao verberar que os direitos tutelados pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos, por meio de sua convenção, em 1950, definem a proteção às capacidades inerentes ao ser humano inserido em sua realidade tecnológica. Aduz, ainda, a ampliação desse conceito de humanitário de direitos para acompanhar a evolução do homem renovado, ao crivo da biotecnologia, pelo potencial modificador da humanidade e dos seus direitos equiparados, compreendendo seu papel regulador das próprias representações sociais inseridas à concepção antropológica contemporânea. Juridicamente, Gregor Puppink (2014) faz a melhor distinção na compreensão dos direitos pós-humanos e direitos transumanos: Os direitos humanos exprimem as concepções sucessivas que a sociedade se faz sobre o homem: havia os direitos humanistas, depois personalistas. Hoje em dia, os direitos pós-humanistas se impõem e abrem caminho para os direitos trans -humanistas. O pós-humanismo é a dominação das vontades individuais sobre a natureza humana. Como efeito, ele substitui os direitos humanos pelos “direitos dos indivíduos”. Embora o texto dos Direitos Humanos adotados em 1950 não tenha mudado, sua interpretação individualista alterou, e até revolucionou, o seu conteúdo. 13 Reportagem do Flore Thomasset, publicada no jornal La Croix, 31.10.2014, com tradução de Moisés Sbardelotto, disponível em sítio eletrônico: , acesso em 15.08.2016.

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Assim, a Convenção Europeia dos Direitos Humanos proclama o direito à vida, mas a vontade individual de morrer ou de abortar uma gravidez é a que prevalece sobre esse direito. Suicídio assistido, eutanásia ou aborto são direitos pós-humanistas. O trans-humanismo é a superação e a substituição da natureza humana pelas biotecnologias. O acesso a essas tecnologias se torna um direito individual, porque elas permitem que se alcance uma vantagem. Ao se tornar um direito humano, a tecnologia – o artifício – é humanizada, socialmente integrada em nossa concepção evolutiva do homem. Assim, ao afirmar a existência de um “direito de pôr um filho no mundo que não seja afetado pela doença”, o  Tribunal Europeu dos Direitos Humanos  integrou as técnicas de seleção genética na definição do homem: o eugenismo se torna, assim, um componente da natureza humana aumentada. É um direito trans-humanista. Essa passagem da natureza humana (humanismo) à vontade individual (pós-humanismo) e, no fim, à tecnologia (trans-humanismo) é percebida como uma extensão da nossa liberdade, da nossa autonomia, através do aumento da faculdade de definir a nós mesmos como de um modo ilimitado. Assim, longe de contestar os direitos humanos, os direitos pós e trans-humanistas estão renovando e melhorando o cumprimento da promessa de felicidade oferecido à humanidade durante o século XVIII (PUPPINK, 2014).

À promessa de felicidade casa-se com a filosofia hedônica e se última como o valor-fim dos meios, assim, na interface com transumanismo, os direitos humano-fundamentais propõem a construção de novas interpretações à subjetividade jurídica existente e ao exame dos desafios inerentes à hermenêutica e à equalização de valores contemporâneos e futuristas aos morais e éticos existentes.

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2- Abertura da biotecnologia criogênica pos mortem para as novas perspectivas jusfilosóficas O envelhecimento e a morte são as principais características de interrupção do desenvolvimento humano. Mário Sergio Cortella (2016), filósofo e escritor paranaense expõe que “a humanidade é a imortalidade dos mortais através da lógica de que cada um de nós deixará de existir, contudo o conjunto da humanidade persistirá”. Explica, ainda, a tese do risco existencial humano quando relata que “hoje temos a clareza, de que como espécie, somos capazes de desaparecer, seja por nossas próprias causas, produzindo a destruição da vida, seja por que a própria natureza tem ali os seus caminhos” (CORTELLA, 2016). Logo, um dos desafios traçados pela problematização contemporânea é a precariedade, também a vulnerabilidade, inerentes à condição humana, as quais poderiam ser superadas pela percepção de um desenvolvimento progressivo passivo de modelar efeitos favoráveis e desfavoráveis à vida longeva. Em sua grande maioria, os conhecimentos biotecnológicos criam condições de aprofundamento de alguns fenômenos orientados às intervenções sobre as dimensões do fim da pessoa natural, dentre eles, a life extension através da suspensão criônica para a reanimação posterior. A biotecnologia criogênica mortem altera a natureza física da morte, sobreleva a possibilidade de uma ressignificação dessa vida futura ressuscitada, além de novas perspectivas jusfilosóficas. Para o desenvolvimento da suspensão criônica, criogenia humana ou congelamento humano parte-se do preceito morte pronunciado através da cessação cerebral14 e do Atestado de Óbito. Contudo, ainda que declarada a pessoa legalmente morta, muitas estruturas prosseguem em atividade e o complexo sistema cardíaco em funcionamento, durante algum tempo, se ligado aos aparelhos médicos e hospitalares15. 14 Pelo artigo 6º do Código Civil Brasileiro, a morte é o fim da existência da pessoa natural. 15 Algumas pessoas podem optar por serem congeladas após a morte natural, no entanto, as técnicas de animação suspensa podem ser aplicadas após a morte clínica, mas antes da morte

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Após a morte cerebral, o corpo humano é resfriado, tratado à base de injeções anticoagulantes que desobstruem os vasos sanguíneos e substâncias químicas protetoras das células e inibidoras de cristais de gelo na estrutura celular. Todo o sangue é bombeado para fora e o corpo e colocado em uma cápsula de nitrogênio líquido, guardado a menos de 196º C (cento e noventa e seis graus célsius), em temperatura adequada ao seu não perecimento. A origem da teoria não é infundada e teve início a partir das histórias de várias pessoas que sobreviveram depois de muito tempo debaixo de lagos congelados. Após quase uma hora, sem respirar, por causa da redução do metabolismo e das funções cerebrais, elas se mantiveram vivas, ainda que carentes de oxigênio. Do ponto de vista neurológico16, a criopreservação considera que o cérebro humano armazena várias informações da pessoa, com a memória, a longo prazo, de tal forma que, se viável o processo de retorno à vida, na Era da Neohumanidade e da Imortalidade Cibernética, esse corpo voltaria como se sono profundo estivesse passado (SEUNG, 2013). O físico Robert Ettinger (2005), na obra The Prospect of Immortality (A Perspectiva da Imortalidade) foi um dos precursores da base teórica inicial da criogenia a introduzir o conceito da morte suspensa como um farol ao futurismo: Em conclusão, lembro-me da história de Benjamin Franklin que em uma ocasião foi maravilhosamente resgatado de um naufrágio. Tendo expressado sentimentos de gratidão e agradecimento, ele foi perguntado se ele pretendia construir uma capela para lembrar sua fuga. “Não, na verdade, não”, ele resbiológica. 16 Projeto Conectoma Humano (The Human Connectome Project) interligado à imortalidade quanto ao neurocientista Sebastian Seung: “se as conexões do cérebro permanecem intactas no processo de criogenia ou se possível reconstruí-la, então não podemos descartar a possibilidade de ressuscitar as memórias e restaurar nossa identidade”, disponível no sítio eletrônico: , acesso em 22.08.2016.

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pondeu: “Eu vou construir um farol!” É minha opinião considerada que o sr. Ettinger também se “construiu um farol,” aquele que lança uma luz poderosa para os próximos anos. Na primeira súbita claridade algumas pessoas ficarão surpresas, outras irão refletir curiosamente as estranhas maneiras inesperadas de que as perspectivas antigas e monumentos foram alterados. Mas aqueles que têm enfrentado a dor e a perda e o “absurdo” enlouquecedor da morte humana seja em um campo de batalha, em tempo de guerra, ou em enfermarias hospitalares, essas pessoas vão sentir a iluminação como um brilho de boas-vindas de esperança em um mundo que tem estado à espera tanto tempo17 (ETTINGER, 2005, p. 7).

Essa experimentação abarca a busca de um estado ampliado de consciência e a relação simbiótica do homem à tecnologia, com os estudos aprimorados pelo professor de Filosofia da Universidade da Califórnia, John Martin Fischer (2014), na área de responsabilidade moral, livre iniciativa e questões éticas ligadas a vida e morte, frente a um consenso internacional de extensão da vida humana. Verbera o professor que a biotecnologia criogênica abre dilemas éticos, morais, filosóficos e jurídicos relativamente à ambiguidade dessa reflexão crítica. Dentre os aspectos éticos e morais importantes, temos a própria concepção da importância do ser (special significance), na sua prerrogativa humana, capaz de gerar um estatuto moral18 privilegiado perante os outros seres (pertencimento especista19) e, em contrapartida, um preconceito (human prejudice) de sua superioridade, conforme Savulesco (2009). Adentramos as questões filosóficas do personism20, quanto à definição de humano que retoma a vida (pós-humano) e a exploração dos 17 Prefácio por Jean Rostand de L’Academie Française, traduzido da obra original. 18 Estatuto moral é terminologia presente especialmente nas obras de Savulescu. 19 Especismo é a atribuição de valores ou direitos diferentes a seres dependendo de sua subsunção à espécie. 20 Personism é uma filosofia ética da personalidade, vinculada ao ramo do humanismo secular, cujos direitos são conferidos à pessoa. Aproxima-se do transumanismo na compreensão de titulação de direitos às pessoas não humanas, tais como, máquinas, animais e inteligências extraterrestres.

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valores afetos à identidade pessoal, à alteração do estatuto especista e à ampliação de novas bases morais, contempladoras de visões de mundos transacionais a uma pós-humanidade. Como será a valoração dessa vida pos mortem? E quando a vida for procedente do órgão cerebral, exclusivamente? Considerando que, nos institutos criogênicos, há congelamento de cérebros humanos para serem transplantados21 aos corpos tecnológicos (projeto-Avatar-Dmitry Itskvo22) ou aos corpos humanos procedentes de clonagem23 (técnicas de artificialização da vida e do patrimônio biológico humano melhorado). Esse novo ser transformado pertenceria à espécie transumana? A imortalidade cibernética proposta à espécie transumana seria uma fantasia ou um problema científico? Segundo o depoimento do co -presidente do Conselho Científico da Academia de Ciências da Russia, DI Dubrovsky (2012), a modelagem da inteligência artificial está embasada em espectro teórico: Qual a base para a convicção de que o problema da imortalidade cibernética é um problema científico real? Ele não contradiz os princípios da ciência. Na verdade, ele encontra uma base teórica neles – acima de tudo, no princípio fundamental da iso-funcionalismo de sistemas, que, essencialmente anunciaram o início da era do computador. A ideia deste princípio é que o mesmo complexo de funções que pode ser reproduzido em substratos com diferentes propriedades físicas. Por conseguinte, a possibilidade fundamental para reproduzir as funções de um sistema vivo e o cé21 Valery Spiridonov, um informático russo, voluntariou-se para ser o primeiro paciente a fazer um transplante de cabeça em humanos, em dezembro de 2017. Disponível em sítio . Acesso em 19.08.2016. 22 A Inciativa Social Estratégica de 2045 abrigará cérebros humanos em veículos desencarnados. Inicialmente, transplantados em robôs, depois de 2045, em humanos pela engenharia reversa e download (mind uploading) da consciência humana em chip de computador. Iniciativa Social Estratégica 2045, disponível em sítio eletrônico: < 2045.com/ >. Acesso em 18.09.2016. 23 Projeto The Mind Uploading Project, disponível em sítio eletrônico: < minduploadingproject. org/ >, acesso em 22.08.2016.

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rebro em substratos não biológicos, o que também se aplica completamente as funções mentais. Perspectivas extensas para esta são abertas pelo desenvolvimento convergente da NBICS (nanotecnologia, biotecnologia, informação, tecnologias cognitivas e sociais e campos do conhecimento científico que corresponde a eles). Mutuamente enriquecedor entre si, estas tecnologias criam métodos sem precedentes poderosos para transformar o seu humano e o ambiente social, em particular, na possibilidade de sistemas que são capazes de reproduzir as funções da vida e do pensamento em substrato não biológicos de construção. Este é o caminho da transformação trans-humanista, a transfiguração da mente e da personalidade (DUBROVSKY, 2012).

Na seara jurídica, remanescem vários desdobramentos fáticos possíveis de observação, tais como as hipóteses levantadas pelo físico Robert Ettinger (2005), na obra The Prospect of Immortality e outras investigadas, vejamos: 1ª hipótese: Haverá direitos autorizativos ao congelamento de um parente? 2ª hipótese: Um corpo em suspensão criogênica terá quais direitos e obrigações legais? 3ª hipótese: Como serão as relações pessoais e civis dessas pessoas frente aos seus cônjuges e aos direitos hereditários? 4ª hipótese: Haverá uma intervenção estatal regulatória ou a mera previsão testamentária de vontade será suficiente para autorizar o procedimento? 5ª hipótese: Qual a eficácia e validade do testamento lavrado no país de origem frente à autoridade estrangeira, cuja certificação depende de autoridade consular, consoante o artigo 18 da Lei de Introdução ao Código Civil? 6ª hipótese: Na área securitária, como ficarão assistidos os bene-

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fícios de seguro de vida, previdência e saúde com o possível retorno à vida? 7ª hipótese: A recusa ao processo de “life extension” será considerado um suicídio? 8ª hipótese: Quais regulamentos éticos e de responsabilidade moral seriam aplicados aos procedimentos inexitosos ou à inviabilidade de se cumprir à promessa de renascimento? Caberia indenização aos familiares vinculados? 9ª hipótese: Considerando que a suspensão criogênica é realizada pelos Estados Unidos da América, como seria mediada a demanda procedente de outros países frente ao Direito Internacional? 10ª hipótese: Também nos Estados Unidos da América é proibido a criônica em corpos vivos, devendo estes ser oficialmente declarados mortos. Contudo, se estão legalmente declarados mortos, como poderiam ser revividos no futuro? Haveria uma nova averbação de nascimento de pessoa pós-humana? Seus genitores seriam os mesmos? Poderia se falar em resgate de identidade? São pontos paradoxais reflexivos do que compreendemos como o propósito da vida e o sentido da morte. No Brasil, o primeiro estudo de caso referente a essa investigação ocorreu em 2012, com o engenheiro civil da Força Aérea Brasileira, Sr. Luiz Felippe Dias Andrade Monteiro24, vitimado por um acidente vascular cerebral, cujo corpo fora criopreservado pelo instituto Cryonics¸ para retomada posterior da vida, frente aos avanços da ciência. A justiça brasileira decidiu sobre a repatriação do corpo ao país de origem, como medida final concernente ao processo nº 005760661.2012.8.19.000125. Um dos fortes argumentos levantados foi inade24 Disponível em sítio eletrônico < http://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2014/07/ palhacada-diz-filha-que-tenta-na-justica-sepultar-pai-congelado.html >, acesso em 23.08.2016. 25 Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, 20ª Câmara Cível, Apelação Cível nº0057606-

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quação do processo de criopreservação pos mortem, no país de origem, para a aplicação da animação suspensa, no país estrangeiro. Segundo o depoimento do médico brasileiro Carlos Alexandre Ayoub26, especialista: “Em 24 (vinte quatro) horas após a morte, os tecidos já estão mortos e o sangue coagulado, sem resquício neurológico vivo, portanto, mesmo que encontrem a tecnologia (para ressuscitar), ele nunca será recuperado.” Ainda que a suposição do pensamento transumanista seja insegura pela lógica reversa, estima-se que cerca de 250 (duzentos e cinquenta) pessoas estão sendo preservadas em tubos de nitrogênio e mais de 2 (duas) mil pessoas aguardam sua vez para o turbo congelamento27. Calcula-se que essa tendência levará a humanidade a desenvolver um campo de saber especializado do Direito, direto-criônico, tendo em sua base a biotecnologia como um pilar a expandir o humano primitivo em uma inteligência superior e unificada à consciência coletiva, na qual não lhe deverá ser negado o direito de se reinventar e prolongar sua existência. 3 – Human Plus e a harmonização principiológica Para a construção desse direito à longevidade é necessário o domínio de várias significações representacionais, dentre elas, abordaremos o human plus e a harmonização principiológica do transumanismo. A maximização dessa capacidade a elevados níveis de promoção humana articula a figura do human plus (humanos mais positivados) ou human enhacement (humanos aperfeiçoados), representado esteti61.2012.8.19.0001, Relatora Des. Flávia Romano de Rezende, julgado em 13.6.2012 e publicado 15.03.2012. 26 Matéria jornalística disponível em sítio eletrônico< //zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/planetaciencia/noticia/2014/08/justica-decide-sobre-repatriacao-de-corpo-de-brasileiro-congeladonos-eua-4567740.html >, acesso em 23.08.2016. 27 Fontes referenciadas nos sites da Alcor Life Extesion Foundation, Cryonics Institute e BBC, apud Revista Mundo Estranho, disponível em sítio eletrônico < mundoestranho.abril.com.br/ ciencia/existem-mesmo-pessoas-congeladas-para-ressuscitar-no-futuro/?fb_comment_id=95 8001800933859_958174687583237 > acesso em 23.08.2016.

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camente pela simbologia do H+. A Humanity+28 é uma organização que divulga a filosofia transumanista, cujo salto tecnológico da espécie ressignifica a definição do homo sapiens, como ser integrado com a biotecnologia. No ambiente acadêmico, a crença de transcender como humanidade espelha-se na literatura científica dos ensaios de Novas Garrafas para o Vinho (1957) de autoria de Julian Sorell Huxley e o Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley (1946), por meio de uma reflexão acerca das potencialidades autoritárias do mundo em que vivemos, dentre elas uma sociedade de pessoas programadas em laboratórios. Trata-se de um movimento embasado por projetos expansionistas e harmonizados em sua base principiológica pelo princípio proactionary, a declaração transumanista e a tabela de hierarquização de valores de Bostrom. Com parte da filosofia do extropismo, Max More delimitou o princípio à compatibilidade tecnológica, denominado proactionary, consubstanciado em: A liberdade das pessoas em inovar tecnologicamente é altamente valiosa, mesmo crítica, para a humanidade. Isto implica vários imperativos quando são propostas medidas restritivas: avaliar os riscos e as oportunidades de acordo com a ciência disponível, não é a percepção popular (MORE, 2014, p. 93).

Esse princípio baseia-se na observação de que as inovações tecnológicas mais úteis e importantes não foram compreendidas no momento de sua invenção e aponta para o desdobramento de outras 10 (dez) características: Em 1998, Declaração Transumanista 29 inseriu o conceito da ética 28 Sítio eletrônico: < www.superinteressante.pt/index.php?option=com_content&view=article&id=532:e-depois-de-nos&catid=3:artigos&Itemid=77 >. Acesso em 22.08.2016. 29 As seguintes pessoas contribuíram para este documento: Doug Bailey, Anders Sandberg, Gus-

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no uso de tecnologias para a extensão das capacidades humanas e definiu um marco teórico regulatório: No entanto, a declaração enfrentou diversos embates, particularmente quanto ao apontamento de desconstrução da natureza humana (desumanização), mutação do estatuto ontológico e os limites de sua ciência experimental. Porquanto, Bostrom (2005) desenvolveu uma tabela de hierarquização de valores, visando referenciar nesse movimento a defesa de diversidade. Compreendem que a alteração da natureza humana (estatuto ontológico) também transformaria a concepção de Direitos Humanos relativamente ao cerne modificador de pessoa humana para o cerne de consciência ou essência humana, cabendo ao direito refletir sobre o aprimoramento jurídico que o transumanismo propõe. Também, no debate, abrem as perspectivas para o horizonte eugênico com espectro de meio e de traços humano-existenciais perfectíveis e por uma miríade de iniciativas de melhoramento da raça, human plus (H+). Especificamente na área da criônica, os transumanistas ressaltam que o estado de turbo congelamento pos mortem é mais interessante do que uma sepultura convencional, ainda que dúvidas pairem sobre a capacidade da ciência. Assistidos de sorte, as pessoas criopreservadas terão o destino escrito pela ciência contemporânea e serão ressuscitadas a ponto de beberem o vinho dos séculos vindouros, conforme os ensaios de Novas Garrafas para o Vinho, de Julian Sorell Huxley (1957). Com má sorte, manterão o status quo mortem que já se encontram.

tavo Alves, Max More, Holger Wagner, Natasha Vita More, Eugene Leitl, Berrie Staring, David Pearce, Bill Fantegrossi, Doug Baily Jr., den Otter, Ralf Fletcher, Kathryn Aegis, Tom Morrow, Alexander Chislenko, Lee Daniel Crocker, Darren Reynolds, Keith Elis, Thom Quinn, Sverdlov Mikhail, Arjen Kamphuis. Disponível em sítio eletrônico: < https://transhumanismocts. wordpress.com/tag/declaracao/ >. Acesso em 21.08.2016.

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4 – Conclusões Sem dúvidas, um dos maiores enigmas da humanidade é a existência da imortalidade. Na essência, os limites da condição humana serão ultrapassados pelo devir tecnológico30 a projetar uma perfeição existencial e longa. Esse processo de alteração originará o ser pós-humano e o transumano, na dimensão biotecnológica. Porquanto os valores éticos e morais interligados à espécie humana serão transformados pelas novas intervenções e validados como valores modernos, refeitos em nossos julgamentos morais e respeitados pelo critério da diversidade. O professor Saulo de Oliveira Pinto Coelho (2012) ao explicar a abertura semântica dos direitos humano-fundamentais nas sociedades democráticas contemporâneas, defende “que os direitos humano-fundamentais não são balizas absolutas e atemporais”, relativamente à chave conceitual discursiva de construção permanente de seus significados. No viés da construção plúrima de significados, a dignidade da vida pos mortem teria um atributo pós-humano, compatível e complementar ao presente significado, considerando os melhoramentos fenotípicos dos nossos ancestrais caçadores e coletores, conforme o paper de Nick Bostrom, Em Defesa da Dignidade Pós-Humana (2005): O que nós somos não é uma função unicamente do nosso DNA, mas também nosso contexto social e tecnológico. A natureza humana nesse sentido é mais ampla e dinâmica, parcialmente feita de homens melhoráveis [...] Ao defender a dignidade pós-humana nós promovemos uma ética humana e inclusiva, uma que irá abarcar futuras pessoas tecnologicamente modificadas assim como o humano contemporâneo. Nós também removemos um duplo critério falseador (distor30 Devir Tecnológico é uma expressão utilizada pelo professor de Ética e Epistemologia, da Faculdade de Filosofia da PUC de Campinas, prof. dr. Newton Aquiles Von Zuben, no paper Qual a dignidade numa era pós-humana? A concepção de Francis Fukuyama.

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sive) de campo de nossa visão moral, nos permitindo perceber mais claramente as oportunidades que existem para mais progressos humanos (BOSTROM, 2005, p. 14-15). Em nome dessa dignidade inclusiva, afirma-se que vida é um direito humano-fundamental. Aquela que da morte se revela vida, também será objeto de tutela humano-fundamental, por não desconfigurar o elemento associativo à essência humana e o conceito introduzido pela física quântica de consciência humana.

Dessa forma, a fundamentação do direito à vida pos mortem, a partir do transumanismo teria uma chave-conceitual ampla e complexa cujo diálogo resolutivo passaria pela filosofia, biotecnologia e pelo campo jurídico, a estabelecer interfaces complementares cujas conclusões se formam. No discurso teórico, por meio dos principais referenciais tais como Max More, Nick Brostrom e Savulescu, com predominância da Oxford University, sem contudo deixar de citar o filósofo do Humanismo secular como Kant e, na seara da Psicanálise, Nietzsche. Através dos anseios humanos prospectos à longevidade (life extesion) e à imortalidade construindo a própria história humana mediante o texto bíblico, a cultura egípcia, a mitologia grega, a literatura irlandesa e as ciências: quântica, médica, antropológica, genética e biológica. Seguidamente, pela importância do transumanismo para os direitos humano-fundamentais na vertente de vida humana reconceituada no seu início e no seu término, conforme as previsões constantes do artigo 3º da Declaração Universal de Direitos Humanos e artigo 5º da Constituição Federal. Na contemporização dos ideais de vida pos mortem relativos à segurança global da humanidade frente ao risco existencial da espécie humana, na visão globalizada de Gregor Puppink e na compreensão dos direitos pós-humanos e transumanos. Esse discernimento abre as bases para perspectivas jusfilosóficas da criogenia na clareza de Sérgio Cortella, com a Humanidade é a Imor-

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talidade dos Mortais e inaugura a era da Neohumanidade e Imortalidade Cibernética, cultivada, anteriormente, pelo físico Robert Ettinger, na obra The Prospect of Immortality, e aplicada nos institutos criogênicos na atualidade, inclusive com um relato de case brasileiro do sr. Luiz Felippe Dias Andrade Monteiro. Na seara jurídica, são apresentadas 10 (dez) hipóteses investigativas, passíveis de definição de critérios regulatórios, cujo estudo é inaugural a ponto de levar a humanidade a desenvolver um saber especializado em direito-criônico. Com foco na construção dessa área, apresenta-se a harmonização principiológica trans-humana, as bases de sua concepção e a terminologia do human plus (H +). Contudo, persiste nesse modelo de crença (assentada na flexibilidade principiológica da dignidade pós-humana) um ponto de inflexão, consubstanciado no paradoxo de aprimoramento life extesion, como projeção futurista, sem assistir a milhares de humanos do mínimo existencial, desafios que a doutrina transumanista não se habilita a resolver. Por consequência, o renascer de um processo de suspensão criônica pressupõe, antes de tudo, um viver bem em uma vida anterior. Cuidemos de chegar à singularidade tecnológica, garantindo uma vida existencial mínima a toda humanidade a fim de que o salto quântico da espécie permita que todos os homens “bebam o vinho da era vindoura, porque o cuidado de viver bem e o de bem morrer constituem um único e mesmo cuidado”, conforme o filósofo Epicuro (1973) em A Conduta na Vida. Referências ANATALINO, João. Conhecendo a Arte Real: a Maçonaria e suas Influências Históricas. São Paulo: Editora Madras, 2007. ATTAR, Farid al Din. The Conference of the Birds. Rio de Janeiro: Editora Penguin Classics, 1984.

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Bruno Rocha Faria Arantes1 Felipe Magalhães Bambirra2

1. O pensar entre a realidade e a utopia Por volta dos anos de 994 a 1035, o rei Canuto governou o território que, hoje, engloba a Dinamarca, Noruega e Inglaterra. Cansado de toda a bajulação de seus súditos, resolveu ensinar-lhes uma lição. Ordenou que levassem o seu trono à beira da praia. Percebendo que o artefato real encontrava-se no local designado, solicitou ainda que levassem o objeto às margens do mar. Os conselheiros ficaram perplexos, mas não ousaram indagar as razões reais. Canuto sentou-se no trono, deixando molhar os seus pés, e percebeu ao subir da maré. Perguntou aos súditos se a maré iria cessar de subir, se lhe ordenasse. Um conselheiro retrucou que, caso o líder ordenasse, assim o oceano obedeceria. O rei começou a gritar imperativos que o oceano era obrigado a 1

Bruno Rocha Faria Arantes é graduando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás/PUC-Goiás.

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Mestre e doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais, com estágio doutoral na Universitãt zu Köln (Alemanha) e Max-Planck-Institut für ausländisches öffentliches Recht und Völkerrecht (Heidelberg – Alemanha). Pós-doutorando e Professor no Programa Interdisciplinar de Pós-Graduação em Direitos Humanos da UFG e na UNIALFA – GO. E-mail: [email protected]

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cumprir, mas de nada adiantou. Após tal circunstância, o silêncio pairou no ar, e uma pequena onda espraiou aos pés do monarca. Canuto contestou sobre o porquê do oceano não tê-lo obedecido. A resposta veio através de outra onda que arrebentou bem junto a seus pés. A maré começou a subir e precipitou a atingir o trono, cada vez mais, ao ponto da água começar a molhar o manto da realeza. Neste momento, Canuto disse que não tinha tanto poder quanto acreditavam, e, observando o ocorrido, naquele dia, seus súditos aprenderam algo de muito valor. O ensinamento era que somente havia um rei todo poderoso a quem todos deviam a obediência. Tratava-se de um ser sobrenatural, e somente ele poderia governar as forças da natureza e o futuro humano como bem quisesse. Então, o Rei disse que se fosse para exaltar alguém, que dirigissem essas palavras ao Ser supremo (Bennett, 1995). O ensinamento de Canuto é pertinente para iniciar uma reflexão sobre a relação utópica entre política e direito. Os agentes políticos prometem que irão mandar no oceano como assim lhes aprouver. Muitas vezes, acreditam veemente que a realidade que idealizaram se concretizará e os problemas que a sociedade detém cessarão, apenas através de um discurso retórico. Como demonstrou o monarca, dirigir palavras àquilo que se pretende efetivar não basta. O direito, por sua vez, consolida tal utopia em textos legais. Creem especialmente os juristas, que o direito teria o poder, ou ao menos seria um instrumento significativo de alterar o real. Por meio da positivação de normas, pretende-se descrever as condições ideais para o homem viver com dignidade – o direito é, em suma, dever-ser, contrafático. Seria ele então uma narrativa de como as ondas, os ventos e a maré devem se comportar para que, em condições perfeitas, o homem desfrute da melhor condição preconizada? Se a mutação e complexidade de eventos naturais engendram condições de difícil interferência antrópica, da mesma forma a realidade humana, social, apresenta grande resistência quando se tenta mudá-la, a exemplo de quando se reconhecem ou criam-se novos direitos. E, em nossa história recente, a Constituição Federal de 1988 foi pródiga ao fazê-lo. Inovou ao prever

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direitos individuais, coletivos e difusos, que outrora não passavam de símbolo destituído de força, servindo, em nosso contexto, pré-democrático de outrora, para tentar mascarar a ilegitimidade do poder exercido. De qualquer modo, uma pergunta se faz necessária: - Os direitos e princípios constitucionais albergados pela Constituição de 1988 só teriam existência em um plano ideal? Seria a Constituição uma mera utopia, sem se constituir isto num valor, ou, ainda, seria este caráter utópico exatamente um desvalor, a retirar legitimidade da Carta Magna? Se o filósofo pretende conhecer o real, perscrutar para além das aparências, tocar a “essência”, a coisa-em-si, sabe ele também que, por outro lado, a realidade não é simplesmente algo dado, mas uma relação dialética que se desenvolve no tempo entre sujeito cognoscente e objeto, ou, ainda, o próprio desvelar-se do ser, que ora manifesta as suas possibilidades existenciais, ora oculta-se, e que o homem, ao longo da história, mais tem tentado dominar que realmente conhecer o real. Chega-se à conclusão de que a realidade pode ser outra, totalmente diferente, mas também que ela apresenta uma resistência a qual, por vezes, parece ser insuperável. A busca pela concreção de determinada idealidade, isto é, transformar um projetar, uma ideia, enfim, o desejo por outra realidade, só ocorre com luta e engajamento. Geralmente, as mais ousadas exigiram sangue e vidas, como bem demonstra a história3. E não há garantia de controle do processo e muito menos do resultado, sempre incerto. Pretende-se, aqui, refletir sobre a utopia no âmbito do direito e da política, seus riscos e possibilidades para incentivar e promover a concretização de direitos fundamentais. Não se trata de responsabilizar o Estado por todas as demandas que uma sociedade complexa como a brasileira apresenta, mas, sim, de pensar sobre a relevância da garantia – ainda que utópica – de dignidade a cada cidadão, como pretende a Constituição Federal. Reconhecer o direito como instrumento de tal garantia não quer dizer instaurar um mínimo ético, tal qual proposto por 3

Nesse sentido, a lição do realista de Hegel, para quem a história não é o palco da felicidade, mas ao contrário: os momentos felizes são as suas páginas em branco. HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Filosofia da História. Trad. Maria Rodrigues e Hans Harden. 2. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1999, p. 30.

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Jellinek, mas permitir a estruturação de uma sociedade funcional, dialeticamente imbricada com a formação saudável do indivíduo – que, no lugar do menosprezo, deve possuir amor e desenvolver a autoconfiança; ao invés de se tolerar o desrespeito, deve o direito garantir o respeito alheio e propiciar o autorrespeito; e, por fim, deve ainda reforçar os laços de solidariedade para fortalecer a autoestima, alcançando um nível de reconhecimento satisfatório (HONNETH, 2012). Essa proposta representa, na verdade, um direito como o máximo ético, de acordo com Salgado (2006), que tem por fim criar espaços adequados para que o indivíduo desenvolva-se livre e de modo ótimo as suas potencialidades, permitindo-se a realização de projetos de vida plúrimos. A negação do direito como utopia é uma imagem pintada de cinza. Falta-lhe o viço da vida que a esperança num futuro melhor representa, e acabaria por se tornar um retrato dos fatores reais de poder, uma Constituição sociológica, da qual falava Lassalle. Porém, utopia não é um bem em si. Afinal, os nazistas também tinham um projeto de sociedade utópica – e com amparo do conhecimento “científico” da época, depois evidentemente desmistificado – que valorizava a pureza da raça constituída pelo Übermensch, à la Darwin. Por isso, figura-nos interessantes algumas considerações sobre esta paradoxal relação. 2. Utopia: destino ou companheira de viagem? Não poderíamos querer falar de utopia sem começar por Platão, afinal, uma ideia platônica ou uma utopia possuem grandes semelhanças. Na República, o filósofo grego cita como um governante deveria ser para concretizar o viés utópico: Enquanto os filósofos não forem reis nas cidades, ou aqueles que hoje denominamos reis e soberanos não forem verdadeira e seriamente filósofos, enquanto o poder político e a filosofia não convergirem num mesmo indivíduo, enquanto os muitos caracteres que atualmente perseguem um ou outro

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destes objetivos de modo exclusivo não forem impedidos de agir assim, não terão fim, meu caro Glauco, os males das cidades, nem, conforme julgo os do gênero humano, e jamais a cidade que nós descrevemos será edificada. Eis o que eu hesitava há muito em dizer, prevendo quanto estas palavras chocariam o senso comum. De fato, é difícil conceber que não haja felicidade possível de outra maneira, para o Estado e para os cidadãos (PLATÃO, 2012, p. 153).

Trata-se da figura ao qual Platão intitulava de filósofo-rei. Para ele, somente um homem sábio teria a ideia do bem, igualdade e justiça. Através dessa sabedoria, o governante estaria menos inclinado a cometer injustiças e mais preparado para por termo aos males da cidade: Mas, dentre este pequeno grupo, aqueles que se tornaram filósofos e provaram as delícias proporcionadas pela posse da sabedoria, convencidas da insensatez do restante dos homens, sabem que não possuem aliados com quem possam contar, para ir, em socorro da justiça sem se perder, mas que, ao contrário, como um homem caído no meio de animais ferozes, recusando-se a participar das injustiças dos outros e incapaz de resistir sozinho a esses seres selvagens, pereceriam antes de ter servido a pátria e os amigos, inúteis a si mesmos e aos outros. Logo, levados por essas reflexões, ficam inativos e ocupam-se dos seus negócios; semelhante ao viajante que, durante uma tempestade, enquanto a vento ergue turbilhões de pó e chuva, fica feliz, por encontrar um muro atrás do qual possa se abrigar. Os filósofos, constatando que a injustiça reina impune por toda parte, sentem-se felizes em poder conservar-se em seu retiro, isentos de injustiças e de ações ímpias, passando seus dias sorridentes e tranquilos, com o consolo de uma bela esperança [...]. Com efeito, num governo adequado, os filósofos teriam desfrutado de mútuo prestígio e se teriam tornado úteis ao Estado e aos cidadãos (PLATÃO, 2012, p. 171).

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Do outro lado do espectro, com uma proposta realista, cita-se Maquiavel. O florentino afasta-se da ideia de filósofo-rei de Platão no livro O Príncipe, e descreve o governante como o protagonista nos desafios que o poder lhe aflige. Para ter êxito, ele deverá agir de forma pragmática, pois, na maior parte das vezes, lutar pelo ideal utópico enfraqueceria a sua perpetuação no poder: Muitos imaginaram repúblicas e principados que jamais foram vistos e que nem se soube se existiram na verdade, porque há tamanha distância entre como se vive e como se deveria viver, que aquele que trocar o que se faz por aquilo que se deveria fazer aprende antes a arruinar-se que a preservar-se; pois um homem que queira fazer em todas as coisas profissão de bondade deve arruinar-se entre tantos que não são bons. Daí ser necessário a um príncipe, se quiser manterse, aprender a poder não ser bom e a valer-se ou não disto segundo a necessidade (MAQUIAVEL, 2004, p. 73-74).

Se para Platão a política é a encarnação do bem, que assume o governo da cidade, Maquiavel preocupa-se com a técnica necessária para alcançar o objetivo de qualquer político: conservar e aumentar o seu poder. Seriam estas realidades excludentes do ser da política? Ou, antes, observações que se complementam, revelando a realidade com as suas contradições inerentes? Outro grande autor da utopia foi Thomas Morus, quem a compreende, ainda, de modo inovador: é uma construção. Em sua obra A Utopia, o inglês escritor pretende ensinar por meio de diálogos. Destaca-se o personagem Rafael, um indivíduo culto que se absteve de riquezas para conhecer o mundo e, viajando por diferentes países, teve a honra de conhecer o país da Utopia. O autor faz-se inserir também na obra como personagem, e começa a conversar com Rafael sobre como era aquele lugar que o viajante visitara. Através da descrição do local, Morus apresenta o seu país ideal: uma sociedade igualitária e moderada

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seria o fim a que os Estados Nacionais europeus de sua época deveriam destinar-se. Conforme cita o personagem Rafael, ao descrever a cidade da utopia: “Segundo a tradição, o plano da cidade foi traçado pela própria mão do rei Utopos, que deixou aos seus sucessores o cuidado de aperfeiçoar e embelezar sua obra, uma vez que considerava que essa obra se estenderia para muito além do tempo de uma vida.” (MORUS, 2004, p. 43). Dessa forma, o autor deixa transparecer que a utopia é uma transformação contínua, que leva tempo, inexistindo imediatismo no processo de mudança de uma sociedade. Utopos era o líder daquele país descrito por Rafael, e, mesmo tendo uma civilização avançada para sua época, o político era ciente de que nem todas as demandas daquele lugar seriam atendidas por ele. Era um trabalho para várias gerações. Se trata de um projeto tão trabalhoso e demorado, qual seria a sua função? Identificando-se com Thomas Morus, o cineasta Fernando Birri explanou com maestria o porquê de a utopia ser necessária. Certa vez, foi ele proferir uma palestra junto com o escritor uruguaio Eduardo Galeano, em universidade na cidade de Cartagena das Índias, na Colômbia. Após a palestra, os alunos começaram a fazer inúmeras perguntas a eles, quando uma destoou das demais: - Para que serve a utopia?, indagou o aluno. Galeano olhou com surpresa e pensou: O que eu respondo agora? Então, seu amigo pediu a palavra e concedeu uma resposta estupenda: A utopia está no horizonte. Aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos pelo horizonte e ela se afasta 10 passos. Por mais que eu caminhe, nunca a alcançarei. Para que serve a utopia? Pois a utopia serve para isso, para caminhar (GALEANO, 1993, p. 230, tradução dos autores).

O caminhar visionando um ideal é como a utopia se concretiza. Não importa se uma realidade ideal será usufruída somente após o trabalho de cinco gerações. A importância deste anseio da humanidade

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por mudanças é o que permite o início do processo de conversão de paradigmas. É durante este percurso que a sociedade pode alcançar o que vivenciam os utopianos descritos por Thomas Morus. A utopia, antes de um fim, é uma companheira de viagem, que deixa marcas indeléveis por onde passa. 3. O poder e indivíduo: entre a utopia e a distopia No âmbito político, o contingenciamento do poder e o modo como ele se instaura são premissas básicas para caracterizar um Estado Democrático de Direito. Porém, a espada de Dâmocles parece ser inofensiva àqueles que querem gozar do poder. Sobretudo porque, em sociedades disfuncionais como a brasileira, a espada cai apenas raramente, e, em regra, bem longe do trono. Na utopia hobbesiana, sendo o homem o lobo do homem, cuja liberdade sem limites representa um perigo ao outro, bastaria instaurar a sociedade civil, rompendo-se o estado de natureza, com cessão da liberdade para o soberano, por meio de um contrato social, para que houvesse segurança. A distopia, percebida sem dúvidas por Hobbes, é que o soberano pode se converter em tirano, e a solução dada, neste caso, diante da perda de sua função e o alto custo da alienação dos direitos dos súditos, seria o regicídio. No “mundo real”, porém, a distopia somou-se à utopia, e, perversamente, a construção do indivíduo ao longo da Modernidade gerou uma sociedade de milhares de soberanos privados, ansiosos para exercer a sua pequena parcela de poder. Todo aquele que, em algum momento, desfrute de uma posição de autoridade sobre outrem, está em condições de causar sérios danos ao querer conformar-lhe a ação. Em 1961, uma experiência na Universidade de Yale chamou a atenção da comunidade acadêmica. O psicólogo Slanley Milgram realizou experimento para entender como indivíduos, sendo observados, obedecem às autoridades, mesmo se tratando de ordens que infligiam seu bom-senso individual e princípios. O pesquisador pretendia explicar como o genocídio nazista foi corroborado por inúmeros cidadãos

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alemães. O tema estava em voga porque, três meses antes do experimento, Adolf Eichmann foi julgado pelos seus crimes durante o regime nazista. O pesquisador queria saber se tais ações eram simples obediência às ordens superiores ou se era possível que um ser humano tornasse cúmplice em causar um dano a outrem. O experimento foi organizado da seguinte forma: Na experiência básica, planejada, duas pessoas chegam a um laboratório psicológico para participar de um estudo sobre memória e aprendizado. Um é chamado de “professor” e outro de “aluno”. O experimentador explica que o estudo diz respeito aos efeitos da punição no aprendizado. O aluno é conduzido a uma sala, senta-se-o numa espécie de miniatura de cadeira elétrica; seus braços são imobilizados para impedir movimentos excessivos e um eletrodo é preso ao seu pulso. Ele é informado de que ser-lhe-ão lidas listas de pares de vocabulários simples e que, então, será testada a sua capacidade de lembrar-se da segunda palavra de um par quando ouvir novamente a primeira palavra. Sempre que cometer um erro, receberá choques elétricos de intensidade crescente. Entretanto, o verdadeiro objeto dessa experiência é o professor. Depois de presenciar o aluno sendo amarrado, ele senta-se diante de um impressionante “gerador de choques”. O painel de instrumentos consiste em trinta interruptores de alavanca dispostos em linha horizontal. Cada interruptor tem claramente marcada a designação da voltagem, que vai de 15 a 450 volts, com descrições verbais que abrangem desde Choque Leve a Choque Moderado, Choque Forte, Choque Muito Forte, Choque Intenso, Choque de Extrema Intensidade e, finalmente, Perigo: Choque Grave (MILGRAM, 1963, p. 372).

O “professor” era instruído a administrar um choque ao aluno que errasse. Quando aquele titubeava em continuar o experimento, as seguintes frases de estímulo eram pronunciadas: por favor, continue; o experimento requer que você continue; é absolutamente essencial que

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você continue e você não tem outra escolha a não ser continuar. Se o professor recusasse administrar o choque após ter sido proferida a última frase de estímulo, cessava-se o experimento. O resultado do experimento foi inesperado. De todos participantes, dois terços continuaram a administrar o choque até a tensão mais alta e todos os participantes infligiram ao aluno um choque de pelo menos 300 volts (MILGRAM, 1963, p. 376). A conclusão do psicólogo foi a seguinte: Os aspectos legais e filosóficos da obediência têm enormes consequências, mas esclarecem muito pouco sobre a maneira pela qual a maioria das pessoas se comporta em situações concretas. Realizei uma experiência simples na Universidade de Yale para testar até que ponto um cidadão comum poderia infligir dor a outra pessoa simplesmente porque essa ordem lhe foi dada por uma cientista experimental. A autoridade rígida foi oposta aos imperativos morais mais fortes dos testados contrárias a ferir os outros. Com os ouvidos retinindo com os gritos das vítimas, a autoridade vencia na maioria das vezes. A extrema disposição de adultos obedecerem totalmente ao comando de uma autoridade constitui o principal achado desse estudo: fato este que necessita, com maior urgência, de uma explicação (MILGRAM, 1963, p. 371).

Tal experimento relaciona-se com que direção utópica que líderes políticos podem propor à sociedade. Durante a história, genocidas se apoderaram do meio político como forma de concretizar seus ideais utópicos. Através da retórica e carisma, promoveram inúmeros crimes contra a humanidade e formaram cúmplices na prática destas atrocidades. No famoso julgamento de Eichmann, Hannah Arendt descreveu o ideal de um dos arquitetos do Holocausto na Segunda Guerra Mundial: Um “idealista”, segundo as noções de Eichmann, não era simplesmente um homem que acreditava numa “ideia” ou

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alguém que não roubava nem aceitava subornos, embora essas qualificações fossem indispensáveis. Um “idealista” era um homem que vivia para a sua ideia – portanto não podia ser um homem de negócios – e que por essa ideia estaria disposto a sacrificar tudo e, principalmente, todos. Quando ele disse no interrogatório da polícia que teria mandado seu próprio pai para a morte se isso tivesse sido exigido, não queria simplesmente frisar até que ponto se achava cumprindo ordens e pronto para executá-las; queria também mostrar o “idealista” que sempre fora. O “idealista” perfeito, como todo mundo, tinha evidentemente seus sentimentos e emoções pessoais, mas jamais permitia que interferissem em suas ações se entrassem em conflito com sua “ideia” (ARENDT, 1999, p. 33-34).

Quando se pensa numa pessoa idealista, jamais imagina-se alguém responsável pelo extermínio de crianças, velhos, homens e mulheres perpetrado num campo de concentração nazista. Cogita-se sobre o bem, em ideais edificantes ao homem. Pode-se ver, com Arendt, que a utopia é um caminho perigoso, que apresenta os seus percalços. Portanto, contemporaneamente à sua gênese, é difícil relacionar a utopia diretamente com o bem, e a distopia com o mal, pois tal análise se dá a posteriori, julgada pelo tribunal da história. É dizer, utopia e política é uma mistura que apresenta os seus perigos. Os políticos têm se comportado como verdadeiros Prometeus contemporâneos. Aspiram consolidar e expandir o seu poder, e, para isso precisam convencer que atenderão aos desejos dos homens, e prometer-lhes uma vida melhor. Não há, nas sociedades hipercomplexas contemporâneas, democracias diretas – e até mesmo o questionamento se isso seria bom –, o que converteu a democracia representativa num modo satisfatório de garantia da legitimidade. Prometeu, ao entregar o fogo aos homens, causou-lhes também grandes danos. Do mesmo modo, as promessas políticas apresentam custos, na maioria das vezes, não evidenciados. Fábio Konder Comparato, debruçando-se sobre o ci-

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tado mito, ressalta igualmente o seu lado negativo, pois a técnica possibilita a dominação, mas, sem controle, ou numa sociedade tão desigual, acaba por afastar-se dos ideais de vida boa: A História demonstrou que os temores de Zeus eram sobejamente justificados. O desenvolvimento da habilidade técnica, em mãos de alguns poucos, não contrabalançado pela extensão da sabedoria política de todos, engendrou um permanente déficit ético, consubstanciado na organização oligárquica, tanto no interior das sociedades locais quanto nas relações internacionais. Essa carência moral, ao longo da História, tem provocado regularmente grandes catástrofes, sob a forma de massacres coletivos, fomes, epidemias, explorações aviltantes, o todo resultante da divisão operada entre a minoria poderosa e a maioria indigente (COMPARATO, 2010, p.539).

Se na esfera pública o político deve deter habilidades técnicas, imprescindíveis à boa governança, mas, igualmente também as habilidades éticas, seria possível traçar o perfil de um político desejável? Políticos de destaque, que se convertem em figuras históricas, são sempre polêmicas, a exemplo de Júlio César, Marco Aurélio, Otávio Augusto ou Winston Churchill. Afinal, grandes mudanças causam também insatisfações, pois é difícil que o câmbio do status quo seja percebido como positiva por todos os envolvidos. A esse respeito, ORTEGA Y GASSET, de forma percuciente, põem em xeque se, realmente, o que a sociedade quer é, verdadeiramente, novos “grandes políticos”: O “Ideal” que se usa é menos, e não mais, que a realidade. Assim, o atributo de boa pessoa que impomos ao político ideal é muito fácil de imaginar e definir. Em compensação, as outras qualidades que constituem um político não poderiam jamais ser extraídas de nossa mente, sendo, sim, necessário esperar humildemente que a própria Natureza haja por bem inventá

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-las, magnificamente, e solva parir um titã como Mirabeau. Quando isso acontece, por obra e graça das potências cósmicas, nós, ingratos e petulantes, nos apressamos a censurar o feto, por não possuir as virtudes de um burguês honrado e comum. A humanidade é como uma mulher que se casa com um artista porque é artista, e depois se queixa porque este não se comporta como um chefe de repartição (1988, p. 60).

Querendo um chefe de repartição e, ao mesmo tempo, um grande líder inspirador, os cidadãos anseiam que o político tenha muitos predicados. Mesmo com os mecanismos de limitação de poder presentes no Estado moderno, o representante do povo detém grande protagonismo na dinâmica do Estado. Incumbe a ele, de modo técnico, coordenar políticas públicas no Executivo, legislar, organizar o orçamento público, fiscalizando os gastos, e, por outro lado, de modo poético, reconhecer os anseios populares e vislumbrar projetos de futuro da comunidade – habilidades e competências tão diversificadas e, muitas vezes, incompatíveis. Surge, assim, mais um risco, da utopia-distopia, a do político-herói, pois à espera de um salvador, que talvez nunca chegue, despe-se cada um de suas responsabilidades, correndo-se o risco de naufragar. 4. Constituição, Utopia e Distopia: tensionar o real, mas sem romper a corda De forma mais sistêmica, e, portanto, menos individualizada, utopia e realidade, no âmbito do movimento constitucionalista, têm permitido experiências inovadoras. O caminho à – ou com a – utopia é longo, e até mesmo “uma história sem fim”. A Carta Magna inglesa, de 1215, foi, nos marcos do constitucionalismo moderno, um acontecimento significativo, pois traduziu o intuito de impedir o exercício do poder absoluto de outrora. Desde então, várias lutas sociais e políticas transcorreram dentro deste movimento, com o objetivo de resguardar direitos e limitar poderes políticos.

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Um exemplo interessante, pois alia processos de longa e curta duração, refere-se às conquistas sociais ligadas ao trabalho. Durante a primeira Revolução Industrial, os trabalhadores eram submetidos a condições de trabalho indignantes, sendo comum as crianças trabalharem mais de 12 horas diárias, submetidas a produtos tóxicos, ambientes insalubres, tetos rebaixados para otimizar o espaço. Com o advento de lutas para mudar aquele cenário, inúmeras legislações trabalhistas surgiram, representando uma vitória do trabalhador; em função delas, pode o brasileiro, hoje, usufruir desta conquista civilizacional, que foi acolhida na Constituição Federal brasileira de 1988 e na Consolidação das Leis de Trabalho. É certo que tais condições precárias não foram abolidas do mundo e nem do Brasil – o trabalho análogo à escravidão existe nas fazendas localizadas em fronteiras agrícolas, nas lojas de roupas que empregam imigrantes ilegais em São Paulo, nas fábricas têxtis de Bangladesh, que produzem roupa de grife para os países ricos – mas, hoje, são moralmente ilegítimas e inaceitáveis, causam o sentimento de indignação, e isto não é nada, mas algo poderoso, capaz de transformar esta realidade. Para HERKENHOFF (1993, p. 7), é o pensamento utópico “o grande motor das revoluções”. Se não fosse o pensamento utópico, talvez perdurasse o Apartheid, na África do Sul, por muito mais tempo. E as condições indignantes de trabalho antes citadas, seriam aceitas na contemporaneidade? A visão utópica permite almejar o não vivenciado, e o texto constitucional encontra-se impregnado por este anseio. O “espírito” da Constituição permite aos cidadãos projetarem no futuro uma realidade não experimentada, mas existente em vários planos – no ideal e no normativo, quando não no institucional. Pode-se falar na possibilidade de instauração de num verdadeiro diálogo entre o sentimento gerado pela utopia e texto normativo, implicando uma dialética com a ação humana e a conformação da realidade. Interconexões entre o “ser” e o “dever ser” constitucionais permitem a possibilidade de o homem lutar por um cenário projetado para o futuro.

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Nos dizeres de Paulo Ferreira da Cunha: A Constituição é, assim, uma utopia (mais ou menos: a sua outra dimensão é, como aflorámos, o mito) vertida no gênero “decretório” legalista; e a utopia é uma constituição, moldada ao género ficcional, como narrativa, conto, romance, etc. O seu espírito aproxima-se muito. E tal não tem nada de pejorativo e de desqualificador (antes pelo contrário) para a ática seriedade do constitucionalismo e constitucionalistas. Nem, simetricamente, deve perturbar a independência, a autonomia e a qualificação artística, e especificamente literária (ou dramática, cinematográfica, etc – CUNHA, 2009, p. 88).

Na contemporaneidade, o pluralismo político é inerente à realidade. O animus político engendra uma tarefa de difícil concreção: como articular esses diferentes pontos de vista a fim de chegar a um novo status quo? Como a política poderá se converter num espaço de cooperação para que se instaure uma nova realidade? Trata-se de uma tarefa árdua, mas a ideologia política está relacionada à utopia. O utópico constitucional serve como régua do processo político, determinando as regras do jogo dos representantes do povo, e, ao mesmo tempo, a finalidade, o telos ao qual a luta política deve almejar: a concreção de uma realidade ainda não vivenciada, e uma nova forma de intervenção política: A invenção da escrita utópica seria a escolha de uma forma singular de intervenção no campo político; é a afirmação de que o projeto político, a busca do melhor regime, passa necessariamente pelo recurso de uma forma de escrita. A utopia seria política não porque anuncia suas proposições, suas teses ou temas, mas na própria efetuação de seu dizer (ABENSOUR, 1990, p. 81).

A coordenação entre o texto utópico e o agente político determinaria um dirigismo constitucional visando um Estado ideal e, segundo

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Canotilho, essa caminhada passa, necessariamente, pela ação política como tarefa precípua do agente político: Esta constitucionalização de tarefas torna mais importante à legitimação material, embora se considere, em geral, que o facto de a lei constitucional fornecer linhas e programas de acção à política não pode nem deve substituir a luta política (CANOTILHO, 1993, p. 74).

A Constituição é a utopia que a Assembleia Constituinte definiu, dentre várias outras possíveis, em determinado tempo e lugar, ganhando assim certa estabilidade. É até mesmo louvável os legisladores “almejarem descrever, com a minúcia possível, uma sociedade que consideram melhor, planificada, racional, com traços do geometrismo, da uniformidade, certa igualitarização” (CUNHA, 2009, p. 88). Se a utopia é um diretivo para a conversão do mundo num ideal, o constituinte sabia qual realidade a sociedade brasileira deveria atingir. Porém, para se chegar a tal intento é necessário cuidar para que a utopia não se converta na burocratização da vida e consequente imobilização: A utopia tem esses dois traços possíveis. A utopia-distopia, que, na sua regularidade, excesso de previsão, burocracia, é, afinal, um inferno limpo e bem organizado no papel (na prática nem sempre), e o princípio esperança, ou utopismo, que pelo contrário aponta para uma justiça (lato sensu, incluindo, naturalmente a justiça social) cada vez mais perfeita. Constante e perpétua vontade de aperfeiçoamento, de superação (CUNHA, 2009, p. 93).

A utopia-distopia mostra-se como um fator impeditivo para que a utopia ganhe adeptos e gere mudanças. Já no utopismo, permite-se o caminhar para uma realidade não vivenciada, sempre tendo a justiça social como referência. Não se atinge, em sua completude, a justiça, mas, parafraseando Ulpiano, deve haver uma vontade constante e per-

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pétua de alcançá-la, tomando-a como parâmetro de referência e controle, como uma régua para medir a legitimidade e julgamento das ações políticas e morais. Paulo Ferreira da Cunha, ainda, afirma: E finalmente a Constituição pode funcionar como utopismo ou princípio esperança. Neste caso, a Constituição não abdica de conformar e de transformar a realidade, mas quer fazê -lo com as pessoas e não contra elas, de forma gradual, imaginativa, sem recorrer à força como regra, e sempre se apta a reconhecer os erros e a corrigi-los, compreendendo que a sociedade ideal não é um ponto de chegada, não é um fim da História, mas uma revolução permanente (2009, p. 93).

Sobre a estrutura da utopia, Boaventura de Souza Santos nos brinda com uma interessante reflexão: Apesar de algumas ideias utópicas serem eventualmente realizadas, não é da natureza da utopia ser realizada. Pelo contrário, a utopia é a metáfora de uma hiper carência formulada ao nível a que não pode ser satisfeita. O que é importante nela não é o que diz sobre futuro, mas a arqueologia virtual do presente que a torna possível. Paradoxalmente, o que é importante nela é o que nela não é utópico. As duas condições de possibilidade da utopia são uma nova epistemologia e uma nova psicologia. Enquanto nova epistemologia, a utopia recusa o fechamento do horizonte de expectativas e de possibilidades e cria alternativas; enquanto nova psicologia, a utopia recusa a subjetividade do conformismo e cria a vontade de lutar por alternativas (SANTOS, 1999, p. 279).

5. Considerações O utopismo é um elemento transformador na sociedade. Ele se

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apropria de aspectos estruturantes do Estado e com a união destes é possível a conversão dos parâmetros axiológico e fáticos. O universo simbólico é reconstruído quando a percepção da realidade choca-se com princípios maiores – que na história ocidental denominou-se, de forma difusa, como o respeito à dignidade da pessoa humana. Já no âmbito do direito, a utopia apodera-se do texto positivado que regulamenta uma sociedade. A Carta Magna é o texto normativo principal e, quando este documento determina diversos direitos aos cidadãos, é possível vislumbrar ali um caminho, um rumo para a nação, e até mesmo distinguir certas prioridades. A utopia permeia o real constantemente, seja de modo individual ou coletivo, pois a realidade é percebida e interpretada através desta précompreensão. É a utopia que permite, por meio desta atividade imagética, a instauração de processos aptos a, ao menos, combater as injustiças percebidas. Como afirma BARROSO: Em algum lugar do futuro, com a dose adequada de idealismo e de determinação política, a dignidade humana se tornará a fonte de tratamento especial e elevado a todos indivíduos: cada um desfrutando o nível máximo atingível de direitos, respeito e realização pessoal. Todas as pessoas serão nobres. Ou melhor, como na lírica passagem de Les Miserables , “todo homem será rei”.338 E mais à frente ainda, como o desejo e a ambição são ilimitados, os homens vão querer ser deuses (2012, p. 195)

A função da utopia é caminhar, e é esse imperativo que os entes os quais compõem uma sociedade devem reter como axioma, para que haja uma aproximação deste mundo ideal, escrito na Constituição, instrumento político-jurídico que se abre para o futuro. Nem prescindir da utopia, nem deixar, constantemente, de confrontá-la com a realidade, sabendo-se que são duas retas paralelas, que, no infinito, encontram-se.

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Referências: ABENSOUR, Miguel. O Novo Espírito Utópico. Campinas: Editora da Unicamp, 1990, p. 81. ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém Um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 33-34. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco . São Paulo : Nova Cultural, 1991, p. 5. BARROSO, Luís Roberto. ‘‘Aqui, lá e em todo lugar” A Dignidade Humana no Direito Contemporâneo e no discurso transnacional. Revista dos Tribunais, Vol. 919, p. 127-196, 2012. BARROSO, Luís Roberto. Da Falta de Efetividade à Judicialização Excessiva: Direito à saúde, fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial, in Revista Interesse Público, nº 46, nov/dez 2007, p. 31-61, 2007. BENNETT, William J. O Livro das Virtudes. Editora Nova Fronteira, 1995. CANOTILHO, J.J. Direito Constitucional. Coimbra: Almedina, 1993, p. 15. COMPARATO, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. São Paulo : Saraiva, 2010. CUNHA, Paulo Ferreira da. Geografia Constitucional Sistemas Juspolíticos e Globalização. Lisboa: Quid Juris, 2009. GALEANO, Eduardo. Patas Arriba: La escuela del mundo al revés. Madrid: O.N.C.E. Centro Bibliográfico y Cultural: Madrid. 1998. GALEANO, Eduardo. Las Palavras Andantes. Buenos Aires : Catálogos, 1993. HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Filosofia da História. Trad. Maria Rodrigues e Hans Harden. 2. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1999.

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Bruno Rocha Faria Arantes, Felipe Magalhães Bambirra

HERKENHOFF, João Batista. Direito e Utopia. 3ª ed. Espírito Santo: Acadêmica, 1993. HONNETH, Axel. Kampf um Anerkennung: Zur moralischen Grammatik sozialer Konflikte mit einem neuen Nachwort. Frankfut am Main: Suhrkamp, 2012. MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. 3ª ed. Trad. Maria Júlia Goldwasser. São Paulo: Martins Fontes, 2004. MILGRAM, Stanley. Behavioral Study of Obedience, Journal of Abnormal and Social Psychology, 67, 371-378. Tradução do Consulado dos Estados Unidos no Rio de Janeiro – Revista Diálogo. Disponível em: . Acesso em: 26 de outubro de 2016. MORUS, Thomas. Utopia. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2004, p. 43 ORTEGA Y GASSET, José. “Mirabeau ou o Político”, Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1988, pág. 60. PLATÃO. A República. Brasília: Kiron, 2012 SALGADO, Joaquim Carlos. A Ideia de Justiça no Mundo Contemporâneo: fundamentação e aplicação do direito como maximum ético. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. Porto: Edições Afrontamento, 7. ed, 1999. SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 9. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA EM LUÍS ROBERTO BARROSO: A (IN)EFETIVIDADE ENTRE O CONCEPTUALISMO E A OPERACIONALIDADE

Diva Júlia Sousa da Cunha Safe Coelho1 Saulo de Oliveira Pinto Coelho2

1. Considerações iniciais O constitucionalismo brasileiro passou por grandes transformações nas últimas três décadas. Transformações essas marcadas e expressadas pelas noções de giro hermenêutico-pragmático do Direito; reconstitucionalização e redemocratização; construção da força normativa da constituição e dos direitos fundamentais, bem como a busca por máxima eficácia e efetividade constitucional (Cf. Barroso, 1996). Neste contexto, não há dúvidas de que a ideia de dignidade de pessoa humana 1

Doutora em Cidadania e Direitos Humanos pela Universidad de Barcelona, Mestre em Filosofia Política pela Universidade Federal de Goiás, Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Coordenadora da Especialização em Direito e Justiça do Trabalho da Faculdade Sul Americana. E-mail: [email protected].

2

Mestre e Doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Goiás – UFG. Coordenador do Programa de Pós-Graduação (Mestrado Profissional) em Direito e Políticas Públicas da UFG; e professor do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Direitos Humanos da UFG.

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Diva Júlia Sousa da Cunha Safe Coelho, Saulo de Oliveira Pinto Coelho

(de matriz originariamente filosófica, mas que foi amplamente internalizada na linguagem jurídica e hoje possui uma configuração claramente interdisciplinar) acabou por destacar-se no debate constitucional brasileiro atual. Isso, como uma categoria constitucional que é proposta, no atual estado da arte do debate, como tendo uma função nucleadora e organizadora da dimensão substancial da normatividade constitucional. A discussão sobre o princípio ou direito fundamental à dignidade acabou por assumir um importante papel no Direito brasileiro atual. Porém, esse debate focado na ideia de dignidade como elemento vetor da conversação constitucional brasileira não está livre de problemas e desafios. Entendemos que parte dos problemas que hoje se descortinam no constitucionalismo brasileiro, especificamente quanto à assunção da dignidade como categoria constitucional estrutural da linguagem constitucional, diz respeito ao aparecimento de novos dualismos na linguagem jurídica (tanto na linguagem jusfilosófica, quanto na linguagem constitucionalista). Exemplo disso é o dualismo entre o procedimentalismo e substancialismo constitucional (STRECK, 2007); que se soma a um embate entre constitucionalismo global e novo constitucionalismo latino-americano (WOLKMER, 2013) cenário que ganha complexidade ao somamos a essas questões a identificação de uma nítida diferenciação que na produção científica nacional entre aqueles discursos apologéticos-laudatórios dos direitos fundamentais e aqueles discursos críticos, ou mesmo crítico-céticos acerca do papel de tais direitos na linguagem jurídica (COELHO, 2015). Essa última dualidade apresentada encontra uma digressão no debate entre discursos hegemônicos e discursos contra-hegemônicos sobre direitos humanos (SANTOS, 2014). De certa forma, acaba por ocorrer uma hiper-plurivocidade para a tratativa da dignidade humana como categoria constitucional no contexto Brasileiro, produzindo muitas vezes uma (des)informação, pela hiper informação contraditória, construída no amalgama das novas dualidades do discurso jurídico-constitucional, exemplificadas acima.

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Nesse contexto de dualismos, muitos se inserem nos polos do debate, mas poucos se esforços por construir uma postura de superação. Lênio Streck (2007, p.17-38) chama atenção para a necessidade de uma teoria constitucional para países de modernidade tardia. Interpretando suas colocações a respeito, consideramos que um dos grandes desafios dessa perspectiva é preservar uma dimensão substancialista para a linguagem constitucional (necessária em contextos de forte desigualdade social, em que a constituição deve ainda preservar um papel ‘dirigente’), mas cuidando para que essa perspectiva não implique, nem num retrocesso a jusnatularismos ou moralismos jurídicos (muitas vezes fundamentadores de jusativismos extrapolantes), nem num desembocar em uma tratativa meramente apologética de direitos relacionada a uma desconexão da apresentação laudatória destes com um necessário, mas quase sempre ausente, situar do debate a partir da tradição e de um pensar e refletir sobre a tradição (no caso, a tradição constitucional em que estamos situados). É nesse estado de coisas que aparecem diferentes posturas de tratamento dos direitos humanos e notadamente da dignidade humana como categoria constitucional. Por exemplo, podemos colocar de um lado as festejada literatura a respeito produzida por Ingo Sarlet (2012, p.75-90), marcada, ao nosso ver, por um substancialismo em certamente medida laudatório (e com notas de jusnaturalismo em algumas passagens), pois apresenta a arquitetura conceitual da configuração constitucional da dignidade humana, focando em seu conteúdo conceitual abstrato, mas com pouca preocupação com a inserção do debate na conflitividade social nacional. De outro lado, podemos situar exemplificadamente, leituras como a de João Mauricio Adeodato (2008, p. 213-228) a respeito, outro jurista de grande projeção no debate nacional, mas que, diferentemente de Sarlet, quanto a esse tema, manifesta explicita preocupação pela forma como o substancialismo constitucional brasileiro vem se desenvolvendo, migrando o debate sobre o sentido da constituição para a construção racionalista de conceitos constitucionais, a partir de um enfoque conceitualista em abstrato desses direitos, com o efeito

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muitas vezes do descolamento desse debate para fora da positividade da ordem constitucional atual. Entre, por exemplo, o conceitualismo de Sarlet, e pós-positivismo (se assim podemos chamar) de Adeodato, surgem interessantes esforços como o de Luiz Roberto Barroso, professor titular de Direito Constitucional na UERJ e ministro do Supremo Tribunal Federal. Se centramos a discussão no tema da dignidade como categoria constitucional, leituras como as de Adeodato funcionam como importante contraponto crítico. Mas na obra de Adeodato, pese à crítica, não há um desenvolvimento do debate sobre o lugar e o sobretudo sobre funcionamento da categoria da dignidade na linguagem constitucional (os desenvolvimentos de seus trabalhos vão em outras direções, para centrar-se em outros temários). O mesmo ocorre com outros autores, que possuem uma postura crítica, mas não se dedicam a pensar os aspectos e as implicações da ocorrência do princípio da dogmática e na jurisdição constitucional. Assim, os esforços de Barroso por tratar o tema da dignidade na cultura constitucional brasileira, preocupando-se mais com a operacionalidade (expressão escolhida por ele) desse elemento jurídico (e portanto, por enfrentar os problemas relacionados à sua aplicação jurídica), do que com sua mera conceptualização, acabaram por cumpriu uma função na busca por superação dos dualismos, no debate jurídico nacional, a respeito da questão. De certa forma, ainda que não enfrentando todas as implicações que uma crítica ao conceitualismo da dignidade no Direito acaba trazendo na identificação dos problemas dessa postura, a obra de Barroso cuida de uma parte dessas questões (cf. 2010, p.250-254). Nossa leitura é no sentido de que Barroso vai um pouco além em relação à postura mais abstrata de tratamento da questão que vemos em Sarlet, ao mesmo tempo que evita em alguma medida os retrocessos jusnaturalistas que, não necessariamente Sarlet, mas certamente muitos de seus interpretes, acabam por produzir, seja no debate acadêmico, seja na aplicação jurisdicional dessa arquitetura conceitual. Assim, nesse texto buscamos apresentar o tratamento dado à categoria constitucional da dignidade humana por Luiz Roberto Barroso,

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com enfoque na reflexão sobre a sua busca por tratar o tema num plano mais operacional; e buscando aqui, em alguma medida, apontar tanto os avanços e quanto os pontos ainda não cobertos por sua contribuição ao estado da arte desse debate. 2. O estado da arte do sentido constitucional da dignidade humana Segundo Joaquim Salgado, a dignidade humana pode ser definida: [...] como uma expressão tipicamente moderna, que exprime o valor inquantificável do ser humano, a sua natureza de fim em si mesmo, natureza que, por sua vez, exige um tratamento compatível com o seu valor, que será posterior e gradativamente garantido e efetivado através de direitos que, justamente por tutelarem o homem em sua dignidade, recebem o nome de fundamentais (SALGADO, 1995, p.13).

Nessa mesma toada, que relaciona a dignidade e um complexo indissociável de direitos fundamentais, Ingo Sarlet afirma que o direito à dignidade, [...] como qualidade intrínseca da pessoa humana, é irrenunciável e inalienável, constituindo elemento que qualifica o ser humano como tal e dele não pode ser destacado, de tal sorte que não se pode cogitar na possibilidade de determinada pessoa ser titular de uma pretensão a que lhe seja concedida a dignidade (SARLET, 2009, p.20).

De acordo com Ernest Bloch, para a efetivação de uma verdadeira condição de dignidade, deve-se precipuamente eliminar a exploração do homem, por meio da promoção de direitos de libertação. O autor fundamenta essa afirmação nos seguintes termos:

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El simple proverbio crítico ‘Mil años de Derecho injusto no hace una sola hora de Derecho justo’, así como la constructiva definición ‘Ilustración es la emancipación del hombre de la tutela de la que él mismo es culpable’, no han perdido aún su actualidad. De tal suerte que ni la dignidad humana es posible sin la liberación económica, ni esa, más allá de empresarios y obreros, sin la gran cuestión de los derechos del hombre. Ambas las cosas no tienen lugar en el mismo acto, sino que están condicionadas recíprocamente, con un prius económico y un primado humanista. No hay una instauración verdadera de los derechos del hombre sin poner fin a la explotación, no hay verdadero término de la explotación sin la instauración de los derechos del hombre (BLOCH, 1980, p. X – XI).

Assim, podemos observar que a dignidade da pessoa humana se constituiu em uma ideia determinante no debate jurídico dos dias de hoje, notadamente por ter se tornado língua-franca na geopolítica e no Direito Internacional dos Direitos Humanos. Isso, contudo, não implica a recusa em se determinar contornos significacionais mais concretos. Segundo Gonçalves Loureiro, a dignidade da pessoa humana em sua dimensão intersubjetiva “implica uma obrigação geral de respeito pela pessoa [...], traduzida num feixe de deveres e direitos correlativos, de natureza não meramente instrumental, mas sim, relativos a um conjunto de bens indispensáveis ao ‘florescimento humano’ ” (GONÇALVES LOUREIRO, 1999, p.281). Para Lima Vaz a tarefa de comprovar que a dignidade, enquanto conceito ético, tem a democracia como sua melhor expressão no plano político, foi um de seus temas mais instigantes. Segundo Vaz “a relação que se afirma vigorar entre os dois conceitos [dignidade e democracia] é uma relação de tipo ontológico, vem a ser, aquela que tem lugar entre o ser e o fenômeno, entre a essência e sua manifestação”. (VAZ, 1988, p.11). Ora, se afirmarmos ser a democracia (no campo procedimental

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do constitucionalismo contemporâneo) o correspondente mais pertinente à dignidade humana (no campo substancial do constitucionalismo contemporâneo), essa relação de correspondência ontológica, como expõe Vaz “[...] pressupõe no homem uma dignidade essencial e pretende mostrar na democracia a forma mais adequada de expressão dessa dignidade no campo político” (VAZ, 1988, p.11). Nos perguntamos, então, se Estados que não tenham a democracia como regime de governo, não conseguem ou possam vir a conseguir um correspondente no plano político capaz de lograr a efetivação a dignidade da pessoa humana. Podemos responder com Acemoglu e Robinson que não (Cf. ACEMOGLU; ROBINSON, 2012). Ainda que sistemas políticos não democráticos possam proporcionar melhorias das condições de vida num curto prazo, estão fadadas a se converterem em modelos excludentes no longo prazo e, portanto, contrário à dignidade da pessoa humana. Acontece que, se sairmos de uma análise que se fundamenta eminentemente no arcabouço de leis de um Estado e passarmos para uma análise no plano da efetividade, vemos que, a realização da dignidade da pessoa humana no plano social-jurídico deixa muito a desejar mesmo em países nos quais a democracia (formal) rege o Estado. Isso não quer dizer que, em países que não tenham regime de governo democrático, não se possam ver efetivados direitos humano-fundamentais. Isso quer dizer que essa relação de ambivalência entre regime de governo e efetivação da Dignidade da Pessoa Humana se mostra de formas díspares em cada Estado. Outra questão relevante é que, no mundo jurídico, a dignidade, enquanto direito humano-fundamental, é de difícil operacionalidade. Por exemplo, em um litígio muitas vezes ambas as partes fundamentam suas teses neste princípio, tornando a resolução de litígios baseada na ideia de dignidade algo plurívoco. Por vezes, ainda, é possível que subprincípios do princípio da dignidade desenvolvimento para experiência jurídica contemporânea, entrem em choque se não são bem compreendidos e tratados nas suas relações dialéticas de complementariedade. Por exemplo, pode-se indi-

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car as confusões que o reconhecimento do direito à memória e o reconhecimento do direito ao esquecimento podem produzir, se não estiver bem situado o debate. A retomada, após a Segunda Guerra Mundial, de uma perspectiva jurídica substancialista, em que o Direito volta a ser uma realidade funcionalmente atrelada à realização de uma certa concepção de vida, aquela traduzida nos direitos fundamentais, acabou por encontrar na dignidade um chave-conceitual capaz de organizar e simbolizar esse novo compromisso substancial do Direito. Assim, a partir da década de 1980 tal semântica vai ganhando lugar na linguagem jurídica-constitucional. Porém, observa Boaventura de Sousa Santos que: [...] após a Segunda Guerra Mundial, os direitos humanos foram parte integrante da política da Guerra Fria, e como tal foram considerados pela esquerda. Duplos critérios na avaliação das violações dos direitos humanos, complacência para com ditadores amigos, defesa do sacrifício dos direitos humanos em nome dos objetivos do desenvolvimento – tudo isto tornou os direitos humanos suspeitos enquanto guião emancipatório (SANTOS, 2014, p.11).

Dessa forma, ao mesmo tempo que a dignidade passou a ter grande notoriedade nas discussões em plano nacional e internacional e passou a ser considerada como “centro axiológico do direito constitucional”, pois a dignidade deteria o valor maior que é inquantificável e dá unidade substancial às Constituições dirigentes do Estado Social de Direito (BARROSO, 2014). Essa chave conceitual, por outro lado, passou a ser vista por alguns com desconfiança. Isso, frente à possibilidade desse discurso camuflar em sua abordagem (não raro laudatória) práticas sociais excludentes, contrárias à própria dignidade. Assim, é importante ter em conta os contrastes e contradições entre os níveis nomológico, acadêmico e operativo da constitucionalidade efetivada com vista à crítica das discrepâncias entre o reconhecimento da dignidade

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como direito e sua inefetividade (ou a carência de leva-la a sério) na práxis constitucional. Nesse sentido, Luiz Roberto Barroso, buscando tornar possível a utilização da dignidade como princípio de direito capaz de fundamentar questões importantes para o mundo jurídico, e capaz de poder ser operacionalizado pelo direito, propõe que sejam analisados elementos que compõem a configuração jurídica da dignidade, buscando analisar também, o grau de densidade jurídica que tal conceito possui e os mecanismos constitucionais de sua efetivação (BARROSO, 2012b, p.123150). Barroso, perquirindo pelos elementos da dignidade da pessoa humana que constituem a configuração jurídica deste conceito, propõe a estruturação dos seguintes elementos definidores: o valor intrínseco da pessoa, a autonomia individual e o valor comunitário da dignidade. Nas palavras deste autor, o objetivo que permeia a busca por “determinar as implicações jurídicas associadas a cada um desses elementos é o de estabelecer quais são os direitos fundamentais, os deveres e as responsabilidades que deles derivam”, e que se vinculam mais diretamente à configuração jurídica da dignidade humana (BARROSO, 2014, p. 11). 3. Uma configuração jurídica da dignidade humana em Barroso Cabe observar, segundo a interpretação de Barroso, que a dignidade não poderia ser considerada um direito fundamental pois isso implicaria em dizer que tal direito não seria absoluto, e, portanto, poderia ser ponderado. Ainda, o autor afirma que, a melhor classificação é a de um princípio jurídico constitucional, uma vez que os princípios possuem normatividade e estão no centro do sistema jurídico e se irradiam por todo ele (BARROSO, 2014). Nesse caso a dignidade seria um princípio constitucional estrutural, ou um macro-princípio constitucional. Nós, não obstante, entendemos que, a dignidade, no plano jurídico, funciona tanto como princípio constitucional estrutural, quanto como macro-direito fundamental que abarca e dá unidade a um núcleo de

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direitos fundamentais. Nesse sentido, ela pode ser exigida como direito pelos sujeitos, sem a necessidade de norma regulamentadora, ou mesmo contra as normas regulamentadoras, em algumas situações. Neste mote, cabe analisar a configuração jurídica básica da dignidade e definir seu conteúdo mínimo, o qual, como aqui se sustenta, seria definido por três elementos: proteção do valor intrínseco de cada ser humano, da autonomia individual e do valor comunitário. Em primeiro lugar, cabe analisar o valor intrínseco do ser humano como um núcleo conceitual da dignidade. Dentro desse elemento estariam presentes dois postulados fundamentados filosoficamente. O primeiro se refere ao postulado anti-utilitarista, alicerçado na filosofia kantiana, de que “toda pessoa é um fim em si mesma” (BARROSO, 2014, p.11). Neste sentido não se poderia, por exemplo, sacrificar o direito de alguém em detrimento do benefício da maioria. O outro postulado consiste na afirmação de um caráter anti-totalitário, que perpassa a ideia de que o “Estado não é um fim em si mesmo e sim um meio”, o que impõe, por exemplo, que ninguém deve ser tratado como súdito do Estado. Destes dois postulados decorreria que, no plano Jurídico, a dignidade (seja como princípio seja como macro-direito) unifica um núcleo de direitos fundamentais, notadamente o direito à vida, direito à igualdade (formal e material), o direito à integridade física e moral, o direito à diversidade, os direitos relacionados às condições sadias e justas de vida e o direito a condições adequadas de exercício das liberdades básicas. O segundo elemento básico do sentido jurídico da dignidade, decorrente do primeiro, seria a autonomia individual, que singulariza a condição humana. Como regra geral, as pessoas devem possuir autonomia para fazerem suas próprias escolhas acerca de seus projetos de vida. Esta auto-nomia, no mundo jurídico se reflete em duas esferas, a pública e a privada. A autonomia pública diz respeito a todas as pessoas quanto ao direito de participarem da vida pública e da definição dos rumos sociais os quais essa pessoa se submeterá. Ou seja, a dignidade pressuporia a vida em um ambiente democrático, em que a pessoa tem o direito de ter uma participação ativa no debate público corroborando para com a

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construção da legalidade a qual será submetida. Já, a autonomia privada se refere eminentemente ao conjunto de liberdades existenciais que possuem os indivíduos para escolha de seus projetos de vida, dialeticamente relacionados às escolhas da sociedade (portanto, eventualmente e excepcionalmente esses projetos de vida são delimitados pelas possibilidades traçadas como decorrência das escolhas públicas) na medida em que estas tenham sido participativamente construídas, por meio da autonomia pública. O terceiro elemento básico configurador da dignidade como direito decorre justamente dessa relação dialética entre autonomia pública e privada e se traduz no valor comunitário da dignidade, em que a autonomia pode ser legitimamente limitada em nome de interesses da sociedade, somente na medida em que esta seja efetivamente democrática e participativa. Ou seja, a dignidade exige que sua conformação externa pela imposição de determinados valores compartilhados pela sociedade somente se dê quando a tratativa desses valores é participativa e respeitadora das autonomias e das diferenças. Podemos considerar, tomando por ponto de partida a considerações a esse respeito feitas por Barroso (mas indo além de sua posição, tal como fizemos nos parágrafos anteriores), que essa dimensão da dignidade, enquanto valor comunitário, apresenta três desdobramentos básicos, quais sejam: assegurar o direito de outrem, proteger a pessoa de si própria (em situações de fragilidade existencial3) e garantir determinadas escolhas sociais participativamente construídas. 4. Operacionalização jurídica para além da conceptualização: o desafio à efetivação da dignidade Para Barroso, o desenvolvimento de um arcabouço de instrumentos jurídicos voltados para a efetividade desses três elementos estruturais da dignidade humana no constitucionalismo brasileiro é o grande salto a se buscar no debate da questão. Veja-se o afirmado por Barroso: 3

Imagine-se o caso de usuários de drogas como o craque, por exemplo.

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A globalização de direito é uma característica essencial do mundo moderno, que promove no seu atual estágio, a confluência entre Direito Constitucional, Direito Internacional e Direitos Humanos. As instituições nacionais e internacionais procuram estabelecer o enquadramento para a utopia contemporânea: um mundo de democracias, comércio justo e promoção dos direitos humanos. A dignidade humana é uma das ideias centrais desse cenário. Já passou o tempo de torná-la um conceito mais substantivo no âmbito do discurso jurídico, no qual ela tem frequentemente funcionado como um mero ordenamento retórico, cômodo recipiente para um conteúdo amorfo (BARROSO, 2014, p. 11-12).

O estágio de confluência da globalização dos direitos humanofundamentais, pode ser medido, por exemplo, com a jurisprudência produzida pelo Tribunal Constitucional Federal Alemão que tem grande influência atualmente na jurística constitucional de vários outros países: De acordo com o Tribunal [alemão], a dignidade humana se situa no ápice do sistema constitucional, representando um valor supremo, um bem absoluto, à luz do qual cada um dos outros dispositivos deve ser interpretado. Considerada como o fundamento de todos os direitos mais básicos, a clausula da dignidade possui dimensão subjetiva e objetiva, investindo os indivíduos em certos direitos e impondo determinadas prestações positivas para o Estado (BARROSO, 2014, p. 21).

Com efeito, o que se se tem consolidado é que “a dignidade humana, consagrada expressamente ou não no texto constitucional, tem se tornado um instrumento argumentativo poderoso para os tribunais contitucionais e Cortes Supremas de diversos continentes” (BARROSO, 2014, p. 29). Assim, também, destacamos o entendimento otimista da

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atual Ministra Presidente do Supremo Tribunal Federal Brasileiro, Carmem Lúcia Rocha, colega, portanto, de Barroso, no STF: O princípio da dignidade da pessoa humana entranhou-se no constitucionalismo contemporâneo, daí partindo e fazendo-se valer em todos os ramos do Direito. A partir de sua adoção se estabeleceu uma nova forma de pensar e experimentar a relação sociopolítica baseada no sistema jurídico; passou a ser princípio e fim do Direito contemporaneamente produzido e dado à observância no plano nacional e no internacional (ROCHA, 2001, p. 49).

É preciso, no entanto, compreender em que medida tal estado de coisas colaborou e colabora para efetivas transformações sociais em países como o Brasil. Por isso Barroso, em um artigo que trata dos vinte anos em vigor da Constituição, propõe uma análise do direito constitucional brasileiro, com especial ênfase nas transformações entre o processo constituinte de 1987-1988 e os avanços atuais. Barroso inicia por destacar que foram inúmeras as áreas que o texto constitucional de 1988 corroborou para a consolidação e promoção de avanços efetivamente relevantes para o país. Para ele destaca-se dentre esses avanços a centralidade que a dignidade da pessoa humana assumiu no plano da tratativa constitucional brasileira dos direitos fundamentais. A esse respeito, ele assim se manifesta: No plano dos direitos fundamentais, a despeito da subsistência de deficiências graves em múltiplas áreas, é possível contabilizar realizações. A centralidade da dignidade da pessoa humana se impôs em setores diversos. Para que não se caia em um mundo de fantasia, faça-se o registro indispensável de que uma idéia leva um tempo razoável entre o momento em que conquista corações e mentes até se tornar uma realidade concreta. Ainda assim, no âmbito dos direitos individuais, as

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liberdades públicas, como as de expressão, reunião, associação e direitos como o devido processo legal e a presunção de inocência incorporaram-se com naturalidade à paisagem política e jurídica do país. É certo que não ainda para todos. Os direitos sociais têm enfrentado trajetória mais acidentada, sendo a sua efetivação um dos tormentos da doutrina e da jurisprudência. Nada obstante, houve avanços no tocante à universalização do acesso à educação, apesar de subsistirem problemas graves em relação à qualidade do ensino. Os direitos coletivos e difusos, por sua vez, como a proteção do consumidor e do meio ambiente, disciplinados por legislação específica, incorporaram-se à prática jurisprudencial e ao debate público (BARROSO, 2008, p. 27-29).

Ocorre que esses avanços, segundo o autor, ainda são acompanhados de graves problemas estruturais e de efetivação dos direitos fundamentais garantidos aos cidadãos pela CRFB/88. O cenário, portanto, não é de efetiva concreção da Constituição no que se refere a direitos e garantias fundamentais. Para o autor, a cultura constitucional brasileira ainda carece de ir além do discurso abstrato da dignidade da pessoa humana como direito humano-fundamental, em direção à sua efetividade e à sua sistematização na práxis da processualidade jurídica brasileira. Hoje, para o Direito, se torna importante mensurar qual seria o conteúdo mínimo de respeito e atendimento à dignidade para que ela possa se tornar um princípio mais efetivo, ou, nas palavras de Barroso, tornar-se um conceito mais operacionalizável dentro do Direito. Segundo o autor, a ideia de um mínimo existencial digno como algo que deve ser garantido a todos, primeira e precipuamente a qualquer outro debate ou objetivo (e a ideia de que esse mandamento está estabelecido pela sistemática da Constituição de 1988) norteia a maioria da doutrina constitucional atual no Brasil. Porém, outra coisa é saber se essa ideia de fato repercute na concretude da jurisdição, para produzir decisões efetivamente capaz de colocar o respeito inclusivo ao ser humano como a baliza principal da interpretação dos conflitos.

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Para Barroso, o desenvolvimento do conceito de dignidade em âmbitos jurídico-nacionais tem dado importantes contribuições, especialmente a nível de fundamentação e de produção de precedentes, para países como o Brasil que buscam reduzir desigualdades e efetivar um mínimo de justiça social (Cf. BARROSO, 2012a). Nesse sentido: Do princípio da dignidade humana, em acepção compartilhada em diferentes partes do mundo, retiram-se regras específicas e objetivas, como os que vedam a tortura, o trabalho escravo ou as apenas cruéis. Em muitos sistemas, inclusive o brasileiro, há normas expressas interditando tais condutas, o que significa que o princípio da dignidade humana foi densificado pelo constituinte ou pelo legislador (BARROSO, 2014, p. 297).

Para Barroso, o resultado das progressivas incorporações de estatutos de proteção a aspectos específicos do direito à dignidade ou dos direitos dela decorrentes foi a consolidação da dignidade humana como categoria central da experiência constitucional brasileira contemporânea. A partir disso, Barroso conclui que: A dignidade humana, então, é um valor ocidental que se viu convertido em princípio jurídico de estatura constitucional, seja por sua positivação em norma expressa seja por sua aceitação como um mandamento jurídico extraído do sistema. Serve, assim, tanto como justificação moral quanto como fundamento normativo para os direitos fundamentais (BARROSO, 2014, p.296).

Assim, segundo o autor, dentro da normatividade brasileira, a dignidade como princípio fundamental, assume a seguinte função estrutural: ela é “[...] parte do conteúdo dos direitos materialmente fundamentais, mas não se confunde com qualquer deles. Nem tampouco

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é a dignidade um direito fundamental em si, ponderável com os demais”. Nesse sentido, ela é, antes, o parâmetro da ponderação, quando o que está em discussão são conflitos entre outros direitos fundamentais (BARROSO, 2014, p. 299). Cabe, no entanto, explicar que para Barroso, em que pese ser de grande importância, a dignidade não tem um caráter absoluto. Por vezes cerceamentos de aspectos da dignidade com vistas à promoção de valores da sociedade ou valores individuais são necessários. Também é majoritário no Brasil o entendimento de que somente em nome de outros direitos fundamentais de observância e respeito igualmente legítimos em uma dada situação, se pode restringir (sempre relativamente) o grau de satisfação do direito à dignidade humana. Nesse aspecto, cabenos fazer uma crítica: o autor (e a maior parte dos atores do debate constitucional brasileiro) deixa escapar a bilateralidade inerente ao Direito. Por exemplo, ao se impor limitações à liberdade de expressão, como no caso da proibição de discursos de ódio, o que se busca é promover ou valorizar a dignidade daquela pessoa vítima de discursos de ódio, que pode ser, em algum momento, qualquer um de nós, inclusive o sujeito que agora se vê coibido por ter expressado um discurso de ódio, mas que, num momento futuro, poderia ser ele próprio vítima de semelhante discurso. No mesmo sentido, de uma postura hegeliana, inclusive a sanção de prisão (respeitadas as garantias processuais e as condições dignas de aplicação da pena) é uma “negação da negação”, restaurando o direito inicialmente negado pelo crime, a liberdade. Assim, apenas de uma perspectiva “analítica” a pena de prisão cercearia a dignidade do criminoso, por exemplo. Pelo contrário, a prisão restauraria o criminoso à sua dignidade, enquanto sujeito de direitos e deveres, que precisa respeitar essa ordem de direitos, para nela ser um sujeito. Com efeito, para Barroso, um dos maiores desafios da dignidade dentro do ordenamento jurídico brasileiro, como já dito anteriormente, é se tornar um princípio efetivamente operacionalizável dentro do direito. Precisamente a esse respeito, Barroso discorre sobre a eficácia direta e eficácia interpretativa da dignidade no ordenamento jurídico

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brasileiro: A eficácia direta significa a possibilidade de se extrair uma regra do núcleo essencial do princípio, permitindo a sua aplicação mediante subsunção. A eficácia interpretativa significa que as normas jurídicas devem ter o seu sentido e alcance determinados da maneira que melhor realize a dignidade humana, que servirá ademais, como critério de ponderação na hipótese de colisão de normas. Por fim, a eficácia negativa paralisa, em caráter geral ou particular, a incidência de regra jurídica que seja incompatível – ou produza, no caso concreto, resultado incompatível – com a dignidade humana (BARROSO, 2014, p.326).

5. Considerações finais: um longo caminho em direção à efetividade Dos estudos realizados nesse trabalho, observa-se uma preocupação em Barroso com estruturar um caminho consistente para a operacionalidade dos direitos fundamentais relacionados ao princípio constitucional estrutural da dignidade da pessoa humana. Esse caminho porém, ainda se desenha com traço não completamente superadores do paradigma formalista-abstrato que marca o pensamento jurídico nacional. O pensamento de Barroso está situado na busca por superar esse paradigma, sem cair nos oitentas desse oito, que seriam os novos jusnaturalismos, jusativismos e jusmoralismos que vemos despontar. Marcado que está ele próprio por uma linguagem jurídica abstrata, Barrroso não superar de todo esses dualismos, mas constrói contribuição relevante nesse intento. Barroso prima por buscar encontrar os caminhos na linguagem do constitucionalismo brasileiro para um tratamento (notadamente o jurisdicional) mais eficaz da aplicação desse princípio. Nesse intento, acaba por colaborar com a redução das possibilidades de um uso apologético a-técnico do princípio da dignidade, que opera de modo hermeneuticamente inconsistente e produz um ativismo notoriamente ex-

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trapolante, quando ocorre. Consideramos que contribuição específica de Barroso está na busca por uma linguagem de tratativa do princípio capaz de diminuir a ocorrência dessa aplicação puramente apologética. Não obstante, como dissemos, sua contribuição não deixa de ser, ela própria, demasiadamente centrada no debate doutrinário e pouco capaz de permear esse debate pela análise das realidades paradoxais que a sociedade brasileira revela, entre uma linguagem jurídica tão orgulhosa de bradar e propugnar pela dignidade e uma vivência social cotidiana tão excludente, desigual e, para muitos brasileiros, miserável. Barroso talvez contestaria a tal observação, dizendo que ele está preocupado em colaborar para construir as condições para uma “hermenêutica constitucional transformadora” centrada numa das peças do complexo tabuleiro da atuação do Estado: a jurisdição constitucional. Nós, por outro lado, pensamos que apesar de importante essa tarefa, ela poderia ser melhor realizada, se fosse alimentada e sustentada numa denunciação consistente do estado da desigualdade e da injustiça social no Brasil e das contradições e insuficiências da jurisdição brasileira frente a este estado de coisas. Sem isso, pouco poderá fazer de realmente transformador o novo constitucionalismo brasileiro, já quase balzaquiano. Referências ADEODATO, João Maurício. Tolerância e conceito de dignidade na pessoa humana no positivismo ético. Revista Mestrado em Direito, v. 8, n. 2, p. 213-228, 2008. BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção de um novo modelo. 2. Ed. São Paulo: Saraiva, 2010. BARROSO, Luiz Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. São Paulo: Saraiva, 1996.

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Diva Júlia Sousa da Cunha Safe Coelho, Saulo de Oliveira Pinto Coelho

SANTOS, Boaventura de Sousa.  Si Dios fuese un activista de los derechos humanos. Trotta, Madrid, 2014. SARLET, Ingo Wolfgang. As dimensões da dignidade da pessoa humana: construindo uma compreensão jurídico-constitucional necessária e possível. In: Dimensões da Dignidade: ensaios de filosofia do direito constitucional. 2. ed. rev. e ampl.- Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, p. 15-34, 2009. SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas da possibilidade à necessidade de respostas corretas em Direito. 2ªedição revista e ampliada, Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris. 2007. VAZ, Henrique C. de Lima. Democracia e Dignidade Humana. Síntese Nova Fase. Belo Horizonte, v 15, nº44, p.11-25, set./dez. 1988, p.11. WOLKMER, Antonio Carlos; MELO, Milena Peters. Constitucionalismo latino-americano: tendências contemporâneas. Curitiba: Juruá, 2013.

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André Vinícius Dias Carneiro1

Introdução O homem em evolução, tanto psíquica quanto social, sempre teve de lidar com limitações, conhecer os parâmetros de sua existência como forma de ser apresentado à sua condição. Dessa relação com o mundo surgiram vários sentimentos que servem como bússola que nos guia nos labirintos da existência. Neste pequeno artigo, tentarei demonstrar como o pensamento existencial de Albert Camus se encontra com a teoria kantiana de dignidade humana e de que maneira o afastamento desta dignidade deságua no conceito da banalidade do mal forjado, por Hannah Arendt, através de uma exposição do pensamento de ambos que acabam por se completar, como uma forma de analisar os Estados totalitários do século XX. Antes de olharmos para as sociedades devemos primeira1

Aluno especial do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Direitos Humanos – UFG. Bacharel em Filosofia pela Universidade Federal de Goiás (UFG); bacharel em Direito pela Universidade Católica de Goiás (UCG); especialista em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC/MG); especializado em Criminologia Crítica e Ciências Penais pelo Instituto de Pós Graduação (IPOG); advogado criminalista e vice-presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil seção Goiás (OAB/GO) triênio 2015/2018. E-mail: [email protected].

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mente enxergar os indivíduos. Tentar entender, mesmo que de forma superficial o que os motiva no cerne desse aparato social. Albert Camus, apesar de ser um crítico do existencialismo vigente, na primeira metade do século passado, não deixou de analisar as condições da relação entre o homem e o mundo, sob um enfoque existencial. Por outro lado temos o lado político utilizado por Arendt, partindo de uma perspectiva das condições da burocracia estatal moldando os indivíduos, o que não se distancia muito do que foi abordado pelo citado autor franco-argelino, pois esse “moldar” por parte do Estado dá-se, como veremos ao longo do trabalho, através do niilismo causado pela diluição e aniquilação do sentimento de revolta. A dignidade humana segundo Kant Dentro de sua Metafísica dos Costumes, Kant estabelece o conceito acerca da dignidade humana. Ele entende que todos os seres sociais devem ser respeitados e que esse respeito não seria uma questão de escolha. Segundo o autor, respeitar a dignidade do outro não é torna-lo um simples meio ou um dever jurídico imposto pela violência, mas sim um dever de virtude, situado como conteúdo, caminho entre o dever jurídico de virtude de respeito e o amor ao próximo. A principal divisão pode ser aquela em deveres com os outros, por cuja prestação submete também os outros à obrigação, e deveres com os outros, cuja observância não resulta em obrigação da parte dos outros. A prestação dos primeiros é meritória (em relação aos outros), porém a prestação dos segundos é cumprir um dever que é devido. O amor e o respeito são os sentimentos que acompanham a realização desses deveres. (KANT, 2008, p. 291)

Esse dever de virtude do respeito é como um dever jurídico, ou

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seja, um dever negativo. Isso acontece então num certo paralelo com a proibição da lesão do Direito, ele, na verdade, é um dever de não se impor sobre seu semelhante, diferentemente do dever de assistência do amor que reivindica uma conduta ativa em relação ao outro. Na tradição kantiana, o dever de respeito é um dever imperfeito, não podendo jamais se impor pela imprecisão, afinal sua lesão não poderia sequer ser constatada de forma clara, pois sua perspectiva abrange também a atitude interna. Sendo assim, seu significado é muito impreciso para que se possa impô-lo como um dever jurídico. A dignidade humana provém do dever em respeitar, pois todos os homens devem ser respeitados e também devem respeitar os outros. Tal constatação existe em razão de que o ser humano deve ser um fim em si mesmo e jamais um meio para se chegar ao outro fim distante de si. Todo ser humano tem um direito legítimo ao respeito de seus semelhantes e está, por sua vez, obrigado a respeitar todos os demais. A humanidade ela mesma é uma dignidade, pois um ser humano não pode ser usado meramente como um meio por qualquer outro ser humano (quer por outros quer, inclusive, por si mesmo), mas deve sempre ser usado ao mesmo tempo como um fim. É precisamente nisso que sua dignidade (personalidade) consiste pelo que ele se eleva acima de todos os outros seres do mundo que não são seres humanos e, no entanto, podem ser usados e, assim, sobre todas as coisas. (Kant, 2008, p. 306)

Para Kant, o que traz unidade a todos os seres humanos é a razão. É através dela que acessamos os nossos deveres, tanto morais quanto jurídicos, sendo assim, ela se torna o fundamento da dignidade. O dever de respeito é consequência da autofinalidade do sujeito racional autônomo, que está sempre pressuposta quanto ao mundo social e é, para ele, inalcançável. Assim o filósofo parte, na consciência da legislação dos costumes, de um “fato razão”.

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O sentimento revoltado A revolta é um sentimento que invoca, em parte, um valor, é uma adesão do homem a uma parte de si mesmo. O revoltado rebela, reivindica um valor comum a todos. A partir disso, Camus acredita que podemos pensar numa natureza humana como buscavam os gregos. Esse valor não é algo conquistado ao fim de uma ação, mas sim preexiste à revolta. Pois a revolta tira o sujeito da solidão, no sentido em que ele se insurge em nome de todos os seres humanos. Isso afasta o egoísmo, apesar de poder ter tais determinações individualistas: “O revoltado nada preserva, já que coloca tudo em jogo. Sem dúvida, ele exige para si o respeito, mas apenas na medida em que se identifica com uma comunidade natural” (CAMUS, 2005, p. 28). Podemos perceber aqui, o encontro entre os pensamentos de Kant e Camus no que tange à Dignidade Humana, pois com certeza o valor buscado pelo revoltado é a própria humanidade, ou seja, a condição de respeito por sua natureza como pessoa. A revolta possui um aspecto positivo do valor, pois ela fragmenta o ser e o ajuda a transcender, pois o homem revoltado não busca conquistar, mas sim se impor: “Aparentemente negativa, já que nada cria, a revolta é profundamente positiva, porque revela aquilo que no homem sempre deve ser defendido” (CAMUS, 2005, p. 32). Mas esse sentimento de revolta muda com as épocas e civilizações. Camus observa que ele apenas parece assumir forma dentro do pensamento ocidental. Segundo ele, nesse caso, concordando com Scheler, a revolta dificilmente se exprime em sociedades com grandes desigualdades sociais ou nas quais possuem igualdade absoluta. Ela só se torna possível em grupos nos quais uma igualdade teórica encobre grandes desigualdades de fato. Mas isso não a torna relativa. A revolta é o ato do homem informado, consciente de seus direitos. Ela é facilmente identificável na grande parte das sociedades ocidentais, graças à teoria da liberdade política, pois existe no homem a noção de homem. Ela não se faz presente em sociedades muito desiguais, como

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os incas ou hindus, pois os questionamentos são resolvidos pelo sagrado. “O homem revoltado é o homem situado antes ou depois do sagrado e dedicado a reivindicar uma ordem humana em que todas as respostas sejam humanas, isto é, formuladas racionalmente” (CAMUS, 2005, p. 33). Com isso, o autor estabelece que somente deve existir para a mente humana dois universos possíveis: o do sagrado e o da revolta. A atualidade do problema só surge devido ao distanciamento das sociedades ocidentais em relação ao sagrado. Mas é importante percebermos que ele não acredita que o homem resume-se à insurreição, mas sim que a revolta é sua dimensão essencial, sendo inclusive nossa realidade histórica. Esse sentimento se torna o fundamento da solidariedade entre os homens, por isso só se justifica na cumplicidade: “Isso nos dá o direito de dizer, portanto, que toda revolta que se permite negar ou destruir a solidariedade perde, ao mesmo tempo, o nome de revolta e coincide, na realidade, com um consentimento assassino” (CAMUS, 2005, p. 34). A diferença entre o absurdo2 e a revolta, é que o primeiro é um sofrimento individual, o segundo, ganha uma consciência coletiva. Com isso a revolta assume o lugar de cogito no pensamento, ou seja, ela é a primeira evidência da existência, uma evidência que tira o indivíduo da solidão. A revolta metafísica Ela é o movimento da revolta contra a condição humana e a própria criação. O escravo protesta contra o estado de escravidão, enquanto o revoltado metafísico protesta contra a sua qualidade de homem. Em momento algum o senhor é negado enquanto ser humano, 2 Segundo Camus a vida é totalmente desprovida de significado e propósito, e dessa falta de sentido nasce no sujeito o sentimento do absurdo. O conceito de absurdo utilizado por Camus foi primeiramente trabalhado por Kierkegaard, que o descreve como uma situação na vida em que a racionalidade e as condições de pensamento de um sujeito são incapazes de lhe apontar qual curso de ação deve tomar em sua vida.

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mas sim em sua condição de senhor, como se ele fracassasse ao não atender a uma exigência que menospreza. “Se os homens não conseguem referir-se a um valor comum, reconhecido por todos em cada um deles, então o homem se torna incompreensível para o próprio homem. O rebelde exige que esse valor seja claramente reconhecido em si mesmo, porque suspeita ou sabe que, sem ele, a desordem e o crime reinariam no mundo. O movimento de revolta surge nele como uma reivindicação de clareza e unidade” (CAMUS, 2005, p. 39).

Portanto, o revoltado metafísico se insurge contra o mundo para reivindicar uma ordem das coisas, ou seja, uma unidade: “Contrapõe o princípio de justiça que nele existe ao princípio de injustiça que vê no mundo. Primitivamente, nada mais quer senão resolver essa contradição, instaurar o reino unitário da justiça, se puder, ou o da injustiça, se a isso for compelido” (CAMUS, 2005, p. 40). Nesse ponto é importante ressaltar, que o revoltado metafísico desafia mais do que nega. Essa insurreição contra a condição humana se confunde com a revolta diante do Divino. Nesse ponto existe mais um desafio do que uma negação. Ele não elimina Deus, apenas fala de igual para igual. No caso do escravo, ele enfrenta o senhor por também desejar a realeza e desejar seu momento de domínio. Agora insurgir-se contra a condição humana é lançar-se ao céu para destronar um rei, humilhá-lo e depois condenar à morte. Pois, ao derrubar o trono Divino, o sujeito assumiria essa justiça e ordem que tanto deseja. Começando assim, uma luta desesperada, mesmo que ao preço do crime, para a criação de um império do homem. Para Camus, isso não será possível sem consequências terríveis que não se devem apenas à revolta em si, mas só vem à tona quando o revoltado deixa de lado suas origens, se entregando à negação de todas as coisas ou à submissão total.

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O terrorismo individual Ao analisar o movimento revolucionário russo, ao final do século XIX até início do século XX, o autor percebe nesse movimento uma renúncia a virtude da revolta, dando lugar ao niilismo. A paixão dos russos levou a ideologia alemã ao extremo de sacrifício e destruição. Ele identifica que, no início desse movimento revolucionário, ainda existe a virtude, ela é consciente, na qual o sofrimento é regenerador. Esses primeiros revolucionários se espelhavam nos nobres franceses que abriram mão de seus interesses e aliaram-se ao povo. Embebidos por esse sentimento, se sacrificaram pela libertação do povo russo, sendo mortos em 1825 na Praça do Senado, em São Petersburgo. O que fez com que fossem exaltados por toda a Rússia revolucionária. Mas os valores éticos pretendidos no início deram lugar às tendências do individualismo social, sob o ângulo da negação. Essa negação niilista pregava ser necessário renunciar completamente o passado para forjar a personalidade humana segundo outro molde. A ideia principal aqui é forjar o futuro, não em função de um espírito histórico, mas sim do individuo-rei. Mas esse indivíduo não consegue alcançar o poder sozinho, o que gera uma contradição niilista. Que tentou se resolver ampliando a destruição e a negação “até que o terrorismo mate a própria contradição no sacrifício e assassinato simultâneos”. Tal contradição caminhou até o extremo, que se caracterizou com a negação da vida diante de um ideal de poder. No momento em que os revolucionários começaram a partir para o “tudo ou nada”, ou seja, apenas importava a ideologia, não se levava em conta qual seria o preço a pagar. O niilismo então cede lugar ao cinismo político que, por sua vez, deu origem ao Estado totalitário do século XX. “Enquanto o terrorismo individual perseguia os últimos representantes do direito Divino, o terrorismo de Estado preparava-se para destruir definitivamente esse direito na

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própria raiz das sociedades. A técnica da tomada do poder para a realização dos fins últimos toma o lugar da afirmação exemplar desses fins” (CAMUS, 2005, p. 205).

Esses novos senhores se utilizam da revolta dos oprimidos para reinarem sobre uma parte da história. Camus aponta o nascimento de uma horrenda raça de mártires, pois “Seu martírio consiste em aceitar que o sofrimento seja infligido aos outros; eles se escravizam ao seu próprio domínio. Para que o homem se torne Deus, é preciso que a vítima se rebaixe para tornar-se carrasco. É por isso que vítima e carrasco estão igualmente desesperados” (CAMUS, 2005, p. 205)

Essa divinização do homem, segundo o autor, rompe os próprios limites da revolta seguindo pelo tortuoso caminho do terrorismo. O terrorismo de Estado As revoluções modernas, segundo Camus, resultaram em um fortalecimento exacerbado do Estado. Depois que a Primeira Grande Guerra acabou com os vestígios do direito Divino, em seu lugar foi construída a cidade dos homens e da liberdade real. “[...] o estranho e aterrorizante crescimento do Estado moderno pode ser considerado como a conclusão lógica de ambições técnicas e filosóficas desmedidas, estranhas ao verdadeiro espírito de revolta, mas que deram origem, no entanto, ao espírito revolucionário de nosso tempo. O sonho profético de Marx e as poderosas antecipações de Hegel ou de Nietzsche acabaram suscitando, depois que a cidade de Deus foi arrasada, um Estado racional ou irracional, mas em ambos os casos terrorista” (CAMUS, 2005, p. 208).

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As revoluções fascistas, do século XX, para Camus não merecem ostentar o título de “revoluções”, pois lhes faltava a ideia do universal, apesar de seus líderes almejarem um império mundial. A grande diferença entre eles e os revolucionários clássicos é que decidiram deificar o irracional ao invés de divinizar a razão ao mesmo tempo em que negavam o universal. Para ele, Hitler e Mussolini tentaram fundar uma ordem estável baseada no movimento perpétuo e uma negação, tornando-as dinamismo puro. Criando assim uma moral de triunfo e vingança, derrota e ressentimento: “Quando Mussolini exaltava “as forças elementares do indivíduo”, anunciava a exaltação dos poderes obscuros do sangue e do instinto, a justificação biológica daquilo que o instinto de dominação produz de pior” (CAMUS, 2005, p. 210). Ao analisar o julgamento de Nuremberg, Camus identifica o verdadeiro assunto ali em discussão, a responsabilidade histórica do niilismo ocidental. Hitler tinha inventado o movimento infindável da conquista, mas o real inimigo era o terror perpétuo, agora no nível do Estado. Esse novo Estado seria uma espécie de aparelho, ou seja, um mecanismo de conquista e repressão. Fazendo assim que todos os problemas sejam colocados em termos de poderio e eficácia. Assim, o comandante geral dita a política e a administração generalizada na vida civil. Os intermediários políticos que, em todas as sociedades, são os salvaguardas da liberdade desaparecem, dando lugar a um Jeová de botas, que reina sobre multidões silenciosas ou, o que dá no mesmo, limitadas a gritar palavras de ordem (CAMUS, 2005, p. 213).

Diante de tal cenário, a honra reside na obediência, o que às vezes se confunde com o crime. À ordem raramente se exige o bem, mesmo porque o puro dinamismo doutrinário jamais poderia se dirigir até ele.

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Podemos concluir que o niilismo apontado por Camus afastou a ideia de uma unidade entre os seres humanos, em razão disso, os Estados totalitários com seus sistemas burocráticos começaram a distanciar de um princípio da dignidade humana e a pautar apenas pela obediência da legalidade pura e simples, baseada em uma suposta noção de ordem e segurança. Essa desumanização dos cidadãos acabou por desembocar no que foi chamado por Hannah Arendt de “banalidade do mal”. A banalidade do mal Hannah Arendt, ao analisar o julgamento de Adolf Eichmann, realizado em Jerusalém, no ano de 1961, depara com a mesma situação analisada por Camus em ocasião do julgamento de Nuremberg. Apesar de não partir de um ponto de vista baseado na revolta, ela identifica não nos fatos que ali estavam sendo julgados, mas no acusado, uma banalidade do mal. Ao analisar os depoimentos de Eichmann, ela depara com o burocrata desumanizado diante de um sistema totalitário. Mas mesmo assim ela não deixa de analisar a capacidade de julgamento do acusado. Arendt aponta como primeira indicação de que Eichmann tinha noção de que existiam mais coisas além da simples obediência às ordens de seus superiores. Foi quando em um de seus depoimentos, à polícia, ele disse que tinha vivido de acordo com os princípios morais kantianos: “Isso era aparentemente ultrajante, e também incompreensível, uma vez que a filosofia moral de Kant está intimamente ligada à faculdade de juízo do homem, o que elimina a obediência cega” (ARENDT, 2014, p. 153) Mais à frente em seu depoimento, disse que no momento em que fora encarregado de efetivar a solução final, deixou de viver segundo tais preceitos kantianos, pois agora não era mais senhor de seus próprios atos. Segundo a autora, o acusado teria distorcido os ensinamentos de Kant: “Ele distorcera seu teor para: aja como se o princípio de suas ações

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fosse o mesmo do legislador ou da legislação local – ou, na formulação de Hans Frank para o “imperativo categórico” do terceiro reich” (ARENDT, 2014, p. 153). Diante dessas declarações Arendt constata que Kant teria um papel importante na formação do cidadão alemão médio, e, apesar das críticas, conclui que sem dúvidas ele estava seguindo os ensinamentos do filósofo moderno, pois: “[...] não existe a menor dúvida de que Eichmann efetivamente seguia os preceitos de Kant: uma lei era uma lei, não havia exceção” (ARENDT, 2014, p. 174). Em relação a essa questão da obediência das leis podemos ver um encontro entre Arendt e Camus, ambos identificam dentro do aparelho do Estado totalitário uma desumanização do homem. A burocracia apontada por Arendt se confunde justamente com o “aparelhamento” apontado por Camus. Segundo a autora, a burocracia identifica o governo de “ninguém”, como se o Estado começasse a gerir-se apenas por suas próprias normas, retirando assim o ser humano de sua constituição. Claro que é importante para as ciências políticas e sociais que a essência do governo totalitário, e talvez a natureza de toda a burocracia, seja transformar homens em funcionários e meras engrenagens, assim os desumanizando. E se pode debater prolongadamente e com proveito o governo de Ninguém, que é o que de fato significa a forma política conhecida como bureau-cracia (ARENDT, 2014, p. 312).

Apesar de a autora não partir do ponto de vista do niilismo para explicar o nascimento dos Estados totalitários, como faz Camus, não podemos deixar de perceber que essa “diluição” do ser humano frente ao aparelhamento estatal fortalece a noção de uma nação individualista e intolerante o que desde já afasta o sentimento revoltado e que por sua vez adia ainda mais a solidariedade, para Kant, consequência do dever de virtude do respeito, essência da dignidade humana.

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Considerações Finais É importante aprendermos com as experiências totalitárias vividas no início do século XX, pois as situações que levaram a tais acontecimentos políticos tendem a se repetir de tempos em tempos, principalmente nos Estados ocidentais. Tanto é assim, que neste pequeno artigo foram apontados autores de épocas distintas, como Kant no século XVIII e Arendt e Camus ambos do século XX, que analisam, cada um a sua maneira os horrores e perigos de se desumanizar o sujeito, desrespeitando a sua dignidade e o aproximando cada vez mais do assassinato e do extermínio do convivio em sociedade. Referências ARENDT, Hannah, Eichman em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. Trad. José Rubens Siqueira, Ed. Companhia das letras, 2014, São Paulo – SP. CAMUS, Albert, O homem revoltado. Trad. Valerie Rumjanek, Ed. Record, 2005, Rio de Janeiro – RJ. KANT, Immanuel, A Metafísica dos Costumes. Trad. Edson Bini, Ed. Edipro, 2008, São Paulo – SP

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Marina Dias Dalat Coelho1 Vilma de Fátima Machado2

I - Introdução O presente artigo tem o enfoque construído a partir da perspectiva contemporânea de dignidade e do sistema teórico do reconhecimento desenvolvido por Axel Honneth, dos quais foram retirados núcleos racionais que permitem analisar o instituto do consentimento livre, prévio e informado dos povos e comunidades tradicionais sobre o acesso a seus conhecimentos, previsto na Lei nº 13.123/2015 do Marco Civil da Biodiversidade. O dispositivo legal regulamentou os compromissos assumidos com a ratificação da Convenção de Diversidade Biológica, normati1

Mestranda no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Direitos Humanos da Universidade Federal de Goiás. Especialista em Direito Constitucional. Advogada. E-mail: [email protected].

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Graduada, especialista e mestre em História (UFG). Doutora em Desenvolvimento Sustentável pela UnB. Professora e Vice Coordenadora do no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Direitos Humanos da Universidade Federal de Goiás. E-mail: vilmafmachado@ gmail.com.

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zando a exploração e repartição dos benefícios econômicos de produto acabado ou material reprodutivo oriundo do acesso ao conhecimento tradicional associado à biodiversidade. A norma reconhece o direito das comunidades tradicionais participarem da tomada de decisões sobre assuntos referentes ao uso sustentável de seus conhecimentos associados à biodiversidade do País, visto que a lei considera as comunidades enquanto sujeitos de direitos. Contudo, é importante verificar se, na sistemática legal, existe o reconhecimento da dignidade das comunidades e a sua inclusão efetiva como protagonistas do direito de consentir ou recusar o acesso a seus saberes. Portanto, o presente ensaio buscará responder à seguinte problemática: A Lei nº 13.123/2015, no que tange ao consentimento prévio das comunidades e povos tradicionais para o acesso a seus conhecimentos, realiza os postulados da dignidade na vertente do reconhecimento? A pesquisa partirá do pressuposto de que o direito humano ao conhecimento tradicional associado à biodiversidade implica no reconhecimento da identidade social e cultural dos povos e comunidades culturais, e no direito de não sofrer ingerências sem o amplo diálogo, com a participação ativa e reconhecida destes povos, assim como na necessidade do consentimento prévio dos diversos atores. O reconhecimento será abordado a partir da noção contemporânea de dignidade humana fundamentada, mas dentro da perspectiva abordada pelo filósofo e sociólogo alemão Axel Honneth, como formas de luta pelo reconhecimento. Para ele, o direito é um produto social que deve estar conectado com as demandas sociais, sendo necessário analisar o reconhecimento nos conflitos sociais. A maior contribuição desses fundamentos teóricos para o desenvolvimento da análise proposta está na ideia de dignidade como um valor moral manifestado no reconhecimento mútuo das pessoas sujeitos de direito, o que demanda o respeito nas relações intersubjetivas em razão da evolução moral das sociedades, evidenciando os debates e lutas em torno da efetivação de direitos, respeito e cidadania. Será utilizado o método dedutivo-dialético, por meio de uma ca-

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deia de raciocínio que parte da análise geral da dignidade para a particularidade do reconhecimento no instituto do consentimento prévio regulamentado pelo Marco Civil da Biodiversidade. Partiremos da premissa de que a análise do sistema jurídico de proteção aos conhecimentos tradicionais, associados à biodiversidade, no que tange ao reconhecimento e inclusão das comunidades e na repartição dos benefícios, não pode ser realizada de forma isolada, abstraída de suas influências políticas, econômicas, culturais e outros. Assim como será realizada pesquisa bibliográfica em livros, revistas especializadas, artigos publicados na internet e documental, baseada em Convenções e Acordos internacionais e na Lei nº 13.123/15. II – Origem histórico-filosófica da dignidade humana Ao longo da história da humanidade, na cultura ocidental, a dignidade foi apresentada em duas perspectivas diferentes. Em uma linha de desenvolvimento que parte da Roma antiga, atravessa a Idade Média e chega até o surgimento do Estado Liberal, a dignidade era relacionada com o status pessoal de alguns indivíduos (associada à posição ou ao conceito protagonizado na esfera pública) ou na elevada estima das instituições, em referência à supremacia de poder do soberano, da coroa ou mesmo do Estado (MCCRUDDEN apud BARROSO, 2014). Neste período pré-moderno, o homem não se afirmava como personalidade individual ou em sua autonomia subjetiva, mas enquanto integrante da comunidade cívica, na qual a dignidade era voltada para o papel desempenhado na sociedade, para consecução do bem comum e participação política do cidadão no desenvolvimento comunitário. Nessa linha de raciocínio, a desigualdade entre as camadas sociais era parte constitutiva de uma sociedade hierarquizada, com pessoas mais dignas que outras, ou mesmo sem dignidade alguma, o que fundamentava a existência de privilégios, direitos exclusivos, tratamento especial e diferenciado. Já no período contemporâneo, impulsionada pelo Iluminismo, a

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dignidade passou a ser compreendida como valor próprio e intrínseco que identifica o ser humano como tal, e que goza de uma posição especial no universo. Segundo Roberto Barroso (2014) o significado atual de dignidade não se trata de uma evolução da perspectiva antiga, ou mesmo de uma sucessão de sentidos, pois é produto de uma história diferente. Porém, o entendimento atual de dignidade humana possui uma base religiosa e filosófica que é tão antiga quanto a concepção do período pré-moderno. A compreensão contemporânea de dignidade humana iniciou seu desenvolvimento no pensamento clássico, tendo ocorrido seu primeiro registro na obra De Officis, de Marco Túlio Cícero, que concebeu a dignidade como algo desvinculado da posição social em razão da qualidade ímpar do ser humano, a condição de ser racional frente aos demais seres vivos. Esse conceito, despido de influências religiosas, decorria do fato de o homem ser o único animal racional e, como tal, hierarquicamente superior às demais criaturas. Na perspectiva religiosa, o cristianismo é considerado o ponto de partida do desenvolvimento da dignidade no Ocidente, que fundamentou na concepção de que o homem foi originado de Deus para ser o centro da criação e, por ser amado, foi salvo de sua natureza originária e dotado de liberdade para tomar decisões contra seu desejo natural. (MORAES, 2003). Porém, essa concepção pressupõe o ser humano, em si e por si, como incapaz de realizar o bem, mas, somente, em comunhão com a fonte divina de sua vida e destino, fundando-se e realizando-se, em última instância, em Deus. A partir desse entendimento, São Tomaz de Aquino compreendeu a noção de dignidade não somente como pertencente à essência do homem, mas, também, in actu, como algo contido na condução, por cada um, da capacidade de autodeterminação diante de sua racionalidade individual, passando desta forma a residir na alma de cada ser humano. Deste modo, o homem deve exercer sua racionalidade para a submissão aos deveres da lei divina. Ao longo da Idade Média, a dignidade humana esteve entrelaçada

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com a religião; na civilização ocidental, as tradições éticas e religiosas tradicionalmente têm se sobreposto (BARROSO, 2014, p. 16). Porém, sem abandonar a inspiração do pensamento cristão, mas iniciando o afastamento da subordinação teológica do homem, Giovanni Pico Della Mirandola, em seu famoso discurso Oratio de Hominis Dignity, que é considerado o ensaio fundador do renascimento humanista por justificar a nobreza ímpar do ser humano, exaltou a importância da capacidade de autodeterminação e autotransformação do homem, conferidas pela razão, para ser o escultor de seu próprio ser, recriando a si mesmo e ao mundo por meio do exercício do livre arbítrio, o que inseriu o ser humano no centro do mundo. No contexto da expansão colonial ibérica, no século XVI, o teólogo espanhol Francisco de Vitoria, fez importantes contribuições para o delineamento da ideia de dignidade moderna, ao contrapor-se às práticas de saques, exploração, escravidão e dizimação de índios, sob o fundamento de que embora não cristãos, eram seres humanos, e deveriam ser respeitados em sua dignidade, não devendo ser tratados de forma ultrajante (PARENTE; REBOUÇAS, s/d.). No período de trânsito da Renascença para o Iluminismo, houve um processo de desmistificação de várias concepções humanas, como resultado da perda de poder e influência da Igreja Católica. Neste contexto, a concepção de dignidade humana foi emancipada dos dogmas cristãos tendo se tornado mais racional, no sentido de afirmar o homem em si e por si mesmo. “Vários estudiosos contribuíram para a transformação do sentido de dignidade, porém, Samuel Pufendof foi o pioneiro na concepção secular de dignidade, a qual ele fundou sobre a liberdade moral” (BARROSO, 2014, p. 17), marcando assim uma ruptura com a tradição teológica de raízes medievais (PARENTE; REBOUÇAS, s/d.). A partir dessa ruptura, surgiu a centralidade do homem, ao lado do individualismo, do liberalismo, do desenvolvimento da ciência e do advento da cultura dos direitos individuais, ideias que fomentaram as revoluções liberais dos Estados Unidos e na França (BARROSO, 2014, p. 18).

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Foi, contudo, na filosofia iluminista de Immanuel Kant, que o processo de secularização da noção de dignidade consolidou-se de uma vez por todas, abandonando definitivamente, no âmbito filosófico, qualquer influência religiosa. Kant é, de fato, o ponto mais importante da moderna concepção laicizada da dignidade da pessoa humana, fundada na doutrina da autofinalidade (PARENTE; REBOUÇAS, s.d.). No entanto, este longo processo histórico da humanidade da construção do referencial teórico da dignidade teve como marco histórico mais significativo o totalitarismo e o genocídio praticados pelo nazismo e o fascismo. As atrocidades deste período impulsionaram uma profunda discussão sobre a importância da dignidade para o ser humano, tendo resultado, no pós-Segunda Guerra Mundial, na incorporação da dignidade no discurso político, como uma das bases para a paz e promoção dos Direitos Humanos. Posteriormente, favorecida pela concepção pós-positivista que reaproximou a moral da filosofia política, a dignidade humana foi inserida no discurso jurídico, sendo prevista em diversos tratados, convenções, constituições (BARROSO, 2014). Atualmente, a dignidade desempenha papel fundamental na interpretação e aplicação das leis, formulação de políticas públicas, definição de conduta social e individual. III - A dignidade humana na perspectiva kantiana Immanuel Kant foi um dos filósofos mais influentes do período iluminista sendo uma referência central para a concepção de dignidade humana na era moderna e contemporânea. Em sua obra Fundamentação da Metafísica dos Costumes o filósofo, baseado na razão e no dever, demonstrou como os princípios morais devem ser valorizados para assumir o papel de leis universais, orientando a conduta e dominando as paixões humanas. Ao mesmo tempo, Kant valorizou a vida humana e evidenciou que o ser humano deve ser considerado como fim sem si mesmo, e jamais como instrumento de

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submissão a outrem, sob a pena de seus princípios morais não servirem como leis universais (QUEIROZ, 2005). A ética para Kant consiste no domínio da lei moral, composta por comandos que regem a conduta humana por meio da racionalidade. Tais comandos expressam o dever-ser, um imperativo, que pode ser hipotético, identificando uma ação como boa quando é um meio para se atingir um fim, ou categórico, que corresponde a uma ação que é boa em si mesma, independente de servir a algum fim (BARROSO, 2014). O imperativo categórico kantiano está contido na máxima “Age de tal modo que a máxima da tua vontade possa se transformar em uma lei universal.” Esse imperativo moral foi desdobrado em três formulações diferentes, capazes de determinar a ação ética do homem. A primeira formulação conhecida como da lei natureza está consubstanciada na máxima “Age como se a máxima de tua ação devesse ser erigida por tua vontade em lei universal da natureza”, o que corresponde à universalidade da conduta ética, válida em todo tempo e lugar. A segunda, denominada fórmula da humanidade, que afirma a dignidade dos seres humanos como pessoas, é representada pelo postulado “Age de modo a utilizar a humanidade, seja em relação à tua própria pessoa ou a qualquer outra, sempre e todo o tempo como um fim, e nunca como um meio”. Esta representa o cerne do imperativo. A terceira e última formulação, conhecida como fórmula da autonomia, está contida no axioma “Age como se a máxima de tua ação devesse servir de lei universal para todos os seres racionais”, e, “que exprime a separação, entre o reino natural das causas e o reino humano dos fins, atribuindo à vontade humana, uma vontade legisladora geral” (CHAUÍ apud MORAIS, 2003, p.115). Dois conceitos fundamentais para a ética kantiana são autonomia e dignidade. Autonomia é a qualidade de uma vontade que é livre, que atribui aos indivíduos a capacidade de autodeterminar-se em conformidade com as leis que dão a si mesmos (BARROSO, 2014). Para Kant, o indivíduo é governado pela razão, que é justamente a representação

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correta das leis morais. Em seu modelo, o princípio norteador da vontade humana é o fim, relacionado ao valor que se atribui ao que existe, de modo que tudo o que existe é antes de tudo, o reino dos fins (PARENTE; REBOUÇAS, s.d.). No reino dos fins, existem duas categorias de valor: uma que é relativa, externa ao ser valorado, que parte de interesses particulares volúveis e contingentes, por um preço; outra referente à dignidade, consubstanciada num valor interno, absoluto, não mensurado de forma econômica. Assim, as coisas têm preço e as pessoas têm dignidade, o que fundamenta a exigência de jamais transformar o homem em meio para alcançar quaisquer fins, de modo que a lei elaborada pela razão deve ter, como finalidade máxima, a realização do valor intrínseco da dignidade humana. Em sua concepção de dignidade do homem, Kant preceitua que o dever meritório e contingente da autonomia não se restringe apenas numa postura negativa e passiva, mas, ainda, no esforço ético de todos para fomentar ou contribuir com o aperfeiçoamento da dignidade de si e dos outros enquanto fim em si mesmo. Em resumo, os preceitos kantianos que fundamentam a concepção atual de dignidade humana, atribui ao ser humano um status axiológico supremo, reconhecendo-lhe valor indisponível e infungível de sua existência pessoal como sujeito moral, fundando-se na natureza racional e na liberdade intrínseca da condição humana (PARENTE; REBOUÇAS, s.a.). Nessa esteira, a ideia kantiana de justiça está diretamente associada à promoção dos valores da igualdade e, sobretudo, da liberdade individual1. Em seu conteúdo prescritivo, veicula exigência ética que reclama respeito ou consideração incondicional, por si mesmo e, reciprocamente, pelos outros, de forma que limita eticamente o arbítrio voluntarista de cada um no desempenho de sua capacidade de autodeterminação e também concita a todos no sentido de fomentar ou contribuir, na medida das forças de cada um, para a afirmação e

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emancipação prospectiva do homem em dignidade. Preceitua, ademais, que, em suas infindáveis condutas e relações interpessoais concretas, os homens devem, necessária e mutuamente, ser considerados, sempre, como fins em si mesmos, e não como simples meios para a consecução utilitária ou hedonista de fins próprios ou alheios, repudiando, assim, toda espécie de instrumentalização ou coisificação (reificação) que inflija qualquer ultraje, aviltamento ou amesquinhamento aos seres humanos.

Portanto, estas breves noções básicas das premissas kantianas, que alicerçaram as bases teóricas da noção de dignidade humana empregada no mundo ocidental contemporâneo como fundamento ético -político das sociedades e comando jurídico em diversos textos legais nacionais e internacionais, devem também servir de premissas de análise da real participação dos detentores dos saberes tradicionais no debate, na regulamentação do uso e nos proveitos econômicos no âmbito das discussões legislativas. IV - A contribuição hegeliana Os apontamentos do filósofo alemão Georg Wilhelm Friedrich Hegel sobre a noção de dignidade, que repercute as concepções kantianas, é o fundamento básico da teoria do reconhecimento, partindo do pressuposto de que as relações intersubjetivas são como vias para a construção da identidade individual e como fonte normativa para a estruturação da esfera social (PINZANI, 2012). Portanto, torna-se de grande importância a abordagem dos preceitos hegelianos na construção da dignidade. A noção de dignidade apresentada pelo filósofo alemão fundamenta-se na relação com o outro igualmente digno, e a compreensão desse reconhecimento somente pode ser feito mediante a consideração de uma coletividade construída no âmbito das relações. Para Hegel, a dignidade é uma qualidade a ser conquistada, pois o ser humano não

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nasce digno, mas torna-se digno quando assume sua condição de cidadão dentro de uma sociedade ética (ALMEIDA, 2014). Em Hegel, o respeito à dignidade se expressa pelo respeito à liberdade, onde aquela assume o papel de pressuposto básico de toda a estrutura social e jurídica, por meio dos conceitos de pessoa e personalidade. O conceito de pessoa em Hegel está ligado à esfera jurídica, à “capacidade jurídica” do indivíduo, embora ainda uma capacidade em potência (ALMEIDA, 2014, p. 378). Já a personalidade, que começa quando o sujeito tem consciência de si, contém a capacidade jurídica e constitui o conceito e a base do direito abstrato. No sistema da Filosofia do Direito, ao analisar o contexto do Direito Abstrato, Hegel critica a postulação de reconhecimento do outro como pessoa, em absoluta igualdade com qualquer outro, pois essa autorreferência não considera a diferenciação individual de cada um, aspecto (elemento) necessário na análise concreta do ser humano em si e de suas relações. “Para o reconhecimento do sujeito como abstrato, e, com isso, como uma generalidade idêntica em todos no direito abstrato, acrescese, na moralidade, o reconhecimento do sujeito como concreto, distinto, também em comparação com outros” (SEELMAN, 2009, p. 110). Assim, na moralidade objetiva, o homem é reconhecido em sua comunidade, experimentando o reconhecimento no contexto concreto. A Moralidade, segundo momento da Filosofia do Direito, se preocupa com os princípios da pessoa ao agir, pessoa que, a partir desse momento, se torna sujeito do direito. Nela, acentua-se a fundamentação subjetiva da vontade livre e se investiga a autodeterminação da vontade, os propósitos e a intenção do sujeito, obtendo assim, o direito a autonomia (FREDES, 2014). Na Moralidade, então, está contida a autonomia da vontade com sentido moral e responsabilidade, ou seja, nela está presente o saber e o querer agir com responsabilidade, mantendo ainda sua subjetividade da vontade. (FREDES, 2014, p. 234). Com o direito da moralidade se quer assegurar o direito à subjetividade, fundamental para a preservação da

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dignidade humana. É o reconhecimento como sujeito e como pessoa, o que possibilita a vida em um Estado jurídico (WEBER, 2014). Porém, Hegel ultrapassa a subjetividade da vontade consubstanciada na autonomia ao tratar da mediação social da liberdade. Para ele, não há como realizar a liberdade humana e garantir a dignidade fora de uma determinada estrutura social, sendo necessária sua conquista nas instituições éticas (família, sociedade e Estado). Assim, busca-se o equilíbrio entre a liberdade individual e o interesse geral dentro do Estado. Na Eticidade desenvolvida na Filosofia do Direito, a dignidade é resultado da mediação das vontades ou da vontade livre nas instituições sociais e assume seu pleno significado no contexto da intersubjetividade das relações humanas, fundamentada no reconhecimento dos valores socialmente consagrados pela e para a comunidade de pessoas humanas (SARLET, 2009). É importante ressaltar que existem diferentes níveis de reconhecimento e de realização da liberdade nas várias instâncias mediadoras pela qual a pessoa de direito efetiva a sua vontade: no Direito o objeto é a pessoa; do ponto de vista moral é o sujeito; na família é o “membro de”; na sociedade civil e no Estado é o cidadão (WEBER, 2014, p. 392). Nesse sistema apresentado por Hegel, a dignidade gera direitos fundamentais contra atos que a violem ou ameacem, de modo que o Estado supera as mediações da família e das corporações para mediar as relações entre as instituições e promover a plena realização dos direitos e liberdades dos cidadãos, garantindo integralmente a dignidade. “Após o desenvolvimento e a superação do Sistema de Direito hegeliano, a dignidade, assim como a autonomia, é garantida pelo direito, pois existe reconhecimento mútuo entre os cidadãos, os quais se reconhecem e se respeitam por serem cidadãos do Estado, mantendo a dignidade humana” (FREDES, 2014, p. 235). V – O reconhecimento como vertente da dignidade Teoria do Reconhecimento é um conceito social filosófico que

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aborda o reconhecimento como uma necessidade de obter respeito nas relações intersubjetivas. Sua origem seu deu no pensamento hegeliano, no qual o reconhecimento é caracterizado como uma forma de autorreconhecimento e de reconhecimento do outro. Em breve síntese, o projeto hegeliano se concentra na identificação e superação dos modelos de dominação social para a realização da liberdade e dignidade na sociedade, sendo necessária a investigação do sentido das instituições sociais na modernidade e da ética social. Na estruturação hegeliana, a teoria do reconhecimento foi desenvolvida inicialmente com a análise da relação senhor-escravo, realizada na obra Fenomenologia do Espírito, onde se considerou o contexto servidão-dominação como primeiro impulso de um movimento para o reconhecimento intersubjetivo da individualidade (DIETZOLD, 2012). Essa perspectiva se limita à relação intersubjetiva privada entre dois indivíduos e, para os fins do presente artigo, necessita de um terceiro elemento do reconhecimento: a esfera social, que na obra Filosofia do Direito, tratada acima, ocorre por meio do desenvolvimento da Eticidade. Como abordado anteriormente, na Filosofia do Direito, a Eticidade é o processo de formação moral das estruturas intersubjetivas para a realização social-substantiva da dignidade. Assim, ela busca identificar a finalidade das vontades (exercício da liberdade) intersubjetivas realizadas pelas instituições sociais (família, sociedade civil e Estado) para uma ação ética, que é pautada, na esfera indivíduo-comunidade, pelo potencial crítico e emancipatório subjetivo evidenciado pela ideia de luta por reconhecimento. Para o desenvolvimento desse raciocínio, Hegel considerou a eticidade em seu duplo aspecto: “De um lado as instituições basilares da sociedade moderna [família, sociedade civil e Estado] e de outro a atitude dos indivíduos diante de tais instituições [a conscientização dos indivíduos em relação à lógica das instituições como etapa do processo estruturante da própria liberdade]” (DIETZOLD, 2012, p. 79). Eticidade, então, pode ser considerada como o processo social de atualização da ética da identidade individual e coletiva. Na esfera

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familiar, o indivíduo tem a liberdade neutralizada, ocorrendo de modo irrefletido nos laços afetivos; na sociedade civil, o indivíduo reconhece a si como um ser com projeção social; no Estado a afetividade familiar é resgatada para se transformar num sentimento de solidariedade com a pátria e a comunidade. Desse modo, no sistema da eticidade é possível retirar apenas alguns elementos fundamentais para conceituar o reconhecimento, pois na análise da intersubjetividade das relações nas esferas do reconhecimento só há menção ao alcance da liberdade. Contudo, a possibilidade de liberdade plena só é alcançada na estrutura do Estado, já que é nesse âmbito que o exercício da liberdade está ligado à condição humana de cada indivíduo, assim como à sua dimensão social, consubstanciada no reconhecimento de todos como iguais em direitos e dignidade. Apesar dos aparentes limites do pensamento hegeliano para a presente investigação científica, é inegável que nele encontram-se importantes elementos da dignidade no âmbito intersubjetivo das relações humanas, mediando o reconhecimento recíproco do ser pessoa. “Porém, é no pensamento contemporâneo que a noção de dignidade humana como reconhecimento acabou por ocupar um espaço privilegiado na discussão política, sociológica e filosófica” (SARLET, 2009, p. 27). Um dos pensadores contemporâneos mais destacados na teoria da dignidade como reconhecimento é Axel Honneth, filósofo e sociólogo alemão da terceira geração da Escola de Frankfurt, que utiliza os elementos gerais do pensamento hegeliano para desenvolver a teoria do reconhecimento na gramática social dos conflitos. A teoria honnethiana enfatiza a relação do desenvolvimento pessoal, ou da subjetividade, ou ainda da identidade pessoal em razão da evolução moral das sociedades, visando encarar o debate em torno de questões como a efetivação da cidadania, dos direitos humanos, e o desrespeito social (DIETZOLD, 2012). “Buscando construir uma teoria social de caráter normativo, Honneth parte da proposição de que o conflito é intrínseco tanto à formação da intersubjetividade como dos próprios sujeitos” (NETO, 2013,

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p. 55). Tal conflito é conduzido pela luta moral, consubstanciada na premissa hegeliana de luta por reconhecimento recíproco de identidade que gera “uma pressão intrassocial para o estabelecimento prático e político das instituições garantidoras de liberdade” (HONNETH, 2003, p. 29). Honneth assevera que a luta moral só pode ser tida como “social” quando for capaz de suscitar objetivos coletivos. A partir dessa delimitação ele acredita que o conceito de luta social seria: (...) o processo prático no qual experiências individuais de desrespeito são interpretadas como experiências cruciais típicas de um grupo inteiro, de forma que elas podem influir, como motivos diretores da ação, na exigência coletiva por relações ampliadas de reconhecimento (HONNETH, 2003, p. 257).

Utilizando os argumentos de Hegel e Mead, Honneth (2003) apresenta três estágios da efetivação do reconhecimento: a) as ligações emotivas fortes, onde se analisa a relação mãe e filho e as transformações que vão da fusão completa à dependência relativa, que origina a possibilidade de autoconfiança; b) a adjudicação de direitos, pautada o princípio moral universalista, onde não se admite a existência de privilégios e gradações no sistema jurídico; c) a orientação por valores, que se dá no domínio das relações de solidariedade, onde os sujeitos encontram no interior da comunidade a valoração de suas idiossincrasias, e nos conflitos, buscam a reconfiguração de sua subjetividade (NETO, 2013). Após a análise desses três princípios integradores do reconhecimento, Honneth expõe os principais momentos em que o desrespeito aparece: 1. Aqueles que afetam a integridade corporal dos sujeitos e, assim, sua autoconfiança básica;

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2. A denegação de direitos, que destrói a possibilidade do autorrespeito, da igualdade; 3. A referência negativa ao valor de certos indivíduos e grupos, que afeta a autoestima dos sujeitos (NETO, 2013, p. 57). O primeiro tipo, exemplificado pelo estupro e tortura, refere-se ao desrespeito que impacta não somente o corpo físico, mas a integridade psíquica do indivíduo, abalando a autoconfiança adquirida ao longo da experiência. O segundo tipo, expõe a negação ou privação de direitos enquanto membro igual da comunidade, exemplificado pela escravidão. O terceiro e último momento, é a humilhação ou desvalorização de estilos de vida individuais e coletivos, o que exclui o indivíduo das relações intersubjetivas. Segundo Honneth (2003) todas essas formas de desrespeito impedem que o indivíduo se realize em sua integridade e dignidade. Mas por outro lado, essa degradação e frustação das expectativas relacionais e normativa é que gera os conflitos morais e constitui a luta por reconhecimento. O que Honneth defende, em última instância, é que “os conflitos intersubjetivos por reconhecimento, encetados por situações desrespeitosas vivenciadas cotidianamente, são fundamentais para o desenvolvimento moral da sociedade e dos indivíduos” (NETO, 2013, p. 58). Esta é a base da concepção honnethiana formal de boa vida, a qual “tem de conter todos os pressupostos intersubjetivos que, hoje, precisam estar preenchidos para que os sujeitos se possam saber protegidos nas condições de sua autorrealização” (HONNETH, 2003, p. 270). VI – Análise sobre o consentimento livre, prévio e informado A partir da sistematização de Honneth sobre a luta por reconhecimento na dinâmica dos conflitos sociais, e partindo dos preceitos kantianos e hegelianos de dignidade, assim considerada como “um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na

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autodeterminação consciente e responsável pela própria vida e que leva consigo a pretensão de respeito por parte dos demais” (SARLET, 209, p. 22), será analisado o instituto do consentimento livre, prévio e informado das comunidades tradicionais para o acesso aos seus conhecimentos com potencial mercadológico e objeto de patentes. O acesso aos conhecimentos tradicionais sobre recursos genéticos, também denominados associados à biodiversidade, e, sua utilização, exigem negociações com o consentimento formal e a repartição de eventuais benefícios com populações tradicionais, e tudo isso com o intermédio e aprovação do Estado (CARNEIRO DA CUNHA, 2009). Essas exigências advêm do compromisso firmado, no âmbito internacional, por meio da Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), a qual tem como pilares a conservação da diversidade biológica, a utilização sustentável de seus componentes e a repartição justa e equitativa dos benefícios derivados do uso dos recursos genéticos. A sistemática prevista na CDB advém do reconhecimento dos direitos das comunidades locais e dos povos indígenas sobre seu conhecimento acerca da biodiversidade, bem como do reconhecimento do jurídico-formal da dignidade e autodeterminação dos povos e comunidades tradicionais, reivindicado por diferentes movimentos sociais e reforçado por instrumentos normativos elaborados por agências multilaterais, como a ONU, UNESCO e OIT. Partindo disso, a Convenção determina em seu art. 15, item 05, que o acesso aos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade está sujeito ao consentimento prévio de seus detentores, no caso, as comunidades e povos tradicionais. Nurit Bensusan (2015), especialista em Biodiversidade e coordenadora adjunta de Política e Direito do Instituto Socioambiental define o consentimento livre, prévio e informado como: (...) a consulta feita a quem detém os recursos genéticos e conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade – as comunidades indígenas e tradicionais – sobre seu uso e exploração. Todo uso que se pretende fazer desses recursos e

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conhecimentos deve ser precedido de um processo de discussão com a comunidade que os detém, de modo que ela seja informada, conforme sua língua e costumes, do que se pretende fazer, dos produtos e vantagens a serem obtidos, garantindo a ela tempo suficiente para entender essas informações e ser capaz de decidir e autorizar, ou não, de forma autônoma, o uso pretendido.

No Brasil, por meio da Medida Provisória 2.186-16, de 23 de agosto de 2001, a CDB foi regulamentada num sistema nacional que disciplinava o acesso aos recursos naturais e aos conhecimentos tradicionais associados. A sistemática dessa MP criou barreiras à proteção e ofendeu a dignidade como reconhecimento das comunidades e povos locais, na medida em que permitia ao Conselho de Gestão de Patrimônio Genético (CGEN), ligado ao Ministério do Meio Ambiente, a autorização de acesso aos conhecimentos tradicionais, sem a “anuência prévia” – termo utilizado em substituição ao consentimento prévio – apenas com fundamento no critério subjetivo do “relevante interesse público”. A Lei nº 13.123/15, denominada Marco Teórico da Biodiversidade, resgatou o termo “consentimento prévio informado”, ao estabelecê-lo, em seu art. 9º, como condição sine qua non para o acesso ao conhecimento tradicional associado de origem identificável. Em seu texto normativo, o consentimento prévio informado é definido como “consentimento formal, previamente concedido por população indígena ou comunidade tradicional segundo os seus usos, costumes e tradições ou protocolos comunitários” (art. 2º, VI). No novo marco legal, não é explicitado como se dará o processo de consentimento prévio, ou mesmo faz menção procedimento de análise e de validação do processo de consentimento prévio informado, havendo previsão apenas quanto aos instrumentos de comprovação dessa anuência: assinatura de termo de consentimento prévio; registro audiovisual do consentimento; parecer do órgão oficial competente; ou adesão na forma prevista em protocolo comunitário. (art. 9º, I, II, III e IV).

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Pela sistemática da lei, o controle estatal do consentimento é feito somente por meio de um cadastro declaratório. Ou seja, o usuário preenche um cadastro dizendo que acessou o conhecimento tradicional e nesse momento deve apresentar uma comprovação do processo de consentimento prévio informado, que pode se dar anos depois do momento de acesso, principalmente porque o cadastramento só é obrigatório nos casos de registro de patentes. No § 3º, do art. 9º, a Lei contempla uma possibilidade de desconsideração da anuência nos casos de acesso ao conhecimento tradicional associado de origem não identificada: O acesso ao patrimônio genético de variedade tradicional local ou crioula ou à raça localmente adaptada ou crioula para atividades agrícolas compreende o acesso ao conhecimento tradicional associado não identificável que deu origem à variedade ou à raça e não depende do consentimento prévio da população indígena, da comunidade tradicional ou do agricultor tradicional que cria, desenvolve, detém ou conserva a variedade ou a raça.

Por fim, nos casos em que o conhecimento tradicional é compartilhado entre vários grupos e comunidades, a solução apresentada pelo sistema jurídico brasileiro é a anuência prévia de apenas um detentor do conhecimento para que o processo seja considerado adequado, o que retira, desse modo, a possibilidade de não consentir, de recusar a transmissão do conhecimento, pois se um não concordar, certamente se encontrará alguém que o faça. VII – Considerações Ao se considerar a perspectiva atual de dignidade e o reconhecimento subjetivo e intersubjetivo, conclui-se que o consentimento prévio, tal como concebido pela Lei nº 13.123/15, rompe com a noção kantiana de dignidade ao tornar o outro tradicional como um

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meio para um fim, qual seja o acesso aos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade, o que demonstra a ineficiência do instituto - consentimento livre, prévio e informado - como resultado de uma política de reconhecimento da dignidade, no aspecto individual e social. O Estado, concebido por Hegel como instituição social, não conseguiu promover, com o novo marco regulatório, o exercício pleno da realização dos direitos, liberdades e dignidade das comunidades e povos tradicionais, na medida em que denega o direito de recusar o acesso aos seus conhecimentos e desconsidera as idiossincrasias do outro tradicional individual e coletivo na regulamentação detalhada do processo e fiscalização do instituto do consentimento prévio. Ao não prever um processo de consentimento para o acesso aos conhecimentos tradicionais, ou mesmo um procedimento de análise e validação dessa autorização, mas, tão somente, um cadastro declaratório, a Lei nº 13.123/15 demonstra o alijamento das comunidades locais e povos indígenas como sujeitos de direitos, dotados de liberdade e autonomia, já que estes atores não têm a possibilidade real de exercer sua influência sobre a sistemática da anuência prévia. O resultado disso, é que o acesso ao conhecimento tradicional poderá ser realizado sem comprovação do consentimento prévio e informado, já que o cadastramento é obrigatório somente antes de o usuário remeter o componente estudado para o exterior, ou requerer direitos de propriedade intelectual ou apresentar algum resultado de pesquisa, o que acontecerá sem as garantias que o marco legal deveria dar aos detentores desse saber. Assim, depois que o conhecimento foi transmitido, torna-se ineficaz a análise do cadastro e, principalmente, se constatar que o consentimento prévio informado é inválido. Do mesmo modo, a previsão da anuência de uma comunidade detentora do conhecimento em detrimento das demais, bem como a desconsideração do consentimento nos casos de saberes de origem desconhecida, retira a possibilidade de diálogo e permite a continuidade

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do processo de exploração hegemônica dos grupos dominantes, assim como o uso dos instrumentos legais como um meio de manutenção do status quo. Denota-se, assim, que o consentimento livre, prévio e informado é concebido apenas na ótica formal, comprometendo a dignidade efetiva dos povos e demonstrando que o Estado é falho na sua função de pacificador das relações sociais, na medida em que permite um tratamento diferenciado às minorias ao negar direitos e excluir o indivíduo tradicional do diálogo nas relações intersubjetivas. Para finalizar, é importante ressaltar que, almejado exercício real da dignidade individual e coletiva não será alcançado sem o reconhecimento da alteridade e do papel dos povos indígenas e demais comunidades tradicionais nos processos que geram e mantém a biodiversidade e consequentemente o patrimônio genético. VI – Referências ALMEIDA, Silvana Colombo de. Dignidade humana e filosofia hegeliana. Em: Anais do seminário dos estudantes de pós-graduação em filosofia da UFSC. 10ª edição, 2014, p. 374-383. BARROSO, Luiz Roberto. A dignidade da pessoa humana no Direito Constitucional contemporâneo: a construção de um conceito jurídico à luz da jurisprudência mundial. Belo Horizonte: Fórum, 2014. BRASIL. Lei nº 13.123, de 20 de maio de 2015. Marco civil da biodiversidade. Diário Oficial da União. Poder Executivo, Brasília/DF, 21 de mai. 2015, Seção 1, p. 01. BECCHI, Paolo. O princípio da dignidade humana. Em: Revista Brasileira de Estudos Constitucionais, vol. 7, jul./set.2008, p. 191-224. CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. “Cultura” e cultura: conhecimentos tradicionais e direitos intelectuais. In Cultura com aspas. São Paulo: Cosac Naify, p. 311-371, 2009.

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A PERDA DO DIREITO À PRIVACIDADE NA CONTEMPORANEIDADE INFORMACIONAL EM PROL DO DISCURSO SOCIAL DA SEGURANÇA PÚBLICA: UMA LEITURA À LUZ DOS DIREITOS HUMANOS

Rosana Fernandes da Silva1 Michele Cunha Franco2

1. Introdução O direito à privacidade é amplamente protegido tanto na legislação brasileira quanto na legislação internacional. Consagrado como um direito fundamental está tutelado no art. 5º, inciso X, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Todavia, ainda que amparado constitucionalmente, tal garantia tem sido violada constantemente com o surgimento de novos aparatos tecnológicos de vigilância3. 1

Aluna especial do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos – UFG. Mestre em Sociologia pela Universidade Federal de Goiás – UFG (2003). Graduada em Direito pela Universidade Estácio de Sá - UNESA/RJ- (2011). Socióloga, graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Goiás – UFG – (2000). Advogada. E-mail: rosanafernandes1@gmail. com.

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Doutora em Sociologia UFG – PDSE/ CAPES University of Alberta, Pós-doutoranda, bolsista PNPD/CAPES, junto ao Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Direitos Humanos – UFG e vice-coordenadora do Núcleo de Direitos Humanos – UFG. E-mail: mcfrancojur@ gmail.com.

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A invasão à privacidade, sobretudo em regimes não democráticos é prática antiga, entretanto,

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A imagem do indivíduo passou a ser dado, alvo de constante vigilância através do grande número de câmeras espalhadas por toda a cidade, além de vários outros meios tecnológicos de monitoramento, somados à crescente exposição dos indivíduos nas redes sociais, configurando uma cultura de autoexposição. (VIEIRA, 2007, p. 175). O que se observa, no entanto, é que, embora o direito à privacidade receba tutela constitucional e até proteção internacional, a sociedade civil pouco tem refletido sobre a constante violação dessa garantia a partir do desenvolvimento de inúmeras formas de vigilância dos indivíduos. Esse incremento fez com que, na academia, florescessem os estudos sobre surveillance, que problematizam a combinação coordenada de vários aparatos e sistemas de monitoração cujas estratégias têm contribuído para criar composições distintas, resultando no que Haggerty e Ericson (2000) cunharam como Surveillance assemblage que seria uma composição advinda de diferentes fontes, desde redes sociais, hábitos de compras, informações bancárias e de órgãos do Estado, dentre outros, que produzem combinações e resultados de acordo com o interesse de quem ou qual instituição usará as informações. Assim, parece que apenas os interesses econômicos e de segurança pública são orientadores da progressiva violação à privacidade individual e coletiva, evidenciando que tal direito humano fundamental tem sofrido um verdadeiro desprestígio em troca de um mundo mais “seguro” e mais “protegido” da constante violência urbana que tem assolado as nações e, no plano internacional de ameaças terroristas que têm abalado liberdades civis de países cujos fundamentos políticos filosóficos se assentam justamente nessas liberdades. Conforme dispõe o art. 5º, inciso X, da Carta Magna, “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”, cujo sentido é justamente resguardar o direito de o investimento em tecnologias e estratégias de vigilância intensificou-se consideravelmente, e em escala mundial, após os atentados às torres gêmeas em Nova York, ocorridos em 11 de setembro de 2001.

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o indivíduo ter protegido um conjunto de informações particulares, livre da interferência alheia e pública acerca daquilo que só a ele interessa. Situado no Título II do Texto Constitucional intitulado “dos direitos e garantias fundamentais”, referido dispositivo evidencia que o direito à privacidade constitui-se numa garantia individual fundamental, cuja violação enseja o dever de indenização por parte do ofensor. Já no art. 5º, §1º, da Constituição, assim dispôs o legislador: “As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.” Significa dizer que o Constituinte, ao assegurar aos direitos fundamentais, caráter de norma de aplicação imediata, buscou estabelecer aos órgãos governamentais e aos particulares, a tarefa de dar reconhecimento e a maior eficácia possível aos direitos com tal qualificação, o que, para Sarlet (2010) significa afirmar que a todos incumbem a tarefa e o dever de extrair das normas consagradas como direitos fundamentais, efeitos reforçados relativamente às demais normas constitucionais. Apesar das diferentes construções teóricas acerca da definição dos conceitos de “direitos fundamentais” e “direitos humanos”, que leva autores a criticarem a utilização de tais termos como sinônimos, dentro da perspectiva de Moraes (2007), os direitos humanos fundamentais são assim definidos: O conjunto institucionalizado de direitos e garantias do ser humano que tem por finalidade básica o respeito à sua dignidade, por meio de sua proteção contra o arbítrio do poder estatal, e o estabelecimento de condições mínimas de vida e desenvolvimento da personalidade humana (MORAES, 2007, p.20).

Assim, a inversão operada em nome de uma suposta imperatividade em favor da segurança pública, em detrimento do direito à privacidade, o que implica frequentes e diferentes violações a um direito considerado fundamental, é temática de grande relevância dentro da área dos direitos humanos.

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Nesse sentido, o tema do presente artigo se mostra atual e revela sua importância na medida em que a proteção do direito à privacidade é mandamento constitucional e tutela internacional, assegurado também nos tratados internacionais de direitos humanos. Será utilizado, neste trabalho, como metodologia de investigação jurídico-social, a técnica da pesquisa bibliográfica, mediante o uso da doutrina e da legislação como base de estudo para fundamentar as ideias aqui propostas. 2. Direito à privacidade enquanto princípio constitucional A privacidade, segundo a doutrina da Suprema Corte dos Estados Unidos que, em virtude da hegemonia cultural daquele país pode ser considerada universalmente aceita, é o direito de estar só. O direito de recolher-se na sua solidão e nela encontrar a paz e o equilíbrio, afastada, portanto, do alarde e da publicidade, resguardada da curiosidade dos olhares e ouvidos de estranhos4. Dessa forma, já no início do século XX, os Estados Unidos discutiam a necessidade de se proteger a privacidade alheia. No Brasil, o marco maior dessa proteção se deu com a promulgação da Constituição Federal em 1988, em que a privacidade e a intimidade foram eleitas como direitos fundamentais, na categoria de cláusula pétrea5, cuja violação importa no dever de indenizar a outra parte que teve o direito violado. Seguindo a linha da moderna constitucionalização do direito, segundo a qual todo o ordenamento jurídico deve ser analisado à luz da Carta Magna, em 2002 surge o Código Civil brasileiro, cujos artigos 11º 4

COSTA JR, Paulo José da. O direito de estar só: tutela penal da intimidade. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 10. Nas páginas seguintes da obra, o autor explica melhor acerca da posição doutrinária da Suprema Corte Americana, datada de 1.902, sobre seu julgamento do primeiro caso de violação do direito à intimidade. Tal posicionamento é hoje universalmente aceito.

5 As chamadas “cláusulas pétreas” estão definidas no §4º, do art. 60 da Constituição Federal de 1.988 e cuidam das matérias que não podem ser objeto de alteração legislativa tendente a aboli-las, nem mesmo mediante emenda constitucional.

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ao 21º versam sobre os direitos da personalidade e sua proteção , sendo que , o art. 21 segue a orientação constitucional, ao assegurar a inviolabilidade da vida privada da pessoa natural, o que, ao menos em tese, afasta qualquer pretexto tendente a violá-la. Todavia, não é o que a prática tem demonstrado, pois hoje, a privacidade tornou-se rara diante dos mais distintos meios tecnológicos que têm imprimido constante violação à mesma, sobretudo com o surgimento de circuitos de câmeras espalhadas por toda a cidade a “focalizar” o indivíduo, seguindo-o na rua, elevadores, corredores de edifícios públicos e privados, como um “grande irmão6” a vigiá-lo, cerceando seu direito de estar só e a violação de sua dignidade. Nesse sentido, Cavalieri (2009) cita lição de J. J. Calmon de Passos afirmando: (...) a privacidade é o refúgio da dignidade pessoal, o núcleo inexplorável do indivíduo, pelo que somente ele, e exclusivamente ele, pode autorizar sua desprivatização. E esta regra não comporta exceções. Tudo que é informado se torna público, deixa de ser íntimo ou privado, de onde se conclui que, nessa área, permitir informação é eliminar a privacidade, sacrificar irremediavelmente o direito à intimidade7”.

Assim, o que se observa é que a privacidade, enquanto refúgio da dignidade pessoal tem sofrido um verdadeiro desprestígio e uma constante violação. Manter um conjunto de informações íntimas tem se mostrado de difícil solução. Além disso, o surgimento de câmeras filmadoras espalhadas pelos mais diferentes recintos tem violado também o direito à imagem do indivíduo, que é convidado a “sorrir”, pois está sendo filmado, ficando à mercê de um aparato tecnológico pouco 6

Utiliza-se aqui o termo “grande irmão” tal qual o fez George Orwell (2009), em sua obra intitulada 1984, no qual o autor descreve como os governos autoritários utilizariam várias ferramentas tecnológicas para “vigiar” os indivíduos, observando todos os seus passos através de um olho que tudo vê.

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PASSOS, J.J. Calmon de, apud. CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 8ª ed. São Paulo: Atlas, 2009, p. 108.

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fiscalizado, sem saber o destino e o uso de tais imagens, cerceando assim seu direito à intimidade e à privacidade em última análise. Não por acaso, membros especialistas do Fórum Europeu para Segurança Urbana8, firmaram um documento intitulado “Carta para uma utilização democrática de videovigilância9, que estabelece sete princípios fundadores visando à preservação de direitos e liberdades considerados imprescindíveis à manutenção da ordem democrática”. Esses princípios são: legalidade; necessidade; proporcionalidade; transparência; responsabilidade; supervisão independente e implicação dos cidadãos, este último traduzido em dar voz aos cidadãos em todas as fases de implantação na avaliação de sua conveniência. Segundo Silva (2007), o direito à privacidade deve ser usado num sentido genérico e amplo, abarcando assim todas as manifestações da esfera íntima, privada e da personalidade que o texto constitucional consagrou como o direito à vida privada, à honra e à imagem das pessoas, tutelados no já mencionado art. 5º, inciso X, da Constituição Federal. Nesse sentido, assevera o autor que o direito à intimidade é quase sempre considerado como sinônimo do direito à privacidade, mas que este não foi o objetivo do Constituinte, razão pela qual este separou a intimidade de outras manifestações da privacidade. Necessário se faz, portanto, abordar o princípio da inviolabilidade do direito à intimidade, que é também tutelado no Texto Constitucional, cuja violação enseja o dever de reparação civil e, para Costa Júnior (2007), a intimidade é a necessidade de encontrar na solidão paz e equilíbrio, muitas vezes perdidos dentro do ritmo intenso da vida moderna, ou seja, a intimidade é o direito de “ser deixado em paz”, longe da indiscrição alheia. Moraes (2007) assevera que a “intimidade relaciona às relações subjetivas de trato íntimo da pessoa, suas relações familiares e de ami8

https://efus.eu/en/about-us/about-efus/public/1450/ - organização que consiste em uma rede que envolve dezesseis países e mais de duas centenas de autoridades e instituições europeias com o objetivo de partilhar experiências relativas à prevenção de crimes e políticas de segurança

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Para maiores detalhes, consultar http://www.cctvcharter.eu/fileadmin/efus/CCTV_minisite_fichier/Charta/CCTV_Charter_PT.pdf

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zade10”, razão pela qual é inadmissível a violação ao direito à intimidade, expondo o sujeito ao ridículo, tratando, assim, assuntos íntimos como falecimentos, enfermidades, separações e brigas conjugais como instrumento de diversão e de piada. Dessa forma, pode-se concluir que a intimidade é aquela esfera da vida do indivíduo que ele deseja resguardar das intromissões alheias e que reflete seus pensamentos, ideias e emoções e se revela como um espaço impenetrável e intransponível de segredos e informações que só a ele interessa. É importante ressaltar que o direito à intimidade pode ser mitigado em relação às pessoas célebres, mas jamais suprimido. Tais pessoas, por força da profissão escolhida, despertam a curiosidade alheia, todavia, tal interesse não justifica uma intromissão invasiva em sua intimidade, para Costa Júnior (2007), “uma esfera de intimidade, mesmo reduzida, haverá que se assegurar às personalidades notórias, a fim de que possam exprimir-se livremente, sem prestar contas a ninguém, abrigadas da curiosidade alheia11”. Tal fato se mostra relevante ao evidenciar a importância da proteção ao direito à intimidade, repudiando todo tipo de sua violação. Não por outra razão, a Constituição Federal veda a gravação clandestina, considerando-a prova ilícita, justamente por violar o direito à intimidade e privacidade do indivíduo, que se vê invadido no próprio aconchego de suas relações privadas e íntimas. 2.1 Respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana como corolário do direito à privacidade Segundo Walber de Moura Agra: O princípio preponderante que condensa os direitos humanos, garantindo-lhes uma feição sistêmica, é a dignidade da pessoa humana. Ela é a base nuclear dos demais direitos, que 10 MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 22.ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 48. 11 COSTA JR, op. cit., p. 34.

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paulatinamente vão densificando seu conteúdo antológico. Todos os direitos fundamentais têm a função de desenvolver e assegurar a dignidade da pessoa humana, concebida como a carga valorativa mais intensa da Constituição Federal de 1988 (2012, p. 782).

Não restam dúvidas de que o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, tutelado no art. 1º, inciso III, da Carta Magna foi eleito como fundamento da República brasileira. Isso implica dizer que o Estado se constrói a partir da pessoa humana, o que coloca o sujeito e suas garantias como prioridade e valor a ser defendido. Enquanto um direito humano fundamental, a privacidade deveria ser tomada como uma prerrogativa inviolável do homem e, tendo em vista estar revestido pelo princípio da dignidade humana, não deveria ser suplantada. Na tentativa de construção de uma compreensão jurídico-constitucional do termo “dignidade”, Sarlet (2009) apresenta algumas dimensões acerca de seu conteúdo e significados, ressaltando que, apesar de ser o direito quem define e decide qual a dignidade será objeto de tutela estatal, é na Filosofia que se encontra o significado do que é ser humano, do que é ser pessoa e de quais os valores que lhes são inerentes, e é isto que acaba por influenciar ou mesmo determinar o modo como o direito reconhece e protege a dignidade. O autor aponta para a existência de uma dimensão ontológica da dignidade, vinculada à concepção de ser esta uma qualidade intrínseca da pessoa humana, uma dádiva ou dom divino; dimensão comunicativa e relacional da dignidade como o reconhecimento pelo outro; a dignidade como construção, entendendo-a como uma categoria axiológica aberta e, portanto, não pode ser conceituada de maneira fixa, necessitando de uma conceituação em permanente processo de construção e desenvolvimento. Assim sendo, após apresentar algumas das dimensões da dignidade, o autor expõe como conceito desta:

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(...), tem-se por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos (SARLET, 2009, p. 37).

Por outro lado, na também tentativa de conceituar o termo dignidade, Martins (2010) leciona que (...) a dignidade deve acompanhar o homem desde seu nascimento até a sua morte, posto que ela é da própria essência da pessoa humana. Parece-nos que a ‘dignidade’ é um valor imanente à própria condição humana que identifica o homem como ser único e especial, e que, portanto, permite-lhe exigir ser respeitado como alguém que tem sentido em si mesmo12”.

No que tange à pessoa humana, o autor explica que a intenção do legislador constituinte foi proteger o ser humano, que, pelo simples fato de existir, merece ser sujeito da proteção constitucional. Na mesma linha de raciocínio, Sarlet (2010) salienta (...) a dignidade, como qualidade intrínseca da pessoa humana, é algo que simplesmente existe, sendo irrenunciável e inalienável, na medida em que constitui elemento que qualifica o ser humano como tal e dele não pode ser destacado13. 12 MARTINS, Flademir Jerônimo Belinati. Dignidade da pessoa humana: princípio constitucional fundamental. Curitiba: Juruá, 2010, p. 115. 13 SARLET Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 100.

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Dessa forma, o entendimento doutrinário assegura ao princípio da dignidade da pessoa humana um lugar de destaque no Texto Constitucional. Ao ser conferido como fundamento da República Federativa o Constituinte concedeu a tal princípio um valor axiológico superior, ressaltando a necessidade de se colocar o homem como prioridade e valor a ser protegido. Não por acaso, tem-se entendido a privacidade como o refúgio da dignidade pessoal, de forma que, sem o respeito ao direito à privacidade, não há dignidade e vice-versa. Nesse sentido, leciona Sarlet (2010) O que se percebe, em última análise, é que onde não houver respeito pela vida e pela integridade física do ser humano, onde as condições mínimas para uma existência digna não forem asseguradas, onde a intimidade e identidade do indivíduo forem objeto de ingerências indevidas, onde sua igualdade relativamente aos demais não for garantida, bem como onde não houver limitação do poder, não haverá espaço para a dignidade da pessoa humana.

Assim, as conquistas da era da informática que possibilitaram reduzir distâncias entre os povos, propiciando o surgimento de novas formas de interação social, também trouxe, em seu processo, consequências negativas, como a diminuição da liberdade pessoal, revelando-se, assim, a chamada “ambivalência da revolução tecnológica14”. Apesar da evidente antijuricidade de algumas práticas operadas a partir do uso dessas tecnologias, a violação ao direito à privacidade tem ocorrido evidenciando um desrespeito à pessoa e à sua dignidade, que é vítima de uma devassa tecnológica em sua privacidade e intimidade em prol de uma segurança pública nem sempre efetivada na prática. 14 COSTA JR, op. cit., p. 15. Acerca da chamada ambivalência da revolução tecnológica, o autor reflete sobre o conforto proporcionado pela tecnologia que leva a uma integração mais perfeita entre o homem e seu lar, mas, contraditoriamente, pode solapar sua possibilidade de solidão, evidenciando que o aumento da espionagem privada e a intromissão na intimidade alheia têm sido facilitados pelos recursos tecnológicos.

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2.2. Proteção internacional do direito à privacidade Com o avanço das fronteiras territoriais, os Estados foram se multiplicando, exigindo um sistema de normas jurídicas capazes de pacificar diferentes interesses. Nesse sentido, Mazuolli (2008) explica que, “ao passo que este fenômeno se verifica, o direito vai deixando de somente regular questões internas para também disciplinar atividades que transcendem os limites físicos dos Estados, criando um conjunto de normas jurídicas capazes de realizar esse mister15”. Eis, aí o papel do direito internacional e continua: A afirmação histórica do direito internacional e, consequentemente, a prova de sua existência, decorreu da convicção e do reconhecimento por parte dos Estados-membros da sociedade internacional de que os preceitos do direito das gentes obrigam tanto interna como internacionalmente […], devendo os Estados, de boa-fé, respeitar (e exigir que se respeite) aquilo que contrataram no cenário internacional16.

Assim, dentro deste contexto de expansão das fronteiras territoriais estatais e da necessidade de regulação internacional das relações entre os Estados, emana um conjunto de Tratados e Acordos internacionais cujo objetivo é a cooperação entre os povos do mundo, visando proteger o “direito das gentes”. O direito à privacidade também encontra proteção no plano internacional. À luz da Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948, cujo reconhecimento da dignidade inerente a todo ser humano perpassa todo o documento, pode-se citar o art. XII que assim dispõe: “Ninguém será sujeito de interferência na sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência, nem a ataques à sua honra e 15 MAZUOLLI, Valério de Oliveira. Direito internacional público: parte geral. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 9. 16 MAZUOLLI, op. cit., p. 12.

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reputação. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques17”. De igual maneira, a proteção à privacidade está tutelada na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, de 1948, cujo art. V assegura: “Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra os ataques abusivos à sua honra, à sua reputação e à sua vida particular e familiar18”. Desse modo, tal declaração reconhece o direito do indivíduo de se ver protegido em sua intimidade de todo e qualquer ataque abusivo cujo objetivo seja violar sua paz, seu sossego, seu direito de estar só. Cumpre ainda destacar a existência da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, conhecida como Pacto de San José da Costa Rica19, que possui um rol de direitos civis e políticos a assegurar proteção aos direitos essenciais da pessoa humana, dentre eles, a proteção em face da honra, assegurando a inviolabilidade da vida privada, conforme orienta o art. 11. Ademais, faz-se necessário pontuar que, a questão da territorialidade é essencial no tratamento do tema da privacidade versus segurança. Até porque, a existência de “regras mais gerais”, de alcance internacional, poderiam ajudar o Direito a acompanhar, mesmo que minimamente, as mudanças rápidas que ocorrem na era digital. Como se pôde observar, o direito à privacidade é uma garantia internacional pautada no respeito à dignidade humana. Logo, as relações internacionais procuraram criar um código de conduta mundial, explicitando que os direitos humanos fundamentais são universais, devendo ser respeitados em todo o planeta. Até porque, sabe-se que o processo civilizatório mundial enfrentou grandes guerras e líderes ditatoriais que desrespeitavam violentamente os direitos humanos. Com o fim da segunda guerra mundial, nasce a Organização das Nações Unidas (ONU), 17 DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS, proclamada em Paris, em 10/12/1948, pela Resolução 217, da Assembleia-Geral da ONU. Artigo XII. 18 DECLARAÇÃO AMERICANA DOS DIREITOS E DEVERS DO HOMEM, aprovada na IX Conferência Internacional Americana, em Bogotá, em Abril de 1948. 19 CONVENÇÃO AMERICANA SOBRE DIREITOS HUMANOS conhecida como Pacto de San José da Costa Rica. Tal convenção foi assinada em 1969, entrando em vigor internacionalmente em 18 de julho de 1978.

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em 1945, buscando a manutenção da paz e da segurança internacional, além do respeito aos direitos humanos e liberdades fundamentais. Assim, a defesa das liberdades individuais foi conquistada sob duras penas, exigindo muito derramamento de sangue. Outrossim, e, apesar de tudo isso, o que se observa é uma “devassa” sobre aquela, violando garantias e valores supremos como a dignidade humana ao propiciar uma crescente invasão de privacidade. O que se vê é o surgimento, cada vez mais frequente de um grande número de câmeras espalhadas pela cidade, capturando a imagem dos indivíduos nas ruas, shopping centers, academias, faculdades, restaurantes, supermercados, elevadores, postos de gasolina, lojas de departamentos, farmácias, edifícios comerciais e residenciais, sempre justificada pela necessidade de oferecer segurança que o poder público, embora devesse, não consegue fazê-lo. E assim, ainda que “garante” do isolamento e da solidão, o direito à privacidade vai sendo violado, apesar de receber proteção nacional e internacional. 2.3. Meios tecnológicos de invasão da privacidade Certamente que a cobiça pela informação faz parte da humanidade, até porque, o homem é um ser, por si só, curioso. Depois do surgimento dos computadores e da internet, nasceram novas formas a facilitar a coleta de informações detalhadas sobre os indivíduos e seus modos de comportamento. Tal coleta tem sido realizada não só por repartições públicas, mas também por instituições privadas. Todavia, cumpre ressaltar que os inconvenientes decorrentes da invasão de privacidade viabilizada por artifícios tecnológicos são anteriores ao advento da internet, como se conhece hoje. Pelo simples fato de se realizar uma ligação telefônica, as empresas de telecomunicações guardam todas as informações dos contatos (número do telefone, data e hora, tempo de duração da ligação, e outros) Isso explica porque, não raramente os indivíduos são importuna-

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dos, a qualquer hora do dia, por empresas de telemarketing oferecendo insistentemente produtos e serviços, sem que se saiba de onde e como obtiveram os dados pessoais e também os dados de contato20. Num ponto mais grave e, potencialmente mais danoso, corre-se o risco de que chamadas de telefone privadas sejam rastreadas e gravadas clandestinamente através dos chamados grampos. Nesse sentido, serviços de espionagem com gravações telefônicas são oferecidos até mesmo em classificados de jornais locais a preços módicos, evidenciando um flagrante desrespeito à Constituição Federal que repudia, severamente, a invasão da privacidade alheia. Acrescente-se à possibilidade de monitoramento das ligações telefônicas, a mobilidade proporcionada pelos aparelhos celulares, que além de permitir conexão com o mundo a qualquer hora e em qualquer lugar, permite também a identificação da localização, em tempo real, pelas empresas de telecomunicações. Assim, todos os passos do indivíduo são passíveis de ser monitorados. Todos esses meios tecnológicos disponíveis no mercado a facilitar a invasão da privacidade do indivíduo chamam a atenção para um fato típico da revolução tecnológica, a sua ambivalência. Ou seja, se por um lado a tecnologia proporciona conforto e facilidades para resolver quase todas as questões pessoais e profissionais por meio de alguns telefonemas, envio de e-mails ou mesmo utilizando alguns serviços de sites na internet, por outro lado, tais “benesses”, invariavelmente, registram e guardam os “rastros digitais21” dos indivíduos, formando um banco de dados de informações pessoais que, se utilizadas com segundas intenções, podem ocasionar sérios prejuízos e/ou, no mínimo, certo desconforto. 20 No que diz respeito ao uso de informações para fins comerciais, a chamada “mala direta” é um negócio rentável nos EUA, desde a década de 1940. 21 Acerca do registro de informação disponibilizada na internet, leia-se a matéria “rastros digitais são difíceis de eliminar e muitas vezes é preciso desativar o e-mail”, publicada no jornal on-line O Globo, no dia 24/04/2011, disponível no endereço eletrônico: www.oglobo.oglobo.com. Acessado dia 25/04/2011. A matéria relata acerca da dificuldade de se ter apagada informações sobre internautas e suas atividades depois de certo tempo, evidenciando assim, como as “pegadas” digitais deixam seus rastros causando, muitas vezes, prejuízo ou desconforto ao usuário que não consegue, facilmente, retirar suas informações da rede.

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Fenômeno interessante acerca da constante invasão de privacidade de que tem sido vítima os indivíduos, é constatar que, muitas vezes, a própria pessoa é quem contribui e muito, para essa invasão, na medida em que se rende aos meios tecnológicos como ferramenta de trabalho e lazer, disponibilizando um grande volume de informações pessoais na utilização da internet. Assim, tecnologias como o Google para a busca de informações, Orkut para criação de comunidades virtuais e troca de mensagens, Facebook para elaboração de blogs, sem dúvida representam um avanço na forma de comunicação e aproximação de pessoas, mesmo que estando geograficamente separadas. Todavia, tais instrumentos também têm se mostrado excelentes máquinas para espionagem social. Inconscientemente, ao se utilizar estas e outras ferramentas colaborativas, disponibilizando dados pessoais, fotos, relação de familiares e amigos, preferências e opiniões, estas informações cruzadas e analisadas apresentam um perfil completo para eventuais “devassas espiãs” realizadas por “detetives virtuais”. Por outro lado, os instrumentos tecnológicos, além de “seduzir” os indivíduos a disponibilizar dados e notícias na rede de computadores, também os deixam à mercê de recursos subversivos para espionagem oculta através da instauração de vírus, tais como, spywares, keyloggers, cavalos de Tróia, que são programas que se instalam secretamente na máquina dos usuários para capturar dados pessoais (número de cartão de crédito, conta bancária, senhas, entre outros) enviando depois tais informações para seus criadores que podem fazer uso de modo doloso, cujos resultados podem ser catastróficos para as vítimas. Deixando o plano da análise individual e avaliando sob o prisma da coletividade e sob o pretexto de se manter a ordem e segurança nacional, a questão da vigilância eletrônica tem sido amplamente discutida e intensificada pelos governos dos países do mundo inteiro. Assim, a utilização de câmeras de vigia, centrais de escuta telefônica, criação de órgãos de vigilância e inteligência com poder de polícia, acabam por legitimar o discurso de um suposto prejuízo de um bem menor (direito de privacidade) em nome de um bem maior (seguran-

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ça nacional) e, neste contexto, não há limite de poder, investimentos ou recursos. Na China, por exemplo, a abordagem é um tanto ortodoxa, há total controle explícito por parte do governo sobre todas as informações que são divulgadas para a população, desde aquilo que as pessoas podem assistir na televisão, ouvir no rádio e até mesmo acessar via internet. Em países ocidentais (Europa e América), a vigilância eletrônica é mais discreta, mas não menos invasiva. O próprio controle da infraestrutura técnica da internet é realizado de forma monopolizada pelos Estados Unidos, ainda que este tipo de controle seja contestado por países como Brasil, China, Índia e, mais recentemente, pela União Europeia22. Desde os tempos da Guerra Fria, os Estados Unidos têm demonstrado grande interesse em monitorar e controlar a tudo e a todos. George Orwell (2009), em sua obra 1984, materializa tão bem o “sonho” de dominação e controle por parte do Estado. Neste clássico de ficção futurista, até mesmo as mentes e opiniões individuais são vigiadas pelo Big Brother, o “grande irmão” que tudo vê, vigia e controla. Tal monitoramento tem se intensificado após os ataques terroristas sofridos pelos Estados Unidos em 11 de setembro de 2001. Desde então, as agências de inteligência e pesquisa de diversos países, inclusive do Brasil, Inglaterra, Alemanha, França, dentre outros, têm investido, significativamente, em projetos cuja finalidade é prever e identificar possíveis atos lesivos ao país, sobretudo atos criminosos. Os sistemas de informação propostos trabalham principalmente com cruzamento de informações de bases de dados governamentais e também de empresas privadas. O objetivo é monitorar a conduta das pessoas e buscar por padrões comportamentais previamente estabelecidos, que podem supor-se “suspeitos”. Como exemplo deste tipo de tecnologia pode-se citar o sistema Carnivore, desenvolvido pelo Federal Bureau Investigation (FBI) dos Estados Unidos, cuja intenção é inter22 VIEIRA, Tatiana Malta. O direito à privacidade na sociedade da informação: efetividade desse direito fundamental diante dos avanços da tecnologia da informação. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2007, p. 203.

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ceptar e monitorar todos os dados que trafegam pela internet, e-mails, páginas acessadas na rede, sites de comércio eletrônico, redes sociais, nada fica fora da observação deste sistema23. Outro caso de exibição do poder tecnológico do Estado é o Projeto Echelon. Idealizado e operado pelas agências de inteligências de cinco países, sendo eles, os Estados Unidos, Inglaterra, Canadá, Austrália e Nova Zelândia, o projeto tem como propósito capturar e analisar todo tipo de comunicação proveniente de qualquer meio: internet, satélite, telefonia, rádiofrequência e outros24. Cumpre ressaltar que, além da atividade de espionagem, uma das principais intenções do projeto é cruzar todos os tipos de informações, identificar padrões e também elaborar hipóteses, no sentido de identificar possíveis alvos de atividades terroristas. Dentre os projetos de espionagem do mundo digital talvez o mais ambicioso seja o Total Information Awareness System (TIASystem) 25 em desenvolvimento pela Agência de Projetos e Pesquisas Avançadas em Defesa (DARPA) dos Estados Unidos. Trata-se de um sistema que prevê a monitoração de todo tipo de informação de todas as pessoas no mundo inteiro, desde dados corriqueiros (e-mails, ligações telefônicas, viagens, hospedagens, consultas médicas) até informes financeiros (contas bancárias, cartões de crédito), utilização de meios de comunicação, localização geográfica dos indivíduos via satélite por meio do calor corporal, pretendendo-se monitorar todos os sujeitos e, inclusive, prever seus movimentos. Assim, observa-se, portanto, um grande número de sistemas de vigilância eletrônica espalhados pelo mundo, sob o argumento de combate ao terrorismo e ao crime organizado. O futuro dirá se os dados 23 CALHAU, Lélio Braga. Tempos difíceis para as liberdades civis: vigilância sem fronteiras. 15 ago. 2006. Disponível em http://www.novacriminologia.com.br>. Acesso em: 19 mar. 2011. Segundo o autor, o projeto Carnivore já foi alvo de investigação na justiça norte-americana, por movimentação da Electronic Privacy Information Center, entidade defensora de direitos civis. 24 Ibid. 25 Ibid. Sobre o projeto TIASystems, o autor relata que este já colocou em alerta os ativistas das liberdades civis nos Estados Unidos.

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coletados através de todos esses sistemas de vigia são de fato utilizados pelo fim nobre pelo qual foram criados. Além dos projetos de monitoração por parte de agências governamentais, está-se sujeito também ao controle das corporações privadas. Realizar tarefas relativamente simples, tais como compras em lojas ou ambientes virtuais utilizando cartões de crédito, abre uma infinidade de possibilidades para que preferências e informes particulares passem a ser monitorados e manipulados por terceiros. Ao acessar sites de compras como, por exemplo, www.amazon. com, www.americanas.com.br, www.submarino.com.br, dentre outros, o simples clique sobre um dos produtos à venda traz informações sobre outros usuários, como, por exemplo, avaliação e comentários sobre os produtos, sugestão de aquisição baseado em compras anteriores e também no histórico de mercadorias de outros usuários que compraram aquele produto ora analisado. Por outro lado, os usuários de sistemas de informação também passaram a figurar nas campanhas de marketing digital de massa, recebendo diariamente e-mails com promoções. Já num aspecto mais nocivo de toda essa invasão da privacidade, alguns sites se utilizam do subterfúgio de instalação de programas ou arquivos no computador do usuário sem sua permissão, cuja finalidade é monitorar e até mesmo capturar dados confidenciais, espalhando, assim, um conjunto de “pragas” espiãs a vulnerabilizar a troca de informações no mundo virtual. Dessa forma, muitos são os meios tecnológicos de invasão de privacidade existentes na atualidade. A maioria deles nasce com um fim nobre, com propósitos de combate ao terrorismo e ao crime organizado como o tráfico de drogas e a pedofilia infantil. Logo, são objetivos que justificam, em princípio, a perda da privacidade individual em benefício de um bem coletivo maior. O problema é que, geralmente, o direito à privacidade tem sido cada vez mais mitigado, aparecendo como uma exceção e não como a regra, tal qual assegura o Texto Constitucional. Nas palavras de SILVA: “O intenso desenvolvimento da complexa rede de fichários eletrônicos,

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especialmente sobre dados pessoais, constitui poderosa ameaça à privacidade das pessoas. O amplo sistema de informações computadorizadas gera um processo de esquadrinhamento das pessoas, que ficam com sua individualidade inteiramente devassada” (2007)26. E, assim, com o discurso de segurança nacional ou local, o direito à privacidade tem sido violado, através do surgimento de um grande número de aparatos tecnológicos usados para a coleta de informes pessoais e posterior cruzamento de dados, colocando o indivíduo como um suspeito em potencial. Pouca reflexão por parte da sociedade tem ocorrido sobre essa contínua violação de um direito fundamental tão relevante como o do respeito à intimidade e privacidade individual, tutelado constitucional e até internacionalmente, evidenciando, assim, sua importância dentro do plano jurídico e social. A falta de uma análise mais crítica acerca dessas constantes práticas invasivas do cotidiano pessoal tem levado os indivíduos a cada vez mais abrirem mão desse direito, expondo-se livremente nas redes sociais, disponibilizando informações sobre familiares, endereço, relações profissionais, fotografias, pouco se importando com possíveis consequências maléficas para seu futuro sobre toda essa abertura de sua vida íntima. Todo esse deslumbramento com a inovação da tecnologia tem revolucionado a concepção de vida das pessoas que, nas palavras de Vieira (2007) “[...] deixa-se cativar pela máquina que oferece perspectivas de interação jamais experimentadas, expondo-se, de outro lado, cada vez mais em sua intimidade e vida privada diante de novos recursos computacionais27”. Dessa forma, seja através de uma devassa coletiva fazendo uso de meios tecnológicos implementados pelos governos ou entidades privadas, ou por meio da exposição desenfreada de aspectos íntimos da vida nas redes sociais, o fato é que a garantia à privacidade tem sido cada vez mais mitigada, negando assim princípios constitucionais importantes, 26 SILVA, op. cit., p. 209. 27 VIEIRA, op. cit., p. 21.

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como o da dignidade da pessoa humana, que, em sua essência, objetiva proteger a pessoa por ela mesma, reconhecendo o valor do ser humano em si mesmo. Logo, o direito à privacidade, como expressão deste princípio, necessita ser assegurado como um mínimo invulnerável28, o que, nos dias atuais, tem se mostrado como algo de difícil alcance. 2.4. “Sorria: você está sendo filmado” A frase acima tem sido encontrada de forma cada vez mais recorrente nos mais diferentes espaços da cidade, seja ao ar livre ou mesmo em ambientes fechados, fruto da revolução tecnológica das câmeras digitais. Esse surgimento de câmeras filmadoras espalhadas pelos mais distintos recintos tem violado também o direito à imagem do indivíduo, que é convidado a “sorrir”, pois está sendo filmado, ficando à mercê de um aparato tecnológico pouco fiscalizado, sem saber o destino e o uso de tais imagens, cerceando, assim, seu direito à intimidade e à privacidade em última análise. A frase “sorria: você está sendo filmado” é encontrada quando se caminha pelas vias públicas, nos veículos de transporte coletivo, nos shoppings centers, nas lojas de departamento, nos elevadores, nos edifícios comerciais e residenciais e em tantos outros espaços de uso coletivo e/ou individual. Nesses lugares, o indivíduo está sendo observado por olhos eletrônicos, cujo discurso da manutenção da segurança é o principal argumento a justificar o incômodo de toda essa vigilância, de modo que, involuntária e inconscientemente, abdica-se de dois direitos fundamentais: o direito à privacidade e direito de imagem. O fato é que, embora a prestação da segurança pública seja dever do Estado, conforme mandamento constitucional evidenciado no art. 144, da Carga Magna, o discurso de que os cidadãos estarão mais protegidos sendo “vigiados” por câmeras, faz com que o indivíduo, consciente ou inconscientemente, terceirize sua intimidade em prol de segurança 28 Ibid., p. 22.

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coletiva nem sempre efetivada de fato pelas autoridades que deveriam prestá-la sem exigir do cidadão a perda de um direito tão fundamental como o da privacidade. Como já mencionado, uma das características da revolução tecnológica que se presencia é sua ambivalência. Assim, obviamente que a instalação de todo esse aparato capaz de capturar a imagem das pessoas também tem seu lado positivo. Pode-se citar, por exemplo, a solução de crimes cuja evidência principal foi colhida através das imagens de circuito fechado de TV. Em alguns casos, a simples menção de que o ambiente está sendo monitorado é suficiente para reprimir crimes de menor potencial ofensivo. Esse é um ponto positivo de toda essa vigilância eletrônica e o seu discurso reforça cada vez mais a sua recorrente aplicação e consequente disposição dos indivíduos a abrirem mão, voluntariamente e com pouca reflexão, de um direito fundamental como o da privacidade. No entanto, não são raros também os casos de espionagem e abuso com relação ao uso deste tipo de aparato tecnológico, como, por exemplo, divulgação de vídeos e imagens gravadas em locais não convencionais, tais como, vestiários, praias, sanitários, dentre outros. Uma breve busca pela internet utilizando os termos “microcâmeras, câmeras espiãs, câmeras sem fio” leva-se ao mundo da espionagem digital. Dessa forma, câmeras embutidas em canetas, relógios, bichos de pelúcia, são encontrados a preços populares, disponíveis a qualquer indivíduo que pode adquirir tais equipamentos e fazer indiscriminado uso de tal tecnologia. É possível também encontrar dispositivos de contramedida, como detectores de câmera escondida, detectores de microfone, detectores de grampo telefônico, programas para criptografia de arquivos e mensagens, iniciando, assim, uma “guerra eletrônica” sem fronteiras. Dentre algumas das tecnologias que revolucionou a monitoração por meio de câmeras, destaca-se o Google Earth, mecanismo de técnica avançada que utiliza fotos de satélites para mapear e reconstruir a superfície da Terra.

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Segundo essa engenharia, as imagens podem chegar a um nível de detalhe o suficiente para que se possam identificar cidades, bairros e até mesmo residências em sua localização exata. Utilizando-se dessa ferramenta é possível ainda visualizar o mapa terrestre em três dimensões (3D) e é livre para todos que tenham acesso à internet. Por esse motivo, o governo de diversos países contestou o uso de tal instrumento, pois poderia vulnerabilizar potenciais alvos de ataques terroristas, tais como bases militares, usinas nucleares e regiões de maior concentração populacional. Todavia, apesar de muitas críticas, os criadores desse mecanismo continuaram em sua revolução, através da qual é possível traçar as possíveis rotas entre dois endereços, inclusive com sugestão do melhor caminho a ser percorrido, seja a pé, de carro ou mesmo utilizando transporte coletivo. A última grande polêmica do Google foi o lançamento do Google Street View, ferramenta na qual é possível visualizar imagens reais e em alta definição de ambientes públicos, tais como, ruas, praças, avenidas, fachadas de edifícios, numa perspectiva de 360o, tecnologia que consiste em implantar câmeras 360o de alta definição em veículos que percorrem todas as ruas de determinada cidade. Essas imagens são agregadas ao Google Earth e Google Maps, de modo que é possível visualizar o mapa da região e também fotos do local sob todos os ângulos. Assim, é possível conhecer os detalhes de determinado local sem nunca ter estado lá. Como ferramenta para turismo, planejamento de viagens e diversão é excelente, mas também apresenta caráter ambivalente. Isso porque, em função de utilizar câmeras de alta definição e filmar 360o, em alguns casos, o equipamento consegue filmar dentro da residência das pessoas caso portas e janelas estejam abertas, o que tem causado certo desconforto para alguns. Notícias dizem que em algumas cidades de diversos países os próprios moradores têm obstaculizado a passagem dos veículos do Google Street View. Em outros casos, o próprio governo do país tem proibido, por lei, que imagens de locais públicos sejam publicadas, via internet,

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como é o caso, por exemplo, da China, Alemanha, Grécia, Suíça, Áustria, Portugal, dentre outros. Num caso polêmico e sui generis envolvendo a ferramenta Google Street View, na Inglaterra, uma mãe descobriu a foto de seu filho de três anos nu. No momento em que o veículo do site filmava a rua, seu filho brincava sem roupas no quintal da casa da avó, em Wallkden, Manchester. As cenas foram parar na internet. Contatada pela mãe do garoto, o Google retirou o conteúdo29. Em outros casos, pessoas passaram a se reconhecer na internet pesquisando na ferramenta Google Street View. A partir daí, a empresa, por precaução, passou a desfocar o rosto de todos os indivíduos que figuravam nas imagens, evitando, assim, que alguém pudesse ser identificado e se sentisse constrangido. Todavia, esse desfocamento é, por demais, suave. Analisando com cuidado, reconhece-se, perfeitamente, o personagem da foto. Pode-se citar, como exemplo, matéria publicada em site na qual descreve onze flagrantes no Google Street View. Dentre esses “flagras”, observa-se uma menina levando um tombo em uma rua, um australiano bêbado caído na porta de uma casa, dentre tantas outras, algumas bastante constrangedoras30. Como se vê, o Google Street View é uma ferramenta poderosíssima. Seus benefícios ou danos irão depender da forma como as imagens capturadas serão utilizadas. Não há dúvida de que o simples fato de ter sua rua filmada, em perspectiva 360o, e disponibilizada na internet é preocupante. Até porque, tais imagens, aliadas a outras informações pessoais que podem ser acessadas e cruzadas por meio da própria internet podem ser utilizadas para eventuais planos de espionagem e ações criminosas, como, por exemplo, assaltos, sequestros e invasões. Interessante ressaltar, também, a proliferação da chamada “cultura da vigilância”. Uma nova forma de “espionar” os indivíduos nas mais 29 DAUER, Nataly. Mãe descobre foto do filho de três anos sem roupa no google street view”. Disponível em: http://www.geek.com.br/posts/13367, em 23.set. 2010. Acesso dia 26. abr. 2011. Na matéria, a mãe inglesa temia que pedófilos encontrassem a foto de seu filho e pudessem, de alguma forma, provocar mal à criança. 30 SILVA, Márcio. “11 flagras no google street view, em 23. ago. 2010. Disponível em: www.meiaboca.com/2010/08/11_ flagras _ no _ google _ street _ view. Acesso em: 09. maio. 2011.

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diversas situações relembrando a famosa narrativa de George Orwell (2009)31, de 1984, no qual o “grande irmão” vigiava a atividades de todos os membros da sociedade, controlando e punindo os dissidentes daquele regime. Nesse contexto, vários são os exemplos do uso de câmeras por parte do governo e indivíduos visando “vigiar” pessoas e situações. No carnaval carioca, em 2011, por exemplo, foi noticiado que a Prefeitura do Rio de Janeiro usaria “carro espião” para fiscalizar os blocos carnavalescos, punindo excessos dos foliões32. De igual modo foi noticiado que um engenheiro havia criado um Big Brother das obras do estádio do Clube do Palmeiras, a Arena Palestra. Assim, com um equipamento de filmagem parado em um dos prédios próximos do estádio que transmite as imagens, em tempo real, o palmeirense podia acompanhar, ao vivo, como estava o andamento das obras no local33. Tais narrativas evidenciam a figura do panotismo, nos termos da análise de Michel Foucault (2008), ou seja, o surgimento de um esquema de vigilância de forma a limitar a privacidade dos indivíduos, disciplinando seu comportamento. Nas palavras do autor, “a vigilância torna-se um operador econômico decisivo, na medida em que é, ao mesmo tempo, uma peça interna no aparelho de produção e uma engrenagem específica do poder disciplinar34”. Assim, o modelo de vigilância narrada por Foucault está cada vez mais vivo nos tempos atuais. E, esclarece Vieira (2007), “panóptico da era da informação abrange todo aquele que se coloca em situação de supremacia, limitando a privacidade e autodeterminação dos subjugados35”, ou seja, pode ser o Estado, o indivíduo ou até mesmo empresas 31 ORWELL, George. op. cit. 32 Matéria veiculada no Programa Fantástico, da Rede Globo no dia 03 de março de 2011. O texto da matéria pode ser encontrado no site: www.globo.com/fantástico, com o título: “Prefeitura do Rio usa ‘carro espião’ para fiscalizar blocos”. Acesso: 14. mar. 2011. 33 PRATES, Renan. Engenheiro cria ‘big brother’ das obras do Palestra e fala em utilidade pública. Disponível em: www.uol.com.br/.../engenheiro-cria-big-brother-das-obras-do-Palestra. Em 01.mar. 2011. Acesso: 10. mar. 2011. 34 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 35ª ed. Petrópolis: Vozes, 2008, p.147. 35 VIEIRA, op. cit., p. 198.

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a limitar a privacidade dos cidadãos, do usuário das redes sociais ou dos consumidores e empregados, respectivamente. Em sua fase final de vida, Foucault cunha o termo, Governmentality que em tradução livre seria “governamentalidade” compreendida como um conjunto formado por Instituições, procedimentos, análises e reflexões, cálculos e táticas que permitem o exercício desse muito específico, apesar de muito complexo, poder que tem a população como alvo, a economia política como seu principal saber e os aparatos de segurança como um instrumento técnico essencial” (2004, p.108)36.

Essa racionalização de governo, concebida como governamentalidade, não tem por escopo somente a preservação do Estado dentro de uma ordem geral mas sobretudo a preservação, manutenção e desenvolvimento de uma determinada relação de forças, garantindo o desenvolvimento da economia dentro do capitalismo e prevenindo e reprimindo a “desordem, irregularidade, ilegalidade e delinquência” (2004, p.353). E essa racionalização pressupõe o desenvolvimento da capacidade analítica e conhecimentos que foram construídos pelo Estado por meio do aprimoramento da ‘ciência do Estado’ ou ‘estatística’ (p.101) e, por extensão, pode-se afirmar que os cálculos logaritmos desenvolvidos por meio dos aparatos de surveillance estão no cerne das estratégias ou do “como”, parafraseando Foucault, o poder se opera na atualidade. 3. Considerações Diante do exposto, pode-se concluir que o avanço dos meios tecnológicos capazes de invadir a privacidade dos indivíduos é um processo que tende a se expandir, revelando-se, uma marca dos tempos da modernidade. Assim, existe um mundo novo a inquietar os defensores 36 Tradução das autoras.

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da dignidade da pessoa humana, cuja violação tem sido recorrente com a constante intromissão e devassa dos meios de tecnologia. Muito se questiona acerca dos caminhos que o avanço das técnicas pode imprimir à humanidade. Todavia, a sociedade pouco tem discutido sobre as consequências maléficas que todas as formas tecnológicas de invasão da privacidade podem produzir. Apesar de o direito à privacidade ser mandamento constitucional e encontrar amparo na legislação internacional, este tem sido violado constantemente em razão de um discurso em prol de segurança coletiva. Assim, faz-se necessário implementar medidas administrativas e legislativas a regular e garantir a maior efetividade desse direito fundamental. É certo que o direito à privacidade tende a ser redefinido diante da revolução tecnológica presente na sociedade moderna e, tendo em vista a mitigação cada vez maior de tão importante garantia constitucional, é de se esperar que a humanidade saiba utilizar as inovações trazidas pela era da informática em propósitos ilustres, coibindo a prática de crimes como extorsão, pedofilia, pornografia infantil, prevenindo ataques terroristas cruéis e tantos outros propósitos a enobrecer a utilização das ferramentas do mundo digital. Resta esperar, ainda, que tais ferramentas digitais sejam utilizadas respeitando o indivíduo como ser valoroso em si mesmo. Preservando, assim, sua privacidade e intimidade que só pode ser violada dentro dos parâmetros constitucionais de respeito à dignidade da pessoa humana. Novas experiências talvez possam imprimir o início de uma nova história. Referências AGRA, Walber de Moura. Direitos Sociais. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva; MENDES, Gilmar Ferreira; NASCIMENTO, Carlos Valder do. Tratado de direito constitucional. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 782-844. CALHAU, Lélio Braga. Tempos difíceis para as liberdades civis: vigi-

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Alline Neves de Assis1 Saulo de Oliveira Pinto Coelho2

1. Introdução Consoante a Constituição Federal de 1988 e a correlata interpretação que se vem consolidando, o Estado brasileiro contemporâneo teria a realização da dignidade da pessoa humana como um fundamento central que imporia a convergência de todas as ações, omissões, atividades, projetos, programas e políticas estatais no sentido da promoção dos direitos humano-fundamentais. Nessa ótica, o Estado não seria um fim em si mesmo, mas um instrumento de garantia e efetivação dos direitos fundamentais da população. Nesse sentido, quanto às ações estatais, especificamente no que 1 Mestre em Direitos Humanos pela Universidade Federal de Goiás e especialista em Direito Constitucional e Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás. Servidora do Tribunal de Contas dos Municípios do Estado de Goiás. E-mail: [email protected]. 2

Mestre e Doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professor da Facudade de Dieito da Universidade Federal de Goiás – UFG. Coordenador do Programa de PósGraduação (Mestrado Profissional) em Direito e Políticas Públicas da UFG; e professor do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Direitos Humanos da UFG.

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tange às políticas públicas, existe uma margem de discricionariedade ou liberdade para o governante e para o gestor, que o permite escolher, diante do caso concreto e considerando critérios de oportunidade, conveniência, razoabilidade e proporcionalidade, aquilo que melhor atenda, supostamente, ao interesse social, que deveria ser compreendido como promoção da dignidade da pessoa humana. Entretanto, ao observar os problemas da sociedade brasileira contemporânea, é fácil perceber que a realidade das práticas estatais e governamentais não condiz com a linguagem constitucional que, em teoria, as fundamenta. Há um desencontro entre discurso e prática, inicialmente estruturado pela própria abstração construída no discurso do positivismo formal-abstrato (estruturado pré-1988, mas que deixou marcas pós-1988), que facilitou a construção de práticas concretas que (devido ao hiato existente entre a realidade e a discussão construída em abstrato na dogmática jurídica brasileira) não sofrem muito constrangimento linguístico, se não condizem com o discurso abstrato da dogmática constitucional. Esse estado de coisas, nas últimas décadas, sofre uma retroalimentação por um ensino jurídico massificado, mercadológico e subserviente às lógicas dos concursos públicos; em suma, pasteurizado, na expressão de Streck (2014, p. 83-108). Esse ensino, quando nega o positivismo formal -abstrato, acaba por cair em outra vala comum, igualmente rasa e problemática, a dos moralismos jurídicos e dos jusativismos extrapolantes (Coelho, 2015, p. 12). Assim, nesse contexto, o presente estudo busca traçar um quadro explicativo acerca das características atuais do Direito Público contemporâneo (expressão jurídica do Estado Democrático e Social de Direito), em seus três elementos conceituais estruturadores básicos: o Estado Pós-Social, a Democracia participativa e os Direitos humano-fundamentais. Isto, buscando evidenciar as distâncias entre esses conceitos, na sua teorização recebida no debate constitucional brasileiro atual, e o ser-aí da experiência constitucional brasileira. Assim, busca-se explicar melhor os termos desse paradoxo entre conceito e realidade na linguagem

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constitucional (hiato que infelizmente a linguagem constitucional nacional não vem conseguindo superar). Pretendeu-se trabalhar com o conceito de Estado Democrático (e Social) de Direito, desmembrando-o em Estado, Democracia e Direitos humanos-fundamentais, estabelecendo uma comparação entre a teoria e a realidade das referidas categorias, com o escopo de demonstrar a existência de um ambiente linguístico favorável ao comportamento desvirtuado dos governantes no cumprimento de suas funções ante a ineficácia dos dispositivos jurídico-constitucionais em limitar a atuação estatal. O foco central foi analisar em que medida o próprio sistema político, na figura do seu preceito fundamental – o Estado Democrático e Social de Direito – possui uma função essencialmente simbólica, que, enquanto tal, é ambígua e pode funcionar tanto para construir práticas de transformação social, quanto para justificar a perpetuação do status quo mediante a instrumentalização da própria noção de Estado Democrático de Direito. Para tanto, foi utilizado como referencial teórico, dentre outros, o conceito de Estado Poiético, de Joaquim Carlos Salgado, em que há a corrupção da finalidade estatal, na qual o ser humano e a promoção igualitária de sua dignidade deixa de ser o fim último do Estado e se torna um instrumento discursivo na promoção de diversos outros interesses econômicos e de poder, produzindo-se um constitucionalismo poiético e do espetáculo. 2. A distorção da razão-de-ser do estado democrático de direito brasileiro A sociedade pode ser definida como um sistema de necessidades, formado a partir da conjugação dos interesses e anseios de seus integrantes, incluídos aí os indivíduos, os grupos e as classes sociais. Para organizar, escalonar e implementar soluções para tais necessidades sociais é que surge o Estado, instituição de cunho coletivo, formado por membros da sociedade, com poder para legitimamente tomar decisões

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em nome da coletividade e autoridade para submeter as vontades individuais a sua própria, objetivando uma finalidade específica. Nesse sentido, não há um Estado separado da sociedade, pois ele é a própria sociedade politicamente organizada, ou uma organização política da sociedade (SALGADO, 2002), cujo objetivo é “criar condições para a consecução dos fins particulares de seus membros, ocupando-se da totalidade das ações humanas, coordenando-as em função de um fim comum” (DALLARI, 2001, p. 48). Assim, a finalidade estatal é definida pela própria sociedade, segundo valores ou normas, e imposta à coletividade mediante o poder político, o qual detém, privativamente, a força necessária para manutenção da ordem e “impõe, nos limites da lei, a vontade de quem o exerce, atuando em nome do povo” (PINTO, 2010, p. 207). A política, portanto, é a atividade ou conjunto de atividades do Estado, com a participação de agentes públicos e privados, que tem o condão de solucionar os conflitos sociais mediante a definição de metas, planos e objetivos, e da tomada de decisão, que possui poder ou força necessária para submeter as vontades dos integrantes da sociedade à finalidade do Estado. Porém, o poder político, entendido como elemento essencial na relação comando-obediência existente entre governantes e governados e como energia que move os indivíduos e coletividades para a realização de suas finalidades (MOREIRA NETO, 2006), não é ilimitado e irrestrito. Nas democracias ocidentais contemporâneas, a atuação estatal é limitada pelos princípios da legalidade e da legitimidade, em que a legalidade exprime, basicamente, a observância das leis e do Direito e a legitimidade engloba a manifestação do consentimento e da obediência por parte dos indivíduos e o respeito à soberania popular (BONAVIDES, 2014). No Brasil, essa limitação ao poder político está constitucionalmente positivada na figura do Estado Democrático de Direito, princípio estruturante do nosso sistema político, em que o Estado pode ser compreendido como o poder instituído, a democracia,

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como a origem do poder e o direito, como instrumento de limitação do poder. É claro que a separação aqui demonstrada é apenas para fins didáticos, visto que os institutos mencionados são construções temporais, sendo impossível, empiricamente, fazer uma separação rígida entre eles. Nesse contexto, considerando a tradicional compreensão do conceito de Estado Democrático de Direito, pode-se afirmar, de maneira sucinta, que a finalidade conceitual e discursiva do Estado brasileiro, prevista nas normas jurídico-constitucionais, é a proteção e promoção da dignidade da pessoa humana, através da atuação estatal fundada na conjugação entre o princípio democrático e os direitos humano-fundamentais. Entretanto, ao analisarmos a realidade brasileira, encontramos inúmeras contradições entre o que determina a teoria e que acontece na prática político-administrativa, especialmente no âmbito da Administração Pública. Nesse texto, pretende-se analisar algumas dessas contradições e como elas possibilitam o desvirtuamento das ações dos governantes, que menosprezam a proteção e promoção dos direitos humano-fundamentais e priorizam interesses particulares, principalmente os que se referem a interesses político-partidários. Para tanto, parte-se do próprio conceito de Estado Democrático de Direito e seus três elementos (ou momentos) básicos: o Estado Pós-Social: a Democracia participativa, e dos Direitos humano-fundamentais. Encara-se esses elementos enquanto fundamento discursivo do sistema jurídico, mas que, empiricamente, encontram-se totalmente desvirtuados, funcionando mais como uma semântica encobridora das patologias do Estado contemporâneo, utilizada para dar uma roupagem de adequação constitucional às ações governamentais, do que como uma garantia fundamental da população.

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3. ESTADO PÓS-SOCIAL E ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO: ENTRE CONCEITO E REALIDADE 3.1 Estado Social de Direito: antecedentes históricos e fundamentos Ao longo do desenvolvimento dos estudos acerca da sociedade, os aspectos relativos ao surgimento, formação, caracterização e função do Estado sofreram várias modificações, se adequando às teorias e ideologias predominantes em um dado momento histórico. Com Max Weber, o conceito de Estado passa a se relacionar ao monopólio do uso legítimo da força física e da violência como demonstração de poder, mas legitimado pela legalidade e pela burocracia. Nesse contexto, o Estado é definido como “uma relação de domínio de homens sobre homens, baseada no instrumento da força legítima” (LIMA in GIOVANNI; NOGUEIRA, 2015, p. 327), em que a submissão dos dominados à autoridade estatal se torna um pressuposto de sua própria existência. Essa submissão, nos Estados pós-revolucionários, seria estruturada através de um critério legal-racional, mediante a legitimação do exercício da autoridade por regras e normas racionalmente elaboradas. Também nas primeiras décadas do século XX, Antônio Gramsci fez uma releitura do conceito de Estado marxista e adicionou às críticas conceituais do fenômeno estatal as características do capitalismo industrial, principalmente: i) o surgimento da grande massa como ator político e a dimensão do discurso e do imaginário como fatores determinantes de legitimação; e ii) a configuração de aspecto intervencionista do Estado ocidental, no sentido do dever de não apenas se abster, mas também atuar nas relações sociais para promover direitos e estabilizar, pela garantia de uma segurança social mínima, as relações de poder. O Estado passa a ser definido, então, como o “complexo de atividades práticas e teóricas com as quais a classe dirigente não só justifica e mantém seu domínio, mas consegue obter o consenso ativo dos governado”, cuja principal função é elevar a grande massa, mediante sua própria atuação,

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a um determinado nível cultural e moral (cf. GIOVANNI; NOGUEIRA, 2015, p. 329). A partir dessas perspectivas, é possível perceber toda complexidade e densidade semântica do conceito de Estado de Direito na primeira metade do século XX, que, de maneira geral, pode ser analisado sob três perspectivas que se articulam: 1) O Estado pode ser considerado um sistema institucional utilizado para administrar, gerir, regular e dirigir os interesses das sociedades contemporâneas, a partir da interpelação das demandas, anseios e necessidades de seus integrantes; nesse aspecto, o Estado relaciona-se com governo e sistema político, tornando-se, dessa maneira, um instrumento de governo e de gestão. 2) O Estado é entendido como agente e espaço de dominação, de exercício de poder e de autoridade, como associação política que monopoliza o uso legítimo da força e da violência pela técnica da burocracia e da propaganda, nelas incluindo-se uma expectativa de satisfação de direitos; e 3) O Estado passa a ser compreendido como ambiente ético e sociocultural delimitado por regras, valores e costumes, em que são estabelecidas as bases de pertencimento e reciprocidade entre os cidadãos (cf. GIOVANNI; NOGUEIRA, 2015). A primeira versão do Estado Moderno foi o Estado absolutista, que tinha como base de sustentação do poder monárquico a ideia de que o poder dos reis derivava de algo divino, transcendental, o que significava a completa autonomia do monarca e a impossibilidade de controle ou limitação por nenhum outro poder ou instituição, concretizando o que Hobbes denominou de Leviatã (STRECK; DE MORAIS, 2004). O Estado Absolutista pode ser definido como única e unitária estrutura organizativa formal da vida associada e autêntico aparelho da gestão do poder, em que há a utilização de processos cada vez mais próprios e definidos e o exercício monopolístico do poder por parte do monarca, o qual é capaz de estabelecer, nos casos controversos, de que parte está o direito a partir de regras preestabelecidas, ou de decidir, em casos de emergência, segundo os valores e as crenças da época, visando instaurar e manter a ordem mediante a pacificação interna do país, a

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eliminação dos conflitos sociais e a normalização das relações de força nos planos da decisão e da administração (cf. SCHIERA, 1998). Isso possibilitou a tomada de consciência da identidade individual e da característica comum de seus interesses privados e, consequentemente, a organização de tais interesses através de uma atitude sempre menos passiva e mais crítica em relação à gestão estatal por parte do monarca. Sobre essa base é que se formou a sociedade civil moderna, compreendida como conjunto organizado dos interesses privados de seus integrantes, e, dentro dela, “a primordial diferenciação em classes, na base de uma dominação sempre menos contrastada conseguida pelo novo modo de produção capitalista” (SCHIERA, 1998, p. 429). Contudo, ao mesmo tempo em que no Estado Moderno, em suas origens absolutistas, havia uma centralização e unificação do poder na figura do príncipe, ele dependia diretamente das classes sociais da sociedade para o seu funcionamento, especialmente por motivos financeiros, resultando no descontentamento dessas classes, especialmente da burguesia, por sustentarem financeiramente o Estado e a nobreza, mas não possuírem nenhum poder político. Foram justamente os conflitos causados por esse embate entre classes sociais que possibilitaram o surgimento da segunda versão do Estado Moderno – o Estado Liberal. O Estado Liberal, influenciado pela valorização do indivíduo na ordem social e inaugurado na Revolução Francesa em 1789 a partir da luta burguesa contra o absolutismo, se caracterizava por “uma ideologia de princípios individualistas, que defendia garantias contra os poderes arbitrários, direitos humanos, liberdade, mobilidade social e, principalmente, a limitação da área de ingerência do Estado, entre outras ideias” (STRECK; DE MORAIS, 2004, p. 49). Indubitavelmente, o Estado Liberal foi um dos modelos que mais colaborou para uma efetiva mudança na relação entre governantes e governados. Por isso, definir o liberalismo, mesmo sendo uma tarefa bem difícil por sua complexidade e historicidade, constitui tarefa fundamental para compreendermos a situação política atual. Basicamente, o liberalismo pode ser definido a partir de três núcleos distintos - moral,

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político e econômico – que se mantiveram intactos durante todas as fases de seu desenvolvimento. No núcleo moral, encontram-se as liberdades pessoais, fundadas na garantia de proteção individual contra o governo, e sociais, que correspondem às denominadas oportunidades de mobilidade social, “sendo que todos têm a possibilidade de alcançar uma posição na sociedade compatível com suas potencialidades” (STRECK; DE MORAIS, 2004, p. 53). O núcleo político apresenta-se sob quatro aspectos: 1) consentimento individual, fonte da autoridade política e dos poderes do Estado; 2) representação, em que os competentes para decidir são eleitos pelo povo, conforme determinados requisitos pré-estabelecidos; 3) constitucionalismo, definido como o respeito a um documento fundamental que delimitasse o poder político e orientasse a atividade estatal; 4) soberania popular, em que a fonte do poder político é a vontade geral, normalmente externada por meio de representantes eleitos. E, por fim, o núcleo econômico relaciona-se com o modelo de economia liberal, cujos pilares são a propriedade privada e o mercado livre de controles estatais e com “a ideia dos direitos econômicos e de propriedade, individualismo econômico ou sistema de livre empresa ou capitalismo” (STRECK; DE MORAIS, 2004, p. 55). Assim, o Estado Liberal de Direito pode ser caracterizado por uma estância de limitação jurídico-legal negativa, em que o dever estatal era estabelecer “instrumentos jurídicos que assegurassem o livre desenvolvimento das pretensões individuais, ao lado das restrições impostas à sua atuação positiva”. (STRECK; DE MORAIS, 2004, p. 91). 3.1.1 O papel das ideias sociais No final do século XIX, impulsionada pelo crescimento das cidades e o surgimento da grande massa proletária urbana, houve uma mudança significativa no pensamento liberal, com a substituição do minimalismo estatal, atuante apenas para a segurança individual, por

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uma visão mais abrangente, em que o Estado teria o papel de remover os obstáculos para o “autodesenvolvimento dos homens, pois com um maior número de indivíduos podendo usufruir as mais altas liberdades, estar-se-ia garantindo efetivamente o cerne liberal, qual seja: a liberdade individual” (STRECK; DE MORAIS, 2004, p. 57). Entretanto, essa mudança do pensamento liberal só causou mudanças estruturais no Estado após a Segunda Guerra Mundial, período em que houve um aumento progressivo da complexidade das relações sociais devido à intensificação da urbanização e da industrialização e o avanço da democratização política e social, com a valorização dos sindicatos e dos movimentos sociais, além do sufrágio universal e da expansão dos direitos sociais. Nesse contexto, o Estado se expande e se torna o principal instrumento de atendimento às demandas cada vez mais crescentes e diversificadas da sociedade. Dessa forma, o Estado passa de figura passiva na ordem social, interferindo apenas quando era estritamente necessário, para uma figura ativa, com a obrigação não apenas de garantir direitos, como também de provê-los. Assim nasce a ideia de justiça social, na qual se preconiza a igualdade de oportunidades e a solidariedade, e surge uma terceira versão do Estado: o Welfare State ou Estado do bem-estar social. O Estado do bem-estar social foi estabelecido entre 1940-1960, com o intuito de recuperar o vigor e a capacidade de expansão dos países capitalistas após a tensão social, econômica e política do período entre guerras, podendo ser definido como “aquele que garante tipos mínimos de renda, alimentação, saúde, habitação, educação, assegurados a todo cidadão, não como caridade, mas como direito político” (STRECK; DE MORAIS, 2004, p. 71), Assim, o desenvolvimento do Estado de bem-estar social representou uma potencial reaproximação entre a sociedade (ou mercado, ou esfera privada) e o Estado (ou política, ou esfera pública) com o objetivo de minimizar os problemas sociais existentes. Como resultados do desenvolvimento desse modelo de Estado, podem ser elencados: a evolução dos canais que historicamente permitiram a comunicação entre

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a esfera pública e privada, especialmente dos meios de comunicação, o aumento da dependência financeira do Estado em relação à sociedade, haja vista a necessidade de recursos financeiros para a resolução dos problemas sociais, o aumento da cota do produto nacional bruto destinada à despesa pública, a remodelação das estruturas administrativas voltadas para os serviços sociais, as quais se tornaram mais vastas e complexas, o crescimento em número e importância política da classe ocupacional dos “profissionais do Welfare”, o aperfeiçoamento das técnicas da descoberta e avaliação das necessidades sociais e o desenvolvimento de conhecimento relativo ao impacto das várias formas de assistência na redistribuição da renda e na estratificação social (SCHIERA, 1998). Uma das principais mudanças nesse novo modelo, portanto, foi a conversão do Estado em instrumento de formulação, regulação e organização de políticas públicas, as quais se tornaram cada vez mais permeadas por uma diversidade de atores e interesses, ante as novas formas de representação política presentes no seio da sociedade, o que exigiu uma amplitude cada vez maior de conhecimentos técnicos por parte dos organismos e instituições para atender à pluralidade de demandas. Com a transformação do papel do Estado, também se reformula a função do direito na sociedade, substituindo-se a ideia de Estado Liberal de Direito, em que se prioriza o Estado mínimo e a liberdade individual, por Estado Social de Direito, na qual o Estado abandona a passividade e se torna um agente ativo na sociedade, visando o bem -estar e o desenvolvimento social. Assim, o Direito preenche-se com um conteúdo social, não prevendo apenas direitos capazes de limitar o Estado, mas também direitos às prestações do Estado (STRECK; DE MORAIS, 2004). Por certo tempo e principalmente nos países considerados desenvolvidos, o objetivo foi alcançado, propiciando, através do desenvolvimento econômico, das garantias sociais e do oferecimento de emprego para a maioria da população nos países mais desenvolvidos, o crescimento econômico industrial e a implementação das políticas sociais por meio da participação de diferentes setores da sociedade. Entretanto, o

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momento dourado do Estado do bem-estar social começou a sucumbir em meados de 1970, principalmente com as crises do petróleo de 1973 e 1979. A crise financeira experimentada na década de 1980 intensificou a crise fiscal do Estado, em que a despesa governamental aumentava mais rapidamente do que a entrada de recursos, aumentando, consequentemente, o déficit público e provocando instabilidade econômica, inflação, instabilidade social e acréscimo da carga fiscal, o que causou em grande parte da sociedade e na opinião pública uma atitude favorável à volta da contribuição baseada no princípio contratualista e à suspensão ou extinção das intervenções assistencialistas estatais. Essa crise fiscal aliada à alta carga de impostos cobrada pelo Estado de bem-estar social e à insatisfação de empresas privadas com a gestão pública possibilitou o aparecimento de outras concepções de Estado e de sociedade, tais como o neoliberalismo. A visão político-econômica neoliberal predominou, no início dos anos 80, em grande parte dos países desenvolvidos ocidentais, principalmente nos Estados Unidos, possibilitando a flexibilização da ação estatal sobre a economia e a revalorização do livre mercado. Acrescente-se a esse contexto o extraordinário desenvolvimento tecnológico ocorrido no período, que teve como resultados a eliminação das fronteiras e a concretização dos meios de comunicação como elementos de integração social e se chegará a outro fenômeno que diferencia o Estado contemporâneo: a globalização. 3.1.2 O papel da globalização e o Estado Pós-social No geral, a globalização pode ser interpretada de três formas principais: 1) A partir de uma interpretação de cunho liberal, que entende a globalização como progresso do capitalismo a partir da liberdade do mercado; 2) A partir de uma interpretação de cunho histórico-econômico, que defende que a globalização surgiu com as Grandes Navegações dos séculos XV a XVII; e 3) A partir de uma interpretação concentrada nas transformações do modo de produção capitalista, principalmente

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no que tange à passagem do capitalismo industrial para o capitalismo financeiro a partir dos anos 1980 (GIOVANNI; NOGUEIRA, 2015), a qual melhor atende aos objetivos dessa dissertação. O processo de globalização atual – turboglobalização padronizadora, nas palavras de Mayos (2009), tem como marco inicial a criação de organismos internacionais multilaterais, como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial, que se tornaram instrumentos de uma nova ordem mundial, baseada no desenvolvimento tecnológico e na hegemonia do capital financeiro. Tal hegemonia pode ser analisada a partir de três momentos articulados: a internacionalização das firmas multinacionais e a consequente abertura das economias nacionais para esse novo modelo de transação comercial; as transformações produzidas pelas novas tecnologias de informação e comunicação, que implementaram a atuação empresarial em rede, modificando as relações sociais, especialmente as trabalhistas e consumeristas; e a globalização financeira, estruturada na interconexão dos mercados de capitais nacionais e internacionais, que possibilitou a criação de um mercado de capitais globalmente unificado e o protagonismo do sistema financeiro sobre os demais sistemas sociais a partir do momento que passou a “conduzir e determinar a dinâmica e o ritmo das firmas e da inovação tecnológica, inaugurando um regime de acumulação dominada pelo financeiro”, o que posteriormente denominou-se de economia dos mercados financeiros liberalizados (GIOVANNI; NOGUEIRA, 2015, p. 415). Esse processo de transformação profunda da economia capitalista tem pelo menos cinco dimensões importantes: a velocidade e a intensidade do desenvolvimento científico, responsável pelo aumento extraordinário do poder político dos especialistas, e a expansão voraz das novas tecnologias; uma menor margem de manobra na formulação e execução das políticas macroeconômicas do Estado; o alto grau de diferenciação da economia em sistemas e subsistemas autorregulados e altamente especializados; a flexibilidade da em-

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presa global, propiciada pelo desenvolvimento das técnicas pós-fordistas de produção; a crise do Estado-Nação como resultado da complexa rede de relações entre empresas, instituições internacionais, agências de avaliação de risco, movimentos sociais e organizações não governamentais (Smanio; Bertolin, 2013, p. 50).

Desde logo, é possível perceber que a globalização não afeta apenas o aspecto econômico-financeiro dos Estados, mas também as relações sociais, políticas, científicas, culturais e ambientais, chegando a ser definida como um fenômeno civilizatório, uma vez que rompe com a estrutura espaço-temporal, redefinindo os conceitos de espaço e de tempo, eliminando as fronteiras e implementando uma comunicação instantânea, o que causa uma aproximação de povos e culturas. Nessa ótica, vale ressaltar a definição da globalização, formulada por Marshall McLuhan (1962), a partir do surgimento de uma aldeia global, em que a possibilidade de uma comunicação global com a recepção instantânea de imagens e vozes em locais distantes do contexto em que foram originalmente concebidas transformaria o conteúdo da cultura moderna, adquirindo uma característica de universalidade. Esse conceito vislumbrou uma nova concentração de interesse na comunicação mundial como um fator transformador da vida local, de relevância semelhante ao impacto dos mercados capitalistas, demandando o reconhecimento do fenômeno globalizatório além da interação do econômico, do cultural e até mesmo do político, constituindo-se como um processo de transformação social no sentido mais amplo possível (OUTHWAITE; BOTTOMORE, 1996). Nessa ótica, há o surgimento de poderes iguais e/ou superiores ao poder dos Estados-nacionais contemporâneos, especialmente o econômico e o simbólico-cultural, atuantes tanto no contexto interno quanto no contexto internacional, resultando na redefinição dos conceitos dos elementos formadores do Estado a partir de uma perspectiva globaliza-

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da, a exemplo do território e da soberania. Isso demonstra que o processo de globalização causou uma mudança estrutural nas sociedades contemporâneas mediante o enfraquecimento do poder político estatal, quando comparado com o Estado Moderno clássico, e a proliferação de outros centros de poder, internos e externos. Entretanto, ao mesmo tempo em que a globalização impõe certa padronização, em escala planetária, de sistemas econômicos, políticos e culturais, verifica-se um aumento da desigualdade social, principalmente em países periféricos, a exemplo do Brasil. Isso acontece porque a velocidade da transformação econômica global e o ritmo da inovação tecnológica e do crescimento não são uniformes, possibilitando o surgimento de particularidades e descontinuidades entre países e setores da economia diretamente vinculadas ao contexto histórico-social das nações a serem analisadas (GIOVANNI; NOGUEIRA, 2015). Surge, desse modo, um dos principais dilemas do Estado brasileiro contemporâneo: a coordenação entre sua interação no mercado mundial, com a aceitação de todos os seus termos e diretrizes, e a promoção da justiça social mediante a redução das desigualdades e a salvaguarda e provimento da dignidade da pessoa humana. Tal dilema se torna ainda mais crítico ao considerarmos a ideia de que o Estado do bem-estar social nunca chegou a ser implantado no país devido a sua modernidade tardia (cf. STRECK, 2007) e, nesse contexto, o papel do Estado brasileiro é ainda maior, visto que “em países como o Brasil, em que o estado Social não existiu, o agente principal de toda a política social deve ser o Estado” (STRECK; DE MORAIS, 2004, p. 78), porém, cresce na mesma proporção a necessidade de integração ao mercado financeiro global, posto que toda política social demanda recursos financeiros. Nesse contexto, o modelo de Estado social de direito, que mal foi implementado, é substituído por uma outra proposta que buscaria recuperar a legitimidade do Estado, frente ao discurso do Estado neoliberal, tido por ilegítimo: o Estado Democrático de Direito.

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3.2 A ideia de Estado Democrático de Direito A ideia de Estado Democrático de Direito no Brasil é uma construção jurídico-constitucional que surgiu como possível alternativa para promover uma verdadeira transformação da realidade social e garantir os direitos humano-fundamentais mínimos à população. De acordo com Lênio Luiz Streck e José Luis Bolzan de Morais, o conteúdo desse modelo de Estado ultrapassa o “aspecto material de concretização de uma vida digna ao homem e passa a agir simbolicamente como fomentador da participação pública no processo de construção e reconstrução de um projeto de sociedade” (2004, p. 97). O Estado Democrático de Direito, portanto, é resultado da conjugação da democracia com o constitucionalismo pós-positivista e representa, em tese, uma reaproximação do Estado e do Direito com a ética. Assim, tem como fundamentos de legitimidade e elementos estruturantes a Democracia, que pode ser entendida como um projeto moral de autogoverno coletivo fundado na soberania popular, ou seja, é a “projeção política da autonomia pública e privada dos cidadãos, alicerçada em um conjunto básico de direitos fundamentais” (BINENBOJM, 2014, p. 50), e o Direito, representado atualmente na figura dos direitos humano-fundamentais, protagonistas do ordenamento jurídico contemporâneo, o que elevou, consequentemente, a dignidade da pessoa humana, traduzida no postulado kantiano de que cada homem é um fim em si mesmo, à condição de princípio jurídico e valor fundamental do ordenamento e do Estado (BINENBOJM, 2014). Os conceitos e problemáticas existentes relacionadas aos fundamentos do Estado Democrático de Direito serão melhor analisadas no decorrer desse capítulo. Nesse contexto, o Estado Democrático de Direito não é apenas a união formal entre os conceitos de Estado Democrático e Estado de Direito. Na verdade, representa a conjugação desses dois modelos de Estado acrescidos de um componente de transformação do status quo (SILVA, 2005), podendo ser considerado um princípio estruturante do

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ordenamento jurídico brasileiro, a partir do qual derivam diversos outros princípios, os quais têm por objetivo “superar as desigualdades sociais e regionais e instaurar um regime democrático que realize a justiça social” (SILVA, 2005, p. 122). Nesse ambiente, e com as características que lhe são imanentes – a instrumentalização da rigidez formal, a supremacia da vontade do povo e a preservação da liberdade e da igualdade (DALLARI, 2001) –, o Estado Democrático de Direito tem como princípios: a) constitucionalidade; b) organização social democrática; c) sistema de direitos fundamentais individuais e coletivos; d) justiça social como fundamento de mecanismos corretivos das desigualdades; e) igualdade formal e material entre os cidadãos; f) divisão dos poderes e funções; g) o princípio da legalidade como medida do direito, ou seja, “através de um meio de ordenação racional, vinculativamente prescritivo, de regras, formas e procedimentos que excluem o arbítrio e a prepotência”; h) segurança e certeza jurídicas (STRECK; DE MORAIS, 2004, p. 99). O fator transformador do status quo, nesse caso, seria a efetiva participação da sociedade civil nos processos políticos, que pode se dar tanto pela observância do “respectivo e devido processo legal, em que a participação seja assegurada na medida do possível e do razoável, se não na tomada de decisão, ou no controle social dos decorrentes resultados das políticas públicas executadas” (MOREIRA NETO, 2006, p. 49). O Estado Democrático de Direito representaria, desse modo, a ascensão jurídico-constitucional da pessoa e da sociedade civil ao protagonismo político, sendo a participação popular no jogo político e na tomada de decisões pressuposto para a existência de uma verdadeira democracia, que não se exaure apenas com a escolha dos representantes. Esse fator provocou uma redefinição em diversos conceitos jurídico-constitucionais, dentre eles o da legalidade administrativa, que se atrelou ao princípio democrático e aos direitos humano-fundamentais e passou a ser entendido no sentido de juridicidade, isto é, na neces-

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sidade de conjugar a legalidade em sentido amplo, englobando tanto regras quanto princípios, com a legitimidade, entendida como a conformidade do agir do Estado à vontade do povo, mediada pela linguagem dos Direitos Fundamentais (MOREIRA NETO, 2006). “Trata-se de uma espécie de acordo prévio sobre o funcionamento e exercício regular (e adequado) do poder numa sociedade, prevenindo-se seu abuso ou desvirtuamento” (TAVARES, 2013, p. 774). É possível, assim, afirmar que esse modelo jurídico-constitucional de Estado é resultado de um contexto globalizado, em que se percebeu uma crescente fragmentação, complexidade e auto-organização da sociedade civil, além de uma insuficiência da democracia representativa em efetivar a soberania popular e da redução de poder dos Estados nacionais frente ao surgimento de outras fontes de poder a nível mundial, como o poder econômico e o poder cultural, pilares do processo de globalização. Nesse sentido, surgem alguns obstáculos à concretização do Estado Democrático de Direito. Um deles se refere à inefetividade e insuficiência dos dispositivos jurídico-constitucionais, em especial dos princípios constitucionais, que, na prática político-administrativa, acabam exercendo uma função apenas simbólica. Isso acontece com o próprio conceito de Estado Democrático de Direito, devido ao seu caráter de abertura e necessidade de hermenêutica jurídica para sua efetivação, e às problemáticas existentes em suas bases estruturantes – democracia e direitos humano-fundamentais, como será estudado no decorrer desse capítulo. Outro obstáculo verificado se refere à corrupção da finalidade estatal, que deixa de se orientar pela promoção dos diretos humanofundamentais, cerne do ordenamento jurídico-constitucional vigente, e passa a priorizar diversos outros critérios, principalmente critérios econômicos ou de autopromoção, possibilitando o surgimento de uma patologia intrínseca ao Estado brasileiro contemporâneo - o Estado Poiético.

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3.3 Patologias do Estado Social e Democrático de Direito: o Estado Poiético Segundo Joaquim Salgado (2002), o Estado pode ser dividido, desde a sua formação, em duas categorias: o ético e o poiético. O Estado ético seria a conjugação do embate entre liberdade e poder, podendo ser classificado, segundo o critério histórico-cronológico, como imediato, que abrange o período greco-romano até a Idade Média; técnico, que surgiu no século XVII; e o mediato ou Estado de Direito, que teve como marco inicial a Revolução Francesa. O Estado ético imediato, que abrange o período greco-romano até a Idade Média, justifica-se em função de sua finalidade eminentemente ética, em que o poder estatal visa à realização de alguma coisa que beneficie os indivíduos e grupos coletivamente, enquanto elementos de uma comunidade. Dessa forma, a finalidade desse modelo de Estado no período greco-romano é a realização da justiça, que, no Estado grego significa “dar a cada um o que é seu, o seu lugar na sociedade, segundo seu mérito, aferido por suas aptidões” e, no romano, “dar o que é direito de cada um” (SALGADO, 2002). No Estado técnico, por sua vez, que surgiu a partir do pensamento maquiavélico no século XVII, houve uma subversão da finalidade estatal pela técnica para alcançar e preservar o poder. Assim, o Estado técnico tinha como finalidade sua própria preservação ou a preservação de um governo, justificando sua existência em si e por si mesmo e utilizando o poder como instrumento de sua perpetuação. No Estado ético mediato ou Estado de Direito, que teve como marco inicial a Revolução Francesa, há a potencial retomada da racionalidade ética como centro de toda atividade política. Dessa forma, o poder estatal é remodelado e passa a se legitimar a partir de sua origem, em que a formação do governo se dá democraticamente (fundamento ontológico de legitimidade do Estado), por meio da técnica de exercício do poder pautado na legalidade burocrática (fundamento lógico de legitimidade) e por meio da sua finalidade focada na promoção de direitos

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fundamentais entendido como o bem comum mediado pela linguagem do Direito (fundamento teleológico de legitimidade). A origem legítima do poder, portanto, depende da vontade do povo, verificada pelo seu consentimento, na técnica com que o poder se exerce seguindo “procedimentos pré-estabelecidos, com o voto popular, as regras de decisão da maioria e de respeito à minoria, e pela finalidade, que volta a ser ética: a declaração e realização dos direitos fundamentais” (SALGADO, 2002). A técnica jurídica aqui é o elemento mediador capaz de dar organização legítima à noção de bem comum numa sociedade democrática. Isso, em seu conceito. Em oposição ao Estado ético mediato, encontra-se o Estado poiético, entendido como uma ruptura no Estado de Direito que ocorre dento do próprio Estado de Direito. O Estado poiético é um mecanismo de despersonalização e de perda da substância espiritual da liberdade, transformando sua relação com o indivíduo, o qual deixa de ser um fim em si mesmo e passa a ser um instrumento para algo ou alguém, que não ele próprio. Nessa lógica, o Estado recupera a dimensão técnica anterior, voltada a si mesma, agora identificada com a noção de desenvolvimento econômico. Nessa lógica, o resultado econômico do Estado é mais importante que o resultado humanitário do Estado: Na sociedade civil contemporânea, o homem passa a ser instrumento para algo e, na medida em que é instrumento para algo, coisa, é instrumento para o outro, pessoa, que o domina, segundo a estrutura da relação senhor-escravo, guardada evidentemente a essencial diferença entre a relação de servidão ou escravidão e a do trabalho livre (SALGADO, 2002).

No Estado poiético, a organização política estatal é utilizada como instrumento para implementar interesses econômicos, através da utilização de termos técnicos e com uma aparência de cientificidade, ao invés de realizar os direitos humano-fundamentais, em especial os

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direitos sociais. Dessa forma, a finalidade ética estatal desaparece e o político, o jurídico e o social ficam subordinados ao econômico, com o aval do próprio Estado. A cisão do Estado está, pois, nesse embate que se trava dentro dele mesmo, criando dois estados: o estado poiético do domínio burotecnocrata e o estado ético do domínio da sociedade política, enquanto Estado Democrático de Direito (SALGADO, 2002).

Para Joaquim Salgado (2002), as consequências do Estado poiético na sociedade brasileira podem ser divididas em três grupos: morais, políticas e jurídicas. A consequência moral se refere ao aparecimento de uma corrupção sistêmica, em que a legitimidade da decisão política, baseada em um fazer ético é suprimida e substituída pela decisão de um corpo burotecnocrata, o que frequentemente se relaciona com a intimidação e a corrupção dos fins humanitários do Estado, sob o manto de termos científicos. A consequência moral também se relaciona com a consequência política, visto que a legitimidade, dada pelo povo a um representante para tomar decisões em seu nome, desaparece em confronto com a burotecnocracia. Dessa forma, a vontade do povo é suprimida pelo tecnicismo e pela economia, abrindo margens à implementação de uma autocracia através da burotecnocracia, visto que, “depois de ter criado as premissas da catástrofe econômica, com ela ameaça para obter mais poder” e implementar as regras de modelos que interessam ao fazer econômico, mesmo que contrárias ao interesse social (SALGADO, 2002). A consequência jurídica, por sua vez é vista no caráter a-ético ou a-jurídico desse tipo de Estado, que busca justificar-se pela própria técnica ou aparência de técnica que o define, causando uma insegurança jurídica generalizada, catalisada por uma anarquia legislativa (SALGADO, 2002) e, mais recentemente, jurisdicional. Além da predominância do critério mercadológico como ex-

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pressão do poder econômico, as ações governamentais e administrativas também são orientadas a partir de um critério midiático, como expressão do poder simbólico/cultural. O Estado Poiético, portanto, derivou do processo de globalização e tem como finalidade primordial não apenas a satisfação do mercado financeiro mundial, como também veicular uma imagem benéfica do governo e do governante para a nação e para todo o mundo, no sentido da autopromoção. Assim, não se priorizam, nem se realizam os direitos sociais, mas se cria a aparência de sua realização, para fins de propaganda de legitimação midiática. A questão central e que demonstra a importância do fator cultural na política contemporânea é que, para transmitir uma imagem benéfica, os governantes não se preocupam em realizar ações eficazes, eficientes, com qualidade e que realmente promovam o bem-estar da população. Para eles, basta, nesse ambiente, que a mídia veicule suas ações de forma que faça parecer que são adequadas, eficazes e eficientes, o que é uma representação da própria cultura contemporânea, priorizando a imagem ao invés da realidade, o parecer ao invés do ser. É nessa ótica que se pode falar, também, em um Estado do Espetáculo, que se preocupa mais com a imagem de suas ações do que em realmente concretizar o bem-estar da sociedade. Dessa forma, essa ruptura com o Estado de Direito causada pela emergência do Estado Poiético proporciona, além da predominância e autonomização de interesses econômicos (que deixam de ser instrumento para a promoção do bem estar social, para serem fim e si mesmos) por meio da burotecnocracia, a possibilidade dos agentes públicos utilizarem do próprio sistema jurídico-político, através do uso de expressões e conceitos simbólicos veiculados em larga escala pela mídia, para criar uma ilusão de promoção da Constituição e do bem estar, gerando a falsa imagem de que a situação do país está melhor do realmente está, com o intuito de satisfazer pretensões particulares e/ ou político-eleitorais.

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4. DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO NO CONSTITUCIONALISMO CONTEMPORÂNEO A democracia, um dos pilares do Estado Democrático de Direito, pode ser definida como um projeto “de autogoverno coletivo, que pressupõe cidadãos que sejam não apenas os destinatários, mas também os autores das normas gerais de conduta e das estruturas jurídico-políticas do Estado” (BINENBOJM, 2014, p. 50). Assim, todo regime democrático, teoricamente, tem como fundamento a igualdade entre os indivíduos, representando a projeção política da autonomia pública e privada dos cidadãos, alicerçada em um conjunto básico de direitos fundamentais (BINENBOJM, 2014). A noção de autogoverno coletivo, formado por vários cidadãos com interesses e necessidades diferentes, umas particulares, outras coletivas, pressupõe a existência de conflitos (pontuais, ainda que intensos) e de conflitividades (permanentes) e é justamente assim que a democracia se desenvolve, considerando a conflitividade e o conflito ocorrências, em si, legítimas (ainda que provocadas por alguma ação ilegítima, já que a democracia cria procedimentos para tratar politicamente dos conflitos sociais, de necessidades e interesses, além de instituir um sistema de direitos à procedimentalização jurídica dos conflitos, como o direito de ação e petição, a ampla defesa, o contraditório, etc (cf. STRECK; DE MORAIS, 2004, p. 101). Por esse motivo, Bobbio (1997) define a democracia moderna como o meio de luta contra o abuso do poder, organizado em dois fronts — contra o poder que parte do alto em nome do poder que vem de baixo, e contra o poder concentrado em nome do poder distribuído. Segundo o autor, é fácil perceber porque a democracia moderna possui esse tipo de configuração, visto que [...] onde a democracia direta é possível, o estado pode muito bem ser governado por um único centro de poder, por exemplo, a assembleia dos cidadãos. Onde a democracia direta, em

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decorrência da vastidão do território, do número de habitantes e da multiplicidade dos problemas que devem ser resolvidos, não é possível e deve-se então recorrer à democracia representativa, a garantia contra o abuso do poder não pode nascer apenas do controle a partir de baixo, que é indireto, mas deve também poder contar com o controle recíproco entre os grupos que representam interesses diversos, os quais se exprimem por sua vez através de diversos movimentos políticos que lutam entre si pela conquista temporária e pacífica do poder. (1997, p. 60-61).

Os movimentos históricos que deram origem às democracias modernas influenciaram de maneira significativa a organização dos Estados e, a partir de então, três princípios básicos passaram a orientar a dinâmica estatal e funcionar como referências de um governo democrático, a supremacia da vontade popular, a preservação da liberdade e a igualdade de direitos: A supremacia da vontade popular, que colocou o problema da participação popular no governo, suscitando acesas controvérsias e dando margem às mais variadas experiências, tanto no tocante à representatividade, quanto à extensão do direito de sufrágio e aos sistemas eleitorais e partidários; a preservação da liberdade, entendida como o poder de fazer tudo o que não incomodasse o próximo e como o poder de dispor de sua pessoa e de seus bens, sem qualquer interferência do Estado. A igualdade de direitos, entendida como a proibição de distinções no gozo de direitos, sobretudo por motivos econômicos ou de discriminação entre classes sociais. As transformações do Estado, durante o século XIX e primeira metade do século XX, seriam determinadas pela busca de realização desses preceitos, os quais se puseram também como limites a qualquer objetivo político. A preocupação primordial foi sempre a participação do povo na organização do Estado, na formação e na atuação do governo,

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por se considerar implícito que o povo, expressando livremente sua vontade soberana, saberá resguardar a liberdade e a igualdade (Dallari, 2001, p. 151).

Entretanto, até meados do século XX, o conceito predominante de democracia ainda era o formal, no sentido de considerar como respeitado e cumprido o critério democrático apenas com a escolha dos governantes, com o sufrágio em eleições periódicas e com a adoção da regra da maioria na tomada de decisão. Ainda é muito recente o entendimento da necessidade de se adotar também um conceito substancial de democracia, fundado no controle e acompanhamento permanente da legitimidade da ação dos corpos políticos eleitos. Desse modo, surgem três vias de desenvolvimento da democracia que tiveram rápida aceitação nos sistemas político-jurídicos contemporâneos: 1) a legitimação pela participação dos indivíduos e órgãos da sociedade nos processos de poder; 2) a legitimação pela procedimentalização aberta das decisões e dos controles das decisões; e 3) a legitimação pelo resultado do exercício do poder estatal, aferido segundo regras derivadas da aplicação do princípio da eficiência (cf. MOREIRA NETO, 2006). A democracia proposta no Brasil pela Constituição de 1988 reflete esse novo entendimento e pode ser definida como uma democracia participativa, em que há a conjugação de uma democracia indireta representativa, na qual a vontade popular é representada por pessoas legitimamente eleitas, com instrumentos da democracia direta, em que os cidadãos atuam diretamente no sistema político e na tomada de decisão, como o referendo, o plebiscito, a iniciativa popular; ao que se soma elementos de democracia participativa propriamente dito, como a participação em conselhos deliberativos, as audiências públicas, o orçamento participativo, e mesmo o manejo de ações como a ação popular. A noção de democracia participativa surgiu com o escopo de superar as problemáticas existentes na democracia representativa ante o aumento da complexidade social e das formas de representa-

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ção, visando promover a ampla participação popular nos processos políticos decisórios, tanto em termos de espaço, quanto de sujeitos, aumentando expressivamente as responsabilidades cívicas dos cidadãos. Dessa maneira, com uma maior participação da sociedade civil no jogo político, atuando mediante instrumentos como a iniciativa popular, a participação em conselhos deliberativos e o orçamento participativo, as demandas de setores historicamente excluídos ganhariam, em teoria, espaço e visibilidade política, promovendo uma verdadeira justiça social e fazendo com que as decisões coletivas ganhassem legitimidade na medida em que nasceriam do livre debate público entre aqueles que estariam a elas submetidas (LIMA in GIOVANNI; NOGUEIRA, 2015). A legitimidade é um fator de suma importância para a concretização da democracia. Visando implantar uma democracia material, que vai além do sufrágio de nomes para ocupar os cargos hierarquicamente mais altos dos poderes da República, estabeleceu-se como requisito para a obtenção e exercício do poder uma legitimidade plena, a qual pode ser dividida em legitimidade originária, legitimidade corrente e legitimidade finalística, como vimos. Retomando este ponto, a legitimidade originária visa justificar, mediante um título, a obtenção do poder por parte dos governantes e gestores. Nas democracias contemporâneas, esse título é dado através do consenso ou maioria, podendo ser uma escolha explícita ou uma aceitação implícita, a exemplo da escolha do chefe do Poder Executivo, pelo pleito eleitoral, ou dos magistrados e certos agentes públicos, pela capacidade técnica comprovada. A legitimidade corrente, por sua vez, pode ser aferível durante todo o tempo em que dure a detenção do poder e tem por objetivo garantir a permanente legitimidade pelo desempenho dos administradores, que devem agir balizados pelas expectativas e anseios fornecidos pela sociedade através da legislação posta. E, por fim, a legitimidade finalística é verificada a partir dos resultados produzidos pelos agentes políticos, os quais, ao exercitarem as parcelas de poder que possuem, devem realizar o confronto entre o que deveria

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realizar, a partir de sua proposta, e o que de fato realizou. Assim, na construção de uma democracia material, surgem novos instrumentos que visam não apenas a participação popular pelo voto, mas pela “aferição de resultados (controle de eficiência) e de participação na escolha das políticas e para a confirmação de que elas estão sendo executadas a contento (controle social)” (MOREIRA NETO, 2006, p. 46). A teoria da democracia como processo de seleção de agentes sofreu algumas modificações com o passar do tempo, inclusive no que se refere à histórica regra da maioria. O entendimento contemporâneo é no sentido de que sociedades altamente complexas e segmentadas não podem basear-se na regra da maioria, pois sua opção é ou serem “democráticas consensuais ou deixarem de ser democracias, na medida em que, devido à fragmentação e à intensidade das opções, as decisões passem a ser tomadas por margens majoritárias cada vez menores” (MOREIRA NETO, 2006, p. 48). Já com relação à teoria da democracia como processo decisório de políticas públicas, trata-se de campo relativamente novo e extremamente fértil ao surgimento de novas formas de participação da sociedade civil na vida política. Nessa vertente democrática, há a admissão de diversas modalidades de controle social no ordenamento jurídico-constitucional, que agem na fiscalização tanto de agentes políticos quanto de políticas públicas, necessitando, para serem bem empregadas, de uma específica preparação cívica do cidadão, suportada por uma livre e ampla rede de informação pública (cf. MOREIRA NETO, 2006, p. 48-49). Alguns problemas da democracia participativa podem ser elencados nesse contexto. Primeiro, houve esforços de institucionalização da participação popular nos processos políticos, mediante a criação de instrumentos como conselhos populares e orçamentos participativos. Estes, porém, não foram acompanhados por uma densa discussão a respeito da qualidade da representação, impossibilitando, muitas vezes, a efetiva participação da sociedade civil nos processos decisórios e tornando tais instrumentos inócuos, o que pode ser facilmente constatado através de uma análise contextualizada do fenômeno das audiências pú-

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bicas, ou dos conselhos participativos, por exemplo (cf. LIMA in GIOVANNI; NOGUEIRA, 2015). Soma-se a isso, o confronto entre a dimensão participativa e a dimensão burotecnocrata na formação da decisão estatal hodierna: Em primeiro lugar, porque as sociedades se tornaram policêntricas e a resolução dos conflitos sociais passa a depender bem mais de acordos entre grandes organizações do que da existência de uma boa classe política. A representação política reflui em benefício da representação de interesses. Ao mesmo tempo, aumentarão os espaços em que os cidadãos (os grupos, as associações) exercem algum poder de voto ou de veto, com o que se altera o peso relativo da representação política. Em terceiro lugar, como os problemas se complicam a passam a exigir sempre mais conhecimento especializado para serem equacionados, a arena política é invadida por técnicos e experts. O cidadão pressiona por mais participação e é ao mesmo tempo barrado no terreno em que são tomadas as decisões. Simultaneamente, a maior quantidade de direitos e reivindicações – e, portanto, de políticas públicas direcionadas para atendê-las – faz com que o aparato administrativo do Estado tenha de ser reforçado, em benefício de uma tecnocracia sempre mais preeminente (Lima in Giovanni; Nogueira, 2015, P. 250).

O terceiro problema se relaciona com as bases da democracia como processo decisório de políticas públicas, quais sejam, a mídia e a educação. A propaganda governamental costuma ser bem otimista à eficácia do papel da mídia e da educação na construção desse modelo democrático, entretanto o cenário que se apresenta não corresponde a tamanho otimismo. Indubitavelmente, com o desenvolvimento de tecnologias de informação e comunicação, a mídia atingiu o patamar de principal instrumento de socialização na contemporaneidade e passou a determinar os mecanismos e valores da representação, da

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governabilidade democrática e do Estado. Contudo, ao analisarmos o conteúdo veiculado por esses meios de comunicação, é fácil perceber que, atualmente, a função primordial da mídia não é educar politicamente o cidadão, e sim entretê-lo, diverti-lo e distraí-lo, dando prioridade à visibilidade de temas que despertam sua atenção, como barbáries, tragédias e escândalos. Mas todo ambiente comunicacional é ambiente educacional (ainda que de uma má educação). Assim, com o entretenimento, o espetáculo, comunica-se valores, imaginários, modos de entender e encarar o mundo. E o que se comunica na mas mídia não é uma educação para a cidadania (COELHO; COLLADO, 2015, p. 466-485). Já a mídia em rede, a internet, por meio das redes sociais, tem produzido dois fenômenos também contrários à educação para a cidadania. O primeiro deles é a sociedade da ignorância, por meio da paradoxal desinformação pela hiper-informação (ou poluição informacional), tal como explicam Mayos e Brey (2011, p. 13-52). O segundo é a negação do outro e do diálogo, por meio do diálogo monológico e tautológico das redes sociais, conforme recentemente Bauman denuncia em suas críticas (cf. BAUMAN; BORDONI, 2016). Nesse caso, o problema não está na natureza virtual meio de interação, mas na possibilidade que esse meio criou de simular interação sem que haja verdadeira interação, pois, cada qual, no gerenciamento de sua base de contados e rede, pode excluir o outro sem ter que lidar com o outro e com a diferença. Nesse aspecto, a atividade política se banalizou, passando a ser exclusivamente relacionada à ineficácia, irregularidade, ilegalidade, corrupção, desvio de recursos públicos etc., o que acabou por despertar a desconfiança do cidadão. Essa desconfiança traz consigo o desinteresse dos indivíduos por assuntos de cunho coletivo, a inexistência do sentimento de pertencimento à comunidade e a ausência de vontade do cidadão em participar da vida política do país, aspectos que a educação, de forma isolada, é incapaz de resolver. E talvez seja esse um dos principais problemas da democracia brasileira contemporânea.

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5. OS DIREITOS HUMANO-FUNDAMENTAIS COMO NÚCLEO DA LINGUAGEM CONSTITUCIONAL CONTEMPORÂNEA O Direito é um fenômeno histórico-cultural que tem por objetivo solucionar os conflitos e estabilizar a conflitividade social, que não desaparece com o Direito, mas é ordenada por ele. A partir da Revolução Francesa, o Direito foi deixando de ser mero instrumento de coação da sociedade, tal qual o era em sua gênese, e se torna também instrumento de limitação do poder. Nesse período, denominado “período legislativo” ou “primeiro positivismo jurídico”, houve uma identificação do Direito com a lei, resultando na supremacia desta última como expressão da vontade geral, na consagração de constituições escritas, principalmente a norte-americana e a francesa, e na supervalorização do legislador. Com a constituição norte-americana, houve a gênese da ideia de supremacia da constituição, mas tal supremacia só ganhou contornos dogmáticos de aplicabilidade na Europa, após a II Guerra Mundial e já no contexto do Estado Social de Direito, momento em que começou a ser replicada nos ordenamentos jurídicos de diversas nações. Entretanto, o modelo legalista começou a entrar em crise ainda no final do século XIX, motivada por sua insuficiência em suprir as aspirações sociais e por sua utilização como manto protetor do Estado no cometimento tanto de omissões, quanto de abusos. Vale ressaltar ainda que a crise da lei representou também a crise do Poder Legislativo, que, no Estado Social de Direito que se seguiu, perdeu espaço para o protagonismo do Poder Executivo, no intervencionismo subsequente. Por essa razão, McBain critica a ideia de “governo das leis”, exaustivamente pregada durante o Iluminismo como materialização da racionalidade, afirmando que todos os governos são governos de leis e de homens, relativizando o antagonismo dessa expressão: Nesse sentido, assiste-lhe razão, já que as leis, por serem feitas, executadas e interpretadas pelos Homens, não são isentas

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nem afastam, em certa medida, um governo de Homens (e, mais contundentemente, de juízes). A expressão “governo de leis” em contraposição à ideia de um “governo de Homens” aparentemente pretende propor a completa superação desta. A contraposição rígida, conclui o próprio autor, é absurda. Mesmo numa concepção centrada no Parlamento, de autorrestrição e contenção judicial, a ideia de um governo absoluto das leis é inconsistente com o próprio modelo ocidental de Direito e representa, na realidade, um retorno às concepções próprias do século XIX, das grandes codificações do Direito (apud Tavares, 2013, p. 519).

Mas o Direito, no Estado Social de Direito, também conheceu sua crise. Ela diz respeito a um “segundo positivismo”, calcado na construção das leis-meio, instrumentos legais de organização da política pública governamental, e na proliferação dos regulamentos infra-legais, acompanhados de um inversão no referencial hermenêutico (quando os regulamentos passam a ter mais importância que as leis e a constituição, no processo mental de tomada de decisão). Essa crise jurídica se somou à crise político-econômica do Estado Social, criando uma atmosfera de mudanças a partir da década de 1980 do séc. XX. O pensamento jurídico contemporâneo, considera que a aplicação do Direito não é apenas “um ato de conhecimento – revelação do sentido de uma norma pré-existente -, mas também um ato de vontade – escolha de uma possibilidade entre as diversas que se apresentam”, afirmando seu caráter ideológico ou situacional, o que impossibilita a existência de um grau zero de neutralidade e de uma objetividade jurídica pura (cf. BARROSO, 2013, p. 107). O Direito contemporâneo, portanto, deveria prever instrumentos que garantissem e promovessem os direitos constitucionais dos cidadãos, de modo a evitar que, em nome de formalismo ou ideologias, o aplicador na norma a interpretasse de modo contrário a tais direitos., No Brasil, essa transformação teria sido disparada mediante a promulgação da Constituição Federal de 1988. Assim, seria possível corrigir a

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inversão feita no período da ilação entre positivismo formalista e Estado Social, e devolver-se-ia à constituição a centralidade linguística do Direito. Assim, no constitucionalismo contemporâneo, marcado por seu caráter pós-positivista, há a previsão, a partir de um documento escrito e formal, de um conjunto de normas destinado a realizar os valores compartilhados da sociedade e mediados pela linguagem da principiologia constitucinal, na qual as ideias de justiça e de realização dos direitos fundamentais desempenham um papel central (BARROSO, 2013). Nessa ótica, o Direito deixa de ser um reprodutor e passa a ser um transformador da realidade, principalmente devido ao caráter de abertura dos princípios constitucionais, que possibilita uma reaproximação entre o direito e a dinâmica das sociedades contemporâneas. Para Barroso essa transformação do papel da Constituição no ordenamento jurídico, principalmente nos Estados do mundo romanogermânico, pode ser refletida a partir de três marcos fundamentais – o histórico, o filosófico e o teórico (BARROSO, 2013). Nós, porém, partindo de Barroso mas complementando seus esquema de análise, entendemos serem quatro os marcos dessa mudança paradigmática: o histórico, o filosífico, o teórico e o dogmático. Aquilo que Barroso entende ser o marco filosófico, nós consideramos ser o teórico; e aquilo que ele entende ser o elemento teórico, nos entendemos ser o elemento dogmático da mudança. Assim, o marco histórico pode ser definido, na Europa continental, com o constitucionalismo pós-guerra e, no Brasil, com a Constituição de 1988 e o processo de redemocratização. Já o marco filosófico, diz respeito ao giro linguístico do pensamento contemporâneo e sua internalização no pensamento jurídico, enquanto um giro linguístico-existencial-hermenêutico. O marco teórico seria o pós-positivismo, abrangendo a re-entronização dos valores, mediados pela linguagem dos princípios, na interpretação jurídica, com o reconhecimento de normatividade desse princípios e de sua diferença qualitativa em relação às regras; a reabilitação da razão prática e da argumentação jurídica, a formação de uma nova hermenêutica constitucional e o desenvolvimento

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de uma teoria dos direitos fundamentais edificada sobre a dignidade de pessoa humana. Por fim, marco dogmático envolve três mudanças: o reconhecimento de força normativa às disposições constitucionais, que passam a ter aplicabilidade direta e imediata, transformando-se em fundamentos rotineiros das postulações de direitos e da argumentação jurídica; a expansão da jurisdição constitucional e, por fim, a mudança na hermenêutica jurídica, com o surgimento de um conjunto de ideias identificadas como nova interpretação constitucional. Assistiu-se, assim, à transposição de um modelo baseado numa democracia radical ou pseudodemocracia, exacerbado (a vontade majoritária legislada), para um modelo pluralista e de consenso (pluralismo das fontes do Direito e abandono do método lógico pelo método da argumentação e do convencimento, especialmente pelos tribunais), sem que com essa afirmação se pretenda sustentar um modelo reducionista simples que pressuponha a inexistência de complexidades nessa transformação. É a passagem para uma democratização do constitucionalismo, como adverte Friedrich (Tavares, 2013, p. 52).

Nessa ótica, é de fundamental importância a figura dos princípios constitucionais: Os princípios constitucionais, portanto, explícitos ou não, passam a ser a síntese dos valores abrigados no ordenamento jurídico. Eles espelham a ideologia da sociedade, seus postulados básicos, seus fins. Os princípios dão unidade e harmonia ao sistema, integrando suas diferentes partes e atenuando tensões normativas. De parte isto, servem de guia para o intérprete, cuja atuação deve pautar-se pela identificação do princípio maior que rege o tema apreciado, descendo do mais genérico ao mais específico, até chegar a formulação da regra concreta que vai reger a espécie. Estes os papéis desempenhados pelos princípios: a) condensar valores; b) dar unidade ao

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sistema; c) condicionar a atividade do intérprete. (Barroso, 2013, p. 122).

As normas constitucionais, dessa maneira, podem ser divididas em regras e princípios, que se distinguem por uma diferença qualitativa, em que as regras são normas que contêm determinações no âmbito daquilo que é fática e juridicamente possível, isto é, são sempre satisfeitas ou não, e os princípios são mandamentos de otimização, os quais “ordenam que algo seja realizado na maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes” (ALEXY, 2012, p. 90-91). Desse modo, os princípios são a origem e o fim de sua concretização, isto é, são institutos essencialmente polissêmicos, possuidores de múltiplos significados e carentes de interpretação para sua aplicação, mas que, ao mesmo tempo, orientam sua própria efetivação, estabelecendo limites para a atuação do intérprete e do aplicador do Direito a partir do sistema de valores constitucionalmente protegidos. Dentre tais princípios, a dignidade da pessoa humana assumiu um papel nuclear. Possui uma base material elementar, traduzida na ideia de mínimo existencial que, de acordo com o razoável consenso existente, inclui direitos tais como renda mínima, saúde básica e educação fundamental, além o acesso à justiça, indispensável para a exigibilidade e efetivação dos direitos (BARROSO, 2013). Assim, a dignidade da pessoa humana está diretamente relacionada aos direitos humanofundamentais, abrangendo aspectos dos direitos individuais, políticos e sociais, de modo que “à centralidade moral da dignidade do homem, no plano dos valores, corresponde a centralidade jurídica dos direitos fundamentais, no plano do sistema normativo” (BINENBOJM, 2014, p. 50). Propõe Binenbojm (2014) que os direitos humano-fundamentais podem ser analisados sob dois aspectos: um subjetivo e outro objetivo. Subjetivamente, podem ser direitos de defesa contra a intervenção do Poder Público; direitos a prestações positivas por parte do Poder Público, tanto de natureza concreta e material, como de natureza normativa; direitos à organização e ao procedimento, que dependem na sua realiza-

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ção tanto de providências estatais com vistas à criação e conformação de órgãos, entidades e repartições, como de outras, normalmente de índole normativa, destinadas a ordenar a fruição de determinados direitos e garantias. Por outro lado, interpretamos que, quando analisados objetivamente, extrapolam o âmbito individual e representam o referente para mensurar a concretização em si do projeto constitucional, são bens ou objetivos constitucionais a serem protegidos e fomentados pelo Estado, pelo Direito e pela sociedade. No mesmo sentido, André Ramos Tavares elenca, como característica dos direitos humano-fundamentais, sua dupla natureza, que reconhece tanto a sua função de direitos subjetivos quanto a de princípios objetivos da ordem constitucional. As consequências desta última função seriam a eficácia irradiante dos direitos fundamentais, que obriga que todo o ordenamento jurídico estatal seja condicionado pelo respeito e pela vivência dos direitos humanos, e a teoria dos deveres estatais de proteção, que pressupõe o Estado (Estado-legislador; Estado -administrador e Estado-juiz) como parceiro na realização dos direitos humano-fundamentais (TAVARES, 2013). Porém, “esse caráter duplo não costuma decorrer expressamente dos textos das constituições, mas da técnica de aplicação empregada pelo operador, da abertura interpretativa decorrente de seu não afastamento expresso”. (TAVARES, 2013, p. 358) Outra característica dos direitos humano-fundamentais seria sua “dimensão de abertura”, o que significa, sinteticamente, que as formas de tutela não são enumeradas de forma taxativa e essa abertura dos direitos fundamentais fornece o espaço de conformação necessário à atividade criativa do legislador e do juiz (TAVARES, 2013), isto é, exigem uma “interpretação construtiva do caso particular”, pois são concretizados no discurso. “O método decisivo já não é o da tradicional subsunção, mas sim a retórica e a argumentação, a busca da solução pelo convencimento e demonstração” (TAVARES, 2013, p. 361). Os direitos humano-fundamentais possuem, ainda, uma característica adicional: sua vinculação com a máxima da proporcionalidade.

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Conforme dito, princípios são mandamentos de otimização em face das possibilidades jurídicas e fáticas, isto é, a própria natureza dos princípios de direitos humanos implica a máxima da proporcionalidade, com “suas três máximas parciais da adequação, da necessidade (mandamento do meio menos gravoso) e da proporcionalidade em sentido estrito (mandamento do sopesamento propriamente dito)”, na ponderação com os demais direitos em jogo (ALEXY, 2012, p. 116-117). Desse modo, tão importante quanto o estudo da dos Direitos Fundamentais é o estudo da hermenêutica constitucional, utilizada na concretização de seus dispositivos, especialmente dos direitos humanofundamentais, por ser no campo discursivo que se realizam. Existe, no ordenamento jurídico pátrio, uma filtragem constitucional, em que “toda a ordem jurídica deve ser lida e apreendida sob a lente da Constituição, de modo a realizar os valores nela consagrados” (BARROSO, 2013, p. 133). Ocupariam papel central nesse contexto os princípios constitucionais, por serem, segundo essa ótica, o modo de ser jurídico dos valores de uma sociedade, mais precisamente daqueles valores que, passando pela mediação da política e da democracia, podem alcançar um reconhecimento como Direito. Assim, haja vista a insuficiência dos tradicionais métodos interpretativos frente à dimensão polissêmica da principiologia constitucional atual, surgiu uma nova interpretação constitucional, que considera seu conteúdo aberto e extremamente dependente da realidade subjacente, em que [...] o relato da norma, muitas vezes, demarca apenas uma moldura dentro da qual se desenham diferentes possibilidades interpretativas. À vista dos elementos do caso concreto, dos princípios a serem preservados e dos fins a serem realizados é que será determinado o sentido da norma, com vistas à produção da solução constitucionalmente adequada para o problema a ser resolvido. (Barroso, 2013, p. 142).

E como chegar a um consenso decisório em relação aos direitos humano-fundamentais?

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Os direitos humano-fundamentais, por serem normas que dão forma jurídica a valores, são construídos a partir do discurso, em que se considera, dentre as interpretações possíveis, aquela que melhor atenda ao caso concreto, sendo esse o meio concreto proposto pela dogmática jurídica atual, de se chegar ao sentido de tais direitos no caso concreto. Diogo de Figueiredo Moreira Neto, assim, afirma que o consenso discursivo seria um princípio implícito do Estado Democrático de Direito, sendo definido como “o primado da concertação sobre a imposição nas relações de poder entre a sociedade e o Estado” (2006, p. 62). Nesse aspecto, defende-se a necessidade de uma teoria do discurso na formulação e aplicação do direito, baseada em uma argumentação racional como maneira de se chegar ao consenso. Com relação aos direitos humano-fundamentais, a argumentação tem um caráter primordial, visto que não são fundados em teorias materiais, mas em teorias de princípios, com o objetivo de se atingir resultados constitucionalmente mais adequados. Alguns autores trabalham com uma teoria do discurso desenvolvida a partir de uma argumentação racional para garantir que não haja o predomínio de critérios particulares nos processos decisórios, dentre eles Alexy, autor que no Brasil ganhou forte notoriedade, com suas teorizações argumentativas do Direito sendo por muitos aclamadas e por outros criticadas e até mesmo apontadas como um dos principais sustentáculos teóricos do ativismo judicial nacional e dos moralismos jurídicos daí decorrentes. A teoria do discurso de Alexy, por outro lado, tem como fundamento a utilização de uma razão prática na concretização dos direitos humano-fundamentais, em que há uma vinculação da argumentação racionalmente estruturada de acordo com o caso concreto. Assim, seria possível a formulação de uma teoria normativa da argumentação, composta por uma série de regras que definem o procedimento que uma argumentação deve seguir para ser considerada racional, aplicáveis não apenas aos discursos jurídicos, mas a todos os discursos práticos, visan-

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do dar mais objetividade ao discurso no âmbito dos direitos humanofundamentais. Esse procedimento, de razão prática, requer um alto grau de clareza linguística, informação empírica, universalidade e ausência de prejulgamento. Isso é o ideal em relação ao uso da razão prática, mas como tal ideal não é fácil de atingir, o melhor é uma realização aproximada (Alexy, 2012, p. 41).

Com relação aos direitos humano-fundamentais, haja vista a presença preponderante de princípios polissêmicos na concretização dos referidos direitos, há uma falta de clareza tanto com relação da estrutura das normas “quanto acerca de todos os conceitos e formas argumentativas relevantes para a fundamentação no âmbito dos direitos fundamentais” (ALEXY, 2012, p. 43), o que demanda a utilização de instrumentos complementares em sua aplicação, como a razoabilidade e a proporcionalidade. Barroso (2013) propôs, no contexto brasileiro, que se deve buscar aplicar três parâmetros de controle para a argumentação jurídica, considerando a verificação da correção ou validade de uma argumentação em relação ao caso concreto como seu principal problema. Em primeiro lugar, a argumentação jurídica deve ser capaz de apresentar fundamentos normativos (implícitos que sejam) que a apoiem e lhe deem sustentação, não sendo suficiente o bom-senso e o sentido de justiça pessoal; em segundo lugar, a argumentação jurídica, principalmente quando envolva a ponderação, diz respeito à possibilidade de universalização dos critérios adotados pela decisão (universalização no sentido de se poder replicar para todos os demais casos em que o mesmo problema se apresente, naquela ordem constitucional); e um último parâmetro é formado pela necessidade de se tomar em consideração e se aplicar ao casos dois conjuntos de princípios: os princípios instrumentais ou específicos de interpretação constitucional e os princípios materiais propriamente ditos, que trazem em si a carga finalística da ordem constitucional.

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Este é, em suma, o estado de coisas da jurisdição constitucional brasileira, em seu ser-aí, quanto aos direitos humano-fundamentais. 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS: A REORIENTAÇÃO DO DIREITO PÚBLICO EM DIREÇÃO À PESSOA E AOS DIREITOS HUMANOFUNDAMENTAIS E SEUS DESAFIOS Atualmente, o direito passa por um processo de (re)constitucionalização, em que a fundamentalidade da constituição não se concretiza apenas com relação às decisões que traz em si, “mas também nos procedimentos que institui para que elas sejam adequadamente tomadas pelos órgãos competentes, em bases democráticas” (TAVARES, 2011, p. 69), o que alguns autores denominaram de filtragem constitucional. A permeabilidade do direito público à linguagem constitucional acontece principalmente pelo caráter de abertura dos princípios constitucionais, que tem o potencial de possibilitar sua “permeabilidade a elementos externos e a renúncia à pretensão de disciplinar, por meio de regras específicas, o infinito conjunto de possibilidades apresentadas pelo mundo real” (BARROSO, 2013, p. 127). Por ser o principal canal de comunicação entre o sistema de valores e o sistema jurídico, os princípios não comportam enumeração taxativa. Mas, naturalmente, existe um amplo espaço de consenso, onde têm lugar alguns dos protagonistas da discussão política, filosófica e jurídica do século que se encerrou: Estado de direito democrático, liberdade, igualdade, justiça (Barroso, 2013, P. 127).

A assunção dos princípios à centralidade do ordenamento jurídico-constitucional contemporâneo ampliou a liberdade do intérprete e do aplicador do direito, especificamente do administrador público, ao mesmo tempo em que o limitou, estipulando as finalidades a serem alcançadas – centradas na proteção e promoção da dignidade da pessoa humana (MOREIRA NETO, 2006).

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A partir desse fundamento, surgem três princípios relevantes para a atuação estatal contemporânea: o princípio da realidade, o princípio da razoabilidade e o princípio da interdição do arbítrio. O princípio da realidade garante que os fatos serão considerados da maneira como a realidade os exterioriza; o princípio da razoabilidade visa a adequação e a proporcionalidade do objeto à finalidade do ato em análise; e o princípio da interdição do arbítrio garante que o ato de poder praticado estará baseado em uma motivação, explícita ou implícita, que justifique as eventuais desigualdades no que se refere à proteção dos direitos humano-fundamentais (MOREIRA NETO, 2006). Busca-se, também, introduzir outros critérios à atividade estatal, complementarmente, de forma a se construir à legitimidade da ação governamental e coadunar com a complexidade da sociedade brasileira contemporânea e com a exigência de proteção e promoção dos direitos humano-fundamentais: os princípios da eficiência, da economicidade, da efetividade e da responsividade, que, se levados a sério, refletem uma mudança importante do constitucionalismo contemporâneo mediante a introdução do resultado como elemento fundamental da verificação do atendimento do interesse social, medido não a partir apenas da ‘legalidade’, mas da ‘finalidade’ entendida tanto como o alcance da razãode-ser específica da norma-meio em questão, mas também como a realização efetiva das transformações sociais buscadas pela norma-meio, tomada quase sempre como uma componente de uma política pública. A eficiência, desse modo, pode ser definida como a conformação entre os resultados pretendidos e os meios empregados em determinada atividade; a economicidade, critério derivado do princípio da eficiência, significaria a adequação proporcional entre os recursos despendidos e os resultados obtidos; a efetividade, que também deriva da eficiência, seria a conformação entre os meios empregados e o que efetivamente se busca transformar em direção à adequação constitucional da realidade social, que deve ser aferida não apenas no caso concreto, mas a partir do contexto social; e, por fim, o princípio da responsividade, resultado direto do Estado Democrático de Direito, em que não basta a resposta do

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agente a uma demanda, mas sim que tal resposta tenha correspondência com a demanda e tenha legitimidade, sobretudo por não tergiversar ou manipular a resposta estatal, de modo a simular atendimento a uma demanda social, sem de fato atende-la. É possível verificar, que os meios normativos de declaração e reconhecimento dos direitos humano-fundamentais e seus instrumentos jurídicos de proteção e promoção estão positivados no sistema jurídico atual, sendo que a maior dificuldade, nesse contexto, encontra-se em sua concretização constitucionalmente adequada, ou seja, a inefetividade atual de certos direitos fundamentais dizem respeito a problemas de aplicação da norma, não a problemas da Constituição vigente. E esses problemas de aplicação das normas variam desde questões políticas, a questões relacionadas ao despreparo técnico e profissional, àquelas questões relacionadas às pré-compreensões jurídicas estabelecidas no paradigma anterior do Direito Público, mas que ainda se fazem presentes na práxis atual de muitos agentes públicos Desse modo, o maior obstáculo à realização dos direitos humano-fundamentais é a ineficácia dos dispositivos constitucionais para solucionar problemas, o que deu causa a uma crise da teoria da constituição. Segundo J. J. Gomes Canotilho (2001), as causas dessa ineficácia podem ser divididas em: 1) Problemas de inclusão: com a pretensão de ser o “estatuto jurídico do político”, a constituição se mostra ineficiente nesse papel, porque não é possível à norma constitucional conformar autoritariamente a sociedade; 2) Problemas de referência: mesmo com o surgimento de novos direitos com o passar do tempo, a constituição ainda tem como foco o indivíduo, mostrando-se indiferente aos novos sujeitos do poder: as entidades organizativas (multinacionais) e os atores neocorporativos (ordens profissionais); 3) Problemas de reflexividade: segundo Canotilho (2001), a teoria da constituição atual passa por uma crise de reflexividade, visto que é impossível um sistema regulativo central gerar

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um conjunto unitário de respostas dotadas de racionalidade e coerência relativamente ao conjunto cada vez mais complexo e crescente de demandas ou exigências oriundas do ou constituídas no sistema social; 4) Problemas de universalização: aqui reside um dos paradoxos fundamentais do discurso constitucional, que é sobrepor o discurso jurídico-constitucional aos discursos reais emergentes, tais como os discursos econômicos ou tecnológicos; 5) Problemas de materialização do direito: a própria esfera jurídica de diferentes âmbitos sociais, como, por exemplo, o direito ambiental e administrativo, sofrem com uma falta de contextualização frente às normas constitucionais, mantendo conceitos e valores que impedem a mudança e a inovação jurídicas; 6) Problemas de reinvenção do território: a supranacionalização e a internacionalização do direito alteraram o papel dos Estados e das Constituições, incorporando novos centros de poder aos ordenamentos jurídicos estatais, como por exemplo, o Mercosul. 7) Problemas de tragédia: significa a transmutação do sucesso da estatalidade em insucesso do paradigma político-estatal, ou seja, existe a necessidade de se incorporar as mudanças sociais no Direito e no Estado para que cumpram o seu papel de maneira efetiva. 8) Problemas de fundamentação: segundo Canotilho, a ideia dirigente compatibiliza-se com uma lógica material de valores, mas coaduna-se pouco com a razão lógica dos discursos analíticos, baseados em paradoxos, dilemas e teoremas. 9) Problemas de simbolização: a sociologia crítica põe em evidência o impasse do dirigismo constitucional através da dissociação entre a prática de dizer e a prática de fazer o direito, demonstrando a falta de reflexividade das normas constitucionais.

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10) Problemas de referência: a impossibilidade de, através de um código unitarizante, dirigir os complexos e diversos sistemas sociais, se baseado em um futuro imprevisível, a não ser em termos utópicos. Essa ineficácia torna a Constituição Federal apenas simbólica, isto é, há um predomínio ou hipertrofia da função simbólica (essencialmente político-ideológica) em detrimento da função jurídico-instrumental (de caráter normativo-jurídico). Desse modo, a principal característica dessa dimensão simbólica consistiria na “produção de textos cuja referência manifesta à realidade é normativo-jurídica, mas que serve, primária e hipertroficamente, a finalidades políticas de caráter não especificamente normativo-jurídico” (NEVES, 2000, p. 101). Nessa ótica, é importante analisar o modo de agir dos governantes, intérpretes da Constituição, que, preponderantemente, é balizado por finalidades políticas. Habermas indica quatro variantes à maneira de se entender o “agir”: agir teleológico (do qual o agir estratégico é um caso ampliado), agir regulado por normas, agir dramatúrgico e agir comunicativo (apud MACHADO, 2015). Na variável teleológica, o agente, concebido individualmente, propõe-se a alterar algo em sua realidade externa-objetiva com vistas à obtenção de alguma finalidade que lhe é desejada de modo predeterminado, mediante a utilização do critério da eficiência. Na variável regulada por normas, há a existência de um mundo objetivo e de um mundo social, e a ação deve se conformar não apenas com o critério de eficiência, mas também com um critério de validade (aceitação mútua e justificada) das normas pelos agentes potencialmente atingidos por seu conteúdo. Na variável dramatúrgica, há a predominância do mundo interno dos agentes e a maneira como elementos desse mundo são filtrados e levados à experiência social e o critério racional utilizado nessa forma de agir é o da sinceridade. E, por fim, o agir comunicativo, que pressupõe uma tripla referência ao mundo, o mundo objetivo, o mundo social e o mundo subjetivo, se utiliza de uma racionalidade reflexiva por

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meio do uso da linguagem para dar efetividade a esse modelo de agir (MACHADO, 2015). A ampliação do campo de atuação constitucional e, consequentemente, do campo de atuação dos administradores públicos, mediante a assunção dos valores ao ordenamento jurídico demanda o uso de uma teoria racional do discurso, efetivada mediante a linguagem e a comunicação, como critério mais adequado para se chegar ao consenso em relação às ações e decisões estatais – o agir comunicativo. Entretanto, a realidade brasileira demonstra que essa teoria do discurso não é efetivada pelo sistema político-administrativo, que funciona pragmaticamente por meio do agir dramatúrgico e do agir estratégico, este último definido como: [...] aquele tipo de ação instrumental em que uma pessoa, em seu agir, utiliza outra pessoa como meio (instrumento) adequado à realização de um fim (sucesso pessoal). [...]. Tal tipo de ação implica que aquele que age tentando influenciar perlocucionariamente um terceiro o faça da perspectiva da terceira pessoa, ou seja, sem se envolver diretamente com aquela, vez que a toma não como sujeito, mas como objeto. [...] o agir estratégico funciona por intermédio do engodo que o agente produz, indicando ilusoriamente um fim como objetivo de sua ação, mas desejando subjetivamente fim diverso (SOUZA CRUZ, in SMANIO; BERTOLIN, 2013, p. 102).

No jogo político-administrativo, é difícil encontrar gestores e administradores públicos que se utilizam o agir comunicativo (ou qualquer como modo de agir que não o dramatúrgico ou o estratégico). Dessa forma, verifica-se um distanciamento entre as normas jurídico-constitucionais e o sistema político-administrativo brasileiro, resultando em um dilema eminentemente ético a ser enfrentado pelos agentes públicos nos processos decisórios: escolher entre a ação que proporciona, de um lado, maiores benefícios pessoais e/ou político-eleitorais ou, de outro, o bem-estar de outras pessoas. Esse dilema acaba por relacionar-se dire-

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tamente com as patologias corruptivas das quais padece a cultura social brasileira: Os fatores culturais e comportamentais dos indivíduos – e, por consequência, dos agentes públicos – por certo que precisam ser relevados nestes cenários, eis que o paradigma que viceja na sociedade contemporânea é o do individualismo, forjado em valores, como a acumulação de bens materiais, que, levados ao extremo, contribuem à fragmentação e ao desequilíbrio do trabalho em conjunto voltado ao público; sujeitos impulsionados por tais parâmetros axiológicos se encontram em situação de fazerem qualquer coisa para alcançar seus propósitos (LEAL, 2013, p. 63).

É possível afirmar, nesse ambiente, que o distanciamento existente entre os mandamentos teórico-constitucionais e o sistema político-administrativo brasileiro contemporâneo tem como uma de suas principais causas o déficit ético existente nas ações dos agentes públicos, no sentido de não serem determinadas por critérios e valores que visam à promoção da dignidade da pessoa humana passíveis de serem arguíveis publicamente, as sim por uma postura estratégica, dramatúrgica e, portanto poiética, como já vimos neste texto. Apesar disso, a arquitetura teoria consentânea à uma “Constituição Cidadã” da qual derivaria uma Administração Pública Cidadã é paradoxalmente acatada e festejada, tanto pelos intelectuais do direito brasileiro, quanto pelas instituições, o que indica a existência de uma cultura constitucional de vanguarda apartada da cultura institucional da Administração Pública, sem que, no entendo, esse hiato seja devidamente denunciado e problematizado. Talvez isso se explique por meio de algumas velhas máximas da sabedoria popular: “o que não os olhos não veem o coração não sente”. Logo, para não precisar mudar, a Administração Pública festeja o novo paradigma proposto para do Direito Público, como se com a ele as instituições brasileiras já estivessem plenamente adequadas. O problema é que “não se pode jogar a sujeira debaixo do

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tapete”. Assim, os problemas só se acumulam. Já é hora de enfrentá -los, e um bom começo consiste em parar de sobrepor o belo discurso da arquitetura jurídico-constitucional à realidade, como se bastasse anunciar o projeto constitucional que a realidade automaticamente ao projeto se conformaria. A realidade não é tão obediente assim e, nela, a sujeito só se acumula no momento. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo. 3ª edição. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2011. ________. Teoria dos direitos fundamentais. 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 2012. BARROSO, Luis Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo – os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 3ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2011 ________. Interpretação e aplicação da Constituição. 6ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2004. ________. O novo direito constitucional brasileiro – contribuições para a construção teórica e prática da jurisdição constitucional no Brasil. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2013. BAUMAN, Zygmund; BORDONI, Carlo. Estado de Crise. Trad. Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar, 2016 BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo – direitos fundamentais, democracia e constitucionalização. 3ª Edição. Rio de Janeiro, Renovar, 2014. BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. 7ª reimpressão. Tradução Carlos Nelson Coutinho; apresentação de Celso Lafer. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. ________. O futuro da democracia – uma defesa das regras do jogo.

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EDUCAÇÃO JURÍDICA NUMA PERSPECTIVA DEMOCRÁTICA NA EDUCAÇÃO INFANTIL: APLICAÇÃO DO ESTATUTO DA CRIANÇA E ADOLESCENTE PARA DIREITOS HUMANOS

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Introdução Atualmente é possível encontrar ações de investigação sobre a complexidade que envolve a educação das crianças, numa pedagogia de aproximação do universo infantil,mas nem sempre foi assim na história da escolarização da criança.O atendimento infantil em idade anterior à escolaridade obrigatória se organizou na informalidade, como um espaço de acolhimento que influenciado por determinadas concepções de infância, nas quais a criança não era reconhecida como sujeito de direitos e nem como individuo social e cultural, sem qualquer compromisso com o processo de aprendizagem e sem levar em consideração a criança como ser em potencialidade.Conforme preconiza o Estatuto da Criança e Adolescente, a criança é considerada “pessoas em desenvolvimento” e seu desenvolvimento não pode ser abordado de uma maneira simplista. O desenvolvimento infantil ocorre à partir da significação que 1

Aluna especial do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos – UFG. Bacharel em Direito. E-mail: [email protected].

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se cria das sugestões e limitações socioculturais em sua interação seja na família, escola e com as experiências com o ambiente, isto “porque a vida não significa mera existência passiva” (DEWEY, 1936, p. 32). Sendo a infância um momento simbólico e relevante para o contexto sociocultural, ela adquire uma materialidade nas relações reais entre os sujeitos pelos processos de internalização e externalização, que se renovam conforme a dinâmica da sociedade, nesse contexto a educação tem um papel fundamental. “Com o renovar da existência física, também se renovam, no caso dos seres humanos, as crenças, ideias, esperanças, sofrimentos e hábitos” (DEWEY, s.d.:p.20). Neste sentido a educação é a salvaguarda desta renovação, portanto, da própria continuidade social da vida, e a escola tem um papel fundamental” (DEWEY, 1936, p. 20). Nesse contexto, o desafio surge quando a educação escolar é vista sobre outra perspectiva, como um espaço de apenas mera transmissão de conteúdo programático e despreza a singularidade do indivíduo, produzindo subjetividades que se internaliza na vida do aluno e compromete a potencialidade e os direitos da criança, inclusive de ser uma construtora de conhecimento, portadora de uma identidade infantil, o que impede uma vivência democrática, cerceando a autonomia. Educação Jurídica: aplicação do Estatuto da Criança e do Adolescente na educação infantil A educação jurídica numa perspectiva democrática demanda a discussão do papel da escola na formação para a cidadania, sendo que a democracia deverá estar presente em todos os níveis do contexto escolar, a educação é aqui entendida, como a formação do ser humano para desenvolver suas potencialidades de conhecimento, de julgamento e de escolha para viver conscientemente em sociedade, o que inclui a noção de que o processo educacional, em si, contribui tanto para conservar, quanto mudar valores, crenças, mentalidades, costumes, práticas e educar pessoas para uma sociedade de indivíduos fraternos, numa cultura de Direitos Humanos.

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O Estatuto da Criança e do Adolescente faz parte da cultura dos Direitos Humanos, direcionado para a infância e a adolescência. O seu fundamento é, pois, considerar crianças e adolescentes como sujeitos de dignidade e de direitos. O conteúdo do Estatuto expressa uma nítida superação de uma concepção de psicologia do desenvolvimento humano e de educação, amplamente criticada e superada epistemologicamente, que via crianças e adolescentes miniaturas de adultos, a serem moldados autoritariamente. A necessidade de um amplo conhecimento sobre o Estatuto da Criança e Adolescente (ECA), tem ensejado a implementação de políticas públicas que contam com a adesão de vários segmentos organizados da sociedade civil, mas um dos caminhos mais promissores está na escola. Nesta concepção, surgiu o projeto escola, idealizado pelo Juizado da Infância e Juventude e consiste na divulgação do ECA nos espaços escolares. Tal experiência permitiu compreender a inserção da educação jurídica na educação infantil, e refletir sobre como atribuir significados às situações sociais e a possibilidade de escuta e dar voz aos sujeitos envolvidos. Sobre o ECA e sua relação com a educação infantil, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira – Lei nº 9394/96 – dispõe: § 5º - O currículo do ensino fundamental incluirá, obrigatoriamente, conteúdo que trate dos direitos das crianças e dos adolescentes, tendo como diretriz a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, que institui o Estatuto da Criança e do Adolescente, observada a produção e distribuição de material didático adequado (BRASIL. LDB. 1996. Título V, Cap. II, Seção III, dispositivo incluído pela Lei nº 11.525, de 2007). Ocorre que, a partir da análise das experiências nas escolas, percebe-se que parte dos educadores não enxerga a criança na sua autonomia e, por vez, incentiva a passividade, não levando em consideração a complexidade que envolve o universo infantil. A questão é problematizar as diferentes linguagens que permeiam a educação jurídica sem levar em consideração a manifestação e experiência da criança, pois a mesma deve ser vista como um sujeito integrado, total, constituído

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não apenas de cognição, mas também de afeto, expressão, movimento e linguagem2. Ressaltando, que não se trata de transferir para os professores as responsabilidades jurídicas e assistenciais, mas sim refletir sobre o mestre como um instrumento para fazer sua parte no que tange à educação jurídica na divulgação do Estatuto da Criança e Adolescente numa abordagem democrática. Essa possibilidade ocorre quando há “mobilização do conhecimento que represente mudanças atitudinais perante o mundo”.3Percebe-se que existe uma incoerência no ensino do Estatuto, às vezes, utiliza-se de uma educação moral impositiva, nas quais as questões éticas e morais não são construídas e refletidas pelos professores junto ao aluno, o que impede a realização de uma educação para a democracia e cidadania. Nesse sentido, Nalini4 diz que o ensino jurídico precisa ser encarado como instrumento de realização integral dos seres humanos, como via de concretização da dignidade da pessoa, e não expressão da força estatal ou técnica de coerção impeditiva da barbárie, atentando pelo respeito aos Direitos Humanos. Refletindo o Eca na sua Interdisciplinariedade e Alteridade O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) também é um tema educativo transversal. A multidimensionalidade que o configura, estabelece as suas articulações com as diferentes áreas do conhecimento e seus respectivos conteúdos. Compreender a abrangência do Estatuto requer, pois, uma abordagem interdisciplinar, que dê conta do seu alcance complexo e multifacetado. Reduzi-lo a instrumento apenas normativo-repressivo ou, ao contrário, entendê-lo como uma carta de privilégios ilimitados, como certas concepções imputam, significa cometer-se um reducionismo do seu alcance, afastando sua articulação 2

DIDONET, V. Creche: a que veio... para onde vai... Em Aberto, 18 (73). 2001

3

CALISSI, Luciana (Org.); SILVEIRA, Rosa Maria Godoy (Org.). O Eca nas Escolas: perspectiva interdisciplinares. 2012.

4

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com a cultura dos Direitos Humanos. Como leciona Candau5, no plano educacional, privilegia a interdisciplinaridade para a promoção de uma visão crítica sobre a construção de conhecimento e a implementação dessas práticas educacionais por meio de uma pedagogia crítica fundamentada no construtivismo sociocultural. Na sala de aula cada aluno deverá ser considerado como único e seu desenvolvimento não é previsível, nem determinável. É nesse cenário que surge a necessidade de consolidação de uma ética da alteridade, esta considerada como um constante exercício de colocar-se no lugar do outro, nesse sentido, a alteridade implica compreender o cuidado com o outro, não como um dever moral, uma obrigação imposta desde fora, mas um comprometimento daquele que sente afetado pela dor do outro, como igualmente digno, o que requer uma compreensão do exercício dos Direitos Fundamentais Humanos. Os Direitos Humanos Fundamentais encontram na dialética do reconhecimento sua base ontológica, sendo que o re-conhecimento do outro, como igualmente digno constitui elemento fundamental da justiça como um ideal realizável da alteridade, esta dialética atribui a esses direitos um caráter aberto justamente por estar em constante construção, o que não inviabiliza e nem pode excluir sua capacidade de fundamentar o convívio (COELHO, 2012). É também crucial a advertência de Larrosa6que apresenta a infância, enquanto “o outro de nossos saberes”, perante a qual deve-se colocar em posição de escuta. Nesse aspecto, ao ministrar sobre a disciplina do Estatuto, percebe-se que as crianças, na sua necessidade de serem ouvidas, expressam e rompem o silêncio através dos comportamentos, desenhos, gestos, choros, brincadeiras, e, na própria agressividade. A construção da confiança entre adultos e crianças é um convite para entrar no universo infantil para que as mesmas possam conversar sobre seus medos e angústias 5

CANDAU, V. M. Direitos humanos, educação e interculturalidade: as tensões entre igualdade e diferença. Revista Brasileira de Educação, 2008.

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SCHILLING Flávia O enigma da infância ou o que vai do possível ao verdadeiro. In: LARROSA, Jorge e LARA, Nuria Péres de. 1998

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Essas perspectivas sobre as crianças são fundamentais para uma educação jurídica em Direitos Humanos, no qual deve antes pensar na prática da dignidade e na construção de uma relação intersubjetiva baseada na sensibilidade e amor. Educação Jurídica para Direitos Humanos e democracia na educação infantil O direito à educação jurídica está relacionado à área dos Direitos Sociais, sendo de suma importância para a manutenção da dignidade de todo indivíduo, tornando necessário não apenas seu reconhecimento, mas principalmente sua proteção. Sob essa perspectiva, torna-se necessário a compreensão do ensino jurídico, com a efetivação dos Direitos Humanos na sociedade através da educação voltada para os Direitos Humanos na busca pela conquista da dignidade. Essa perspectiva, direcionada na formação ética e política da sociedade, trata-se, pois, do empenho de cultivar princípios democráticos, facilitando a sensibilização e a reflexão do indivíduo para a importância em respeitar o próximo. Nesse cenário, é valido lembrar que este processo de formação é a primeira etapa de uma nova visão da educação, focada na preservação dos Direitos Humanos. É, na verdade, um processo contínuo que está sempre renovando. Celma Tavares define o objetivo maior da Educação em Direitos Humanos como formação da pessoa em todas as suas dimensões a fim de contribuir ao desenvolvimento de sua condição de cidadão e cidadã, ativos na luta por seus direitos, no cumprimento de seus deveres e na formação de sua humanidade. Dessa forma, uma pessoa que goza de uma educação neste âmbito, é capaz de atuar frente às injustiças e desigualdades, reconhecendo-se como sujeito autônomo e, ademais, reconhecendo o outro com iguais direitos, dentro dos preceitos de diversidade e tolerância, valorizando assim a convivência harmoniosa, o respeito mútuo e a solidariedade. Com isso, a intenção é discutir a necessidade de uma prática educacional jurídica voltada para criança em que seja trabalhada numa

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perspectiva democrática dos Direitos Humanos. Essa concepção, levada ao cotidiano escolar, exige a criação de um espaço de diálogo, em que o respeito e a escuta ao outro são fundamentais porque verificam com a experiência que a cultura escolar se encontra “engessada”, e, pensada de maneira rígida e monolítica, que, dificilmente, deixa espaço para que a cultura de uma educação jurídica voltada para os Direitos Humanos possa penetrá-la e ser compartilhada entre docentes e discentes. WARAT (2004, apud LEVY, p. 51)) enfatiza que o professor, antes de tudo, deve ser alguém apto a problematizar, dialogar e a ajudar o aluno a construir sua concepção de mundo sem impô-la como o eco decadente de uma voz apaixonada por si mesma. Logo, as relações dentro do espaço escolar, deverá promover práticas educativas a partir de contextualização e problematização da realidade das várias crianças, num ambiente de socialização em que todos tenham seus direitos respeitados, num ideal de democracia (DIAS, 2007)7. No entanto, uma formação de educação jurídica para democracia requer emancipação, autonomia, a formação para a participação nas diferentes formas de comunicação que a sociedade oferece são condições importantes na construção do conhecimento e para efetivação dos Direitos Humanos. Nesse sentido, uma educação democrática para os Direitos Humanos, envolve a participação de todos em um ambiente de diálogo em que todos têm autonomia e reconhecimento do outro e de suas diferenças para que haja respeito e interação, pois, nas palavras de (SCHILLING, p.90) embora haja dilemas nesse debate, também é consensual que é difícil tratar direitos e Direitos Humanos em um país que desrespeita sistematicamente os direitos. Temos pouca vivência universal de direitos que informem as experiências cotidianas as cidadãs e dos cidadãos. Como também destacam (WEINGARTNER e SARLET, p. 421), a educação(abrangendo ensino e pesquisa) e a formação para uma vida 7

DIAS, A. A. Da educação como direito humano aos direitos humanos como princípio educativo. In R. M. G. Silveira, A. A. Dias, L. F. G. Ferreira, M. L. P. A. M. Feitosa, & M. N. T. Zenaide (Orgs). 2007.

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com dignidade e, nesse contexto, uma educação para os Direitos Humanos e fundamentais, constitui tarefa (dever constitucional) irrenunciável do Estado e da Sociedade, no âmbito de todas as unidades, sendo mesmo possível afirmar que a educação para os Direitos Humanos e fundamentais integra o que se tem designado de um mínimo existencial sociocultural. Tal convicção, porém, exige a compreensão de que a educação jurídica deverá pautar-se dentro de uma universalidade inclusiva como forma de efetivação dos Direitos Humanos, pois estes são caracterizados por uma forte polissemia, nesse contexto, a educação jurídica no ambiente escolar, levará em consideração como questão relevante a formação para convivência na diversidade, pois, para que haja respeito à diversidade na escola é necessário que as crianças sejam reconhecidas como iguais em dignidade e em direito. Juizado da Infância e Juventude de Goiânia– Programa Juizado Escola O Programa Juizado Escola, desenvolvido pela Divisão de Agentes de Proteção, Voluntários do Juizado da Infância e da Juventude de Goiânia, tem como finalidade divulgar o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n° 8. 069/90) à sociedade em geral, especialmente nas escolas e colégios (alunos/pais e professores), centros comunitários, centros municipais de educação infantil, entidades de atendimento à criança e ao adolescente, comunidades religiosas, dentre outros. O projeto tem como proposta formar uma consciência crítica tanto na nova geração de crianças e adolescentes como também junto à família, à escola e à comunidade de um modo geral, no tocante aos direitos e deveres a cada uma destas entidades e do Poder Público no processo de formação da criança e do adolescente, como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos. Deste modo, o projeto visa divulgar e orientar a sociedade em

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geral quanto à necessidade de se cumprir e fazer valer as normas esculpidas no Estatuto da Criança e do Adolescente. De acordo com as visitas realizadas nas escolas, percebe-se interesse por parte da gestão e também do quadro docente na divulgação do ECA, mas que também algumas resistências foram manifestadas por alguns professores por um entendimento equivocado sobre a referida lei. Desta forma, entende-se que a capacitação, então, é necessária para que, não só os professores, mas toda gestão escolar conheça mais o Estatuto e assim, possa desenvolver formas adequadas de inseri-lo nos currículos escolares. É importante a propagação do ensino jurídico, Estatuto da Criança e Adolescente, mas para isso o desafio é inicialmente sensibilizar os profissionais da educação e fazendo-o compreender que o ECA não é apenas um instrumento criado para proteger a criança e adolescente, mas uma questão de possibilitar a compreensão dos princípios dos direitos fundamentais que estão por trás do Estatuto e assim tornando-a objeto de interesse de reflexão numa perspectiva democrática e humanista. O projeto está comprometido em incorporar a questão dos direitos defendidos pelo ECA, no âmbito escolar à partir de palestras, debates, teatros sobre os direitos e deveres da criança e adolescente, no qual a abordagem é feita de acordo com o público alvo, incentivando a participação, interação, em que cada aluno é visto como um ser em potencial, com isso a preocupação de incentivar o interesse e uma visão crítica do ordenamento jurídico nas salas de aula. O compromisso ético de compreender a infância como categoria social é importante nas discussões e palestras programadas para o público alvo, o que demanda a contínua formação dos agentes envolvidos, que se reúnem com outras equipes da rede de atenção e proteção para partilhar informações com seus pares pensar em práxis, à semelhança da phronesis aristotélica, que implica compromisso ético de realizar mudanças de melhor qualidade. É importante observar:

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Aprende-se a phrónesis com a experiência integral de vida, o acúmulo de informações ou desenvolvimento de uma habilidade específica não são suficientes. Por isso, Aristóteles dizia que a phrónesis não pode ser ensinada como uma techné. Ao invés de diretrizes que determinem como agir e cada situação, o que se deve buscar é uma sabedoria mais profunda sobre o ser humano e sobre a vida (PACHECO, 2010, p. 19-35).

A singularidade de cada criança contraposta à diversidade das infâncias traz responsabilidades tanto aos profissionais da educação como aos responsáveis pela implementação de políticas públicas que devem apresentar alternativas de forma integrada entre a educação e o cuidado com as crianças. A discussão e a ação são importantes, mas é preciso também registrar as experiências. Dimensões Complexas na Educação Infantil a partir da Análise da Experiência A questão da infância é tomada como central. Trata-se de pensar não apenas em adaptação curricular, mas recriação. Logo, é necessário pensar em diferentes relações educativas dando visibilidade à criança não só atentando para aspectos relativos ao seu processo de desenvolvimento, mas destacando sua ação social a partir da experiência que essa tem. Diante do contato com as escolas, percebe-se que muitas vezes o tratamento com a infância não é estabelecido de uma forma dialogada. Pois, diante das dimensões complexas que envolvem a infância, podemos entender a criança não só como um ser singular, mas social num processo cultural de construção. A necessidade do reconhecimento da alteridade além da desconstrução de conceitos pré-fixados tornam-se necessários para evitar a negatividade da infância. É necessário a compreensão da positividade da infância.

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As crianças, finalmente, possuem modos diferenciados de interpretação do mundo e de simbolização do real, que são constitutivos das culturas da infância, as quais se caracterizam pela articulação complexa de modos e formas de racionalidade e de ação (SARMENTO, 2005, p.371). Assim, o risco de que a garantia à educação infantil se transforma em escolarização, com preocupação de acesso a escola e antecipação da alfabetização meramente pelo conteúdo, torna-se preocupante, pois poderá não levar em consideração a experiência cultural de cada criança. A institucionalização da infância, definindo como espaço-tempo para a educação da criança, exige que a escola não seja apenas lugar da escolarização, mas espaços de educação, de trocas de experiências, cultura, vida, nela se negociem projetos, saberes, sujeitos. A preocupação com a educação precisa se dar na perspectiva da elaboração de propostas curriculares, com objetivo de formação dentro de uma perspectiva de diálogo com a contemporaneidade, ou seja, num currículo desenhado no plano de produção e negociação e sim privilegiar seu desenvolvimento como sujeito social. Rocha (2001, p. 32-3) problematiza: Não é por acaso que prefiro o termo educar no contexto da educação infantil. Este termo parece dar um caráter mais amplo que o termo (…) Cabe, então, indagar, a esta altura da discussão: valeriam para a educação infantil parâmetros pedagógicos escolares, estabelecendo-se apenas diferenciais relativos à faixa etária: minha tendência neste momento é responder: definitivamente não, uma vez que a tarefa das instituições de educação infantil não se limita ao domínio do conhecimento, assumindo funções de complementaridade e socialização relativas tanto à educação como ao cuidado e tendo como objeto as relações educativo-pedagógicas estabelecidas entre e com as crianças pequenas (zero a seis anos).

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Uma educação que não se limita à disseminação de apenas conteúdo, mas que permite funções de complementaridade, conforme abordado pelo autor acima, requer o resgate da experiência humana. Este resgate invoca o uso de múltiplas linguagens através das quais as crianças se expressam e que sejam oferecidos espaços para a diversidade cultural no contexto da educação infantil, onde elas possam viver plenamente as suas infâncias. Considerações Uma educação que possibilite a participação dos alunos na produção de sua existência, como sujeitos de direitos, ativos na realidade que se constrói, é uma educação voltada para a democracia. Assim, além da preparação para a cidadania, a função social da escola consiste na formação de seus alunos para a convivência numa cultura de diversidade, em que a criança nas suas diferentes formas de manifestação, precisa ser valorizada, isso faz parte da constituição e aceitação de uma identidade infantil. E é sob essa perspectiva que a educação jurídica, especificamente o ensino do Estatuto da Criança e Adolescente, na sua multidimensionalidade, não poderá contemplar apenas aspectos normativos-jurídicos, mas sim abranger outras dimensões da infância para a garantia de uma educação democrática para os Direitos Humanos, em que a abordagem deverá considerar a alteridade, com isso a necessidade de desconstruir os conceitos de crianças isoladas, incapazes de manifestar seus pensamentos e que possam ser autores de suas vozes. Na construção desse modo de ver, é necessário, como ensina Larrosa & Lara (1998:08), aprender a imagem do outro não como a imagem que olhamos, mas com a imagem que nos olha e nos interpela. Sendo assim, conseguiremos formar cidadãos críticos, autênticos, humanos e capazes de transformar o meio em que vivem.

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“Que Deus

Nação”: a primazia de uma visão de mundo religiosa Poder Legislativo e suas implicações sobre os princípios democráticos brasileiros

tenha misericórdia de nossa

discursar do

no

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CONCILIAÇÃO PRÉ-PROCESSUAL, SEM ADVOGADO, NO DIREITO DE FAMÍLIA: A INSEGURANÇA JURÍDICA DO OUTRO, NUMA VISÃO KANTIANA, E DO PATRIMÔNIO NUM PARADOXO AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Antônio Fernando Ferreira de Souza1

1. Introdução A presente pesquisa pretende demonstrar que o sistema de mediação/conciliação pré-processual, no Direito de Família, necessita de advogado para sua promoção, haja vista que a variação patrimonial pode ultrapassar os 20 salários mínimos, exigidos por Lei, e está, de certa forma, atingindo uma classe trabalhadora com fundamentação consolidada no art 133, CF/88: “O advogado é indispensável à administração da Justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei” (BRASIL, 2012, p. 49), onde afeta diretamente os direitos humanos constitucionais, por retirarem o direito desses profissionais de atuarem obrigatoriamente nessas causas, devido à utilização do método em vigor. Esboçar que há necessidade do advogado no complexo sistema 1

Aluno especial do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Direitos Humanos - UFG. Bacharel em Direito, especialista em Docência do Ensino Superior, em Direito Civil e Processo Civil.

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mediador aplicado ao Direito de Família, pelo método pré-processual, com visão na proteção do patrimônio dos envolvidos é aqui o objetivo principal e os objetivos secundários são os de manter as partes seguras do negócio jurídico no momento da dissolução do patrimônio. A metodologia usada é a da pesquisa teórico-bibliográfica. Observa-se a mediação como meio da solução de controvérsias do Judiciário (VASCONCELOS 2008), no método compositivo pré -processual sem advogado no Direito de Família, com a finalidade de oferecer uma saída à população que diariamente peregrina nos Fóruns à procura de uma resposta satisfatória aos seus processos. Por outro lado, trabalhar de forma igualitária, pacificando as demandas, faz da conciliação/mediação uma grande ferramenta da justiça nos centros judiciários do País, se a observarmos como simples método de composição de litígios do Judiciário. Numa visão platônica, Kant demonstra e nós justificamos que a injustiça é a ruptura dessa ordem, “a ordem natural e social´´ e dá-se pela afirmação da subjetividade ou particularidade do indivíduo pura e simplesmente, que decorre da sua pretensão de fazer-se medida de todas as coisas ( SALGADO, 1995, p.24). Nasce uma questão axiológica sob a qual pondera um conceito de justiça e igualdade perene, onde as duas vertentes enfrentam-se perante o direito do homem numa ordem constitucionalista já há muito almejada. Kant traz o primeiro (direito do homem), como princípio fundamental de valorização jurídica, porém, o segundo (igualdade), é visto no conceito aristotélico por Kant, como o conceito de igualdade, e é trabalhado com esmero ao definir justiça, visto que, para ele, sua essência identifica com o igual (SALGADO, 1995, p. 46). Podemos dizer que, de certa forma, a Constituição traduz-se por uma compilação de temas normatizados, aos quais tem a finalidade de orientar aqueles que possuem o domínio dentro de uma sociedade, cuja própria normatividade venha dominar os que discordam dessa sociedade, que hora, em maior número, detenha o poder de resolução dos problemas discutidos, de certa forma, em nível de debates políticos ou

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socioeconômicos. Se a observamos dentro das suas características, poderemos nos defrontar com os ensinamentos trazidos à baila uma visão de Kelsen, que aponta a tríplice característica da Constituição no sentido formal: a origem constituinte – Constituição é a reunião de normas que foram enunciadas em forma constituinte ou por um órgão constituinte; a rigidez ou supremacia formal – a Constituição é um conjunto de normas que possuem a força de lei formalmente superior, ou que são dotadas de uma eficácia jurídica qualificada em relação às demais normas jurídicas do ordenamento. Em outras palavras, estão subtraídas do legislador ordinário e somente podem ser alteradas ou revogadas de acordo com um processo legislativo de reforma muito mais complicado do que o exigido ordinariamente. Essa característica confere aos textos constitucionais maior estabilidade e proteção contra as maiorias ocasionais ou contingentes; e a função normativa originária – por ser ela fonte de legitimidade das outras normas do sistema jurídico, (lei das leis), norma normarium. Lassale escrevera que a “Lei fundamental, se realmente pretende[sse] ser merecedora desse nome, dever[ia] informar e engendrar as outras leis comuns originárias da mesma. A lei fundamental, para sê-lo, dever[ia], pois, atuar e irradiar-se através das leis comuns do país”. A estrutura hierarquizada do ordenamento jurídico, para Kelsen, coloca a Constituição no nível mais alto do Direito nacional, de modo que as normas inferiormente escalonadas devem respeito ao texto constitucional: `”o único fundamento de validade de um estatuto é ter sido criado de modo previsto pela Constituição” (SAMPAIO APUD KELSEN, 2003, p. 9).

Nas palavras de Barroso, o relato da norma, muitas vezes, demarca apenas uma moldura dentro da qual se desenham diferentes possibilidades interpretativas (BARROSO/BARCELLOS, 2004, p. 472).

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A partir das indagações constitucionalistas, pode-se correr o risco de não sair do positivismo normativista, que por sua vez, vem proporcionar ao direito em seu Estado Democrático de Direito, um novo modelo de superação. É um novo paradigma cujo fenômeno se torna possível a partir dos princípios e regras produzidos democraticamente, introduzidos no discurso constitucional e que representam a efetiva possibilidade do resgate do mundo prático (STRECK, 2007, p. 3). O que via de regra não se aplica à Conciliação/Mediação, como norma constitucional, já que vai de encontro ao princípio da igualdade e ao princípio da dignidade da pessoa humana, quando se interpõe como mediadora em causas que ultrapassam valores acima de 20 salários mínimos, já definidos em lei anterior. Dispensando a figura do causídico, na exegese da palavra, “poderão” , quando dita no art. 10º do Código de Processo Civil de 2015, Lei 13.140: “As partes poderão ser assistidas por advogados ou Defensores Públicos.” A contradição verificada vem na mudança do sentido da palavra “deverão” ser assistida por advogados ou defensores públicos, (grifo nosso) e, dessa forma, teriam uma maior orientação jurídica e o patrimônio dos envolvidos estaria protegido, independentemente da própria mediação ou a da conciliação ora implantada em nosso ordenamento jurídico de forma mais equânime. Observemos que o Estado toma a forma de acordo com a vontade de seus integrantes, para tanto. Não é necessário, de modo algum, pressupor-se o contrato como um factum, mas uma simples ideia da razão que, todavia, possui a sua realidade prática indiscutível, pois liga todo legislador de modo que estabeleça as suas leis como se pudessem ter brotado da vontade reunida de todo o povo, e veja a cada súdito na medida em que queira ser cidadão, como se tivesse igualmente consentido em uma vontade semelhante. Esta é, pois, a pedra de toque da jurisdicidade de toda a lei pública (RADBRUCH, apud, KANT, 2004, p. 85).

Partindo dessa premissa, entre o parecer ser a vontade do povo e

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legitimamente a vontade do povo, há um grande abismo a ser estudado, para que se tenha a real visão de todo um contexto sobre o tema a ser desenvolvido. 2- O Direito de Família na perspectiva da dignidade da pessoa humana e do direito do homem de viver em família Tempos atrás era percebível que havia uma espontaneidade de viver em grupos, de forma natural, segundo VENOSA: “A família é uma instituição permanente e integrada por pessoas cujos vínculos derivam da união de pessoas” (2001, p. 21). Há quem nos diga que “a família é um agrupamento informal, integrando sentimentos, valores e a realização de projetos de felicidade” (BERENICE, 2013, p. 27). Existem várias possibilidades de família, como a família substituta, monoparental, parental, composta, pluriparental ou mosaico, natural, extensa ou ampliada, eudemonista, homoafetiva, informal, matrimonial e poliafetiva. Todas essas escolhas familiares estão devidamente protegidas por lei. A Constituição de 1988 trouxe, também, alguns avanços na área de família e, com isso, corrigiu matérias já pacificadas pela nossa jurisprudência, como a não-compulsoriedade da retirada do nome do marido, as uniões estáveis, homoafetivas e outras. Basta que observemos A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 132, que conferiu “a interpretação conforme a Constituição Federal ao art. 1.723 do CC, a fim de declarar a aplicabilidade de regime da união estável às uniões entre pessoas do mesmo sexo” (ADI Nº 4.277, STF). Numa percepção do outro e da família, Immanuel Kant, diz que: A união sexual é o uso recíproco que um ser humano faz dos órgãos e faculdades do outro. [...] A união sexual, de acordo com a lei, é o casamento, isto é, a união de duas pessoas de sexos diferentes para a posse por toda a vida dos atributos sexuais recíprocos. É possível que a finalidade da geração e

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educação dos filhos seja uma finalidade da natureza, para o que esta implantou as inclinações de um sexo pelo outro. Entretanto, não é requisito aos seres humanos que casam fazer disso sua finalidade de modo a compatibilizar sua união com direitos, pois, de outra maneira, o casamento seria dissolvido como um cessar da procriação. O uso natural que um sexo faz dos órgãos sexuais do outro é gozo, para o qual um se coloca à disposição do outro. Neste ato, um ser humano torna a si mesmo uma coisa, o que conflitua com o direito da humanidade em sua própria pessoa. Só há uma condição na qual isso é possível: a de quando uma pessoa é adquirida pela outra, como se fosse uma coisa, aquela que é adquirida, por sua vez, adquire a outra, pois dessa forma cada uma se recupera e restaura sua personalidade (KANT, 2010, p. 85).

Segue-se a partir da procriação nessa comunidade um dever de zelar por sua prole, ou seja, os filhos que, como pessoas, têm por sua criação um direito inato original ao cuidado por parte dos seus pais até serem capazes de cuidar de si mesmos (KANT, 2010, p. 87). Somos lembrados que o Estado agia de forma imperiosa no seio da família, com controle, nos regimes comunistas da Rússia, Iugoslávia, Bulgária e Tchecoslováquia, (VENOSA, 2001, p. 24). Numa época em que o marido era considerado o dono da família, o Estado cria normas protetivas mas, nem por isso, torna o Direito de Família em direito público, haja vista que, não há norma que venha definir a felicidade de estar em família, isso é um direito do homem que surge naturalmente e de forma agradável ao próprio homem. Numa outra linha de pensamento, porém, voltado para família, Hegel, mais enfático, nos Princípios da Filosofia do Direito, e de forma mais objetiva, nos ensina o que é família e o Direito que pertence ao indivíduo em virtude da unidade familiar: 158 – como substancialidade imediata do espírito, a família determina-se pela sensibilidade de que é uma, pelo amor, de tal modo que a disposição de espírito correspondente é

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a consciência em si e para si e de nela existir como membro, não como pessoa para si. 159 – O direito que pertence ao indivíduo em virtude da unidade familiar e que é primeiro, a sua vida nessa unidade só adquire a forma de um direito como momento abstrato da individualidade definida quando a família começa a se decompor e aqueles que devem ser os seus membros se tornam, psicológica e realmente, pessoas independentes. O que eles traziam à família é só um elemento constitutivo do todo, recebem-no agora no isolamento, quer dizer, só segundo aspectos exteriores [fortuna, alimentação, despesas de educação] (HEGEL, 2000, p. 150).

As palavras de HEGEL, onde nos afirma que “o elemento moral, objetivo do casamento, consiste na consciência desta unidade com fim essencial, porquanto no amor, na confiança e na comunhão de toda a existência individual” (2000,p. 152), também nos mostra que o casamento é mais que uma simples relação contratual. Quando há dissolução do casamento ou da união estável, em boa parte dos casos, existe um patrimônio a ser dividido. A Lei tenta impedir que os recém-separados dissolvam o patrimônio entre si, se forem casar novamente, o que é ditado pelo artigo 1.641, I, do CC: I - É obrigatório o regime da separação de bens no casamento; II - das pessoas que o contraírem com inobservância das causas suspensivas da celebração do casamento;

Observamos que a pretensão do Estado é injusta e incisiva e que, por via de regra tenta punir as pessoas cuja separação origina do casamento. Porém não trás qualquer impedimento para quem dissolve a união estável. A figura do advogado, nesta hora, torna-se peça admissível, para proteger uma das partes ou ambas, do enriquecimento ilícito,

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com uma desigualdade da partilha de uma das partes. O Estado, através do casamento institucionalizado, detém uma intervenção na família natural, com isso, faz surgir o Direito Subjetivo de cada indivíduo na família, com suas nuances formais, deixando o livre-arbítrio fora do que define como família constitucionalizada. 2.1 - A mediação como forma de composição de conflitos e pacificação dos litígios A Resolução 125/10 do CNJ trata da criação dos Núcleos Permanentes de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos, e, com eles a possibilidade de realização da autocomposição das demandas, trazendo assim a pacificação da sociedade através da conciliação e mediação. Conforme Mauro Cappelletti “o direito de acesso efetivo tem sido progressivamente como sendo de importância capital entre os novos direitos sociais e individuais uma vez que a titularidade de direitos é destituída de sentido, na ausência de mecanismos para sua efetiva reinvindicação” (VASCONCELLOS, apud CAPPELLETTI, 2008).

Os novos métodos de composição das demandas, onde citamos a conciliação e a mediação, estão amparados pela Lei 13.140 de 26 de junho de 2015 e também na Lei 13.105 de 16 de março de 2015, onde os acordos realizados pelas próprias partes e devidamente homologados pelo juiz podem vir a ter um maior grau de solução de demandas, por conseguinte, uma maior procura pelo jurisdicionado. A busca da solução do conflito de modo mais amigável, menos impositivo e penoso possível para as partes, pode trazer uma esfera de sentimentos da harmonia menos gravosa, em contrapartida, vir a reduzir a carga do serviço judiciário e a diminuição do retardo da prestação jurisdicional. A conciliação é responsável por incentivar a realização de acordos entre as

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partes litigantes, permitindo a simplificação do processo e a realização da pacificação social. Partindo do pressuposto de que a mediação/conciliação pode colher frutos resultados para as partes, pois possui a celeridade almejada por todos, tendo o Judiciário como prestador de um serviço inovador com a humanização do sistema, e, o jurisdicionado como usuário do serviço ora posto em atividade. De uma forma diferenciada não prescinde de advogados, porém, em causas de família, em que os valores em questão e ocultos poderão ficar sem solução, haja vista que somente com o direito não poderão ser resolvidas, nesses momentos poderá a mediação/conciliação, necessitar desse profissional. 2.2 – Uma breve visão da Lei 9.099 de 1995 Os Juizados Especiais Cíveis de acordo com a Lei nº 9.099/95 possuem, entre outras atribuições, o objetivo de realizar a conciliação, julgamento e execução de causas cíveis cuja complexidade seja menor, porém, não menos importante – art. 98, I,CF/88. Art. 98. A União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados criarão: I- juizados especiais, providos por juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e sumaríssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau; II- justiça de paz, remunerada, composta de cidadãos eleitos pelo voto direto, universal e secreto, com mandato de quatro anos e competência para, na forma da lei, celebrar casamentos, verificar, de ofício ou em face de impugnação apresentada, o processo de habilitação e exercer atribuições concilia-

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tórias, sem caráter jurisdicional, além de outras previstas na legislação. § 1º Lei federal disporá sobre a criação de juizados especiais no âmbito da Justiça Federal (Renumerado pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004). § 2º As custas e emolumentos serão destinados exclusivamente ao custeio dos serviços afetos às atividades específicas da Justiça. (BRASIL, Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004).

Quando se fala de causas de menor complexidade não quer se falar em causas menos importantes. São causas em que as análises de elementos de provas sejam de fácil acesso, até mesmo porque, de acordo com a lei, é uma matéria de amplo conhecimento dos operadores do Direito, especialmente os juízes, haja vista não ser necessário maior aprofundamento para ser julgada. Por ter menor complexidade, em tese, há celeridade na solução, o que é benéfico para o usuário, que busca justamente a eficiência do Poder Judiciário. Partindo de um pensamento com essa forma de compreensão, observemos o que pode ser julgado pelos Juizados Especiais Cíveis: Art. 3º - O Juizado Especial Cível tem competência para conciliação, processo e julgamento das causas cíveis de menor complexidade, assim consideradas: I - as causas cujo valor não exceda a 40 vezes o salário mínimo; II - as enumeradas no art. 275, inciso II, do Código de Processo Civil; III - a ação de despejo para uso próprio; IV - as ações possessórias sobre bens imóveis de valor não excedente ao fixado no inciso I deste artigo (BRASIL, Lei 9.099/95).

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De acordo com o inciso II do artigo 3º, observa-se que arremete para o artigo 275, inciso II, do Código de Processo Civil de 1973: II - nas causas, qualquer que seja o valor: a) de arrendamento rural e de parceria agrícola; b) de cobrança ao condômino de quaisquer quantias devidas ao condomínio; c) de ressarcimento por danos em prédio urbano ou rústico; d) de ressarcimento por danos causados em acidente de veículo de via terrestre; e) de cobrança de seguro, relativamente aos danos causados em acidente de veículo, ressalvados os casos de processo de execução; f) de cobrança de honorários dos profissionais liberais, ressalvado o disposto em legislação especial; g) que versem sobre revogação de doação; h) nos demais casos previstos em lei (DIDIER, 2015, p. 632). Observa-se que a maioria das ações propostas perante os Juizados Especiais Cíveis são: a - ações de cobrança; b - de devolução de quantia cobrada e paga indevidamente; c - indenização por danos materiais e morais, esta por negativação indevida no SPC/Serasa; d- não entrega de produtos comprados pela internet no prazo correto, entre outros constrangimentos sofridos; e - obrigação de fazer no sentido de cumprir garantia de produtos vendidos a consumidores e que estragaram; f - compra de produtos vencidos em supermercados e que não houve a troca devida; g - desacordos comerciais de pequeno valor dentre outros;

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Esses tipos de ações são as mais frequentes e as que mais incomodam as pessoas que procuram o Juizado Especial Cível à procura de soluções mais eficazes. Observemos o que é dito no artigo 9º, da Lei n.9.099/95: “Art. 9º Nas causas de valor até vinte salários mínimos, as partes comparecerão pessoalmente, podendo ser assistidas por advogado; nas de valor superior, a assistência é obrigatória”

Observa-se que a lei menciona causas até vinte salários mínimos, o que vai de encontro a ações pré-processuais onde o patrimônio envolvido pode muito bem ultrapassar esse valor, mesmo se esta ação for conciliatória. 2.3 – A necessidade da proteção do patrimônio observando a teoria contratual com observância em Kant e a constituição de um advogado numa perspectiva de direitos sociais igualitários Numa possibilidade do não conhecimento jurídico para atuar no Direito de Família como mediador/conciliador, corre-se o risco de que, com a dissolução do patrimônio, venha acontecer o enriquecimento ilícito de uma das partes, solucionando-se o litígio, porém não satisfazendo a demanda. A Carta Magna de 1988 trouxe para o povo brasileiro algumas proteções em vários seguimentos da sociedade, há de se destacar a família. Resta-nos olhar entre as linhas bem traçadas que a proteção é para todos os tipos de família. Mas não podemos esquecer o papel do advogado, que tem no preceito constitucional a seguinte função: art 133: O advogado é indispensável à administração da Justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei (BRASIL, 2012, p. 49)

Quem irá proteger o patrimônio das partes no momento de uma

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conciliação onde não é exigível a presença do advogado? Ao fazer essa pergunta ficamos frente a um paradoxo do Judiciário, que determina não existir necessidade de formação acadêmica em Direito para ser conciliador e que, no fenômeno pré-processual, não há necessidade de advogado. Para o êxito desta nova iniciativa, a conciliatória pré-processual, devemos lembrar que o papel do advogado é essencial. A visão da advocacia apenas como instrumento para propor demandas não deve reinar absoluta, porém, não se pode dispensá-lo mesmo que em uma audiência pré-processual e buscando sua atuação como instrumento de resultados, privilegiando a desjudicialização às questões (grifo nosso). Por outro lado, o advogado não deve ser lembrado apenas como elemento mitigador, sobretudo para evitar litígios, porém, sem seus conhecimentos jurídicos, podem as partes sairem com a desconfortável possibilidade de perda patrimonial. E a pergunta repete: - quem irá proteger o patrimônio das partes no momento de uma conciliação onde não é exigível a presença do advogado? O Título II do Livro VI, traz à baila o Direito Patrimonial em que pesam seus artigos,/ encabeçados pelo art. 1.639, cujo subtítulo é Do regime de bens entre os cônjuges (BRASIL, 2012 p. 256), nos mostra que existe um patrimônio a ser protegido. Numa visão contemporânea, reorientando os aficionados ao Direito de Família sobre a ótica liberal, dando ao leitor de suas obras uma importante contribuição com visão na Revolução Francesa, onde nos abrilhanta com uma pérola da informação, recordando que suas bases e estruturas eram a proteção patrimonial (FARIAS, ROSENVALD, 2015). O nosso legislador, segue uma premissa redirecionando os institutos patrimoniais de forma mais eloquente e fundamentada, dando o ar de sobriedade nos arquétipos tais como a propriedade, o contrato, e a inserção tecnoclasta do pacta de sunt servanda, que não deixará de ter incidência sobre o regime de bens do casamento. Em outras palavras, a partir dos novos valores que permeiam a ordem jurídica brasileira, em especial, a partir dos princípios e garantias constitucionais, é imperioso submeter as

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relações patrimoniais privadas à valorização da dignidade do homem(CF, art, 1º, III), à solidariedade entre as pessoas e a erradicação da pobreza ( CF, art 3º) e a liberdade e igualdade sociais (CF, art, 5º). Enfim, é preciso fazer com que o patrimônio sirva à proteção da pessoa (FARIAS, ROSENVALD, 2015, p. 268).

A preocupação com o patrimônio já está sedimentada na Carta Magna de 1988, traduzindo-se em nossas liberdades sociais e igualdades. Observa-se que um negócio jurídico mal feito é passível de ser anulado, desde que venha trazer prejuízos a alguma das partes, ou seja, não ter a capacidade de produzir os efeitos esperados no momento da sua conclusão. Sabendo-se que não há como recolher custas no método pré -processual, pode uma família abastada estar à frente de uma desilusão sentimental que a leve optar pelo divórcio em um Centro Judiciário e, sem a competente presença de um causídico, devidamente preparado e munido, ou não, de instrumento mandatório para defender seus direitos, seria difícil resolver um patrimônio prestes a ser dividido no auge das emoções de uma vida a dois, anos e mais anos de convivência. Em alguns casos, podemos dizer que haverá um negócio inexistente, caso uma das partes não se encontre segura quando manifeste incorretamente sua vontade. Mas numa visão mais clássica, Kant vem nos alertar que “ao invés de prover um sistema, qualquer divisão empírica se mostra meramente fragmentária (partitio) e deixa a incerteza se não há membros adicionais necessários para completar toda a esfera do conceito dividido” (2010). Para estar à frente de decisões importantes como essas, o advogado poderá intervir em favor dos requerentes para a proteção do patrimônio envolvido pelas partes em questão. Entende o legislador, quando expõe as consequências de um negócio jurídico mal direcionado por quem não possui visão jurídica, incapaz de intervir com conhecimento. Assim diz o artigo 171 do Código Civil:

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Art. 171. Além dos casos expressamente declarados na lei, é anulável o negócio jurídico: I- por incapacidade relativa do agente; II- por vício resultante de erro, dolo, coação, estado de perigo, lesão ou fraude contra credores (BRASIL, 2002).

Ficam as partes desguarnecidas, num momento tão importante de suas vidas, podendo ser submetidas à avareza da outra parte, deixando de levar em conta todo um tempo de dedicação e amizade. Na maioria das vezes, tem-se no casamento um momento de amor, em que os envolvidos estão em êxtase, na iminência de se submeterem aos laços matrimoniais, na mais absoluta inobservância do contrato ora assinado, levando-se em conta que não se casa com o Código Civil. Ao desfazerem os casamentos, sentem-se abandonados, iludidos, vendo somente e, somente desta vez, no divórcio, o momento de levar a cabo toda sua vontade de não ser prejudicado pela outra parte. Ao deparar-se com um conciliador/mediador, leigo, que possa não ter a capacidade de entender a importância jurídica do ato que será desfeito, poderá ser prejudicado em seu patrimônio. Buscamos em Kant, mais uma vez, o socorro para as angústias do contrato: […] todo contrato consiste em si mesmo, quer dizer, considerado objetivamente, de dois atos que estabelecem um direito, uma promessa e sua aceitação. A aquisição através da aceitação não constitui uma parte de um contrato (a menos que esse contrato seja um pactum re initum, que requer entrega), mas sim o resultado juridicamente necessário dele. Mas considerando subjetivamente, ou seja, no que toca a esse resultado racionalmente necessário (a aquisição que deve ocorrer) efetivamente se constituirá como tal (ser o resultado natural) – a aceitação da promessa não me concede ainda nenhuma garantia de que ocorrerá efetivamente esse resultado.

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Visto que essa garantia pertence externamente à modalidade de um contrato, nomeadamente a certeza de aquisição por meio de um contrato, trata-se de um fator adicional que serve para completar o meio de alcançar a aquisição que constitui o propósito do contrato. Para isto três pessoas são envolvidas: um promitente, um aceitante e um garantidor. O aceitante, na verdade, nada mais ganha relativamente ao objeto por meio do garantidor e seu contrato separado com o promitente, embora ganhe, de qualquer modo, o meio de coerção para obter o que é seu. Conforme esses princípios de divisão lógica (racional) há, estritamente falando, apenas três tipos simples e apuros de contrato. Há inúmeros tipos mistos e empíricos de contrato, que se somam aos princípios do que é meu ou teu de acordo apenas com leis estatutárias e convencionais. Mas eles se encontram além da esfera da doutrina metafísica do Direito, que é tudo que deveria ser submetido a exame aqui (KANT, 2010, p. 89).

Os conceitos kantianos apresentados mostram em seu aprofundamento que há vários tipos de contrato, porém, de forma empírica dentro do seu conceito. Partindo da premissa de que na visão dele há um posicionamento na aceitação da promessa, não há garantia nenhuma de que esse resultado será relevante. Assim, fica demonstrada a importância da figura do advogado e que, sem ele, não poderão ser as partes capazes de perceberem que se trata de um negócio jurídico, e mesmo estando diante de conciliadores ou mediadores, poderão desfazer esse negócio, em até um ano, desde que se sintam prejudicados pela outra parte. Dessa forma Chaves e Rosenvald posicionam sobre o negócio jurídico: “Aplica-se a regra dos negócios jurídicos em geral […] art. 166 CC, a sentença homologatória será anulável, num prazo de um ano também, por conta de incidência na regra geral, das ações anulatórias de decisões judiciais” (CHAVES, ROSENVALT, 2015, p. 509). Numa observação mais constitucionalista, trazemos à baila uma

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possibilidade ainda não discutida do caso em tela, quando mostramos o modelo substancialista posicionando-se o Judiciário de uma forma que não seja a opressora de uma classe trabalhadora a qual STRECK (2007) contrasta, por outro lado, que a forma interpretativa do Judiciário se contrapõe à Constituição, com decisionismos praticados a partir de discricionariedades interpretativas. A Constituição estabelece as condições do agir estatal, a partir do pressuposto de que Constituição é a explicitação do contrato social [contrato social também deve ser entendido a partir do paradigma hermenêutico, e não como ponto de partida congelado] (p. 32-33)

Observando por uma linguagem simples, com uma percepção mais humanista e até numa tradução mais clara do que se pode esperar de um conceito discursivo de direito fundamental, o autor abaixo traduz por clareza, uma visão da efetivação da democracia nos Direitos Humanos: Diferentes sentidos que podem assumir a chave conceitualdiscursiva de um direito fundamental (como “direito à liberdade”, à “igualdade”, `a ”privacidade”, à “dignidade”) geram ao mesmo tempo uma construção permanente de seus significados, dificuldades para a efetivação realmente democrática desses direitos (COELHO, p. 5, s/d).

Considerações A Constituição Federal nos fala dos direitos fundamentais, direitos civis, direitos sociais, já devidamente alicerçados ou em caráter de efetivação dentro de uma visão democrático-constitucionalista humano/fundamental. Numa possibilidade humana, a partir do conceituadíssimo paradigma de que todos são iguais perante a lei, ela pode não ser o utopismo na visão de alguns ou talvez não

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venha completar utopicamente dentro de um sistema democrático, porém, é tida por muitos como a mais cidadã de todas que já foram feitas no Brasil. Não fala a Constituição, em seus artigos, da possibilidade de coibir ao advogado, o direito de exercer sua profissão nas conciliações/mediações no contexto pré-processual, até mesmo porque não houve a despersonalização do advogado dentro do ordenamento jurídico nesses casos, mesmo com o livre convencimento das partes. Porém, cercear de forma impositiva a sua presença, já consolidada numa audiência, onde o patrimônio envolvido pode ultrapassar mais de 20 salários mínimos no Direito de Família, pode vir a ser atentatório à dignidade da pessoa humana dentro de um contexto ontológico. Destarte, entre formas filosóficas, pode a forma estatal, em sua gênese, ser contrária ao direito ou ao Estado de Direito? O Estado deve ao direito a extensão e os limites de seu poder de comando ou, inversamente, se a vigência do direito é determinada e condicionada pela vontade do Estado (RADBRUCH, 2004) Há uma observação a ser feita sobre a dignidade da pessoa humana, numa percepção de indignidade talvez ou mesmo injustiça, onde se observa que, não é dito no pleito constitucional e nenhuma menção se faz à classe trabalhadora em tela, e em nenhum dos seus artigos, sobre alguma outra possibilidade de destruir qualquer que seja o seguimento trabalhador digno, já nela pacificado e inclusive consolidado no artigo 133 da CF/88. Por outro lado, seria interessante colocá-lo como sentinela perene nas mediações/conciliações pré-processuais. Há de se esperar pois se a força legisladora, portanto, enquanto está contida na máxima, é a única coisa que pode constituir um fundamento da determinação da vontade (KANT, 2006, p. 45). Enquanto isso não acontece, esperemos em Kant.

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Referências BARROSO, Luis Roberto; BARCELOS, Ana Paula. O Começo da história: a nova interpretação constitucional e o papel dos princípios do direito brasileiro. Em: Sampaio, José Adércio Leite (Coord). Crises e desafios da Constituição. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988. BRASIL. Resolução Nº 125, DE 29 de novembro de 2010. Dispõe sobre a Política Judiciária Nacional de tratamento adequado dos conflitos de interesses no âmbito do Poder Judiciário e dá outras providências. (Publicada no DJ-e nº 219/2010, em 01/12/2010, pág. 2-14). BRASIL. ADI Nº 4.277, STF, Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 132. COELHO, Saulo de Oliveira Pinto, Reconhecimento, Experiência e Historicidade: considerações para uma compreensão dos Direitos Humano-Fundamentais como (In) variáveis Principiológicas do Direito nas sociedades democráticas contemporâneas: https://www. google.com.br/urlsa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=1&cad=rja&uact=8&ved=0ahUKEwjj1dvMuYLOAhWILyYKHdBbCBAQFggeMAA&url=http%3A%2F%2Fwww.publicadireito.com. br%2Fartigos%2F%3Fcod%3D29daf9442f3c0b60&usg=AFQjCNFIZqfjsz3AwEz8C6I6Vs-GXEwYwQ&sig2=KQDQ36XSsGNPIldPCDFM2Q, acessado em 20/07/2016 DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito de Família, 9º ed, rev. Atual e ampliada. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013. DIDIER Jr, Fred. Novo Código de Processo Civil: comparativo com o código de 1973, Fred Didier Jr e Ravi Peixoto – Salvador, Ed JusPodivm,2015.856 p.:Il. FARIAS, Cristiano Chaves de. Sucessões. São Paulo, Atlas, 2015.

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GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, volume VI; Direito da Família , 5º ed, rev e atual – São Paulo: Saraiva, 2008. HEGEL, Georg Wilíelm Friedrich, 1770-1831. Princípios da filosofia do direito. Tradução Orlando Vitorino. - São Paulo: Martins Fontes, 1997. KANT, Immanuel. Crítica da Razão Prática. Tradução Antônio Carlos Braga, Editora Escala, São Paulo, 2006. KANT, Immanuel, 1724-1804. A metafísica dos costumes. Tradução: Edson Bini - ed. - São Paulo: Folha de São Paulo, 2010. RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito. Tradução Marlene Holzhausen; revisão técnica Sérgio Sérvulo da Cunha- São Paulo: Martins Fontes, 2004. - (Coleção justiça e direito). SAMPAIO, José Adércio Leite. Crise e desafios da constituição: perspectivas críticas da teoria e das práticas constitucionais brasileiras/José Adércio Leite Sampaio, coordenador – Belo Horizonte: Del Rey 2003. STRECK. Lênio Luiz. Verdade e Consenso; Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas: Da possibilidade à necessidade de respostas corretas em Direito, 2 ed. revista ampliada, Editora Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2007. VASCONCELOS, Carlos Eduardo. Mediação de Conflitos e práticas restaurativas. São Paulo: Editora Método, 2008. VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: Direito de Família, 13º ed, São Paulo: Atlas, 2013 (Coleção Direito Civil: v6).

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A LUTA ANTIMANICOMIAL COMO AFIRMAÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO DE PESSOAS COM SOFRIMENTO MENTAL1

Elias Menta Macedo2 Douglas Antônio Rocha Pinheiro 3

Introdução Desde que a filosofia da história de fundo teleológico foi posta em xeque, não é possível fazer qualquer análise evolutiva de institutos ou realidades sociais – até porque, embora o Estado Democrático de Direito seja fruto de um acúmulo da experiência histórica, nunca há garantias de que direitos e liberdades conquistados após processos reivindicatórios não possam sofrer retrocessos. Ainda assim, refazer a afirmação histórica de um direito é resguardar a memória de um processo de percepção de equívocos, avanços e recuos, necessário à própria autocompreensão deste direito, de seu sujeito e de seu âmbito de proteção. Por esse motivo, este artigo resgata o percurso histórico da luta 1 O presente artigo foi adaptado do primeiro capítulo da dissertação defendida pelo primeiro autor, orientado pelo segundo, no Programa Interdisciplinar de Direitos Humanos da Universidade Federal de Goiás (UFG). 2

Mestre em Direitos Humanos pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Advogado. E-mail: [email protected].

3

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB). Doutor em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB). E-mail: [email protected].

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Elias Menta Macedo, Douglas Antônio Rocha Pinheiro

antimanicomial, importante para a gradual compreensão da pessoa com sofrimento mental como sujeito de direitos ao longo do último século, em um intervalo temporal que se inicia no surgimento da Psiquiatria e se prolonga até a promulgação da Lei n° 10.216/2001. Para tanto, o texto seguirá a trilha abaixo. Inicialmente, ele situará o leitor no contexto histórico de meados do século XIX, valendo-se do exemplo elucidativo do alienista de Machado de Assis, para apontar as mudanças e reinvindicações que fizeram com que surgisse a psiquiatria como especialidade médica, capítulo oportuno para resgatar o papel da Liga Brasileira de Higiene Mental e os fatos ocorridos entre as décadas de 1930 a 1980 e que apontam quais as técnicas existentes em cada momento para o tratamento da pessoa com transtorno ou sofrimento mental. No tópico seguinte, evidenciam-se os referenciais teóricos que problematizaram o asilamento das pessoas com sofrimento mental e oportunizaram a reforma da psiquiatria, bem como os modelos que emergiram desse constructo teórico/filosófico como as comunidades terapêuticas, a psiquiatria de setor, a psiquiatria comunitária e a antipsiquiatria. Na sequência, o último tópico aponta o nascimento do Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental, além de fazer considerações sobre alguns dos diversos eventos realizados do final de 1970 até 1980, com especial destaque para o surgimento da Articulação Nacional da Luta Antimanicomial. Por fim, apresentamos considerações finais que indicam a necessidade de constante acompanhamento e vigilância para que as conquistas já alcançadas e positivadas em marcos legais não sejam ignoradas e inefetivas. 1. O tratamento da pessoa com sofrimento mental: percursos Paulo Amarante (1994, p. 73-84) destaca a obra nominada de “O Alienista”, de Machado de Assis, como sendo um retrato do processo de psiquiatrização e patologização da pessoa com transtorno ou sofrimento mental em meados do século XIX. Tal obra, como se sabe, dá

A LUTA ANTIMANICOMIAL COMO AFIRMAÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO DE PESSOAS COM SOFRIMENTO MENTAL

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conta da história do Dr. Simão Bacamarte, “filho da nobreza da terra e o maior dos médicos do Brasil, de Portugal e das Espanhas. Estudara em Coimbra de Pádua. Aos trinta e quatro anos regressou ao Brasil” (ASSIS, 2003, p. 11). Conta Machado de Assis que Simão Bacamarte, após intensa busca e defesa eloquente da proposta de se abrir uma casa para tratamento e pesquisa dos loucos, teve aprovado pela vereança da cidade de Itaguaí-RJ a abertura e dotação orçamentária para a Casa Verde, que recolheria os loucos de Itaguaí e Região. Após diversos episódios e bom tempo de funcionamento, o Dr. Bacamarte, o alienista, tendo internado grande parte da população – aproximadamente oitenta por cento, incluindo até a própria esposa – resolve oficiar à Câmara para devolver os internos para a rua. Machado de Assis (2003, p. 76) encerra a obra evidenciando um boato de que “alguns chegaram ao ponto de conjeturar que nunca ouve outro louco além dele [Simão Bacamarte] em Itaguaí”. Amarante (1994, p. 74) adverte que “a história da psiquiatria é a história de um processo de asilamento; é a história de um processo de medicalização social”. E complementa afirmando que “a loucura só passa a ser objeto de intervenção específica por parte do Estado a partir da chegada da família real no início do século passado [séc. XIX]”. Costa (1944/2006, p. 30) argumenta que até a segunda metade do século XIX, as pessoas com transtorno ou sofrimento mental que habitavam a cidade do Rio de Janeiro não tinham nenhuma assistência médica especifica4 e que, após 1830, um grupo de médicos, na sua maioria higienistas, começam a reivindicar, por meio de publicações em periódicos da época5, dentre outras medidas, a criação de um hospício para alienados. Por entenderem o louco diagnosticado como doente mental deveria ser medicamente tratado. 4

Jurandir Freire Costa (1944/2006, p.30) explica que “quando não eram colocados nas prisões por vagabundagem ou perturbação da ordem pública, os loucos erravam pelas ruas ou eram encarcerados nas celas especiais dos hospitais gerais da Santa Casa de Misericórdia”.

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Costa (1944/2006, p. 30) explicita que o grupo de médicos foram os criadores da Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro e, além de criticar o fato dos loucos estarem abandonados à própria sorte e andarem pela cidade, criticavam os métodos que eram empregados pelo pessoal da Santa Casa de Misericórdia (celas insalubres e castigos corporais).

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Amarante (1994, p. 74) explica que é a partir de um diagnóstico da situação dos indivíduos com transtorno ou sofrimento mental na cidade feito por uma comissão da Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro que os mesmos começam a ser “considerados doentes mentais, merecedores, portanto, de um espaço social próprio, para sua reclusão e tratamento” – e completa elucidando que “o relator da comissão, Dr. Cruz Jobim, profere a palavra de ordem que reivindica para a medicina o delatório sobre a loucura, escrevendo desta forma o destino da psiquiatria brasileira: um hospício para os loucos!” (AMARANTE, 1994, p. 75). O mesmo autor (1994, p. 75), ao questionar “quem são esses loucos”, responde que as poucas referências da época dão conta que seriam os “miseráveis, marginais, os pobres e toda sorte de párias” e complementa dizendo que são também “trabalhadores, camponeses, desempregados, índios, negros, ‘degenerados’ perigosos em geral para a ordem pública, retirantes que, de alguma forma ou por algum motivo, padecem de algo que se convenciona englobar o título de doença mental”. Atendendo ao apelo dos médicos, o imperador Dom Pedro II, por meio do Decreto nº 82 de 18 de junho de 1841, cria o primeiro hospital psiquiátrico brasileiro que foi inaugurado onze anos após a publicação do referido ato normativo. O Hospital Dom Pedro II tinha como “princípio básico um duplo afastamento do louco do meio urbano e social, quer fosse pelo distanciamento ou pela reclusão” (JORGE, 1997). Em janeiro de 1890, com a tomada do poder pelos republicanos, por meio do Decreto 206-A, Manoel Deodoro da Fonseca altera o nome do Hospital D. Pedro II para Hospital Nacional dos Alienados e institui uma série de instruções para o tratamento dos loucos6. Criam-se, também, duas colônias para os alienados no Rio de Janeiro. Para Amarante (1994, p. 76), 6

Destacam-se os seguintes artigos do decreto n°206-A de 15 de fevereiro de 1890: Art. 13. Todas as pessoas que, por alienação mental adquirida ou congenita, perturbarem a tranquillidade publica, offenderem a moral e os bons costumes, e por actos attentarem contra a vida de outrem ou contra a propria, deverão ser collocadas em asylos especiaes, exclusivamente destinados á reclusão e ao tratamento de alienados. Art. 14. As admissões serão ex-officio ou voluntarias ou definitivas. § 1º As admissões ex-officio serão requisitadas pelas autoridades publicas por intermedio do chefe de policia, fazendo acompanhar os alienados dos pareceres dos medicos da policia, dos documentos de interdicção, si os houver, e da noticia circumstanciada dos factos que legitimam a reclusão.

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“este conjunto de medidas caracterizam a primeira reforma psiquiátrica no Brasil, que tem escopo a implantação do modelo de colônias na assistência aos doentes mentais”, e complementa argumentando que João Carlos Teixeira Brandão, que é o primeiro diretor tanto da Assistência Médico-Legal aos Alienados quanto do Hospício Nacional de Alienados, caracteriza sua gestão com a ampliação dos asilos. Cria, ainda, a primeira cadeira de psiquiatria para estudante de medicina (que é também a primeira cadeira de clínica especializada), assim como a primeira escola de enfermagem, sistematizando assim a formação de profissionais para a especialidade. (AMARANTE, 1994, p. 76)

Em 1902, no Governo Rodrigues Alves, após sensível redução orçamentária pelo Governo Campos Sales, “em função de diversas irregularidades existentes no Hospício Nacional de Alienados e nas colônias, foi feita a abertura de inquérito” (JORGE, 1977) que revela que “o Hospital Nacional é simplesmente uma casa para detenção de loucos, onde não há tratamento conveniente, nem disciplina, nem qualquer fiscalização” (COSTA, 1944/2006, p.30). Visando reformular a assistência psiquiátrica, Rodrigues Alves nomeia o sucessor de Teixeira Brandão, Juliano Moreira, como novo diretor do Hospital Nacional que influencia na promulgação do Decreto n° 1.132, de 22 de dezembro de 1903, que reorganiza a assistência a alienados. Amarante (1994, p. 77) explica que Moreira traz para o Brasil a psiquiatria alinhada com o modelo alemão, diferente do modelo francês utilizada por Brandão, que como consequência lança mão do biologicismo, passando “a explicar não só a origem das doenças mentais, mas também muitos dos fatores e aspectos étnicos, éticos, políticos e ideológicos de múltiplos eventos sociais”. Em 1912, a psiquiatria torna-se uma especialidade médica autônoma e em 1921 é inaugurado por Heitor Carrilho o primeiro manicômio judiciário, destinado aos “loucos” que cometeram crimes. Em 1927 são editados os Decretos n° 5.148-A e

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17.805, que regulamentam a execução dos serviços de assistência para psicopatas, definidas como todas as pessoas que apresentam perturbações mentais. Nos anos seguintes, especificamente em 1934, é promulgado o Decreto nº 24.559, que trata da profilaxia mental, a assistência e a proteção a pessoa e aos bens dos psicopatas, bem como se estabelece a fiscalização dos serviços psiquiátricos. Durante as três primeiras décadas do século XX, época em que foi fundada a Liga Brasileira de Higiene Mental – LBHM, conforme aponta Costa (1944/2006, p. 35-36), a psiquiatria carioca era produto do atraso histórico da psiquiatria nacional, limitando-se à reprodução do discurso da psiquiatria francesa e tendo, na prática, atuação estabelecida pelos encarregados dos hospitais, quer leigos quer religiosos. O mesmo autor (1944/2006, p. 36) leciona que Juliano Moreira e seus seguidores tentaram transformar a situação da época com um sistema psiquiátrico coerente; contudo, por falta de uma tradição científica mais sólida, tal sistema não atingiu seus objetivos, sendo afetado por preconceitos culturais da época, que associavam em geral, e indevidamente, os problemas culturais aos psiquiátricos o que reflete uma atmosfera psiquiátrica saturada de conotações ideológicas. Costa (1944/2006, p. 37) evidencia que a “LBHM herdou esse tipo de pensamento, reforçando-o e desenvolvendo-o, graças à incapacidade que tiveram seus psiquiatras em discriminar aquilo que nas suas teorias era determinado pelos preconceitos da cultura”. A LBHM foi fundada em 1923 por Gustavo Riedel, um dos pioneiros da Psiquiatria brasileira, com a ajuda de filantropos, e tinha como objetivo inicial “melhorar a assistência aos doentes mentais, através da melhoria das instituições e da formação dos psiquiatras” (DEVERA e COSTA-ROSA, 2007, p.62-63). Nos dois primeiros anos de existência, na LBHM seguem-se as orientações de Riedel e seus objetivos estipulados inicialmente; todavia, a partir de 1926, “os psiquiatras começaram a elaborar projetos que ultrapassavam as aspirações iniciais da instituição e que visavam a prevenção, a eugenia e a educação dos indivíduos” (COSTA, 1944/2006, p. 40).

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Costa (1944/2006, p. 41) pontua que, de 1928 a 1934, há um distanciamento da prática tradicional da psiquiatria para uma incursão no domínio cultural com forte apoio na noção dos “progressos” da eugenia, sendo a eugenia o “artefato conceitual que permitiu os psiquiatras dilatar[em] as fronteiras da psiquiatria e abranger[em], desta maneira, o terreno social”. Conforme evidenciado por Costa (1944/2006), notase a presença do racismo e da xenofobia nos programas e no modo de atuação dos psiquiatras alinhados à LBHM, com grande impacto em seus pacientes e no modus de compreender o outro, principalmente os diferentes. Amarante (1994, p. 78) complementa Costa evidenciando que o programa de intervenção no espaço social da LBHM tinha “características marcadamente eugenistas, xenofóbicas, antiliberais e racistas” e que por meio da LBHM “a psiquiatria coloca-se definitivamente na defesa do Estado, levando-o a uma ação rigorosa de controle social e reivindicando para ela mesma, um maior poder de intervenção”. Nos anos de 1930, conforme aponta Amarante (1994, p.78), a psiquiatria entusiasmada pela descoberta de terapias que envolvem a utilização de choques, pensa ter encontrado a solução de cura para as doenças mentais, aumentando o asilamento e o poder da especialidade médica. Na década seguinte, anos 1940, o Hospital Nacional dos Alienados se transfere para o local conhecido como Engenho de Dentro sob a direção de Adauto Botelho, resultando em novas instalações e em uma maior oferta de vagas, contando, ainda, com moderno centro cirúrgico para realização do procedimento de lobotomias (JORGE, 1997). Ainda nos anos quarenta, fora promulgado o vigente Código Penal, que, por sua vez, trazia em seu terceiro título “Da responsabilidade” aquilo que nominou de irresponsáveis e previu em seu alterado art. 22 que “é isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter criminoso do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento”. Ressalta-se que de 1940 até 1984, quando da reforma do Código

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Penal realizada pela Lei n° 7.209/1984, vigorou o sistema denominado de “duplo binário”, que, nas palavras de Carvalho (2013, p. 504) previa a possibilidade de “imposição da medida de segurança independente da (in)imputabilidade. Assim, se fosse reconhecido o estado perigoso, seriam aplicáveis pena e medida de segurança, conjunta e sucessivamente, mesmo ao imputável e ao semi-imputável”, impondo duas penas a um mesmo indivíduo praticante de um só fato. Só após 1984, reformada a parte geral do Código Penal, se estabeleceu o sistema atualmente vigente, nominado de “vicariante” que, segundo leciona Carvalho (2013, p.506) cindiu “a resposta punitiva entre as penas (imputáveis) ou medidas de segurança (inimputáveis)”, dividindo essa última em duas possibilidades: a internação psiquiátrica e o tratamento ambulatorial, que será imposto conforme a previsão genérica da gravidade do delito, se a pena prevista for de detenção ou de reclusão. Nos anos 1950, Amarante (1994, p. 78) explicita que surgem os primeiros neurolépticos, também conhecidos como antipsicóticos, e algumas experiências de comunidades terapêuticas “non-restraint ou open door”7; todavia, são as medicações que despontam em uso, sendo constatável o viés hospitalizante e institucionalizante da psiquiatria da época. Ainda de acordo com o autor “cumpre observar que o furor farmacológico dos psiquiatras dá origem a uma postura no uso dos medicamentos que nem sempre é “tecnicamente orientada”, muitas vezes utilizados apenas em decorrência da pressão da propaganda industrial”. (AMARANTE, 1994, p.79). Por fim, denuncia o autor (1994, p.79) que mesmo com o aparecimento de variadas experiências de reformas psiquiátricas nesses anos cinquenta8, todas são de abrangência local e marginalizadas. Tais experiências amargaram o insucesso graças à oposição exercida pelo setor privado que buscava controlar também a saúde. A década de 1960, por sua vez, é marcada pelo surgimento do 7 Livremente pode ser traduzido como comunidades terapêuticas sem retenção ou de portas abertas. 8

Cita Amarante (1994, p. 79) algumas experiências de destaque como “comunidades terapêuticas, psicoterapia institucional, psiquiatria de setor, psiquiatria preventiva e comunitária, anti -psiquiatria e psiquiatria democrática”.

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Instituto Nacional de Previdência Social (INPS) com a junção dos institutos de aposentadoria e pensões, cujas funções, atualmente, estão abarcadas do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Amarante (1994, p 79-80) argumenta que é neste momento que “a doença mental torna-se, definitivamente, um objetivo de lucro, uma mercadoria”, vez que o Estado passa a adquirir serviços psiquiátricos do setor privado, absorvendo, na saúde, os interesses de lucro do empresariado, o que impulsiona a criação de vagas e internações nos hospitais psiquiátricos privados, chegando “ao ponto de a Previdência Social destinar 97% do total de recursos da saúde mental para as internações na rede hospitalar”. As propostas surgidas com intenção de serem alternativas àquelas manicomiais são rechaçadas por não serem bem fundamentadas ou por serem contrárias aos interesses privados dos empresários, que dominam grande parte da representação política (AMARANTE, 1994, p 80). Aponta Madel Therezinha Luz (in AMARANTE, 1994, p. 88) que, “numa clara intenção preventivista”, a expressão saúde mental só é incorporada ao discurso oficial nos anos 1960; todavia, “a preocupação de que o discurso sobre a loucura funcione como marco normatizador sobre o comportamento e as atitudes das pessoas ‘normais’ é muito anterior”. Amarante (1994, p. 80) explica que nos anos 1980 este modelo privado, que é abastecido com o dinheiro público em todo o setor da saúde, “é de tal forma tão violento, concentrador, fraudulento e ganancioso, que contribui com parcela significativa de responsabilidade para a crise institucional e financeira da Previdência social” levando o Estado a adotar medidas para racionalizar e disciplinar o setor privado, surgindo no decorrer deste processo “as Ações Integradas de Saúde (AIS), os Sistemas Unificados e decentralizados de Saúde (SUDS) e o Sistema Unificado de Saúde (SUS), cujos princípios mais importantes são inscritos da Constituição de 1988, ainda em vigor”. Amarante (1994, p. 80) destaca ainda, na década de 1980, “as tendências à descentralização, a municipalização das ações de saúde, a participação de setores representativos da sociedade na formulação e gestão do sistema de saúde, processo este que

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está em curso, com as idas e vindas próprias da construção da democracia”, além da definição de financiamento do setor público de saúde. 2. Referenciais teóricos antecedentes à reforma e a psiquiatria reformada A história da loucura na Idade Média é apresentada por Foucault, evidenciando o surgimento da psiquiatria e demonstrando como práticas e discursos reverberaram nessa área de atuação médica. Defende Foucault (1972, p. 10) que, com o desaparecimento da lepra no século XVI, os locais destinados ao seu segregamento e tratamento permaneceram e, passados poucos séculos, voltaram a ser utilizados para “tratar” aqueles que assumiram o papel dos lazarentos, os “pobres, vagabundos, presidiários e ‘alienados’”. Elucida, ainda, que foi necessário um grande período de quase dois séculos para “esse novo espantalho, que sucede à lepra nos modos seculares, suscite como ela reações de divisão, de exclusão, de purificação” (1972, p. 12). Amarante (1995, p. 24) explicita que “o objeto de estudo de Foucault em História da loucura é precisamente a rede de relações entre práticas, saberes e discursos que vêm fundar a psiquiatria”, argumentando que “os dispositivos disciplinares na prática médica psiquiátricas permitem um mascaramento da experiência trágica e cósmica da loucura, através de uma consciência crítica”. Evidencia que durante a Idade Clássica o internamento dos loucos é baseado em uma prática de guarda, “um jardim de espécies”; no século XVIII, o internamento ganha características médicas e terapêuticas com uma roupagem dita científica e na segunda metade do mesmo século é a alienação que ocupa o lugar da desrazão como critério para distinção do louco. É esse caminho que Amarante (1995, p. 24) define como “percurso prático/discursivo [que] tem na instituição da doença mental o objeto fundante do saber e da prática psiquiátrica”. Silveira e Simanke (2009, p. 25) argumentam que a obra de Foucault (1972) apresenta primordialmente “as reconfigurações discursivo

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-arqueológicos dos dizeres da loucura, desde o renascimento até a modernidade”, sendo possível a identificação dos “deslocamentos de poder e os mecanismos de controle emergentes de tais produções discursivas, seja no sentido do exílio dos loucos no Renascimento”, “seja no sentido da constituição de poder sobre os loucos internados enquanto desatinados no classicismo”, ou nos exercícios de poder-saber que os discursos sobre os loucos desembocaram na constituição do sujeito apenável. Defendem os autores (2009, p. 28), que após o século XVII a doença venérea, entendida como um castigo divino, juntamente com a loucura foram submetidos aos preconceitos do discurso médico e, após poucos séculos, objetificadas como patologização. Foucault (1972, p. 91) deixa claro que é na era clássica que a loucura seria compreendida como um perigo para o Estado, fazendo com que aquilo que era tido como mal-estar social fosse classificado como doença e passasse a exigir “tratamento” médico. Silveira e Simanke (2009, p. 30) complementam argumentando sobre a experiência jurídica da alienação do século XVII, em que se delimita a loucura como doença mental e aparece a figura do médico, sujeito aferidor da incapacidade do sujeito potencial internado e esclarecedor do magistrado julgador. Nessa senda, “se inventa, nos séculos XVII e XVIII, a figura e o conceito do alienado psicológico entrecruzada entre Psicologia, Psiquiatria e Direito” e “o que se tem é a loucura atrelada a uma ética social que exige que o indivíduo louco seja preliminarmente consciente de seus desatinos” (SILVEIRA e SIMANKE, 2009, p. 30). Em toda a Europa, o internamento passou a ter o mesmo sentido, constituindo-se como “uma das respostas dadas pelo Século XVII a uma crise econômica que afeta o mundo ocidental em sua totalidade: diminuição dos salários, desemprego, escassez de moeda” (FOUCAULT, 1992, p. 75). Segundo a ótica de Silveira e Simanke (2009, p. 34), Foucault entende a loucura como a “fragmentação da articulação corpo-alma, afetadas pelas paixões descontroladas, no equilíbrio das causalidade mecânicas, na construção da conduta irracional de um corpo de irrealidade” e explicitam (2009, p. 36) que, apenas no século XIX,

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o espaço moral da culpabilidade do ser dará “os limites distintivos entre o que seja psicológico, principalmente a partir da utilização dos laudos periciais no convencimento do juiz, os quais determinarão a imputabilidade ou não do sujeito transgressor da norma social”. Somente com a “Declaração dos Direitos do Homem”, promulgada na França de 1789, encerrou-se a fase do internato, passando aqueles “loucos” a serem mantidos internados apenas com a ordem de um magistrado, após laudo médico que atestasse a referida loucura. Em tal contexto, foram as medidas judiciais que reconheceram a identidade e mantiveram os loucos no internamento, definindo “quem é criminoso ou não criminoso e, através dos laudos periciais, imputável ou não imputável”, fazendo emergir três estruturas prático-discursivas: “a internação do louco, a objetivação da loucura e a loucura confrontada com o crime”, surgindo daí “uma psiquiatria positiva de análise e identificação da loucura, através do seu reconhecimento objetivo e médico” (SILVEIRA e SIMANKE, 2009, p. 37). Em tal questão, o que está em jogo é a edificação de uma “percepção moral” da loucura, de acordo com os jogos de verdades que o juiz, aliado ao detentor dos saberes psis, irá construir sobre os fatos. Neste processo de produção de sujeitos, a partir do século XIX, se “reconhecerá a boa e a má loucura – aquela cuja presença confusa é aceita às margens da razão, no jogo entre a moral e a má consciência, entre a responsabilidade e a inocência, e aquela sobre a qual se deixa cair o velho anátema e todo o peso da ofensa irreparável” (FOUCAULT, 1997[1961], p. 453), abrindo margem para renovados campos de identidade dela como, por exemplo, a loucura perversa do libertino; a loucura heróica do indivíduo que mata a mulher adúltera, movido por paixão; a loucura do vício, fruto da degenerescência moral, típica do criminoso nato (SILVEIRA e SIMANKE, 2009, p. 39).

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ciais de causalidade para o comportamento do louco partiam de referências burguesas da sociedade (SILVEIRA e SIMANKE, 2009, p. 39); com o surgimento dessas novas formas de atuação da psicologia, principalmente no que tange à sua interação com o saber do direito, o que se tem é, doravante, o louco “retido em sua própria verdade [inventada pelo saber médico, cristalizador de sua identidade e de sua conduta], e, por isso mesmo, afastado dela. Estranho em relação a si mesmo, ‘alienado’” (FOUCAULT, 1997[1961]: p. 509). Para Castel (1978, p. 64), “o médico é a lei viva do asilo e o asilo é o mundo à imagem da racionalidade que ele encarna. O espaço hospitalar concentra seus poderes e, inversamente, a ordem inscrita nas coisas ganha vida como ordem moral por ter como suporte a vontade do médico”, sendo o tratamento moral a estratégia de poder em que se apoia o médico em todas as suas relações institucionais e é essa relação da violência com a “razão”. Amarante (1995, p. 24), em comentário sobre Castel, argumenta que o mesmo trabalha a ideia do saber e da prática psiquiátrica emergente como sendo “um lugar de articulação e síntese das dimensões de classificação do espaço institucional, arranjo nosográfico das doenças mentais, imposição de uma relação específica entre médico e doente, o tratamento moral”, e que em sua obra tenta demarcar o período histórico anterior ao século XVIII “como território das exigências de política social e moralidade pública, quando o complexo hospitalar atualiza-se num misto de casa de correção, caridade e hospedaria, espaço de populações heterogêneas”. O alienado é definido por Castel (1978, p. 64) como nada mais que “um enfermo, cujo defeito, aliás, frequentemente se apresenta como excesso, imoderação”, sendo necessário “dobrá-lo, dominá-lo através de uma relação terapêutica que se assemelha a uma justa entre o bem e o mal”. Explica, ainda, que não é por acaso que a psiquiatria se inscreverá em um formato institucional herdado do absolutismo político, sendo a relação médico/pretenso-paciente uma relação de soberania, em que “o louco só pode reconquistar sua humanidade através de um ato de fidelidade a uma potência soberana encarnada num homem” e aponta uma

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diferença essencial entre o louco e o criminoso, (1978, p. 28) já que “em um sistema contratual, a repressão do louco deverá construir para si um fundamento médico, ao passo que a repressão do criminoso possui imediatamente um fundamento jurídico”. Amarante (1995, p. 25) argumenta que a figura do médico clínico, surgida após 1973, tem em Pinel sua primeira expressão e argumenta que, segundo Castel, a tecnologia pineliana estabelece a doença como um problema de ordem moral, tratando-o de uma forma adjetivada, postulando o isolamento como fundamental para amparar os regulamentos internos e observar os sintomas e suas sucessões a fim de descrevê-los. Amarante (1995, p. 25) defende que, para Castel, se caracteriza a racionalidade desta medicina mental como classificatória, sendo que a “esta não interessa localizar a sede da doença no organismo, mas simplesmente atentar para sinais e sintomas, a fim de agrupá-los segundo sua ordem natural, com base nas manifestações aparentes da doença”. Silva (2007, p. 36) destaca que a vinculação da loucura com o desconhecido transformou-a em algo temível, ou seja, acrescentando a ideia de imprevisibilidade dos praticantes de crimes com a loucura, fez com que o sujeito que era apenas um desordenado se transformasse em perigoso, ressaltando que “essa identificação entre loucura e perigo influenciou o imaginário social de aceitação da violência no trato com a loucura, principalmente por via de um instrumento como a contenção”. Amarante defende (1995, p. 25-26) que a liberação dos loucos das correntes por Pinel não buscou à inserção destes em um espaço de liberdade, já que ocorre o oposto: “funda a ciência que classifica e acorrenta com o objeto de saberes/discursos/práticas atualizados na instituição da doença mental”. Após a metade do século XIX, a psiquiatria assume uma matriz eminentemente positivista, o que é definido por Amarante (1995, p. 26) como sendo “um modelo centrado na medicina biológica que se limita em observar e descrever os distúrbios nervosos intencionando um conhecimento objetivo do homem”. O mesmo autor (1995, p. 26) evidencia que “o modelo da psiquiatria foi tão amplamente difundido,

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que influencia a prática psiquiátrica até os nossos dias – apesar de terem surgidos outros tantos modelos”. Amarante, por fim, leciona que a partir da obra de Pinel e do referido autor ter assumido a direção de uma instituição pública de beneficência, surge a “primeira reforma da instituição hospitalar, com a fundação da psiquiatria e do hospital psiquiátrico”. Um primeiro modelo de reformulação dos hospitais psiquiátricos pinelianos emerge com a criação das colônias, em que se pregava trabalhar em um regime de portas abertas e maior liberdade; todavia, “o modelo das colônias serve para ampliar a importância social e política da psiquiatria, e neutralizar as parte das críticas feitas ao hospício tradicional” e arremata argumentando que “no decorrer dos anos, as colônias, em que pese seu princípio da liberdade e da reforma da instituição asilar clássica, não se diferenciam dos asilos pinelianos” (AMARANTE, 1995, p. 26). O pós-guerra torna-se cenário para a reforma psiquiátrica, reforçando críticas e eclodindo propostas de reforma. O termo “reforma psiquiátrica” primeiramente é empregado por Franco Rotelli, quando mapeava os movimentos reformistas da psiquiatria. Os modelos de psiquiatria reformada, utilizando-se da periodização estabelecida por Birman & Costa, segue com a seguinte ordenação: primeiramente, cuida da “psicoterapia institucional e as comunidades terapêuticas, representando as reformas restritas ao âmbito asilar;” depois “a psiquiatria de setor e psiquiatria preventiva, representando um nível de superação das reformas referidas no espaço asilar”; e por fim “a antipsiquiatria e as experiências surgidas a partir de Franco Basaglia, como instauradoras de rupturas com os movimentos anteriores, colocando em questão o próprio dispositivo médico-psiquiátrico e as instituições e dispositivos terapêuticos a ele relacionados” (AMARANTE, 1995, p. 26-27). O primeiro modelo de psiquiatria reformada foi a “psicoterapia institucional e as comunidades terapêuticas”. A comunidade terapêutica é “um processo de reformas institucionais, predominantemente restritas ao hospital psiquiátrico, e marcadas pela adoção de medidas administrativas, democráticas, participativas e coletivas, objetivando uma trans-

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formação da dinâmica asilar” (AMARANTE, 1995, p. 28). Tal modelo é baseado em determinados tipos de atitude: a ênfase na reabilitação ativa, contra a ‘custódia’ e a ‘segregação’; a ‘democratização’, em contraste com velhas hierarquias e formalidades na diferenciação de status; a ‘permissividade’, como preferência às costumeiras ideias limitadas do que deve dizer ou fazer; e o ‘comunialismo’ em oposição à ênfase no papel terapêutico especializado e original do médico (AMARANTE, 1995, p. 30)

Costa-Rosa e Pereira (2012, p.1039) elucidam que as comunidades terapêuticas propunham na Inglaterra e nos Estados Unidos da América reformas na instituição psiquiátrica no seu viés administrativo “com o objetivo de provocar mudanças na dinâmica institucional, pela democratização e o aumento da participação dos asilados em reuniões diárias, as quais seriam o analisador da democracia na relação equipepaciente (sujeito em sofrimento)”. A psicoterapia institucional, experiência surgida na França, questionava e refletia sobre a instituição psiquiátrica, questionava o poder médico e pensava a horizontalidade das relações intrainstitucionais (COSTA-ROSA e PEREIRA, 2012, p. 1040). O modelo reformado seguinte foi o da psiquiatria de setor ou preventiva, aquela que contesta a psiquiatria asilar e “institui o princípio de esquadrinhar o hospital psiquiátrico e as várias áreas da comunidade de tal forma que cada ‘divisão’ hospitalar corresponda uma área geográfica e social”, tendo como princípio a visão de que “a função do hospital psiquiátrico resume-se ao auxílio no tratamento, a psiquiatria de setor restringe a internação a uma etapa, destinando o principal momento para a própria comunidade”; direciona, assim, o tratamento dos pacientes a sua própria comunidade (AMARANTE, 1995, p. 35). São possíveis causas da eclosão deste modelo reformista a onerosidade da psiquiatria asilar, a não resposta dada pela instituição asilar a questões patológicas e o que Amarante (1995, p. 35) define como “a crise dos valores burgueses colocando em perigo a ideologia dominante, o

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que, no campo específico da saúde mental, aponta para a necessidade de mediação das técnicas psis nos problemas sociais”. A psiquiatria preventiva ou comunitária nasce nos Estados Unidos da América e se pauta por estratégia de “intervir nas causas ou no surgimento de doenças mentais, almejando, assim, não apenas a prevenção das mesmas (antigo sonho dos alienistas, que recebe o nome de profilaxia), mas, e fundamentalmente, a promoção da saúde mental” (AMARANTE, 1995, p. 36). Nesse contexto, a terapêutica dá lugar ao novo objeto que é a saúde mental. A aderência e divulgação feita pelo Presidente Kennedy do projeto de psiquiatria preventiva “marca a adoção do preventismo não apenas pelo Estado americano, mas também pelas organizações sanitárias internacionais (Opas/OMS)”, provocando adesão de inúmeros países, especialmente aqueles marginais da América do sul. O “preventivismo significa um novo projeto de medicalização da ordem social, de expansão de preceitos médicos-psiquiátricos para o conjunto de normas e princípios sociais” AMARANTE, 1995, p. 41). Por fim, apresenta-se o modelo conhecido como antipsiquiatria, que procura romper com o modelo assistencial à época vigente, buscando destituir “o valor do saber médico da explicação/compreensão e tratamento das doenças mentais. Surge, assim, um novo projeto de comunidade terapêutica e um ‘lugar’, no qual o saber psiquiátrico possa ser interrogado numa perspectiva diferente daquela médica” (AMARANTE, 1995, p. 43). Costa-Rosa e Pereira (2012, p. 1040) apontam que, por meio da dialetização dos conceitos e no contexto da contracultura, tal movimento acabou se tornando base para a reforma psiquiátrica já que tinha por objetivo “a recuperação dos doentes, a ampliação da liberdade, a capacidade de autogestão e a introdução da ‘Medicina Alternativa’”. A antipsiquiatria busca harmonizar a razão e a loucura e seu método terapêutico não prevê tratamento químico ou físico. Como aponta Amarante (1995, p. 44), valoriza-se a análise do discurso, “através da ‘metanoia’, da viagem ou do delírio do louco, que não deve ser podada. O louco é acompanhado pelo grupo, seja através de métodos

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de investigação, seja pela não repressão da crise, psicodramatizada ou auxiliada com recursos de regressão”. Nesse contexto, floresce a experiência basagliana e da psiquiatria democrática italiana. Na tradição basagliana, a crítica formuladas às instituições psiquiátricas se fundamentam em três principais denúncias que dão conta da dependência da psiquiatria e da justiça, das classes sociais ocupantes pelas pessoas internadas e a não neutralidade da ciência, ressaltando que o grande mérito do movimento da Psiquiatria Democrática Italiana (PDI), fundada em Bolonha em 1973, “pode ser referido à possibilidade de denúncias civis das práticas simbólicas e concretas da violência institucional e, acima de tudo, à não restrição destas denúncias a um problema dos ‘técnicos de saúde mental’” (AMARANTE, 1995, p. 48). Os debates sobre uma reforma psiquiátrica, porém, não se dá apenas no plano das ideias. Assim, na afirmação histórica dos direitos das pessoas com sofrimento mental, importante retomar a luta militante antimanicomial – o que se passa a fazer abaixo. 3. A luta antimanicomial A reforma psiquiátrica brasileira passa pelo Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM), “ator a partir do qual originalmente emergem propostas de reformulação do sistema assistencial e no qual se consolida o pensamento crítico ao saber psiquiátrico” (AMARANTE, 1995, p. 51). Mas a deflagração do movimento da reforma psiquiátrica no Brasil tem um estopim particular: o episódio conhecido como a crise da Divisão Nacional de Saúde Mental (DINSAM), órgão vinculado ao Ministério da Saúde que, em abril de 1978, teve em suas quatro unidades a deflagração de greve, sucedida pela demissão de mais de 250 estagiários e profissionais. Uma das razões da deflagração da crise decorria do fato de o DINSAM não realizar concurso público desde 1957, implementando a contratação de bolsistas para suprir a falta de profissionais – crise

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que estoura a partir da “denúncia realizada por três médicos bolsistas do CPPII [Centro Psiquiátrico Pedro II], ao registrarem no livro de ocorrências do plantão do pronto-socorro as irregularidades da unidade hospitalar, trazendo a público a trágica situação existente naquele hospital” (AMARANTE, 1995, p. 52). Nesse contexto nasce o Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM), que, segundo Amarante (1995, p. 52), tem o objetivo de constituir-se em um espaço de luta não institucional, sendo “um locus de debate e encaminhamento de propostas de transformação da assistência psiquiátrica, que aglutina informações, organiza encontros, reúne trabalhadores em saúde, associações de classe, bem como entidades e setores mais amplos da sociedade” e tem como primeira pauta um conjunto diversificado de denúncias e reinvindicações, oscilando entre um projeto de transformação psiquiátrica e outro de reorganização corporativa. Logo em seguida ao nascimento do MTSM é deflagrada uma greve dos médicos residentes, que, apesar de ter fortalecido o MTSM nos primeiros meses, reúne mais participantes e atinge atividades mais essenciais que os serviços psiquiátricos. Em 1978, é realizado o V Congresso Brasileiro de Psiquiatria, ocasião em que se oportuniza a organização, a nível nacional, destes movimentos que nos Estados da Federação se apresentavam ainda tímidos. Embora tal encontro científico estivesse previsto para ser uma reunião entre psiquiatras ligados a setores mais conservadores das universidades, consultórios e hospitais privados, ele acabou sendo dominado pela militância dos movimentos (AMARANTE, 1995, p. 54). Luchmann e Rodrigues (2007, p. 402) apontam que foi no V Congresso que se testemunha “o início de uma discussão política que não se limita ao campo da saúde mental, estendendo-se para o debate sobre o regime político nacional”. Tais movimentos impulsionam a ABP (Associação Brasileira de Psiquiatria) a endossar o projeto político do MTSM, o que é escancarado com a leitura do memorial da APB (Associação Psiquiátrica da Bahia) na plenária de encerramento, assumindo um viés alinhado ao

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MTSM, defendendo uma política de oposição geral e setorial, criticando a saúde no Brasil em que a clientela e os profissionais estão submetidos a processos de exploração, denunciando as universidades pela perda de seu caráter crítico para se tonar utilitária, conforme pressões impostas pelos capitalistas donos do mercado da saúde, além de evidenciar a dicotomia existente entre a psiquiatria do rico e a psiquiatria do pobre (AMARANTE, 1994, p. 54). Em 1980, acontece no Rio de Janeiro o I Encontro Regional dos Trabalhadores em Saúde Mental, tendo como pontos de discussão as inúmeras violações ocorridas nas instituições psiquiátricas, “problemas sociais relacionados à doença mental, à política nacional de saúde mental, às alternativas surgidas para os profissionais da área, suas condições de trabalho, à privatização da medicina, à realidade político-social da população brasileira” e outros (AMARANTE, 1995, p. 56). O MTSM opta por não se institucionalizar e tem como conceito primordial a ideia de desinstitucionalização do saber e da prática psiquiátrica, tomando corpo com a participação popular no campo da saúde mental e sendo reconhecido como o “primeiro movimento em saúde com participação popular” (AMARANTE, 1995, p. 57). Este movimento “encampa e se transforma na Rede Alternativa à Psiquiatria, conhecida como ‘a rede’ – movimento internacional criado em 1974, em Bruxelas, por grandes nomes internacionais da antipsiquiatria, da psiquiatria democrática italiana e da psiquiatria de setor” (AMARANTE, 1995, p. 57). Após a mencionada transformação, surge a Articulação Nacional da Luta Antimanicomial, composta pelo MTSM e várias entidades de amigos, familiares e usuários da saúde mental, que inicialmente denunciam o ineficaz modelo assistencial destinado à população, propondo reformulações preventivas, extra hospitalares e multidisciplinares (AMARANTE, 1995, p. 58). No começo da década de oitenta, surge a “cogestão”, que pode ser resumido como sendo um convênio firmado entre o Ministério da Previdência e da Assistência Social (MPAS) e o Ministério da Saúde (MS), em que o MPAS colabora com o custeio, planejamento e avaliação dos

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hospitais vinculados ao MS, construindo um novo modelo de gerenciamento dos hospitais públicos, oposto à prática privatizante; ou seja, o MPAS deixa de apenas comprar serviços do MS e passa a integrar a administração das unidades cogeridas. A “relevância da cogestão advém do fato de que este processo torna-se um marco nas políticas de saúde, e não apenas de saúde mental”, sendo este o momento em que o “Estado passa a incorporar os setores críticos de saúde mental” (AMARANTE, 1995, p. 58). Os principais opositores à cogestão são os proprietários dos hospitais psiquiátricos que entendem o inovador modelo como uma ameaça aos seus lucros e ao seu poder político. No ano de 1981, em razão do alarde de uma crise na Previdência Social, é criado o Conselho Consultivo da Administração de Saúde Previdenciária (CONASP), por meio do Decreto nº 86.329/1981. O CONASP apresenta três planos, um primeiro para a saúde previdenciária, um segundo para a saúde oral e um terceiro para assistência psiquiátrica; este último, datado de meados de agosto de 1982, preleciona diretrizes gerais para reformulação da assistência praticada, que coincide com postulados da OPAS e da OMS. Novamente, o setor privado, representado pela Federação Brasileira de Hospitais (FBH), é contra o plano, visto entenderem que contrariava seus interesses; todavia, conforme evidencia Amarante (1995, p. 67), “o CONASP representa um duro golpe na iniciativa privada e, apesar da resistência organizada na mídia e nos poderes públicos, os resultados na luta contra o plano são destinados ao fracasso”. Continuando a trajetória que fora iniciada com a cogestão, são realizados vários encontros de coordenadores e conferências de saúde mental, momento em que integrantes, fundadores e ativistas do MTSM se encontram a frente de cargos de direção e coordenação das políticas de saúde mental, estando, assim, inseridos na estrutura do Estado. Em 1985, decide-se organizar o I Encontro de Coordenadores de Saúde Mental da Região Sudeste e a “organização deste primeiro encontro representa, portanto, uma estratégia de articular os vários dirigentes para discutir e rever suas práticas, de criar mecanismos e condições de autor-

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reforço e cooperação mútua” (AMARANTE, 1995, p. 69). Do referido encontro surgem várias propostas que visam a transformação de asilos em locais dignos, fortalecimento do DINSAM, controle sobre o consumo de psicotrópicos e discussões sobre direitos humanos, legislação civil e penal e assistência do doente mental, decidindo nesta mesma oportunidade sobre a aprovação da criação de Comissões Interinstitucional de Saúde Mental (CISM), pensadas para serem implantadas nos Estados da Federação, bem como nos principais Municípios. Nesse contexto de reformas, a VIII Conferência Nacional da Saúde, diferentemente das anteriores, inaugura a possibilidade de uma Conferência ter o caráter de consulta e participação popular, contando com a presença ativa de diversos setores da sociedade. Desta conferência emergiu uma nova concepção de saúde como direito do cidadão e dever do Estado, o que permitiu a fixação de princípios básicos, “como universalização do acesso à saúde, descentralização e democratização, que implicaram nova visão do Estado – como promotor de políticas de bem-estar social – e uma nova visão de saúde – como sinônimo de qualidade de vida” (AMARANTE, 1995, p. 77). Outro evento histórico para a trajetória da reforma psiquiátrica brasileira foi a I Conferência Nacional da Saúde Mental, em que se renovou teórica e politicamente o MTSM e se promoveu certo distanciamento entre o movimento e o Estado, aproximando o movimento de entidades de familiares e usuários. Desta Conferência Nacional e das reuniões paralelas realizadas pelo MTSM surge o lema: “por uma sociedade sem manicômios”, o que “remete para a sociedade a discussão sobre a loucura, a doença mental, a psiquiatria e seus manicômios” (AMARANTE, 1994, p. 81; 1995, p. 80) – o que ressurge o projeto de desinstitucionalização da tradição basagliana. Luchmann e Rodrigues (2007, p. 403) pontuam que esse momento é marcado por uma renovação teórica e política do MTSM e que o lema “por uma sociedade sem manicômios” sinaliza um movimento que se orienta “para a discussão da questão da loucura para além do limite assistencial, concretizando a criação de uma utopia que passa a

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demarcar um campo de crítica à realidade do ‘campo’ da saúde mental, principalmente do tratamento dado aos ‘loucos’”. No contexto desse debate desinstitucionalizante, teve destaque a intervenção da Secretaria de Saúde do Município de Santos na Casa de Saúde Anchieta, no ano de 1989, o que foi repercutido nacionalmente, diante das violações da dignidade que ocorriam em tal hospital privado. Tal intervenção e repercussão possibilitaram “a implantação de um sistema psiquiátrico que se definia completamente substitutivo ao modelo manicomial”, impulsionando alianças entre municípios e entidades e propulsionando a criação de Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPS), cooperativas, associações e outros, sendo este processo definido por Amarante (1995, p. 83) como “o mais importante da psiquiatria pública nacional e que representou um marco no período mais recente da reforma psiquiátrica brasileira”. Já no campo jurídico-político, o desmonte da estrutura manicomial e os resultados visualizados em Santos-SP, impulsionam a apresentação do Projeto de Lei nº 3.657/1989 de autoria do deputado Paulo Gabriel Godinho Delgado (PT-MG), que desembocou em diversas transformações, após uma série de polêmicas na mídia nacional. Promulgado como a Lei n° 10.216/2001 que, embora menos progressista que a propositura, ainda marcou uma nova fase a partir da qual “os portadores de sofrimento mental te[riam] direito a viver em liberdade e igualdade toda a singularidade de sua condição” (SILVA, 2007, p. 7): a Lei nº 10.216/01 revelou um novo direito fundamental, o direito à singularidade do portador de sofrimento mental, demonstrando uma nova dimensão do princípio da igualdade. Trata-se da conquista de um novo direito fundamental em uma demonstração da abertura e fluidez da Constituição, possibilidade que, além de constar de maneira expressa no art. 5º, § 2º da Constituição da República de 1988, é parte da própria idéia de constitucionalismo. Assim, esse novo direito fundamental - conquistado pela atuação política daqueles que viviam cotidianamente as consequências de sua ausência – criou fortes

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restrições a toda forma de violência e intervenção invasiva na vida dos que sofrem de alguma enfermidade mental. Práticas clínicas invasivas, da perspectiva dos atingidos, ou seja, subjetivamente invasivas, como a utilização de eletrochoque, a contenção química ou mecânica e a indicação terapêutica da internação involuntária tornavam-se procedimentos inconstitucionais sob esse novo princípio (SILVA, 2007, p. 8).

Com a publicação da Lei, “é fundada uma nova forma de olhar o problema da loucura que enfatiza a pessoa e não a sua doença, o que permite romper com os estigmas do processo de coisificação do portador de sofrimento psíquico que caracterizam os procedimentos institucionais”. Afinal, a Lei n° 10.216/2001 muda o estatuto jurídico e a lógica de tratamento dos sujeitos em sofrimento psíquico, dando protagonismo aos usuários do sistema de saúde mental, que deverão opinar em seu tratamento, determinando a feitura de políticas públicas de desinstitucionalização, e “altera a linguagem que configurou historicamente a instituição manicomial, estabelecendo uma nova gramática nas práticas de internação” (CARVALHO, 2013, p. 509). Paradigmático desse novo momento de reconhecimento do direito à singularidade das pessoas com sofrimento mental é o julgamento do Habeas Corpus 85.401 pelo Supremo Tribunal Federal, em que o Relator Cezar Peluso, invocando a Lei n° 10.2016/2001, reconhece a possibilidade de se “questionar a efetividade da custódia dos doentes mentais nos regimes asilares e sua diretriz de gradual desativação dos hospitais psiquiátricos”. Além disso, a repercussão em matéria de execução penal precisa, por fim, ser pontuada. Para Carvalho (2013, p. 530), a mudança legislativa torna inadmissível que se mantenham “regimes segregacionais de execução das medidas de segurança, constituindo-se em ilegalidade a preservação dos espaços conhecidos como manicômios judiciais, institutos psiquiátrico-forense ou hospitais de custódia e tratamento”.

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Considerações finais Conforme evidenciado nas linhas antecessoras, a história da patologização da pessoa com sofrimento mental no Brasil remonta ao século XIX e se apresenta de uma forma excludente, em que a preocupação que se tinha com a pessoa humana ficava restrita à sua remoção do convívio social e aprisionamento em locais onde a sociedade dos “normais” não mais as vê. Daí o surgimento e manutenção de instituições totais, como é o caso dos manicômios. A história da psiquiatria, que influencia diretamente no tipo de tratamento e no modus de compreensão da pessoa com sofrimento mental, tendo se tornado uma especialidade médica no Brasil no ano de 1912, é marcada por várias tentativas, locais e marginalizadas, de reforma e mudanças de paradigmas; porém, um de seus modelos mais antigos e perversos – internação pautada pelo asilamento – é de fácil observação em vários locais deste país. Fato é que a indústria da “saúde”, controlada pelo setor privado, exerceu e exerce uma forte pressão para manutenção do status quo e de seu lucro – tendo o Estado como um de seus principais clientes da mercadoria “doença mental”. Tal lucro exacerbado tem efeitos danosos para toda a população – até mesmo porque esse modelo privado, irrigado com dinheiro público, contribuiu fundamentalmente para crise institucional e financeira da Previdência Social. Não sem motivo, pois, a importância da luta antimanicomial, quer como reconhecimento da pessoa com sofrimento mental como sujeito de direitos em sua singularidade, quer como materialização do princípio da solidariedade que exige da sociedade uma resposta digna em relação a seus indivíduos mais vulneráveis, quer, por fim, como otimização das políticas públicas que devem se mostrar inclusivas e eficientes naquilo que se propõe. A Lei n. 10.216/2001 foi uma conquista histórica. Porém, não se pode acreditar que a mera positivação, dada no plano da eficácia legal já gera efetividade social. Ainda se notam inúmeras violações

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dos direitos das pessoas marcadas com o sofrimento mental, bem como a construções de manicômios não se interrompeu após a promulgação da lei. Sendo assim, nada mais salutar que a união dos pacientes, profissionais da saúde, familiares e da sociedade para que se exija a aplicação do que está garantido pela lei, bem como buscar sua ampliação a fim de se congregar novos direitos e garantias. Afinal, a dignidade da pessoa humana não se transige – um preceito que, seguramente, exige do Estado democrático de direito o reconhecimento da afirmação história da luta de suas minorias. Referências bibliográficas ALVAREZ, M. C. A criminologia no Brasil ou como tratar desigualmente os desiguais. Dados, v. 45, n. 4, p. 677-704, 2002. AMARANTE, P. D. de C. Asilos, alienados, alienistas: uma pequena história da psiquiatria no Brasil. In: AMARANTE, P. D. de C (org). Psiquiatria social e reforma psiquiátrica. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1994. _______. Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1995. ASSIS, M. O alienista. São Paulo: Marin Claret, 2003. CARVALHO, S. de. Penas e medidas de segurança no direito penal brasileiro: fundamentos e aplicação judicial. São Paulo: Saraiva, 2013. CASTEL, R. A Ordem psiquiátrica: a idade de ouro do alienismo. Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 1978. COSTA, J. História da psiquiatria no Brasil: um corte ideológico. 5. ed. rev. Rio de Janeiro: Garamonde, 1944/2006. COSTA-ROSA, A. PEREIRA, E. C. Problematizando a Reforma Psiquiátrica na Atualidade: a saúde mental como campo da práxis. Saúde e sociedade, v. 21, n. 4, p.1035-1043, 2012.

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1. A difícil relação entre Direitos Humanos e responsabilidade corporativa 1.1. Dependência dos Direitos Humanos e Fundamentais às ordens estatais Há um vácuo jurídico que não permite a adequada responsabilização de empresas transnacionais por violações a Direitos Humanos e Fundamentais. Apesar de terem se tornado relevantes atores globais, e, até mesmo, assumido decisiva importância política no mundo contemporâneo (WETTSTEIN, p. IX), os mecanismo de controle jurídico não alcançam de modo eficiente a atuação de corporações transnacionais, afetando de modo decisivo a governança global e reduzido as possibilidades e implementação de justiça no mundo, aqui entendida como o pleno respeito à dignidade humana, que permita o desenvolvimento 1

Mestre e doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais, com estágio doutoral na Universitãt zu Köln (Alemanha) e Max-Planck-Institut für ausländisches öffentliches Recht und Völkerrecht (Heidelberg – Alemanha). Pós-doutorando e Professor no Programa Interdisciplinar de Pós-Graduação em Direitos Humanos da UFG e na UNIALFA – GO. E-mail: [email protected]

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humano inclusivo. Contudo, há um incipiente direito internacional dos direitos humanos e empresas, que pode melhorar esta relação, cheia de tensões, paradoxos e de natureza claramente interdisciplinar. Pretendese, com o presente escrito, oferecer uma contribuição à compreensão do tema, de caráter sobretudo descritivo e analítico, com o foco no desenvolvimento dos marcos normativos internacionais sobre direitos humanos e empresas. Justifica-se tal preocupação por se tratar de tema relativamente novo às áreas jurídicas e interdisciplinares, e que, contudo, vem ganhando crescentemente destaque – em especial, recentemente, devido a desastres ocorridos no mundo – a exemplo do desabamento de indústria de roupa em Bangladesh2, que lançou luzes nesta obscura realidade do mundo da moda e, no Brasil, com a tragédia do rompimento da barragem em Mariana (2015) – e ao impacto de grandes obras, como a da Usina de Belo Monte. A aplicabilidade dos direitos humanos a e entre entidades privadas, sejam pessoas naturais ou associações, fundações e sociedades empresariais (instituto do efeito horizontal ou Drittwirkung dos direitos humanos e fundamentais), vem ganhando espaço na doutrina jurídica e jurisprudência, em razão de pelo menos dois fatores decisivos: o histórico e o sociológico. Sem a pretensão de aprofundamento e nuances, é geralmente aceito que a versão moderna dos direitos humanos e fundamentais desenvolveu-se com a formação e consolidação dos Estados, influenciados por uma série de convergências axioculturais anteriores, com destaque para a cultura greco-romana (BAMBIRRA, 2013), a civilização judaico-cristã e, finalmente, considerando a sua consolidação na forma de direito positivo, já no âmbito do Estado de Direito, pela Ilustração (SALGADO, 1996, p. 267). Os direitos humanos e fundamentais, principalmente os últimos, voltaram-se para a proteção do cidadão contra o uso arbitrário do poder político, consolidado na figura da do soberano, do Estado e até mesmo de grupos que anteriormente detinham grande poder, como a Igreja, não raramente associada aos Esta2

V. http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2013/04/130428_bangladesh_tragedia_lado_ obscuro, consultado em 30/03/2017.

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dos. Estes direitos consolidaram-se na forma de liberdades e garantias, como a de crença, de expressão, de opinião, a não intervenção na vida privada, como a liberdade de ir e vir, de associação, a livre iniciativa, dentre outras. Mesmo com a emergência das demais “gerações de direitos humanos” (BONAVIDES, 2004, p. 562-9), a exemplo dos direitos sociais e transindividuais, os Estados continuaram a ser, paradoxalmente, a razão de ser desses direitos, como defesa contra o poder estatal, e, simultaneamente, o principal ator responsável pela sua implementação, garantia e observância. Do ponto de vista sociológico – e macrofilosófico – o pós-segunda guerra inaugurou uma nova era da globalização. Assistiu-se a hiperintegração de mercados, a proliferação e fortalecimento de empresas transnacionais, emergiram avanços tecnológicos capazes de alterar profundamente a noção de espaço-tempo, como a popularização da aviação, a revolução midiática, a internet, a energia nuclear entre outros. As empresas transnacionais, tendo em vista inclusive o grande vulto de investimento necessário em áreas de alta especialização tecnológica, fortaleceram-se neste mesmo período, não raro com apoio e financiamento dos Estados. Contribuiu, ainda, para com o fortalecimento de tais corporações, a vitória alcançada pelo pensamento neoliberal na área econômica, a pregar a absoluta neutralidade axiológica da atuação empresarial. Diante deste quadro, Gonçal Mayos (2014, p. 189) nos fala de uma verdadeira era da hiperglobalização, que tem como centro a informação e o conhecimento, mas que, paralelamente, convive com uma sociedade da ignorância e desinformação, tanto pela falta de acesso de grande parcela da população global às conquistas tecnológicas, quanto igualmente pela dificuldade comunicativa, dialogal, que temos assistido, podendo ser denominado de déficit civilizacional – uma vez que mina os pressupostos mais elementares para a construção de uma sociedade sadia. Há abundância de informação, mas o conhecimento continua a ser um bem caro, de acesso ainda restrito. É diante deste cenário de complexidade social e de uma tradi-

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ção jurídica relativa aos direitos humanos e fundamentais que se coloca, como verdadeiro desafio de nosso tempo, o problema da ética empresarial e dos direitos humanos e empresas transnacionais. A ética é o alicerce e fundamento axiológico para a discussão deste sensível tema, e o direito aparece como o momento suprassumido de reconhecimento de pretensões normativas legitimamente exigíveis. Diante da atuação global de empresas transnacionais, não é mais possível que empresas transnacionais respeitem direitos humanos e fundamentais exclusivamente se assim exigirem os Estados nos quais operam, sobretudo porque esta opção não permite a internalização de externalidades, isto é, várias espécies de custos indiretos – sociais e ambientais, por exemplo – que não seriam compensados pelas empresas, criando-se uma vantagem competitiva econômica àquelas empresas que não respeitam regras básicas de direitos humanos, e também ap menos a aparência de certa vantagem aos Estados que permitem essa espécie de atuação, pois se teria a sensação de estar “atraindo investimentos”, evidentemente a um alto custo, e com grave prejuízo a terceiros. Cria-se, assim, uma verdadeira competição dos Estados por se tornarem sede de unidades produtivas – obtendo relativo ganho de capital e político. Neste cenário, em que empresas transnacionais possuem todo o interesse pela otimização da alocação dos fatores produtivos, já que seus negócios são vistos de forma “neutra”, a falta de garantia de um standard de proteção aos direitos humanos e fundamentais funcionaria como um estímulo às empresas, ao mesmo tempo em que o desrespeito a estes direitos pode ser visto como vantagem estratégia e competitiva de governos. 1.2. Do comércio internacional às empresas transnacionais: formação de novos atores internacionais Há uma sensível diferença entre a prática do comércio internacional e a atuação de empresas transnacionais, distinguindo-se substancialmente a sua estrutura e seu modus operandi. O comércio internacional organizado e estruturado remonta a sua origem à Idade Média,

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mais especificamente na rede de bancos criadas por cidades-estados localizadas no território hoje pertencente à Itália e Alemanha. As grandes companhias navegadoras que tornaram a Holanda, França e Inglaterra famosas nos negócios internacionais, já no século XIX, praticavam o comércio através de longas e distantes rotas internacionais, cruzando oceanos, e geralmente com cartas reais que garantiam o monopólio na troca. Estruturalmente, não detinham, como as empresas multinacionais ou transnacionais atuais, o controle da produção (WETTSTEIN, 2015, p. 10), mas exclusivamente a sua distribuição a mercados externos. Como aponta Wettstein (2015, p. 10) em ampla pesquisa realizada sobre o tema, empresas multinacionais são definidas geralmente como corporações que detém e controlam atividades visando o lucro em mais de um país. A sua característica principal é a estrutura organizacional para além das fronteiras do Estado, o que as distingue de empresas que meramente exportam bens e serviços para outros países, chamadas de empresas free-standing, que não se confundem simplesmente com empresas nacionais, pois são instaladas em determinado país exclusivamente para prática do comércio exterior. Até os anos 1970, as empresas apenas replicavam as suas estruturas, em menor escala, nas subsidiárias localizadas em outros países, para se beneficiarem de vantagens comparativas, como a tecnologia e a expertise gerencial, e ficaram conhecidas como empresas multidomésticas. Foi com a transmutação visando a criação de uma cadeia de valores globais, com a pretensão de alcançar maiores vantagens comparativas, que as empresas passaram a dividir a sua produção visando a máxima redução de custos. Assim, a meta primária das empresas transnacionais passou a ser “não mais prover uma alternativa superior para exportação de bens e evitar alfandegas, mas alcançar a relação ótima de alocação de recursos na economia global” (BERGHOFF, 2004, p. 143, apud WETTSTEIN, 2015, p. 11). Assim, conclui Wettstein (2015, p. 11) que as empresas transnacionais substituíram as tradicionais estruturas hierarquizadas por modelos policêntricos, incorporando-se em redes transnacionais, e dedicando-se verdadeiramente a negócios globais.

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A primeira definição normativa, elaborada no âmbito da ONU, de empresas transnacionais, data de 2003, e buscou ser propositadamente abrangente, exatamente para evitar subterfúgios que poderiam permiti-las fugir dos mecanismos de controle propostos. Define-as como um “cluster de entidades que operam em dois ou mais países, independente de sua forma jurídica, do seu país de origem, país de atividade, seja tomada individual ou coletivamente” (ONU, 2003, p. 7). O ponto central desta mudança acima assinalada para o estudo dos direitos humanos é que estes últimos ainda encontram-se muito dependentes da ordem estatal, e há uma defasagem normativa internacional, incapaz de alcançar toda a cadeia operativa destas empresas. Acaba-se conferindo a elas, em razão deste vácuo normativo, grande poder, pois, ao final, podem escolher, estrategicamente, a partir da localização de partes de sua cadeia produtiva, as normas que lhe serão aplicáveis, de acordo com o país que servirá de base para uma de suas unidades. Torna-se ainda mais difícil estabelecer mecanismos de controle e respeitos aos direitos humanos fundamentais devido à própria dinâmica e complexidade dos negócios contemporâneos, que permitem, através do controle acionário, por vias das mais diversas, a estipulação de padrões produtivos precários de fornecedores e terceirizados, com baixa vinculação à marca ou ao “nome” da companhia. Por estas razões, e pelo poder de influência político que as transnacionais vem adquirindo, Wettstein as denomina como atores quase-governamentais (2015, p. 13). Do ponto de vista do Direito Internacional, também é crescente a percepção da necessidade de tratamento diferenciado a estes atores, havendo várias propostas para que lhe seja reconhecida personalidade jurídica internacional, o que permitiria, ao mesmo tempo, sua atuação legítima e segundo o direito na comunidade internacional e a responsabilização de condutas lesivas – apesar de que, ainda, destaca-se, o Direito Internacional é um direito essencialmente de e para Estados (VOSGERAU, 2012, p. 55-9).

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Um passo nesta direção foi dado pela ONU, com uma primeira normatização, como soft law, da relação entre empresas e direitos humanos, que se passa a examinar. 2. Marco normativo global: A ONU sobre empresas e Direitos Humanos A discussão normativa no nível global sobre direitos humanos e empresas – apesar de tentativas pretéritas, em especial na década de 70, mas que geraram apenas propostas não aprovadas, diante de profundas divergências, é recente. É possível apontar três grandes marcos normativos, com significativas aquisições evolutivas a respeito da matéria (WEISSBRODT, 2014, p. 140-1): a) o Compacto Global, de 1999; b) as Normas sobre responsabilidade de corporações transnacionais e outros negócios em referência aos direitos humanos, de 2003; e os c) Princípios Guia para empresas e direitos humanos (ou princípios orientadores – CONECTAS, 2012), de 2011, que serão examinados mais detidamente. a) O Compacto Global, de 1999 Em 1999, o então Secretário Geral da ONU, Kofi Annan, anunciou o Compacto Global ao Fórum Econômico Mundial. Trata-se, atualmente, de dez princípios a respeito de direitos humanos, trabalho, meio ambiente, e, adicionado depois, sobre corrupção, endereçada à sustentabilidade corporativa. São eles, resumidamente: 1) Empresas devem apoiar e respeitar os direitos humanos internacionalmente proclamados; 2) e não devem compactuar com violações de direitos humanos; 3) Empresas devem apoiar a liberdade de associação e o efetivo reconhecimento do direito de negociação coletiva; 4) a eliminação de todas as formas de trabalho forçado ou compulsório; 5) a efetiva abolição do trabalho infantil; 6) a eliminação da discriminação no âmbito laboral; 7) Empresas devem adotar o princípio da precaução diante dos desafios ambientais; 8) adotar iniciativas para promover maior responsabilidade ambiental; 9) encorajar o desenvolvimento e difusão de tecnologias pró

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-ambiente; e 10) Empresas devem trabalhar contra todas as formas de corrupção, inclusive a extorsão e a propina. O Compacto Global é uma proposta de adesão voluntária, dirigida às empresas, e conta atualmente com mais de dez mil participantes, entre empresas, investidores e demais stakeholders, de mais de 146 países (WEISSBRODT, 2014, p. 137). Existe mecanismo de relatórios, através dos quais se pode conferir o cumprimento de obrigações, que são sumarizados e publicados na internet. Em suma, os relatórios contem três partes: a aceitação e suporte, pelo diretor da empresa (CEO), do Compacto Global; a descrição de ações práticas tomadas pela companhia no sentido de implementação dos princípios; e, por fim, a mensuração dos produtos de suas ações. E, de acordo com os resultado e regularidade da apresentação de informações, as empresas são classificadas como participantes ativas, avançadas, não-comunicantes e excluídas (WEISSBRODT, 2014, p. 157). O Compacto Global foi um passo importante por inaugurar a temática de empresas e direitos humanos, mas, sem dúvida, trata-se de um mecanismo simples e incapaz de abarcar a complexidade da matéria. Acabou tendo pouca divulgação e impacto. Por isso, foram elaboradas as normas de 2003, que serão brevemente examinadas. b) Normas sobre responsabilidade de corporações transnacionais e outros negócios em referência aos direitos humanos As Normas de 2003, aprovadas pelo Conselho Econômico e Social (ECOSOCS), buscaram ser mais abrangentes e precisas quanto às obrigações das empresas para com os direitos humanos, quando comparadas com o Compacto Global, que elencou apenas princípios. Nelas, foram desdobrados os princípios do Compacto Global e outros princípios do Direito Internacional dos Direitos Humanos em verdadeiras normas, de caráter descritivo. Assim, o documento centrou-se especificamente na consolidação, com estruturar normativa, de obrigações sobre direitos humanos que empresas transnacionais devem observar em suas práticas.

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Em síntese, as Normas reafirmam que são os Estados, sem prejuízo da obrigação das empresas transnacionais, os principais responsáveis pela implementação, respeito e efetivação de direitos humanos e fundamentais – o que está em sintonia com o conceito de soberania humana e soberania como responsabilidade, que a ONU vem desenvolvendo na contemporaneidade (BAMBIRRA, 2017, p. 193). Afirmou-se, concomitantemente, a obrigação de empresas transnacionais de promover, assegurar, respeitar e proteger os direitos humanos reconhecidos internamente e internacionalmente, tratando-se não de responsabilidade subsidiária, mas solidária e complementar. As obrigações das empresas transnacionais foram dispostas em seções, que serão examinadas de modo breve. A primeira seção trata de obrigações gerais (ponto 1), que, em resumo, reafirma a responsabilidade primária do Estado para promover e assegurar o respeito aos direitos humanos reconhecidos nacional ou internacionalmente, e assegurar que as empresas também o respeitem. Esta mesma responsabilidade, de modo autônomo, também cabe às empresas, inclusive quanto aos direitos e interesses dos povos indígenas e outros grupos vulneráveis. A segunda seção (ponto 2) estabelece o dever de empresas transnacionais assegurarem o direito à igual oportunidade e tratamento não discriminatório, conforme a legislação local e internacional sobre direitos humanos, com o objetivo de eliminar a descriminação baseada em raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política, nacionalidade ou origem social, status social ou indígena, deficiência e idade – com exceção à criança, que poderá ser dada maior proteção – ou qualquer outra característica individual que não seja relacionada à performance no trabalho, devendo observar medidas para superar discriminações históricas e existentes contra determinados grupos. A terceira seção (pontos 3 e 4) tratam do direito da segurança das pessoas, devendo as corporações transnacionais não se envolverem nem se beneficiarem de crimes de guerra, crimes contra a humanidade, genocídio, tortura, desaparecimento ou trabalho forçado, dentre outras violações ao direito humanitário e outros crimes internacionais contra

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a pessoa humana definidos pelo direito internacional. Em suas negociações sobre segurança, as empresas transnacionais devem observar o direito internacional humanitário, além das normas e padrões profissionais do país ou países em que opera. Na quarta seção (pontos 5 a 9), foram determinados os direitos laborais, como proibição do trabalho compulsório, nos termos dos tratados internacionais e legislação local, proibição da exploração do trabalho infantil e observância dos direitos das crianças, garantia de um ambiente de trabalho seguro e saudável, remuneração adequada – capaz de assegurar um padrão de vida digna para o indivíduo e a sua família –, e, por fim, assegurar o direito à livre associação e negociação coletiva, permitindo-se ao trabalhador participar de organizações de sua escolha sem distinção, prévia autorização ou interferência, para a proteção de seus interesses relativos ao trabalho, nos termos da legislação local e convenções relevantes da OIT. Em seguida (quinta seção, pontos 10 a 12), a Norma especifica obrigações relativas ao respeito à soberania e direitos humanos. As empresas transnacionais devem reconhecer e respeitar as normas aplicáveis do direito internacional e nacional, bem como práticas administrativas, o Estado Democrático de Direito (rule of law), o interesse público, objetivos de desenvolvimento e políticas públicas sociais, econômicas e culturais, incluindo transparência, accountability, proibição de corrupção e reconhecimento da autoridade do país no qual a empresa opera. No ponto 11, proíbe-se expressamente que empresas ofertem, prometam, deem, aceitem, negligencie ou demandem propina ou outra vantagem imprópria, nem sejam solicitadas ou se espere que elas paguem propina ou outra vantagem ilegal para qualquer governo, autoridade, candidato a posto eletivo, membro de força armada ou qualquer outra pessoa ou organização. Devem também se abster de qualquer atividade ou suporte a atividade que encorajem Estados ou outra entidade a abusar dos direitos humanos, além de assegurar que seus produtos e serviços não serão utilizados para essa finalidade. Por fim, ainda neste tópico, destaca o documento que as empresas devem respeitar direitos econômicos, sociais

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e culturais, bem como direitos civis e políticos, além de contribuir para a sua concreção, em particular o direito ao desenvolvimento, à alimentação (comida e bebida) adequada, o mais alto padrão de saúde física e mental, moradia digna, privacidade, educação, liberdade de pensamento, consciência, religião, opinião e expressão, e se abster de ações que obstruam ou impeçam a realização destes direitos. A sexta seção (ponto 13) trata da proteção ao consumidor. Devem as empresas atuar de acordo com o “comércio justo” (fair business); práticas publicitárias e de marketing devem observar os cuidados necessários para garantir a segurança e qualidade dos bens e serviços, inclusive a observância do princípio da precaução. Não é permitida a produção, distribuição, comercialização ou publicidade de produtos capazes de, com o seu uso, ainda que potencialmente, causar danos aos consumidores. A sétima seção tratou das obrigações ambientais, que restaram previstas no ponto 14. As atividades de empresas transnacionais devem obedecer leis, regulamentos, práticas administrativas e políticas (policies) relativas à preservação do meio ambiente nos países em que opera, bem como estar de acordo com tratados internacionais, princípios, objetivos, responsabilidades e standards relevantes de proteção ao meio ambiente, direitos humanos, saúde e segurança públicas, bioética e o princípio da precaução, e devem em geral conduzir as suas atividades de modo a contribuir para com a meta global de desenvolvimento sustentável. Finalmente, na oitava seção (pontos 15 a 19), o documento trouxe previsões relativas à sua concretização. Como passo inicial à implementação das Normas, cada corporação transnacional deve adotar, disseminar e implementar normas internas de operação de acordo com este documento. Em seguida, devem reportar periodicamente e tomar outras medidas para a total eficácia das Normas, cuidando para que os direitos humanos previstos sejam garantidos de imediato. Ainda, cada empresa transnacional deve aplicar e incorporar as Normas nos seus contratos ou outros acordos, bem como garantir a sua observância pelos contrata-

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dos, subcontratados, fornecedores, licenciados, distribuidores, ou outra pessoa física ou jurídica que fizer qualquer negócio jurídico com a corporação transnacional. As empresas transnacionais ficam sujeitas ainda ao monitoramento periódico pelas Nações Unidas ou outro mecanismo nacional ou internacional já existente ou a ser criado, concernente à aplicação das Normas. Este mecanismo de monitoramento deve ser transparente e independente, e levar em consideração as informações de stakeholders (inclusive ONGs). As empresas transnacionais ficam obrigadas e realizar avaliações periódicas no que tange ao impacto de sua própria atividade sobre os direitos humanos previstos nas Normas. Em caso de violação a direitos humanos, ficam as empresas obrigadas a prover reparação efetiva e adequada a pessoas, entidades e comunidades de que foram afetadas por falhas relativas à implementação desta norma por, entre outros, reparação, restituição, compensação e reabilitação por qualquer dano, inclusive em relação a danos oriundos de atividade criminal; deverão as cortes nacionais ou tribunais internacionais aplicarem as Normas, garantindo-se a observância do direito nacional e internacional. Aos Estados atribuiu-se o dever de criar e reforçar mecanismos legais e administrativos para garantir a implementação das Normas e outras normas nacionais e internacionais a respeito do tema, e por fim, consigna que as Normas não poderão ser utilizadas para diminuir ou restringir direitos humanos e obrigações dos Estados e empresas perante o direito nacional e internacional, estabelecendo, portanto, um patamar mínimo a ser observado. Nos pontos 20 a 23 (nona seção), há definições de termos importantes, como empresas transnacionais, “outras empresas”, steakholders e direitos humanos. O aspecto da implementação, isto é, mecanismos de garantia de eficácia, avançou significativamente quando comparadas as previsões das Normas e do Compacto Global, que não fez menção a este importante ponto. Além de ganhar uma seção específica, houve a salutar previsão da obrigação das empresas transnacionais de implementar e garantir o respeito aos direitos humanos em toda a sua cadeia produtiva, não

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servindo mais de escusa a responsabilidade de terceiros (empresas terceirizadas, fornecedores etc). Apesar de aprovadas pelo ECOSOCS, as Normas não foram aprovadas pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU. A medida que o Conselho tomou apontar John Ruggie para conduzir um novo processo, que depois se consolidou nos Princípios Guia de 2011. c) Os Princípios Guia para empresas e direitos humanos, de 2011 Os Princípios Guia foram aprovados pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU em 16 de junho de 2011 (ONU, 2011A), conferindolhe a autoridade necessária ao seu reconhecimento e implementação, se não sanando, ao menos representando um avanço significativo ao maior problema que existiu em relação às Normas, é dizer, a sua falta de reconhecimento e “peso”. Apesar disso, assiste razão a Weissbrodt (2014, p. 166) quando critica o termo “guia” utilizado no nome do documento, pois, em que pese princípio indicar uma norma e, semanticamente, no tanto na Teoria do Direito quanto igualmente no Direito Internacional, ter caráter cogente (de dever-ser), a complementação acabou por enfraquecer a noção de sua obrigatoriedade. Neste ponto, foi exatamente esse o objetivo dos Princípios, qual seja, constituir-se como instrumento de soft law, amenizando as previsões obrigatórias e mandamentais das Normas. Na introdução do documento, deixa-se claro que Nada nestes Princípios Guia deve ser lido como criando novas obrigações de direito internacional, ou como limitador ou enfraquecedor de qualquer obrigação que um Estado possa ter assumido ou esteja sujeito perante o direito internacional em relação aos direitos humanos (tradução livre do autor - ONU, 2011B, p. 1).

Os Princípios Guia foram construídos no marco das Nações Unidas para “respeitar, proteger e remediar”. Os princípios foram divididos em três grandes pilares: a) “O dever dos Estados de proteger os direitos

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humanos”; b) “A responsabilidade das empresas de respeitar os direitos humanos”; e c) “Acesso a mecanismos de reparação”. Cada um destes pilares é informado por princípios fundacionais (fundational principles) e princípios operacionais (operational principles). Antes de analisar os princípios propriamente ditos, é importante ressaltar que três princípios gerais e organizativos, que servem de fundamento aos demais, foram estabelecidos. São eles o reconhecimento: 1) das obrigações existentes dos Estados de respeitar, proteger e implementar os direitos e liberdades fundamentais; 2) do papel das empresas como órgãos da sociedade que desempenham funções especializadas, sendo necessário a observar todas as leis aplicáveis e respeitar os direitos humanos; 3) da necessidade de direitos e obrigações estarem apropriadamente conectados a remédios efetivos, quando lesados. Destaca-se, neste ponto, a semelhança dos três pilares que também fundamentam a responsabilidade de proteger – doutrina que informa a atuação de países em casos de grave violação a direitos humanos e fundamentais, que exigem intervenção armada da comunidade internacional – quais sejam, prevenir, reagir e reconstruir (BAMBIRRA, 2014, p. 277). O documento afirma, em relação aos objetivos e tendo em conta uma diretiva hermenêutica para a sua leitura, o seguinte: Estes Princípios Guia devem ser entendidos como um todo coerente e devem ser lidos, individual e coletivamente, nos termos de seus objetivos de aprimorar os standards e práticas relacionadas a empresas e direitos humanos, para que se alcancem resultados tangíveis para indivíduos e comunidades afetadas, e também contribua para uma globalização social e sustentável (tradução livre do autor – ONU, 2011B, p. 1)

No escopo do primeiro pilar – o dever dos Estados de respeitar os direitos humanos – há um total de dez princípios, dois fundacionais e os demais operativos. O ponto central (princípios fundacionais) é o dever do Estado de proteger os direitos humanos contra abusos quando cometido por terceiros, inclusive empresas, devendo tomar as medidas

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para prevenir, investigar, punir e reparar. Devem, ainda, deixar clara a expectativa de que todas as empresas domiciliadas em seu território, ou sob a sua jurisdição, respeitem os direitos humanos em suas operações. Os princípios operativos do primeiro pilar são os seguintes: 3) o dever do Estado de promover leis concernentes aos direitos humanos e empresas e a sua revisão periódica; garantir que as demais leis, como relativas ao direito empresarial, não iniba, mas, ao contrário, promova o respeito pelos direitos humanos; providencie instruções efetivas às empresas sobre como respeitar os direitos humanos em suas operações; e encorajar a comunicação empresarial sobre como estão tratando os impactos que causam aos direitos humanos; 4) os Estados devem ter cuidados adicionais para proteger abusos relativos aos direitos humanos por empresas que são de sua propriedade, ou controlada pelo Estado, ou, ainda, que recebam serviços ou suporte substancial de órgãos estatais (crédito, seguros, garantias etc); 5) os Estados devem exercer supervisão adequada para cumprir as suas obrigações internacionais no tocante aos direitos humanos quando ele contrata com ou legisla para que empresas disponham serviços que possam impactar a fruição de direitos humanos; 6) devem ainda promover o respeito aos direitos humanos pelas empresas com as quais conduz transações comerciais; 7) o princípio sete traz uma série de obrigações dos Estados relativas a sua atuação em áreas de conflito, com vistas a prevenir, mitigar e remediar violações de direitos humanos; 8 ) o oitavo princípio – além do nono e décimo – está dentro da seção denominada “garantindo a coerência política”, e determina que o Estado e seus órgãos que possuem atuação relacionadas à práticas comercias devem estar atentos e observar os direitos humanos, prover informações relevantes, treinamento e suporte; 9) os Estados devem manter um espaço de política doméstica adequado às suas obrigações de direitos humanos quando tem em vista políticas relacionadas à negócios com outros Estados ou companhias, principalmente através de tratados de investimento ou contratos; 10) por fim, quando atuando como membro de entidades multilaterais do âmbito empresarial, deve o Estado, em resumo, observar medidas que promo-

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vam os direitos humanos e encorajar os demais membros a assumir tais compromissos, inclusive os previstos nestes Princípios Guia. O segundo pilar refere-se à obrigação das empresas de respeitar os direitos humanos. Possui 5 princípios fundacionais e outros 9 princípios operativos. Os princípios fundacionais podem ser resumidos na obrigação direta das empresas de respeitar os direitos humanos, o que significa evitar infringi-los, além de tomar providências em relação aos impactos que causar (princípio 11). O princípio 12, por sua vez, esclarece que as obrigações relativas ao respeito a direitos humanos se referem, no mínimo, à Carta Internacional de Direitos Humanos (International Bill of Rights) – que compreende a Declaração Universal de Direitos do Homem, o Pacto Internacional para Direitos Civis e Políticos, e o Pacto sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais) – e a Declaração sobre Princípios Fundamentais e Direitos do Trabalho da OIT. No ponto 13 fica clara a obrigação das empresas de evitar causar ou contribuir para impactos adversos nos direitos humanos, além de prevenir e mitigar os impactos diretamente causados por sua operação, produtos e serviços, ainda que de seus parceiros, mesmo que não tenha contribuído para tanto. Abrange-se, portanto, toda a cadeia produtiva. O ponto 14 afirma que tais obrigações subsistem independentemente do porte da empresa, setor em que opera, contexto, proprietário ou estrutura, podendo, porém, a escala e a complexidade dos meios através dos quais a empresa garantirá estes direitos variar de acordo com esses fatores e com a severidade do impacto adverso que a empresa pode causar nos direitos humanos. Trata-se de uma regra de proporcionalidade. Por fim, as empresas deverão providenciar políticas para respeitar os direitos humanos, diligências para identificar, prevenir e mitigar eventuais impactos adversos, além de procedimentos para remediá-los. Após apresentar os princípios fundacionais, os demais 9 princípios operativos trazem instruções pormenorizadas de como implementar os primeiros, como nível de aprovação de determinados procedimentos, comissão externa para averiguar e controlar processos, aspectos relativos à publicização, mensuração qualitativa e quantitativa dos impac-

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tos adversos causados a direitos humanos, diretrizes para comunicação com os steakholders dentre outros. O terceiro pilar, denominado “acesso a remédios”, busca estabelecer os mecanismos adequados quando houver impacto adverso a direitos humanos. É neste ponto que serão consolidados os standards mínimos relativos aos mecanismos de reparação. Estabeleceu-se um princípio fundacional, assim descrito: Como parte de seu dever de proteger os direitos humanos contra abusos relacionados a empresas, os Estados devem tomar as medidas apropriadas para garantir, através dos meios judicial, administrativo, legislativo ou outro apropriado, que quando estes abusos ocorrerem dentro de seu território ou jurisdição, os afetados tenham acesso a mecanismos de reparação eficazes (tradução livre do autor – ONU, 2011B, p. 27).

Seguem a este princípio fundacional outros seis princípios operativos. Estes serão examinados de modo detalhado, pois aqui reside a maior dificuldade, e também a maior inovação dos Princípios Guia. Em primeiro lugar, o princípio 26 estabelece, seguindo a lógica de todo o documento, a responsabilidade primária dos Estados em criar mecanismos de reparação eficazes contra violações de direitos humanos cometidos por empresas, considerando ainda medidas que possam reduzir barreiras legais, práticas e outras relevantes que poderiam obstar o acesso aos mecanismos de reparação, como por exemplo, custas elevadas, a exclusão de grupos indígenas ou estrangeiros, acesso à defensoria pública e treinamento dos agentes estatais (como juízes, promotores e advogados públicos) a respeito do tema. Ainda relacionado à obrigação estatal, o ponto 27 determina que os Estados devem estabelecer mecanismos de denúncia extrajudiciais eficazes e apropriados, paralelamente aos mecanismos judiciais, de modo a se constituir um todo integrado apto a reparar violações a direitos humanos perpetrados por empresas. Em sentido parecido, o princípio 28 estabelece que os Estados devem facilitar o acesso a mecanismos não-estatais de denúncia acerca de

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violações a direitos humanos por empresas. Dentre estes mecanismos não-estatais incluem-se mecanismos administrados por empresas, que podem levar à resolução dos problemas de forma dialogal, à conciliação, mediação e arbitragem, ou constituídos, ainda, por grupos ou associações não-governamentais, além de organismos internacionais ou transnacionais, inclusive cortes regionais. O princípio 29 determina que também as empresas devem estabelecer e participar de tais mecanismos, de forma a atender prontamente e reparar possíveis violações, deixando à disposição de grupos vulneráveis ou que sofram impacto negativo mecanismos de denúncias. Nesse mesmo espírito, o princípio 30 afirma que corporações industriais, sociedades cooperativas e outras iniciativas colaborativas (multi-steakholder and other colaboratives initiatives) que se baseiam no respeito aos standards de direitos humanos devem garantir, também, a disponibilidade de mecanismos de denúncia. Finalmente, o princípio 31 estabeleceu critérios de eficácia dos mecanismos não judiciais de denúncia. Assim, preconiza que tais mecanismos devem ser: a) legítimos, devendo suscitar a confiança dos steakholders e responder pelo correto desenvolvimento do procedimento de denúncia; b) acessíveis, conhecido por todos os grupos interessados, além de prestar a devida assistência a quem dela necessite para ter o adequado acesso aos mecanismos de reparação; c) previsíveis, sendo o procedimento claro, com prazos estabelecidos a cada etapa, esclarecer possíveis desdobramentos e resultados, além dos meios disponíveis para supervisionar a implementação; d) equitativos, assegurando que as vítimas tenham um acesso razoável às fontes de informação, assessoramento especializado necessários para iniciar um processo de denúncia em condições de igualdade, com acesso à informação e respeito; e) transparente, mantendo as partes informadas sobre o andamento do processo de denúncia, oferecendo também informação sobre o desempenho do mecanismo, com vistas a fomentar a confiança em sua eficácia e garantir o interesse público; f) compatíveis com os direitos, ou seja, garantir que os resultados sejam conforme os direitos humanos; g) fonte de

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aprendizagem contínua: devem ser identificadas experiências ganhas para melhorar o mecanismos e prevenir futuras violações de denúncias; e h) basear-se na participação e diálogo: devem os grupos interessados serem consultados sobre os mecanismos de reparação sobre a sua concepção e desempenho, especialmente no que tange ao diálogo como meio de solução pacífica da controvérsia. Os Princípios Guia, como se pode observar, constituiu um corpo denso, analítico e sistemático, referente às práticas gerais e responsabilidades de Estados e empresas sobre a temática direitos humanos. Foi o documento que obteve sucesso no reconhecimento da importância do tema, ganhando peso político significativo com a sua aprovação, à unanimidade, no Conselho de Direitos Humanos. Espera-se que este seja um passo importante – e um avanço civilizacional – para a efetiva mudança da atual situação concernente às violações de direitos humanos por empresas que assistimos cotidianamente. 3. Considerações finais Em que pese ainda o baixo nível de conhecimento sobre o marco internacional de direitos humanos e empresas, há um esforço institucional para que países e empresas adiram aos Princípios Guia e lhes confira eficácia (WEISSBRODT, 2014, p. 168). O Conselho de Direitos Humanos da ONU, inclusive, estabeleceu um fórum permanente sobre o tema, e uma breve consulta à sua página na internet permite ver que um trabalho interessante vem sendo realizado3. Também, ao redor do mundo, há grandes iniciativas de grupos de pesquisa e universidades que vem explorando o tema, com destaque para a Universidade de Havard (onde John Ruggie é professor de Direitos Humanos), Essex, New York University, dentre outras, e, no Brasil, a Fundação Getúlio Vargas (FGV), a Universidade Federal de Juiz de Fora (HOMA), e mais recentemente, a Universidade Federal de Goiás, com a criação de uma linha 3 V. http://www.ohchr.org/EN/Issues/Business/Pages/BusinessIndex.aspx, 30/03/2017.

consultado

em

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de pesquisa específica sobre o tema pelo Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Direitos Humanos (PPGIDH-UFG). De 1999 até 2011, ou seja, do Compacto Global, passando pelas Normas e, agora, confluindo o desenvolvimento das duas últimas décadas nos Princípios Guia, nota-se que houve significativa evolução normativa, espelhando tal aumento de complexidade a própria hipercomplexidade da globalização. Os problemas de direitos humanos e a atuação das empresas passaram a ganhar destaque, e, afirmamos, vem se constituindo com uma área do saber eminentemente interdisciplinar, pois imprescindível congregar conhecimentos sobre Filosofia (Ética), Direito, Ciências Sociais, Administração e Economia, Antropologia, Geografia e Biologia (Ecologia), dentre tantos outros. Afinal, empresas tornaram-se atores sociais tão importantes quanto o governo, com grande poder, e, evidentemente, equivalente responsabilidade. O tema precisa de aprofundamentos investigativos, o que certamente ocorrerá nos anos vindouros. Referências Bibliográficas BAMBIRRA, Felipe Magalhães. O Sistema Universal de Proteção aos Direitos Humanos e Fundamentais. Belo Horizonte: Faculdade de Direito da UFG (Tese de Doutorado em Direito), 2014. BAMBIRRA, Felipe Magalhães. Soberania revisitada: construção histórico-filosófica e aproximativa entre direitos humanos e soberania através da dialética do reconhecimento. Revista Brasileira de Estudos Políticos, v. 114, p. 161-197, 2017. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. CONECTAS. Empresas e Direitos Humanos: parâmetros da ONU para proteger, respeitar e reparar – relatório final de John Ruggie – representante especial do Secretário-Geral, 2012. Disponível em . Consultado em 30/03/2017. MAYOS, Gonçal Solsona. Empoderamiento y Desarrollo Humano; actuar local y pensar postdisciplinarmente. In: DIAZ; COELHO; MAYOS (eds.). Postdisciplinaridad y Desarrollo Humano: entre pensamiento y política. Barcelona: Linkgua, 2014. ONU. Economic, Social and Cultural Rights. UN DOC E/CN.4/ Sub.2/2003/12/Rev.2. Norms on the responsibilities of transnational corporations and other business enterprises with regard to human rights. 26 August, 2003. ONU. Global Compact, 1999. Disponível em . Consultado em 30/03/2017. ONU. United Nations Human Rights Council. UN DOC A/HRC/ RES/17/4. 16 june, 2011A. ONU. United Nations Human Rights Council. UN DOC HR/ PUB/11/04, 2011B. SALGADO, Joaquim Carlos. A Idéia de Justiça em Hegel. São Paulo: Loyola, 1996. VOSGERAU, Ulrich. Staatliche Gemeinschaft und Staatengemeinschaft: Grundgesetz und Europäische Union im internationalen öffentlichen Recht der Gegenwart. Universität zu Köln: Habilitationsschrift, 2012. WEISSBRODT, David. Human Rights Standards Concerning Transnational Corporations and Other Business Entities, Minnesota Journal of International Law, 135, 2014, disponível em , consultado em 30/03/2017. WETTSTEIN, Florian. Multinational Corporations and Global Justice: human rights obligations of a quasi-governamental institution. Stanford: Stanford University Press, 2009.

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A SUPRACONSTITUCIONALIDADE DOS TRATADOS DE DIREITOS HUMANOS COMO UMA POSSÍVEL SOLUÇÃO AO CONFLITO ENTRE DECISÕES NA ORDEM JURÍDICA INTERNACIONAL E NA ORDEM JURÍDICA INTERNA: O CASO DA LEI DE ANISTIA BRASILEIRA.

Fernanda Busanello Ferreira1 Alex Silva Ramos2

1. Considerações iniciais O objetivo geral desta pesquisa foi buscar analisar como um conflito interpretativo de um mesmo instituto jurídico entre duas jurisdições distintas (nacional e internacional) poderia ser solucionado. De um lado, tem-se a interpretação feita pela Suprema Corte brasileira, o Supremo Tribunal Federal, que derivou em consequências opostas ao entendimento de uma Corte Internacional, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, a qual o Brasil reconhece jurisdição e está submetido. Este é o ponto crucial a ser investigado neste trabalho, qual seja: 1

Professora do PPGIDH (UFG), no qual realizou estágio pós-doutoral, e do Curso de Direto da UFG/REJ, Doutora em Direito (UFPR). E-mail: [email protected].

2

Bacharel em Direito pela UFG/REJ, foi orientado pela Profa. Fernanda Busanello Ferreira em seu TCC, do qual este texto é um resumo. E-mail [email protected].

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buscar estabelecer qual entendimento prevalece e qual deveria prevalecer, segundo as regras existentes no ordenamento jurídico, na doutrina e na jurisprudência, em caso de conflito entre decisões na ordem jurídica internacional e na ordem jurídica interna. A posição adotada neste texto, de que um Tratado de direitos humanos deve possuir prevalência sobre o texto constitucional sempre que for mais favorável à dignidade da pessoa humana, não foi aleatória. Diante da consideração de que o ser humano é o elemento essencial de um Estado, a sua proteção jurídica necessita de uma articulação tanto na ordem estatal, através dos direitos fundamentais, como na ordem internacional, através dos direitos humanos. É sob a proteção irrestrita dos direitos universais do homem que a ordem jurídica dos Estados deve se direcionar, para que não aconteçam os mesmos erros que foram perpetrados contra a humanidade no passado. Defende-se que a dignidade da pessoa humana deve prevalecer sobre todas as demais questões, inclusive contra interesses internos do Estado. Diante das inúmeras ações cometidas pelos agentes estatais, em especial contra direitos humanos, durante o regime militar no Brasil, foi editada, no Brasil, em 1979, uma lei que tinha como principal objetivo anistiar todas as pessoas que cometeram “crimes políticos ou conexos” em decorrência do período de exceção. A Lei de Anistia acabou tendo como efeito prático a impunidade às pessoas que cometeram os mais diversos crimes em decorrência dos abusos praticados na vigência do regime militar no país. Buscando demonstrar a incongruência da referida lei com a Constituição, foram ajuizadas duas ações constitucionais. A primeira foi a “Arguição de Preceito Fundamental n° 320”, promovida pela Ordem dos Advogados do Brasil; a outra foi a “Arguição de Preceito Fundamental nº320”, promovida pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), ambas questionando a constitucionalidade da Lei de Anistia perante o Supremo Tribunal Federal, alegando que ela não responsabilizaria os culpados por violações de direitos humanos que aconteceram em território brasileiro na ditadura militar, o que violaria a Constituição. Como

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julgou a Suprema Corte brasileira neste caso? É o que se passará a analisar na sequência. 2. Análise da decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a Lei de Anistia Como dito, no Brasil, foram propostas duas arguições na Suprema Corte brasileira que questionavam a constitucionalidade da Lei 6.683, de 28 de agosto de 1979, também conhecida como “Lei da Anistia”, objetivando eximir das punições os agentes estatais responsáveis por crimes cometidos durante o regime militar, em especial contra os direitos humanos. Nesta pesquisa abordaremos apenas a ADPF de nº153 que teve como autora a Ordem dos Advogados do Brasil. Na arguição, a postulante argumentou, em sua petição inicial, que alguns agentes estatais durante o regime militar não cometeram crimes políticos e sim crimes comuns (ADPF 153/STF). Para isto, era necessária uma nova interpretação do § 1º do artigo 1º da Lei 6.683/79, solicitando à Corte Suprema que a anistia prevista nesta lei não se estendesse às pessoas que cometeram crimes comuns (homicídio, tortura, entre outros). Foi por essa linha que o ministro Ayres Brito proferiu seu voto a respeito da Lei de Anistia, dizendo que “em homenagem ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, devem ser excluídos da anistia garantida pela Lei 6.683/79 todos os crimes de tortura, hediondos e equiparados a eles, se cometidos por agentes do estado durante o regime militar” (STF 1, 2016), ou seja, pessoas que cometeram crimes hediondos (especialmente homicídio, tortura e estupro) (ARQUIVOS PUC/RIO, 2017) deveriam ser excluídas do rol de beneficiados da lei de anistia. Outro fato observado no voto do ministro foi a visão que ele possui sobre anistia, conceituando que este instituto significa um perdão coletivo de quem incidiu em certas práticas criminosas (ROESLER, SENRA, 2017), justificando que este benefício não poderia ser concedido a todos, como estava explicitado na lei. O voto foi encerrado com a

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procedência parcial do pedido, pois para o ministro deveriam ser retirados da lei a previsão do § 1º do artigo 1º da Lei 6.683/79, que concedia anistia a todas as pessoas que cometeram crimes políticos ou conexos com este durante o regime militar. O ministro Ricardo Lewandowski, na mesma linha de raciocínio, proferiu seu voto baseado no fato de que “crimes políticos praticados pelos opositores do regime de exceção e crimes comuns praticados pelos agentes do regime não podem ser igualados. Por isso, os agentes do Estado não estão automaticamente abrangidos pela anistia” (STF1, 2017). Analisando o mesmo dispositivo que o ministro Ayres Brito comentou (o § 1º do artigo 1º da Lei 6.683/79), o ministro Lewandowski, apontando jurisprudências do próprio tribunal (como no caso Battisti, Norambuena), afirmou que o próprio STF faz uma clara distinção entre: crimes políticos típicos, identificáveis ictu oculi, praticados, verbi gratia, contra integridade territorial de um país, a pessoa de seus governantes, a soberania nacional, o regime representativo e democrático ou o Estado de Direito, e crimes políticos relativos, que a doutrina estrangeira chama de hard cases, com relação aos quais, para caracterizá-los ou descartá -los, cumpre fazer uma abordagem caso a caso (case by case approach) (ITO, 2017a).

Em outra jurisprudência (HC 73451; Extradição 855; Extradição 1085), citada pelo ministro Lewandowski em seu voto, podemos perceber que a posição do ministro é de que crimes hediondos, no caso da Lei da Anistia, tem a mesma classificação do que crimes comuns e não poderiam ter conexão com os crimes políticos abarcados pela anistia da Lei 6.683/79, como pode ser observado em sua justificativa: a simples menção à conexão no texto legal contestado, à toda evidência, não tem o condão de estabelecer um vínculo de caráter material entre os crimes políticos cometidos pelos opositores do regime e os delitos comuns atribuídos aos

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agentes do Estado, para o fim de lhes conferir o mesmo tratamento jurídico (ITO, 2017a).

Para tanto, o ministro conclui que, como a Lei de Anistia sequer faz apontamento aos crimes comuns e emprega de forma equivocada o conceito de conexão, dever-se-ia realizar a abertura da persecução penal contra os agentes estatais que poderiam ter cometido os delitos previstos na legislação penal ordinária, o que seria analisado caso a caso, a fim de avaliar se houve, ou não, a prática de um delito de natureza política ou cometido por motivação política (ITO, 2017a). No dispositivo da decisão, o ministro Lewandowski julgou a arguição parcialmente procedente, cabendo destaque ao texto do § 1º do artigo 1º da Lei 6.683/79 (no mesmo entendimento que o ministro Ayres Brito), não aceitando que agentes estatais poderiam estar automaticamente abrangidos pelo instituto da anistia previsto na lei, devendo o juiz ou tribunal, antes de admitir o desencadeamento da persecução penal contra estes, realizar uma abordagem caso a caso. Em suma, era necessária uma análise caso a caso para saber se o crime cometido pelo agente estatal era de fato um crime comum ou um crime político para, a partir disso, decidir pela persecução penal ou pela anistia prevista pela lei. Esses foram os dois votos que tiveram divergência dos demais ministros. Os demais votos serão tratados a seguir. O ministro relator Eros Grau votou pela improcedência do pedido que estava contido na ADPF. Cabe destacar alguns pontos abordados em seu voto. O primeiro foi que, no entendimento deste ministro, não caberia ao Poder Judiciário alterar, a dar outra redação, diversa da nele contemplada, à texto normativo (STF 2, 2017). Neste caso, não estaria o Supremo autorizado a mudar o conteúdo da Lei de Anistia. Outro ponto que merece destaque diz respeito à obscuridade que foi indagada pela OAB sobre a redação do texto. O ministro ressalta que todo texto por si só é obscuro até o momento em que é realizada sua interpretação. Sobre a perspectiva do que se trata de “conexão a crimes políticos” (§ 1º do

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artigo 1º da Lei 6.683/79), Eros Grau teve um entendimento diferente do ministro Lewandowski. Para o relator, o termo conexão não tinha relação com o conceito de “conexão criminal” constante na doutrina brasileira. Esta conexão (dita por ele como sui generis) “denota alcance que deve ser verificado no momento histórico da sanção da lei” (ARQUIVOS PUC/RIO), utilizando o voto do ministro do Decio Miranda no RHC n. 59.834 para justificar a amplitude do termo “conexão”. Outro ponto a ser destacado foi a colocação do ministro de que a Lei de Anistia deve ser interpretada em conjunto com o seu texto, a realidade e o momento histórico no qual ela foi editada e não a realidade atual (STF 2, 2017); concluindo em seu voto, que mesmo votando pela improcedência da ADPF, não exclui o repúdio “a todas as modalidades de tortura, de ontem e de hoje, civis e militares, policiais ou delinquentes” STF 2, 2017) e que sobre o regime militar “é necessário não esquecermos, para que nunca mais as coisas voltem a ser como foram no passado” (STF 2, 2017). A ministra Ellen Gracie apresentou o menor dos votos dentre os ministros sobre a procedência ou não da ADPF. Acompanhando o entendimento do relator sobre a improcedência da arguição, a ministra conceituou anistia como sendo “esquecimento, oblívio, desconsideração intencional ou perdão das ofensas passadas. É superação do passado com vistas à reconciliação de uma sociedade” (ROESLER, SENRA, 2017). Este instituto, segundo a ministra, foi necessário para transição pacífica de um regime autoritário para uma democracia, ressaltando que: a anistia, inclusive daqueles que cometeram crimes nos porões da ditadura foi o preço que a sociedade brasileira pagou para acelerar o processo pacífico de redemocratização, com eleições livres e a retomada do poder pelos representantes da sociedade(ARQUIVOS PUC/RIO).

O ministro Marco Aurélio também votou pela improcedência da

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arguição apresentando, assim como a ministra Ellen Gracie, uma conceituação sobre anistia. Para o ministro, a anistia é o “apagamento do passado em termos de glosa e responsabilidade (...) é o perdão em sentido maior (...) ato abrangente de amor, calcado na busca da pacificidade do convício dos cidadãos” (ARQUIVOS PUC/RIO). Também foi trabalhada em seu voto a perspectiva prescricional dos crimes cometidos durante o regime militar, argumentando que não surtiriam efeitos quanto aos autores deste ou aquele crime, quer no campo cível, quer no campo penal, observando que “o prazo maior da prescrição quanto à persecução penal é de vinte anos. O prazo maior quanto à indenização no campo cível é dez anos” (ARQUIVOS PUC/RIO). Na parte dispositiva do voto, o ministro Marco Aurélio, votando pela improcedência da ADPF, assinalou que o voto do ministro Eros Grau era um alerta às futuras gerações quanto à possibilidade de existência de uma nova Lei de Anistia. O ministro Cesar Pelluso, na época presidente do STF, também votou pela improcedência da ADPF concordando com o ministro Marco Aurélio no tocante à esterilidade da pretensão punitiva constante na arguição, pois as ações cíveis e criminais já estavam prescritas. Sobre o termo “conexão” o ministro argumentou semelhantemente ao ministro Eros Grau, afirmando que no caso da Lei de Anistia, essa “conexão” não tinha o sentido tradicional e técnico-jurídico (do Código de Processo Penal); mas possuí um sentido denominado por ele mesmo de “metajurídico” (ROESLER, SENRA, 2017). Outro ponto observado em seu voto foi sobre a impossibilidade de revogação da Lei de Anistia por outras leis. No sistema jurídico brasileiro, uma lei só poderia revogar outra se essa nova lei fosse mais benéfica ao réu, o que possivelmente não aconteceria e conclui seu voto afirmando que “só uma sociedade superior, qualificada pela consciência dos mais elevados sentimentos da humanidade é capaz de perdoar, porque só uma sociedade que, por ter grandeza, é maior que seus inimigos, é capaz de sobreviver” (ARQUIVOS PUC/RIO). Outro voto sobre a improcedência da ADPF foi o da ministra Carmen Lúcia. Preliminarmente, a ministra declarou que somente o

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disposto no § 1º do artigo 1º da Lei 6.683/79, referente à expressão “crimes conexos”, era objeto de exame a ser realizado. Mesmo concordando que “todo povo tem direito de conhecer toda a verdade da sua história”, fatores como o “direito à verdade, o direito à história, o dever do Estado brasileiro de investigar, encontrar respostas, divulgar e adotar as providências sobre os desmandos cometidos no período ditatorial” (ITO, 2017b), entendeu que estes não eram objeto de decisão naquela ADPF, vinculando seu voto apenas a extensão da expressão citada artigo 1º da lei. Observando a decisão constante no voto (referente a “crimes conexos”), a ministra Carmen Lúcia disse que, mesmo que a opção inicial do intérprete seja analisar o referido dispositivo com os parâmetros atuais, era necessário analisar a lei levando em consideração o momento histórico em que a lei foi editada, como pode ser observado em seu voto: assim, não se pode, em nome de uma argumentação legítima, trazida agora a este Supremo Tribunal, sobre a interpretação de expressão da Lei n. 6683/79 ignorar-se tudo o que se passou e que secundou a formação daquele documento, goste-se ou não do que nele se contém ou o que dele resultou (ITO, 2017b).

Utilizando argumento parecido com o do ministro Cesar Pelluso, a ministra destacou que mudanças na Lei de Anistia não poderiam ser feitas, argumentando que: no caso, de matéria penal, a mudança que eventualmente sobreviesse, em primeiro lugar, não poderia retroagir se não fosse para beneficiar até mesmo o condenado; em segundo lugar, teria de ser sobre norma ainda não exaurida em sua aplicação (ITO, 2017b).

E sobre a interpretação do § 1º do artigo 1º da Lei 6.683/79 a ministra manifestou que o trecho da lei em questão possuía “ausência

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de comprovação de controvérsia judicial relevante” (ITO, 2017b) e entendeu que a anistia foi estendida aos “crimes conexos” devido ao processo de transição vivido naquele período, devendo-se interpretar tal dispositivo de acordo com as circunstâncias do período em que a lei foi editada, como foi observado na parte dispositiva do voto em relação à improcedência da ADPF, tendo referido que “não há como julgar o passado com os olhos apenas de hoje, desconhecendo o que se fez, se ajustou e se comprometeu, produzindo efeitos alguns dos quais exauridos no tempo” (ITO, 2017b). Já o ministro Celso de Mello começou a argumentação de seu voto trabalhando a perspectiva histórica do regime militar. O ministro ressaltou uma característica jurisdicional deste período, no qual existia a vedação do controle jurisdicional buscando a sua própria preservação institucional e sobrevivência política (STF 3, 2017), reconhecendo que a tortura praticada por agentes estatais neste período “revela, no gesto primário e irracional de quem a pratica, uma intolerável afronta aos direitos da pessoa humana e um acintoso desprezo pela ordem jurídica estabelecida” (STF 3, 2017). Sobre o disposto no § 1º do artigo 1º da Lei 6.683/79, o ministro Celso de Mello argumentou que existe a possibilidade de estender a anistia também aos chamados “crimes comuns”, apresentando autores como Guilherme de Souza Nucci, Paulo José da Costa, Rógerio Greco, Luiz Regis Prado, Aloysio de Carvalho Filho, os quais compartilham deste mesmo entendimento, como se observa em seu voto: isso significa que se revestiu de plena legitimidade jurídicoconstitucional a opção legislativa do Congresso Nacional que, apoiando-se em razões políticas, culminou por abranger, com a outorga da anistia, não só os delitos políticos, mas, também, os crimes a estes conexos e, ainda, aqueles que, igualmente considerados conexos, estavam relacionados a atos de delinquência política ou cuja prática decorreu de motivação política (STF 3, 2017).

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O ministro Celso de Mello também argumentou que a Corte Interamericana de Direitos Humanos não tolera “o esquecimento penal de violações aos direitos fundamentais da pessoa humana nem legitima leis nacionais que amparam e protegem criminosos que ultrajaram valores essenciais protegidos pela Convenção américa de Direitos Humanos (sic)” (STF 3, 2017). Entretanto, argumenta que no caso do Brasil, diferentemente dos casos contra o Peru (“Barrios Altos”, em 2001, e “Loayza Tamayo”, em 1998) e contra o Chile (“Almonacid Arellano e outros”), a anistia foi dada de modo bilateral, tendo agentes estatais e insurgentes contra o regime sido agraciados pelo benefício, não cabendo uma comparação adequada entre os casos. Outro argumento que o ministro expôs em seu voto foi sobre a anterioridade temporal da Lei de Anistia. Para ele, esta lei não poderia ser desconstituída por instrumentos normativos posteriores, tais como a Convenção das Nações Unidas contra a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes (1984), assim como a promulgação, pelo Congresso Nacional, em 1997, da Lei nº 9.455, que definiu e tipificou, entre nós, o crime de tortura, concluindo que há o impedimento de leis penais posteriores que sejam mais gravosas sejam aplicáveis no atual sistema constitucional brasileiro. Votando pela improcedência da ADPF, o ministro Celso de Mello ressaltou que é direito de toda sociedade o esclarecimento dos fatos ocorridos no período do regime militar, independentemente da responsabilização criminal de tais autores, e afirmando que “a Lei nº 6.683/79 não se qualifica como obstáculo jurídico à recuperação da memória histórica e ao conhecimento da verdade” (STF 3, 2017) deste período. O último voto a ser trabalhado neste item é do Ministro Gilmar Mendes. Em primeiro lugar o ministro expõe um ponto importante de sua análise, afirmando que “a questão não reside na conceituação de crime político, e sim na própria característica do ato de anistia” (CRISTO, 2017), se referindo ao trecho de lei que diz respeito aos “crimes conexos” (§ 1º do artigo 1º da Lei 6.683/79). Para tanto, o ministro conceitua anistia como sendo “ato revestido de caráter eminentemente político

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e sua amplitude é definida de forma política” (CRISTO, 2017). Posteriormente, há um importante ponto que merece destaque no voto deste ministro. Para ele, “o ponto fundamental a ser levado em conta é de que a anistia ampla e geral representa o resultado de um compromisso constitucional que tornou possível a própria fundação e a construção da ordem constitucional de 1988” (CRISTO, 2017). Esse é o ponto crucial de seu voto, no qual, segundo ele, foi graças ao instituto da anistia que existiu a possibilidade de construção da ordem constitucional de 1988. Há também, em seu voto, a exploração da Emenda Constitucional n.26/85, que convocou a Assembleia Nacional Constituinte. Para o ministro, a ampliação da anistia que a lei se propôs a oferecer foi consumada através desta EC, incorporando a anistia como um dos fundamentos da nova ordem constitucional (CRISTO, 2017). Encerrando assim seu voto, acompanhou o relator pela improcedência da ADPF. O Joaquim Barbosa, à época licenciado, e o ministro Dias Toffoli, à época impedido, não realizaram votos nesta ADPF. Levando em conta todos os votos proferidos pelos ministros, é possível chegar à conclusão de que a improcedência da ADPF foi externada por 7 ministros, com duas procedências parciais e dois votos não realizados. Este foi o resultado do julgamento desta ADPF no Supremo Tribunal Federal. Porém, mesmo com este resultado um fato chama atenção nos votos dos ministros que decidiram pela improcedência da arguição. A maioria dos ministros argumentou que, sob perspectivas diferentes, houve uma espécie de “acordo” entre governo e a população no que se refere aos atos praticados durante a ditadura, em especial aos crimes “políticos e conexos a este”. Este acordo, segundo alguns ministros, foi o que possibilitou que a abertura democrática do país se consolidasse. Diante de tal constatação é oportuno apresentarmos o discurso do professor Fábio Comparato, no debate da Lei de Anistia, em que foi levantado o argumento do suposto “acordo político” estabelecido entre as partes (governo militar e população). Disse o professor a respeito que “segundo essa original exegese, torturadores e torturados, reunidos em

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uma espécie de contrato particular de intercâmbio de prestações, do ut des, teriam resolvido anistiar-se reciprocamente” (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2016), como se fosse possível tornar direitos do homem, como a vida, liberdade, integridade física disponíveis à “negociação”. Além do mais, há que se ressaltar que os que realmente foram torturados sequer foram parte do “acordo”. Nessa perspectiva, segue indagando o professor que se “porventura, as vítimas ainda vivas e os familiares de mortos pela repressão militar foram chamados a negociar esse acordo? O povo brasileiro, como titular da soberania nacional, foi convocado a referendá-lo?” (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2016, p, 32), questionando justamente essa ideia de “acordo” proposto naquele período, denunciando a falácia no argumento. Essa ADPF foi uma tentativa de realização do controle de constitucionalidade pelo modo concentrado de uma lei que claramente violou direitos humanos, objetivando que dela incorresse a declaração de inconstitucionalidade e suas consequências. A pergunta que fica seria: nesse caso, e em tantos outros que possam vir a existir; seria viável realizar outro tipo de controle quando se esgota o controle de constitucionalidade? E quando há no imbróglio, violações de direitos humanos seria possível algum outro tipo de controle além do de constitucionalidade? Em suma, a Lei de Anistia é uma norma infraconstitucional que deveria estar em consonância com os princípios que regem a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Como a lei é anterior à Constituição e se mostra incompatível com os princípios constitucionais, nada mais oportuno do que provocar a Suprema Corte para que fosse declarada sua inconstitucionalidade. Infelizmente o entendimento do Supremo Tribunal Federal não foi este. Então já que não foi possível a declaração de inconstitucionalidade pela via do controle concentrado de constitucionalidade, haveria outra saída para que esta lei tenha sua validade exaurida, além da possibilidade de recorrer ao controle difuso? A resposta é afirmativa se pensarmos em outro tipo de controle que poderia ser feito também pela Suprema Corte assim como pela Corte

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Interamericana de Direitos Humanos: cabe o controle de convencionalidade, ao qual dedicaremos o próximo item. 3. A Lei de Anistia Brasileira e o controle de convencionalidade: análise a partir da Corte Interamericana de Direitos Humanos

O surgimento do termo “controle de convencionalidade” na doutrina brasileira teve no professor Valério Mazzuoli seu principal expoente. É um tipo de controle que possui obrigatória ligação com os Tratados de Direitos Humanos ratificados pelo país. Segundo Mazzuoli é “nítido que a expressão controle de convencionalidade é reservada, neste estudo, apenas aos tratados de direitos humanos e a mais nenhum outro” (MAZZUOLI, 2011, p. 25). A posição do autor é de que os Tratados de Direitos Humanos ratificados pelo Brasil possuem o mesmo nível hierárquico que as demais normas constitucionais. Isso implica concluir que os Tratados assinados (em especial sobre Direitos Humanos) também servem de parâmetro normativo para a legislação interna. Se, por um lado, o controle de constitucionalidade tem como principal função verificar a convergência de um instituto normativo interno com a Constituição, o controle de convencionalidade tem outra função: verificar a congruência de institutos jurídicos de um país com os Tratados de Direitos Humanos ratificados no âmbito interno. Tal controle não é realizado apenas na esfera interna (STF, STJ, Tribunais e juiz de 1ª instância, no caso brasileiro), mas também na jurisdição externa (respectiva Corte capaz de julgar o cumprimento do Tratado), o que será visto neste tópico. Olhando para uma perspectiva interna podemos destacar que o controle de convencionalidade pode ser feito de modo difuso ou concentrado, exatamente como ocorre com o controle de constitucionalidade. Pelo modo concentrado, até o presente momento, não foram encontrados casos em pesquisas na Suprema Corte (possivelmente por uma questão prioritária da Suprema Corte em exercer somente o con-

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trole de constitucionalidade, ou quem sabe por falta de demanda), mas é perfeitamente pacífico o entendimento de que o Supremo Tribunal Federal possa realizar esse controle por esse modo (MAZUOLI, 2009, p. 113). Por outro lado, existem muitas demandas de controle de convencionalidade no modo difuso. Como exemplo, podemos citar o REsp Nº 1.640.084 - SP (2016/0032106-0), no qual o Superior Tribunal de Justiça descriminalizou o crime de desacato a autoridade, pois a referida conduta não estava de acordo com o conteúdo do Pacto de San Jose da Costa Rica quando se refere à liberdade de expressão e direito à informação. Segundo o relator, ministro Ribeiro Dantas, “a criminalização do desacato está na contramão do humanismo, porque ressalta a preponderância do Estado – personificado em seus agentes – sobre o indivíduo” (STF 4, 2017). Caber destacar que o mesmo juízo/tribunal tem a competência para realizar determinado controle conforme a situação: incongruência com a Constituição, no caso do controle de constitucionalidade; ou com Tratados de Direitos Humanos, no caso do controle de convencionalidade. No caso concreto, nossa análise relaciona-se ao Pacto de San José da Costa Rica, tratado de direitos humanos assinado em 1969 e ratificado pelo Brasil em 1996. Diante da institucionalização dos direitos humanos pelo mundo, surgiu no continente americano, em 1969, a Convenção Americana sobre os Direitos Humanos, também conhecida como Pacto San Jose da Costa Rica (alusão à cidade aonde foi celebrada a Convenção). Inicialmente, contava com 25 países do continente americano que buscavam dialogar sobre a proteção de Direitos Humanos. Desta discussão, 15 países membros da OEA3, decidiram assinar um documento para que fosse efetivado, em caráter pactual, a defesa destes direitos. Esta Convenção, mesmo tendo assinada em 1969, teve sua vigência iniciada anos depois, reconhecendo e buscando garantir os direitos destacados abaixo: 3

Organização dos Estados Americanos, fundada em 1948, que tem como principal objetivo a promoção da democracia, dos direitos humanos, da segurança e do desenvolvimento. Hoje a Organização conta com 35 Estados independentes das Américas.

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o direito à personalidade jurídica, o direito à vida, o direito a não ser submetido à escravidão, o direito à liberdade, o direito a um julgamento justo, o direito à compensação em caso de erro judiciário, o direito à privacidade, o direito à liberdade de consciência e religião, o direito à liberdade de pensamento e expressão, o direito à resposta, o direito à liberdade de associação, o direito ao nome, o direito à nacionalidade, o direito à liberdade de movimento e residência, o direito de participar do governo, o direito à igualdade perante a lei e o direito à proteção judicial (PIOVESAN, 2013, p. 208).

Importante destacar que cabe ao Estado signatário, não apenas respeitar estes direitos, mas assegurar que eles sejam cumpridos, ou seja, o Estado tem um papel positivo e negativo na garantia do pacto firmado. Se a Convenção Americana de Direitos Humanos, por um lado, buscou positivar e implementar os direitos que enunciou, cabe, por outro lado, a outros órgãos atuarem para garantir o cumprimento destes direitos, sendo eles: a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Sobre esta Corte é importante destacar que ela é composta por sete juízes eleitos pelos Estados que fazem parte dos países que assinaram a Convenção. Sua função é de oferecer tanto consultas sobre um determinado aspecto jurídico interno à Convenção, tanto quanto ao exercício da função contenciosa, que consiste no julgamento de casos que afrontem os termos da Convenção Interamericana de Direitos Humanos. É necessário fazer alguns destaques neste ponto. Primeiramente, sob o aspecto consultivo, não existe a necessidade de o Estado ser membro da Convenção Americana4 para solicitar um parecer jurídico acerca da interpretação da Convenção ou assunto relativo à proteção de direitos humanos no continente americano. Outro aspecto que merece 4

Cabe uma observação que nem todos Estados Americanos assinaram a Convenção americana de Direitos Humanos. Países como Estados Unidos, Canada, Cuba, entre outros, também não assinaram o Pacto.

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destaque é o fato de que a Corte também pode opinar sobre se algum instituto jurídico de determinado país está, ou não, de acordo com Convenção. Como ensina Flavia Piovesan, “a Corte ainda pode opinar sobre a compatibilidade de preceitos da legislação doméstica em face dos instrumentos internacionais, efetuando, assim, o ‘controle da convencionalidade das leis’” (PIOVESAN, 2013, p. 212). Não diferentemente da maioria das Cortes Internas dos Estados, a interpretação normativa não se dá de forma estática, e, sim, dinâmica, proporcionando uma maior adequação da realidade ao texto da Convenção. Vale relembrar que a Corte, além de exercer a função consultiva, também exerce a função contenciosa. Entretanto, merece destaque o fato de que nem todos os membros signatários da Convenção estão obrigatoriamente sob a jurisdição da Corte. Para que isto seja possível, é necessário que o Estado reconheça a jurisdição da Corte, conforme o art.62 da Convenção. Cançado Trindade compartilha a ideia que esta “autonomia” do Estado para decidir sobre a jurisdição da Corte representa um “anacronismo histórico”. Ora, um Estado assinaria um Tratado de Direitos Humanos e não estaria vinculado às decisões do órgão competente no julgamento de possíveis violações? No mesmo sentido, Flavia Piovesan entende que “todo Estado-parte da Convenção passaria a reconhecer como obrigatória, de pleno direito e sem convenção especial, integralmente e sem restrição alguma, a competência da Corte em todos os casos relativos à interpretação e aplicação da Convenção” (PIOVESAN, 2013, p. 213). Para exemplificar de forma emblemática, podemos citar a Jamaica que fez adesão à Convenção Americana de Direitos Humanos, mas não aceita a jurisdição da Corte. O Brasil também é um exemplo disso. Sua adesão à Convenção ocorreu em 07 de setembro de 1992 e a aceitação da jurisdição da Corte foi assinada, apenas, em 12 de outubro de 1998 (COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2017). Outro aspecto que merece destaque é quanto à capacidade postulatória perante à Corte. Segundo o art. 61 da Convenção, “somente os Estados Partes e a Comissão têm direito de submeter caso à decisão

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da Corte”. Isto quer dizer que apenas Estados e a Comissão possuem capacidade postulatória. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos é composta por até 7 membros e tem como função “promover a observância e a defesa dos direitos humanos” conforme determina o seu art.41. Para tanto, merece atenção um papel que a Comissão pode realizar, o qual Flavia Piovesan assim o descreve: examinar as comunicações, encaminhadas por indivíduo ou grupos de indivíduos, ou ainda entidade não governamental, que contenham denúncia de violação a direito consagrado pela Convenção, por Estado que dela seja parte, nos termos dos arts. 44 e 41. O Estado, ao se tornar parte da Convenção, aceita automática e obrigatoriamente a competência da Comissão para examinar essas comunicações, não sendo necessário elaborar declaração expressa e específica para tal fim (PIOVESAN, 2013, p. ).

Isto significa algo extremamente importante, que é a possibilidade de indivíduos alcançarem o mais alto grau jurisdicional, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, quando algum direito humano é violado. A comissão aqui é o elo de ligação entre o indivíduo e a Corte. Contudo, é necessário observar uma regra de Direito Internacional. Esta regra diz respeito à possibilidade de ingresso de recurso em algum tribunal externo. Para que esse recurso seja possível, é necessário que se tenha esgotado todos os recursos internos possíveis no país em questão, exceto quando houver “injustificada demora processual, ou no caso de a legislação doméstica não prover o devido processo legal” conforme ensina Flavia Piovesan (PIOVESAN, 2013, p. 209). Foi possível observar que o Brasil é signatário da Convenção Interamericana e que é possível, em casos de violação de direitos humanos, o acionamento deste país na Corte Interamericana de Direitos Humanos para possíveis responsabilizações, uma vez que o Brasil reconheceu a sua competência. Os direitos fundamentais são os direitos da pessoa humana, trazi-

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dos para a esfera constitucional com a finalidade de serem assegurados no plano interno de um Estado. E aqui cabe um interessante ponto a ser ressaltado. O conflito entre uma norma constitucional e uma norma contida em um tratado sobre direitos humanos pode ocorrer. Como exemplo, além do que foi dado neste texto, podemos citar o caso das Filipinas. Com um discurso de combate às drogas, o presidente daquele país, Rodrigo Duterte, não apenas não adotou as medidas para evitar execuções extrajudiciais como tem incentivado a prática de execuções sumárias de traficantes5. Essas execuções vão contra as normas de Direito Internacional sobre Direitos Humanos, como podemos identificar na fala de Agnes Callamard relatora especial da ONU: “as alegações de combater o tráfico de drogas ilícitas não isentam o governo de suas obrigações legais internacionais e não protegem os atores estatais ou outros da responsabilidade por assassinatos ilegais” (UNITED NATIONS HUMAN RIGHTS, 2017). Diante de tal exemplo, e outros que possam surgir, fica a pergunta: entre uma norma constitucional que viole determinado Direito Humano e um Tratado Internacional que versa sobre o mesmo tema, qual norma deveria prevalecer? Quanto ao Brasil, sabendo que tratados de Direitos Humanos podem adquirir, no máximo, hierarquia constitucional (se aprovado pelo rito de emenda constitucional), poderia existir a possibilidade de esse direito assumir um papel hierárquico superior ao da Constituição (partindo do pressuposto que existe a possibilidade de uma Constituição não se alinhar com normas de Direitos Humanos no plano internacional, como, por exemplo, na Alemanha nazista)? Uma possível resposta será apresentada no próximo tópico. É chegada a hora de discutirmos outra possível solução a casos como este que chegou até a Corte Interamericana de Direitos Humanos e o Supremo Tribunal Federal. É o que faremos nas linhas que seguem. 5 O discurso é de realizar execuções sumarias de traficantes, o que em si é um absurdo sob a perspectiva de proteção dos Direitos humanos. Entretanto podemos verificar que acontecem execuções sumarias a usuários de drogas naquele país.

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4. A Supraconstitucionalidade dos tratados de direitos humanos: uma alternativa possível Antes de discorrer sobre tal posição é necessário fazer um breve resumo do que foi abordado até o momento. A problemática girou em torno de um possível conflito entre decisões na ordem jurídica internacional e na ordem jurídica interna. Foi dado como exemplo o caso da Lei de Anistia, a qual foi julgada constitucional pela Suprema Corte e inconvencional pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, gerando consequências opostas entre ambas decisões. De um lado, o Supremo Tribunal Federal, com o julgamento da constitucionalidade da referida lei, acabou por anistiar todos os envolvidos em crimes relacionados com o regime militar, em especial os crimes realizados no âmbito da Guerrilha do Araguaia. De outro lado, a inconvencionalidade da lei julgada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos teve como reflexo o pedido da Corte para que haja a identificação e responsabilização dos agentes estatais envolvidos na prática dos crimes. Cabe destacar que o não cumprimento desta decisão da Corte em nada atinge o país diretamente, mas demonstra que o país não cumpriu normas previstas no acordo assinado, podendo repercutir negativamente no âmbito jurídico internacional. Não é difícil imaginar que a soberania que um Estado possui para assinar, ou não, um tratado, também possa ser invocada para o não cumprimento de determinada norma internacional. É o argumento que pode surgir quando o Estado não queira se submeter a tais normas. Podemos recorrer a Francisco Rezek para a conceituação de soberania sob essa perspectiva, como um elemento do Estado por meio da qual: identificamos o Estado quando seu governo — ao contrário do que sucede com o de tais circunscrições — não se subordina a qualquer autoridade que lhe seja superior, não reconhece, em última análise, nenhum poder maior de que dependam a definição e o exercício de suas competências, e só se põe de acordo

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com seus homólogos na construção da ordem internacional, e na fidelidade aos parâmetros dessa ordem, a partir da premissa de que aí vai um esforço horizontal e igualitário de coordenação no interesse coletivo (REZEK, 2008, p. 137).

Nota-se que o autor menciona a “construção de ordem internacional” na qual podemos destacar a perspectiva jurídica. A soberania é um elemento no qual um Estado participa, em uma relação horizontal com outros Estados, de uma ordem internacional. Sobre essa ordem internacional podemos perceber sua citação na Carta da Organização dos Estados Americanos: Artigo 3 Os Estados americanos reafirmam os seguintes princípios: ... b) A ordem internacional é constituída essencialmente pelo respeito à personalidade, soberania e independência dos Estados e pelo cumprimento fiel das obrigações emanadas dos tratados e de outras fontes do direito internacional (ONU, 2017).

Na Carta da Organização das Nações Unidas também existe referência no mesmo sentido: Artigo 2 A Organização e seus Membros, para a realização dos propósitos mencionados no Artigo 1, agirão desacordo com os seguintes Princípios: 1. A Organização é baseada no princípio da igualdade de todos os seus Membros (ONU, 2017).

Não há que se falar em soberania sem a existência de um Estado. Da mesma forma que não se pode falar em Estado sem levar em consideração seu elemento constituinte: o povo. E não há que se falar em

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povo sem considerar a figura do indivíduo. Disso podemos refletir que o indivíduo é o elemento básico necessário para a formação de um Estado e, por conseguinte, de uma ordem internacional. Diante de tal fato, é necessária a proteção deste elemento, em especial, a proteção jurídica. Sobre isto Ingo Sarlet ressalta que: não devemos esquecer que, na sua vertente histórica, os direitos humanos (internacionais) e fundamentais (constitucionais) radicam no reconhecimento, pelo direito positivo, de uma série de direitos naturais do homem, que, neste sentido, assumem uma dimensão pré-estatal e, para alguns, até mesmo supraestatal (SARLET, 2012, p. 18).

Sob a perspectiva interna, esta proteção se dá de forma positivada nas Constituições Federais sob a alcunha de direitos fundamentais. Na perspectiva externa, essa proteção é dada positivamente por documentos como a Carta da Organização das Nações Unidas, da Organização dos Estados Americanos e de Tratados que versam sobre a matéria. O problema reside no fato de que esses tratados nem sempre são cumpridos, constituindo uma possível violação aos Direitos Humanos, direitos estes que possuem uma dimensão pré-estatal ou até supraestatal. Esta é a posição que defendemos neste trabalho. Cabe destacar as outras posições doutrinárias a respeito das possíveis posições hierárquicas que um tratado sobre direitos humanos pode assumir frente a uma Constituição. Sendo que, segundo Flavia Piovesan: há quatro correntes acerca da hierarquia dos tratados de proteção dos direitos humanos, que sustentam: a) a hierarquia supraconstitucional de tais tratados; b) a hierarquia constitucional; c) a hierarquia infraconstitucional, mas supralegal; e d) a paridade hierárquica entre tratado e lei federal (PIOVESAN, 2013, P. 82).

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Cabe-nos destacar que, atualmente, a posição que vigora no Brasil é um misto entre as três últimas. No caso de tratados sobre direitos humanos aprovados em ambas as casas do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais (mesmo rito da aprovação da Emenda Constitucional). Quanto aos tratados aprovados pelo rito ordinário de aprovação (maioria simples) e tratados internacionais que tratem de outros temas, que não versarem sobre direitos humanos, serão equivalentes às leis ordinárias. Sobre a posição da Suprema Corte a respeito dessa temática, ressalta André de Carvalho Ramos que “apesar da diversidade de posições, o posicionamento do STF até 2008 foi o seguinte, o tratado de direitos humanos possuía hierarquia equivalente à lei ordinária federal, como todos os demais tratados incorporados” (RAMOS, 2014, p. 347), sendo que após este período, o entendimento foi, segundo o autor o de que: ficou consagrada a teoria do duplo estatuto dos tratados de direitos humanos: natureza constitucional, para os aprovados pelo rito do art. 5º, § 3º; natureza supralegal, para todos os demais, quer sejam anteriores ou posteriores à Emenda Constitucional n. 45 e que tenham sido aprovados (RAMOS, 2014, p. 350).

Na contramão do atual entendimento sobre a posição hierárquica dos tratados sobre direitos humanos no ordenamento jurídico brasileiro, cabe destacar nosso posicionamento. Essa posição é compartilhada por alguns autores, como Agustín Gordillo, André Gonçalves Pereira, Hildebrando Accioly, Marotta Rangel e Celso de Albuquerque Mello que, entre alguns argumentos que serão citados abaixo, coadunam com a ideia de que o conteúdo normativo dos tratados sobre direitos humanos devem vigorar quando em conflito com a Constituição. Augustin Gordilho argumenta que a ordem supranacional repre-

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senta uma supremacia jurídica frente à ordem jurídica interna, sendo que: a supremacia da ordem supranacional sobre a ordem nacional preexistente não pode ser senão uma supremacia jurídica, normativa, detentora de força coativa e de imperatividade. Estamos, em suma, ante um normativismo supranacional. Concluímos, pois, que as características da Constituição, como ordem jurídica suprema do direito interno, são aplicáveis em um todo às normas da Convenção, enquanto ordem jurídica suprema supranacional. Não duvidamos de que muitos intérpretes resistirão a considerá-la direito supranacional e supraconstitucional, sem prejuízo dos que se negarão a considerá-la sequer direito interno, ou, mesmo, direito (PIOVESAN, 2013, p. 81).

Já André Gonçalves Pereira ressalta que os direitos fundamentais contidos no texto constitucional não excluem matéria de Direito Internacional, devendo este prevalecer sobre aquele, uma vez que: no Brasil, a Constituição de 1988 não regula a vigência do Direito Internacional na ordem interna (...) ao estabelecer que ‘os direitos fundamentais consagrados na Constituição’ não excluem quaisquer outros constantes das regras aplicáveis do Direito Internacional (...) De facto, à expressão ‘não excluem’ não pode ser concedido um alcance meramente quantitativo: ela tem de ser interpretada como querendo significar também que, em caso de conflito entre as normas constitucionais e o Direito Internacional em matéria de direitos fundamentais, será este que prevalecerá (apud PIOVESAN, 2013, p. 81).

Hildebrando Accioly, por sua vez, argumenta que o Direito Internacional é superior ao Estado, estabelecendo um limite ao poder Estatal, pois:

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é lícito sustentar-se, de acordo, aliás, com a opinião da maioria dos internacionalistas contemporâneos, que o Direito Internacional é superior ao Estado, tem supremacia sobre o direito interno, por isto que deriva de um princípio superior à vontade dos Estados. Não se dirá que o poder do Estado seja uma delegação do direito internacional; mas parece incontestável que este constitui um limite jurídico ao dito poder (apud PIOVESAN, 2013, p. 81).

Segue o autor afirmando que “é princípio geralmente reconhecido, do Direito Internacional, que, nas relações entre potências contratantes de um tratado, as disposições de uma lei interna não podem prevalecer sobre as do tratado” (apud PIOVESAN, 2013, p. 81). Neste sentido, Marotta Rangel destaca a importância do gênero humano no Direito Internacional da seguinte forma: a superioridade do tratado em relação às normas do Direito Interno é consagrada pela jurisprudência internacional e tem por fundamento a noção de unidade e solidariedade do gênero humano e deflui normalmente de princípios jurídicos fundamentais, tal como o pacta sunt servanda e o voluntas civitatis maximae est servanda (apud PIOVESAN, 2013, p. 81).

Entre os argumentos dos autores acima, cabe destacar a ideia de prevalência dos tratados que versam sobre os direitos humanos sob o texto constitucional. Em primeiro lugar, por que nenhum Estado é obrigado a assinar qualquer espécie de tratado devido sua à soberania perante outros Estados, estando o mesmo livre para decidir se tal tratado poderia prevalecer sobre a legislação interna, incluindo a constitucional. A soberania viria da decisão, ou não, de celebrar tratados sobre direitos humanos; e não sobre a decisão de realizar qualquer tipo de conduta que mitigue os Direitos Universais do Homem. Em segundo lugar, pelo fato de os direitos humanos serem classificados como normas de jus cogens (norma peremptória do Direito Internacional), eles se

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constituem em direito imperativo para os Estados. Neste texto foi citado apenas um caso, porém é certo que ocorreram (e ocorrerão) outros casos semelhantes a este, no qual, sob o argumento de soberania jurídica interna, seja admissível a violação de direitos humanos, como ocorreu, por exemplo, na Alemanha Nazista durante a segunda guerra mundial. Por certo, a legislação protetiva em âmbito internacional tem evoluído, porém é uma tarefa que não se esgota, uma vez que sempre devemos procurar ampliar os Direitos do Homem nos tempos que ainda virão. 5. Considerações Finais Diante dos argumentos colacionados no texto, tornou-se imperativo reconhecer a importância e o impacto que os direitos humanos tiveram no ordenamento jurídico interno. Ressalta-se que esses direitos não nascem para criarem conflito entre normas internas de um Estado, mas para oferecer uma abrangência maior nas garantias protetivas da pessoa humana. Podemos citar essa relação entre a proteção oferecida pelo Direito Internacional e Estado, destacando George Letsas, segundo o qual, “tanto os direitos fundamentais reconhecidos em uma Constituição, quanto os direitos humanos, reconhecidos em um tratado internacional, possuem o mesmo propósito: limitar o uso do poder coercitivo do Estado” (LETSAS, 2017), e não apenas essa função, mas oferecer mecanismos que assegurem que esses Direitos sejam cumpridos. Levar ao conhecimento (e reconhecimento) violações de direitos humanos de determinado Estado em âmbito internacional é uma tarefa necessária e que reflete em mudanças de condutas daquele Estado diante das possíveis pressões internacionais, conforme ensina Flavia Piovesan: “diante da publicidade de casos de violações de direitos humanos e de pressões internacionais, o Estado se vê ‘compelido’ a prover justificativas, o que tende a implicar alterações na própria prática do Estado em relação aos direitos humanos” (PIOVESAN, 2013, p. 279). Pela pesquisa realizada, fomos levados a perceber que é necessário que algumas posições doutrinárias e jurisprudenciais sejam revistas

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em relação ao que os direitos humanos representam no ordenamento jurídico interno. Não apenas pelo caráter dinâmico que a ordem jurídica deve apresentar, mas para que haja o acompanhamento de uma realidade que cada vez mais tendente a mitigar direitos humanos frente à força dos Estados no atual contexto mundial. Para tanto, é de suma importância que os direitos humanos figurem como atores principais da ordem jurídica mundial, acima da figura do Estado, pois a dignidade da pessoa humana deve sempre prevalecer e ser preservada em todos os seus aspectos. Referências ADPF 153/STF, disponível em: http://www.sbdp.org.br/arquivos/material/586_ADPF%20153%20-%20peticao%20inicial.pdf, acesso em 03/07/2016. ARQUIVOS PUC/RIO. Lei de anistia no Brasil: contexto histórico, edição, alcance e interpretação oficial. Disponível em: https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/21097/21097_4.PDF, acesso em 18/03/2017. CÂMARA DOS DEPUTADOS. Livro anistia em debate, disponível em: http://www2.camara.leg.br/documentos-e-pesquisa/edicoes/ paginas-individuais-dos-livros/lei-da-anistia-em-debate, acesso em 30/06/2016. COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. B-32: Convenção Americana sobre Direitos Humanos “Pacto San José de Costa Rica” https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/d.Convencao_Americana_Ratif..htm, acessado em 05 de janeiro de 2017. CRISTO, Alessandro. Leia o voto de Gilmar Mendes sobre a Lei de Anistia. In. Conjur. Disponível em: http://www.conjur.com.br/ 2010-ago-08/leia-voto-ministro-gilmar-mendes-lei-anistia, acesso em 19/03/2017. ITO, Marina. Leia o voto divergente do ministro Lewandowski sobre o

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