Constitucionalismo global e as interações entre direito internacional e direito interno: revisão necessária do papel dos três poderes na constituição brasileira

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Thomas Bustamante, Bernardo Gonçalves Fernandes, José Adércio Leite Sampaio, Élcio Nacur Rezende, Ana Luísa Navarro Moreira, João Víctor Nascimento Martins e Igor de Carvalho Enríquez Organizadores

O CONSTITUCIONALISMO LIMITES E NOVAS POSSIBILIDADES Anais do I Congresso Internacional de Direito Constitucional e Filoso ia Política Volume III

Belo Horizonte 2015

Anais do I Congresso Internacional de Direito Constitucional e Filosofia Política O constitucionalismo: limites e novas possibilidades Volume III Thomas Bustamante, Bernardo Gonçalves Fernandes, José Adércio Leite Sampaio, Élcio Nacur Rezende, Ana Luísa Navarro Moreira, João Víctor Nascimento Martins e Igor de Carvalho Enríquez (Orgs.) Copyright © desta edição [2015] Initia Via Editora Ltda. Rua dos Timbiras, nº 2250 – sl. 103-104, Lourdes, Belo Horizonte, MG CEP 30140-061, www.initiavia.com Editora-Chefe: Isolda Lins Ribeiro Revisão: autores Diagramação e Capa: Brenda Batista Imagem da Capa: Visão Parcial da Lagoa da Pampulha, por Eduardo Ferreira (02 mai. 2007)(cc) TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. Proibida a reprodução total ou parcial deste livro ou de quaisquer umas de suas partes, por qualquer meio ou pro-cesso, sem a prévia autorização do Editor. A violação dos direitos autorais é punível como crime e passível de indenizações diversas. ______________________________________________________ C749

I Congresso Internacional de Direito Constitucional e Filosofia Política (1. : 2014 : Belo Horizonte, MG) O constitucionalismo: limites e novas possibilidades / Thomas Bustamante, Bernardo Gonçalves Fernandes, José Adércio Leite Sampaio, Élcio Nacur Rezende, Ana Luísa Navarro Moreira, João Víctor Nascimento Martins e Igor de Carvalho Enríquez (organização). - Belo Horizonte : Initia Via, 2015. 292p. - (Anais do I Congresso Internacional de Direito Constitucional e Filosofia, v. 3) ISBN 978-85-64912-66-3 (obra individual) ISBN 978-85-64912-63-2 (coleção) 1. Direito constitucional - Congressos . 2. Filosofia do direito – Congressos. I. Bustamante, Thomas. II. Fernades, Bernardo Gonçalves. III. Rezende, Élcio Nacur. IV. Título. CDU: 340(061.3)

Sumário

I. O PODER CONSTITUINTE NO CONSTITUCIONALISMO CONTEMPORÂNEO UMA NOVA CONSTITUINTE: A NECESSIDADE DE SE (RE)DESENHAR O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO Igor Campos Viana

6

CONSTITUINTE EXCLUSIVA E SOBERANA: UMA VELHA ILUSÃO SOB NOVA ROUPAGEM Cezar Cardoso Neto & Diego Vieira

18

ATUAÇÃO POLÍTICO-DEMOCRÁTICA E PRÁXIS CONSTITUCIONAL: O PODER CONSTITUINTE SOB A ÓTICA DE ANTONIO NEGRI E DE FRIEDRICH MÜLLER Vitor Sousa Bizerri

30

DIREITO DE EXCEÇÃO E NORMALIDADE EM GIORGIO AGAMBEN Andréia Fressatti Cardoso

43

II. A EXPANSÃO E O CARÁTER GLOBAL DO CONSTITUCIONALISMO CONSTITUCIONALISMO GLOBAL E AS INTERAÇÕES ENTRE DIREITO INTERNACIONAL E DIREITO INTERNO: REVISÃO NECESSÁRIA DO PAPEL DOS TRÊS PODERES NA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA Fabrício Polido & Lucas dos Anjos

55

A PROBLEMÁTICA DE UM CONSTITUCIONALISMO GLOBAL EM FACE À SOBERANIA DO ESTADO Eduardo Silva Luz

69

MEMÓRIA, ESTIGMAS E COMPREENSÃO DO DIREITO MUÇULMANO Marcelo Kokke

83

É POSSÍVEL iDENTIFICAR UM CONSTITUCIONALISMO ANTIGO?A POLITEIA E O STATUS CIVITATIS COMO PRINCÍPIOS ORGANIZADORES DA ORDEM POLÍTICA Leonam Liziero & Matheus de Oliveira

96

O RESSURGIMENTO DO CONFUCIONISMO POLÍTICO NA CHINA: UM NOVO CONSTITUCIONALISMO CHINÊS? Marcelo Maciel & Rafael Machado 110 JUDICIAL REVIEW NOS TRIBUNAIS MAÇÔNICOS Grégore Moreira de Moura

125

ACONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO PENAL: DO SIMBOLISMO FORMAL À PLENITUDE Luiz Laboissiere Junior 141

III. LIBERDADE RELIGOSA, HATE SPEECH E LIBERDADE DE EXPRESSÃO O ENSINO RELIGIOSO NAS ESCOLAS PÚBLICAS Lucas de Barros Peron Maciel

154

O FILTRO DA RAZÃO PÚBLICA RAWLSIANA NO DEBATE ENTRE SECULARES E RELIGIOSOS Franklin Vinícius Marques Dutra 167 HATE SPEECH E ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO: BREVES CONSIDERAÇÕES ACERDA DA LIMITAÇÃO À LIBERDADE DE EXPRESSÃO Mariana Ferreira & Alexandre da Silva 181 LIBERDADE DE EXPRESSÃO E DEMOCRACIA: PLURALISMO E JUSTIÇA NAS SOCIEDADES CONTEMPORÂNEAS Marina França Santos 195

IV. DIREITOS SOCIAIS E POLÍTICOS OS DIREITOS POLÍTICOS DOS ANALFABETOS: O CASO BRASILEIRO E O PARADIGMA DA DEMOCRACIA LIBERAL Alexander Beltrão & Marcelo Moreira 209

A JUSTICIABILIDADE DO DIREITO FUNDAMENTAL SOCIAL À EDUCAÇÃO Natascha Gomes & Paola Angelucci 220 AÇÕES AFIRMATIVAS E IGUALDADE DE OPORTUNIDADES: UM CONCEITO DE JUSTIÇA PARA ATORES SOCIAIS EM DISPUTA Priscila da Silva Barboza 235 A EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS SOCIAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS: UM DESDOBRAMENTO DO PROCESSO DE CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO Marcos Felipe Lopes de Almeida

251

ANÁLISE DA INTERVENÇÃO JUDICIAL NO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE Mariana Dias Ferreira 264 JUSTICIABILIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS SOCIAIS E CONFLITO DE COMPETÊNCIAS Cláudia Toledo 278

UMA NOVA CONSTITUINTE:

A NECESSIDADE DE SE (RE)DESENHAR O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO Igor Campos Viana1 “A constituição e a democracia enquanto promessas contêm a radicalidade que abala os horizontes estáveis das nossas expectativas, transgredindo o possível e o concebível, indo além do que é visível e previsível e que não é propriedade de algum povo escolhido, mas de todos.” (Vera Karam de Chueiri)

Introdução: o contexto da Reforma Política no Brasil A reforma política é uma pauta antiga no espaço do debate público brasileiro (Nicolau, 2013), pelo menos desde o início da década de 90, em especial a partir de 1993, quando da realização do plebiscito, no qual o povo brasileiro foi questionado quanto à forma e ao sistema de governo que preferiam. A partir de então, diversas foram as propostas legislativas fracassadas no sentido de reformar o sistema político no Brasil, destacamos a PEC 554/1997 que sugeria uma “mini constituinte”; a PEC 157/2003 que previa uma revisão constitucional; a PEC 193/2007 que visava incluir um procedimento revisional no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias e a PEC 384/2009 que pretendia possibilitar a eleição em 2010 de 180 parlamentares constituintes com a função de revisar os dispositivos da Constituição Federal relativos ao regime de representação política. O “Junho Brasileiro” (Ricci, 2014) - movimento de manifestações populares que tomaram as ruas das capitais brasileiras em Aluno do Curso de Graduação em Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Brasil. Monitor do Grupo de Estudos sobre Constituição e Política. Monitor das disciplinas Direito Constitucional I e Hermenêutica Jurídica. E-mail: [email protected] 1

Igor Campos Viana • 7 junho e julho de 2013 -, apesar de multifacetado2, teve na “Reforma Politica” uma forte bandeira e pode ser interpretado como um sintoma da crise de representação no país. Em resposta a esse chamado das ruas, a Presidente Dilma Rousseff (PT) propôs no dia 24 de junho de 2013 a convocação de uma Constituinte Exclusiva para a reforma do Sistema Político brasileiro, entretanto essa ideia foi logo abortada pelo Palácio do Planalto, destacando o papel dissuasivo assumido pelo vice-presidente e constitucionalista Michel Temer (PMDB). As Organizações e Movimentos Sociais3 brasileiros – diante das seguidas propostas fracassadas pelo Congresso Nacional - decidiram encampar a luta por uma nova constituinte. Entre os dias 01 e 07 de setembro de 2014 foi realizado o Plebiscito Popular por uma Constituinte Exclusiva e Soberana do Sistema Político com a participação de 7.754.436 (sete milhões e setecentos e cinquenta e quatro mil e quatrocentos e trinta e seis) brasileiros, sendo 97,05% favoráveis à nova Constituinte. A intenção dos organizadores desse evento era contribuir para a conscientização (Ribas, 2014) da população brasileira acerca das mudanças necessária e pressionar os candidatos à eleição de 2014 para o debate do tema. Entretanto, muito claro foi o silêncio midiático em relação a tamanha mobilização social, confirmando o forte caráter conservador dos grandes veículos de comunicação em massa que não parecem estar insatisfeitos com o atual sistema político brasileiro. A convocação de um plebiscito oficial para a reforma política novamente ganha a pauta da discussão pública brasileira no dia 26 de outubro de 2014, quando a Presidente reeleita Dilma Rousseff destaca em seu primeiro discurso após o anúncio do resultado das eleições, que: “A minha disposição mais profunda é liderar da forma mais pacífica e democrática esse momento transformador. Estou disposta a abrir um grande espaço de diálogo com todos os setores da sociedade para encontrarmos as soluções mais rápidas para os nossos problemas. Minhas amigas e meus Organizado sob a lógica do “enchameamento virtual” explicada pelo sociólogo Rudá Ricci e antropólogo Patrick Arley no livro: “Nas ruas: a outra política que emergiu em junho de 2013”. 3 Mais de 500 (quinhentos) grupos organizados apoiam o Plebiscito Popular por uma Constituinte Exclusiva e Soberana do Sistema Político brasileiro. 2

8 • Uma nova Constituinte amigos aqui presentes, e todos os que estão nos escutando, e todo o povo brasileiro. Entre as reformas, a primeira e mais importante deve ser a reforma política. Meu compromisso, como ficou claro durante toda a campanha, é deflagrar essa reforma, que é responsabilidade constitucional do Congresso, e que deve mobilizar a sociedade por um plebiscito, por meio de uma consulta popular. Como instrumento desta consulta, nós vamos encontrar a força e a legitimidade exigida neste momento de transformação para levarmos à frente a reforma política. Quero discutir esse tema profundamente com o novo Congresso Nacional e com toda a população brasileira, e tenho convicção de que haverá interesse dos setores do Congresso, dos setores da sociedade, de todas as forças ativas na nossa sociedade para abrir uma discussão e encaminhar as medidas concretas. Quero discutir igualmente com todos os movimentos sociais e as forças da sociedade civil.” 

Logo após o seu discurso, no dia 27 de outubro, a Presidente arrefece sua fala – pressionada por lideranças parlamentares – dizendo que o mecanismo para a reforma política não precisava ser necessariamente o plebiscito, podendo também ocorrer por referendo. O que tentarei defender nesse artigo é que a reforma política realmente profunda só será realizada por uma Constituinte Exclusiva sobre esse tema e não pela ratificação – através do referendo - de uma proposta apresentada pelo atual Congresso Nacional. Nesse caso, os mecanismos utilizados para os fins desejados podem alterar radicalmente os resultados obtidos.

Diagnóstico: a crise de representação As manifestações de junho de 2013 celebraram um daqueles momentos fora da curva da história de um país, centenas de milhares de pessoas vão às ruas por todo o Brasil lutarem pelas mais diversas mudanças e direitos. Uma leitura possível para essas manifestações é a da atual crise da democracia representativa engendrada no século XVIII. Mas, o “junho brasileiro” não é um movimento isolado do contexto internacional de manifestações de ruas, que para o sociólogo Rudá Ricci (2014, p. 81) é responsável por inaugurar o século XXI no mundo. Nesse contexto inserimos movimentos como a Revolução das Panelas na Islândia (2008), o

Igor Campos Viana • 9 “Occupy” nos Estados Unidos da América (2011), os Indignados na Espanha (2011) e a Primavera Árabe que se inicia no final de 2010 e se espalha ainda hoje pelo Magrebe africano e por países do Oriente Médio. A crise de representatividade político-partidária se apresenta como um problema para as democracias contemporâneas e o Brasil não escapa a essa regra. Conforme estudo divulgado pela Fundação Getúlio Vargas no segundo semestre de 20134 (ICJ-Brasil), 15% da população brasileira confiava no Congresso Nacional e apenas 6% confiava nos partidos políticos. Esse cenário comprova a situação de desgaste e limite que se encontra o atual modelo brasileiro de representação política, fazendo-se necessário pensar novas formas de aperfeiçoamento ou substituição desse modelo. A sub-representação de determinados grupos da população que, apesar de serem maiorias numéricas são minorias sociais no sentido de sua influência política, é notória no Congresso Nacional. Tomando como exemplo a Câmara dos Deputados na legislatura eleita de 2015-2018, apenas 9,9% dos parlamentares serão mulheres, ou seja, dos 513 mandatos, somente 51 será preenchido por mulheres. Continuando nesse locus da representação política, apenas 20% dos parlamentares serão negros – considerando negro como os deputados que se declaram como pardos ou pretos -, ou seja, 410 mandatos serão preenchidos por parlamentares brancos em uma sociedade que conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística5 tem mais da metade de sua população composta por negros. Tal incongruência representativa também se reflete na questão socioeconômica, nessa mesma legislatura, 48% dos parlamentares eleitos possuem um patrimônio superior a um milhão de reais, em uma sociedade em que o salário mínimo é de setecentos e vinte e quatro reais. Não obstante os problemas do sistema eleitoral que acarretam essa distorção na representação política, outro problema pouco lembrado pela academia é a mitigação da democracia intrapartidária (Viana, 2014, p.9). O princípio constitucional da Liberdade Partidária, estabelecido no período pós-ditatorial bipartidário, por muitas vezes interpretado de maneira irrestrita, garantiu o Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/6618. Acesso em 29 de setembro de 2014. 5 Censo de 2010. 4

10 • Uma nova Constituinte surgimento de verdadeiras oligarquias – cúpulas partidárias – centralizadoras dentro dos partidos. Essa centralização torna-se evidente pela outorga aos órgãos de cúpula da possibilidade de dissolver os diretórios estaduais ou municipais que não estiverem de acordo com a política nacional do partido, criando em seu lugar as comissões provisórias e escolhendo diretamente os seus novos membros. Por fim, conforme destaca o jurista Roberto Gargarella, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Buenos Aires, ainda que as nações latino-americanas tenham sido, por algumas vezes, vanguardistas no modelo do constitucionalismo social, o impacto delas sob a vida de seus cidadãos não tem sido muito eficaz em razão de uma tradição constitucional que dá ênfase na autoridade centralizada e no fortalecimento do poder presidencial. A concentração de poder no Executivo através da possibilidade de legislar por medidas provisórias, de declarar estado de sítio, de realizar a intervenção federal e de designar e remover ministros discricionariamente, inviabiliza uma atuação autônoma do Poder Legislativo, contribuindo para o seu enfraquecimento. Nesse sentido, percebemos claramente que o desenho constitucional atual e as regras do jogo político não favorecem a autonomia e fortalecimento da representação legislativa.

Debate: por que uma nova constituinte? A crise de representação é uma constatação pacífica na academia, mas a forma de superá-la gera grandes embates. Duas correntes disputam espaço nesse tema: uma defensora da reforma política pelos mecanismos constitucionais já estabelecidos em 1988 no art. 60 da Constituição da República e outra defensora da reforma política por uma nova constituinte exclusiva, fruto do poder constituinte originário, convocada justamente para esse tema. Caloroso debate acadêmico se instaurou entre os constitucionalistas brasileiros. Alguns, como Marcelo Cattoni, ao lado de Gilberto Bercovici, Lenio Streck e Martonio Barreto Lima atacam a posposta da Constituinte Exclusiva alegando ser inconstitucional e um movimento político não calculado, chegando a denominá-lo de ingênuo, conforme podemos observar no trecho do texto “Movimento Ingênuo: defender assembleia constituinte, hoje, é golpismo

Igor Campos Viana • 11 institucional”, publicado por esses autores: “Embora reconheçamos por óbvio que nenhuma ordem constitucional seja eterna e imutável, o compromisso republicano nos exige denunciar os erros da atual proposta de “constituinte soberana e exclusiva” em seus próprios argumentos. Sendo assim, esse movimento parte da ingenuidade, histórica e hermenêutica, de defender algo como uma “situação ideal de deliberação”, supostamente sem disputas, sem conflito, sem influências externas e à base de um consenso já pressupostamente alcançado, isso que chamam de constituinte soberana e exclusiva”. O que mais impressiona é que seus idealizadores se dizem porta-vozes do povo e de uma maioria popular que, todavia, contraditoriamente não alcança sequer o quórum de 3/5 exigido para reformar a Constituição.”

Outros, como o constitucionalista José Luiz Quadros de Magalhães ao lado da Tatiana Ribeiro de Souza, ressaltam o caráter eminentemente político do Poder Constituinte Originário que obviamente é inconstitucional em relação à ordem vigente que pretende alterar, ou seja, sua legitimidade não é jurídica, mas sim popular. Assim, concede-se verdadeira centralidade aos movimentos sociais e ao poder instituinte das ruas, como podemos observar no trecho do texto “O conto da democracia sem povo: resposta a quem acredita que os movimentos sociais são ingênuos ou uma ameaça à democracia”, publicado pelos autores no jornal Brasil de Fato: “O movimento em torno do plebiscito popular se fundamenta na ideia da inexistência de representatividade em nosso parlamento, apoiado em dados expressivos, relativos a composição do Congresso Nacional. Logo, como esperar quórum de 3/5 de um parlamento que não nos representa? De um parlamento onde cerca de 40% dos representantes são de famílias tradicionais, algumas no poder desde 1822? Incompreensível esta afirmação. (...) Talvez o problema seja uma academia (no campo do direito) fechada em si mesma, que pensa muito mais o nosso direito e nossa democracia a partir de autores norte-americanos, alemães e franceses e por vezes ignora ou esquece as lutas sociais, os movimentos sociais, nossa realidade social, assim

12 • Uma nova Constituinte como as relações de nosso parlamento com seus representados.”

De fato, diante à crise de representatividade do sistema político brasileiro, apresentada no ponto II desse artigo, como esperar que o desejo popular fosse representado pelo Congresso Nacional? Como esperar qualquer reforma política profunda no atual Congresso, eleito justamente sobre essas regras eleitorais que tanto criticamos? E, por fim, sobre qual autoridade podemos chamar os movimentos sociais e organizações populares como as que organizaram o “Plebiscito Popular por uma Constituinte Exclusiva e Soberana do Sistema Político” com a participação de 7.754.436 brasileiros, de ingênuos e ilegítimos? Talvez, ingenuidade seja justamente acreditar que a reforma política almejada pela sociedade possa de fato ser aprovada pelo atual Congresso Nacional, que por mais de duas décadas de debate sobre o tema, nunca realizou qualquer mudança profunda no sistema político brasileiro. Não obstante, os defensores da tese da reforma política pela emenda constitucional, levantam um argumento interessante em relação à impossibilidade de uma suposta “situação ideal de deliberação”, entretanto nenhum defensor da Constituinte Exclusiva chega a defender tal situação. O que se pretende com a convocação da Constituinte é que através de novas regras eleitorais possa se arrefecer a influência do poder econômico que desequilibra toda lógica da representação, mas temos plena consciência que as pressões de diversas origens sempre existirão. Conforme o cientista político Bruno Speck, três razões são fundamentais para a não aprovação da reforma política no Brasil: a inexistência de consenso e incompatibilidade de respostas entre os partidos para a solução dos problemas comuns; a incerteza quanto ao impacto dessas mudanças para os atuais representantes em suas disputas eleitorais futuras; e o escasso tempo para deliberação e aprovação de reformas, especialmente as que dependem de mudanças constitucionais, tendo em vista o modo e funcionamento do calendário parlamentar. Nesse sentido, uma Constituinte Exclusiva para a reforma do sistema político poderia amenizar grande parte desses empecilhos, como trataremos de demonstrar a seguir. A Constituinte Exclusiva temática é convocada somente para desempenhar uma determinada função e após o cumprimento

Igor Campos Viana • 13 do seu trabalho ela é dissolvida. Assim, o foco do trabalho desse parlamento eleito seria somente a reforma do sistema político brasileiro, podendo gastar mais de uma legislatura para alcançar os consensos necessários, o que eliminaria o problema do escasso tempo para deliberação. Ainda para arrefecer o segundo motivo levantado por Speck, o candidato eleito para a Constituinte Exclusiva deveria ficar inelegível para quaisquer outras eleições (para o executivo ou legislativo) por oito anos, o que diminuiria ainda mais a questão dos interesses pessoais dos parlamentares em uma futura eleição. Por fim, essa Constituinte seria muito menor do que o Congresso Nacional (hoje com 513 deputados e 81 senadores), assim contribuiria para uma viabilização maior da formação de consensos acerca da reforma política desejada pela sociedade. No tocante a influência exacerbada do poder econômico, seria fundamental que as regras para a convocação dessa Constituinte fossem completamente novas, baseadas em um financiamento exclusivamente público das campanhas e em uma distribuição equânime do tempo reservado para a Propaganda Eleitoral Gratuita. Poderia se perguntar como o atual Congresso Nacional, não representativo, aprovaria tais regras tão inovadoras? A resposta para essa questão está justamente na foça popular instigada por um plebiscito e não por um referendo, trata-se da política estimulando e viabilizando a transformação de maneira dialética entre o poder instituído (mecanismos constitucionais de participação) e o poder instituinte (manifestações, o poder que emana das ruas). Cumpre salientar que o movimento pela constituinte, que mobilizou mais de sete milhões de brasileiros na primeira semana de setembro, não apoia uma reforma política plebiscitária, mas sim uma Constituinte Exclusiva (Ribas, 2014) que seja convocada por um plebiscito, ou seja, a população não será questionada no plebiscito sobre os assuntos específicos da reforma política, mas tão somente se deseja ou não a convocação de uma constituinte com essa finalidade. Dessa forma, o movimento aposta na possibilidade de uma maior mobilização da população para a discussão do tema da reforma política durante esse processo eleitoral, seria uma medida legislativa impulsionando a dinamicidade social, que dialeticamente pressionará o processo legislativo. Já a ideia da realização de um referendo para a reforma política é completamente contrária à lógica do movimento pela constituinte e muito menos democrática, pois a população teria

14 • Uma nova Constituinte uma participação direta muito menor nesse processo e um espaço de discussão também reduzido. Uma reforma que viesse por meio de um referendo, como defendida por alguns deputados federais, seria uma reforma encaminhada pelo próprio Congresso Nacional, uma proposta redigida pelos mandatários eleitos pelas atuais regras do jogo político e, portanto, muito pouco afeitos a qualquer mudança mais radical, uma vez que possuem interesses diretos nessas regras diante à possibilidade da reeleição. Nesse sentido, o referendo como uma convocação da população para aprovação do trabalho final dos legisladores se apresenta como uma forma que não possui potencialidade para enfrentar todos os problemas já elencados que travam qualquer reforma política mais substancial. A realização de um plebiscito para a convocação da Constituinte Exclusiva apresenta-se como o processo mais legítimo e aberto à participação popular, que poderia ser novamente convocada - aí sim por um referendo – para ratificar ou não o anteprojeto de reforma constitucional do sistema político apresentado pelos parlamentares eleitos para a constituinte. Esse é o mecanismo que realmente possui forças para destravar todos os empecilhos que impediram a realização de uma verdadeira reforma política, pelo menos, nas ultimas duas décadas (Nicolau, 2013) no Brasil.

Conclusão: a necessidade de um constitucionalismo radical O paradigma do constitucionalismo moderno como uma força estabilizadora da dinamicidade social, já demonstra sinais de fracasso (Ricci, 2013, p.81), as diversas manifestações no final da primeira década do século XXI e início de sua segunda década, contribuem para reforçar essa tese. A democracia é em sua essência movimento, dinamicidade e potencialidade, que por vezes se chocam com a ideia de segurança prometida pela constituição, que por mais aberta que seja, estará sempre presa a um momento da história passado e imobilizado pela letra da lei. Dessa forma (Karam, 2014), é preciso pensar novas formas para compreender o constitucionalismo para além do movimento moderno, que teve sua importância no seu tempo de surgimento através das revoluções americana e francesa, mas que não mais é suficiente para a lógica contemporânea.

Igor Campos Viana • 15 A professora Vera Karam de Chueiri, constitucionalista da Universidade Federal do Paraná, em palestra proferida no I Congresso Internacional de Direito Constitucional e Filosofia Política da UFMG, lança a noção do que seria a “constituição radical”, algo para além do constitucionalismo moderno, uma constituição que compreende em si a noção de ato e potência, de poder constituído e poder constituinte, uma constituição que seja objeto, mas também sujeito da democracia. As ideias da autora podem ser sintetizadas no seguinte trecho de sua exposição: “Na sua relação com o tempo, o poder constituinte é sua suspensão, mas também sua aceleração. O poder constituinte se opõe ao constitucionalismo como governo limitado pelo direito. A limitação do poder pelo direito e, da mesma forma, o controle sobre o governo não se encaixam em um impulso constituinte (o tempo presente) sendo, precisamente, o oposto, a coisa constituída (o tempo passado). O tempo em seu presente contínuo constituiu um novo tempo que não somente redime o tempo passado, mas o transforma. O constitucionalismo limitado à uma ideia de Constituição é sempre um olhar para o passado, ou seja, o tempo passado juridicamente constituído, a menos que ele retenha o impulso constituinte (a promessa). Uma Constituição radical é aquela que não se conforma aos mecanismos liberais de mútua negociação entre os poderes constituídos, se arriscando a ser mais do que isso, ou seja, objeto e sujeito da política democrática. Os direitos estão na Constituição na medida em que ela permite a sua constante reinvenção e demanda (dos direitos). Uma Constituição radical não sintetiza a tensão entre poder constituinte (democracia) e poderes constituídos (constitucionalismo): ela é precisamente isso, a tensão. Neste sentido, devemos interpretar a afirmação de Sieyès a Constituição, antes de mais nada, pressupõe um poder constituinte, como a Constituição se pressupõe como poder constituinte.”

Dessa forma, devemos compreender através de todos os movimentos sociais, que para sociólogo Rudá Ricci inauguram o século XXI no mundo, um esgotamento do constitucionalismo moderno rígido. Defendemos mais do que uma constituição radical, um constitucionalismo radical, um constitucionalismo para além

16 • Uma nova Constituinte da imposição de modelos hegemônicos de atuação e participação, mas um constitucionalismo que tenha na sua centralidade a dinamicidade e a diversidade, um constitucionalismo que seja ao mesmo tempo estabilidade e crise, que permita a luta e a constante reinvenção de direitos na rua e a partir da rua. A Constituinte Exclusiva e Soberana para a Reforma do Sistema Político brasileiro é um movimento e um desejo que surge das ruas, dos movimentos sociais organizados, é uma força instituinte que não pode ser negligenciada pela constituição. Talvez tenha chegado o momento de confiarmos de fato na força popular, apostarmos no imprevisível, para além dos horizontes estáveis de nossas expectativas, transgredirmos o possível e o concebível para realizarmos uma verdadeira reforma política tão almejada pela sociedade brasileira.

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Igor Campos Viana • 17 mentos sociais são ingênuos ou uma ameaça à democracia. Disponível em: < http://www.brasildefato.com.br/node/29965 >. Acesso em 16/11/2014. MARICATO, Ermínia et al. Cidades Rebeldes: Passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. São Paulo: Boitempo/Carta Maior, 2013. NICOLAU, Jairo. Reforma Eleitoral no Brasil: Impressões sobre duas décadas de debate. Em Debate: Periódico de Opinião Pública e Conjuntura Política, Ano V, Número V, Dezembro 2013. PEREIRA, Rodolfo Viana. Direito Constitucional Democrático - 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. RIBAS, Luiz Otávio (org.). Constituinte Exclusiva: um outro sistema político é possível. Editora Expressão Popular, 2014. RICCI, Rudá; ARLEY Patrick. Nas ruas: a outra política que emergiu em junho de 2013. Belo Horizonte: Editora Letramento, 2014. SINTOMER, Yves. O poder ao povo: júris de cidadãos, sorteio e democracia participativa. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010. VIANA, Igor Campos. Do Patriarcalismo ao Caciquismo Intrapartidário: um olhar sobre a crise de representação no Brasil. Jornal Voz Acadêmica, p. 8, CAAP-UFMG. Disponível em: < http://issuu.com/vozacademica/docs/voz_acad__mica_-_1___ed_jun_2014 >. Acesso em 16/11/2014.

CONSTITUINTE EXCLUSIVA E SOBERANA: UMA VELHA ILUSÃO SOB NOVA ROUPAGEM Cezar Cardoso de Souza Neto1 Diego Vinícius Vieira2 Na atual e complexa realidade política brasileira, o Estado parece ter negligenciado sua tarefa de realizar os direitos sociais, tornado-se refém dos interesses econômicos, quer de poucos privilegiados, quer de indivíduos ligados à estrutura governamental, ampliando as diferenças sociais e proporcionando o surgimento de um clima de insatisfação e revolta. As conquistas democráticas, obtidas ao longo de décadas de lutas, mostram-se eclipsadas pela desconfiança popular, tendo em vista as atitudes incoerentes de inúmeros políticos cujas decisões são tomadas em situações de camaradagem recíproca, nas quais são considerados seus interesses pessoais e de grupos favorecidos e não mais o bem público ou a satisfação da população, o que proporciona um descrédito no modelo democrático (SCHMITT, 1996, p. 6). Quando a organização política parece se distanciar, cada vez mais, da ordem racional, entregando-se à manutenção de privilégios e desigualdades, distancia-se da liberdade. Quanto mais livre, mais será racional, pois, em um Estado onde a ordem não é racional, este não será um Estado justo (SALGADO, 1996, p. 397). Nesse norte, a análise do fenômeno jurídico jamais pode prescindir de seus dados históricos e culturais. A investigação do presente percorre, em primazia, pela experiência histórica do passado, de modo que os caminhos futuros serão sempre iluminados sob a plenitude do experimento sociocultural percorrido pela nação. Como se pretende demonstrar, a História dos textos constiDoutorando em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais, Mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Brasil. E-mail: [email protected] 2 Mestrando em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Brasil. E-mail: [email protected] 1

Cezar Cardoso Neto & Diego Vieira • 19 tucionais brasileiros reflete os diversos momentos enfrentados pelo país, despontando-se a Constituição de 1988 como o coroamento da busca por liberdade, cidadania e democracia. A fim de refletir sobre as reformas constitucionais pertinentes ao Brasil, resta imperioso analisar o trajeto histórico percorrido pelo constitucionalismo brasileiro em seus três momentos: clássico, social e democrático (HORTA, 2006, p. 10).

Constitucionalismo clássico Imbuídos pelo espírito constitucionalista e emergindo como nação independente em 1822, era imperioso formalizar a estrutura política e jurídica brasileira por via do constitucionalismo. Assim, em 1823, instalou-se no país a primeira Assembleia Constituinte, com a ilustre incumbência de constitucionalizar o Estado brasileiro. Entretanto, Dom Pedro I, Imperador do Brasil, contrariando o ideal liberal da época, dissolveu a Constituinte e, através do golpe, outorgou em 1824 a primeira Carta Política à nação brasileira. Consagrada no seio do Estado liberal de Direito (HORTA, 2011, p. 53), a Constituição de 1824 sofreu árduas críticas. O seu próprio modo de instituição explicitaria a maior delas, visto que, ao ser outorgada pelo Monarca, desferiria manifesto ataque ao espírito liberal. Severamente criticado pelos liberais seria, ainda, o polêmico Poder Moderador, instituído por Dom Pedro I através de sua Constituição outorgada e que garantiria ao Monarca fortes prerrogativas sobre os demais poderes políticos. Como ensina José Afonso da Silva, a primeira Constituição brasileira albergava, além do Poder Moderador, os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, adotando, portanto, a formulação quadripartita de Benjamin Constant (SILVA, 2004, p. 75). Este seria, evidentemente, o meio mais adequado para amenizar a inquietude dos liberais sem, contudo, abster-se da centralização monárquica. Apesar das arbitrariedades, a Carta de 1824 foi a que mais perdurou no panorama constitucional brasileiro. Somente em 1889, diante da insatisfação das elites escravistas com o Império de Dom Pedro II, perdeu sua vigência através do golpe militar, desobstruindo a passagem ao ideal republicano. Era patente que os princípios federalistas e republicanos

20 • Constituinte exclusiva e soberana continuariam a ser proclamados durante o Império constitucional. Ressalte-se que, mesmo antes da outorga da primeira Constituição, a Inconfidência Mineira e a Revolução Pernambucana (LEAL, 1949, p. 57) já empunhavam tais ideais, momentaneamente contidos pelo ato de Dom Pedro I. Com a derrocada do Império, vitimado pelo golpe militar de 1889, surgiria, em 1891, a designada Constituição Republicana, afastando o centralismo imperial e conclamando formalmente os novos ideais do liberalismo, presidencialismo e federalismo. A influência norte-americana era insofismável. Singularmente nomeada de República dos Estados Unidos do Brasil, a nação brasileira, através da promulgação da Constituição de 1891, institui a República Federativa como forma de governo, opta pelo presidencialismo e enfim, agasalha a doutrina tripartita de Montesquieu (SILVA, 2004, p. 79), estabelecendo os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, supostamente harmônicos e independentes entre si. Recheada de grandes aspirações democráticas e praticamente transplantada do constitucionalismo norte-americano, a referida Constituição distanciava-se da realidade do país. A descentralização, contida durante o Império e agora deflagrada pelo republicanismo, seria, surpreendentemente, o maior dos entraves à democracia. Destarte, ultimou por se instalar no país a chamada política dos governadores (HORTA, 2006, p. 5) e o ranço do coronelismo (SILVA, 2004, p. 80). Durante a República Velha, vários movimentos sociais, nascidos nas aspirações das classes médias urbanas, demonstraram descontentamento com a legislação nacional, sendo o tenentismo a mais emblemática das agitações urbanas contrárias à Constituição (PEREGRINO, 1993, p. 56). Restava claro, pois, que o bucólico transplante constitucional da Magna Carta norte-americana não seria adequado, evidentemente, às singularidades da cultura brasileira.

Constitucionalismo social A crise econômica gerada pela queda da Bolsa de Nova Iorque, em outubro de 1929, trouxe várias consequências para o país, especialmente no que concerne à política. O descontentamento e

Cezar Cardoso Neto & Diego Vieira • 21 a insatisfação social logo irromperam a Revolução de 1930. A Primeira República sucumbiu diante da imperativa revolução, afinal comandada por Getúlio Dornelles Vargas. Anunciando o epílogo da política dos governadores e o enfraquecimento dos coronéis, abriu-se espaço para a instalação da Assembleia Constituinte, encarregada de elaborar a segunda Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil. Assim, a promulgação da Constituição de 1934 estabeleceria os prenúncios do Estado Social de Direito. O puro constitucionalismo formal, destoado de sua aplicabilidade real e concreta, bem representado pela carta de 1891, era intolerável. Difundia-se pelo mundo a institucionalização dos direitos sociais impulsionados, sobretudo, pela preocupação igualitarista da doutrina do Wellfare State, a partir de Weimar, (HORTA, 2006, pp. 8-9). As mesmas concepções urgiam no Brasil e esta deveria ser a genuína missão da Carta de 1934. Conforme ensina Silva, a segunda Constituição Republicana, juntamente com a clássica declaração de direitos e garantias individuais, anota, além de um título sobre a ordem econômica e social, outros sobre a família e sobre a educação e cultura, com normas quase todas programáticas (SILVA, 2004, p. 82). Registrava-se, assim, o marco do constitucionalismo social (HORTA, 2012, p. 786). Com o objetivo de organizar um Estado forte e intervencionista, o Estado social de Direito deveria romper as barreiras da superficial formalização constitucional, atentando-se, sobremaneira, para a efetiva materialidade dos direitos econômicos e sociais. Deve-se ressaltar, todavia, que tentando se adequar aos novos rumores ideológicos, a Constituinte, em franco antagonismo, acabou por forçar a manutenção da doutrina liberal ao lado do Wellfare State (HORTA, Raul, 2003, p. 55). Apesar da estimada inserção dos direitos econômicos e sociais, a Carta de 1934 haveria de viabilizar propósitos políticos maiores, servindo, no fundo, para legitimar a controversa condição do Presidente da República (HORTA, 2006, p. 11). Não tardaria, aos moldes dos regimes totalitaristas difundidos, que logo sucumbisse a segunda Constituição Republicana do país. Eleito pela Assembleia Constituinte para o quadriênio constitucional, Getúlio Dornelles Vargas deflagra um golpe de Estado e, em seu último ano de mandato, revoga a Constituição de 1934

22 • Constituinte exclusiva e soberana e outorga a Carta Constitucional de 1937. Na ocasião, o ditador se fundamenta nas movimentações da Ação Integralista Brasileira, de um lado, preparando-se para encampar o poder, e do partido comunista de Luís Carlos Prestes, de outro, visando o mesmo objetivo (SILVA, 2004, p. 82). Pelo golpe, instalou-se no país, sob o comando da explícita ditadura de Vargas, o Estado Novo (SILVA, 2004, p.83). Com o objetivo de fortalecer o poder central, atribuía-se ao Poder Executivo desmedida intervenção na elaboração das leis, reduzia-se o papel do Parlamento em sua função legislativa e reformava-se o processo representativo, sobretudo na sucessão presidencial. A Carta Política de 1937 perdurou até 1945, quando o pós-guerra despertou uma nova consciência mundial. Os regimes totalitários e de exceção desferiram as mais repulsivas atrocidades contra a condição humana, reclamando a completa reorganização política das nações. O mundo bradava por uma nova era. As arbitrariedades redefiniram e reavivaram as discussões pertinentes aos direitos fundamentais, especialmente a dignidade da pessoa humana, tão barbaramente escarnecida e desprezada sob o terror da guerra. No Brasil, o vivo e perspicaz ditador já percebera os embalos da retomada da democracia. Com ou sem Getúlio, era chegada a hora do constitucionalismo social estabelecer os pilares iniciais da nova concepção política mundial: o Estado Democrático de Direito. Em 28 de fevereiro de 1945, o Presidente da República expediu a Lei Constitucional número 9 (SILVA, 2004, p.84), que, dentre outros assuntos, redefinia a eleição direta do Presidente e do Parlamento brasileiro. Inicialmente, caberia ao Parlamento encabeçar as alterações constitucionais pertinentes, porém, ultimou-se por eleger a Assembleia Constituinte. Temia-se um novo golpe e Vargas foi logo afastado do poder. Representada pelas mais variadas posições políticas e ideológicas, a Constituinte presenteou a nação com a nova Constituição Republicana de 1946, prevendo eleições para Presidente da República, Governadores de Estado, Parlamento e Assembleias Legislativas. A Carta de 1946 representou um período de grande amadurecimento democrático de nosso país e, por isso, é considerada esteio da atual conjectura política brasileira, já hoje, cristalizada pela Constituição de 1988. Todavia, infelizmente, a sombra da repressão e da estupidez

Cezar Cardoso Neto & Diego Vieira • 23 ainda haveria de nos conduzir a retrocessos políticos inimagináveis. A acolhedora Constituição de 1946 sucumbiu ao golpe militar. Diante do estabelecimento triunfante do terror e da intolerância, caberia ao povo brasileiro lastimar o destino da pátria amada que, agora, aos auspícios de 64, tornaria-se uma mãe não tão gentil. O movimento militar depôs o Presidente João Goulart e, em seu lugar, estabeleceu o Comando Militar Revolucionário, efetuando a perseguição política de todos aqueles que se identificavam com o Presidente deposto ou que protestavam contra o autoritarismo implantado (SILVA, 2004, p.86). A partir de então, a experiência constitucional brasileira seria francamente vilipendiada, ruindo pelos assombrosos Atos Institucionais. As instituições políticas foram submetidas a toda sorte. O sabor da marcha democrática, disseminado pela Carta de 1946, logo evanesceu, aniquilando-se as garantias arduamente conquistadas e infligindo-se ao povo brasileiro a mais abrasiva face do constitucionalismo, a Constituição de 1967. O Congresso, que sequer detinha o poder constituinte, foi coagido a votar um arcabouço constitucional contendo as mais variadas excrescências jurídicas, desvinculado, ainda, de qualquer oportunidade para discussões políticas ou oposições. O modelo constitucional arbitrariamente imposto haveria de enfraquecer manifestamente o Poder Legislativo, concedendo ao Executivo a plenitude da governabilidade nefasta e discricionária, sem qualquer aversão ou interferência, o que se opera, posteriormente, pela Emenda nº 1, de 1969, fazendo-se republicar todo o texto constitucional em termos ainda mais duros.

Constitucionalismo democrático Transcorridos mais de vinte anos de torpeza e opressão, chegava a hora de se (re)soprarem as leves brisas do movimento democrático. Em 5 de outubro de 1988, a Assembleia Nacional Constituinte anuncia a (re)democratização do país através da promulgação da Constituição Cidadã, assim batizada por Ulysses Guimarães. A Constituição Federal de 1988 expressou sua adesão ao Estado Democrático de Direito e, com isso, a preocupação essencial com os direitos fundamentais, sobretudo por considerar a Declaração Universal dos Direitos Humanos, marco documental do constitu-

24 • Constituinte exclusiva e soberana cionalismo democrático (HORTA, 2006, p. 16). Apesar de cumprir a sua tarefa de reestabelecer a democracia brasileira, legando ao país uma efetiva consolidação de direitos e garantias fundamentais, é fato que a Carta Política, logo após ser promulgada, enfrentou um tumultuado período revisionista até outubro de 1995 (BARACHO, 2000, p. 283). Já nesta primária fase revisional, os congressistas apresentaram uma vasta pauta de propostas de reforma política. Muitas delas foram frustradas, visto que transcorreram em debate durante todo o período sem sucesso, sendo, ainda, continuamente reventiladas em propostas de emendas constitucionais posteriores. A atual conjuntura sócio-política brasileira demonstra a necessidade urgente de uma reforma constitucional, a fim de que se modernizem as estruturas do País. As alterações, evidentemente, se mostram necessárias ao longo das transformações do processo político, exigindo, na maioria das vezes, modificações do texto constitucional. Cientes dessa necessidade, os constituintes originais conceberam as regras do processo de atualização da Constituição, permitindo-se, assim, adaptá-la às novas realidades enfrentads pelo país. Todavia, sobretudo por todos os escândalos políticos presenciados no país após a redemocratização, cada vez mais, cresce a desesperança na política e nos políticos brasileiros. Consequentemente, desacredita-se na disposição dos parlamentares em conceber as urgentes e necessárias reformas constitucionais. Coroando esta insatisfação, o povo brasileiro saiu às ruas em junho de 2013, levantando-se altivamente na defesa de seus interesses. Não há dúvida de que a nação clama por reformas, especialmente no que tange à satisfação dos direitos e garantias fundamentais, como a liberdade, a educação, a saúde, a segurança e tantos outros. Esta grande insatisfação popular nos permite, ainda, recordar dos contornos da Revolução Francesa. Com suas origens na luta pela liberdade e igualdade, no fim dos privilégios, revela a contradição entre a consciência nobre e a consciência vil (SALGADO, 1996, p. 305), elementos essenciais para a reflexão da atual realidade de injustiça política e social. O Estado pressupõe a igualdade perante a lei, onde o exercício do poder fundamenta-se segundo a regra da justiça (LIMA VAZ, 1988, p. 157), uma vez que os indivíduos têm os interesses do

Cezar Cardoso Neto & Diego Vieira • 25 Estado acima de seus interesses particulares, entregando-se cada um a seu ofício, desde os mais simples até a alta função de dirigir o Estado. A maneira de relacionar o Estado aos interesses privados, com a busca pela satisfação pessoal, onde os governantes estabelecem os interesses individuais acima dos interesses públicos, caracteriza a consciência vil, colocando a comunidade a seu serviço a fim de usufruir os recursos do Estado em proveito próprio. Tais ações levam à degeneração da consciência, decaindo a consciência nobre à consciência vil (SALGADO, 1996, p. 305). A classe governamental torna-se estéril, pois persegue apenas os seus próprios interesses, identificando a figura política com o despotismo, convertendo a essência do Estado ao serviço dos interesses da seleta classe governamental. Inexiste o serviço do Estado voltado ao bem comum, mas apenas a serviço de se obter riquezas para os privilegiados. A moral fica reduzida à moral social, prevalecendo a utilidade, ocasionando a dissolução do mundo da fé no mundo efetivo da riqueza (HYPPOLITE, 1974, p. 322). Com a falta de trabalho e, por conseguinte, o recrudescimento da pobreza, a dignidade humana decresce. Isso se mostra comum em nossos dias, especialmente pelo embrutecimento dos hábitos, limitando a capacidade intelectual através da necessidade de se dedicar cada vez mais ao trabalho, que muitas vezes pode ser considerado subumano, exaurindo as forças e impossibilitando outras atividades. A precária educação pública oferecida não se mostra capaz de proporcionar ao estudante fruir as vantagens de dedicar-se a esta essencial atividade, o que provoca uma evidente situação de injustiça, deixando a educação formal, a qual se mostra incapaz de oferecer-lhe um futuro melhor. Tal complexa situação, somada à realidade da globalização, com a implacável passagem da relação modernidade-estado para modernidade-mundo (MARRAMAO, 2011, p. 30-31) e todas as implicações e tensões daí decorrentes, acrescida, ainda, da obtusa realidade brasileira, acabou por repercutir nos conhecidos protestos de junho de 2013. Nesta seara, aproveitando-se de todo este quadro problemático, bem como do desconhecimento do texto constitucional pela maioria da população brasileira, vê-se surgir um clamor por uma democracia popular, suscitado por sindicatos, associações, partidos políticos e outros grupos, tradicionalmente ligados a setores de

26 • Constituinte exclusiva e soberana esquerda, os quais propõem um plebiscito para a criação de uma Assembleia Constituinte exclusiva e soberana, alegando que a Constituição Federal de 1988 já não representa os anseios do povo e, por conseguinte, seria derrogada, juntamente com a democracia, dando lugar a uma nova ordem política e social. (BARRETO LIMA, 2014). Se a Constituição, apesar das já inúmeras emendas, não se mostra eficaz para empreender as necessárias mudanças, reforçam-se por toda parte os argumentos de ser, a atual proposta de uma Constituinte exclusiva e soberana, o único meio capaz de promover a tão aguardada modificação constitucional. As manifestações, por esta controversa Constituinte, vêm se amparando – e até convincentemente – na inexistência de real aspiração por mudanças da atual classe política brasileira. Todavia, pouco se sabe sobre o que realmente seria esta nova face do constitucionalismo, de quais temas exatamente trataria, enfim, quais seriam os pontos fundamentais a serem oportunamente discutidos. O descontentamento geral e a crescente pressão, forçando os governantes a se posicionarem desta ou daquela maneira, clamando por mudanças, desempenha um papel ideológico scontentamento mento parece ser generalizado parecenceitos hegelianos para que onhecida como absoluta. os momentos subjetivo ea vontade . Com isso, o Estado recebe a acusação de ter abandonado sua tarefa de realizar os direitos sociais e de ter se tornado refém dos interesses econômicos, seja de poucos privilegiados, seja de indivíduos ligados à estrutura governamental. Como ensina Cattoni, no que se refere à autodeterminação jurídica, os destinatários do direito devem se compreender como seus autores (CATTONI DE OLIVEIRA, 2012, p. 69), todavia, isso parece ter sido olvidado pelos defensores da Constituinte exclusiva, uma vez que a Constituição Federal de 1988, aclamada pelo Presidente da Assembleia Nacional Constituinte, Ulysses Guimarães, como a “Constituição Cidadã”, é fruto de décadas de lutas em favor da consolidação da democracia no Brasil. Embora revestido de nova roupagem, o clamor por uma democracia popular atavés de uma Constituinte exclusiva e soberana, mostra-se mais próximo ao estado de exceção, já que se desabrigariam as tantas garantias fundamentais consagradas pela vigente Magna Carta. A Constituição é a forma de organização da liberdade, de acordo com o conteúdo do espírito deste povo (SALGADO, 1996,

Cezar Cardoso Neto & Diego Vieira • 27 p. 415), pois expressa e resume a convivência dos cidadãos, como uma expressão consciente e racional, é a forma do Estado racional. Esse conteúdo ético declarado na Constituição, expresso racionalmente sob forma escrita, visa realizar a liberdade. No Estado é que se realizam a liberdade e os direitos dela decorrentes. O Estado justo é o Estado de direito, onde os direitos subjetivos são realizados (SALGADO, 1996, p. 427). O ideal de democracia popular difundido parece não considerar que em uma nova Constituinte estarão presentes os diversos grupos sociais e seus cativos interesses, sejam eles representados pelos membros dessa Assembléia ou, ainda, pela implacável pressão midiática, influenciando e movimentando a perigosa reconstitucionalização do país. (BARRETO LIMA, 2014). É evidente que existem muitas falhas na Constituição de 1988, fazendo-se necessária uma ampla reforma constitucional, todavia, é imprescindível que se reconheça – e com isso, não os coloque em risco – os infindáveis progressos em termos de direitos e garantias fundamentais, arduamente conquistados e amplamente debatidos no legítimo nascedouro político da vigente Carta Constitucional brasileira, a aclamada Constituição Cidadã. Se há que se defender uma reforma constitucional, sem desvaler-se das tantas benesses conquistadas, que se respeite as legítimas aspirações da Assembleia Constituinte de 1987, observando-se as limitações ao poder de reforma previstas no artigo 60 da Constituição Federal, o qual prevê as devidas regras a serem seguidas para a legal alteração. Se a reforma constitucional que se pretende é exclusiva e temática, restrita à reforma política, e não ampla e irrestrita; se o intuito é realmente preservar todos os direitos e garantias fundamentais conquistados, respeitar o vigente preceito constitucional nos parece, no mínimo, um caminho um tanto mais seguro e plausível do que as supostas alternativas populares até o momento levantadas. Iniciar o processo de reforma através de emenda Constitucional a ser, ou não, aprovada pelo Congresso Nacional, não somente é respeitar os firmamentos da já democrática e legítima Assembleia Constituinte de 1987, como, também, afasta-se o perigo da inconstitucionalidade e, consequentemente, a judicialização da política que inevitavelmente empreenderia o Supremo Tribunal Federal.

28 • Constituinte exclusiva e soberana Assim, em nosso entender, tal movimento, que se arroga como expoente da vontade popular, ou desconhece que em uma nova Constituinte haverá os mesmos embates e conflitos presentes naquela de 1988, apenas com uma nova roupagem ou, então, busca, com este ideal de Constituinte exclusiva e soberana, extinguir a democracia, inaugurando um estado de exceção, onde apenas seus ideais farão parte do que consideram como popular, exercendo, de tal modo, a destituição da democracia e a soberania da exclusão.

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ATUAÇÃO POLÍTICO-DEMOCRÁTICA E PRÁXIS CONSTITUCIONAL:

O PODER CONSTITUINTE SOB A ÓTICA DE ANTONIO NEGRI E DE FRIEDRICH MÜLLER Vitor Sousa Bizerril1

Introdução Há de se diferençar e explicitar, primeiramente, a concepção de poder constituinte que se propõe analisar. Comumente, a doutrina constitucionalista distingue o poder constituinte originário do poder constituinte constituído ou derivado. Paulo Bonavides define, de forma objetiva e elucidativa, que o poder constituinte originário faz a Constituição, não sendo limitado por limites formais, em outras palavras, é essencialmente político ou extrajurídico. Por outro lado, o poder constituinte constituído ou derivado está inserido na Constituição, é órgão constitucional, possui limitações tácitas e expressas, e se define como poder primacialmente jurídico, que tem por objeto a reforma do texto constitucional.2 O poder constituinte objeto de estudo do presente artigo, todavia, possui acepção diversa das supra referidas. Conforme lição de Paulo Bonavides, há ainda um “segundo poder constituinte originário”, o qual, não possuindo titularidade definida, é difuso, anônimo e político, sendo apenas plausível sua explicação ao se admitir a força normativa da realidade e do meio social, ou seja, “a facticidade que transforma as Constituições e as rejuvenesce”.3 Deste modo, prossegue o constitucionalista cearense, este poder constituinte não desampara a Constituição depois de feita, mas antes a acompanha Graduado em Direito pela Universidade de Fortaleza (Unifor). Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Cerará (PPGD/UFC). Brasil. E-mail: [email protected]. 2 BONAVIDES, Paulo, Curso de Direito Constitucional. 6.ed. (São Paulo: Malheiros Editores, 1996), 125. 3 BONAVIDES, Paulo, Curso de Direito Constitucional. 6.ed. (São Paulo: Malheiros Editores, 1996), 162. 1

Vitor Sousa Bizerril • 31 e a modifica, ainda que indefinida a titularidade, tornando estáveis e permanentes as criações constitucionais, mantendo atualizada a Constituição, consolidando o poder legítimo ou ao menos tendendo a consolidá-lo. Seria, portanto, um “poder constituinte material em contraste com o poder constituinte formal”, pelo que infere que cada país possui ordinariamente duas constituições.4 Uma, inserida no texto e nos compêndios do Direito Constitucional, eminentemente teórica, “escrita do punho do legislador constituinte em assembleia formal”; outra, habitada na realidade, percebida nas “trepidações da vida e da práxis”, estando “gravada quase toda na consciência social e dinamizada pela competição dos grupos componentes da sociedade”. Bonavides afirma, então, que o aspecto antinômico dessas duas constituições é falso, porquanto a verdadeira Constituição está simultaneamente no texto e na realidade.5 Analisar-se-á, portanto, a teoria do poder constituinte, que, sob as nuances consideradas, fomenta, articula e materializa o debate político-constitucional numa sociedade democrática, consoante as propostas teóricas de Antonio Negri e de Friedrich Müller, que nos apresentam perspectivas originais sobre poder constituinte, dilatando, quiçá rompendo com a tradicional categorização de poder constituinte originário e derivado.

A potência e a revolução do poder constituinte de Antônio Negri Nesta perspectiva, sobressai o construto teórico do filósofo italiano Antonio Negri, notadamente, no que concerne a potência político-democrática do poder constituinte. Para Negri, “falar de poder constituinte é falar de democracia” e, por isto, poder constituinte tende a se identificar com o conceito de política, sendo este compreendido numa sociedade democrática6. Deste modo, Negri pondera que “qualificar constitucional e juridicamente o poder constituinte não será simplesmente produzir normas constitucionais e estruturar poderes constituídos, mas sobretudo ordenar o poder constituinte enquanto sujeito, regular a política democrátiBONAVIDES, Curso de Direito Constitucional, 163-164. BONAVIDES, Curso de Direito Constitucional, 164. 6 NEGRI, Antonio, O poder constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade (Rio de Janeiro: DP&A, 2002), 7. 4 5

32 • Atuação político-democrática e práxis constitucional ca”.7

Segundo o filósofo italiano, a política, contudo, não restaria adstrita aos formalismos e limites do poder constituído, que se apresenta como mediação centralizada, no sentido de um “espaço” tornado “político” porquanto completamente absorvido pelo processo de “representação”, o que acarretaria na diluição do poder constituinte pelo mecanismo representativo, não podendo mais se manifestar senão no “espaço político”. Dessa forma, Negri assevera que o poder constituinte reapareceria “travestido em atividades das cortes supremas ou em poder de iniciativa de outros órgãos do Estado, mas sempre neutralizado” quando da proposta ou defesa de alguma determinação inovadora.8 Antonio Negri então apresenta inovadora e revolucionária definição de poder constituinte, exaltando seus traços políticos e democráticos: O poder constituinte se define emergindo do turbilhão do vazio, do abismo da ausência de determinações, como uma necessidade totalmente aberta. É por isso que a potência constitutiva não se esgota nunca no poder, nem a multidão tende a se tornar totalidade, mas conjunto de singularidades, multiplicidade aberta. [...] A democracia é, ao mesmo tempo, um procedimento absoluto da liberdade e um governo absoluto. Portanto, manter aberto aquilo que o pensamento jurídico queria fechar, aprofundar a crise de seu léxico científico, não nos dá apenas o conceito de poder constituinte, mas nos dá este conceito como matriz do pensamento e da práxis democrática. A ausência, o vazio, o desejo são o motor da dinâmica político-democrática enquanto tal. Uma desutopia, ou seja, o sentido de uma atividade constitutiva transbordante, intensa como a utopia, mas sem ilusões, plena de materialidade.9

Na concepção de poder constituinte de Antonio Negri, destaca-se sua qualidade expansiva e emancipadora, tornando-o a força motriz do debate político-democrático, que, neste distinto enfoque, desprende-se dos limites do poder constituído, do “espaço político” institucionalizado e do próprio constitucionalismo, convertendo-se em um ato fundamental de inovação. A prática da NEGRI, O poder constituinte, 7. NEGRI, O poder constituinte, 434. 9 NEGRI, Antonio, O poder constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade (Rio de Janeiro: DP&A, 2002), 26. 7 8

Vitor Sousa Bizerril • 33 política e da democracia não poderia, então, se encontrar cingida pelos limites do constitucionalismo, mas transpô-lo, indo além ou até contra ele. Conforme Negri, o aparato que nega o poder constituinte e a democracia é o constitucionalismo, que, ao tentar definir o poder constituinte, “sufoca-o na sociologia ou agarra-o pelos cabelos através da construção de definições formalistas”, naufragando nesse confronto conceitual.10 O poder constituinte, onipotente e expansivo, acaba sendo reduzido a norma de produção do direito, interiorizado no poder constituído, sendo sua expansividade, desta forma, manifestada tão somente como norma de interpretação, como controle de constitucionalidade, como atividade de revisão constitucional. Periódica e intermitentemente, observando limites e procedimentos bem definidos, uma “pálida imitação” do poder constituinte poderá ainda, de modo eventual, ser confiada a atividades referendarias ou regulamentares. Em vista disso, o teórico italiano infere que uma “fortíssima parafernália jurídica cobre e desnatura o poder constituinte”.11 Há na teoria de Antonio Negri, conforme destacado por Aída Quintar, uma contraposição histórica entre a expansão do poder constituinte (expressão da potência) e a limitação dessa expansão por meio de diversos mecanismos (constitucionalismo, sistema político representativo) do poder constituído.12 Em análise similar, Newton Albuquerque explicita a conflituosa relação entre poder constituinte e poder constituindo, revelando uma possível supervalorização da Constituição (poder constituído), à medida que subvaloriza o poder constituinte: A centralidade retoricamente e formalmente fundante do poder constituinte é efetivamente destroçada pela astúcia do discurso jurídico-liberal que sob o argumento de buscar cercear qualquer NEGRI, O poder constituinte, 444. NEGRI, O poder constituinte, 10. 12 QUINTAR, Aída, “A potência democrática do poder constituinte em Negri” in Lua Nova – Revista de Cultura e Política, n.43 (São Paulo: CEDEC, 1998), 132. Também sobre a tensão entre poder constituinte e poder constituído em Antonio Negri, cf. TITO, Maíra, “Poder constituinte e poder constituído: os conceitos de Antonio Negri aplicados às alterações constitucionais em Portugal e no Brasil” in Lugar Comum – Estudos de Mídia, Cultura e Democracia (UFRJ, n.29, set.-dez., 2009), 207; e BERCOVICI, Gilberto, Soberania e Constituição: Para uma Crítica do Constitucionalismo (São Paulo: Quartier Latin, 2008), 34. 10 11

34 • Atuação político-democrática e práxis constitucional possibilidade de abuso de autoridade termina por inverter o espaço lógico-hierárquico construída pela fórmula constitucionalista. Ou seja, a partir da promulgação da Constituição, o poder constituinte vê-se constrangido em sua potência criadora pelo produto de sua criação, o constituído, normativamente positivado pelo Estado.13 O viés revolucionário da teoria de Antonio Negri sobressai ainda mais quando o pensador italiano funde revolução e poder constituinte, aglomerando-os numa síntese das figuras de rebelião, de resistência, de transformação, de criação, de construção do tempo e de lei. O poder constituinte, então, se manifesta como “expansão revolucionária da capacidade humana de construir a história, como ato fundamental de inovação e, portanto, como procedimento absoluto” e ilimitado, o que seria o único conceito possível de Constituição. 14 Antonio Negri conclui, dessarte, que o conceito de poder constituinte traduz a normalidade da revolução, oferta uma definição do “ser como movimento de transformação”, pelo que defende a “desdramatização” do conceito de revolução, que se torna, então, por meio do poder constituinte, o “desejo de transformação do tempo, contínuo, implacável, ontologicamente eficaz. Uma prática contínua e incontrolável”.15

A concretização e a práxis constitucional do poder constituinte de Friedrich Müller Em sentido diverso ao da vigorosa teoria de Antonio Negri, onde se ressalta o caráter político, democrático e, principalmente, revolucionário do poder constituinte, há concepções em que o poder constituinte atua de modo a legitimar democraticamente a Constituição, atualizando-a, revitalizando-a e, sobretudo, concretizando-a. Nesta toada, destaca-se não apenas a suso referida acepção de Paulo Bonavides, mas sobressai também, dentre outros doutrinadores, o construto jurídico-constitucional de Friedrich Müller. ALBUQUERQUE, Newton de Menezes, “Estado de Direito: dialética entre Ordem Normativa e Estado de Exceção na Concepção Marxista do Político” In LIMA, Martonio Mont’Alverne Barreto; BELLO, Enzo. Direito e Marxismo (Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010), 105. 14 NEGRI, Antonio, O poder constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade (Rio de Janeiro: DP&A, 2002), 39-40. 15 NEGRI, O poder constituinte, 459. 13

Vitor Sousa Bizerril • 35 Consoante Friedrich Müller, o poder constituinte, no pleno sentido do termo, deixa de ser metafísico para se tornar “maciço e real”, sendo, deveras, o poder do povo de constituir-se, pois, segundo o teórico germânico, não existe poder constituinte do povo “onde o poder contempla o povo em alienação; onde o povo não encontra a si mesmo, mas apenas a violência de um Estado que mantém um povo para si”, visto que, para tal Estado, o poder constituinte é um símbolo ostentoso, “uma metáfora especialmente luminosa”.16 Por oportuno, faz-se necessário expor as distintas categorias do modo de utilização do termo “povo” sobre as quais Müller faz referência. Primeiramente, destaca-se (I) o povo como instância de atribuição de legitimidade, o povo legitimante, o qual está restrito aos titulares de nacionalidade, de modo pouco clara nos textos constitucionais, sendo utilizado para legitimar atos do Estado; (II) o povo ativo estaria definido ainda mais limitadamente pelo direito positivo (textos de normas sobre o direito a eleições e votações, inclusive a possibilidade de ser eleito para diversos cargos públicos); (III) o povo participante se refere a todos que se engajam politicamente, além do papel do povo ativo, numa cidadania consciente e ativa; (IV) o povo como destinatário das prestações civilizatórias do Estado se refere a implementação de direitos enquanto “efeitos reproduzidos ‘sobre o povo’)17; e, por fim, (V) o povo como ícone, rigorosamente criticado por Müller, é assim definido pelo professor germânico, como a “desrealização” da população, mitificando-a, hipostasiando-a de forma pseudossacral, instituindo-a como “padroeira tutelar abstrata”, tornada inofensiva para o poder-violência, abandonando, portanto, o povo a si mesmo.18 Sob este prima, pode-se fazer a seguinte ilação: que não apenas existem diversas formas de utilização do termo “povo” num sentido retórico-conceitual, mas que há “povo” que se encontra tão somente no texto constitucional, como instância legitimadora, desamparado ou olvidado pelo Estado, ou seja, invoca-se o “povo”, em dado momento, para posteriormente relega-lo. Para Müller, esMÜLLER, Friedrich, Fragmento (sobre) o Poder Constituinte do Povo (São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004), 26-27. 17 MÜLLER, Friedrich, Quem é o Povo? A questão fundamental da democracia. 6.ed.(São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011), 70. Sobre o “povo como destinatário de prestações civilizatórias do Estado”, cf. páginas 66-67 desta mesma obra. 18 MÜLLER, Quem é o Povo, 61. 16

36 • Atuação político-democrática e práxis constitucional sas distorções no Estado de Direito são estarrecedoras, pois, de um lado, vale-se da maior parte da população, por outro lado, não se implementam direitos para essa parte da população; de um lado, obriga-se à maior parcela da população o cumprimento do ordenamento jurídico, por outro lado, essa mesma população não é titular de direitos.19 Em pensamento convergente e esclarecedor, Marcelo Neves explana de forma minuciosa os conceitos de sobreintegração e subintegração: Nesse caso, o pólo sobreintegrado tem acesso às prestações positivas destes, sem ser, ao mesmo tempo, dependente de suas prestações negativas (coações e regras); o pólo subintegrado, ao contrário, é dependente das prestações, sem ter acesso a elas. Assim sendo, há em ambos os pólos inclusão insuficiente ou exclusão parcial. No âmbito do direito, isso significa que os sobreintegrados têm acesso aos direitos (e aos remédios jurídicos ou procedimentos judiciais), sem realmente assumirem nem cumprirem os deveres e responsabilidades impostos pelo sistema jurídico (impunidade), enquanto os subintegrados, contrariamente, não dispõem de acesso efetivo aos direitos nem aos remédios jurídicos ou às vias judiciais, embora permaneçam rigidamente subordinados aos deveres, responsabilidades e punições restritivas de liberdade. [...] Para os sobrecidadãos e subcidadãos a Constituição não se apresenta como horizonte do seu agir e vivenciar jurídicos: os primeiros usam, desusam ou abusam da Constituição conforme as constelações concretas de poder; aos últimos são estranhos os direitos e garantias fundamentais constitucionalmente amparados.20

Com base nesses conceitos, Marcelo Neves afirma, por fim, que esse problema muito provavelmente pode associar-se às constituições simbólicas, em outros termos, haveria um sobrepeso ou hipertrofia do significado simbólico do texto constitucional em detrimento de sua normatividade.21 Não se pode olvidar, contudo, que, consoante a metódica estruturante do direito de Friedrich Müller, MÜLLER, Friedrich, Quem é o Povo? A questão fundamental da democracia. 6.ed.(São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011), 62. 20 NEVES, Marcelo, A Constitucionalização Simbólica, 3.ed. (São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011), 198. 21 NEVES, A Constitucionalização Simbólica, 199. 19

Vitor Sousa Bizerril • 37 o texto da norma é distinto da norma, sendo a prescrição jurídica fundamentada no âmbito normativo, que é extraído do conteúdo fático da esfera regulativa da prescrição positiva.22 Segundo Müller, portanto, a norma jurídica é materialmente determinada, “vige” no tempo como um complexo singular de regulamentações, hábil a dirimir por via da concretização o caso e o conflito em apreço, sendo insuficiente o simples ato de instituir, visto que a vigência, no sentido referido, confere concreção, eficácia social ao fato de estar instituído. Em vista disso, o professor de Heidelberg assevera que o “poder constituinte não deve ser compreendido como um ato isolado tópico, mas simultaneamente como capacidade permanente de se regulamentar no tempo”,23 razão pela qual aduz que: O poder constituinte não age apenas uma única vez, ficando então esgotado até a próxima ‘decisão’ revolucionária, que então pode novamente fazer tabula rasa, com legitimidade; mas porque o poder constituinte é, ao lado do seu papel em prol de uma democrática colocação em vigor da Constituição, antes de mais nada a norma, atuante no tempo, de uma permanente instância de responsabilização chamada ‘povo’ – ou, dito em outros termos, porque por sua causa o ordenamento fundamental se deve manter no longo prazo no quadro material do cerne democrático da Constituição.24(grifo do autor)

Com efeito, Friedrich Müller salienta ainda que a espécie de legitimidade deduzida do poder constituinte do povo pode ser formulada em gradações, quais sejam a “incorporação” dessa pretensão ao “texto” da Constituição tem por interlocutor o povo enquanto instância de atribuição; ademais, o procedimento “democrático” de tornar vigente a Constituição orienta-se ao povo ativo; e, por fim, a preservação de um “cerne constitucional”, o qual sempre é também democrático, investe o povo destinatário nos seus direitos na dura-

Sobre a teoria estruturante do direito e a metódica concretista de Friedrich Müller, cf. BONAVIDES, Paulo, Curso de Direito Constitucional. 6.ed. (São Paulo: Malheiros Editores, 1996), 456-465. 23 MÜLLER, Friedrich, Fragmento (sobre) o Poder Constituinte do Povo (São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004), 35-36. 24 MÜLLER, Fragmento (sobre) o Poder Constituinte do Povo, 81. 22

38 • Atuação político-democrática e práxis constitucional ção do tempo.25 Friedrich Müller, então, arremata que o poder constituinte não mais somente representa, enquanto texto de norma constitucional, um processo de preparação da Constituição ou um acontecimento temporalmente definido, mas que o poder constituinte atua como “norma para um critério de aferição”, subsistente no tempo, fundamentando a legitimidade da Constituição, conforme sua aspiração, legitimação essa que se dará por meio da “permanência da práxis constitucional no ‘cerne’ material”.26 Neste tocante, pertinente se mostra a severa crítica de Marcelo Cattoni ao não admitir o “complexo de inferioridade” sob o qual padece parcela significativa da doutrina constitucional brasileira, repudiando, assim, a concepção de que não possuímos capacidade para exercer a nossa cidadania, de que desconhecemos nossos direitos e que, por esta razão, necessitamos de um regente ou tutor, seja na figura do presidente da República ou na do Supremo Tribunal Federal, “que deverá exercer a cidadania por nós, até a nossa maioridade, até que todos os nossos problemas de exclusão social sejam resolvidos”.27 Em pensamento consonante quanto ao deslocamento do exercício da cidadania e, por conseguinte, à concretização constitucional, Gilberto Bercovici adverte que os partidos políticos e o legislativo perdem espaço como agentes distintos da concretização constitucional, na medida em que se enfraquece a acepção intensamente política da Constituição, o que poderia acarretar “a emancipação da constituição dos pressupostos da unidade política estabelecida, seja do poder constituinte do povo, seja do Estado soberano”. Essa tendência, continua Bercovici, ocorreria ao se intentar assegurar o escopo diretivo da Constituição, com a dilatação do âmbito constitucional, despreocupando-se, assim, com as possibilidades políticas de efetuação das “promessas constitucionais”. A Constituição democrática, portanto, amenizado seu sentido de Constituição política e robustecida a concepção de Constituição como norma suprema, passa a ter o espaço constitucional ocupado MÜLLER, Friedrich, Quem é o Povo? A questão fundamental da democracia. 6.ed.(São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011), 92-93. 26 MÜLLER, Friedrich, Fragmento (sobre) o Poder Constituinte do Povo (São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004), 53. 27 CATTONI, Marcelo, Poder Constituinte e Patriotismo Constitucional (Belo Horizonte: Mandamentos, 2006), 88-89. 25

Vitor Sousa Bizerril • 39 por outro poder, “que irá tomar a constituição em suas mãos e se arrogará o monopólio da concretização constitucional: surge o momento dos tribunais”.28 Neste diapasão, sobressai a atuação político-democrática do poder constituinte, a qual é traduzida, de forma percuciente, por Alexandre Bernardino Costa e Luísa de Pinho Valle: O conceito de poder constituinte somente tem sentido se for pensado em articulação com o conceito de democracia. Por sua vez, ambos necessitam de uma práxis constitucional que também seja democrática e tenha como referência o poder constituinte do ato fundador. A perspectiva teórico-prática da construção social do direito, compreendida procedimentalmente possibilita essa ligação. A democracia de uma determinada sociedade depende de seus membros levarem a sério o direito. A práxis constitucional que atualiza o direito não se faz somente por meio das instituições estatais, o direito se constrói e reconstrói no seio da sociedade, nas lutas dos movimentos sociais, nos espaços públicos onde cidadãos dotados de autonomia pública e privada vivem sua autolegislação.29

Vislumbram-se, destarte, predicados que, não obstante as divergências teóricas dos construtos sinteticamente apresentados, constituem a essência do poder constituinte, quais sejam, atuação político-democrática e práxis constitucional.

Considerações finais Consoante as acepções de poder constituinte estudadas, tornou-se possível confrontar teorias sob a ótica político-democrática, dando primazia aos teóricos que aproximam os conceitos de participação política ao de poder constituinte. Reavivar a política e a consciência crítica da sociedade, porBERCOVICI, Gilberto, Soberania e Constituição: Para uma Crítica do Constitucionalismo (São Paulo: Quartier Latin, 2008), 322. 29 COSTA, Alexandre Bernardino e VALLE, Luísa de Pinho. “Desafios do Poder Constituinte e da Democracia”. Publicações da Escola da AGU: Direito Constitucional e Biopolítica - Escola da Advocacia-Geral da União, Ano IV, n. 17, abril, *Brasília: EAGU, 2012), 108. 28

40 • Atuação político-democrática e práxis constitucional tanto, não significa apenas revigorar a democracia, mas, sobretudo, o usual conceito de poder constituinte. Nesta ocasião, olvidar-se-á, então, a habitual compreensão de democracia como mero procedimento legitimador da atividade legislativa, exsurgindo a democracia como práxis político-constitucional, como participação popular, como concretização normativa, à medida que o povo não mais se vê como ícone, mas torna-se iconoclasta de sua própria imagem divinizada, ocupando e ampliando o espaço público/político, percebendo seu papel de sujeito ativo, de participante, e, ao mesmo tempo, de destinatário das ações político-democráticas.

Referências ALBUQUERQUE, Newton de Menezes, “Estado de Direito: dialética entre Ordem Normativa e Estado de Exceção na Concepção Marxista do Político” In: LIMA, Martonio Mont’Alverne Barreto; BELLO, Enzo, Direito e Marxismo (Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010), 95-121. BELLO, Enzo, “Cidadania, Alienação e Fetichismo Constitucional” In: LIMA, Martonio Mont’Alverne Barreto; BELLO, Enzo, Direito e Marxismo (Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010), 7-33. BERCOVICI, Gilberto. “Constituição e Política: uma relação difícil” Lua Nova – Revista de Cultura e Política (CEDEC, n.61 2004), 5-24. _______, “O Poder Constituinte do Povo no Brasil: Um Roteiro de Pesquisa sobre a Crise Constituinte” In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda; LIMA, Martonio Mont’Alverne Barreto (orgs.). Diálogos Constitucionais: Direito, Neoliberalismo e Desenvolvimento em Países Periféricos (Rio de Janeiro: Renovar, 2006), 215-224. _______, Soberania e Constituição: Para uma Crítica do Constitucionalismo. São Paulo: Quartier Latin, 2008. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 6.ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1996. CATTONI, Marcelo. Poder Constituinte e Patriotismo Constitucional.

Vitor Sousa Bizerril • 41 Belo Horizonte: Mandamentos, 2006. COELHO, Tiago de Andrade, Notas sobre o conceito de poder constituinte em Antonio Negri. Disponível em: < http://www.reidese.com. br/artigos/032011/032011_5.pdf>. Acesso em: 10 nov. 2014. COSTA, Alexandre Bernardino; VALLE, Luísa de Pinho, “Desafios do Poder Constituinte e da Democracia”. Publicações da Escola da AGU: Direito Constitucional e Biopolítica - Escola da Advocacia-Geral da União, Ano IV, n. 17, abril, Brasília: EAGU, 2012, p. 95-110. LIMA, Martonio Mont’Alverne Barreto, “Constituição e política: o materialismo da Constituição” In: Bello, Enzo (org.) et al. Direito e marxismo: tendências atuais. Caxias do Sul: Educs, 2012, p. 201-213. MASCARO, Alysson Leandro, Estado e forma política. São Paulo: Boitempo, 2013. MÜLLER, Friedrich, “Elementos para a Renovação de um Pensamento Jurídico Materialista: Constituição, Sociedade, Democracia” In: LIMA, Martonio Mont’Alverne Barreto; BELLO, Enzo. Direito e Marxismo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 269-283. _______, Fragmento (sobre) o Poder Constituinte do Povo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. _______, Quem é o Povo? A questão fundamental da democracia. 6.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. NEGRI, Antonio, O poder constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. NEVES, Marcelo, A Constitucionalização Simbólica. 3.ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011. QUINTAR, Aída, “A potência democrática do poder constituinte em Negri”. Lua Nova – Revista de Cultura e Política, n.43, São Paulo: CEDEC, 1998, p. 131-154.

42 • Atuação político-democrática e práxis constitucional SANTOS, Rogério Dutra dos, “Para a subversão do conceito de poder constituinte: Antonio Negri e a genealogia da revolução” Novos Estudos Jurídicos. v.8, n.1, jan./abr., p. 229-233, 2003. TITO, Maíra, “Poder constituinte e poder constituído: os conceitos de Antonio Negri aplicados às alterações constitucionais em Portugal e no Brasil” Lugar Comum – Estudos de Mídia, Cultura e Democracia. UFRJ, n.29, set.-dez., 2009, p. 205-226.

DIREITO DE EXCEÇÃO E NORMALIDADE EM GIORGIO AGAMBEN Andréia Fressatti Cardoso1 Diante de uma crise o Estado se vê impelido a atuar de forma rápida, capaz de corresponder satisfatoriamente às necessidades que lhe forem apresentadas. Nesse estado, a decisão ganha destaque, pois a necessidade exige-a para que logo siga uma ação justa de acordo com a situação. Um dos três poderes recebe maior relevo, o Executivo, por ser o poder da decisão rápida, ao mesmo tempo em que se indeterminam os demais; o soberano passa a receber mais força, sua autoridade predomina diante dos outros poderes; e o Direito é suspenso para que ele possa ser aplicado de forma mais justa de acordo com a situação apresentada. Essas são características do estado de exceção, momento em que o Estado reage à crise enfrentada, independente do cunho desta. Embora mais relacionada a guerras e insurreições, como aponta Giorgio Agamben, na obra Estado de Exceção2, poderia tal forma de governo ser utilizada como paradigma de governo na contemporaneidade O Estado não mais se encontra no estado de normalidade, não há mais as relações normais, cria-se uma exceção, uma ficção jurídica de suspensão do Direito, por meio de si mesmo, para sua preservação; encontra-se o Direito afastado para que seja preservado e retorne a imperar quando cessada a situação de necessidade. Todavia, o estado de exceção mantém sua relação com a soberania de forma estreita, pois cabe ao soberano a decisão do estado de exceção, de declará-lo como necessário, seja ele um único soberano ou grupo deles. Da suspensão do Direito não se pode inferir que o estado de Acadêmica do 3º ano do curso de Bacharelado em Direito da Universidade Estadual de Maringá, participante de Projeto de Iniciação Científica (PIC/UEM), sob orientação da professora Crishna Mirella de Andrade Correa, e do Núcleo de Estudos Constitucionais Prof. Zulmar Fachin (NEC/UEM). Brasil. Email: [email protected] 2 Agamben, Giorgio. Estado de Exceção (São Paulo: Boitempo, 2004). 1

44 • Direito de exceção e normalidade em Giorgio Agamben exceção é a anomia. O estado de exceção estaria melhor colocado na indeterminação do nomos e da anomia, ou seja, está dentro e está fora do direito concomitantemente3. Além disso, limitar o estado de exceção a guerras e insurreições e a forma de governo, geralmente uma ditadura, empregada para a defesa do Estado, não o expõe adequadamente4, já que não é apenas o estado forte diante de uma situação em que as leis não são seguidas de acordo com a normalidade. Por estar o Direito afastado, mas ainda existente há uma indeterminação dos atos praticados durante essa suspensão, uma vez que não executam nem criam o direito, simplesmente inexecutam uma ordem jurídica suspensa5. Entretanto, não se pode crer em um total afastamento do direito, pois mesmo que as leis estejam suspensas há a necessidade de uma ordem jurídica para que não haja o caos, há ainda um poder que mantém a ordem6. O fator que legitimaria essa ordem seria o que o autor denomina de força-de-lei, o que permite a mesma força de uma lei a atos necessários ao momento de afastamento do direito, que não seriam por si leis. Além de ser o elemento que permite a regulamentação por meio de decretos em um estado de exceção, criaria a ficção jurídica em que o direito buscaria trazer para si um estado que seria de anomia, a figura de seu próprio afastamento. A estrutura do estado de exceção torna-se o paradoxal estar-fora (anomia) e pertencer ao direito ao mesmo tempo, uma zona de indeterminação daquilo que é jurídico e do que não é. Muitos Estados optam por criar essa fictio para regular o estado de exceção e também garantir que durante uma crise não entre no caos, regulado por meio do próprio direito o instituto que criará forma quando ele for afastado, sendo uma forma de preservação do Estado. Todavia, alguns insistem na persistência desse estado indeterminado quando finda a crise, o que gera a problemática aqui tratada. O Direito se exerce através de duas formas de violência: pela Violência Instituidora do Direito, para impor sua ordem; e pela Violência Mantenedora do Direito, para manter a ordem que

Agamben, Estado de Exceção. 57. Agamben, Estado de Exceção. 75. 5 Agamben, Estado de Exceção. 78. 6 Agamben, Estado de Exceção, 54. 3 4

Andréia Fressatti Cardoso • 45 foi posta7. Mas, pela atuação da violência mantenedora, tem-se a decaída da violência instituidora, mantendo-se normas instituídas que perderam seu fundamento. O direito na exceção estaria assim, sem um fundamento, sem algo que lhe sustentasse durante a necessidade. Tem-se ordem e desordem; não se está no Estado de Direito, pois este está suspenso, mas muito menos se encontra no estado de natureza, já que ainda há direito. As leis vigem sem significar, não se aplicam as leis da normalidade, o que enseja ao fortalecimento do poder de decisão: o poder soberano. A soberania seria o poder de decisão quanto à exceção, ou seja, teria o poder de reativar ou suspender o direito8, sendo ela um fundamento cognitivo, antes de um poder supremo; o soberano é a vida do ordenamento da exceção. Uma vez dotado deste poder de decisão, assume o soberano uma figura de pater, aquele que, no Direito Romano, tinha o poder sobre a vida e a morte de todos aqueles que estavam sob sua proteção. Da mesma forma, possui o soberano na exceção o poder sobre a vida do indivíduo, podendo dela dispor em nome de um bem comum. Na exceção, está o indivíduo despido de significado, sendo sua vida protegida por ser do interesse do Estado que esteja vivo; uma vez que se torna ele uma ameaça, legitimará sua própria morte pelo soberano para a proteção dos demais indivíduos9. É a vida nua, a vida matável, mas não sacrificável10; e o soberano controla essa vida. A figura soberana vai além de simplesmente ter poder sobre vida e morte, ela representa a mescla da vida com o próprio Direito, com sua própria vida. Essa identificação entre soberano e lei significa a primeira tentativa de conexão entre aquele e a própria anomia em si e com a ordem jurídica11. Se durante a crise, a população busca um ente que seja capaz de lhe assegurar segurança, logo, será seguido pela maioria aquele que exercer sua função de protetor durante a necessidade12. O exerWalter Benjamin, “Para uma Crítica da Violência” in: Escritos sobre Mito e Linguagem, ed Walter Benjamin (São Paulo: Editora 34, 2011). 8 Agamben, Estado de Exceção. 9 Foucault, “Direito de morte e poder sobre a vida”. 125 – 149. 10 Agamben, Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua (Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002). 11 Agamben, Estado de Exceção. 107. 12 Hobbes, Leviathan: with selected variants from the Latin edition of 1668. (United States of America: Hackett Publishing Company, 1994) 219. 7

46 • Direito de exceção e normalidade em Giorgio Agamben cício do poder voltou-se para a vida13, e o pater é aquele que protege e dispõe da vida dos que dele dependem. A legitimidade do soberano no momento de crise advém dessa capacidade de trazer a impressão de segurança em um momento de aparente caos, em que há ainda o direito, mas suspenso. São honrados os soberanos14, não devido a um certo carisma, mas por estarem eles dotados do poder de exceção, de suspensão e reativação da ordem plena, pelo poder sobre a lei15. Advém, assim, a legitimidade do soberano do seu poder de suspensão e reativação do direito e por ser o que restou da ordem que se tinha, um resquício do Estado de Direito. Representa ele a violência instituidora do direito em um momento em que falta fundamento às leis, mesmo com o direito presente, não sendo um estado de natureza. Está a violência presente e há certa aproximação do caos, sem contudo estar nele. Une-se a essa ideia, caminhando para a legitimação do soberano, também o conceito de auctoritas, oriunda do Direito Romano. O auctoritas, no âmbito privado, é aquele que dá validade ao ato de um sujeito que sozinho não pode realizar um ato jurídico válido; assim, ao ser o soberano o auctoritas, ele é o responsável pela validação dos decretos, que embora não sejam leis, possuam força para regulamentar a necessidade, tornando-se o que resta do direito16. O paradoxo da soberania17 está em estar dentro e fora do ordenamento: o soberano encontra-se dentro, uma vez que cabe a ele a decisão da suspensão das normas, mas fora, já que, por decidir a validade do ordenamento, seria externo a este. Também se caracteriza a exceção, que é um caso singular, já que excluído da norma geral, mas mantém relação com a norma (incluindo-se) através da suspensão. O soberano traz o fundamento que se busca para a instituição de uma nova ordem, contanto que seja para a necessidade. Legitima-se com essa nova violência instituidora a violência mantenedora que precisa ter o soberano para regularizar a crise e evitar que se volte completamente ao caos. Nesse contexto, é possível atriFoucault, “Direito de morte e poder sobre a vida”. 134. Hobbes, Leviathan: with selected variants from the Latin edition of 1668. 52. 15 Agamben, Estado de Exceção. 129. 16 Agamben, Estado de Exceção. 123. 17 Agamben, Giorgio, Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. 23. 13 14

Andréia Fressatti Cardoso • 47 buir ao soberano controle sobre liberdades que não seriam restritas na normalidade; há o abandono dessas liberdades, que não caracteriza a perda destas, mas na confiança desses poderes dos indivíduos ao soberano18, com o fim de que este atue pela coletividade. O Estado liga-se ao soberano, e este se indetermina com a própria vida. Isto se torna de grande utilidade na crise, porém fora da crise não há necessidade do pater uma vez reestabelecida a segurança nem a de dispositivos que interliguem ordem e desordem. Tornar-se-ia o Estado que mantivesse a suspensão da exceção como paradigma uma máquina letal19, manteria uma violência mantenedora do Direito que perdeu o seu fundamento. A exceção foi instituída pela crise, uma vez finda esta, resta apenas a violência que se utilizava para manter ordem em desordem. Em um estado de normalidade, as normas vigentes, expressas pelas assembleias representativas, possuem certa intangibilidade, inclusive em relação ao soberano20. Entretanto, uma vez em exceção, com o afastamento do Direito, não se fala mais em normas, pois estas não passaram pelo devido processo legal e, por serem geralmente regulamentos emitidos pelo poder soberano, sequer são provenientes do poder a que caberia a edição de leis. O soberano emitirá regulamentos para que não se caia em uma situação de caos, mas estes não se revestem de leis, e, mesmo que possuam a força que teria uma lei, não podem assim ser considerados. Remetemo-nos ao soberano hobbesiano21, responsável pela ordem, por regrar o comportamento de seus súditos, à figura de um ente forte que garante a lei por ter o poder de suspendê-la. Sua força provém do que Agamben denomina de força-de-lei, uma forma de empoderamento de leis que exclui o próprio conceito lei, dando coercibilidade aos regulamentos soberanos22. Esta força insere-se na zona de indeterminação criada pela exceção justamente para preservá-la23. Os regulamentos encontram-se fora do ordenamento, por não serem por si leis, mas são incluídos pela força-de-lei, o que nos permite inferir que os regulamentos soberanos também se encontram na zona de indeterminação que define a exceção. Agamben, Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. 66. Agamben, Estado de Exceção. 131. 20 Agamben, Estado de Exceção. 60. 21 Hobbes, Leviathan: with selected variants from the Latin edition of 1668. 22 Agamben, Estado de Exceção. 61. 23 Hobbes, Leviathan: with selected variants from the Latin edition of 1668. 18 19

48 • Direito de exceção e normalidade em Giorgio Agamben A força-de-lei permite a criação de um direito artificial, já que haverá regramentos para a situação, mas estes não constituem Direito da forma que o concebemos, por estarem afastadas as normas e sendo vigentes regulamentos que não são leis. Cria-se um direito de exceção, uma normatização da necessidade que não se utiliza de normas, que se exclui como ordenamento pela falta de leis, porém se inclui como forma de normatização para a situação fática. No Estado de normalidade a presença da violência, monopólio estatal24, tem duas funções: instauração do direito e sua garantia. Uma violência fora do Direito, portanto, implicaria uma ameaça à ordem posta, ao próprio Estado; porém, diante da necessidade, esvazia-se o conteúdo da violência instauradora da ordem que estava posta, e, estando esta afastada, não há mais fundamento para sua violência mantenedora, que também se afasta. Faz-se necessária uma violência instauradora de ordem, estabelecendo um novo fundamento para as relações de poder, um direito de exceção. A força-de-lei pode ser vista como uma força instauradora do direito, uma vez que empodera regulamentos, sem roupagem de normas, como se o fossem, permitindo que estes exerçam a mesma coercibilidade que exerceriam as normas dentro de um estado de normalidade, e reconhecem as relações que se mantiveram mesmo com a exceção25. A partir do momento em que se atribui a esses regulamentos tal força, instaura-se um novo direito, uma regulamentação fora da ordem anteriormente posta, portanto, uma violência instauradora. Para a manutenção desse novo direito, faz-se necessária a violência mantenedora. Essa violência pode se dar por diversos meios, e, na exceção, justifica medidas que restrinjam direitos individuais dos cidadãos, mesmo aqueles antes, na ordem anterior, tidos como indisponíveis, e a sua fiscalização é legítima. A força-de-lei, como forma de violência, atende à demanda da exceção, incluindo-se no ordenamento antes vigente para excluí-lo e instaurando uma ordem que perdure durante a necessidade. Porém, a problemática se visualiza a partir do momento em que perdura essa violência, pois quanto mais cresce esta última, mais distante fica aquela que instaurou a ordem. Na exceção há um rigorismo em se cumprir os regulamentos instaurados, mas a fiscalização destes vai se sobrepondo ao próprio motivo de instaurá-los; e, uma vez finda a situação 24 25

Benjamin, “Para uma Crítica da Violência”. 127. Benjamin, “Para uma Crítica da Violência. 131.

Andréia Fressatti Cardoso • 49 de necessidade, a violência desses regulamentos perde seu sentido, havendo total afastamento do que as instaurou, a tal ponto em que entra a instituição, nas palavras de Benjamin26, em decadência. O retorno à ordem anterior, ou até mesmo a uma nova ordem que trate da normalidade seria natural com a decadência do direito de exceção. Este perdeu sua justificação, assim resta-lhe o fim, que seja subjugado por uma nova violência instauradora e que possa ser aplicado o Direito novamente, não sendo justificado a manutenção de uma exceção artificial. Quando retorna-se à normalidade, não há mais crise nem as exigências de decisão que esta exige. Porém, sem um fundamento, o Estado não poderia mantê-la por muito tempo, tendo que recorrer a uma ficção jurídica, que prolongaria a indeterminação de poderes, o império da vida nua e a insegurança, ou, segundo Arendt27, o terror; tudo o que fundamenta e mantém a exceção, sob a indeterminação constante de anomia e nomos. A artificialidade dessa ficção pode ser revelada quando o fundamento está em um inimigo comum criado, contra o qual deve o Estado se proteger para que este não atente contra seu ordenamento. Há uma descaracterização da exceção, que seria uma forma de resguardar o ordenamento e garantir o retorno da Constituição em sua plena eficácia28, para um modo de se manter o controle sobre as pessoas em nome de suposta preservação do Estado, mantendo seu status de vidas nuas29. Sendo assim, há uma violência pura, na ideia benjaminiana; violência fim, não mais meio para manter a ordem jurídica; seria a instituição de uma nova ordem, o direito de exceção como paradigma 30. Para buscar a compreensão deste novo paradigma, retomemos alguns conceitos utilizados para caracterizar o estado de exceção. Primeiramente, este instituto cria uma ficção jurídica para que se afaste o Direito, através dele mesmo, passando a imperar a força-de-lei, que garante que regulamentos atuem como se fossem leis. Fica evidente o destaque da decisão, uma vez que deixa a garantia do devido processo legal em busca de uma resposta rápida; o que leva à valorização do Poder Executivo e à concentração dos Benjamin, “Para uma Crítica da Violência”. 137. Arendt, Hannah, Origens do Totalitarismo (São Paulo: Companhia das Letras, 1989). 335 – 531. 28 Agamben, Estado de Exceção. 20. 29 Agamben, Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. 30 Agamben, Estado de Exceção. 18. 26 27

50 • Direito de exceção e normalidade em Giorgio Agamben demais poderes em sua figura, passando a ser um Poder Soberano, na acepção hobbesiana31. Muito embora trate-se de uma figura da contemporaneidade, o soberano da exceção se assemelha em alguns traços com o soberano absolutista colocado por Hobbes ao mesmo tempo em que é mais do que mero protetor, é o próprio pater, aquele que tem direito sobre a vida e a morte dos que estão sob sua guarda32. Também é o soberano o legislador, aquele que na exceção edita regulamentos válidos como leis, uma vez dotados da força-de-lei, mas deles dispõe como aprouver, estando dentro e fora do ordenamento ao mesmo tempo, pois este lhe legitimou a estar fora dos próprios regulamentos que edita. Embora o soberano hobbesiano não mais seja considerado como modelo para os Estados ocidentais, ao se admitir a utilização de um regulamento de defesa do ordenamento para regrar situações que, em si, já deixaram de regulamentar a crise, seria permitir um soberano que dispusesse de normas de acordo com o que julgar necessário ao Estado, e que se coloca acima destes, não precisando seguir seus editos33. Além disso, ao tornar cada vida dentro de seu território vida nua, passa o soberano não somente a decidir sobre normas que não são normas, mas também sobre a vida e a morte daqueles sob sua guarda. O soberano que faz uso desse paradigma mantém a zona de indeterminação gerada pela exceção, porém, é de todo o contexto do Estado, pois a população também se encontra na indeterminação de estar protegida pelo soberano ao mesmo tempo em que este possui o direito de dispor da vida e da morte daqueles sob sua guarda. Há uma zona de insegurança, em que não se sabe quem é o inimigo ou se pode se tornar o inimigo. É o terror que domina no paradigma de exceção, a insegurança de permanecer na indeterminação de ser útil hoje, amanhã meramente supérfluo. Arendt expôs a ideia de total disposição do poder soberano sobre a vida dos que estão sob sua guarda, exemplificando com decisões soberanas que acarretaram a eliminação de grupos populacionais inteiros meramente por serem tidos como desnecessários aos objetivos do governo34. Essa ideia Hobbes, Leviathan: with selected variants from the Latin edition of 1668. 6 – 233. 32 Foucault, “Direito de morte e poder sobre a vida”. 33 Hobbes, Leviathan: with selected variants from the Latin edition of 1668. 34 Arendt, Origens do Totalitarismo. 370. 31

Andréia Fressatti Cardoso • 51 remete-nos diretamente à ideia de vida nua: ela atende aos interesses do governo e está sob sua custódia, portanto insacrificável; mas plenamente matável, afinal está viva e, se do interesse do governo, precisa ser eliminada35. O ser humano é retirado de sua humanidade, sem deixar de ser homem; é a uma vida supérflua, humana, por ser um ser humano, vivente, constituído como tal, mas também não o é, pois foi dele retirado traços de humanidade36. A vida nua é disponível e, se assim aprouver ao Estado, será dispensada. Observa-se que a problemática da exceção como paradigma encontra-se principalmente na indeterminação dos conceitos jurídicos, a começar pelo próprio conceito de ser humano. Uma constituição que se baseie na concepção de ser humano pode ser indeterminada por completo quando o governo questionar o que poderia ser considerado humano. Arendt já afirmava que só se pode falar em direitos humanos quando o ordenamento reconhecer uma pessoa como humana37; quando se relativiza esse conceito, exclui-se parte da população da própria proteção constitucional. E a indeterminação continua nos demais institutos da exceção como paradigma, desde a definição de soberano, de seus súditos e até mesmo do processo de validação dos regulamentos. A normalidade exige o devido processo legal e suas garantias, mas a exceção afasta o próprio fundamento do devido processo, e a sua utilização como paradigma mantém esse afastamento. A força-de-lei é utilizada como violência mantenedora de regulamentos soberanos, porém em um momento em que se esvaiu a violência instituidora, sendo apenas violência para se manter o poder posto. O soberano, em busca de proteção e guarda dos que estão dentro de seu território, cria uma situação de terror, para manter seu fundamento fictício, mas gera um ciclo de insegurança, pois, afinal quem é esse inimigo? Ele não tem face, é uma figura que não se demonstra como ser, jamais uma pessoa em específico. É o inimigo outro conceito indeterminado que vai gerar uma série de regulamentos baseados em novos termos indeterminados. E essas cláusulas, por poderem indeterminar os demais conceitos, farão com que existam apenas termos jurídicos indeterminados38. Agamben, Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Arendt, Origens do Totalitarismo. 498. 37 Arendt, Origens do Totalitarismo. 38 Agamben, Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. 179. 35 36

52 • Direito de exceção e normalidade em Giorgio Agamben A indeterminação da ordem jurídica permite que se mantenha o estado em constante terror, que a população continue a abandonar seus direitos para um ente soberano que os tutele, mesmo que a própria guarda oferecida pelo soberano lhes indetermine. O inimigo seria a vida indigna de ser vivida39 e, como tal, totalmente disponível pelo soberano e que deve ser neutralizado; ou seja, tornar-se inimigo seria ter decretada sua vida como vida nua. Esse terror, mesmo que fictício, de que o Estado pode sucumbir se não houver a neutralização do inimigo, é o que dá legitimidade ao paradigma da exceção, uma ficção de perigo que convence as massas de que a atuação do soberano forte faz-se necessária. Entretanto, a manutenção desse terror se dá por movimento40, e a legitimidade do paradigma de exceção também está submetida, consequentemente, ao constante movimento. Desta feita, é necessário sempre haver movimentação contra um inimigo, e quando este for neutralizado, para manter o terror, cria-se a figura de um novo inimigo que precisa ser neutralizado. Assim, o paradigma da exceção seria a indeterminação dos conceitos e a manutenção da insegurança que estes trazem. Termos indeterminados permitem a discricionariedade do poder soberano, e este utilizará de tais termos para realizar seus fins. Porém, quando o fim de um Estado está na sua própria proteção, através do controle total dos que estão em seu território, serão esses termos legitimadores da violência mantenedora do Direito que se esvaiu da instituidora, da violência pura. A exceção exige um soberano forte para manter a segurança na crise, um pater; na normalidade a exigência é pela divisão dos poderes, por garantias que permitam a liberdade frente ao Estado. A segurança legislativa é palavra de ordem em um Estado de Direito, representada pelo devido processo legal, e, a aplicação do paradigma do estado de exceção é manter um espaço de indeterminação, em que impera um fundamento cognitivo que não atribui mais significado. O soberano da exceção não consegue prolongar a ficção de segurança sem que deixe o patamar da incerteza: ou retorna à ordem, ou sofrerá novamente pelo processo de perda de fundamentação da violência que se utiliza para manter a estabilidade que conseguiu, sendo necessária uma nova violência instituidora, 39 40

Agamben, Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. 145. Arendt, Origens do Totalitarismo. 356.

Andréia Fressatti Cardoso • 53 outra exceção. Porém, se criar uma ficção de que há uma suposta necessidade, poderá manter esse estado de indeterminação, mantendo o controle sobre a população, mesmo que para isso mantenha insegurança e terror. O terror deixaria em suspenso a condição da população como figura útil ao Estado, podendo se tornar inimigo a qualquer instante e ser declarada como vida nua. Observa-se, desta forma, que a problemática do paradigma de exceção encontra-se principalmente na indeterminação dos conceitos jurídicos, que geram toda a indeterminação necessária para que atue o soberano com violência pura. Por mais democrático que pudesse se declarar um Estado, ao fazer uso de termos indeterminados para exercer controle sobre sua população, está utilizando do paradigma da exceção, tornando todos vida nua, todos sujeitos a processos do Estado sem necessitar da garantia; afinal não impera o direito da normalidade, mas o da exceção.

Referências Agamben, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. Agamben, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. Arendt, Hannah. Origens do Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. 337 – 531. Benjamin, Walter. “Crítica da Violência – Crítica do Poder”. In: Documentos de Cultura, Documentos de Barbárie: escritos escolhidos, edited by Willi Bolle, 160 – 175. São Paulo: Cultrix, Editora da Universidade de São Paulo, 1986. Benjamin, Walter. “Para uma Crítica da Violência”. In: Escritos sobre Mito e Linguagem, edited by Jeanne Marie Gagnebin, 121 - 156. São Paulo: Editora 34, 2011. Benjamin, Walter. “Teorias do Fascismo Alemão”. In: Documentos de Cultura, Documentos de Barbárie: escritos escolhidos, edited by Willi Bolle, 130 – 137. São Paulo: Cultrix, Editora da Universidade de São

54 • Direito de exceção e normalidade em Giorgio Agamben Paulo, 1986. Foucault, Michel. “Direito de Morte e Poder sobre a Vida”. História da Sexualidade I: A Vontade de Saber, edited by Michel Foucault, 125 – 149. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1985. Foucault, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1982. Foucault, Michel. Nascimento da Biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008. Hobbes, Thomas. Leviathan: with selected variants from the Latin edition of 1668. United States of America: Hackett Publishing Company, 1994. 6 – 233. Kafka, Franz. O Processo. São Paulo: Círculo do Livro, [s. d].

CONSTITUCIONALISMO GLOBAL E AS INTERAÇÕES ENTRE DIREITO INTERNACIONAL E DIREITO INTERNO:

REVISÃO NECESSÁRIA DO PAPEL DOS TRÊS PODERES NA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA1* Fabrício Bertini Pasquot Polido Lucas Costa dos Anjos

Considerações iniciais Apesar de reconhecido em diversos âmbitos da ordem jurídica interna brasileira, o debate sobre a relação entre Direito Internacional e Direito Interno, como importante tópico nas disciplinas do Direito Constitucional e do Direito Internacional, carece de revisão. Em tempos da chamada “governança global”, Estados, organizações internacionais e indivíduos são crescentemente vinculados à observância das normas internacionais. Enquanto destinatários de direitos e de obrigações na ordem internacional, esses sujeitos ocupam posição de destaque no cumprimento, no respaldo, e na garantia do Direito Internacional no âmbito interno dos Estados. É no contexto interno que o Estado exerce seus direitos, em resposta à soberania, à territorialidade e aos poderes de legislar e de julgar, com vistas à materialização da justiça. Especialmente no que Este artigo é resultado de pesquisas desenvolvidas pelos autores no âmbito do projeto estruturante “Estado e Mundialização: Fronteiras do Trabalho e das Tecnologias”, vinculado à Linha “Estado, Razão e História”, do Programa de Pós-Graduação em Direito, da Universidade Federal de Minas Gerais, e do Grupo “Estado, Relações Privadas Transnacionais nas Fronteiras da Tecnologia e Inovação”, do Departamento de Direito Público da UFMG. Fabrício Bertini Pasquot Polido ([email protected]) é Professor Adjunto de Direito Internacional da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Professor do Corpo Permanente de Pós-Graduação em Direito da UFMG e Doutor em Direito Internacional pela USP. Lucas Costa dos Anjos (lucascostaanjos@ gmail.com) é mestrando e graduado em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) 1

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56 • Constitucionalismo global e as interações entre Direito Internacional... diz respeito à Constituição Federal de 1988, é necessário revisar os papeis atribuídos aos três poderes da organização do Estado brasileiro nas relações internacionais, de forma a aproximá-los da ideia de um constitucionalismo global. Ainda que o Brasil privilegie contemporaneamente uma solução consentânea com a aceitação e com a observância de normas internacionais, em particular no domínio do Direito Internacional dos Direitos Humanos, as divergências entre monismo e dualismo ainda despertam incongruências. Além da interdisciplinaridade que apresenta (ciência política, relações internacionais e direito constitucional), também se evidencia a falta de diálogo entre poderes constituídos no Estado, como entre Legislativo e Executivo. A exemplo do que se manifesta normativamente no caso da Constituição Federal brasileira, atribui-se competência para negociação e celebração de tratados e acordos internacionais ao Chefe do Executivo2, e competência de aprovação desses instrumentos no plano interno ao Congresso Nacional3. Como ocorre também em outros ordenamentos, essa relação controvertida parece ser um problema, igualmente, de conflito ou BRASIL. Constituição Federal de 1988. Artigo 84: Compete privativamente ao Presidente da República: VII - manter relações com Estados estrangeiros e acreditar seus representantes diplomáticos; VIII - celebrar tratados, convenções e atos internacionais, sujeitos a referendo do Congresso Nacional. Disponível em: . Acesso em 29 de novembro de 2014. 3 BRASIL. Constituição Federal de 1988. Artigo 49: É da competência exclusiva do Congresso Nacional: I - resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional; II - autorizar o Presidente da República a declarar guerra, a celebrar a paz, a permitir que forças estrangeiras transitem pelo território nacional ou nele permaneçam temporariamente, ressalvados os casos previstos em lei complementar. [...] Artigo 52: Compete privativamente ao Senado Federal: IV - aprovar previamente, por voto secreto, após argüição em sessão secreta, a escolha dos chefes de missão diplomática de caráter permanente; V - autorizar operações externas de natureza financeira, de interesse da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Territórios e dos Municípios; VII - dispor sobre limites globais e condições para as operações de crédito externo e interno da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, de suas autarquias e demais entidades controladas pelo Poder Público federal; VIII - dispor sobre limites e condições para a concessão de garantia da União em operações de crédito externo e interno. Disponível em: . Acesso em 29 de novembro de 2014. 2

Fabrício Polido & Lucas dos Anjos • 57 de concorrência entre atribuições políticas e constitucionais, com efeitos tanto em relação ao cumprimento de obrigações do Estado no plano internacional (do que decorrem questões de responsabilidade do Estado), quanto à aplicação das normas internacionais pelos tribunais internos. Não havendo, portanto, equilíbrio ou complementaridade de atribuições, é possível que haja distorções e que esse modelo não seja desejável ou conveniente a países que reclamam espaço e inserção nas relações internacionais, como é o caso do Brasil4. Nesse contexto, este estudo pretende, primeiramente, estabelecer o quadro analítico dos poderes atribuídos pela Constituição Federal de 1988 aos poderes Legislativo, Judiciário e Executivo, no que tange às relações internacionais empreendidas pelo Brasil. Posteriormente, questionam-se a efetividade da atuação desses poderes, bem como a necessidade de revisão do atual modelo ou conformação de competências nos contextos nacional e internacional. Finalmente, o trabalho propõe a revitalização e um regime de convergência das competências de cada um dos poderes como elemento indutor de maior efetividade à inserção do Brasil nas relações internacionais, fomentando cooperação, desenvolvimento e adequação ao regime internacional de Direitos Humanos. Palavras-chave: Constitucionalismo global; Direito Internacional; pluralismo jurídico; fontes do Direito Internacional; relações internacionais; Direito Interno; monismo e dualismo; Direitos Humanos; Constituição de 1988.

Segundo Maria Helena de Castro Santos: “o processo de tomada de decisão de políticas fundamentais da agenda de governo do Brasil pós-Constituinte exibe baixa institucionalização dos mecanismos de interação dos atores e suas formas de representação de interesses. Isto, combinado às características dos sistemas eleitoral e partidário e do comportamento parlamentar dos partidos, ressalta a importância para a tomada de decisão dos atributos pessoais das lideranças do governo e da oposição, e mesmo da equipe econômica, de variáveis conjunturais em determinadas combinações e de mecanismos e procedimentos informais”. SANTOS, Maria Helena de Castro. Governabilidade, Governança e Democracia: criação de capacidade governativa e relações Executivo-Legislativo no Brasil pósconstituinte. In: Dados [online]. 1997, vol.40, n.3. Disponível em . Acesso em 29 de novembro de 2014. 4

58 • Constitucionalismo global e as interações entre Direito Internacional...

As relações entre os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário Entre os entes da federação, não há hierarquia, mas preponderância de interesses. A União cuida de interesses nacionais, os estados de interesses regionais, os municípios de interesses locais e o Distrito Federal é uma mescla de atribuições estaduais e municipais. É interessante notar que a Constituição Federal de 1988 é a única do mundo a conferir status de ente federado aos municípios. Nesse contexto, a soberania internacional não é da União, mas da República Federativa do Brasil. O equívoco de atribuição de soberania à União parte do artigo 21, I, da Constituição Federal, que afirma competir “à União celebrar tratado internacional e participar de organizações internacionais” 5. Um tratado internacional celebrado pela União pode estabelecer isenção de impostos estaduais e municipais. A União o celebra em nome da República Federativa do Brasil. O Poder Executivo é o mais proeminente no que diz respeito à atuação do país no âmbito da política externa, que reúne uma série de ações e medidas do Estado e que o permitem compartilhar suas experiências e demandas internas com outros Estados, bem como compatibilizar seu quadro interno com o contexto exterior. Atualmente, o modelo político presidencialista brasileiro oferece poucas prerrogativas constitucionais ao Legislativo em matéria de política externa. Se considerarmos períodos anteriores da história do Brasil, o Congresso já exerceu maior protagonismo na tomada de decisões no âmbito das relações internacionais6. BRASIL. Constituição Federal de 1988. “Art. 21: Compete à União: I - manter relações com Estados estrangeiros e participar de organizações internacionais; II - declarar a guerra e celebrar a paz; III - assegurar a defesa nacional; IV - permitir, nos casos previstos em lei complementar, que forças estrangeiras transitem pelo território nacional ou nele permaneçam temporariamente; Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: VIII - comércio exterior e interestadual; XIII - nacionalidade, cidadania e naturalização; XV - emigração e imigração, entrada, extradição e expulsão de estrangeiros.”. Disponível em: . Acesso em 29 de novembro de 2014. 6 Segundo Lúcio Alcântara, “à época do regime monárquico no Brasil, o Poder Legislativo desempenhava um papel de maior protagonismo na formulação de nossa política externa. Considerando o Tratado de Comércio e Navegação firmado 5

Fabrício Polido & Lucas dos Anjos • 59 No Brasil, de acordo com o artigo 49 da Constituição Federal, cabe ao Poder Legislativo aprovar os textos de tratados e de acordos internacionais; autorizar Executivo a declarar guerra, celebrar a paz, a permitir que forças estrangeiras transitem pelo território nacional ou nele permaneçam temporariamente; aprovar operações relativas a financiamento e dívida externa (prerrogativa do Senado7); manifestar em negociação e em renegociação da dívida externa; e aprovar lei complementar versando sobre dívida pública externa e interna, incluída a das autarquias, fundações e demais entidades controladas pelo Poder Público. Esse conjunto de regras, no entanto, estabelece poucos incentivos à atuação do Legislativo na temática internacional. Há poucas prerrogativas constitucionais e concentração decisória no Poder Executivo, que tem monopólio sobre a formulação e a condução da política externa e de defesa do Brasil, por meio do Ministério das Relações Exteriores8. Além disso, o modelo econômico nacional-desenvolvimentista e de substituição de importações em vigor até o final da década de 1980 criou agentes econômicos niticom a Inglaterra em 1827, assim como um certo número de outros instrumentos comerciais, celebrados à época da independência, lesivos aos interesses nacionais, o Senado não hesitou em rejeitar por unanimidade a renovação do Tratado de Comércio com a Áustria daquele mesmo ano. Assim também foi rejeitado pela Câmara dos Deputados o Tratado de Comércio com Portugal, celebrado em 1836, que nem sequer passou pelo crivo do Senado. A rejeição destes tratados pelo Parlamento exerceu notável influência sobre a formulação de diretrizes de nossa política externa, levando o Governo a não mais celebrar tratados de comércio com as grandes potências, visto que elas não observavam o princípio da reciprocidade e que faziam valer as estipulações apenas a seu favor”. ALCÂNTARA, Lúcio. Os parlamentos e as relações internacionais. In: Revista Brasileira de Política Internacional [online]. 2001, vol.44, n.1, pp. 13-21. Disponível em: . Acesso em 29 de novembro de 2014. 7 BRASIL. Constituição Federal de 1988. Artigo 52: Compete privativamente ao Senado Federal: V - autorizar operações externas de natureza financeira, de interesse da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Territórios e dos Municípios; VII - dispor sobre limites globais e condições para as operações de crédito externo e interno da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, de suas autarquias e demais entidades controladas pelo Poder Público federal; VIII - dispor sobre limites e condições para a concessão de garantia da União em operações de crédito externo e interno; 8 OLIVEIRA, Amâncio Jorge de. Legislativo e Política Externa: das (in) conveniências da abdicação. In: Working Papers Caeni. N.3, 2003, p.1-16.

60 • Constitucionalismo global e as interações entre Direito Internacional... damente voltados para o mercado interno e para o protecionismo, o que dificulta ainda mais a preocupação da pauta internacional pelo Poder Legislativo. O baixo interesse dos parlamentares em temas de política exterior é patente, visto que eles são de significativa complexidade e de baixo apelo eleitoral9. Como consequência, persiste a inconveniência da ausência de debate aprofundado e a manutenção do status quo da relação interinstitucional na área da política externa. Não há, na Constituição de 1988, um mecanismo de controle e freios e contrapesos no processo de tomada de decisões em matéria de política externa, o que pode acarretar desvantagens ao Brasil no que diz respeito à formulação de suas relações internacionais. Seria o modelo estadunidense comparável? Quanto às vantagens e as desvantagens do modelo adotado nos Estados Unidos, é possível afirmar que: o Congresso (Poder Legislativo) foi fortalecido no âmbito da política externa; há consultas periódicas no processo de formulação e de condução das relações internacionais; há maior assertividade no Poder Legislativo; e que há constrangimentos institucionais para equilibrar as forças entre os poderes. O modelo adotado nos Estados Unidos aponta para o papel relevante de controle e freios e contrapesos do Congresso em relação ao Poder Executivo10. O Congresso norte-americano é emblemático, entre regimes presidencialistas, como efetivo contrapeso ao Poder Executivo11. Nos Estados Unidos, existe dissenso quanto ao efetivo papel desempenhado pelo Congresso norte-americano em decisões de política externa. No Brasil, o que se observa é certa Segundo Amâncio Jorge de Oliveira: “o Legislativo pode ser visto como exemplo emblemático de abdicação, ou na melhor das hipóteses de delegação das prerrogativas de formulação e condução de política externa”. Cf. OLIVEIRA, Amâncio Jorge de. Legislativo e Política Externa, cit., p.4 10 Para Lúcio Alcântara, “com o crescimento do interesse popular pelos temas de política externa nos Estados Unidos, estes passaram a atrair as atenções dos parlamentares e a integrar as pautas das campanhas eleitorais. A questão ambiental e a guerra do Vietnã foram, sem dúvida, pontos de inflexão na agenda parlamentar norte-americana”. ALCÂNTARA, Lúcio. Os parlamentos e as relações internacionais. In: Revista Brasileira de Política Internacional [online]. 2001, vol.44, n.1, pp. 13-21. Disponível em: . Acesso em 29 de novembro de 2014. 11 Cf. Amâncio Jorge de OLIVEIRA. Legislativo e Política Externa, cit., p.5. 9

Fabrício Polido & Lucas dos Anjos • 61 fraqueza e ausência de continuidade dos comitês interministeriais brasileiros. A análise da assertividade congressual, no entanto, deve ser levada em conta a partir de uma perspectiva dinâmica, em ciclos temporais – momentos de ativismo e de complacência e inércia do Congresso – e dos temas das relações da política externa. Modulação temporal pode ser justificada por meio do perfil do presidente, da composição do Congresso e do ambiente político externo. Além disso, os temas variam de acordo com sua importância para a pauta ou para a agenda das negociações internacionais (critical issue perspective). Há temas de apelo popular, que induzem o Poder Legislativo a atuar positivamente (reação da população e do eleitorado), assim como se observam graus de dissenso entre Legislativo e Executivo, que se ampliam na medida em que temas críticos se estabelecem. Na sistemática dos atos internacionais estabelecida pela Constituição de 1988, o Congresso Nacional tem atribuições meramente formais, de deliberação sobre o texto de tratados e de convenções negociadas e celebradas segundo a competência exclusiva do Presidente da República. No que diz respeito ao Poder Legislativo e à conclusão de tratados, os instrumentos jurídicos que existem à disposição do Poder Legislativo não se limitam somente à tarefa de autorização ou rejeição de tratados internacionais assinados pelo Poder Executivo, como previsto na Constituição Federal. Entre essas outras ferramentas jurídicas, está a capacidade de sugerir emendas, questão que ainda é motivo de polêmicas entre estudiosos dessa área. Entretanto, entende-se que é possível o instituto do emendamento parlamentar a texto de tratado internacional, guardadas suas particularidades quando comparado ao emendamento comumente observado nas Casas do Congresso Nacional. Os demais instrumentos jurídicos de ação do Poder Legislativo em matéria de política externa também são discutidos, entre eles a análise da dívida externa12. A interação entre o Direito Internacional e o Direito Interno também é particularmente relevante no que diz respeito ao absenFARES, Seme Taleb. Democratização da política externa brasileira : o papel do Legislativo. Brasília: UnB, 2005. Disponível em: . Acesso em 29 de outubro de 2014. 12

62 • Constitucionalismo global e as interações entre Direito Internacional... teísmo do Poder Legislativo em relação a temas contemporâneos da agenda brasileira de política externa. A insuficiência do processo dialógico entre Poder Executivo e Poder Legislativo termina por afetar a compreensão de como o processo legislativo interno poderia ser aperfeiçoado pelas incursões em temas da globalidade, como a proteção do meio-ambiente e dos Direitos Humanos, a regulamentação dos direitos de propriedade intelectual, e a universalização das formas de incentivo à ciência, à tecnologia e à inovação nos estados13. Além disso, fenômenos como a paradiplomacia e a cooperação entre distintos níveis federalistas (municípios, estados federados, províncias e regiões) no plano internacional também intensificam as rupturas do modelo tradicionalmente adotado pela Constituição brasileira. Para Maria Helena de Castro Santos, “o padrão de interação Executivo/Legislativo se apresenta como crucial e pode constituir-se em importante gargalo da capacidade governativa do Brasil recém-democratizado”14. A interação que mantém as demandas domésticas e políticas públicas de um Estado e sua atuação no plano internacional é aspecto fundamental no que diz respeito à relação No que diz respeito à participação do Poder Legislativo na tomada de decisões em âmbito internacional pelo Brasil: “é patente o crescente anseio de participação da sociedade civil nos processos decisórios internacionais. Exemplo dessa tendência são os movimentos populares contrários à globalização presentes inicialmente em Seattle, por ocasião da fracassada Conferência Ministerial da Organização Mundial do Comércio (OMC), que lançaria a Rodada do Milênio, e mais recentemente em Washington, quando da reunião do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial. As raízes de tais manifestações estão, sem dúvida alguma, no chamado déficit democrático a caracterizar decisões capazes de provocar profundos impactos no dia a dia do cidadão comum. Daí a necessidade de criação de mecanismos que permitam a participação do Parlamento no processo decisório levado a cabo nos foros internacionais.” ALCÂNTARA, Lúcio. Os parlamentos e as relações internacionais. In: Revista Brasileira de Política Internacional [online]. 2001, vol.44, n.1, pp. 13-21. Disponível em: . Acesso em 29 de novembro de 2014. 14 SANTOS, Maria Helena de Castro. Governabilidade, Governança e Democracia: criação de capacidade governativa e relações Executivo-Legislativo no Brasil pós-constituinte. In: Dados [online]. 1997, vol.40, n.3. Disponível em . Acesso em 29 de novembro de 2014. 13

Fabrício Polido & Lucas dos Anjos • 63 entre Direito Internacional e Direito Interno15. Esse tema transcende a relação entre os poderes Executivo e Legislativo no campo da política externa, e especificamente, o envolvimento deste último, por exemplo, em questões substanciais nas negociações internacionais (multilaterais e bilaterais) em torno da elaboração e produção das normas internacionais. Após mais de quatro décadas, o tratamento do tema pelo Poder Judiciário também parece anacrônico e distante dos paradigmas contemporâneos do pluralismo jurídico e da legitimidade discursiva das normas internacionais. A título de exemplificação, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, no Recurso Extraordinário nº 80.00416, que, na hipótese de conflito entre tratado e lei interna posterior, deve prevalecer a norma de Direito Interno, ainda que o Brasil possa ser responsabilizado internacionalmente pela violação de obrigações internacionalmente assumidas, em total desacordo com a racionalidade da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados de 1969 e de princípios fundantes da Carta da Nações Unidas. Não havendo na Constituição dispositivo expresso sobre a prevalência ou a primazia dos tratados, os tribunais estariam obrigados a emprestar eficácia ao Direito Interno, porque oriundo do Congresso Nacional, poder representativo da soberania nacional. As demandas da sociedade internacional, na atualidade, entre as premissas do constitucionalismo global e dos princípios de governança no Direito Internacional (democracia, transparência, responsabilidade, proteção dos Direitos Humanos, participação da sociedade civil e das redes de cooperação transnacionais) reclamam novas abordagens17. Cf. fundamentalmente, Amâncio Jorge de OLIVEIRA. Legislativo e Política Externa: Das (in)conveniências da abdicação: Working Papers Caeni N.3, 2003, p.1-16 Disponível em . Acesso em 29 de novembro de 2014. 16 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Recurso Extraordinário nº 80.004. Rel. Min. Xavier de Albuquerque. Publicação em 1º de junho de 1997. 17 Segundo Maria Helena de Castro Santos: “a reforma do Estado e a redefinição de suas funções são imprescindíveis tanto para a adaptação ao novo ordenamento econômico e financeiro mundial como para a adequação do Estado à nova sociedade e às novas formas políticas de representação de interesses”. SANTOS, Maria Helena de Castro. Governabilidade, Governança e Democracia: criação de capacidade governativa e relações Executivo-Legislativo no Brasil pós15

64 • Constitucionalismo global e as interações entre Direito Internacional... Os casos de conflito e de colisão entre fontes, muitas vezes relembrados pelas doutrinas juspublicista e jusprivatista internacional, são baseados na concorrência de soluções materiais para fatos e relações da vida internacional da pessoa – normas de Direito Internacional e de Direito Interno que apresentam soluções distintas, que se contrapõem e se opõem no plano temporal e espacial. Aqui, destaca-se o papel do juiz nacional, que deverá recorrer aos métodos de interpretação e aos princípios de hermenêutica para solucionar o conflito potencial ou emergente. No limite, trata-se de conflito de fontes, colocando em evidência distintas percepções valorativas do legislador nacional e dos negociadores internacionais, entre política legislativa interna e política de relações internacionais e diplomáticas. Juízes e tribunais são, portanto, chamados a identificar a modalidade de ingresso e de aplicação das normas e sua hierarquia perante o ordenamento interno; e criticamente, examinar e antever as consequências distorcidas, no plano internacional, da má incorporação, integração ou aplicação das normas internacionais, ou de sua inadequada localização hierárquica no ordenamento interno. Quando o juiz interno confronta-se com a aplicação das normas internacionais, invocadas em concreto no caso ou litígio apresentado, é necessário identificar a forma de entrada ou ingresso de da norma internacional no ordenamento doméstico. Nesse contexto, as normas internacionais vinculam o Estado nas relações internacionais e internas. Como, então, referir-se às normas internacionais, se particulares podem invocá-las? E em que medida os tribunais podem aplicá-las?

Considerações finais: perspectivas de modernização e de complementaridade As normas de Direito Interno são criadas segundo competências e procedimentos reconhecidos pelas constituições domésticas dos Estados (portanto, de acordo com dispositivos constitucionais), e são destinadas à regulamentação dos fatos e das relações jurídicas submetidas a uma supremacia territorial. As normas de constituinte. In: Dados [online]. 1997, vol.40, n.3. Disponível em . Acesso em 29 de novembro de 2014.

Fabrício Polido & Lucas dos Anjos • 65 Direito Internacional Público, por sua vez, são elaboradas e produzidas pelos Estados e pelas organizações internacionais, destinadas a regular as relações internacionais, e de acordo com as respectivas competências atribuídas a esses sujeitos na ordem internacional, como as competências atribuídas pelas constituições domésticas (Estados) e as competências atribuídas por estatutos constitutivos (organizações internacionais). Desse contexto, decorre a consequência mais importante da interação: Estados, organizações internacionais e indivíduos passam a ser vinculados ao cumprimento das normas internacionais e fazê-las cumprir, sobretudo enquanto sejam destinatários de direitos e obrigações na ordem internacional. A tendência contemporânea é rechaçar a teoria da transposição das normas internacionais, e admitir sua incorporação automática e eficácia obrigatória no ordenamento interno18. Há distinção entre normas de aplicação imediata (ou autoaplicáveis - self-executing) e normas de aplicação não imediata. Essa diferença sempre pressupõe estarem as normas internacionais aptas à produção de efeitos no ordenamento doméstico, de modo que o Estado se vê obrigado e vinculado, de acordo com os requisitos que estabelece sua Constituição e com os próprios dispositivos do ato internacional em consideração19. Sobre esse tema, Napoleão Miranda afirma que: “De modo como esse processo está ocorrendo, em particular pela vinculação crescente dos Estados aos organismos internacionais com poder de ingerência sobre a definição de políticas públicas internas, estaria se produzindo, na prática, uma limitação à soberania dos Estados, exigindo, portanto, uma redefinição do alcance da soberania dos Estados no plano internacional, de forma a dar conta da nova realidade. O exemplo mais significativo desse fenômeno, parece-nos, é aquele relativo ao longo processo de constituição da União Europeia, o qual há mais de uma década – desde o Tratado de Maastrich, em 1991, com a constituição do Banco Central Europeu, responsável pela formulação de uma política monetária única na zona de abrangência do euro – vem conformando um amplo conjunto de instrumentos jurídicos, políticos e econômicos que demandam dos Estados que a eles aderem uma limitação, embora não eliminação, da sua soberania para, de forma autônoma, definir os diversos mecanismos de gestão da ordem pública nacional”. Miranda, Napoleão. Globalização, soberania nacional e direito internacional. Revista CEJ, América do Norte, 8 7 12 2004. Disponível em . Acesso em 29 de novembro de 2014. 19 Observando a técnica do Direito Internacional Público e Direito Constitucional, em matéria de tratados, exige-se manifestação expressa e formal 18

66 • Constitucionalismo global e as interações entre Direito Internacional... Essa matéria, especificamente, é muitas vezes deixada para a interpretação pelos tribunais superiores (ou de instância de revisão constitucional) nos Estados que admitam a incorporação automática dos tratados, divergindo, sobretudo, em relação ao momento em que aquela ocorre: i) desde a ratificação do tratado, autorizada pelo órgão legislativo (minoritária); ou ii) desde o momento do efetivo depósito do instrumento de ratificação pelo Poder Executivo na autoridade depositária, com o que o tratado entra em vigor no plano internacional. No entanto, observa-se que deve haver maior participação entre os diferentes Poderes no que diz respeito à elaboração, à assunção e à aplicação de obrigações internacionais. Nos tribunais, é necessário haver maior reflexão sobre as normativas internacionais e seu efetivo status no ordenamento jurídico nacional, bem como elaborar redes de cooperação entre tribunais, associações de magistrados e auxiliares da Justiça. No âmbito do Poder Executivo, é necessário convocar maior envolvimento dos congressistas nas agendas de política externa brasileira. Isso pode ser realizado, inicialmente, por meio de iniciativas como o Livro Branco da Política Externa Brasileira, do Ministério das Relações Exteriores, que convocou membros da sociedade civil e de diversos setores do Poder Público em sua elaboração. No Congresso Nacional, é preciso elaborar projetos de lei em consonância com as atuais tendências de temas sensíveis da agenda internacional contemporânea. Nesse sentido, faz-se fundamental verificar as discussões em curso na Organização Internacional do Trabalho, no Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, entre outras. Por meio de ações coordenadas, e não meramente subordinadas, é possível promover efetiva participação dos três poderes na formulação da agenda internacional brasileira. A concretização da vontade do Estado, que se concretiza por meio de ato complexo exteriorizando a soberania interna no plano internacional. Em geral, o Poder Executivo, representado por Chefes de Estado, chefes de governo e ministérios das relações exteriores, negocia e conclui os tratados; ao Poder Legislativo (parlamento ou congresso) cabe autorizar a conclusão e ratificação do tratado convencionado pelo Estado em suas relações exteriores. Com relação à norma internacional consuetudinária, o respeito dá-se pela observância, prática dos órgãos internos ou aceitação, pelo silêncio, da prática dos demais.

Fabrício Polido & Lucas dos Anjos • 67 de um constitucionalismo global depende, primeiramente, de uma revisão dos papeis dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário na Constituição Federal de 1988.

Referências ALCÂNTARA, Lúcio. Os parlamentos e as relações internacionais. In: Revista Brasileira de Política Internacional  [online]. 2001, vol. 44, n.1, pp. 13-21.  Disponível em: . Acesso em 29 de novembro de 2014. BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível em: . Acesso em 29 de novembro de 2014. CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. A interação entre o direito internacional e o direito interno na proteção dos direitos humanos. In: Arquivos do Ministério da Justiça, v.46, n.182, 1993, p.27-54. FARES, Seme Taleb. Democratização da política externa brasileira: o papel do Legislativo. Brasília: UnB, 2005. Disponível em: . Acesso em 29 de outubro de 2014. FRAGA, Mirtô. O Conflito entre Tratado Internacional e Norma de Direito Interno. Rio de Janeiro: Forense, 1998. OLIVEIRA, Amâncio Jorge de. Legislativo e Política Externa: das (in)conveniências da abdicação. In: Working Papers Caeni. N.3, 2003, p.1-16. OLIVEIRA, Amâncio Jorge de; ONUKI, Janina. Política externa brasileira e Legislativo: a atuação dos grupos de interesse. In: Papeis Legislativos, n. 8, dez. 2007. Disponível em , acesso em 5 de outubro de 2014.  MIRANDA, Napoleão. Globalização, soberania nacional e direito internacional. In: Revista CEJ, América do Norte, 8 7 12 2004. Dis-

68 • Constitucionalismo global e as interações entre Direito Internacional... ponível em . Acesso em 29 de novembro de 2014. SANTOS, Maria Helena de Castro. Governabilidade, Governança e Democracia: criação de capacidade governativa e relações Executivo-Legislativo no Brasil pós-constituinte.  In: Dados [online]. 1997, vol.40, n.3. Disponível em  . Acesso em 29 de novembro de 2014.

A PROBLEMÁTICA DE UM CONSTITUCIONALISMO GLOBAL EM FACE À SOBERANIA DOS ESTADOS Eduardo Silva Luz1

Resumo Este artigo tem como missão precípua, apresentar os desafios e problemáticas a serem superados, no âmbito político, jurídico, doutrinário e internacional, para a aplicação e adesão a um Constitucionalismo Global, focando principalmente no embate direto dessa com a Soberania Estatal. Após o final da Segunda Guerra Mundial, e com todas as atrocidades cometidas durante aquele período, o mundo precisou estabelecer parâmetros e princípios internacionais de direitos humanos, para a proteção da sociedade mundial, só que estes precisam ter um caráter cogente, para que os países possam obedecê-los, mas para que isso acontecer, é necessária uma relativização no conceito de soberania. No nosso atual status de desenvolvimento, aquele conceito de globalização que teve sua gênesis na formação de blocos econômicos e na interação econômicas entre os países, aumentou significativamente de proporções alcançando novos patamares, seja culturais, sociais e políticos, esse novo modelo de sociedade global, necessita estar protegida até mesmo dos possíveis abusos de seus Estados, e essa proteção pode e deve ocorrer obedecendo parâmetros e princípios internacionais regulados por órgãos internacionais, que correspondem ao novo Constitucionalismo Global. Palavras-Chaves: Constitucionalismo Global, Estados, Globalização, Princípios Internacionais.

Estudante do 6º Período de Direito, na Associação de Ensino Superior do Piauí. Brasil. [email protected]

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70 • A problemática de um constitucionalismo global...

Abstract This article has as its principal mission, presenting the challenges and problems to be overcome, in the political sphere, legal, doctrinal and internationally, for the application and adherence to a Global Constitutionalism, focusing mainly on this direct clash with State sovereignty. After the end of World War II, and with all the atrocities committed during that period, the world needed to establish parameters and international principles of human rights, for the protection of the world society, they need only have a binding character, so that the countries can obey them, but for that to happen, a relativization is necessary in the concept of sovereignty. In our current development status, that concept of globalization that had its genesis in the formation of economic blocs and in economic interaction among countries, the proportions increased significantly reaching new heights, whether cultural, social, political, and this new model of global society, need to be protected even from possible abuses of their States, and this protection can and must occur in accordance with international principles and parameters regulated by international bodies, which correspond to the new Global Constitutionalism. Keywords: Global Constitutionalism, Globalization, States, International Principles.

Sumário Introdução; A Soberania e a Necessidade de uma Relativização; Constitucionalismo; Constitucionalismo Global; Conclusão; Referências.

Introdução Hodiernamente nossa sociedade, de acordo com Neves2, já nasce desvinculada de organizações políticas e territoriais de um único Estado, devido principalmente ao contato constante, com ouNEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p. 26-27. 2

Eduardo Silva Luz • 71 tras culturas e outros países. Esse processo é decorrente do que passou-se a chamar no final do século XX de Globalização. O Conceito de Globalização desenvolve-se principalmente pelo aumento das relações econômicas e interdependência dos países entre si, porém embora tenha sua gênesis devido ao livre comércio e a criação de Blocos Econômicos entre os países, após o final da Segunda Guerra Mundial, hoje esse conceito se torna cada vez mais abrangente com o desenvolvimento tecnológico, combinando um conjunto de fatores, sociais, políticos e culturais, que causam uma interação maior entre as pessoas, causando principalmente a sensação de pertencimento a uma comunidade mundial. Com essa nova sociedade integrada, e a relação de dependência entre os países, cada vez maior, e o avanço do Direito internacional, na regulação das relações entre os estados, surge no mundo jurídico, o conceito de Constitucionalismo Global este deverá ter o condão de garantir a busca pela paz mundial e a internacionalização dos direitos individuais e sociais, e no atual estágio de desenvolvimento humano um constitucionalismo global tem que proteger e garantir também os Direitos Fundamentais de Terceira Geração como exemplo o Meio Ambiente Ecologicamente Correto e direitos de Fraternidade. Porém, o Constitucionalismo Global tende a logo de início entrar, em choque com uma das características mais relevantes dos Estados, com sua Soberania dentro de seu território, elemento esse formador do Estado. Devemos novamente, lembrar que o Direito deve estar em constante atualização e evolução, por que a sociedade é como um elemento fluído, por isso está em constante mutabilidade, e o conceito de soberania absoluta, tão necessário para a formação dos Estados Nacionais no passado, hoje deve sofrer uma limitação, ou relativização, para que possamos garantir maior proteção a população mundial.

A soberania e a necessidade de uma relativização É necessário primeiramente, que passemos a analisar o conceito de Soberania e sua evolução, já que está intrinsicamente ligada a formação e definição do que entendemos por Estado. O doutrinador Sahid Maluf3, chega a afirmar que o não há um estado perfeito 3

MALUF, Sahid. Teoria Geral do Estado. 23 ed. São Paulo: Saraiva, 1995, p.

72 • A problemática de um constitucionalismo global... sem soberania. Realmente, para a formação do Estado, a soberania é um elemento essencial, principalmente para garantir sua autonomia dentro de seu território e sua organização. Esse conceito de soberania tal como concebemos ele decorre de uma evolução, com caráter marcante de ser absoluto teve sua gênesis com a formação do Estado Moderno e Estados Nacionais, pré-Revolução Francesa na qual concentravam todo poder soberano nas mãos de um Rei, que no exercício deste buscava da afirmação estatal dentro de um território, e o controle da população. Após a revolução francesa o conceito de soberania vai desenvolver para aquele que concebemos hoje e está presente em nossa Constituição Federal, que decorre do entendimento que a soberania é um poder político e jurídico, e emana da vontade geral do povo ou nação, ou seja o Estado é soberano, mas esta soberania decorre de seu povo. A respeito vale transcrever o artigo 1º da Constituição Federal e seu parágrafo único: “Art. 1º A República Federativa do Brasil, formado pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I – a soberania (...) “Parágrafo Único: Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente nos termos desta constituição.”4

Após essa rápida digressão aos conceitos de Teoria Geral do Estado sobre soberania, é necessário enfrentar sua colisão com os conceitos de Constitucionalismo Global, que decorre principalmente de uma aversão por parte política e às vezes até mesmo jurídica por parte de alguns doutrinadores, decorrentes de uma possível ameaça externa. Paulo Bonavides³, em seus exímios ensinamentos sobre direito constitucional, prescreve a existência de dois modelos de Soberania, seria essa a Soberania do Estado e a Soberania no Estado, o primeiro modelo é o que nos interessa nesse estudo, por ser a pertinente aos relacionamentos com a comunidade internacional, 50-52. 4 Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

Eduardo Silva Luz • 73 seja países e organizações internacionais. Durante muito tempo na história da humanidade, entendeu-se que essa soberania, no campo internacional era absoluta, assim no plano externo o estado assumia um caráter de Estado-Pessoa. Assim nesse plano, teríamos o relacionamento de diversos Estados entre si todos Soberanos, sem nenhuma limitação. Esse modelo internacional seguia os moldes de um estado de natureza hobbesiano, no campo externo pelo convívio de vários Estados todos com soberania absoluta: “...assim como entre os homens sem um senhor existe uma guerra perpétua [...] eles (os Estados) vivem na condição perpétua de guerra prontos para batalha”5

E na década de 40, essa absolutização de soberanias chega ao máximo, pois os Estados com poderes ilimitados entram em guerra no âmbito externo, e internamente começam a cometer atrocidades com suas populações, retirando destas todo e qualquer direito que poderiam ter, e passam a segregar seus cidadãos. E por que eles podem fazer isso? Porque não existia garantias internacionais, princípios e organismos, que podiam proteger os direitos universais do cidadão. No Mundo Pós-Segunda Guerra, os países começaram a se organizar em blocos econômicos e começaram a cada vez mais ficar interdependentes entre si, e Organismos Internacionais com função de proteção dos Direitos Fundamentais foram criados. Assim evolui-se para um conceito, que não é apenas o Estado sujeito de direito na esfera internacional, mas a população mundial, e essa deve ter seus direitos protegidos contra o exercício do poder arbitrário. Os Estados nesse novo plano internacional, limitar sua soberania, para garantir a concretude de princípios e normas internacionais principalmente de proteção aos cidadãos e respeito à democracia, com o fim de garantir a paz mundial. Devemos ter em mente que a sociedade e o direito evoluem, logo o conceito de soberania também deve ser relativizado, para FERRAJOLI, Luigi. A soberania no mundo moderno: nascimento e crise do Estado. Trad. Carlo Coccioli, Márcio Lauria Filho. 2. Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 21-22 5

74 • A problemática de um constitucionalismo global... que possa atender o caráter emergencial, de proteção da sociedade mundial, essa limitação de soberania, já estava presente em nossa constituição de 88, no artigo que alhures apresentamos, quando ele limita a soberania do Estado Brasileiro decorrendo ela dá vontade de seu povo, e quando coloca ainda que estas deve ser exercida pelos seus representantes, nos limites ou termos da constituição, essa limitação de soberania é característica fundamental dos Estados Democráticos de Direito. Por isso, deve-se entender que esse conceito de soberania absoluta está ultrapassado, pois que com a interdependência entre os países, e a busca por uma garantia de direitos fundamentais universais, temos que a Soberania passaria a ser limitada, a princípios internacionais e a um começo de Constitucionalismo Global. A respeito assevera Luigi Ferrajoli6 que a soberania “deixa de ser, com eles, uma liberdade absoluta e selvagem e se subordina, juridicamente, a duas normas fundamentais: o imperativo da paz e a tutela dos direitos humanos.” Assim essa limitação no conceito e aplicação da soberania, não seria um retrocesso, mas sim uma evolução, decorrente de um fortalecimento do Direito Internacional, e do Jus Cogens que segundo Canotilho7 seria proteção à vida, liberdade e segurança, e o direito à autodeterminação como direito básico da democracia, com isso teríamos uma soberania constituinte limitada a princípios internacionais, dando origem assim ao Constitucionalismo Global.

Constitucionalismo Antes de adentrarmos em detalhes no Constitucionalismo Global, é necessário fazer uma rápida consideração acerca do Constitucionalismo, que não se confunde com Constituição propriamente dita, essa dicotomia mesmo que atenuada, não deve-se confundir. Primeiramente, porque não necessariamente, precisa-se da existência de uma constituição, para termos um movimento constitucionalista, a esse respeito devemos elencar a experiência inglesa do common law o direito consuetudinário que é capaz de salvaguardar uma segurança jurídica e garantir direitos aos ingleses, Obra. Cit. p. 39-40. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 7. Ed. Coimbra: Almedina, 2008. p. 1370-1371. 6 7

Eduardo Silva Luz • 75 sem a existência de uma constituição escrita como em outros países. Assim podemos ver que o Constitucionalismo não depende e nem é meramente a exaltação de normas e princípios de uma constituição de um Estado, pois existe independentemente da Constituição. Constitucionalismo em seu sentido lato surge a partir do momento em que os grupos sociais, passam a lutar contra os poderes despóticos e absolutistas, e passam a contar com mecanismos afim de limitar o exercício desse poder político. Assim Charles Howard McIlwain8 assevera: “O constitucionalismo possuiu, assim, uma qualidade essencial: de ser a limitação jurídica do governo, ser a antítese do governo arbitrário, ser o contrário do governo despótico, do governo do capricho em vez do direito” (1992. p. 27 - 28)

Então enquanto a constituição busca através de suas normas escritas, organizar o Estado, e sua formação, o constitucionalismo, busca instaurar uma ordem política melhor e um governo justo político e legal, através de princípios. Os Doutrinadores nos apresentam três movimentos Constitucionalistas Modernos, o Constitucionalismo Inglês, Norte-Americano e o Francês. O Inglês como já tratamos, limitou o poder sem ser necessário a criação de uma lei fundamental. O Norte-Americano assim como o Francês, e ambos são bastantes parecidos, deram origem a suas constituições, com uma questão que o primeiro limitou-se a regular o poder político principalmente por ser o documento que tem a característica de apenas dizer a norma, como bem assevera Canotilho. E atualmente o movimento constitucionalista, acaba de obter uma nova modalidade, decorrente principalmente da evolução de nossa sociedade, tanto no plano econômico, quanto sociocultural, principalmente devido a globalização. Esse novo modelo constitucionalista, denominado de Constitucionalismo Global, ainda sofre diversas críticas, por parte de juMcILWAIN, Charles Howard. Algunas definiciones modernas del constitucionalismo. In: ______, Constitucionalismo antigo y moderno. Traducción de Juan José Solozábal Echaarría. Madrid: Centre de Estúdios Constitucionales, 1992. p. 27-28. 8

76 • A problemática de um constitucionalismo global... ristas, mas é um modelo que necessita ter sua aplicação de forma cada vez mais urgente. Este busca a realização mais concreta de todos os ideais humanos, protegendo os cidadãos de todos países, e trançando parâmetros e princípios internacionais de proteção dos Direitos fundamentais, seja os de primeira e segunda geração, assim como Meio Ambiente e a Fraternidade. O Constitucionalismo global, é um movimento, que tem o condão de limitar a soberania e ação estatal, e traçar princípios a serem acrescidos em suas constituições e internas, além das finalidades já acima citadas, a de também regular e traçar princípios nas relações entre os Estados no campo internacional, assim concebendo um novo conceito de soberania.

Constitucionalismo global O Constitucionalismo Global, caracteriza-se por ser um dos movimentos neo-constitucionalistas, entrando em evidência, nos últimos anos, principalmente, pela rápida evolução tecnológica do ser humano, nessa década o contato e a dependência entre os países, aumentou significativamente, a esse processo dá-se o nome de Globalização, embora não possamos considerar essa como a gênesis do processo de Constitucionalismo Global, mas podemos afirmar que é um grande impulsionador desse movimento atualmente. Habermas, ao tratar da globalização e o constitucionalismo global afirma: “...No passado, o Estado nacional guardou de forma quase neurótica suas fronteiras territoriais e sociais. Hoje em dia, processos supranacionais irrefreáveis malogram esses controles em diversos pontos. A Giddens definiu globalização como o adensamento, em todo o mundo, de relações que têm por consequência efeitos recíprocos desencadeados por acontecimentos tanto locais quanto muito distantes.”9(2004. p.144)

Ou seja, no passado os países se preocupavam apenas em manter a soberania de seus territórios e seus problemas internos, atualmente um problema, nos locais mais equidistantes dos plane9

HABERMAS, Jurgen. A Inclusão do Outro. São Paulo: Loyola, 2004. p.144.

Eduardo Silva Luz • 77 tas podem abalar a todos os países do globo, em uma espécie de efeito cascata. A exemplo disso podemos elencar os casos de manifestações mundiais como os da primavera árabe, que se espalharam rapidamente, na luta pela democracia, contra governos ditatórias, e em busca de novos direitos aos cidadãos. Os efeitos da Globalização são inquestionáveis, por isso reiteramos que, ele é o grande impulsionador atual do constitucionalismo global. E esta evolução no contato entre países, trouxe a necessidade de uma também evolução do Direito Internacional, para que regulasse, essas relações que são extremamente difíceis, por se tratar de sujeitos que tendem a não abrir mão de sua soberania absoluta. Porém, com o surgimento de organizações internacionais, a relação no âmbito internacional passou a um patamar ainda mais complexo. E a função do Direito Internacional, abandonou o seu caráter simplista de ter apenas os Estados como sujeitos de Direitos, e passou-se a regular Organismos internacionais, sociedades comercias multinacionais, e a se editar tratados internacionais com a finalidade de traçar princípios de proteção aos direitos fundamentais do homem, e temos nesses as primeiras marcas de um constitucionalismo global. Assim esses princípios internacionais, e tratados de proteção dos direitos fundamentais dos homens, que ganharam destaque maior principalmente após a segunda-guerra mundial, passaram a garantir e a inserir nas Constituições dos Estados, a proteção a um mínimo de liberdades e direitos fundamentais, e principalmente o respeito à democracia, é o que se denomina standards mínimos. Nesse exemplo, já vemos que as Constituições dos Estados limitadas ou condicionadas ao respeito de princípios globais, o que é uma das características desse novo modo constitucionalista, que busca não criar uma nova constituição, mas traçar parâmetros a direitos a serem protegidos por essa, a esse respeito ainda debateremos mais no decorrer do texto. É nesse contexto histórico, que passa a surgir com cada vez mais força, devido principalmente a elementos circundantes que permitem e facilitam o seu desenvolvimento, que aparece o Constitucionalismo Global, esse é um sistema jurídico-político internacional, que vai trazer um novo paradigma para as relações dos Estados e suas constituições e soberanias no plano interno, seja regulando-

78 • A problemática de um constitucionalismo global... -se as relações as novas relações internacionais, não mais em um caráter horizontal, mas que esteja centrado na ideia de Estado e povo, que são os responsáveis realmente pela soberania deste, além de informar por meio tratados internacionais e documentos, princípios e regras universais, a servirem de fontes ou de parâmetro as constituições dos Estados. Como exemplo temos, a elevação da dignidade humana, ao status de garantia constitucional imprescindível de qualquer estado democrático de direito do mundo, assim podemos afirmar, que já estamos vivendo em uma sociedade, com a presença de um ainda tímido, mas existente, Constitucionalismo Global. A esse respeito Canotilho ao tratar do Constitucionalismo Global, elenca três pontos: “..1- alicerçamento do sistema jurídico-político em relações entre Estado/povo, isto é, não de relações horizontais entre Estados mas sim com as populações dos próprios estados; 2 - emergência, através das declarações e documentos internacionais, de um jus cogens internacional (que “inclui um mínimo de proteção à vida, liberdade e segurança, no âmbito das liberdades pessoais, e o direito à autodeterminação como direito básico da democracia”) legitimado em valores, princípios e regras universais; 3- a dignidade humana fixada como pressuposto de todos os constitucionalismos.”(2008, 1370-1371)10

Nesse momento o Direito Internacional em Conjunto com o Constitucionalismo Global, passa a ter um caráter de aferição de validade das constituições nacionais, cujas as normas que violassem as normas do jus cogens internacional, deveriam ser considerados nulas, para assim garantir o respeito aos direitos fundamentais. Assim, tudo isso nos remete aos modelos de estado westfalianos, pois autonomia constitucional, e do poder constituinte está condicionado ao constitucionalismo global na forma de tratados, fazendo com que esse seja uma realidade incontestável, principalmente no que tange a direitos humanos. É latente a limitação a soberania constituinte, no que diz respeito a proteções fundamentais do homem, principalmente por imposição de órgãos internacionais, e sobre ameaça de sanções de outros países, mas só que quando a 10

Obra Cit. 1370-1371.

Eduardo Silva Luz • 79 questão é tratar da forma cogente de garantir essas imposições, novamente entramos em choque com a soberania dos Estados. A necessidade de um constitucionalismo global de formas mais ampla, caracteriza-se por ser uma alternativa viável afim de garantir a paz, evitar guerras futuras, tentar implantar ou traçar parâmetros para diminuir a violência e a miséria extrema alguns países, além de garantir aos cidadãos o exercício de seus direitos, em âmbito global, tornando-se esses sujeitos de direito de forma ampla, e que merecem a proteção de todos os países do globo. Também podemos considerar como necessário esse neoconstitucionalismos, nos casos, em que tem se demonstrados, a completa ineficiência no controle e efetivação da constituição e princípios democráticos, em diversos países, e podemos analisar isso com os crimes contra humanidade e liberdades individuais, que são realizados e ficam impunes. Porém, ao percorremos esse caminho de constitucionalismo global, aos poucos vão surgindo alguns problemas, que necessitam ser contornados, para que possa-se lograr êxito nesse novo modelo constitucional. Já debatemos nesse artigo profundamente um dos problemas, que se trata da soberania dos países, e apresentamos a necessidade de uma relativização desta, para que o constitucionalismo global possa se concretizar. Mas, podemos visualizar, mais duas questões de grande emergência, tão quanto a problemática da soberania, sobre elas discorreremos, rapidamente sem aprofundar muito no assunto, devido à complexidade do tema, que poderia gerar um outro artigo. A primeira questão é como adaptar esse constitucionalismo global a uma sociedade multicultural, onde cada país tem suas características e suas formas de agir, segundo de onde adviria a legitimidade desse constitucionalismo global. Assim passemos a tratar sobre a questão cultural, mesmo que superficialmente, sabe-se que em cada país suas sociedades têm culturas e modos de viver diferente, mas com o advento da globalização, é impossível negar, que as tendências atuais são a de uma homogeneização cultural, embora muitos sociólogos não sejam adventos dessa afirmação, é um fato que presenciamos no nosso cotidiano, cada vez mais uma sociedade interconectada e dependente entre si. Além de que, todas as sociedades têm valores universais comuns, como a preservação da paz, o direito a meio ambiente saudá-

80 • A problemática de um constitucionalismo global... vel, dignidade da pessoa humana, direito à cidadania, são questões universais tratadas na maioria das sociedades, que independem de diferenças culturais, e o constitucionalismo global, teria a finalidade como já afirmamos por diversas vezes alhures, de regular e traçar princípios e parâmetros, para proteger esses direitos fundamentais. E a segunda questão a tratar, está intimamente conectada com a problemática da soberania, pois está relacionado com o poder constituinte e sua legitimidade, com isso questiona-se de onde viria a legitimidade do constitucionalismo global. Sob pena de ser um pouco incompreendido, por tratar de forma superficial sobre esse tema, é interessante citar aqui mais uma vez Ferrajoli, o doutrinador italiano, nos apresenta que ao contrário das leis ordinárias que tem seu fundamento no consenso da maioria, esse neoconstitucionalismo sua legitimidade decorre de valores mais importantes e relevantes para a sociedade mundial, sendo eles, “a igualdade de todos nas liberdades fundamentais e nos direitos sociais, bem como o imperativo da tutela da paz.”11 Para isso os estados teriam que relativizar sua soberania, a exemplo a soberania constituinte, que deveria seguir e garantir na constituição interna de cada Estado, os princípios de direitos fundamentais, expressos pelo constitucionalismo global. Porém esse serviria apenas de parâmetros e regras gerais, e quando a norma mais benéfica aos direitos humanos, estiver na constituição interna, essa norma é a que deve ser utilizada. É possível perceber uma certa tendência a um ainda tímido constitucionalismo global, que está se espalhando aos poucos, a respeito disso podemos apresentar o tratamento diferenciado, feito pelas constituições latino-americanas aos tratados internacionais de direitos humanos, o que demonstra, que os Estados começam a perceber a necessidade da proteção universal dos direitos dos homens. Cita-se três exemplos, a Constituição Chilena de 1980, que passou a garantir status de hierarquia constitucional aos tratados internacionais de direitos humanos; Constituição política do Peru, determina que os direitos constitucionais de direitos humanos se interpretam de acordo com a declaração dos Direitos Humanos de 1948; e a Constituição Brasileira de 1988 que deu status constitucionais aos tratados de direitos humanos, aprovados pelo congresso de acordo com o rito de emenda constitucional. 11

Obra. Cit., p. 28-29

Eduardo Silva Luz • 81

Conclusão A partir do que foi exposto nesse trabalho, podemos chegar à conclusão que, o constitucionalismo global não necessariamente está intimamente ligado com a criação de uma constituição global, e que são conceitos totalmente diferentes, assim como não é essencial e nem se quer a supressão das constituições internas dos Estados, já que isso seria extremamente radical, e um desrespeito as peculiaridades de cada país e sociedade e sua organização interna. O intuito primordial desse trabalho foi apresentar a viabilidade de um constitucionalismo global, e informar os desafios que esse teria que enfrentar diante da soberania dos países, culturais e de legitimidade. Percebe-se que não é mais concebível no mundo moderno, até mesmo pela interdependência dos países, a prevalência de conceitos de uma soberania absoluta, até mesmo por que nas relações internacionais entre os países, para um tratamento mais cordial que ambos os países consigam chegar em seus objetivos, necessitam relativizar essa soberania, assim também deve acontecer para a proteção dos direitos fundamentais, pois após a segunda-guerra mundial, o homem passou a também ser sujeito de direito, no âmbito internacional. Assim vemos que quando falarmos em soberania constituinte, ela estará limitada ao respeito de direitos fundamentais universais. A partir dos argumentos expostos durante todo o texto, percebe-se a necessidade da existência concreta e efetiva atuação de um constitucionalismo global, principalmente para proteção da paz e dos direitos fundamentais, 1º a 4º dimensões, que não devem ficar apenas submetidos a tratados, como devem ter status constitucionais, e servir como limitação da atuação arbitrária do Estado, além de parâmetros e princípios gerais a serem respeitados para qualquer futura emenda as constituições internas.

Referências BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 7. Ed. Coimbra: Almedina, 2008.

82 • A problemática de um constitucionalismo global... FERRAJOLI, Luigi. A Soberania no Mundo Moderno. São Paulo: Martins Fontes, 2002. FERRAJOLI, Luigi. A soberania no mundo moderno: nascimento e crise do Estado. Trad. Carlo Coccioli, Márcio Lauria Filho. 2. Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007 HABERMAS, Jurgen. A Inclusão do Outro. São Paulo: Loyola, 2004. p.144. NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2009. MATTEUCCI, Nicola. Verbete “Constitucionalismo”. In: BOBBIO, Norberto; Dicionário de política.Tradução de João Ferreira. Brasília: Editora UnB, 1986. MALUF, Sahid. Teoria Geral do Estado. 23 ed. São Paulo: Saraiva, 1995 McILWAIN, Charles Howard. Algunas definiciones modernas del constitucionalismo, Constitucionalismo antigo y moderno. Traducción de Juan José Solozábal Echaarría. Madrid: Centre de Estúdios Constitucionales, 1992. KELSEN, Hans, CAMPAGNOLO, Umberto. Direito Internacional e Estado Soberano. São Paulo: Martins Fontes, 2002

MEMÓRIA, ESTIGMAS E COMPREENSÃO DO DIREITO MUÇULMANO Marcelo Kokke1

Introdução A busca por um constitucionalismo global e pela análise de bases para a construção potencial de uma comunidade de princípios internacional exige o enfrentamento do debate da alteridade, com a tematização de compreensões diversas do Direito e do que envolve o próprio constitucionalismo. Creio que este enfrentamento há de lançar como tarefa de abordagem crítica do constitucionalismo a formação de estigmas e o esquecimento, considerados como engessamentos da negativa de compreensão do outro. O debate da alteridade, apoiado em questionamentos de pensamentos hegemônicos, reclama compreensão e abertura para entendimento do Direito Muçulmano em escala plural e historicamente situada. Uma em cada cinco pessoas no mundo professa a compreensão muçulmana da realidade, fechar as portas para buscar entender os pilares que sustentam sua forma de ver, pensar e formular o Direito equivale a fraturar o próprio debate da alteridade. Este debate de forma algum é limitado ou circunscrito ao Direito Constitucional em si, apesar de projetar-se por meio dele. Alcança assim, por exemplo, interações globais ligadas a Direitos que pressupõem futuro comum ou solidariedade entre os povos. Remeto aqui, para simbolizar o alcance, às normas de proteção ambiental. A dinâmica da memória é essencial para guiar a compreensão da possibilidade e potencialidades de conjunção de heteroMestre e Doutorando em Direito Constitucional e Teoria do Estado pela PUC - Rio. Pós-graduado em Processo Constitucional. Aperfeiçoamento em Constitutional Struggles in the Muslim World - University of Copenhagen. Professor de Direito Constitucional - Escola Superior Dom Helder Câmara. Professor de pós-graduação do Instituto para o Desenvolvimento Democrático IDDE. Professor Colaborador da Escola da Advocacia-Geral da União. Procurador Federal – Advocacia-Geral da União. Brasil – [email protected]. 1

84 • Memória, estigmas e compreensão do Direito Muçulmano geneidades afetadas reciprocamente em seu processo de formação social. Não se pode pretender erigir normas de proteção ambiental calcadas em solidariedade se não se analisar e fincar balizas em uma plataforma de construção de princípios não hegemônicos entre povos e culturas, em uma interação em crítica quanto aos fatores que são óbices à construção de uma solidariedade global.2 Recorto meu objeto, para proceder à delimitação de tema proposto, à análise dos impactos de memória em dois eventos principais ligados à Modernidade: o sistema de mandato, imposto pela Liga das Nações e as implantações jurídicas, políticas e sociais ligadas à exploração do petróleo. 3 Estes eventos possuem especial repercussão sobre a conjuntura do Direito Muçulmano e principalmente na dinâmica de compreensão recíproca entre povos muçulmanos e povos de cultura dita ocidental.

Alteridade, confrontações e efeitos no Direito Muçulmano A tomada de fenômenos culturais, das relações sociais e jurídicas, passa pela identificação dos cenários de confrontação e definição em reconhecimento do outro, pelas dimensões de concretização da alteridade. As confrontações que envolvem o compreender do Direito Muçulmano estão imersas neste quadro de sentido. O fator que pretendo utilizar para desenvolvimento e apreensão é a Modernidade, conceito de raiz europeia, que se difundiu globalmente. Reyes Mate assinala que a Modernidade é marcada como Neste sentido, interessante a própria tematização de Ulrich Beck, quando dimensiona a sociedade de risco e a necessidade de caminhar rumo a uma “outra modernidade” (Beck, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. Trad. Sebastião Nascimento. São Paulo: Ed. 34, 2011, p. 20 – 44). Não se pode pensar em globalização de riscos ambientais a serem tratados segundo uma solidariedade mundial se não forem considerados os elementos caracterizadores de confrontações de alteridade na formação de vítimas sociais e efeitos de opressão hegemônica. Os direitos ligados à necessária solidariedade global e afinados à pretensão de um constitucionalismo global estão imersos nos problemas de tematização dos estigmas e da memória na reconstrução de sentido que envolve conflitos contemporâneos. 3 O recorte que estabeleço de forma alguma renega outros elementos de essencial importância, mas sim se deve aos limites propostos por este trabalho. 2

Marcelo Kokke • 85 “proceso histórico que há traído grandes bienes, tales como la autonomia del sujeto, el desarollo de la ciência, los derechos humanos, la Revolución francesa, el bienestar para muchos, etc.”4. Mas este processo possui um limite, provoca um redutor da alteridade, crivando a racionalidade “al presente, a los vivos, al cuerpo”.5 A Modernidade avança pela instrumentalidade do ser, pela renegação do passado como objeto enlaçado ao presente que logo se desfaz para o futuro. A configuração contemporânea do Direito Muçulmano está ligada e impactada por esta Modernidade e seus processos de assimilação e resistência. A Modernidade, apregoada como libertadora e pautada na igualdade, circunscreveu-se à Europa, ou a parte dela, não sendo a mesma que se projetou nas incursões europeias aos países muçulmanos.6 Ela alcança os países muçulmanos a partir de invasões, dominações e opressões, em uma rede de processos de colonização a sufocar as comunidades locais. A religião muçulmana possui suas bases no século VII, congregando diversos elementos da religião judaica e da religião cristã. Sua base fundamental é o Quran, Corão ou Alcorão. Ela avança e se prolifera em regiões marcadas pela descentralização política, com nichos tribais e em meio à diversidade religiosa. As organizações sociais e políticas distam de uma definição territorial precisa. A organização política do Estado nacional,7 em germinação na Europa e em ascendência principalmente ao fim do século XVIII, é algo distante para os países de cultura muçulmana neste período. A situação é emblemática quando se considera o Império Otomano, que ocupava território a envolver a península arábica, norte da África e região da atual Turquia. A existência do Império Otomano perdura até o fim da primeira guerra mundial sem que haja organização política centralizada, ao estilo do Estado nacional, ao inverso, suas instituições são de superposição, conservam autonomia e núcleos internos de poder e diferenciação. Esta conjuntura é caracterizada pelo sistema Millet e pela vigência no Islã do regime Dhimmi, ambos Mate, Reyes. Op. Cit. 2008, p. 179. Mate, Reyes. Op. Cit. 2008, p. 179. 6 Afsah, Ebrahim. Contested Universalities of International Law: Islam’s Struggle with Modernity. In Journal of the History of International Law 10 (2008) 259–307, p. 265. 7 Tilly, Charles. Coerção, capital e estados europeus. São Paulo: Edusp, 1996. 4 5

86 • Memória, estigmas e compreensão do Direito Muçulmano de ímpar importância para compreensão da dinâmica sócio-jurídica dos países muçulmanos. O sistema Millet está ligado à sobreposição política e pela afirmação do domínio sem homogeneização. Embora o domínio da região pertencesse ao Império Otomano, os grupos locais e tribais mantinham uma autonomia para definir sua estrutura familiar, religiosa, e mesmo normas sociais e jurídicas em assuntos outros essencialmente locais.8 O sistema Millet permitiu autonomia religiosa, familiar, social e cultural de judeus e cristãos radicados no território do Império Otomano. A diversidade remetia à heterogeneidade étnica e por fluência alcançava a diversidade religiosa. O regime Dhimmi, vigente em período em que a Europa digladiava em guerras religiosas, funda-se na tolerância e na diversidade religiosa. Embora aos muçulmanos fosse concedido um especial status, a consolidação do Islã procedeu a apoio recíproco com povos judaicos e cristãos, aos quais era concedido o regime dos “Povos do Livro”. A liberdade religiosa era garantida pelos muçulmanos. Judeus e cristãos eram protegidos dentro do regime, mesmo sem conversão ao Islã. Afsah destaca que pelo Dhimmi “Muslim authors who stress the peaceful nature of Islam rely on those injunctions that stress the equality of mankind and the abolition of tribal, ethnic, and social distinctions”.9 Há aqui uma afirmação contrária à discriminação e sujeição religiosa. Paralelamente a este cenário que regia grande parte dos atuais países muçulmanos, a região da atual Arábia Saudita se mantinha indiferente tanto ao Império Otomano quanto às nações europeias, principalmente em razão do clima e ambiente áridos. Era a região ocupada por agrupamentos tribais em grande parte isolados, mas convertidos e filiados à religião do Islã. As alianças tribais na região acentuam proeminência de duas figuras, Muhammad Ibn Saud (fundador da dinastia Saudita) e Muhammad Ibn Abd al-Wahhab (maior clérigo da época). O isolamento da região e o fechamento interno na afirmação do poder tribal conforma linha de dominação de caráter carismático a tradicional, em muito se distanciando de esboços de institucionalização. Ahamed, Farrah. Personal Autonomy and the Option of Religious Law. Oxford Student Legal Research Paper Series Paper number 12/2011. October 2011 9 Afsah, Ebrahim. Op. Cit. 2008, p. 298. 8

Marcelo Kokke • 87 Tem-se uma duplicidade de situações: germinação fundada na tolerância e convivência étnico-religiosa, de um lado, derivadas do sistema Millet e do regime Dhimmi; e d’outro a germinação de linha hermética, xenófoba, fundamentalista. Perpendicularmente a este processo, tem-se, no avanço dos séculos XIX e XX, avolumar de ações imperialistas dos países europeus, justificadas em ideal de progresso próprio da Modernidade. Ao final da Primeira Grande Guerra, a situação de domínio e sujeição dos países da região, em grande parte coincidente com a região de cultura e religião muçulmanas, é institucionalizada em subordinação, com atestado internacional. A Liga das Nações, constituída em 1919, adota de forma explícita os comandos da Modernidade pelo progresso, afirmando os povos locais como inferiores em seu padrão civilizatório, sujeitos à tutela dos países europeus, fixados internacionalmente como superiores. Trata-se do Mandate System, pelo qual os povos locais são vitimados e lançados como objeto de um necessário progresso, sujeição e subordinação são consideradas um custo necessário para que sejam beneficiados pela tutela dos próprios invasores. O artigo 22 do Tratado que instituiu a Liga das Nações afirmava categoricamente que os países subjulgados são “habitados por povos ainda incapazes de se dirigirem por si próprios nas condições particularmente difíceis do mundo moderno” e que em virtude disto o “bem-estar e o desenvolvimento desses povos formam uma missão sagrada de civilização” por parte dos países europeus. A proclamação de incapacidade dos povos da região, relegados a objeto de civilização pelas culturas europeias, lança um forte sentimento antieuropeu, interligado à percepção de mecanismos de opressão e dominação.10 O ímpeto da exploração econômica e sujeição política levaram a governos locais autoritários e repressores, com militarização seletiva. A opressão assumiu contornos ferrenhos, restando os canais de resistência tão somente nas organizações religiosas, que passaram a assumir uma maior proeminência no cenário político.11 Afsah, Ebrahim. Op. Cit. 2008, p. 274. Afsah, Ebrahim. Constitution-Making in Islamic Countries – A Theoretical Framework. In: Constitution-Making in Islamic Countries: Between Upheaval and Continuity, ed. by Rainer Grote and Tilmann Röder Oxford: Oxford University Press, 2010. 10 11

88 • Memória, estigmas e compreensão do Direito Muçulmano A situação de dominação institucionalizada é agregada na década de trinta do século XX pela descoberta e avanço da exploração do petróleo na península arábica. A exploração do petróleo fomenta de acordos de exploração econômica entre as elites locais e conglomerados econômicos internacionais, aliança que resulta em tipo específico de Estado e sociedade, na visão de Afsah, um Estado de rendas ou dividendos do petróleo.12 No Estado de rendas, passa-se a prescindir da formação de um mercado ou estrutura produtiva próprios, resultando em sistema de divisas que mantém o status quo e rejeita confrontações ou mudanças. O quadro de duplicidade de situações antes mencionado, pelo qual se tinha uma germinação fundada na tolerância e convivência étnico-religiosa, de um lado, derivadas do sistema Millet e do regime Dhimmi, e de outro a germinação de uma linha hermética, xenófoba, fundamentalista, sofre impactos, com enfraquecimento da primeira vertente. A propagação da Modernidade em versão opressiva alimenta movimentos contrários ao Ocidente, catalisados pela opressão e vitimização encadeados pelo Mandate System, pelo imperialismo e pela imposição decorrente da exploração do petróleo. Há ascendência da vertente radical de interpretação das normas religiosas muçulmanas, remetidas à linha de Ibn Abd al-Wahhab. O Wahhabismo é marcado pelo extremismo, fundamentalismo na interpretação religiosa e pela xenofobia, impondo o hermetismo religioso com a pureza das relações islâmicas. Neste cenário, o Estado se legitima não pela busca do bem comum, mas sim pela proteção e exportação da doutrina religiosa. A conjuntura de opressão pelo progresso que avassala o ser humano como custo social a ser ultrapassado lançou bases fundamentais para vertente minoritária fundamentalista e xenófoba.13

“More importantly, oil and other mineral rent provided not only the wherewithal to create strong oppressive mechanisms, but made the state a highly attractive ‘prize’ likely to be captured by narrow interests. The result has been a persistent tendency among rentier states, particularly in Arab and African states, towards authoritarian regimes, a phenomenon which some have described as a ‘resource curse” (Afsah, Ebrahim. Op. cit. 2010, p. 4) 13 Dorsey, James M., Wahhabism vs. Wahhabism: Qatar Challenges Saudi Arabia (July 3, 2013). Available at SSRN: http://ssrn.com/abstract=2305485 or http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.2305485. Acesso em 16 de agosto de 2014. 12

Marcelo Kokke • 89

Alicerces do Direito Muçulmano O Direito Muçulmano, consubstanciado na Sharia, está imerso em contexto de construção de instituições calcadas nos textos religiosos. Hallaq enfatiza que a Sharia é muito mais do que um sistema jurídico, ela corresponde a complexo de caráter jurídico, cultural e político.14 Os estudiosos da Sharia são formados em ambientes e segundo estudos específicos, que vem a constituir a Ulama.15 Já a instituição de formação dos estudiosos e versados na Sharia, voltados para a sustentação recíproca da política, da religião e do direito como encadeamentos inseparáveis denomina-se Madrasa.16 Na tradição ocidental, a formação jurídica se dá a partir do Estado. A referência da produção do Direito é pelo Estado. Esta situação é inconcebível para a Sharia antes da Modernidade, passando a sofrer influxos e influências consistentes do Estado somente no século XX.17 O Direito Muçulmano nasce de interações privadas, é essencialmente construído pela tradição e pela continuidade da comunidade. Não separa postulados morais de postulados jurídicos. A formação de normas de conduta pela condução da comunidade em sua vida privada, alheia a uma organização política centralizada, propiciou verdadeira autorregulação da comunidade, construída a partir da fonte primeira, o Quran. A formulação e aplicação do Direito distanciavam-se de atividades institucionalizadas e quão mais profissionalizadas.18 A Sharia tem como seu segundo diploma mais substancial a Sunna, a partir da qual são extraídos postulados explicativos de condução do ser humano, hadiths.19 A Sunna advém Hallaq, Wael B. An introduction to Islamic Law. Cambridge, New York: Cambridge University Press, 2009. 15 “referring to the learned class, especially the legists (q.v.); in this technical sense, the word is of later provenance, probably dating to the twelfth century of thereabouts.” (Hallaq, Wael B. Op. Cit, 2009, p. 177) 16 Hallaq, Wael B. Op. Cit, 2009, p. 174. 17 Hallaq, Wael B. Op. Cit, 2009, p. 10-20. 18 “Thus, until the eleventh or twelfth century, the vast majority of jurists held other jobs, with many of them working as tanners, tailors, coppersmiths, copiers of manuscripts, and small merchants and traders. In other words, they generally belonged to what we call today the lower and middle, rather than the upper classes. (Hallaq, Wael B. Op. Cit, 2009, p. 13). 19 Hallaq destaca que a Sunna é “the second, but most substantial, source of Islamic law; the exemplary biography of the Prophet. The hadiths (q.v.) are 14

90 • Memória, estigmas e compreensão do Direito Muçulmano da imagem das ações de Maomé, que devem ser seguidas pelos muçulmanos, pois é ele o Profeta que propiciou a revelação do Quran. Mas a quem cabe identificar e extrair as condutas e normas devidas dos textos sagrados? A partir do século XVII ascende em importância a figura do Mufti. A comunidade conta com pessoa cujos graus de conhecimento e reconhecimento religioso, cultural e moral são superiores, assumindo a função de jurisconsulto, com papel central na estrutura da Sharia. O Mufti possui não somente uma função jurídica, mas também uma responsabilidade moral para com a comunidade.20 O Mufti emite opiniões legais sobre a conduta ou ação devidas, mas não são opiniões puramente legais, são inerentemente morais. Estas manifestações emitidas pelo Mufti são denominadas Fatwa.21 Mas aquele que ocupa o papel de Mufti não é Juiz. O Mufti profere uma opinião normativa, cuja força de aplicação é indireta, pois sendo a construção amarrada em uma legitimidade calcada na comunidade, a própria legitimidade da decisão do Juiz depende de sua correspondência ao Fatwa, ao Mufti.22 Daí vem a legitimidade da decisão judicial em um conflito, pois “in other words, law was to be found not in precedent established by courts of law (a notion based on the doctrine of Stare Decisis), but of writings that originated mostly in the answers given by muftis”.23 A tarefa do Juiz no Direito Muçulmano, na Sharia, não se resume à adjudicação, ele assume funções extrajudiciais, seu papel é denominado por Qadi. O Qadi é o Juiz judicial e extrajudicial da Sharia,24 literary expressions and context-specific accounts of the Sunna.” (Hallaq, Wael B. Op. Cit, 2009, p. 177). 20 Hallaq, Wael B. Op. Cit, 2009, p. 174. 21 Hallaq, Wael B. Op. Cit, 2009, p. 172. 22 Hallaq destaca que o Fatwa é “legal opinion issued by mufti (q.v.); although they were formally non-binding, judges adhered to fatwas routinely, as they were deemed authoritative statements on particular points of law.” (Hallaq, Wael B. Op. Cit, 2009, p. 172-173) 23 Hallaq, Wael B. Op. Cit, 2009, p. 9. 24 “It is obvious that the business of a judge is to adjudicate disputes, which is indeed the chief task of a modern judge. But his task was only one of many other important duties that the Muslim judge, the Qadi, had to undertake. The qadi, like the mufti, was a member of the community he served. In fact, Islamic law itself insists that a qadi, to qualify for the position, has to be intimately familiar with the local customs and way of life in the community in which he serves” (Hallaq, Wael

Marcelo Kokke • 91 assumindo função de guardião jurídico e moral da comunidade, tutelando em vários aspectos do contexto social, cabendo-lhe funções tais como “mediation, guardianship over orphans and minors, and supervision and auditing of public works”.25 Na Sharia, o Direito não advém somente como racionalidade, a racionalidade por si não basta, é necessário que seja apoiada na revelação, em uma base moral alicerçada na comunidade. A questão problemática advém não da fundação religiosa, mas sim de eventos sociais, econômicos e ligados à implantação opressiva de instituições nos países muçulmanos. A base da Sharia foi construída ao longo dos séculos em patamares de tolerância e respeito. Alinhava-se ela a bases de interpretação ligadas, por exemplo, ao sistema Millet e ao regime Dhimmi. A proliferação da opressão, com a formação de instituições ligadas ao Estado de rendas ou dividendos do petróleo, aliada às incursões autodenominadas por civilizatórias do progresso da Modernidade hegemônica na afirmação do querer colonizador europeu provocaram a negação da alteridade, abrindo comportas para movimentos revanchistas e extremistas. O extremismo islâmico não é islâmico, é de uma corrente específica (Wahhabi)26 que ganhou e ganha seu suporte não por fatores religiosos, mas por fatores econômicos e políticos projetados sobre a comunidade muçulmana, fatores estes insitamente ligados à forma como países ocidentais europeus, e após eles os Estados Unidos, projetaram a Modernidade e o progresso como custo vitimizador. É preciso buscar a redenção das vítimas, resgatar o passado em sua memória, retirar o combustível que vem a alimentar o extremismo, rompendo com o ciclo de violência.

Reações à modernidade e memória B. Op. Cit, 2009, p. 11) 25 Hallaq, Wael B. Op. Cit, 2009, p. 175. 26 O extremismo religioso no Islã está em imensa parte ligado à corrente Wahhabi. Esta, por exemplo, adota posição xenófoba e sustenta presença de crimes religiosos e sua punição, o que é conhecido por hudud que são “severe punishments for certain offenses specified in Quran, rarely applied in pre-modern Islan because of the strict requirements of procedural law” (Hallaq, Wael B. Op. Cit, 2009, p. 172-173).

92 • Memória, estigmas e compreensão do Direito Muçulmano A carga em espiral cíclico de violência e opressão, em seus agentes e reagentes, pode ser captada pelo pensamento de Walter Benjamin. Creio que em Benjamin não se encontra somente o diagnóstico, mas também a medida curativa em face do ciclo de perenização da negação da alteridade. Benjamin sustenta a redenção para com o passado, que é rearticulado trazendo de volta os mortos e os violados em sua existência para que possam ser ouvidos, ou seja, trazer à memória refletida as situações que levaram à abertura para o silenciamento opressivo.27 Refundar pela memória a Modernidade, este é o desafio da compreensão da alteridade. Benjamin incita a questionar a vitória dos dominadores, incita a revigorar a imagem e formação dos oprimidos, promovendo o repensar da Modernidade,28 suprimindo o teor opressor e intimidador do custo humano naturalizado. Compreender os caminhos contemporâneos dos países muçulmanos pressupõe articular o passado historicamente, escovar a história a contrapelo, refundando na compreensão de tudo que envolve os fatos legados e ignorados da tradição dos oprimidos.29 Segundo Benjamin, pela tradição dos oprimidos o ‘estado de exceção’ é a regra, pois a privação de reconhecimento se dá com a constante afirmação da negação, a rotineira sujeição do ser como mero instrumento do progresso e piso de apoio da concretização da Modernidade, que se rodeia em barbáries para atingir paradoBenjamin, Walter. Sobre o conceito da história. In. Obras Escolhidas, vol. I. Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre a literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. Rev. Técnica Márcio Seligmann-Silva. 8ª Edição. São Paulo: Brasiliense, 2012, p. 242. 28 Este repensar da Modernidade pela memória aplica-se às próprias interações intersubjetivas e normativas no Ocidente, possuindo assim uma pretensão de justificação que lhe dota de expressão global. Isto ocorre de forma emblemática na temática ambiental, quando se articula as relações de instrumentalidade entre os seres humanos e a própria tutela da vida, projetadas pelo tecnicismo ou cientificismo, principalmente. Beck enfatiza que “a consciência dos riscos da modernização impôs-se contra a resistência da racionalidade científica. O caminho até ela é largo e está coberto de erros científicos, avaliações equivocadas e subestimações. A histórica da conscientização e do reconhecimento social dos riscos coincide com a história da desmistificação das ciências. O outro lado do reconhecimento é a refutação do ‘nada vejo, nada ouço, nada cheiro, nada sei’ científico.” (2011, p. 71-72) 29 Benjamin, Walter. Op. cit., 2012, p. 244-245. 27

Marcelo Kokke • 93 xalmente um futuro melhor,30 negação do passado opressivo que convive com uma plateia de espectadores indiferentes e acríticos. Laborar a memória dos vitimados pela feição hegemônica da Modernidade e problematizá-la é desafio ao constitucionalismo. Romper com a cumplicidade é fomentar a memória como meio de reconciliação, meio de redenção do passado, superação de estigmas. A plena compreensão do Direito Islâmico demanda entender o papel que instituições e agentes não muçulmanos tiveram e tem na forma como aquele se apresenta. A compreensão do Direito Muçulmano em um patamar de alteridade exige rever a conformação da própria Modernidade, lançando como resposta aos conflitos a proposição da memória e da redenção,31 rearticulando significados e posições em face do outro, o que exige da cultura ocidental e principalmente dos núcleos europeu e estadunidense o “reconocer significación a las víctimas del progreso que hasta ahora eran sólo el precio necesario del bienestar de unos pocos”32 e desta forma “traer el pasado al presente, hacernos contemporáneos de acontecimientos pasados”.33

Conclusão O desenvolvimento empreendido a este trabalho visou descortinar fatores atrelados à configuração do Direito Muçulmano e reflexos na tematização constitucional e jurídica que permeia os países que a ele estão vinculados. Estes fatores impelem tomada da pretensão de um constitucionalismo global, enlaçada a fatores histórico-culturais. A religião, embora fonte da Sharia, não pode ser considerada como a matriz ou “o fator” de conformação jurídico-social e cultural da realidade vivenciada pelos países islâmicos. Elementos econômicos e políticos, envolvendo principalmente a forma como se procedeu à incursão da Modernidade em seu patamar hegemônico são determinantes na apresentação contemporânea da realidade dos países muçulmanos. A expressão hegemônica de uma forma de progresso que impôs aos países muçulmanos um custo humano desmedido, convertendo realidades, culturas e so30 31 32 33

Benjamin, Walter. Op. cit., 2012, p. 245. Mate, Reyes. Op. Cit. 2008, p. 181. Mate, Reyes. Op. Cit. 2008, p. 181. Mate, Reyes. Op. Cit. 2008, p. 183.

94 • Memória, estigmas e compreensão do Direito Muçulmano ciedades em instrumentos ou meio foi determinante na desagregação e abertura para movimentos de vertentes extremistas. A reversão de espirais de violência, descrédito e desnaturação passa pela necessidade de manejo da categoria da memória, para revisão e reapresentação da Modernidade, conciliando-a, desvestindo-a de carga hegemônica e orientada à naturalização de vítimas ou de aceitação do preço do progresso. A afirmação da alteridade como fator primordial da teoria da justiça, com redenção do passado para construção do futuro, é passo necessário ao constitucionalismo.

Referências AFSAH, Ebrahim. Constitution-Making in Islamic Countries – A Theoretical Framework. In: Constitution-Making in Islamic Countries: Between Upheaval and Continuity, ed. by Rainer Grote and Tilmann Röder Oxford: Oxford University Press, 2010. ________________. Contested Universalities of International Law: Islam’s Struggle with Modernity. In Journal of the History of International Law 10 (2008) 259–307 AHAMED, Farrah. Personal Autonomy and the Option of Religious Law. Oxford Student Legal Research Paper Series Paper number 12/2011. October – 2011. BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. Trad. Sebastião Nascimento. São Paulo: Ed. 34, 2011. BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In. Obras Escolhidas, vol. I. Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre a literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. Rev. Técnica Márcio Seligmann-Silva. 8ª Edição. São Paulo: Brasiliense, 2012, p. 242. DORSEY, James M., Wahhabism vs. Wahhabism: Qatar Challenges Saudi Arabia (July 3, 2013). Available at SSRN: http://ssrn.com/ abstract=2305485 or http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.2305485. Acesso em 16 de agosto de 2014

Marcelo Kokke • 95 HALLAQ, Wael B. An introduction to Islamic Law. Cambridge, New York: Cambridge University Press, 2009. MATE, Reyes. La herencia del olvido. Madrid: Errata Naturae Editores, 2008 TILLY, Charles. Coerção, capital e estados europeus. São Paulo: Edusp, 1996.

É POSSÍVEL IDENTIFICAR UM CONSTITUCIONALISMO ANTIGO?

A POLITEIA E O STATUS CIVITATIS COMO PRINCÍPIOS ORGANIZADORES DA ORDEM POLÍTICA Leonam Baesso da Silva Liziero1 Matheus Farinhas de Oliveira2

Introdução O presente trabalho irá analisar a divergência sobre a existência ou não de constitucionalismo antigo, realizando-se um cotejo histórico entre a antiguidade clássica e a sociedade pós-medieval ocidental. Desde já resta ressaltado, portanto, a exclusão da discussão acerca do constitucionalismo antigo na idade média3. A ideia moderna de constitucionalismo nos remete ao ideal burguês de separação de poderes, repartição de competências, organização da sociedade e uma garantia de direitos individuais. Embora seja corrente a afirmação de que houve um Constitucionalismo antigo, é necessário que enfrentar a questão com mais detalhamento para verificar sua real possibilidade. Por fim, será apresentada uma proposta de classificação dos paradigmas do constitucionalismo, procedendo-se uma pontuação dos momentos constitucionais relevantes para a organização das diversas sociedades. Doutorando e Mestre em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Professor da Universidade Candido Mendes – UCAM. Advogado. Brasil. [email protected] 2 Bacharel em Direito na Universidade Candido Mendes – UCAM. Advogado. Brasil. [email protected] 3 Essa ideia é defendida por Maurizio Fioravanti que observa na característica de poder difuso um modo de constitucionalismo, demonstrado no poder fragmentado no clero, nos senhores feudais, nas corporações de ofício e no rei. Por uma necessidade de delimitação do objeto de estudo, excluiu-se tais considerações do presente trabalho que demandariam um trabalho próprio. Conferir em Maurizio Fioravanti, Constitución: de la antigüedad a nuestros dias. Trad. Manuel Martinez Neira (Madrid: Editorial Trotta, 2001). 1

Leonam Liziero & Matheus de Oliveira • 97 Dois trabalhos são elementares para a discussão do tema, quais sejam: “Constitutionalism: Ancient and modern” de Charles Howard McIlwain, e “Constitución: De la antiguedad a nuestros dias”, por Maurizio Fioravanti.

Existe um constitucionalismo antigo? A existência de um conceito histórico-universal de constitucionalismo Hodiernamente, entende-se por Constitucionalismo moderno4 o movimento que visa a limitação do poder e supremacia da lei (Estado de direito)5. Tal concepção surgiu nos tempos modernos com o escopo de superar o Absolutismo, em que os monarcas eram, em grande parte, considerados “irresponsáveis”, com a consagração da doutrina da Razão de Estado na fase absolutista do Estado de Polícia. A doutrina da legitimação da proteção contra o arbítrio do poder soberano foi desenvolvida com a emergência do Liberalismo no Século XVII com John Locke, com uma nova formulação de direitos naturais intrinsicamente relacionado com a ideia de propriedade, cuja proteção ou não condicionaria a legitimidade de todo governo.6 O liberalismo proporcionou o desenvolvimento da racionalidade na justificação política de direitos de característica individualista, culminando no Iluminismo oitocentista, associando-a principalmente à construção de novas ordens políticas, seja pela ruptura com o regime antigo, como na França após a Revolução de 1789, seja na formulação de um novo Estado que negava muitas instituições e estruturas políticas de sua antiga colônia, caso dos Estados Unidos da América a partir de 1787, unindo as Treze Repúblicas Parte dos doutrinadores sugerem a existência de uma Constituição escrita, mas a associação nem sempre é necessária ou verdadeira. O exemplo do Reino Unido é emblemático. Por outro lado, existem os casos em que apesar da vigência formal e solene de Cartas escritas não há que se falar em efetividade desta, tais quais as múltiplas ditaduras latino-americanas dos últimos quarenta anos. Nesse sentido verificar, Luís Roberto Barroso. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. 4 ed (São Paulo: Saraiva, 2014). 5 Para uma compreensão mais profunda sobre o tema, verificar, Jorge Reis Novais. Contributo para uma Teoria do Estado de Direito (Coimbra: Almedina, 2006). 6 Verificar os Capítulos V e XI de John Locke. Segundo Tratado sobre o Governo (São Paulo: Abril Cultural, 1979). 4

98 • É possível identificar um constitucionalismo antigo? tornadas independentes a partir de 1776. Ocorre que, seria um anacronismo pensar que jamais tenha existido “limitação do poder”.7 Outrossim, a história já passou por diversas experiências que demonstraram um embrião de “repartição de competências”. Assim é que as ideias embrionárias deste movimento, sob o aspecto material, remonta à Antiguidade Clássica. A própria expressão “constituição” é polissêmica. Pode, portanto, significar a criação de alguma coisa, a natureza de algo, bem como o documento normativo que limita o poder do Estado8, garante direitos individuais e partilha competências9. Só é possível considerar constitucionalismo o movimento que garanta direitos individuais expressos em um documento jurídico? Quais os sentidos possíveis dessa expressão? Só existiria constitucionalismo nos moldes concebidos pela burguesia? Manifestando-se sobre o assunto, Canotilho aduz que o verdadeiro sentido de Constituição surge na modernidade, oriunda de um projeto racional do individualista e subjetivista homem moderno.10 Entretanto, “todas as sociedades politicamente organizadas, quaisquer que sejam as suas estruturas sociais, possuem certas formas de ordenação que podem ser chamadas de constituição”.11 Para McIlwain, o sentido de constituição, anteriormente ao normativo moderno, pode também ser aplicado a uma sociedade politicamente organizada é estruturada.12 Não se fala aqui em constituição como documento jurídico e normativo nos moldes A ideia de limitação de poder inaugurada pelo Constitucionalismo moderno se diferencia das demais formas de limitação de poder anteriores, mas de certa forma eles existiram, ainda que juridicamente não eficientes, como por exemplo, os pactos de poder medievais, que estabeleciam obrigações morais e políticas entre suseranos e vassalos. 8 Gregorio Robles. O Direito como Texto: Quatro Estudos de Teoria Comunicacional do Direito. Trad. Roberto Barbosa Alves (Barueri: Manole, 2005), p. 21. 9 Charles Howard MCilwain. Constitucionalism:Anciet and Modern (London: Cornwell, 1947), p. 9 10 José Joaquim Gomes Canotilho. Direito Constitucional. 6 ed (Lisboa: Almedina, 1993), p. 13. 11 José Joaquim Gomes Canotilho. Direito Constitucional. 6 ed (Lisboa: Almedina, 1993), p. 57. 12 Charles Howard MCilwain. Constitucionalism:Anciet and Modern (London: Cornwell, 1947), p. 23. 7

Leonam Liziero & Matheus de Oliveira • 99 burgueses – seria um anacronismo fazê-lo -, mas constituição como ato de criação ou ordenação social que defina competências e estruture a sociedade. Para Ferdinand Lassalle, que defende um sentido não normativista de Constituição, todos os países possuem e sempre possuíram, em todos os momentos da sua história, o que ele denomina por constituição real e efetiva.13 Deve-se assim, neste contexto defendido por Lassalle, considerar o conceito histórico-universal de constitucionalismo, concebendo constituição como coincidente da organização de um Estado.14 Em virtude desta forma de atividade humana concreta o Estado transforma-se em uma unidade ordenada de ação, adquirindo existência. Essas “relações reais de poder” acham-se em constante movimento e mudam a cada momento. A consciência humana e a cooperação entre os homens são totalmente impossíveis sem a aplicação consciente ou inconsciente desta regra de previsão. Para Heller “a Constituição real do Estado conhece certamente uma normalidade sem normatividade, mas não, ao contrário, uma validez normativa sem normalidade”15, entendendo que na práxis “sempre veremos confirmada a tese de que a Constituição real consiste nas relações de poder”16. Na verdade, é forçoso reconhecer que constitucionalismo é um conceito dinâmico que têm variado de diversas formas ao longo do tempo, influenciados pelas profundas mudanças sociais, polítiUna Constitución real y efectiva la tienen y la han tenido siempre todos los países, como, a poco que paren mientes en ello, ustedes por sí mismos comprenderán, y no hay nada más equivocado ni que conduzca a deducciones más descaminadas, que esa idea tan extendida, de que las constituciones son una característica peculiar de los tiempos modernos. Ferdinand Lassalle. ¿Que és una Constituición? (Bogotá: Editorial Temis, 2003), p. 56-57. 14 Como faz Montesquieu em seu Do Espírito das Leis, no famoso Capítulo VI do Livro Décimo Primeiro, no qual analisa a organização política da Inglaterra, à qual o autor chama de “Constituição”. É nesta parte da obra que Montesquieu disserta a respeito da chamada “doutrina da separação dos poderes”, como resultado da leitura da “Constituição” da Inglaterra. Conferir em, Charles Louis de Secondat Montesquieu, Baron de la Brède et de. O Espírito das Leis. Trad. Fernando Henrique Cardoso (Brasília: Editora UnB, 1995). 15 Hermann Heller. Teoria do Estado. Trad. de Lycurgo Gomes da Motta, (São Paulo: Mestre Jou, 1968), pág. 299. 16 Hermann Heller. Teoria do Estado. Trad. de Lycurgo Gomes da Motta, (São Paulo: Mestre Jou, 1968), 306. 13

100 • É possível identificar um constitucionalismo antigo? cas e econômicas que vêm ocorrendo na sociedade17.

A politeia e a stasis no pensamento grego antigo Os gregos reconheciam uma estreita analogia entre a organização da Polis e do organismo do ser humano individual. Consideravam que os dois elementos deste - corpo e mente - teriam um paralelo entre governantes e governados. Ademais, nos textos gregos não era possível realizar uma distinção tão clara como a realizada pelos Romanos entre jus publicum (direito público) e jus privatum (direito privado); sua política consistia em uma explicação filosófica dos fatos reais, em vez de uma base para deduções jurídicas concretas18. Além disso, ao tratar-se da Grécia e seus institutos é necessário realizar uma advertência. A polis é comumente tratada como um local no qual o cidadão exercia seus direitos políticos na praça pública (ágora) de forma direta. Contudo, seria um equívoco entender “cidadão” nos moldes modernos, somente podendo-se considerado cidadão o homem (mulheres não votavam), livre (escravos eram considerados res, coisa) e não estrangeiro ou descendente destes (metecos). Diferente do que pode-se pensar, a Grécia também contou com leis escritas. Apesar disso, como Douglas MacDowell deixa claro em sua obra “The law in classical Athen”, existem textos de algumas leis - somente uma pequena proporção do total que deve ter existido - seja nas inscrições originais ou em citações nos discursos que sobreviveram, sendo em sua maior parte, contudo, textos incompletos19. Dessa forma, manifestando-se sobre o período grego, o professor Canotilho aduz: Aristóteles oferece-nos um conceito de constituição (politeia) que significa o próprio modo de ser da polis, ou seja, a totaDaniel Sarmento. Direito constitucional: teoria, história e métodos de trabalho (Belo Horizonte: Fórum, 2012), p. 69. 18 Charles Howard MCilwain. Constitucionalism: Anciet and Modern (London: Cornwell, 1947), p. 18. 19 Douglas Macdowell. The law in classical Athens. (New York: Cornell University Press, 1986), p. 54. 17

Leonam Liziero & Matheus de Oliveira • 101 lidade da estrutura social da comunidade. A constituição do Estado tem por objecto a organização das magistraturas, a distribuição dos poderes, as atribuições de soberania, numa palavra, a determinação do fim especial de cada associação política. No conceito aristotélico de constituição juntam-se dois aspectos modernos: (1) a constituição como ordenamento fundamental de uma associação política; (2) a constituição como o conjunto de regras organizatórias destinadas a disciplinar as relações entre os vários órgãos de soberania20.

Em um tempo de profunda crise do mundo clássico grego, Aristóteles e Platão discutiram algumas questões relacionadas à igualdade e teceram críticas á democracia ateniense.21 Nas propostas para a realização da dikaion, termo que tem como objetivo dizer o que pertence a cada um com justiça,22 com a organização justa da polis, surge um dos significados do termo politeia, habitualmente traduzido por constituição, apesar de seu sentido semântico ser diferente do atual. A crise ateniense do Século IV a.C, foi marcada pela ausência da busca pelo bem comum e de justiça, com o vazio argumentativo do governo democrático. Antes tratada como um local para o exercício dos direitos políticos, agora passara a conviver com uma intensa mercantilização.23 Além disso, havia um conflito bastante intenso entre pobres - que desejavam maior assistência - e ricos - que tentavam impedir que houvessem mudanças radicais e propugnavam pela consequente perpetuação do status quo -24. Deve-se, todavia, ter cuidado com esta tradução, porquanto a concepção de constituição é muitas vezes utilizada de forma “atecnica”, tendo em vista que politeia pode ter outros significados. Do ponto de vista objetivo este termo significa a organização políJosé Joaquim Gomes Canotilho. Direito Constitucional. 6 ed (Lisboa: Almedina, 1993), p. 58. 21 Conferir, entre tantas fontes deste diálogo, principalmente Platão. A República. Trad. Edson Bini (São Paulo: Edipro, 2012); e Aristoteles. Ética a Nicômaco. Trad. Edson Bini (São Paulo: Edipro, 2014). 22 France Farago. A Justiça. Trad. de Maria José Pontieri (Barueri: Manole, 2004), p. 71. 23 Arnaldo Miglino. A cor da democracia. Florianópolis: Editorial conceito, 2010, p.34. 24 Maurizio Fioravanti, Constitución: de la antigüedad a nuestros dias. Trad. Manuel Martinez Neira (Madrid: Editorial Trotta, 2001), pág. 15. 20

102 • É possível identificar um constitucionalismo antigo? tica da sociedade, mas jamais será considerada constituição como documento escrito e normativo. Havia, em verdade, uma normalidade sem normatividade. Politeia, assim, seria um instrumento conceitual de que se serve o pensamento político helênico do século IV a.C para buscar a forma de governo adequada, que reforce a unidade da polis.25 Se de um lado havia o risco de confrontos sociais e políticos (stasis), de outro, os filósofos passaram a prever a resolução pacífica dos conflitos, convivendo-se de uma forma ordenada e duradoura (eunomia).26 Para Aristóteles, a politeia traz um “futuro político dotado de constituição”, no qual a política adotada possa se traduzir em um regime constitucional estavelmente fundado. Assim, também alberga a constituição visando extirpar o mal que havia corrompido a unidade da polis, resultado direto de sua “mercantilização”27. Sem embargo, na Grécia não existia essa concepção de “garantia das liberdades individuais”. A liberdade consistia no direito a participar das deliberações públicas da cidade-Estado (visão organicista da comunidade política)28, não havendo cunho restritivo à atuação do Estado na esfera pessoal (preocupação expressada nas revoluções burguesas, mormente em 1789 na Revolução Francesa).

O status civitatis: equilíbrio e conciliação Ao se considerar o período clássico romano, deve-se levar em consideração o modelo de produção escravagista, em que a matriz do desenvolvimento estava nas grandes propriedades apropriadas pela aristocracia patrícia, que controlavam os meios de produção e as terras. Dominavam as classes pobres e livres dos plebeus, clientes e a dos escravos, estes últimos classificados como res

Conferir o funcionamento detalhado da polis em Martin van Creveld. Ascensão e Declínio do Estado. Trad. Jussara Simões. (São Paulo: Martins Fontes, 2004). 26 Maurizio Fioravanti, Constitución: de la antigüedad a nuestros dias. Trad. Manuel Martinez Neira (Madrid: Editorial Trotta, 2001), pág. 15-16. 27 Maurizio Fioravanti, Constitución: de la antigüedad a nuestros dias. Trad. Manuel Martinez Neira (Madrid: Editorial Trotta, 2001), pág. 15. 28 Daniel Sarmento. Direito constitucional: teoria, história e métodos de trabalho (Belo Horizonte: Fórum, 2012), pág. 71. 25

Leonam Liziero & Matheus de Oliveira • 103 (coisa)29. Conforme a lição de Aries e Duby: Os costumes romanos são traduzidos com bastante exatidão pelo direito civil, cujo cordão umbilical com a moral vigente nunca foi realmente cortado: a técnica desse direito, mais verbal que conceptual e ainda menos dedutiva, permitia a seus profissionais entregarem-se a exercícios de virtuosismo. Tal direito realmente permitia obter justiça? Fazia respeitar as regras do jogo quando os indivíduos as violavam para oprimir o próximo? Numa sociedade tão desigual, desigualitária e atravessada por redes de clientelas, não é necessário dizer que os direitos mais formais não eram reais e que a um fraco pouco tinha a ganhar processando os poderosos. E mais: mesmo quando não era violada, a justiça abria vias legais eficazes para obter o cumprimento do direito? (...) o poder público organiza a vendeta privada e não faz nada para impedir30.

A sociedade romana era comumente descrita como desigual, gerando em consequência uma série de instituições políticas e jurídicas sui generis. Ademais, possuía um ambiente de conturbação e de conflitos de classe, decorrentes das desigualdades sociais, principalmente entre as classes dos patrícios e a dos plebeus31. Diferentemente da experiência grega, o Direito Romano abarca mais de 12 séculos de evolução - documentada com certa abundância de fontes -32. Sua história passou por diversos períodos bastante distintos. Sem embargo, é no período da República (510 a.C. até 27 a.C.) que surgem os principais princípios organizadores que poderiam ser equiparados a ideia de constitucionalismo. No período da República, as magistraturas33 passaram a gaAntonio Carlos Wolkmer et. al. Fundamentos de história de direito. 3. ed (Belo Horizonte: Del Rey, 2006), pág. 67 – 68. 30 Philippe Aries, Georges Duby. (Dir.). História da vida privada. v. 1 (São Paulo: Cia, das Letras, 1997), p. 166. 31 Antonio Carlos Wolkmer et. al. Fundamentos de história de direito. 3. ed (Belo Horizonte: Del Rey, 2006), pág. 67 – 68. 32 José Carlos Moreira Alves. Direito romano, vol.1 (Rio de Janeiro: Forense, 1999), p. 1-15. 33 Em 501 a.C., criou-se a magistratura da ditadura (magistratura dos tempos de guerra) e em 443 a.C., surgem os censores. Com a Lex Licinia de Magistratibus, os plebeus adquiriram o direito de ser cônsules. A posteriori a plebe consegue também o direito de participar de outras magistraturas, como a encarregada de fis29

104 • É possível identificar um constitucionalismo antigo? nhar mais prestígio34, destacando-se do poder dos dois cônsules, que inicialmente são as magistraturas únicas e vitalícias35. Neste cenário, para o ilustre professor Canotilho o constitucionalismo da República Romana oferece-nos uma constituição36 como organização jurídica do povo que tem importância sob dois aspectos específicos, quais sejam: é um conceito tendencialmente jurídico; e ressalta a importância do povo37 (populus)38 como organismo ligado por estruturas jurídicas em vista de um fim comum. Como sistema político, a polis é caracterizada por sua coesão e covariação, nos termos de Deutsch.39 Embora na Roma antiga não tenha ocorrido o desenvolvimento de uma doutrina de direitos individuais similar à que se cristalizou na Modernidade, a concepção então vigente já não demandava, como na Grécia, a absoluta submissão do indivíduo à coletividade. De fato, já despontava ali a valorização da esfera individual e calizar espetáculos, da vigilância sanitária, a ditadura, a censura e a pretura urbana e peregrina (aplicavam o direito civil romano aos romanos e aos estrangeiros). Vide José Carlos Moreira Alves. Direito romano, vol.1 (Rio de Janeiro: Forense, 1999), p. 15. 34 Já há aqui uma interessante repartição de competências. Nesse sentido: Antonio Carlos Wolkmer et. al. Fundamentos de história de direito. 3. ed (Belo Horizonte: Del Rey, 2006), pág.91-92. 35 Antonio Carlos Wolkmer et. al. Fundamentos de história de direito. 3. ed (Belo Horizonte: Del Rey, 2006), pág.91-92. 36 A res publica era a organização jurídica do povo. A civitas representava uma forma de res publica, qual seja a comunidade juridicamente organizada cujo centro era constituído por uma cidade. José Joaquim Gomes Canotilho. Direito Constitucional. 6 ed (Lisboa: Almedina, 1993), p. 59-60. 37 O termo populus (Senatus Populusque Romanus) tem já uma conotação jurídico-política na medida em que evoca a personificação da cidade. Nesse sentido José Joaquim Gomes Canotilho. Direito Constitucional. 6 ed (Lisboa: Almedina, 1993), p. 59-60. 38 A definição de Cícero, ao considerar a res publica como agregado de homens associados mediante um consentimento jurídico e por causa de uma utilidade comum, é mais que populus, uma noção jurídico-política, exprimindo a coletividade tomada na sua individualidade como sujeito de relações jurídicas. José Joaquim Gomes Canotilho. Direito Constitucional. 6 ed (Lisboa: Almedina, 1993). p. 59. 39 Karl Deutsch. Política e Governo. Trad. Maria José Mendes (Brasília: Editora UnB, 1979), p. 137.

Leonam Liziero & Matheus de Oliveira • 105 da propriedade, concomitante à sofisticação do Direito Privado romano e ao reconhecimento de direitos civis ao cidadão de Roma, como o direito ao casamento (jus connubium), à celebração de negócios jurídicos (jus commercium), à elaboração de testamento (facciotestamenti) e à postulação em juízo (legis acciones)40.

Políbio (208? – 126? a.C) retoma os grandes temas afrontados pelo pensamento político do Século IV a.C, transformando-os radicalmente. A decadência política ocasionada pela corrupção moral pela ganância injusta, traz novamente a busca pela politeia, ou seja, a constituição como modelo ideal de equilíbrio41. Toda a forma de governo fundada em um só centro de poder é instável. A teoria do equilíbrio social era abstrata e inadmissível – como já reconhecido pelo próprio Aristóteles -. Políbio, fala em “constituição mista” que traduz uma teoria das magistraturas e do equilíbrio entre os poderes42. Com o tempo, a constituição vislumbra a constante aplicação do equilíbrio entre os poderes em contraposição à assembleia popular, titular do poder de deliberação das leis, tendo que levar em conta a existência das competências reservadas ao Senado (v.g., matéria financeira, política do exterior, eleição da maior parte dos juízes). Há uma limitação de cada um dos três poderes por parte dos outros. Trata-se de uma verdadeira mudança de rumos. Há aqui uma teoria da disciplina do poder. Roma, também em crise, retornou ao tema pelas necessidades de superação do momento político vivido. O mero equilíbrio de poderes adotado foi insuficiente, sendo necessário retornar às virtudes cívicas, cujo maior intérprete foi Cicero (106 – 43 a.c.), defensor da conciliação e superação dos extremos em conflito, um modelo misto (aristocrático e também com o governo popular) 43. Daniel Sarmento. Direito constitucional: teoria, história e métodos de trabalho (Belo Horizonte: Fórum, 2012), pág. 71. 41 Maurizio Fioravanti, Constitución: de la antigüedad a nuestros dias. Trad. Manuel Martinez Neira (Madrid: Editorial Trotta, 2001), p. 25. 42 Nesse sentido havia uma repartição por instituições como o Consulado, o Senado e a Assembleia, representativas de estamentos diferentes da sociedade. Vide Daniel Sarmento. Direito constitucional: teoria, história e métodos de trabalho (Belo Horizonte: Fórum, 2012), pág.71 -72. 43 Maurizio Fioravanti, Constitución: de la antigüedad a nuestros dias. Trad. Ma40

106 • É possível identificar um constitucionalismo antigo? Todos os que usurpam o direito de vida e morte sobre o povo são tiranos; preferem, porém, chamar-se com o nome de reis, reservado a Júpiter Ótimo. (...) Quando as riquezas ou o nascimento, ou qualquer coisa parecida, fazem predominar na República alguns homens, embora pretendam chamar-se aristocratas, não passam de facciosos. Quando o povo pode mais e rege tudo ao seu arbítrio, chama-se a isso liberdade; mas é, na verdade, licença. Quando um teme a outro, o homem ao homem, a classe à classe, forma-se entre o povo e os grandes, em consequência desse temor geral, uma aliança de que resulta o gênero de governo misto (...)44.

Sua definição de res publica, como res que é do povo, considerando-se povo aquele que está reunido sobre a base de um consenso sobre o direito de uma comunidade de interesses só é possível com a união e, no mesmo mote que o pensamento grego, não pode ter uma origem unilateral e violenta. A forma de união, chamada por Cícero de status civitatis, é sempre utilizada no sentido de governo ideal, de forma mista e moderada. Soma-se a isto o conceito de aequabilitas, que é a proteção no plano político das virtudes da equidade e da moderação, devendo caber ao omnius bonorum (os mais íntegros e mais bem dotados, que sejam possuidores de posição moderada) dedicar-se de maneira desinteressada ao cuidado da coisa pública, em franca retomada da ideia aristotélica de virtudes para participação política.

Conclusão Dessa forma, em consonância com o que fora exposto acima, é possível afirmar que existe um “constitucionalismo antigo” que, contudo, não se confunde com o “constitucionalismo moderno”. Não se pode confundir aspecto formal do constitucionalismo com seu aspecto material. Embora somente a partir das experiências revolucionárias seja possível falar em constituição como documento jurídico que garanta direitos em face do Estado (sentido formal de constitucionalismo) é forçoso reconhecer que na antiguidade clássica - nas experiências gregas e romanas - haviam embriões do que nuel Martinez Neira (Madrid: Editorial Trotta, 2001), p.28. 44 , Marco Túlio Cícero. Da República. Disponível em: http://www.ebooksbrasil. org/eLibris/darepublica.html#2. Acesso em: 11\11\204.

Leonam Liziero & Matheus de Oliveira • 107 hoje considera-se como constitucionalismo (sentido material de constitucionalismo). Como pode ser percebido, nos dois períodos históricos mensurados, a politeia e o status civitatis funcionavam como princípios organizadores que estruturavam a sociedade. Ambos tinham o fim de dar uma convivência harmônica à sociedade, expurgando desta o mal – a mercantilização da polis ou a corrupção e o autoritarismo de Roma - que a corrompia. As similitudes entre a necessidade de ordenação da sociedade poderiam ser traduzidas, portanto, como características de um constitucionalismo antigo. Assim, politeia e status civitatis servem como medida das relações políticas de seu tempo. Contudo, o termo constituição não era empregado no sentido de norma fundamental de hierarquia superior. O escalonamento de normas é um desenvolvimento que ocorre a posteriori. Assim, estes termos não seguem a mesma lógica moderna. Além disso, não era possível falar em direitos em face do estado, ideia que surge nas revoluções burguesas, principalmente na emblemática revolução francesa de 1789. Sem embargo, isso não significa que não se possa falar em constitucionalismo antigo como outra forma de organização como alternativa ao constitucionalismo liberal. Levando-se em consideração o conceito histórico-universal de constitucionalismo – constituição como coincidente da organização de um Estado – a “Constituição real” do Estado conhece certamente uma normalidade sem normatividade, consistindo nas relações de poder que estruturam a sociedade. Assim, a politeia e o status civitatis podem ser considerados como a Constituição real do Estado. Nesse cenário é que se pode identificar cinco paradigmas do constitucionalismo45, quais sejam: o constitucionalismo antigo - embrião e completamente diverso das estruturas que se seguiram, mas que demonstra já existir um necessidade de unidade e organização da sociedade -; o constitucionalismo liberal revolucionário – preRoberto Viciano Pastor; Rubén Dalmau Martínez, “El nuevo constitucionalismo latinoamericano: fundamentos para una construcción doctrinal”. Em:Revista General de Derecho Público Comparado. N° 9, 2011. Disponível em: https://www. academia.edu/6339900 /El_nuevo_constitucionalismo_ latinoamericano_ fundamentos_para_ una_construcci %C3%B3n _ doctrinal. Acesso em: 11\11\14. 45

108 • É possível identificar um constitucionalismo antigo? sente no século VIII d.C identificado com as revoluções burguesas; as constituições identificadas com o estado de direito – que significa em síntese a mantença dos ideais burgueses -; o constitucionalismo democrático – em que se afigura como marco a discussão sobre a legitimidade, ocorrida nas primeiras décadas do século XX); e ,por fim, o constitucionalismo social – identificado com o Estado do bem-estar social.

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Leonam Liziero & Matheus de Oliveira • 109 HELLER, Hermann. Teoria do Estado. Trad. de Lycurgo Gomes da Motta, São Paulo: Mestre Jou, 1968. MIGLINO, Arnaldo. A cor da Democracia. Florianópolis: Editorial Conceito, 2010 LASSALLE, Ferdinand. ¿Que és una Constituición? Bogotá: Editorial Temis, 2003. LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o Governo. São Paulo: Abril Cultural, 1979. MCILWAIN, Charles Howard. Constitutionalism: Ancient and Modern. Ithaca: Cornell University Press, 1947. PLATÃO. A República. Trad. Edson Bini São Paulo: Edipro, 2012. ROBLES, Gregorio. O Direito como Texto: Quatro Estudos de Teoria Comunicacional do Direito. Trad. Roberto Barbosa Alves. Barueri: Manole, 2005. SARMENTO, Daniel. Direito constitucional: teoria, história e métodos de trabalho. Belo Horizonte: Fórum, 2012. VICIANO PASTOR, Roberto; MARTÍNEZ, Rubén Dalmau, “El nuevo constitucionalismo latinoamericano: fundamentos para una construcción doctrinal”. Em:Revista General de Derecho Público Comparado. N° 9, 2011. Disponível em: https://www.academia. edu/6339900 /El_nuevo_constitucionalismo_ latinoamericano_ fundamentos_para_ una_construcci %C3%B3n _ doctrinal. Acesso em: 11\11\14. WOLKMER, Antonio Carlos et. al. Fundamentos de história de direito. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2006.

O RESSURGIMENTO DO CONFUCIONISMO POLÍTICO NA CHINA:

UM NOVO CONSTITUCIONALISMO CHINÊS? Marcelo Maciel Ramos1 Rafael Machado da Rocha2

Apresentação Décadas após a revolução que em 1949 levou o Partido Comunista Chinês ao poder, intelectuais chineses congregam-se em torno de um novo objetivo comum: colocar-se no campo do debate com o Ocidente, propondo uma teoria política com vistas à desconstrução da aceitação tácita do pressuposto de universalidade em que se fundam os direitos humanos e a democracia liberal. Trata-se, com efeito, de um verdadeiro movimento político-filosófico que, remontando à tradição confucionista, vem definindo os contornos de suas construções teóricas a partir da tentativa de responder às expectativas das nações ocidentais, no que toca ao futuro do Estado chinês, em sua caminhada rumo à consolidação de um Estado de Direito. Encabeçados por Jiang Qing (fundador da Academia Yangming), autores como Sheng Hong (diretor do Instituto de Economia Tianze de Beijing), Kang Xiaoguang (professor da Universidade Renmin) e Chen Ming (professor da Universidade Normal da Capital), vêm apresentando reflexões substanciais no sentido de resgatar uma herança que, no último século, quedou-se silenciada ou, ao menos, afastada dos debates políticos na China continental. Funda-se, assim, uma nova vertente do Neoconfucionismo, cujos esforços concentram-se em recuperar o rico legado de instiDoutor em Direito e Professor dos cursos de bacharelado em Direito e em Ciências do Estado e de Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Para mais informações e contato, acesse www.mmramos. com. 2 Bacharel em Direito e mestrando do Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. 1

Marcelo Maciel & Rafael Machado • 111 tuições políticas e morais de que dispõe a tradição cultural chinesa. Instituições estas que, doravante, poderão resultar na constituição e legitimação de um Estado e de um governo com preceitos muito diversos, se não incompatíveis, daqueles em que se fundam um Estado Democrático de Direito. Estaríamos diante de um constitucionalismo propriamente chinês? Seriam os valores confucionistas desse novo constitucionalismo uma alternativa original para a construção de um novo regime político na China? Em seu esforço de compatibilizar tradição e democracia, seria esse projeto de constitucionalismo neoconfucionista realmente capaz de instaurar na China uma ordem política comprometida com a liberdade? Para responder essas questões, começaremos pela exposição de algumas noções fundamentais do Confucionismo, especialmente no que toca as suas reflexões sobre o político. Em seguida, trataremos da experiência política chinesa no século XX e do ressurgimento nas últimas décadas do Confucionismo político nos debates acadêmicos da China, em especial das reflexões de Jiang Qing e sua proposta de constituição política que procura compatibilizar elementos confucionistas e democráticos.

A China e o Confucionismo O Confucionismo é uma doutrina que tem como base os textos atribuídos a Confúcio, sábio chinês que teria nascido em 551 a.C. no condado central de Lu (atual província de Shān dōng) e vivido até o ano de 479 a.C.3. Trata-se, segundo Anne Cheng, de um “fenômeno cultural que se confunde com o destino de toda a civilização chinesa”4. Ele foi durante quase toda a história da China, desde o século II a.C. até o fim do Império em 1912, o elemento constituidor e justificador da cultura política chinesa. Mesmo que outras construções culturais como as antigas doutrinas legalistas e taoístas, bem como o budismo importado da Índia, tenham concorrido para a formação da cultura e do político na China, o Confucionismo ocupou em todas as épocas um lugar central. Marcel Granet, O Pensamento Chinês, trad. Vera Ribeiro (Rio de Janeiro: Contraponto, 1997), 288. 4 Anne Cheng, História do Pensamento Chinês, trad. Gentil Avelino Titton (Petrópolis: Vozes, 2008), 64. 3

112 • O ressurgimento do Confucionismo político na China Em um esforço preliminar de sintetizar em uma frase o confucionismo, diríamos que ele é uma doutrina da obediência, da conformação e da não imposição de qualquer vontade pessoal nos processos naturalmente harmônicos e espontâneos do mundo, tanto dos processos naturais quanto dos políticos. Trata-se de uma doutrina do não agir, do não intervir. Nesse sentido, Xunzi (312–230 a.C.), um dos mais importantes mestres confucionistas, ensina que não se deve “fazer” para prosperar e não se deve procurar para obter. Em tradução literal do texto chinês: “Não ‘fazer’ e prosperar, não procurar e obter”5. Não se deve agir porque o processo de transformação do mundo é espontâneo e harmônico. Esse processo do mundo é no imaginário chinês o 道 Dào (ou Tao, conforme a forma antiga de transliteração), o qual não tem início nem fim. Ninguém o teria criado, ninguém poderia destruí-lo. Desse modo, seria inútil querer moldá-lo, controlá-lo ou conduzi-lo. O 道德經 Dào dé jīng, obra seminal do taoísmo, explica que: o grande Dào espalha-se ‘em todas as direções’. Todas as coisas dependem dele, todavia, existem sem [que ele] ‘as crie’. As realizações e as obras não [são por ele] reivindicadas. [Ele] protege e suporta todas as coisas, mas não age como [seu] senhor, não tem vontade, [assim] [ele] pode designar o insignificante. Todas as coisas retornam para [ele], mas [ele] não age como [seu] senhor, [assim] [ele] pode designar o grande6.

Essa compreensão sobre o Dào, comum às doutrinas taoístas e confucionistas, ensina que, se o Dào não tem vontade, o homem não deve ter vontade e, portanto, não pode querer impor-se. Por isso, o homem virtuoso deve deixar o Dào se manifestar em sua harmonia espontânea através da não-ação, da não intervenção. Para isso, os confucionistas entendem que a ação deve se pautar pela observância rigorosa dos ritos (禮 lĭ). Confúcio ensina que é apenas a prática do rito que promove a harmonia. Nas palaXunzi, Livro 17, II, Chinese Text Project, acesso em 20 de novembro de 2014. http://ctext.org/xunzi/tian-lun. Todas as traduções foram feitas direto do chinês. Os termos entre colchetes são acréscimos para uma maior fluidez da leitura. 6 Laozi, 道德經 Dào dé jīng, XXXIV, Chinese Text Project, acesso em 20 de novembro de 2014, http://ctext.org/dao-de-jing. 5

Marcelo Maciel & Rafael Machado • 113 vras do mestre chinês: “rito observado, harmonia realizada7”. O rito é entendido, aqui, como a regularidade da ação que imita e evoca a regularidade espontânea e harmônica do Dào. Deve-se conformar aos ritos para não obstruir a harmonia da natureza, para não se desviar dela (a vida social é natureza, as relações familiares é natureza, o poder político é natureza). Para Confúcio, “o homem de bem que amplia o estudo das obras e submete-se aos ritos, não poderia desviar-se [do caminho]”8. As obras às quais se refere o mestre são justamente as obras dos antigos, dos sábios, os quais teriam conformado como poucos suas ações à regularidade do Dào. É pelo exemplo de suas condutas e suas lições sobre os ritos que o homem virtuoso deve se guiar. No que diz respeito ao político, o mesmo raciocínio se aplica: deve-se governar através do rito e do exemplo. Nas palavras do próprio Confúcio, “governa-se um Estado pelo rito”9. Se nenhum homem deve obstruir o curso espontâneo e harmônico do Dào, o mesmo vale para o imperador. Ele não pode querer impor a virtude, ele deve, através do seu próprio exemplo virtuoso, evocar nos outros a virtude. Nesse sentido, Mêncio afirma que “[se o] monarca [é] benevolente, todos [serão] benevolentes, [se o] monarca [é] justo, todos [serão] justos, [se o] monarca é correto, todos [serão] corretos; uma vez [que se] corrija o monarca, também o país será ordenado”10. Portanto, o imperador não deve governar pelas leis ou pelas ordens, mas pela observância ele próprio dos ritos e pelo exemplo da sua virtude. Para os confucionistas, o bom soberano não pode deixar o povo ser apanhado pela armadilha das leis (das ordens). Ele deve lhe proporcionar subsistência e instrução e suscitar, através do seu exemplo, a ordem. Não se impor, mas obedecer! Eis a nota mais característica do Confucionismo. O comando ético fundamental para o homem é o de desaparecer como indivíduo, como ser de vontade. Lembremos que o próprio processo do mundo é, para o pensamento chinês hegemônico, processo sem criador; é ação sem sujeito. Desse Confucius, Confucian Analects: Bilingual Edition, trad. James Legge, (New York: Dover Publications, 1971), 74 (I, 12). 8 Confucius, Confucian Analects, 193 (VI, XXV). 9 Confucius, Confucian Analects, (XI, 26). 10 Mencius, The Works of Mencius. Bilingual Edition, trad. James Legge. (New York : Dover, 1970), 310 (B. IV. Part I, XX). 7

114 • O ressurgimento do Confucionismo político na China modo, a postura que se espera do homem é sempre de passividade. Conforme Confúcio, o “mestre suprime quatro [coisas]: [ele] não [tem] opinião, [ele] não [tem] certezas, [ele] não [tem] rigor, [ele] não [tem] eu [particular]”11. É através do esvaziamento do eu, da supressão da individualidade que se pratica a virtude na China imperial. Para isso, o mestre não deve criar, nem impor nada. Ele deve apenas narrar os exemplos do passado e evocar através do próprio exemplo a virtude nos seus discípulos. Os funcionários letrados do império chinês, formados desde os 漢 Hàn à luz dos fundamentos do Confucionismo, acabaram demonstrando uma clara preferência pela educação como meio de difusão de uma virtude ritualística em detrimento da lei, que passou a justificar-se apenas de modo suplementar e corretivo, a fim de reforçar e esclarecer a importância da educação12. A hierarquia – fundada no que os chineses chamam de piedade filial (孝順 Xiào shùn), que era o dever de afeto e proteção por parte do polo superior das relações e de gratidão, submissão e respeito por parte do polo inferior – converteu-se em princípio máximo de toda a normatividade chinesa. Com isso, as relações hierárquicas altamente ritualizadas entre esposas e maridos, entre filhos e pais, entre súditos e soberanos tornaram-se os fundamentos centrais da experiência normativa da China13. Portanto, podemos afirmar, de início, que o Confucionismo não estabelece como valor da vida social e política nem a autonomia, nem a igualdade. Ao contrário, é na profunda desigualdade das relações rigorosamente hierárquicas e na assimetria dos papeis, aos quais cada um estaria naturalmente destinado, que o Confucionismo vai construir suas justificativas para as estruturas de poder. É no dever de autossujeição e na não intervenção no político que ele se baseia. Após ter sido fortemente repudiado durante quase todo o século XX como doutrina política na China, o Confucionismo retorna à ordem do dia e com ele reinstaura uma velha problemática. Como doutrina da impotência, seria possível derivar dele um princípio democrático, de emancipação e equalização dos indivíduos? Confucius, Confucian Analects, (IX, 4). Geoffrey MacCormack, The Spirit of Traditional Chinese Law (Georgia: University of Georgia Press, 1996), 11. 13 MacComarck, The Spirit of Traditional Chinese Law, 7-10. 11

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Marcelo Maciel & Rafael Machado • 115 Ou ainda: seria possível compatibilizá-lo com os princípios de um Estado democrático?

O ressurgimento do Confucionismo enquanto princípio político da China contemporânea Pode parecer estranho que uma doutrina perseguida e taxada como antiquada por várias décadas esteja assumindo um papel central na vanguarda das transformações da cultura política na China. Conforme sublinha Jiang Qing, em seu artigo From mind Confucianism to Political Confucianism, no séc. XX o Confucionismo, enquanto princípio político, sofreu severos ataques: a meta principal da Revolução Chinesa de 1911 era de fato derrubar o sistema imperial calcado na ideologia confuciana14 e instaurar uma nova república. Semelhante fenômeno ocorre em 1969, com a Revolução Cultural15 levada a cabo por Mao Zedong, quando, numa tentativa abrupta de ruptura com o passado, os valores e instituições de cunho confucionistas são oficialmente substituídos por elementos do discurso marxista. No mesmo sentido, Ruichang Wang sustenta: [O] Confucionismo foi [a tradição] mais ferozmente atacada e condenada na história da China moderna. Foi descartada por ‘’intelectuais esclarecidos e progressistas’’ como um fardo problemático para a China em seu caminho rumo à consolidação dos objetivos [representados pela] ciência e a democracia [ocidentais] [...] Ferido pelas pedras e flechas do Movimento de 04 de maio, de 1919, e da Revolução Cultural, de 1969, o confucionismo se tornou praticamente extinto na Ruichang Wang, “The Rise of Political Confucianism in Contemporary China,” in The Renaissance of Confucianism in Contemporary China, ed. Ruiping Fan (Hong Kong: Springer, 2011), 22. 15 A Revolução Cultural Chinesa foi um fenômeno que durou de 1966 a 1976. Os objetivos centrais da Revolução eram revitalizar o fervor revolucionário do povo chinês, destruindo os resquícios culturais do capitalismo e do “passado feudal”, especialmente do Confucionismo, considerado por Mao reacionário e elitista. Louise Chipley Slavicek, Milestones in Modern History: The Chinese Cultural Revolution (New York: Chelsea House Publishers, 2010), 7-27, 98-112. 14

116 • O ressurgimento do Confucionismo político na China China continental no final do séc. XX16.

Nesse contexto de “caça às bruxas”, fiéis defensores da tradição como Tang Junyi (1909–1978), Mou Zongsan (1909–1995) e Xu Fuguan (1903–1982) tiveram que deixar a China continental, partindo para regiões mais seguras, como Taiwan e Hong Kong. Graças a estes autores, cujo pensamento resistiu ao ideal de modernização (ou ocidentalização) e à consequente perseguição da tradição implementada durante o governo do Partido Nacionalista da China (Zhōngguó Guómíndǎng) e, posteriormente, pelo Partido Comunista da China (Zhōngguó Gòngchǎndǎng), a doutrina confucionista pôde ser preservada através da escola de pensamento que ficou conhecida como Neoconfucionismo Moderno17. Nada obstante, diante do novo contexto vivido pela China, a ideologia comunista tem se mostrado, cada vez mais, insuficiente para fornecer as bases que legitimam a manutenção do Partido Comunista no poder. O próprio PCC parece estar, gradativamente, buscando nas raízes do pensamento chinês um elemento que se preste ao fortalecimento da unidade nacional. Conforme a análise de Daniel A. Bell, com o abismo da desigualdade social à espreita, o governo chinês teria passado a entender que o ideal de harmonia confuciano seria, de certa forma, um reconhecimento implícito de que as coisas não são tão harmoniosas; mas ao contrário dos dias maoístas, os conflitos, agora, devem ser resolvidos pacificamente, repudiando-se assim a alusão ao violento conflito de classes18. No âmbito acadêmico, percebe-se, paralelamente, uma crescente abundância de conferências realizadas e trabalhos publicados tendo como objeto o legado confucionista. Na esteira destes aconteWang, “The Rise of Political Confucianism in Contemporary China,” 33-34. O movimento de 04 de maio de 1919 foi, na verdade, uma reação nacionalista da China em oposição ao Tratado de Versalhes, que garantiu ao Japão o direito sobre a província de Shandong. Os autores explicam que houve, à época, uma forte mobilização intelectual, incitando a oposição aos laços do sistema familiar e incentivando a autoexpressão individual. John King Fairbank. Merle Goldman, China: A New History. (Cambridge: The Belknap Press of Harvard University Press, 2006), 267-268. 17 Wang, “The Rise of Political Confucianism in Contemporary China,” 34 -35. 18 Daniel a Bell, China’s New Confucianism: Politics and Everyday Life in a Changing Society (Princeton: Princeton University Press, 2008), 24. 16

Marcelo Maciel & Rafael Machado • 117 cimentos, intelectuais chineses têm apresentado reflexões substanciais no intuito de reintegrar o Confucionismo às discussões institucionais. À frente desta vanguarda intelectual, encontra-se Jiang Qing. Nascido em 1953, o autor, atualmente, vem ganhando cada vez mais espaço entre intelectuais chineses e seus trabalhos, progressivamente, vêm suscitando discussões que se instauram a nível global. Suas polêmicas propostas visam, em suma, ao estabelecimento de uma ordem constitucional fundada em valores confucianos. À doutrina capaz de inspirar a construção deste novo arranjo políticoinstitucional, Jiang dará o nome de Confucionismo Político. O autor argumenta que o Confucionismo teria se fragmentado ao longo dos séculos. A tradição original teria, assim, se separado em duas vertentes; e com a tendência das escolas neoconfucionista em privilegiar somente uma delas, a doutrina se teria perdido em indagações especulativas, descuidando-se da rica dimensão político-institucional dos ensinamentos de Confúcio. Esta “quebra na continuidade”19 do legado confucionista seria, sobretudo, uma contribuição mais ou menos deliberada do Neoconfucionismo Moderno, que, remontando aos textos escritos pelo discípulo de Confúcio, Zeng Zi (505-436 a.C.) e pelo neto do mestre, Zi Si (483-402 a.C.), bem como à tradição neoconfucionista que prevaleceu durante as dinastias Song (960-1127 d.C.) e Ming (1368-1644 d.C.)20, teria dado forma ao que Jiang Qing chama de Confucionismo Espiritual. Conforme sustenta o autor, os neoconfucionistas que se filiam a esta vertente alhearam-se em preocupações que tinham por objeto questões existenciais e morais na vida dos indivíduos. Diante disso, estes intelectuais teriam erroneamente assumido que a democracia liberal representaria o arranjo político mais adequado ao Confucionismo21. Em outras palavras, o Neoconfucionismo Moderno teria equivocadamente se perdido em um esforço de repensar o Confucionismo nos termos de institutos e instituições, afastando-se, assim dos elementos originais da tradição confuciana. Para solucionar este problema, Jiang Qing propõe o resgaDan Lin, “On ’One-continuity’ in Jiang Qing Confucian Thought,” in The Renaissance of Confucianism in Contemporary China,) 47-54. 20 Qing, “From Mind Confucianism to Political Confucianism,” 25. 21 Qing, “From Mind Confucianism to Political Confucianism,” 18. 19

118 • O ressurgimento do Confucionismo político na China te da vertente política do Confucionismo, a fim de que se possa, a tempo, recompor o que foi perdido pela tradição. A isto, ele denominará Confucionismo Político22. O problema do Confucionismo Espiritual estaria na redução do Confucionismo original ao aspecto “moral interior” do indivíduo (nèi shèng 內聖). Partindo do pressuposto de que o ser humano é naturalmente bom (a exemplo dos ensinamentos de Mêncio), entende-se que o simples o esforço individual de aprimoramento moral conduziria à manifestação exterior inevitável de um modelo sociopolítico ordenado harmonicamente23. O Confucionismo Político se preocupa, por outro lado, com o aspecto da legitimidade política ou da “realeza exterior” (wài wáng 外王). Partindo da compreensão de que a natureza humana não é nem boa nem ruim, ele afirma, a exemplo dos ensinamentos de Xunzi, que o homem poderia se tornar bom se dispusesse de um meio dotado de instituições sociopolíticas que fomentem o desenvolvimento de sua virtude24. Jiang Qing apregoa a importância destes dois caminhos do Confucionismo como realidades que se complementam. A prevalência historicamente concedida ao Confucionismo Espiritual, a partir da tradição desenvolvida durante a dinastia Song, bem como a aceitação, pelos neoconfucionistas modernos, da democracia liberal como único sistema político compatível com os ensinamentos dos letrados têm, para o autor, causas conexas. Assim é que, lamentando a negligência em relação à rica “dimensão institucional” (wài wáng 外王) do Confucionismo Jiang afirma em tom profético: Como resultado [desta negligência], o Grande Caminho do mestre Confúcio foi quebrado, e o Confucionismo como um todo foi mutilado, tal qual um carro com uma roda perdida e um pássaro com uma asa só. Com compatriotas tendo ouvido apenas a respeito do Confucionismo Espiritual [...] não é de se admirar que os teóricos políticos chineses só puderam se virar para o Ocidente em busca de inspiração. Meu livro se Outras denominações são usadas pelo próprio autor e por seus comentaristas para designar esta vertente do Confucionismo. Dentre elas, citamos: Institucional Confucianism, Constitucional Confucianism ou, ainda, Kingly Way Politics (王道政治). 23 Qing, “From Mind Confucianism to Political Confucianism,” 20. 24 Wang, “The Rise of Political Confucianism in Contemporary China,” 26. 22

Marcelo Maciel & Rafael Machado • 119 destina a reparar a tradição confucionista e apresentar o Confucionismo com todas as suas características para o mundo!25

A teoria tridimensional da legitimidade política: um constitucionalismo chinês? A questão basilar atinente à implantação da ordem política calcada em preceitos confucionistas preconizada por Jiang Qing é, decerto, a da legitimidade. Mais do que isso, nos dizeres de Ruichang Wang, Jiang Qing “aduz que a ‘legitimidade política’ é o fundamento e o pré-requisito para todos os sistemas, processos e atividades políticas e táticas, sem a qual tudo que se relaciona com o político perde o seu significado e valor”26. Neste ponto específico Jiang desenvolve uma teoria verdadeiramente inovadora, a qual denominamos teoria tridimensional da legitimidade política. Conforme esta construção, um poder só terá legitimidade se observar simultaneamente três condições: 1) estar de acordo ou ser sancionado pelo Caminho (道 Dào), tal qual preconizam os textos canônicos da Escola Confucionista; 2) não desviar-se de sua herança histórico-cultural ou não romper a continuidade histórica de uma nação; e 3) conformar-se à vontade das pessoas comuns27. Assim, cada uma das dimensões do Dào (道) confucionista estaria reproduzida na legitimação de um governo: o caminho do céu, o caminho da terra e o caminho do homem28. Em comentários a esta teoria, Ruichang Wang esclarece: A dimensão da legitimidade da vontade humana se mostra mais palatável ao entendimento das pessoas modernas, Jiang Qing, Introduction to The Gongyang Commentary on the Springs and Autumns Annals. (Shenyang: Liaoning Education Press: 1995) apud. Ruichang Wang, “The Rise of Political Confucianism in Contemporary China,” 37. 26 Wang, “The Rise of Political Confucianism in Contemporary China,” 38. 27 Wang, “The Rise of Political Confucianism in Contemporary China,” 38. 28 Ruiping Fan, “Jiang Qing on Equality,” in The Renaissance of Confucianism in Contemporary China, 56. Veja também Daniel A. Bell. Jian Qing. Ruiping Fan, Confucian Constitutional Order: How China’s Ancient Past Can Shape Its Political Future, trad. Edmund Ryden (Princeton: Princeton University Press, 2013), 27-29. 25

120 • O ressurgimento do Confucionismo político na China especialmente aos ocidentais, pois se assemelha à ideia democrática de que o governo legítimo [é aquele fundado no] consentimento e apoio do povo. Mas Jiang adverte repetidamente sobre o fato de que esta dimensão democrática de legitimidade não deve ter superioridade sobre as outras duas dimensões. Um sistema político só será legítimo [portanto] quando todas as três dimensões de legitimidade estiverem devidamente equilibradas, sem a preponderância de uma sobre a outra. [...] Jiang argumenta que as pessoas modernas consideram a política como algo puramente humano, secular, [...] não tendo nada que ver com o divino ou o histórico. Mas esta concepção de política, aos olhos do autor, pode causar, e já causou, [...] problemas graves à sociedade [...] como a corrupção moral, poluição ambiental, e os conflitos sociais e nacionais29.

Para transplantar sua construção teórica à realidade concreta, Jiang Qing postula o estabelecimento de um Poder Legislativo tricameral, no qual cada uma das câmaras corresponderia a uma das três dimensões de legitimidade do governo. É assim que, numa câmara superior, figurariam membros nomeados por organizações confucionistas não governamentais e instituições confucianas oficiais. Logo abaixo, em sequência, estaria a casa responsável pela perpetuação da tradição cultural, com representantes das mais diversas religiões e descendentes das famílias tradicionais chinesas. Por último, incluir-se-ia uma corte representativa do povo, cujos membros seriam escolhidos por meio de eleições livres.

Confucionismo, liberdade e igualdade: uma conciliação possível? Como foi explicado acima, o Confucionismo Político é, em suma, uma resposta às premissas democráticas e liberais e, ao mesmo tempo, uma contribuição inovadora para se pensar e se aplicar o poder na sociedade chinesa. Trata-se, a rigor, de um arranjo político-social que prima pela hierarquização e o domínio dos “sábios e santos” sobre os “homens baixos” ou, ainda, do “homem superior” 29

Wang, “The Rise of Political Confucianism in Contemporary China,” 39.

Marcelo Maciel & Rafael Machado • 121 (jūn zǐ君子) sobre o “homem comum” (xiǎo rén小人). Diante disso, não surpreende o fato de a doutrina Confucionista de Jiang Qing constituir, em última análise, uma crítica contundente ao princípio democrático da liberdade e da igualdade. É o que nos esclarece Ruiping Fan: É óbvio que a visão confucionista de Jiang Qing é amplamente distinta da visão liberal, a qual advoga a manutenção de uma postura neutra do Estado na educação moral do povo [...] A lógica de Jiang é clara e coerente: se admitirmos que os valores morais das pessoas são graduados em termos de altivez e baixeza, então devemos aceitar que os sábios tem o direito de educar as pessoas comuns. Se os valores morais dos sábios são os mais elevados valores morais que a humanidade pode possuir [...] por que não aceitar essa realidade de diferenças? Na concepção dos pensadores liberais, ao revés, qualquer indivíduo teria o direito de se autodeterminar em termos de moralidade e, portanto, poderiam, se quisessem, rejeitar os ensinamentos dos sábios. Jiang argumenta claramente que nenhum homem deve ter este direito, eis que os sábios são titulares do “direito divino inalienável” de educar as pessoas comuns.30.

Jiang aduz, ainda, que qualquer país que se pretenda estável, mesmo sendo um Estado composto por várias etnias, com distintas tradições culturais, deve necessariamente interferir na educação moral de seu povo a fim de que possa uni-lo sob uma ideologia predominante – equiparada, aqui, a uma espécie de “religião nacional”. Importante, neste ponto, ressaltar que o autor deixa claro que não se trata de exigir uma posição do Estado que culmine em uma ditadura teocrática, com a perseguição das tradições minoritárias; mas apenas de propor, por exemplo, um sistema educacional que privilegie o ensino do Confucionismo nas escolas chinesas ou, ainda, de identificar o Confucionismo como religião oficial do país. Mais uma vez, não se trata de se impor uma verdade pela força ou pela coerção violenta. O que Jiang postula é a transformação gentil e “generosa” concretizada por meio do “soft power”, o não-agir (wú wéi 無爲) confucionista. 30

Fan, “Jiang Qing on Equality,” 58.

122 • O ressurgimento do Confucionismo político na China Do mesmo modo, no que toca à igualdade perante a Lei, a postura anti-igualitária de Jiang Qing se destaca como absolutamente avessa às premissas do Estado de Direito. Como explica Ruiping Fan, o Confucionismo Político não objeta a noção geral preconizada pelo Rule of Law, segundo a qual todos devem se submeter à lei, mas preconiza que, diante do fato de que as pessoas são diferentes em questão de inteligência e idoneidade moral, não é razoável que elas possuam os mesmos direitos e obrigações. Igualmente, não seria admissível, sob esta perspectiva, aceitar a premissa de que a cada indivíduo corresponde um voto de mesmo peso em relação aos votos dos demais. O sujeito, assim, só poderia ser valorado em relação à (e dentro da) comunidade à qual pertence. Em última análise, o que se postula é um “governo da virtude” (Rule of Virtue) que se erija como horizonte de legitimidade para o “governo da lei” (Rule of Law)31. Mas afinal, estaríamos diante de um novo constitucionalismo chinês? Embora as propostas de Jiang Qing se apresentem como simples elaborações doutrinárias, certamente elas constituem um caminho possível de organização do poder, cujos fundamentos estariam profundamente afinados com os próprios valores culturais da China. Todavia, se entendermos o constitucionalismo como uma técnica da liberdade – isto é, uma técnica jurídica pela qual se assegura aos cidadãos o exercício dos seus direitos, pela qual se limita e se divide o exercício do poder, submetendo-o à lei, pela qual se transfere ao povo a soberania do Estado –, as teorias de Jiang Qing parecem realizar apenas parcial e formalmente a finalidade do próprio preceito. Embora elas estabeleçam um esquema de divisão do poder que nos faz pensar nos modelos tripartites ocidentais, essa separação de prerrogativas não tem como pressupostos nem a igualdade nem a liberdade. Por fim, não podemos olvidar que o Confucionismo, em seus elementos centrais, não estabelece a liberdade ou igualdade enquanto valores fundamentais da vida política. Ao contrário, é na profunda desigualdade das relações e dos papeis que ele constrói suas justificativas para as estruturas de poder. É a partir de um discurso de absoluta dependência e impotência que ele justifica a necessidade de sujeição integral do comportamento humano ao inexorável processo da natureza (o 道 Dào). É claro que toda dou31

Fan, “Jiang Qing on Equality”, 68.

Marcelo Maciel & Rafael Machado • 123 trina é passível de ressignificação e atualização histórica, mas, até aqui, todas as tentativas de conciliação ou aproximação do Confucionismo com os princípios da liberdade e da igualdade ou com a construção de um Estado democrático falham em apontar como será possível compatibilizar esses valores tão radicalmente antagônicos, sem sacrificar justamente o que há de mais característico em uma ou outra perspectiva.

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org

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124 • O ressurgimento do Confucionismo político na China Marcel Granet, O Pensamento Chinês, trad. Vera Ribeiro (Rio de Janeiro: Contraponto, 1997) Mencius, The Works of Mencius, trad. James Legge. (New York : Dover, 1970) Ruiping Fan, The Renaissance of Confucianism in Contemporary China (Hong Kong: Springer, 2011) Xunzi, Livro 17, II, Chinese Text Project, acesso em 20 de novembro de 2014. http://ctext.org/ xunzi/tian-lun

JUDICIAL REVIEW NOS TRIBUNAIS MAÇÔNICOS Grégore Moreira de Moura 1

Introdução Era o ano de 1800, enquanto ocorriam diversos fatos econômicos e sociais no Brasil e no mundo, como a inauguração da Biblioteca do Congresso Nacional dos Estados Unidos em Washington, a intensificação das descobertas de extração de ouro no Brasil, a execução violenta de impostos denominada “derrama” imposta pela Coroa Portuguesa, a eleição do Papa Pio VI, a declaração do príncipe do Brasil D. João VI como regente de Portugal, durante a loucura de sua mãe D. Maria I de Portugal, ocorria nos Estados Unidos da América a eleição de Thomas Jefferson para presidente, derrotando o Federalista John Adams. Tal fato irá culminar com o nascimento do controle de constitucionalidade, já que no início do ano de 1801, o Congresso aprovou a criação de 58 novos juizados de paz. A nomeação de 42 destes juízes seria feita por John Adams, sendo que um desses juízes a serem nomeados era Willian Marbury. Ato contínuo à eleição, Thomas Jefferson determinou a seu secretário James Madison que não entregasse o título de Juiz de Paz a Marbury, pois este havia sido nomeado pelo seu antecessor e adversário político. Insatisfeito com tal decisão, Marbury requer a notificação de Madison para lhe dar as razões pelas quais havia negado a entrega do título de Juiz de Paz, junto à Suprema Corte Americana. Surge Trabalho apresentado no I Congresso Internacional de Direito Constitucional e Filosofia Política, organizado pelos Programas de Pós-Graduação em Direito da UFMG e da Escola Superior Dom Helder Câmara, no dia 07 de novembro de 2014, no Grupo de Trabalho “Novas Propostas de Democratização do Controle de Constitucionalidade”, por Grégore Moreira de Moura. Mestre em Ciências Penais pela UFMG (2006). Doutorando em Direito Constitucional UFMG (2014). Procurador Federal. Responsável pela direção da Escola da Advocacia Geral da União na 1ª Região. Autor do livro do Princípio da Co-Culpabilidade. Belo Horizonte: D’Plácido, 2014. Brasil. Endereço eletrônico: [email protected].

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126 • Judicial Review nosTribunais Maçônicos então o case paradigmático que institui o controle de constitucionalidade, isto é, o case Marbury x Madison, cuja decisão ocorre somente no ano de 1803 e pela primeira vez afirma o poder dos Tribunais de deixar de aplicar leis federais inconstitucionais2. Com efeito, abre-se o caminho para o Judicial Review, ou seja, a doutrina que permite ao Poder Judiciário exercer a revisão dos atos praticados pelos Poderes Executivo e Legislativo, podendo, inclusive, invalida-los quando os mesmos não estão de acordo com a Constituição3. Determinada a matriz histórica do Judicial Review e sua definição, busca-se neste estudo demonstrar como esta doutrina se desenvolveu e é aplicada nos Tribunais Maçônicos, mas antes passando pela tripartição dos poderes na Maçonaria e pelo papel exercido pelo Poder Judiciário dentro desta Instituição tão tradicional e importante para o desenvolvimento político e, principalmente, social do país. Portanto, o objetivo deste trabalho é relevar a fundamentação jurídica, política, social e crítico-reflexiva do Judicial Review no âmbito da Maçonaria e de seus Tribunais, analisando as semelhanças e diferenças entre o Poder Judiciário Maçônico e o Poder Judiciário profano4. Trilha-se, com efeito, o seguinte caminho: a divisão de PodeAo tratar da matriz americana de controle de constitucionalidade Bernardo Fernandes arremata: “De uma maneira sucinta e seguindo uma linha histórica, a primeira matriz é a norte-americana, deflagrada no célebre caso Marbury X Madson, julgado pela Suprema Corte Americana em 1803. Nesse julgado, restou consignado a doutrina da supremacia da Constituição bem como a criação do controle de constitucionalidade das leis”. FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 3ª edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. Pág. 904. 3 “The basic idea behind Marbury is that constitucional judicial review of laws is nothing extraordinary. As the Court observed, the first “province and duty” of all courts is to determine “what the law is” in any case before them. “The law” includes the Constitution and, in particular, its supremacy clause setting the hierarchy of laws. Consequently, when a court discovers that statute violates the Constitucion, it simply engages in a “choice-of-law” determination, applying the Constitution and ignoring the statute” BURNHAM. William. Introduction to the Law and Legal System of the United States St. Paul: Thomson West, 2006. Pág. 319. 4 Profano é a designação dada pelos maçons aos não iniciados na ordem. Este conceito às vezes é estentido para instituições ou atos não maçônicos. 2

Grégore Moreira de Moura • 127 res na Maçonaria, o Supremo Tribunal Federal Maçônico e o Judicial Review Maçônico; a fraqueza do Judicial Review Maçônico; a legitimidade na Ação de Inconstitucionalidade Maçônica; as decisões dos Tribunais Maçônicos, e, por fim, apresentar as diversas nuances desta seara tão interessante do Direito Constitucional Maçônico.

A divisão de poderes na Maçonaria A Maçonaria é uma entidade filantrópica, filosófica, educativa que tem por objetivo a promoção de certos princípios de ajuda mútua e ao próximo, sendo que se fundamenta na tríade de valores propostos pela Revolução Francesa, quais sejam a liberdade, a igualdade e a fraternidade5. O Artigo 1º da Constituição do Grande Oriente do Brasil traz alguns princípios fundamentais da Maçonaria, in verbis: “Art. 1o - A Maçonaria é uma instituição essencialmente iniciática, filosófica, filantrópica, progressista e evolucionista, cujos fins supremos são: Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Parágrafo único. Além de buscar atingir esses fins, a Maçonaria: I - proclama a prevalência do espírito sobre a matéria; II - pugna pelo aperfeiçoamento moral, intelectual e social da humanidade, por meio do cumprimento inflexível do dever, da prática desinteressada da beneficência e da investigação constante da verdade; III - proclama que os homens são livres e iguais em direitos e que a tolerância constitui o princípio cardeal nas relações humanas, para que sejam respeitadas as convicções e a dignidade de cada um; IV - defende a plena liberdade de expressão do pensamento, como direito fundamental do ser humano, observada correlata responsabilidade; V - reconhece o trabalho como dever social e direito inalienável; VI - considera Irmãos todos os Maçons, quaisquer que sejam suas raças, nacionalidades, convicções ou crenças; VII - sustenta que os Maçons têm os seguintes deveres essenciais: amor à família, fidelidade e devotamento à Pátria e obediência à lei; VIII - determina que os Maçons estendam e liberalizem os laços fraternais que os unem a todos os homens esparsos pela superfície da terra; IX recomenda a divulgação de sua doutrina pelo exemplo e pela palavra e combate, terminantemente, o recurso à força e à violência para a consecução de quaisquer objetivos; X - adota sinais e emblemas de elevada significação simbólica; XI - defende que nenhum Maçom seja obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei; XII - condena a exploração do homem, os privilégios e as regalias, enaltecendo, porém, o mérito da inteligência e da virtude, bem como o valor demonstrado na prestação de serviços à Ordem, à Pátria e à Humanidade; XIII - afirma que o sectarismo político, religioso e racial são incompatíveis com a universalidade do espírito maçônico; XIV - combate a ignorância, a superstição e a tirania”. 5

128 • Judicial Review nosTribunais Maçônicos Desta feita, não poderia deixar de haver muitas semelhanças entre o ordenamento jurídico comum ou profano e o ordenamento jurídico-maçônico, já que os três valores são fundamentadores do Direito em ambos os casos. Portanto, o que dá destaque à Maçonaria em relação a outras entidades filantrópicas é exatamente sua estrutura tradicional, a discrição que a permeia e, o que nos interessa neste momento, a noção de um ordenamento jurídico próprio e especial. A Maçonaria possui uma legislação própria editada pelos três poderes que a compõe, portanto, temos no âmbito interno da Instituição a divisão herdada de Montesquieu relativa a tripartição dos poderes. Logo, também no âmbito maçônico temos o sistema de “check and balances”, visto que há repartição de competência e mecanismos de controle entre os três poderes maçônicos, quais sejam: Legislativo, Judiciário e Executivo. As competências e os mecanismos de controle de cada poder estão previstos na Constituição da potência maçônica6. Pode-se citar o exemplo da Constituição7 do Grande Oriente de Brasil que em seu artigo 5º proclama: “A soberania do Grande Oriente do Brasil emana do povo maçônico e em seu nome é exercida pelos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, independentes e harmônicos entre si, sendo vedada a delegação de Embora causando uma situação esdrúxula por quebrar a unidade existente em outros países, na Maçonaria do Brasil existem três potências maçônicas formadas por sucessivas divisões internas que são: COMAB (Confederação Maçônica do Brasil); GOB (Grande Oriente do Brasil) e GLM (Grande Loja Maçônica). Cada uma dessas potências tem suas constituições, leis e regulamentos, apesar de diversas semelhanças ritualísticas e normativas. Vale ressaltar que todas se auto reconhecem como legítimas para a prática da Arte Real. Iremos adotar aqui como base as normas maçônicas editadas pelo GOB (Grande Oriente do Brasil), sem prejuízo de citarmos outras para ilustrar melhor o trabalho comparativo. 7 Valter Martins Toledo ao se referir à Constituição Maçônica demonstra sua importância no ordenamento jurídico maçônico dizendo que: “A nossa Constituição é obrigatória a todos os Maçons do Grande Oriente do Brasil. A legislação complementar, assim entendida as Constituições Estaduais, o Regulamento Geral da Ordem, o Código Eleitoral, a Lei Penal etc., também obriga a todos já que é elaborada em consonância com a Lei Maior. Verifica-se, pois que o Direito Maçônico é perfeitamente válido. É o JUS SINGULARE dos Maçons”. TOLEDO, Valter Martins. Jurisprudência e Doutrina Maçônica. Impressão Independente. Pág. 456. 6

Grégore Moreira de Moura • 129 atribuições entre eles”. Outrossim, o Poder Legislativo é representado pela Assembleia Federal (no caso do Grande Oriente do Brasil, pois a COMAB não possui estrutura federada e sim confederada8) composta por deputados eleitos pelo voto direto dos Maçons e das Lojas da Federação9; o Poder Executivo representado pelo Grão-Mestrado Geral composto do Grão-Mestre Geral, do Grão-Mestre Geral Adjunto, do Conselho Federal e das Secretarias-Gerais10 e, por fim, o Poder Judiciário que é exercido pelos seguintes órgãos Supremo Tribunal Federal Maçônico; Superior Tribunal de Justiça Maçônico; Superior Tribunal Eleitoral; Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal; Tribunais Eleitorais dos Estados e do Distrito Federal; Conselhos de Família e Comissão Processante e Oficinas Eleitorais11. Desta feita, observamos a replicação, pelo menos no Grande Oriente do Brasil, do modelo federativo de repartição de competências entre os órgãos maçônicos, sendo que temos o âmbito federal e estadual como no modelo clássico, já que não contamos com estrutura similar ao Município na estrutura normativa da Maçonaria. Se se fizer um esforço intelectivo e analógico, talvez as Lojas Maçônicas pudessem ser comparadas ao Município como previsto na Constituição Federal de 1988 com atribuições calcadas no interesse local12. Entretanto, o que nos interessa neste estudo é exatamente o Poder Judiciário na questão da tripartição dos poderes maçônicos, destacando-se, principalmente, sua questão dogmática, bem como a forma de exercício do Judicial Review no âmbito da Maçonaria.

Supremo Tribunal Federal maçônico e o judicial review maçônico Como dito anteriormente, a Constituição Maçônica do Nos casos de Lojas pertencentes à COMAB, o órgão máximo de julgamento é um Tribunal Estadual. No caso do Grande Oriente de Minas Gerais, o Regimento Interno do Tribunal de Justiça Maçônico prevê a possibilidade de controle de constitucionalidade em seu artigo 28, IV, c. 9 Artigos 35 e 36 da Constituição do GOB. 10 Artigo 70 da Constituição do GOB. 11 Artigo 97 da Constituição do GOB. 12 Artigos 29 e 30 da Constituição Federal de 1988. 8

130 • Judicial Review nosTribunais Maçônicos Grande Oriente do Brasil traz em seu título VI, Capítulo I os órgãos que compõem o Poder Judiciário Maçônico, sendo que dentre eles encontra-se o Supremo Tribunal Federal Maçônico. Este órgão é o órgão máximo do Poder Judiciário Maçônico com sede em Brasília-DF e jurisdição em todo o território nacional, compondo-se de nove ministros nomeados pelo Grão-Mestre Geral13. A primeira questão a ser destacada na formação deste Tribunal é que segundo disposição do art. 102, § 2º da Constituição do GOB, os juízes possuem mandato de 3 anos, sendo que há renovação anual de um terço dos seus membros, permitidas reconduções, ou seja, ao menos em tese está presente um sistema mais democrático se comparado ao ordenamento jurídico profano, onde há previsão de vitaliciedade para os juízes que compõem o Supremo Tribunal Federal14. Segundo o art. 102, § 1º da Constituição do GOB: “Os Ministros serão nomeados pelo Grão-Mestre Geral, sendo: I - dois terços indicados pelo Grão-Mestre Geral e um terço pela Mesa Diretora da Soberana Assembleia Federal Legislativa; II - as indicações dos nomes de que trata o inciso anterior, acompanhadas dos respectivos currículos maçônicos e profissionais, serão submetidas à apreciação da Soberana Assembleia Federal Legislativa. § 2o - Os Ministros escolhidos dentre Mestres Maçons de reconhecido saber jurídico-maçônico servirão por um período de três anos, renovando-se anualmente o Tribunal pelo terço, permitidas reconduções. 14 O Judicial Review profano é criticado por alguns autores como Jeremy Waldron que aduz não serem os Tribunais dotados de representatividade nem participação eleitoral, como se tem no Poder Legislativo. Talvez não resolva o problema o simples fato de ter eleições para o cargo de juízes nos Tribunais, mas no caso do Direito Maçônico, Waldron teria mais dificuldade de elaborar sua crítica, principalmente pela rotatividade e participação eleitoral no Tribunal Maçônico. Sobre o tema diz o autor citado: “I assume that, unlike the institutions referred to in the previous Section, the courts are mostly not elective or representative institutions. By this I mean not only that judicial office is not (for the most part) an elective office, but also that the judiciary is not permeated with an ethos of elections, representation, and electoral accountability in the way that the legislature is. (...) But even where judges are elected, the business of the courts is not normally conducted, as the business of the legislature is, in accordance with an ethos of representation and electoral accountability”. WALDRON, Jeremy.The Core of the Case Against Judicial Review. The Yale Law Journal. Pág. 1363. Disponível em http://www.yalelawjournal.org/pdf/115-6/Waldron.pdf. Acesso em novembro de 2013. 13

Grégore Moreira de Moura • 131 Esta questão é muito debatida no âmbito do Judicial Review tendo em vista que esbarra na questão da legitimidade de juízes não eleitos afastarem normas editadas pelos representantes do povo, aprovadas por maioria de seus membros. No caso do Tribunal Maçônico, o debate acalorado em torno desta legitimidade perde um pouco de sua força, em virtude da existência de mandato predeterminado e pela previsão de renovação anual. Malgrado não haja eleição de seus membros, o processo passa a ser mais democrático e representativo. Outro aspecto que merece destaque no que tange ao Supremo Tribunal Federal Maçônico é sua competência para julgar a representação por inconstitucionalidade de lei ou ato normativo. Desta feita, temos na Constituição Maçônica, seguindo os ditames da Carta Magna de 1988, a previsão expressa da possibilidade de realização do controle de constitucionalidade das leis e atos normativos, o que dá ensejo ao Judicial Review Maçônico. Assim, percebe-se que há previsão expressa da aplicação do Judicial Review no âmbito maçônico, tendo em vista que a declaração de constitucionalidade se dá pelo voto da maioria absoluta dos seus membros15 em dispositivo similar ao art. 97 da Carta Magna de 1988. Nesta esteira, para que haja declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo maçônico é preciso ter 5 votos dos 9 juízes que compõem o Supremo Tribunal Maçônico.

A fraqueza do judicial review maçônico. O estudo do controle de constitucionalidade com a consequente competência do Poder Judiciário de revisar os atos normativos e leis editados por outros poderes está intimamente relacionado com o princípio constitucional da supremacia da Constituição16. Artigo 103, § 2º da Constituição do GOB. Conforme aduz Bernardo Gonçalves Fernandes: “Portanto, do caso Marbury x Madison podemos retirar duas digressões que, até hoje, são atuais na Teoria da Constituição e que vão nos ajudar a entender a Constituição Formal desde então: 1) A Constituição prevalece sobre todo o ordenamento jurídico ordinário, mesmo o posterior a ela, porque dotada de supralegalidade ( doutrina da supremacia constitucional); e 2) Se a Constituição prevalece e não sucumbe às normas ordinárias contrárias a ela, os ataques (as infringências) serão defendidos, em regra, na maioria dos países, pelo Poder Judiciário (doutrina do controle de consti15 16

132 • Judicial Review nosTribunais Maçônicos Através do reconhecimento deste princípio e da superioridade da Constituição em relação a outras normas advêm duas possibilidades: a classificação da Constituição quanto à estabilidade (rígida, semirrígida, flexível) e a constitucionalização do Direito. Aplicando-se o raciocínio supra no Direito Maçônico, para se ter um autêntico Judicial Review Maçônico forte, teríamos que ter o princípio constitucional da supremacia da Constituição Maçônica, do qual decorreria um processo legislativo qualificado de alteração, através da rigidez dos seus dispositivos. Ocorre que a Constituição Federal do Grande Oriente do Brasil, no Capítulo II do Título IV (Do Poder Legislativo), aduz que o processo legislativo compreende a elaboração de reforma da Constituição, emenda à Constituição, projetos de leis e resolução, portanto, pode haver reforma e emenda da Constituição, cujas propostas devem ser feitas por dois terços dos Deputados no caso de reforma e por Deputado, Comissão Permanente, Grão-mestre Geral ou Loja Maçônica através de sua diretoria no caso de emenda17. Todavia, a Constituição Federal não traz o procedimento de aprovação de emenda constitucional, o que é feito apenas no Regimento Interno da Assembleia Legislativa Federal do Grande Oriente do Brasil. Neste regimento, em seu Título VIII trata “Da Emenda à Constituição”, donde se observa que as emendas à constituição devem ser votadas em duas sessões na casa legislativa. Ressalte-se que também há previsão no mesmo diploma legislativo de cláusulas pétreas, mas que também abarcam um Judicial Review fraco, tendo em vista que não está previsto na lei maior. Diz o artigo 141 do Regimento: “Art. 141. Não serão admitidas, como projeto de deliberação, emendas tendentes a suprimir a forma federativa, a igualdade de repretucionalidade das leis”. FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 3ª edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. Pág. 13. 17 Importante ressaltar a diferença existente na legislação maçônica, principalmente, quando se estuda a legislação de outras Potências Maçônicas. Na Constituição do GOMG (Grande Oriente de Minas Gerais), o qual está vinculado à COMAB – Confederação Maçônica do Brasil, por exemplo, as entidades que podem propor emenda à Constituição são: um terço, no mínimo, dos membros da Assembleia Legislativa, do Grão-Mestre e de um mínimo de dez Lojas da Obediência manifestando-se cada uma delas por mais da metade dos obreiros do quadro.

Grégore Moreira de Moura • 133 sentação, a independência dos Poderes da Ordem e os Ritos reconhecidos pelo Grande Oriente do Brasil”.

Além disso, existe no âmbito maçônico o controle prévio de constitucionalidade ou também denominado controle profilático exercido no âmbito da Comissão de Constituição e Justiça da Assembleia Legislativa Federal, a qual tem por missão emitir parecer sobre a constitucionalidade, a legalidade e os aspectos formais dos projetos de lei a ela submetidos18. Outro aspecto interessante do controle prévio de constitucionalidade na seara do Direito Maçônico é a possibilidade de uma espécie de “Legislative Review”, onde os próprios Deputados têm a possibilidade de modificar a emenda constitucional oferecendo substitutivo ou emenda, a fim de sanar o vício de inconstitucionalidade ou ilegalidade do projeto de lei, ao se deparar com o parecer elaborado pela Comissão de Constituição e Justiça da Assembleia Maçônica. É o que está previsto no art. 85 do Regimento da Assembleia, o qual vale a pena transcrever: “Art. 85. O parecer pela inconstitucionalidade ou ilegalidade de qualquer proposição poderá ser revisto desde que, antes da sua votação, qualquer Deputado ofereça substitutivo ou emenda, visando sanar o vício apontado, caso em que retornará à Comissão de Constituição e Justiça para novo pronunciamento.”

Portanto, temos aqui a possibilidade de sanar o vício de inconstitucionalidade no próprio Poder Legislativo, a fim de que se evite a judicialização da questão junto ao Supremo Tribunal Federal Maçônico, o que reduz demandas, promove a resolutividade de questões dentro da mesma esfera de poder e fomenta o viés fraterno e conciliador dentro do próprio órgão19. Segundo o art. 15, I, a do Regimento da Assembleia Legislativa Federal do Grande Oriente do Brasil: “São atribuições específicas das Comissões Permanentes, além das previstas em outras disposições regimentais, as que se seguem: I - da Comissão de Constituição e Justiça: a) emitir parecer sobre constitucionalidade, legalidade e atendimento de requisitos técnico- legislativos a respeito das matérias submetidas à sua apreciação”. 19 O regimento da Câmara Federal no direito profano prevê que o parecer da Comissão de Constituição e Justiça é terminativo, na forma do art. 54, I. Além disso, 18

134 • Judicial Review nosTribunais Maçônicos Mais um exemplo de Judicial Review Maçônico fraco é o que ocorre no âmbito do Grande Oriente de Minas Gerais, órgão confederado à COMAB (Confederação Maçônica do Brasil), já que na Constituição não há previsão de competência para julgamento de inconstitucionalidade, sendo que tal previsão somente é feita no Regimento Interno do Tribunal de Justiça. Por haver nesta Potência uma estrutura de Confederação, aqui não se tem a presença de um Supremo Tribunal Federal Maçônico, sendo o Tribunal de Justiça a entidade máxima. Com efeito, a força normativa da questão do Judicial Review é diminuta já que tanto a previsão da competência para decidir sobre a inconstitucionalidade de leis ou de atos normativos dos outros poderes (Legislativo e Executivo), quanto a disciplina da arguição de inconstitucionalidade estão previstas, respectivamente, nos artigos 28, IV, c e artigo 127 do Regimento Interno do Tribunal de Justiça. Malgrado ser fraco o poder de controle e revisão das leis e atos normativos no seio da Maçonaria, tal possibilidade já demonstra uma maturidade institucional na esteira do que a doutrina tem chamado de “compliance” 20, isto é, observância de todas as questões legais no âmbito da entidade, mormente no que tange ao astambém há no direito profano o controle prévio de constitucionalidade em moldes um pouco distintos. A propósito do tema transcrevem-se os artigos 146 e 147 do Regimento, mas que não contemplam a hipótese de retorno à CCJ para sanar o vício de inconstitucionalidade: “Art. 146. Quando a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, ou a Comissão de Finanças e Tributação, apresentar emenda tendente a sanar vício de inconstitucionalidade ou injuridicidade, e de inadequação ou incompatibilidade financeira ou orçamentária, respectivamente, ou o fizer a Comissão Especial referida no art. 34, II, a matéria prosseguirá o seu curso, e a apreciação preliminar far-se-á após a manifestação das demais Comissões constantes do despacho inicial. Art. 147. Reconhecidas, pelo Plenário, a constitucionalidade e a juridicidade ou a adequação financeira e orçamentária da proposição, não poderão estas preliminares ser novamente arguidas em contrário”. 20 “As técnicas de compliance, num cenário mais abrangente, dizem respeito à criação de procedimentos inclinados à solidificação de práticas preventivas a partir da criação de procedimentos internos de controle, treinamento de pessoas e monitoramento do cumprimento de procedimentos, tudo de modo a mitigar riscos enfocando o estreito cumprimento de leis e regulamentos existentes”. BIANCHI, Eliza. “Criminal Compliance” sob a ótica do estudo do risco”. Disponível em: (http://www.ibccrim.org.br)

Grégore Moreira de Moura • 135 pecto do diálogo institucional.

Da legitimidade na ação de inconstitucionalidade maçônica21 No Direito Maçônico tem-se tanto o controle de constituOs artigos 92 a 101 do regimento interno do Supremo Tribunal Federal Maçônico definem o procedimento da ação direta de inconstitucionalidade que, pela importância do tema e a título de comparação com o rito no mundo profano, vale a transcrição: “Art. 92. Podem propor ação direta de inconstitucionalidade de lei ou de ato normativo: I – o Grão-Mestre Geral; II – a Mesa Diretora da Soberana Assembleia Federal Legislativa; III – o Procurador-Geral; IV – os Grãos-Mestres dos Estados e o do Distrito Federal; V – as Mesas Diretoras das Assembleias Legislativas dos Estados e a do Distrito Federal; VI – as lojas. Art. 93. A petição inicial indicará: I – o dispositivo da lei ou do ato normativo questionado e os fundamentos jurídicos do pedido; II – o pedido, com suas especificações. Parágrafo único. A petição inicial será apresentada em duas vias, acompanhada das cópias da lei ou do ato normativo questionado, dos documentos necessários ao exame do pedido de declaração de inconstitucionalidade, bem como do instrumento de procuração, quando subscrita por advogado. Art. 94. A petição inicial inepta ou manifestamente improcedente será liminarmente indeferida pelo relator. Dessa decisão caberá agravo regimental no prazo de cinco dias. Art. 95. Não será admitida a intervenção de terceiros no processo de ação direta de inconstitucionalidade. Art. 96. O relator requisitará informações aos órgãos ou às autoridades das quais emanou a lei ou o ato normativo impugnado, que disporão de quinze dias para prestá-las. Parágrafo único. Havendo pedido de medida cautelar, o relator observará o disposto no inciso IV do art. 16. Art. 97. Prestadas as informações, ou decorrido in albis o prazo assinado, o Procurador- Geral, se não foi o autor da ação, manifestar-se-á no prazo de quinze dias. Art. 98. O relator, lançado o relatório nos autos, do qual o secretário remeterá cópia a todos os ministros, pedirá dia para julgamento. Art. 99. A decisão sobre a inconstitucionalidade de lei ou de ato normativo somente será tomada se presentes, na sessão, pelo menos seis ministros. Art. 100. Somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros poderá o tribunal declarar a inconstitucionalidade de lei ou de ato normativo. Parágrafo único. Se não for alcançada a maioria necessária à declaração de inconstitucionalidade, e se o número de ministros ausentes puder influir no julgamento, este será suspenso a fim de aguardar o comparecimento dos ausentes, até que seja atingido o número necessário para prolatar a decisão. Art. 101. Julgada procedente a ação, e declarada a inconstitucionalidade total ou parcial da lei ou do ato impugnado, far-se-á comunicação à autoridade responsável pela expedição do ato normativo impugnado”. 21

136 • Judicial Review nosTribunais Maçônicos cionalidade por via incidental como o controle exercido por via de ação judicial, os quais, normalmente, se fazem, respectivamente, através do controle judicial difuso e concentrado22, sendo que há previsão expressa das autoridades legítimas a ajuizar a ação de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo. No caso do Grande Oriente do Brasil as autoridades que podem propor a ação de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo são: a) Os Grão-Mestres dos Estados e o do Distrito Federal, e seus Adjuntos23; b) As Mesas Diretoras das Assembleias Legislativas dos Estados e do Distrito Federal;24 c) As Lojas Maçônicas;25 d) Mesa Diretora da Soberana Assembleia Federal Legislativa;26 e) Grão-Mestre Geral;27 f) Ministério Público Maçônico;28 Portanto, não chegamos a ter a comunidade aberta de intérpretes proposta por Peter Haberle29, mas, o fato de permitir que as Lojas Maçônicas (a menor célula dentro da estrutura jurídica maçônica) ajuíze diretamente a ação de inconstitucionalidade de lei ou “Conforme o saudoso professor José Wilson Ferreira Sobrinho: “Declarada a inconstitucionalidade de uma lei maçônica, abrem-se duas possibilidades: 1 – Se a declaração ocorrer na via direta, não há necessidade de intervenção da Assembleia Legislativa Maçônica; 2 – Se a declaração for feita na via recursal, então haverá necessidade de a Assembleia Legislativa Maçônica editar uma Resolução para suspender a execução da lei – ou de artigos - reputada inconstitucional, se se pretender que essa inconstitucionalidade tenha efeito erga omnes”. SOBRINHO, José Wilson Ferreira. Legislação Maçônica. Londrina: Editora A Trolha, 2002. Págs. 102 e 103. 23 Artigo 12,§ 3º da Constituição do GOB. 24 Artigo 12,§ 3º da Constituição do GOB. 25 Artigo 26, XVII da Constituição do GOB. 26 Artigo 47, parágrafo único, II da Constituição do GOB. 27 Artigo 76, XVII da Constituição do GOB. 28 Artigo 96, III da Constituição do GOB. 29 HABERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional - A Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição. Porto Alegre. SAFE, 1997. 22

Grégore Moreira de Moura • 137 ato normativo, promove um amplo leque de discussão e de debate participativo em torno da interpretação constitucional maçônica. Por outro lado, como já visto no tópico anterior, a arguição de inconstitucionalidade também pode ser feita em qualquer processo pelas partes de maneira incidental, sendo, portanto, que qualquer maçom tem legitimidade para alegar e defender a aplicação da Constituição Maçônica.

Algumas decisões dos Tribunais Maçônicos Para ilustrar a questão da atividade dos Tribunais Maçônicos, principalmente quanto ao controle de constitucionalidade e estreita ligação deste tema como questões políticas, transcreve-se algumas decisões e acórdãos. a) AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE Nº 456/2010 Representante: MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL MAÇÔNICO Representado: GRANDE ORIENTE DO BRASIL “(....) Em razão disso, CONCEDO a LIMINAR pleiteada, para suspender a vigência do artigo 48, do Código Eleitoral Maçônico, aprovado pela Lei nº 01, de 23 de junho de 1982 (vide fls. 12/30), para todos os fins e efeitos de direito, a partir 13-10-2010, por não restar recepcionado pela Constituição do Grande Oriente do Brasil de 2007 (artigo 122), até final julgamento desta ADIn. Igualmente, CONCEDO a LIMINAR postulada, para suspender a vigência da Portaria STE nº 002/2010, de 18-09-2010, do Superior Tribunal Eleitoral do Grande Oriente do Brasil, que revogou a Portaria nº 001/2010-STE, de 21-06-2010, do STE/GOB, para todos os fins e efeitos de direito, a partir de 13-10-2010, porque editada com fundamento no artigo 48, do Código Eleitoral Maçônico, que não foi recepcionado pela Constituição do Grande Oriente do Brasil de 2007 (artigo 122), até final julgamento desta ação. Enquanto não houver previsão constitucional sobre o instituto “Das Incompatibilidades” que o exija, os candidatos à reeleição aos cargos de Grão-Mestre Geral, Grão-Mestre Geral Adjunto, e de Grão-Mestre dos Estados e do Distrito Federal e seus respectivos Adjuntos, não necessitam

138 • Judicial Review nosTribunais Maçônicos de se afastar dos cargos ocupados para fins de desincompatibilização. Também registro que tal disposição não se aplica aos membros dos Tribunais, dos Conselhos e das Mesas Diretoras da Soberana Assembleia Federal Legislativa e das Assembleias Legislativas Estaduais e Distrital, que desejarem concorrer aos cargos de Grão-Mestre Geral, Grão-Mestre Geral Adjunto, Grãos-Mestres Estaduais e do Distrito Federal e seus respectivos Adjuntos, os quais deverão se desincompatibilizar até 3 (três) meses antes do pleito, deixando o cargo que estiver exercendo, reassumindo-o após as eleições para cumprirem o restante de seus mandatos ou continuarem no exercício daqueles para os quais tenham sido nomeados, em obediência ao comando do artigo 49, do Código Eleitoral Maçônico”30. b) MANDADO DE SEGURANÇA Nº 05/87 Representante: LOJA MAÇÔNICA X Representado: TRIBUNAL ELEITORAL DO GODF “EMENTA: ELEIÇÕES – Pleito realizado dentro do prazo estabelecido pela Constituição do GOB, mas fora do período determinado pelo Código Eleitoral Maçônico. O ato eleitoral só pode ser realizado em sessão ordinária (RGF, art. 85§ 1º, II) obedecida a norma constitucional. Analogia – Não coincidindo a data dessa sessão com o período estabelecido pelo TEM, resolve-se a questão pela aplicação desse princípio da integração da norma jurídica, por se tratar de situação não prevista, mas pertinente a casos análogos. ACÓRDÃO: Vistos e relatados estes autos, decide o Colendo Superior Tribunal Eleitoral Maçônico, unanimemente, conhecer da impetração e, no mérito, também por unanimidade, conceder a segurança, na forma do volto do Relator que fica fazendo parte integrante deste julgado”.

Considerações finais De todo o exposto, podemos concluir que a Maçonaria tem uma estrutura semelhante à do Estado, podendo-se dizer que existe um verdadeiro Estado Maçônico, com a formação de três poderes internos, na forma da tripartição de Poderes idealizada por Montesquieu, o que gera a criação de um verdadeiro Direito Maçônico com destaque para o Direito Constitucional Maçônico, o qual exerce o Disponível em http://www.gobgo.org.br/noticias/2010/10/13out10b.html. Acesso em novembro de 2013. 30

Grégore Moreira de Moura • 139 papel de fundamentador da árvore jurídica maçônica. Inserido neste contexto, temos a formação do Poder Judiciário Maçônico composto por diversos Tribunais que, regra geral, possuem ampla competência julgadora e revisora de atos normativos e leis, dando ensejo ao Judicial Review Maçônico com especificidades em relação ao tradicional controle de constitucionalidade do Direito profano, mas também com diversas semelhanças, onde se destaca a questão do mandado judicial, a possibilidade de controle de constitucionalidade preventivo e repressivo, a formatação do sistema na forma de “check and balances” e uma visão constitucional principiológica e hermenêutica de um verdadeiro Direito singular e especial. Portanto, cabe aos operadores do Direito profano conhecer e quiçá se abeberar de algumas experiências do Direito Maçônico, para quem sabe se buscar uma interpretação jurídica mais fraterna e legítima, propiciando a redução de demandas com o incentivo de técnicas de controle profilático de constitucionalidade, bem como promovendo um Direito mais democrático e justo, principalmente, tendo em vista que a Maçonaria desenvolve através destes mecanismos um controle interno de suas ações com a busca da resolução dos conflitos em seu próprio âmbito, na esteira do que propõe os mais modernos estudos de compliance. Logo, o Direito Maçônico e seu controle de constitucionalidade promove em última análise o respeito à legislação do país e o acesso à justiça, quando incentiva e fiscaliza seus órgãos, evitando-se a busca desenfreada pela judicialização dos conflitos.

Referências BURNHAM. William. Introduction to the Law and Legal System of the United States St. Paul: Thomson West, 2006 BAGGIO, Antonio Maria (organizador). O princípio esquecido: a fraternidade na reflexão atual das ciências políticas. Vargem Grande Paulista, SP: Editora Cidade Nova, 2008. BIANCHI, Eliza. “Criminal Compliance” sob a ótica do estudo do risco. Disponível em: (http://www.ibccrim.org.br). FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 3ª edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. HABERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional - A Sociedade

140 • Judicial Review nosTribunais Maçônicos Aberta dos Intérpretes da Constituição. Porto Alegre. SAFE, 1997. HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento. A gramática moral dos conflitos sociais. 2ª edição. São Paulo: Editora 34, 2011. SOBRINHO, José Wilson Ferreira. Legislação Maçônica. Londrina: Editora A Trolha, 2002. SOBRINHO, José Wilson Ferreira. Maçonaria e Direito. Londrina: Editora A Trolha, 2001. TOLEDO, Valter Martins. Jurisprudência e Doutrina Maçônica. Impressão Independente. UNITED GRAND LODGE OF ENGLAND CONSTITUTIONS. Freeemasons’ Hall London, 2005. VASCONCELOS, Jairo Boy de. A fantástica história da Maçonaria. Belo Horizonte: Imprensa Oficial Minas Gerais, 1999. WALDRON, Jeremy. The Core of the Case Against Judicial Review. The Yale Law Journal. Pág. 1363. Disponível em http://www. yalelawjournal.org/pdf/115-6/Waldron.pdf. Acesso em novembro de 2013.

A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO PENAL:

DO SIMBOLISMO FORMAL À PLENITUDE Luiz Laboissiere Junior1

Resumo Em tempos onde a resolução de impasses jurídicos perpassa, obrigatoriamente, pela observância dos ditames constitucionais, onde princípios, como o da força normativa da constituição, ganham amplo destaque, a adequação de todas as subdivisões do Direito a estes parâmetros apresenta-se como pressuposto indispensável. O Direito Penal, com seu conjunto de regras (incriminadoras e não-incriminadoras) e princípios, por óbvio, não poderia se distanciar desta perspectiva, uma vez que, por trazer consigo as consequências mais deletérias aos transgressores da ordem jurídica, necessita que seus pilares estejam edificados num lugar onde os direitos fundamentais sejam tomados como base, apesar da privação de alguns, como a liberdade de locomoção. Nesse sentido, a Constituição se impõe como fundamento e limite ao jus puniendi, pois, a partir de suas prescrições, embora não haja uma seleção, em seu texto, de todos os bens jurídicos a serem criminalizados, nela se encontra a justificativa para a criação de novas infrações penais, posto que, em seu conteúdo, visualizam-se os bens jurídicos fundamentais para a vida em sociedade. Além disso, a Constituição fornece as diretrizes das sanções penais, fixando suas espécies e vedações, bem como a impossibilidade da descriminalização de algumas condutas e a obrigatoriedade na penalização de outras. Nota-se, ainda, que a Constituição apresenta balizas à política criminal, posto que influencia nos mecanismos elaborados para conter a expansão da criminalidade. Diante deste cenário, afirma-se que as constituições Professor de Direito Penal da Universidade Federal do Amapá. Mestre em Direito pela mesma instituição e doutorando em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (DINTER UFMG/UNIFAP). E-mail: [email protected]. País: Brasil.

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142 • A constitucionalização do Direito Penal modernas não se limitam a especificar, unicamente, as restrições ao poder de punir do Estado, passando a se preocupar com a defesa ativa do indivíduo e da sociedade em geral, já que do Estado se espera mais do que uma simples atitude defensiva: se espera que dê vida aos valores contemplados pela Constituição, protegendo-os de eventuais ataques. Todavia, a despeito de todo o clamor pelo respeito e subserviência à Constituição, por várias vezes, no campo das leis penais, há conflitos entre as disposições legais e o texto constitucional e, mesmo com a patente conflituosidade, em alguns casos, os vícios não são sanados e, quando o são, são realizados de forma tardia. O Decreto n.º 5.144/04, que regulamenta o art. 303 do Código Aeronáutico Brasileiro, alterado pela Lei 9.614/98, conhecida como a “Lei do abate”, autoriza, após tentativas infrutíferas de comunicação com uma aeronave, a sua destruição, com a consequente morte de seus tripulantes. Observa-se, claramente, neste caso, uma espécie de pena de morte fora da hipótese prevista constitucionalmente. Ainda assim, o referido decreto continua em pleno vigor. Dentro da legislação penal, é assente que a vida é o bem jurídico que merece uma atenção diferenciada. Dessa forma, nada justifica que a pena mais gravosa inserida no Código Penal seja um crime, essencialmente, contra o patrimônio (extorsão mediante sequestro com resultado morte), cuja pena mínima é de 24 anos de reclusão. Aqui, o princípio da proporcionalidade, embora não previsto expressamente na Constituição, mas sendo uma máxima que têm, nela, seus parâmetros, é visivelmente ignorado. Se a inovação legislativa deve atender à redação constitucional, e se esta afirmação soa demasiado óbvia, a Lei dos crimes hediondos prova que esta obviedade não é tão patente. A redação original da citada lei afrontava flagrantemente os princípios da individualização da pena, da isonomia, da proporcionalidade e da dignidade da pessoa humana. Os dispositivos que não observavam estes princípios foram declarados inconstitucionais somente após 16 e 22 anos à promulgação da lei. Destarte, mesmo partindo-se do pressuposto que a criação de leis, não somente penais, não deva colidir com os valores constitucionais, é imprescindível que tais valores se sobreponham aos interesses políticos, bem como aos argumentos emergenciais e odiosos que, não raras vezes, substanciam a legislação penal, e que a presunção de constitucionalidade seja reforçada, de preferência, preventivamente. Se assim não for, que as impropriedades legais sejam sanadas com a maior brevidade possível, seja por meio do

Luiz Laboissiere Junior • 143 controle concentrado de constitucionalidade, pelo controle difuso, ou pela espécie mais inovadora e recente: o controle difuso abstrativizado. Superadas as más-formações no aspecto formal, o foco se voltará ao efetivo combate à criminalidade, às injustiças e arbitrariedades. Assim, o caminho para que Direito Penal seja, plenamente, constitucionalizado, se tornará cada vez mais factível. Palavras-chave: Direito Penal. Constituição. Constitucionalização.

Abstract In times where the resolution of legal impasses permeates, obligatorily, the observance of constitutional precepts, where principles such, as the normative force of the Constitution, gain broad highlight, the adequacy of all subdivisions of the Law to these parameters is presented as an indispensable prerequisite . The Criminal Law, with its set of rules (incriminating and non-incriminating) and principles, obviously, could not distance themselves from this perspective, since, by bring the most deleterious consequences for violators of the law, its pillars are required to be built in a place where fundamental rights are taken as basis, despite the deprivation of some, such as freedom of locomotion. In this sense, the Constitution imposes itself as the foundation and limit for the jus puniendi, therefore, from their prescriptions, although there is not a selection in its text, of all legal goods to be criminalized, inside of it lies the justification for the creation for new criminal offenses, since, in their content, the fundamental legal goods for life in society can be seen. In addition, the Constitution provides the guidelines of criminal sanctions, pinning their species and seals, and the impossibility of decriminalization of certain behaviors and the obligation to penalize others. Note, also, that the Constitution has beacons to criminal policy, since it influences the mechanisms designed to contain the spread of crime. In this scenario, it is said that modern constitutions are not limited to specify, solely, restrictions on the power to punish of the State, getting concerned with the active defense of the individual and of society in general, since, from the State is expected more than just a defensive attitude: is expected to give life to the values covered by the Constitution, protecting them from possible attacks. However, despite all the call for res-

144 • A constitucionalização do Direito Penal pect and subservience to the Constitution, for several times, in the field of criminal law, there are conflicts between the laws and the Constitution, and even with the patent bickering, in some cases, the vices are not solved and, when they are, are performed lately. The Decree No. 5.144/04, which regulates the art. 303 of the Brazilian Aeronautical Code, change by Law 9.614/98, known as the “Slaughter law”, authorizes, after unsuccessful attempts to communicate with an aircraft, its destruction, with the consequent death of his crew. There are, clearly, in this case, a kind of death penalty off the constitutional hypothesis. Still, the decree remains in full force. In criminal law, it is settled that life is the legal interest that deserves special attention. Thus, there is no reason that the more severe penalty inserted in the Criminal Code is a crime, essentially against property (extortion by kidnapping with death result), whose minimum sentence is 24 years of imprisonment. Here, the principle of proportionality, although not expressly provided in the Constitution, but being a maxim that have in it, its parameters, is noticeably ignored. If the legislative innovation must meet the constitutional drafting, and this statement sounds too obvious, the Law of heinous crimes proves that this truism is not so obvious. The original wording of the aforementioned law flagrantly affronted the principles of individualization of punishment, of equality, proportionality and human dignity. The devices that did not observe these principles were declared unconstitutional only after 16 to 22 years to the enactment of the law. Thus, even starting on the assumption that the creation of laws, not only criminal, should not conflict with the constitutional values, it is essential that these values outweigh the political interests as well as to emergency and hateful arguments that, often, substantiate the criminal law, and that the constitutional presumption is strengthened, preferably preventively. If not, that legal improprieties are solved as soon as possible, either through the concentrated control of constitutionality, the diffuse control, or the most innovative and recent species: the abstract diffuse control. Overcome the malformations in the formal aspect, the focus will turn to the effective combating of crime, injustice and arbitrariness. Thus, the path to that criminal law be, fully constitutionalized, will become increasingly feasible. Keywords: Criminal Law. Constitution. Constitutionalisation. Constitucionalizar o Direito, ou melhor, o termo constitu-

Luiz Laboissiere Junior • 145 cionalização do Direito não nos remete às mais longínquas origens do Direito, uma vez que a utilização do termo pode ser considerada, guardadas as devidas proporções, moderna. Sobre o emprego que se pretende, aqui, utilizar, Barroso (2014, p. 378) explicita: Por ela se poderia pretender caracterizar, por exemplo, qualquer ordenamento jurídico no qual vigorasse uma Constituição dotada de supremacia. Como este é um traço comum de grande número de sistemas jurídicos contemporâneos, faltaria especificidade à expressão. Não é, portanto, nesse sentido que está aqui empregada. Poderia ela servir para identificar, ademais, o fato de a Constituição formal incorporar em seu texto inúmeros temas afetos aos ramos infraconstitucionais do Direito. Trata-se de fenômeno iniciado, de certa forma, com a Constituição portuguesa de 1976, continuado pela Constituição espanhola de 1978 e levado ao extremo pela Constituição brasileira de 1988. Embora esta seja uma situação dotada de características próprias, não é dela, tampouco, que se estará cuidando. A ideia de constitucionalização do Direito aqui explorada está associada a um efeito expansivo das normas constitucionais, cujo conteúdo material e axiológico se irradia, com força normativa, por todo o sistema jurídico. Os valores, os fins públicos e os comportamentos contemplados nos princípios e regras da Constituição passam a condicionar a validade e o sentido de todas as normas do direito infraconstitucional. Como intuitivo, a constitucionalização repercute sobre a atuação dos três Poderes, inclusive e notadamente nas suas relações com os particulares. Porém, mais original ainda: repercute, também, nas relações entre particulares.

As lições do supracitado autor deixam evidente o poder de abrangência que a Constituição possui dentro do ordenamento jurídico. Diante disso, não se busca, apenas, uma mera adequação da legislação infraconstitucional às disposições constitucionais. A pretensão é mais ousada: busca-se impregnar os valores trazidos pela Constituição entre as mais variadas relações, para dar coerência ao sistema jurídico. A Constituição determina limites, ou seja, o momento em que deve haver ação ou omissão, por parte do legislador, dos jurisdicionados, servidores e chefes dos poderes. Este limite, além de integrar seu conteúdo, de forma explícita ou implícita, também é

146 • A constitucionalização do Direito Penal externado por meio da atuação jurisdicional, seja por meio do controle difuso, feito incidentalmente pelos juízes e tribunais, ou concentrado, realizado por meio das ações constitucionais dirigidas ao Supremo Tribunal Federal. Aliado a isso, métodos de interpretação também são utilizados, a exemplo da interpretação conforme a Constituição, sem olvidar do arcabouço principiológico que dá suporte a este processo, como os princípios da concordância prática (ou harmonização), relatividade (ou convivência das liberdades públicas), do efeito integrador, da unidade e força normativa da Constituição. Em relação ao Direito Penal, a Constituição, exercendo sua supremacia, repercute dentro da validade deste ramo do Direito, que não fica alheio ao controle da jurisdição constitucional. O texto constitucional dá margem ao legislador penal para definir crimes e suas respectivas sanções, quando afirma que “não há crime sem lei anterior que o defina” e “não há pena sem prévia cominação legal”, expressando um dos pilares do sistema penal: o princípio da legalidade. Contudo, esta liberdade dada ao legislador pela Constituição encontra limites nela própria, posto que, se assim não fosse, esta garantia constitucional poderia se transformar em inconstitucional, se o legislador definisse crimes e sanções ao seu puro alvedrio. Sobre a interação entre o Direito Penal e a Constituição, leciona Feldens (2012, p. 66): [...] a Constituição estabelece mandados e proibições, ambos funcionando como marcos da atuação legislativa, no interior dos quais o legislador é livre para atuar com discricionariedade. Os conceitos de mandados, proibições e discricionariedade podem ser substituídos pelos conceitos de necessidade, impossibilidade e possibilidade da tutela penal. Aquilo que está ordenado pela Constituição e constitucionalmente necessário; o que está proibido pela Constituição é constitucionalmente impossível; e o que a Constituição confia à discricionariedade do legislador é tão somente possível, porque para a Constituição não é necessário e nem impossível. Projetando essa análise para o nosso objeto de estudo, sustentamos que o Direito Penal e a Constituição compartem uma relação axiológico-normativa a partir da qual se podem deduzir três níveis de interação: (i) a intervenção penal constitucionalmente proibida, (ii) a intervenção penal constitucionalmente possível e (iii)

Luiz Laboissiere Junior • 147 a intervenção penal constitucionalmente obrigatória (deveres de proteção, na forma de mandados constitucionais de tutela penal). Nessa perspectiva, a Constituição funciona como (i) limite material do Direito Penal, erigindo barreiras ao processo criminalizador (limite normativo superior); (ii) fonte valorativa do Direito Penal, funcionando como legítimo paradigma na escolha de bens jurídicos suscetíveis de proteção jurídico-penal (fundamento axiológico); (iii) fundamento normativo do Direito Penal, apontando zonas obrigatórias de intervenção penal do legislador penal (limite normativo inferior).

Observa-se, como aduz Canotilho (1984, p. 163) que a Constituição é o “estatuto fundamental da ordem jurídica geral”. A despeito disso, Feldens (2012, p. 72) suscita uma questão importante: Uma vez evidenciado que a ordem constitucional funciona como parâmetro de referência de fatos sujeitáveis à pena, a questão que resta elucidar é se ela opera como um critério exclusivo nesse sentido. Logo se percebe trata-se de uma discussão sobre a(s) fonte(s) de irrigação da atividade do legislador penal, a partir da(s) qual(is) ele poderá exercer seu critério de seleção. (...) É indiscutível a tendência, tanto quanto sedutora, da ideia, de visualizar a Constituição como fonte exclusiva de validade das normas penais incriminadoras. Importante parcela da doutrina vem aderindo a essa concepção para sustentar que a incidência do Direito Penal haveria de verificar-se ali, e tão somente ali, onde se pudesse vislumbrar a ofensa a um bem jurídico de referência constitucional. (...) Em termos de construção teórica, essa filtragem constitucional dos bens jurídicos merecedores de tutela penal parece irretocável. Sem embargo, hipóteses existem, e não podemos simplesmente ignorá-las, em que a tutela penal, enquanto voltada à proteção de um bem jurídico de inequívoca relevância social, não oferece, de imediato, uma específica correlação constitucional. Nesse contexto, enfatizam Dolicini e Marinucci que “a verdade é que a não menção de alguns bens na Carta Constitucional não reflete necessariamente sua desclassificação na escala de valores”.

Mesmo com esta observação, fato é que a criminalização de determinados comportamentos terá uma maior legitimidade se o bem jurídico protegido encontrar guarida, expressa ou implicita-

148 • A constitucionalização do Direito Penal mente, na Constituição. Como exemplo, podemos citar os mandados constitucionais de criminalização. Neste caso, a própria Constituição impõe a penalização de bens e valores constitucionais. Temos mandados expressos de criminalização, previstos no art. 5º, XLI, XLII e XLIV; art. 7º, X; art. 37, §4º; art. 173, §5º; art. 225, §3º e art. 227, §4º, e mandados implícitos que, diante da amplitude do dever de proteção, muito embora a Constituição não tenha determinado categoricamente a criminalização de alguns comportamentos, a exemplo dos graves atentados contra a liberdade ou a vida, estes bens jurídicos são de tamanha valia que suas defesas, de qualquer modo, se tornariam patentes e indispensáveis, principalmente pelo Direito Penal. Cumpre ressaltar que a Constituição se preocupa, também, em limitar as espécies de pena (art. 5º, XLVI), bem como seus limites (art. 5º, XLVII), além de estabelecer outros direitos e garantias dos apenados (art. 5º, XLVIII, XLIX, L). Apesar de observarmos o espectro protetivo que emana da Constituição, por vezes, tal proteção se apresenta de maneira formal e simbólica. Explica-se: não obstante as disposições, explícitas ou implícitas, no texto constitucional, sobre as balizas que devem ser obedecidas pelo legislador penal, a criminalização de alguns comportamentos e a adoção de algumas medidas pelo legislador, andam em descompasso com as determinações da Constituição. Dispõe o art. 5º, XLVII, da CRFB/88, que “não haverá penas: a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX”. Entretanto, o Código Brasileiro de Aeronáutica, em seu art. 303, §2º afirma: “Esgotados os meios coercitivos legalmente previstos, a aeronave será classificada como hostil, ficando sujeito à medida de destruição, nos casos dos incisos do caput deste artigo e após autorização do Presidente da República ou autoridade por ele delegada”. Este e os demais parágrafos do art. 303 foram regulamentados pelo Decreto 5.144/2004, que estabeleceu os procedimentos a serem seguidos com aeronaves consideradas hostis ou suspeitas de tráfico de substâncias entorpecentes e drogas afins. Além de legitimar a aplicação da pena de morte em desacordo com o art. 5º, XLVII, “a”, da CRFB/88, criando esta hipótese na situação de invasão aérea não autorizada, a conclamada proteção à soberania nacional, que fundamenta a famigerada “Lei do Abate”, transgride os princípios da inviolabilidade do direito à vida, devido processo legal, contraditório, ampla defesa, igualdade, juiz natural,

Luiz Laboissiere Junior • 149 presunção de inocência e dignidade da pessoa humana, todos com amparo constitucional. O princípio da proporcionalidade, quando analisado dentro do Direito Penal nos leva, primeiramente, ao pensamento jusnaturalista de que a pena deveria ser igualada ao crime cometido, sendo uma mal de semelhante natureza e intensidade. Numa visão hodierna, explica Lima (2012, p. 121): Atualmente, o princípio é entendido como proporcionalidade das penas, expressa uma garantia ao direito individual dos agentes criminosos e, embora encontre abrigo implícito na Constituição, não existem diretrizes precisas sobre o seu conteúdo, carecendo, portanto, de reflexões axiológicas e jurídicas conectadas ao nosso contexto cultural para concretizar-se. [...] Na verdade, por meio deste princípio, estabelece-se a necessária conexão entre as finalidades do Direito Penal com o fato praticado pelo agente criminoso, não se admitindo a fixação de prescrições penais (proporcionalidade abstrata) ou aplicação de penas (proporcionalidade concreta) que não tenham relação valorativa com o fato, visto na integralidade de seus aspectos.

Na Alemanha, o princípio da proporcionalidade é apresentado com uma dupla face, pois, de um lado, proíbe a proteção deficiente (Untermassverbot), que, dentro do Garantismo Penal de Luigi Ferrajoli, equivaleria ao garantismo positivo e, de outro, proíbe o excesso (Übermassverbot), equivalente ao garantismo negativo. Estas balizas servem como parâmetro tanto para criminalizar ou descriminalizar condutas, quanto para aferir a razoabilidade das sanções. Dentro do Código Penal, temos claros exemplos da desproporcionalidade das penas em abstrato. A Lei 11.466/2007 acrescentou o art. 311-A ao Código que, embora não tenha rubrica legal, foi doutrinariamente chamado de “prevaricação imprópria”. O texto legal repreende a conduta do agente público que deixa de cumprir seu dever de vedar ao preso o acesso a aparelho telefônico, de rádio ou similar, que permita a comunicação com outros presos ou com o ambiente externo, cominando a pena de detenção, de 3 meses a 1 ano. Sabe-se que no interior das penitenciárias brasileiras, os grandes criminosos comandam a atuação externa de suas facções.

150 • A constitucionalização do Direito Penal Dessa forma, quando o agente público nada faz para conter esta prática, sua conduta se torna altamente reprovável, o que justificaria uma reprimenda legal mais severa, algo que não foi observado quando da criação do art. 311-A, que trouxe uma proteção deficiente. Em relação à proibição de excesso nas punições, o exemplo mais evidente está no art. 159, §3º e, tempos depois, no art. 158, §3º, ambos do Código Penal. Ainda que a extorsão mediante sequestro e o popular “sequestro relâmpago” com resultado morte ofendam dois bens jurídicos (patrimônio e vida), e considerando o limite temporal de 30 anos de cumprimento das penas privativas de liberdade, a pena mínima de 24 anos de reclusão se mostra de todo desarrazoada. Apesar de atingir o patrimônio e a vida, tais crimes foram colocados no capítulo dos crimes contra o patrimônio, o que mostra sua essência patrimonial. Se a vida é o bem jurídico mais importante, e se tal bem fora colocado no título dos crimes contra a pessoa, que é de onde se irradia os bens ou interesses juridicamente protegidos, uma maior intensidade num crime nuclearmente patrimonial se torna incoerente, considerando as demais punições previstas dentro da legislação penal. Os estudos na área penal mostram que penas severas não inibem, totalmente, a prática de infrações penais. Contudo, espera-se, ao menos, que haja uma congruência entre as condutas cometidas e a cominação de suas respectivas penas, em harmonia com o sistema penal e constitucional. Analisando o excesso na punição dentro da execução penal, questiona-se a constitucionalidade do art. 52 da Lei de Execução Penal (Lei n.º 7.210/1984), que institui o regime disciplinar diferenciado (RDD). Os que defendem a inconstitucionalidade do instituto afirmam que o RDD viola a dignidade da pessoa humana, configurando sanção desproporcional aos fins da pena, uma vez que representa uma “quarta modalidade” de regime de cumprimento de pena, podendo gerar, inclusive, “bis in idem”. Retomando o debate sobre a falha do poder intimidatório das penas severas, arraigadas em ideias punitivistas, é oportuno falar do movimento “Lei e Ordem”, que têm suas origens relatadas por Canton Filho (2009): O movimento político-criminal da Lei e Ordem do final dos anos oitenta, oriundo do contexto social da época, que exigia

Luiz Laboissiere Junior • 151 maior rigorismo na aplicação das penas, uma vez que a conformação política e social não estava ainda totalmente preparada para um movimento garantista e de liberdades trazido pela Constituição de 1988, após os longos anos de ditadura no Brasil. (...) O movimento de lei e ordem, originado no fim dos anos 80, foi desencadeado pela doutrina criminológica norte-americana e absorvido pelos pensadores do direito penal brasileiro, adaptando-se o discurso estrangeiro de maior rigor e intolerância criminal ao contexto brasileiro.

O citado movimento forneceu subsídios para elaboração da Lei n.º 8.072/1990, que é a Lei de Crimes Hediondos. O movimento e a criação desta lei são reflexos da construção doutrinária do chamado Direito Penal de Emergência. Esta vertente acredita que o Direito Penal deve, em alguns casos, abandonar seu caráter subsidiário, deixando de ser a “ultima ratio” e passando a ser a “prima ratio”. Nesta visão, o processo de elaboração de leis restringe uma série de direitos e garantias fundamentais para determinados indivíduos, vistos como inimigos do Estado, sob a justificativa de garantir o império da norma e proteger o sistema jurídico. Em sua redação original, a referida lei vedava a concessão de fiança e liberdade provisória. Com o advento da Lei 11.464/2007, a vedação relativa à liberdade provisória foi removida e, mesmo assim, havia quem dissesse que a proibição da liberdade provisória estaria implícita na proibição da fiança. Destarte, o Supremo Tribunal Federal, por meio do Habeas Corpus n.º 104.339, em sede de controle difuso abstrativizado, declarou inconstitucional qualquer vedação à liberdade provisória, pois tal restrição configuraria antecipação de pena, sendo incompatível com a presunção de inocência. O texto inicial da Lei 8.072/90 também vedava a progressão de regime, afirmando que as penas seriam cumpridas em regime integralmente fechado. Como essa medida afrontava os princípios da individualização da pena, isonomia, proporcionalidade e dignidade da pessoa humana, diante do flagrante desrespeito aos ditames constitucionais, o STF, no Habeas Corpus n.º 82.959, declarou este dispositivo inconstitucional e autorizou a progressão de regime com o cumprimento de 1/6 da pena. Em seguida, a Lei 11.464/2007 alterou o requisito temporal, sendo 2/5 de cumprimento de pena para réu primário, e 3/5 para reincidente, e, como novidade, afirmou que o regime inicial seria fechado.

152 • A constitucionalização do Direito Penal Contudo, na tentativa de, mais uma vez, constitucionalizar esta nefasta lei, o STF, no Habeas Corpus n.º 111.840, em sede de controle difuso abstrativizado e em respeito ao princípio da individualização da pena, afastou a obrigatoriedade do regime inicial fechado previsto no art. 2, §3º, da Lei de Crimes Hediondos. Como se nota, a criação de leis que tenham a pretensão de acatar os comandos alardeados pelo Direito Penal de Emergência, ou que não considerem a harmonia e a coerência entre os ramos do sistema jurídico, tendem ao cometimento do mais grave desrespeito à ordem constitucional. Hodiernamente, busca-se a expansão das garantias do cidadão, e não na expansão de métodos repressivos. Essa busca de garantias é encontrada no já citado Garantismo Penal de Ferrajoli, que é uma teoria de base constitucional que, grosso modo, busca garantir a otimização dos direitos fundamentais diante das agressões dos particulares e das arbitrariedades do Estado. É imperioso que as providências adotadas pelo legislador sejam adequadas a proporcionar uma proteção eficiente. Contudo, proteção eficiente não implica em punições ou restrições excessivas. Assim, há a necessidade de impedir que argumentos emergenciais possam atrofiar os valores constitucionais, tolhendo a expansão de um paradigma revestido pela exaltação do jus puniendi, com a criação de mecanismos ou a valorização dos já existentes, que assegurem o respeito e a exigibilidade dos direitos individuais, e que sirvam tanto para orientar a produção legislativa quanto para orientar os critérios de aplicação e interpretação das normas penais vigentes. Dessa forma, o status constitucional dado às regras e princípios penais não terá esta condição apenas por constar, formalmente, dentro da Constituição, exercendo um papel simbólico. O real propósito da elevação destas normas ao ponto mais alto do ordenamento jurídico consiste em dar vida aos valores que pulsam do texto constitucional para que, assim, a constitucionalização do Direito Penal se dê no plano formal, material, e fático, perpetuando por todo o sistema para se tornar, de fato, plena.

Referências BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção de um novo modelo. 4. Ed. São Paulo: Saraiva, 2014.

Luiz Laboissiere Junior • 153 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. _______. Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. _______. Lei 7.210, de 11 de julho de 1984. Institui a Lei de Execução Penal. _______. Lei nº 7.565, de 19 de dezembro de 1986. Dispõe sobre o Código Brasileiro de Aeronáutica. ______. Lei nº 8.072 de 25 de julho de 1990. Dispõe sobre os crimes hediondos, nos termos do art. 5º, inciso XLIII, da Constituição Federal, e determina outras providências. CANTON FILHO, Fabio Romeu. A valorização do bem jurídico penal e a constituição de 1988 – A evolução histórica das criminalizações no direito penal no Brasil. Tese (Doutorado em Direito). São Paulo: Universidade de São Paulo, 2009. CANOTILHO, J.J. Gomes, MOREIRA, Vital. Constituição da República Portuguesa anotada. 2. ed. Coimbra: Coimbra Ed., 1984. FELDENS, Luciano. Direitos fundamentais e direito penal: a constituição penal. 2. ed. rev. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2012. LIMA, Alberto Jorge Correia de. Direito penal constitucional: a imposição dos princípios constitucionais penais. São Paulo: Saraiva, 2012.

O ENSINO RELIGIOSO NAS ESCOLAS PÚBLICAS Lucas de Barros Peron Maciel1

Introdução A liberdade religiosa se amolda no âmbito dos direitos fundamentais de primeira geração, aqueles que exigem do Estado uma abstenção de ações capazes de garantir o exercício da liberdade dos indivíduos em sua plenitude, bem como uma atuação do Estado em promover meios eficientes capazes de garantir que nenhum terceiro possa interferir no exercício da liberdade. Em contrapartida, a educação se caracteriza por um direito social conquistado nos moldes dos direitos fundamentais de segunda geração, uma exigência da população ao Estado para que cumprisse com determinadas ações positivas que beneficiassem diretamente a população. No presente caso se analisa o ensino religioso, que possui um condão ambíguo de tanto se relacionar com direitos de liberdade do indivíduo e direito social. Na Constituição da República de 1988 encontra-se expresso em seu art. 210, §1o, que o ensino religioso será ministrado nas escolas públicas, fazendo parte integrante de seu currículo educacional, sendo, contudo, de matrícula facultativa. A análise do ensino religioso nos termos da Constituição traz algumas dúvidas práticas que não foram solucionadas pela legislação, e que ao se tentar aplicar tal mandamento, se demonstra uma incompreensão do Poder Público e da sociedade do que venha a ser esta disciplina. Se levantará alguns pontos importantes sobre o tema, apontando, ao menos, como o assunto deve ser tratado, não se podendo conferir respostas prontas e capazes de solucionar todos os problemas, pois ao se envolver o tema religião, estar-se-á afetando toda Bacharel em Direito pelas Faculdades Integradas Vianna Júnior. Pós-graduando em Direito Tributário pela UCAM/IDS/Intejur. Bacharelando em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Advogado. Brasil. [email protected]

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Lucas de Barros Maciel • 155 uma sistemática de garantias fundamentais inerentes ao ser humano, mas com a necessidade de adequação destas liberdades e mandamentos constitucionais.

Estado laico e ensino secular O contraponto ao ensino religioso que surge à primeira vista é a regra do art. 19, I, disposta na constituição, que veda ao Estado a vinculação com entidades religiosas, aplicando-se o princípio da laicidade. Esta pareceria uma questão conflitante dentro da própria sistemática constitucional a priori se não fosse a interpretação que se deve dar ao que venha a ser o ensino religioso idealizado pelo constituinte. Somente se poderá falar em ensino nas escolas públicas do país quando este conteúdo programático estiver conforme a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei no 9.394, 20 de dezembro de 1996), que estabelece uma série de princípios e critérios a serem perseguidos pelo educador, escola e sociedade na educação que se pretende implementar desde os primeiros anos de vida do cidadão até sua pós-graduação. Ademais, com o advento da era moderna, podemos identificar a secularização da racionalidade humana, que pretende o desvencilhar dos conteúdos identificados como religiosos, dogmáticos, espirituais, sagrados, daqueles que se tem por científicos e metodológicos. Dessa forma, a primeira impressão que se tinha em relação ao conflito de normas constitucionais cai por terra ao se aplicar uma interpretação constitucional sistemática de todo o texto constitucional organicamente. Assim, ao se falar em ensino religioso, este deverá ser ministrado de forma secularizada, não se admitindo que conteúdos dogmático-religiosos sejam ensinados nas escolas públicas, mas apenas que o ensino religioso se dê de forma metodológica e científica. Inclusive, pode-se conceber o entendimento de como devam ser ministradas as aulas de ensino religioso a partir de uma interpretação teleológica de todo o arcabouço principiológico do Estado, uma vez que este se propõe a existir com a finalidade de desenvolver meios capazes de criar uma sociedade com cidadãos mais

156 • O ensino religioso nas escolas públicas virtuosos, que compreendam a sua posição enquanto seres humanos e possam atuar condizentemente com a dignidade que lhes é peculiar. Lado outro, ao se voltar para uma análise sistemática do texto constitucional, ver-se-á que dentre os direitos fundamentais elencados no art. 5o, o constituinte considerou que as concepções e convicções religiosas do indivíduo fazem parte de sua composição psicológica com maior força de determinar seus comportamentos e relacionamentos no meio social do que a própria letra da lei. Tanto o é assim que ninguém será privado de seus direitos por motivo de crença religiosa, nos termos do inciso VIII do art. 5o. Conforma-se e compreende-se o porquê de a matéria de ensino religioso ser facultativa, não obrigando-se o aluno a cursar esta disciplina como acontece com as demais. É a garantia ao respeito à liberdade religiosa que cada indivíduo possui, respeitando a opção das famílias em não educarem seus filhos em preceitos religiosos ou outra forma de ensino que seja conflitante com a sua concepção. Não se pode obstar que a educação é o melhor caminho para que um Estado possa alcançar o desenvolvimento social, econômico e tecnológico que pretende. Fábio Portela Lopes de Almeida (ALMEIDA, 2006) traz os ensinamentos de Anísio Teixeira e fala que “é necessário dar a atenção devida a educação, pois só por meio dela todos podem desenvolver as capacidades básicas necessárias para discutir seus direitos e efetivamente exercê-los.” Ademais, “aqueles que controlam o que se ensina aos jovens e o que eles vivem – o que veem, ouvem, pensam e acreditam – determinarão o curso do futuro da nação” (DAWKINS, 2007). A partir de um modelo de educação que tem como foco o desenvolvimento de virtudes comuns, básicas e abrangentes a todos, é que se pode reconhecer os ideais constitucionais da razão pública como o compromisso pessoal e coletivo com os procedimentos democráticos institucionalizados. Meira Levinson afirma que: A educação cívica é crucial em um estado liberal, eu argumento, porque, não importa que instituições e liberdades são garantidas pela estrutura básica e pela Constituição estatal, sua realização sempre dependerá do caráter do compromisso de seus cidadãos – e não podemos confiar que as crianças desenvolverão “naturalmente” as características e compromissos apropriados sem que sejam especificamente educadas

Lucas de Barros Maciel • 157 nas virtudes cívicas liberais. Para compreender porque o caráter importa, considere os seguintes exemplos. Um estado que aprova as leis anti-discriminatórias mais radicais a serviço da igualdade de oportunidades, mesmo se essas leis forem aplicadas conscientemente e consistentemente por políticos e outros servidores públicos, não poderá superar os efeitos danosos e letais da discriminação e do preconceito privados. Similarmente, cidadãos apáticos, mal-educados e pouco participativos podem permitir violações da democracia ou dos direitos liberais, mesmo que as estruturas da democracia liberal estejam formalmente operacionais. Em ambos os casos, isso ocorre porque o estado liberal é um bem coletivo, sustentado pelas práticas coletivas de cidadãos ativos. Ele depende, para sua estabilidade e preservação, da existência de um percentual suficientemente alto de cidadãos que se comportam nos mundos público e privado de formas que sustentem a liberdade, a democracia, a tolerância e a não-discriminação (apud ALMEIDA, 2006, p. 146).

Corroborando a finalidade da educação, Rawls: (...) o liberalismo político exigiria (...) que a educação das crianças incluísse coisas como o conhecimento de seus direitos constitucionais e cívicos, de forma que, por exemplo, elas saibam que a liberdade de consciência existe em sua sociedade e que a apostasia não é um crime legal, tudo isso para garantir que a continuidade de sua filiação religiosa, quando atingem a maturidade, não esteja baseada simplesmente na ignorância de seus direitos básicos ou no medo da punição por ofensas que só são assim consideradas dentro de sua seita religiosa. A educação das crianças também deveria prepará-las para serem membros plenamente cooperativos da sociedade e permitir que provejam seu próprio sustento; também deveria estimular as virtudes políticas para que queiram honrar os termos equitativos de cooperação social em suas relações com o resto da sociedade (apud ALMEIDA, 2006, p 147).

Neste diapasão, ao se implementar o ensino religioso, surgem questões não solucionadas pelo legislador que necessitam de respostas concretas, para, justamente, se efetivar o texto constitucional e não deixar que este tenha apenas um caráter de simbolismo.

158 • O ensino religioso nas escolas públicas

Lei de Diretrizes e Bases da educação nacional Tentando-se regular a matéria constitucional, o art. 33, da Lei supracitada, traz algumas características para a aplicação desta matéria: Art. 33. O ensino religioso, de matrícula facultativa, é parte integrante da formação básica do cidadão e constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, vedadas quaisquer formas de proselitismo. §1o – Os sistemas de ensino regulamentarão os procedimentos para a definição dos conteúdos do ensino religioso e estabelecerão as normas para a habilitação e admissão dos professores. §2o – Os sistemas de ensino ouvirão entidade civil, constituída pelas diferentes denominações religiosas, para a definição dos conteúdos do ensino religioso.

O primeiro ponto que deve ser tocado é o contido no parágrafo primeiro deste artigo, pois não deveria surgir qualquer dúvida quanto a isso. Se o ensino religioso que trata a Constituição e a Lei de diretrizes para a educação referem-se à educação no sistema público de ensino, por certo e sem equívoco que somente professores concursados, que se habilitaram após prova de conhecimento e títulos, poderão ingressar no magistério público, visto que esta é uma exigência constitucional para a contratação de funcionários públicos. O professor de uma escola pública também é um funcionário público, e não é porque a matéria a se lecionar trata de ensino religioso é que se poderá abrir exceções para a contratação de outros profissionais sem o necessário trâmite legal. Outrossim, existem cursos superiores voltados ao estudo das religiões de forma científica, apartadas de qualquer dogmática confessional, garantindo maior imparcialidade do educador, que, inclusive, a imparcialidade e impessoalidade são mandamentos constitucionais para todo funcionário público. A questão posta no parágrafo segundo se apresenta apenas como uma forma de democratizar o conteúdo programático da matéria religiosa, por esta razão diz-se que se ouvirá as diferentes de-

Lucas de Barros Maciel • 159 nominações religiosas. Contudo, apesar da boa intenção do legislador e a tentativa de esquivar-se de inconstitucionalidade, não parece que andou bem quando redigiu tal parágrafo. O conhecimento sobre o pensamento de o que é uma religião e como esta se comporta, suas ideologias e convicções, é necessário para que se possa realmente levar em consideração a opinião de uma gama plural de pensamentos que se demonstram conflitantes em muitas das vezes. Outrossim, conforme dito alhures, o ensino religioso deverá se pautar por bases secularizadas e metodológicas. Ao se ouvir as entidades religiosas, abre-se espaço para que possam opinar sobre o que se deverá ensinar sobre religiões, mantendo um ambiente democrático e participativo para a definição do que será ensinado para as futuras gerações, mas não se pode conceber que estas sugestões trazidas por essas denominações possam interferir em toda a sistemática e principiologia entabuladas na Constituição e legislação ordinária. É dizer, pois, que deverá prevalecer a ideia de secularidade do ensino em detrimento de concepções religiosas, mesmo se tratando de ensino religioso. A educação nacional preza por princípios e virtudes, que levem em consideração o desenvolvimento da cidadania e da dignidade da pessoa humana, tal qual é a redação do art. 1o, II e III, CR/88. Se houver qualquer conflito de interesses entre o que se pretende com a educação no país e o que as religiões entendem sobre o que é educar as crianças, deve prevalecer o espírito da secularização e humanismo que pregoam, antes de tudo, tolerância e respeito pelo ser humano. Já quanto ao caput do artigo acima referido, fala-se em facultatividade da matéria, mas que esta deverá ser ministrada em horário normal, junto com as demais matérias da grade curricular das escolas. A questão chegou aos tribunais: EMENTA: REEXAME NECESSÁRIO – MANDADO DE SEGURANÇA – PRELIMINARES – REJEIÇÃO – MÉRITO – MUNICÍPIO DE CONTAGEM – REDE PÚBLICA DE EDUCAÇÃO – OFERTA DE ENSINO RELIGIOSO – MATRÍCULA OBRIGATÓRIA – IMPOSSIBILIDADE – VIOLAÇÃO AO DIREITO DE CRENÇA DO ESTUDANTE – ART. 5º, VI C/C ART. 210, §1º, DA CF/88 - SEGURANÇA CONCEDIDA. - A omissão da autoridade municipal em operacionalizar a

160 • O ensino religioso nas escolas públicas facultatividade da matrícula na disciplina Ensino Religioso viola o direito líquido e certo do estudante à liberdade de crença. Inteligência do art.5º, VI c/c art.210, parágrafo 1º, da CF/88. Reexame Necessário-Cv Nº 1.0079.11.013677-1/001 COMARCA DE Contagem - Remetente: JD 1 V FAZ MUN COMARCA CONTAGEM - Autor: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS - Ré(u)(s): MUNICÍPIO DE CONTAGEM - Autorid Coatora: SECRETARIO MUN EDUCAÇÃO CULTURA CONTAGEM

Percebe-se que a decisão acompanhou o texto legal, determinando que aqueles que não desejam assistir as matérias de ensino religioso possam cursas matérias facultativas que a substituam. Contudo, indagações surgem sobre a legitimidade desse direito de facultatividade da matéria, já que o que se pretende é um ensino secular da religião, abordando temas de forma metodológica e científica, tal qual se vê na abordagem das demais matérias. Assim, questiona-se se existiria um direito fundamental de não assistir matérias na escola primária cujo conteúdo não seja do interesse do aluno ou contrário às suas compreensões de mundo. O segundo questionamento que se pode levantar é qual seria a matéria substitutiva ao ensino religioso, pois imagina-se que esta matéria substitutiva deverá conter uma carga axiológica semelhante àquela do ensino religioso, o que justificaria tanto a implementação desta disciplina quanto a legitimidade de qualquer outra disciplina substitutiva. Se o que se pretende para futuro da nação é uma sociedade mais igualitária que tenha como virtude a tolerância e a cidadania, não seria melhor que houvesse a possibilidade do confronto de ideias e desconstrução de dogmas que promovem a intolerância e preconceitos? Se assim o é, a grade curricular do ensino religioso deverá conter uma forte carga que confira a ela a capacidade de cumprir com os princípios constitucionais, não ferindo as liberdades de religião e religiosidade dos indivíduos e ainda possuir um conteúdo programático que legitime sua autonomia quanto as demais matérias. Conferida esta estrutura ao ensino religioso, aquela matéria que se eleger como substitutiva ao ensino religioso ofertada aos alunos que não desejam cursar esta disciplina, também deverá manter estas correspondências.

Lucas de Barros Maciel • 161

Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.439 Em 11 de fevereiro de 2010 entrou em vigor o Decreto no 7.107, que promulgou acordo entre a Santa Sé e o Governo da República Federativa do Brasil. Por se tratarem de dois Estados soberanos, o acordo cumpre com as exigências de direito internacional público, não se vislumbrando qualquer irregularidade. Não se observa, também, qualquer contrariedade à laicidade, vez que o art. 19 constitucional fala na possibilidade em se firmar acordos e alianças com entidades religiosas quando se tratar de colaboração ao interesse público. É justamente neste artigo que se encontra o respaldo para a confecção do acordo celebrado entre a Santa Sé e o Governo brasileiro, vez que pretendem unir esforços para efetivar o texto constitucional do art. 210, §1o, e instituir o ensino religioso no país. É claro que o ensino e a educação são de interesse público, e qualquer auxílio para o desenvolvimento da educação no país será bem-vindo, desde que, frise-se à exaustão, cumpra com a sua função de elevar a cidadania e princípios e virtudes democráticas. O ponto de discussão está no fato de ser a Santa Sé a representante e coordenadora mundial da Igreja Católica, sendo que no referido acordo, dentre outros temas, foi tratado sobre o ensino religioso no Brasil, nos seguintes termos: Artigo 11 – A República Federativa do Brasil, em observância ao direito de liberdade religiosa, da diversidade cultural e da pluralidade confessional do País, respeita a importância do ensino religioso em vista da formação integral da pessoa. §1o. O ensino religioso, católico e de outras confissões religiosas, de matrícula facultativa, constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, em conformidade com a Constituição e as outras leis vigentes, sem qualquer forma de discriminação.

Diante da redação de tal artigo, foi proposta a Ação Direta de Inconstitucionalidade no 4.439, pela Procuradoria-Geral da República, em que pede: (i) realize interpretação conforme a Constituição do art. 33,

162 • O ensino religioso nas escolas públicas caput e §§ 1o e 2o, da Lei no 9.394/96, para assentar que o ensino religioso em escolas públicas só pode ser de natureza não-confessional, com proibição de admissão de professores na qualidade de representantes das confissões religiosas; (ii) profira decisão de interpretação conforma a Constituição do art. 11, § 1o, do “Acordo entre a República Federativa do Brasil e a Santa Sé relativo ao Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil”, aprovado pelo Congresso Nacional através do Decreto Legislativo no 698/2009 e promulgado pelo Presidente da República através do Decreto no 7.107/2010, para assentar que o ensino religioso em escolas públicas só pode ser de natureza não-confessional; ou (iii) (...) seja declarada a inconstitucionalidade do trecho “católico e de outras confissões religiosas”, constante no art. 11, § 1o, do Acordo Brasil-Santa Sé acima referido.

A ação proposta vem reforçar o que fora exposto, demonstrando na peça processual a necessidade de garantir a laicidade do Estado, as garantias constitucionais referentes às liberdades de crenças, a posição psicológica das crianças em se sentirem acolhidas e inseridas em um ambiente social, a possibilidade da ocorrência de distinção e exclusão de pessoas que não professem a mesma religião que aquela ministrada e colaciona julgados de cortes internacionais que decidiram sobre temas parecidos. O que se propõe com o acordo celebrado é justamente que a disciplina ensino religioso tenha um caráter confessional e/ou ecumênico, e é em cima desta premissa que a Advocacia Geral da União se baseia para defender a constitucionalidade da norma, o que se demonstra totalmente desarrazoado, não sendo levado em consideração algumas questões relevantes sobre as próprias estruturas religiosas presentes no país. A ação não foi decidida até o presente momento, contudo, além do que já fora exposto, analisando o direito canônico, se percebe claramente que não haverá qualquer possibilidade de adequação da atividade de ensino religioso católico com o texto constitucional. Os cânones fazem parte do direito canônico que rege a Igreja Apostólica Católica Romana, e dentro de seu texto há várias menções quanto às possibilidades de penalizações de sacerdotes e fiéis quando atuarem de forma contrária aos ensinamentos da Santa Sé. Compulsando o direito canônico que se percebe claramente que não é intenção da Igreja Católica permitir que seus fiéis se deparem

Lucas de Barros Maciel • 163 com matérias acatólicas, ou qualquer forma de pensamento que leve seus fiéis a questionar os preceitos e dogmas católicos: Cân. 1366 — Os pais ou quem faz as suas vezes, que entregam os filhos para serem baptizados ou educados numa religião acatólica, sejam punidos com uma censura ou outra pena justa.

Como se vê, há a previsão de punição para aqueles tutores que dispuserem crianças a serem educadas em uma religião acatólica. Definitivamente não é a intenção do texto constitucional brasileiro que se fomente a discórdia dentro das instituições religiosas por causa do ensino que é aplicado nas escolas públicas. Se o ensino religioso está expresso no texto constitucional e é dado como essencial para o desenvolvimento da criança para torna-la um cidadão principiologicamente melhor, não é seguindo os preceitos católicos que buscam a privação de ensinos que divergem de seus dogmas que se terá um país com maiores possibilidades de crescimento social igualitário. Deve ser levado em consideração o temor que é implementado nas mentes das pessoas que seguem esta determinada religiosidade, pois a religião possui um papel importante para as pessoas no que concerne ao sentido de suas vidas e a possibilidade do eterno após a morte. Se um religioso acredita que estará fadado a danação eterna por ter colocado seu filho diante de um ensino acatólico, é certo que ele não irá correr o risco, pois, mesmo que a constituição e leis garantam-lhe a segurança e liberdade de determinar-se da melhor forma possível, a sua consciência está atrelada ao temor que lhe é imposto pelos dogmas religiosos. Lado outro, o cânone não permitiria que qualquer de seus sacerdotes e fieis ensinassem assuntos que fossem divergentes dos dogmas católicos: Cân. 1371 — Seja punido com pena justa: 1.° quem, fora do caso previsto no cân. 1364, §1, ensinar uma doutrina condenada pelo Romano Pontífice ou pelo Concílio Ecuménico ou rejeitar com pertinácia a doutrina referida no cân. 750, §2 ou no cân. 752, e, admoestado pela Sé Apostólica ou pelo Ordinário, não se retractar;

164 • O ensino religioso nas escolas públicas Definitivamente não se poderá ter qualquer professor que seja um sacerdote católico. Por mais que o seu compromisso com a educação seja levado em conta, será que é mesmo razoável que se espere que um sacerdote atue como professor ensinando sobre religiões diversas da sua de forma imparcial e impessoal? A própria estrutura religiosa procura impedir que seus fiéis se deparem com ensinamentos religiosos diversos dos seus, ou que possam questionar os ensinamentos hierárquicos promovidos pela Igreja – afinal, há precedentes de comportamentos questionativos que mudaram as estruturas da Igreja. Fica claro que o ensino religioso no Brasil não poderá ocorrer de forma confessional, quão menos ecumênica, devido tanto às suas impossibilidades dogmáticas quanto as garantias de liberdades de todas as pessoas. Um ensino ecumênico não é garantia de um ensino amplo de religiosidade, mas apenas se considera as características majoritárias das religiões presentes no país, o que acaba por excluir as visões que negam deidades e religiosidades. Ademais, o caráter de ecumênico que é empregado por cada denominação religiosa pode ser um tanto quanto diferente e divergente, tornando inviável a prática de um ecumenismo quando não há a aceitação da possibilidade de se reconhecer uma manifestação religiosa como uma religião. A ação proposta de inconstitucionalidade traz dados relevantíssimos quanto ao ensino religioso no país, em destaque o que é exercido em São Paulo, tratando-se de um ensino secular, objetivando a história das religiões e seu fenômeno sociológico, ministradas as aulas por professores de sociologia, história ou filosofia. Merece destaque o que é empregado neste estado justamente por ser o único que, pretendendo dar eficácia ao texto constitucional, promove um estudo secularizado, tendente – ao que parece – a não influenciar a tomada de decisões dos alunos, abordando a matéria de forma mais imparcial e possibilitando que não haja a predileção de uma religiosidade específica e haja também a possibilidade de participação daqueles sem qualquer espírito religioso. Enquanto que, em contrapartida, os demais estados promovem aulas de ensino religioso confessionais ou interconfessionais. Desta forma, é correta a ação proposta pela Procuradoria-Geral da República quando pretende que seja dada uma interpretação laica ao texto constitucional, não permitindo que as aulas de ensino religioso sejam ministradas de forma confessional ou ecu-

Lucas de Barros Maciel • 165 mênica.

Conclusão Como vem sendo frisado, o ensino possui uma função social, se destina a um objetivo. A valoração do aluno está justamente em permitir que este se desenvolva nas suas mais completas possibilidades, tornando-se um ser autônomo, capaz de se determinar desta forma, não se podendo conceber que a educação fique restrita na mão de poucos capazes de modificar a estrutura de ensino para padrões que retrocedam nas conquistas já realizadas. A autonomia que se pretende dos alunos é a possibilidade de estes promoverem um desenvolvimento social, cultural, econômico e tecnológico de forma a compatibilizar a dignidade da pessoa humana e ampliar as conquistas já realizadas nestes campos. Uma educação religiosa, em verdade, somente cumprirá com os ideais democráticos, republicanos, solidários e igualitários quando puder desvincular as ideias de submissão do homem a outro. É por isso que o ensino deve ser dado de forma aconfessional, secular, pois é necessário que se possibilite a interação com todas as doutrinas e conhecimentos diversificados que moldam a comunidade internacional e descobrir como se pode encontra o melhor caminho para uma sociedade mais colaborativa, solidária e tolerante.

Referências ALMEIDA, Fábio Portela Lopes de. Liberalismo político, constitucionalismo e democracia: a questão do ensino religioso nas escolas públicas. Universidade de Brasília, Faculdade de Direito, 2006. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, 1988. _______. Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996. DAWKINS, Richard. Deus, um delírio. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. LEVINSON, Meira. The demands of liberal education. New York, 2004.

166 • O ensino religioso nas escolas públicas Apud ALMEIDA, Fábio Portela Lopes de. Liberalismo politico, constitucionalismo e democracia: a questão do ensino religioso nas escolas públicas. Brasília: 2006. RAWLS, John. Justiça como equidade: uma reformulação. Apud ALMEIDA, Fábio Portela Lopes de. Liberalismo politico, constitucionalismo e democracia: a questão do ensino religioso nas escolas públicas. Brasília: 2006. SARMENTO, Daniel; SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Direito Constitucional: teoria, história e métodos de trabalho. 2 ed. Belo Horizonte: Fórum, 2014.

O FILTRO DA RAZÃO PÚBLICA RAWLSIANA NO DEBATE ENTRE SECULARES E RELIGIOSOS (The public reason filter in the debate between secular and religious people) Franklin Vinícius Marques Dutra1

Resumo O texto quer apresentar uma nova visão sobre a liberdade religiosa como um direito vinculado à liberdade de pensamento. Dessa forma, como uma aplicação desta nova visão se busca o caso do debate político entre seculares e religiosos através da institucionalização de um filtro de linguagem, a saber, o filtro da razão pública de John Rawls. Palavras-chave: Direito à Liberdade Religiosa. Teoria do Direito. Filosofia do Direito. Filosofia Política. Direito Constitucional Comparado. Hermenêutica Constitucional.

Abstract The text presents a new vision of religious freedom as a right related to freedom of thought. Thus, as an application of this new vision is sought if the political debate between secular and religious people through the establishment of a language filter, namely the filter of public reason of John Rawls. Keywords: Right to Religious Freedom. Theory of Law. Philosophy of Law. Political Philosophy. Comparative Constitutional Law. Constitutional Hermeneutics.

Introdução Fazendo uma análise histórica, percebe-se tratamento desiAluno de graduação, UFMG, bolsista do CNPq, orientado pelo Prof. Dr. Thomas da Rosa de Bustamante, [email protected]

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168 • O filtro da razão pública rawlsiana no debate... gual e tendencioso no sentido do favorecimento da religião dentre as diversas formas de pensamento (política, filosófica, entre outras). Aqui no Brasil, por exemplo, somente se tem aceitado motivos de crença religiosa para a abstenção de serviço militar e como mesário durante as eleições, não se aceitando os demais motivos, o que ressalta o tratamento privilegiado dado ao pensamento religioso também no Brasil. A própria Suprema Corte dos EUA, em entendimento já consolidado, tem aceitado apenas escusas de consciência (objeções pessoais alegadas por motivos de convicção íntima para o descumprimento de uma obrigação legal) baseadas em crenças religiosas. A única exceção histórica dessa corte foi para os pacifistas convictos que não queriam servir na Guerra do Vietnã: Case. U.S. Supreme Court. Gillette v. United States, 401 U.S. 437 (1971). Entretanto, a corte neste caso não acatou os fundamentos do livre exercício (de consciência), mas apenas a violação da cláusula de não estabelecimento, de modo a não se criar o precedente para escusas de consciência não religiosas. Por outro giro, sustenta-se aqui que não há nenhum direito específico à liberdade religiosa que consegue se sustentar autonomamente, mas apenas condicionado ao Direito à Liberdade de Pensamento (ou Consciência). Com efeito, tal tratamento diferenciado se justificaria apenas caso houvesse um direito autônomo à Liberdade Religiosa, colocando a consciência religiosa acima das demais, o que seria, na atual ordem constitucional, um desrespeito com as outras formas de manifestação do pensamento. Entender que não há privilégio para o pensamento religioso dentro da liberdade de consciência coloca as religiões não apenas em pé de igualdade entre si, mas também com as demais convicções (políticas, filosóficas...) e, até mesmo, com o ateísmo. Com isso, tem-se aumento na proteção de direitos, pois os religiosos não terão que enfrentar um Estado que privilegie os ateus, os quais, equiparados aos teístas, terão suas crenças protegidas com a mesma força, deferindo a ambos tratamentos igualitários. Percebe-se, desse modo, que o teísmo não é importante para caracterização da convicção/crença juridicamente protegida. Essa tese é levanta por Brian Leiter em seu “Why Tolerate Religion?”. Nele, incialmente, o autor o conceitua e fundamenta a tolerância às diferentes formas de pensamento (Leiter 2013, 8). Na sequência, procura caracterizar a crença religiosa (Leiter 2013, 34-37), diferenciando-a das demais, o que poderia justificar seu tratamento dife-

Franklin Vinícius Dutra • 169 renciado. Ressalta-se também que tal concepção é a adotada por Ronald Dworkin em seu “Religion Without God”, (Dworkin 2013, 105-147) no qual ele demonstra que todas as convicções são fundamentais para definição do eu, o “self”, de cada um, tendo em vista a independência ética do indivíduo. Vale salientar que as conclusões a que chega Dworkin em sua obra são muito parecidas com as de Brian Leiter, só que Dworkin utiliza de argumentos de cunho metafísico para justifica-las. Não parece ser muito interessante demonstrar de forma detalhada como os autores acima chegam a esta conclusão, até pelo tamanho que este artigo tem que respeitar, sendo que o ponto deste texto é mais uma aplicação deste ponto de vista. Este artigo de alinha com o conceito de religião de uma linha liberal de autores, dentre os quais John Rawls deve ser citado por já trazer as intuições e os pontos fundamentais, presentes tanto nos conceitos de Brian Leiter quanto nos de Ronald Dworkin. Será, então, ponto fundamental o conceito rawlsiano de religião, pois é ponto convergente dos demais autores ao longo do texto. Antes de adentrar no debate público, passa-se então pela ideia de religião com que se trabalha aqui.

Dando contornos à ideia rawlsiana de religião Logo no começo de seu texto, Rawls afirma que: “For them2, religion is purely conventional and gives them confort and solace in different times” (Rawls 2009, 264). Com essa frase, parece que Rawls apenas quis dizer que, de modo geral, as pessoas adotam uma religião porque nascem em uma cultura e estrutura familiar que já vivencia uma religião. Ou seja, não se reflete exaustivamente sobre a religião em si, seus dogmas e implicações para sua adoção na maioria dos casos: se pertence a ele por pertencer a mesma comunidade religiosa que aqueles a quem se é próximo. Na sequência ele dialoga com o Colloquium of the Seven de Jean Bodin (Rawls 2009, 266), o qual entende que a tolerância e o debate entre as religiões são parte dos próprios princípios da religião, pois estariam fundados na vontade divina. Contudo, exatamente por fundar a tolerância nos princípios da religião que, para Bodin, não há lugar para o ateísmo nessa discussão, pois o autor O “eles” a que o autor faz referência no começo da frase é ao cidadão comum de modo geral, o famigerado homem médio do liberalismo. 2

170 • O filtro da razão pública rawlsiana no debate... entende que o ateu não nega apenas a existência de deus, mas também os princípios do que é justo e certo. Ou seja, como tais princípios seriam resultado da vontade e da criação divina, ao se negar a existência divina se estaria necessariamente também os negando: a vontade divina é, nesta concepção, a fonte, a criadora de todo ser, sua moral, sua política e seus valores. Evidentemente não é esta a visão de Rawls, que propõe que, se pensemos que a base e conteúdo desses valores provêm da razão divina, ou pelo menos daquilo que pode dela ser compreendido, a vontade divina passa a exercer um papel secundário como sancionadora das intenções divinas, que agora se fundam na razão. Adotar esta concepção permite que o ateísmo (ou, pelo menos, o não teísmo, nontheism em inglês) seja respeitado como as demais religiões, ou seja, equiparando-os para fins de proteção enquanto manifestação do pensamento humano. Refinando sua ideia, Rawls entende que, num contexto de liberalismo político, em que impera o uso da Razão Pública (Rawls 2000), há espaço para debate e tolerância às religiões (inclusive às não teístas) baseado em um princípio político e, não, derivado da ontologia das religiões e da vontade de algum ser divino. Para Bodin, tolerância é um aspecto da natureza e da criação divinas; já na concepção de Rawls, em contra partida, mantém-se a primazia do político e também a tolerância às religiões, inclusive não teístas. Nesse sentido, Rawls faz uma análise entre a razão divina, política e moral. Incialmente, ele propõe um exercício mental a respeito das semelhanças e diferenças entre a razão divina e humana. Ele entende que a forma de pensar (a maneira de encontrar validade e verdade), o modo de funcionamento das duas é comum. A diferença é que a razão divina conhece todas as premissas fáticas, ou seja, sabe de toda a realidade, é onisciente. Contudo, nos demais pontos, há coincidência entre as razões. É como se a razão divina fosse uma razão humana com todo o conhecimento possível dos diversos aspectos existentes da realidade. Sendo assim, Rawls conclui que inferências sobre validade e verdade não são afetadas pela existência de um ser superior. Neste diapasão, o não teísmo é absolutamente compatível com as demais religiões e merece a mesma tolerância que estas recebem. Nas próprias palavras de Rawls, temos: “So I go along with Bodin this far: atheism (as he understands it) is a disaster, but nontheism need not be feared, politically speaking.

Franklin Vinícius Dutra • 171 Nontheism is compatible with religious faith; and even atheism is to be tolerated, for what is punishable in religion is not beliefs but deeds” (Rawls 2009, 269).

A liberdade religiosa como manifestação da liberdade de pensamento na Constituição de 1988 Tal tratamento diferenciado, ao se analisar a primeira parte do art. 5º, VI, CRFB/1988, não tem fundamento: o constituinte não especificou sua proteção como direito fundamental apenas à crença religiosa, mas sim a qualquer tipo de crença. Há que se lembrar de que tal direito possui o status de direito fundamental, cabendo sempre sua interpretação expansiva, com vistas à evolução na proteção das garantias, conforme o parágrafo 2º do mesmo artigo e em consenso entre juristas que tratam do tema (Mendes and Branco 2012, 328-336). A liberdade religiosa entra como um elemento fundamental para qualquer Estado que tenha a menor pretensão de se dizer democrático (Borges and Alves 2013, 237-242). Nesse sentido, a laicidade, ou seja, a garantia de que certo Estado não cria privilégios a quaisquer associações religiosas, permitindo a liberdade de proliferação e adesão às mesmas, sem incentivar ou obstaculizar em especial nenhuma ou todas ela de modo geral integra o rol de direitos e garantias fundamentais dos indivíduos. Tradicionalmente, compreende-se o Direito à Liberdade Religiosa com duas facetas: uma voltada para o indivíduo e outra voltada para o Estado (Borges and Alves 2013, 235). Ao se voltar para o indivíduo, tem-se a ideia de possibilitar que ele escolha qualquer religião que queira professar, inclusive podendo escolher nenhuma delas. Este livre exercício é um direito fundamental (art. 5º, VI, CRFB/1988) de primeira geração, em que cabe ao poder estatal a abstenção no que tange a esse ponto: ele deve não interferir na escolha religiosa do indivíduo. Já em relação ao Estado, tem-se a cláusula de não estabelecimento (art. 19, I, CRFB/1988). Isso significa que não pode o Estado escolher uma determinada religião para tratar como oficial, criar leis ou realizar políticas no sentido de favorecer uma delas em especial. Neste ponto, vale abrir parênteses para a importância da con-

172 • O filtro da razão pública rawlsiana no debate... cepção adotada pelo artigo, em que o ateísmo é, do ponto de vista das políticas públicas, equiparado a qualquer outra religião. Isso impossibilita que o Estado estabeleça o ateísmo como a “religião” oficial. Tal escolha seria tão desrespeitosa ao direito dos religiosos quanto a escolha de qualquer uma das religiões em detrimento das demais. Estado laico não é ateu. Para se alcançar tal Estado, que parece ser o único verdadeiramente democrático, há que se perceber que, embora durante a história da humanidade houve diversos momentos associação e até mesmo identidade entre poder político e religioso, no atual Estado Democrático de Direito, tal confusão se configura como inaceitável. É bem verdade que se pode questionar a existência da cláusula de não estabelecimento em nossa constituição, pelo menos como ela é concebida na 1ª Emenda à Constituição dos EUA, já que, no texto constitucional brasileiro, proíbe-se o estabelecimento de um culto como oficial ou subsidia-lo de qualquer forma, ressalvandose o interesse público, conceito jurídico bastante aberto de cuja materialização só vai se tornando possível quando se aproxima da realidade, caso a caso. Daí seria possível a interpretação segundo a qual, percebendo algum ente da república federativa do Brasil que certa religião ou culto atende ao interesse público, o mesmo poderia receber auxílio estatal. Contudo, entende-se que a constituição não é apenas um conjunto de normas que podem ser lidas de forma desvinculada umas das outras, principalmente no que tange a direitos fundamentais. Nesse sentido, é acertada a interpretação sistemática do dispositivo, que deve ser lido de acordo com o livre exercício do art. 5º, VI, e com as demais garantias do indivíduo. Ou seja, há que se perceber que o interesse público que possibilita uma atuação do estado em favor de uma religião tem que levar em conta que o estado brasileiro é laico e respeita as diversas formas de manifestação do pensamento igualmente: a laicidade, então, integra o próprio interesse público. Com isso, se traz uma boa redução na possibilidade de alegação do interesse público para desrespeitar a cláusula do não estabelecimento. Neste ponto, então, é válida a afirmação de que a constituição brasileira está mais alinhada ao conceito comunitário de secularismo de Charles Taylor, do seu A Secular Age (Taylor, 2007) ou do texto Why we need a radical definition of secularismo (Taylor,

Franklin Vinícius Dutra • 173 2011) do que o dos autores tomados como marco teórico deste artigo. Mas há outra saída possível para essa questão, conciliando estes autores com nosso texto constitucional. Claro que estamos em um país em que a constituição garante uma série de direitos sociais ao cidadão, mas cujo estado falha sistematicamente na garantia dos mesmos. Nesse sentido, parece estar aí a melhor, senão única, possibilidade de subsídio a uma religião por parte do Estado tendo em vista o interesse público. Isto é, se certa religião realizar obras sociais de relevante interesse e utilidade da coletividade onde se insere, dada a omissão do Estado em relação à realização das mesmas, parece ser razoável que se permita uma compensação financeira para tal religião, o que, de acordo com a ordem constitucional brasileira é permitido. O que se defende aqui não é tido como dogma da interpretação da liberdade religiosa, dada a complexidade do tema, mas apenas um início da sua discussão para que se alcance um entendimento razoável e satisfatório para nossa plural sociedade. A resposta deste texto, entretanto, parece ser a melhor encontrada até agora, devido ao tratamento igualitário que fornece aos diversos membros da sociedade (tanto religiosos quanto não religiosos), aumentando a esfera de proteção de direitos fundamentais.

Uma breve análise histórica da relação entre Estado e Religião Já tendo perpassado pelas ideias fundamentais de religião com que o artigo se alinha, é oportuna uma análise histórica da evolução da relação entre Estado e Religião, guiados pelo grande Jürgen Habermas, através seu “’The political’: The Rational Meaning of a Questionable Inheritance of Political Theology” (Habermas 2011, 15-33). A princípio, ressalta-se aqui a influência da Teoria dos Sistemas de Luhmann, segundo a qual, resumidamente, o sistema pode ser definido como um conjunto de elementos interdependentes que interagem com objetivos comuns formando um todo, e onde cada um dos elementos componentes comporta-se, por sua vez, como um sistema cujo resultado é maior do que o resultado que as unidades poderiam ter se funcionassem independentemente. Qualquer conjunto de partes unidas entre si pode ser considerado um siste-

174 • O filtro da razão pública rawlsiana no debate... ma, desde que as relações entre as partes e o comportamento do todo sejam o foco de atenção. Para Habermas, dentro desta visão, cada vez mais o sistema político da democracia tem sofrido restrições pelos demais, principalmente o sistema econômico, o que gera o eminente perigo de obsolescência da democracia. Nesse sentido, o político se torna apenas um subsistema e, diante disso, diversos autores têm buscado os conceitos clássicos da politica na tentativa de encontrar um antídoto à despolitização social, estando Schmitt entre eles. Habermas, então, entende o termo political como o campo (sistema) simbólico em que as civilizações inicias que se reuniram conscientemente puderam visualizar a imagem que faziam de si mesmas. Ele ressalta que há certa dificuldade teórica de se tratar do political, enquanto que de politics (jogo de poder, sua busca e manutenção) e policies (programas de políticas públicas) tem havido bastante produção teórica. Para o autor, nas civilizações egípcia e mesopotâmia, havia a necessidade de legitimar a autoridade política. Para isso, utilizou-se largamente de aspectos religiosos. Foi assim que se a conexão entre direito e política transformou o rei em divino e, daí, concedeu-lhe incontestável legitimação. Ainda neste contexto, cria-se uma responsabilidade individual de busca pela salvação e assim que as pessoas passam a ter consciência disso, o representante político não mais passa a ter que ser o próprio deus, mas apenas seu representante terreno. Com isso, vai-se evoluindo ao longo da história. Criam-se, assim, algumas tensões políticas, como, por exemplo, nas relações entre rei e papa na Idade Média. Na Idade Moderna, tem-se um resgate da filosofia grega acrescida da teologia política cristã, sendo que a autoridade política busca legitimação e dominação a partir da ideia de um deus poderoso e aí surge a soberania moderna dos Estados na Paz de Vestfália, em 1648. Contudo, o crescimento da burocracia estatal vai dissolvendo progressivamente a interpenetração entre política e sociedade dos antigos impérios. Ou seja, as pessoas vão, com isso, perdendo suas ligações com o político, gerando, então, a despolitização. É interessante salientar aqui, como complemento ao que sustenta Habermas, a distinção que Benjamim Constant (Constant 1819) faz no seu texto da liberdade dos antigos e dos modernos. Em poucas palavras, este sustenta que a noção de liberdade dos

Franklin Vinícius Dutra • 175 antigos é de atuação política (democracia direta ateniense seria o melhor exemplo) e na modernidade a ideia passa a ser de liberdade privada, de atuação individual, ausente a intervenção do estado. Então, entende-se o conceito do political como meio simbólico de auto representação da sociedade que conscientemente busca e possui mecanismo de integração social. Neste contexto de despolitização, aparece Schmitt, que cria um conceito político por neutralização em um subsistema específico e a dissolução do teoricamente soberano poder democrático para a tomada de decisões. Com o metafísico da política (fazer surgir a decisão do nada), ele tenta rejeitar a negação do político (despolitização, o que, na verdade, segundo Habermas ainda subsiste até os dias atuais), através dos conceitos de líder carismático e de tomada de decisões de forma mais concentrada para a realização da política. O líder irá mobilizar e unir a nação em torno de ideias nacionalistas (quase espirituais) e aglomerar, assim, os membros dela através do medo de sua autoridade. Contudo, Habermas insiste na ideia de que a negação da política não foi superada e vai além: a questão atual é como manter a dignidade da pessoa humana e as questões normativas de relevância serem publicamente discutidas diante da crescente desintegração da relação politica e sociedade e aí surge a razão pública de Rawls como uma alternativa viável.

A aplicação da razão pública no debate político De acordo com John Rawls, o problema do impacto político do papel da religião não foi resolvido com a secularização da autoridade política (laicização do estado). Ele percebe que a laicização, que pretende privatizar a religião, mantê-la apenas na esfera privada das pessoas, não se sustenta, pois, de fato, a religião exerce importante poder e influência na vida pública. Com isso, o político não está na esfera do estado apenas e vai também para a sociedade. Rawls enfoca aqui não a sua ideia de se chegar a um consenso por sobreposição, mas sim da razão pública. O debate, a comunicação pública, se dará por meio desta. A proposta do autor visa a possibilitar qualquer debate entre seculares e religiosos, ainda que fora da esfera estatal. Contudo, o filtro institucional da razão pública será inerente apenas aos órgãos pú-

176 • O filtro da razão pública rawlsiana no debate... blicos, principalmente aqueles dos quais o debate entre os membros gera normatização (notadamente as assembleias legislativas, mas é interessante notar como o mesmo filtro também se aplica perfeitamente aos tribunais colegiados). Nesse sentido, o autor parte da ideia de constituição liberal, que irá trazer igual liberdade para os religiosos e seculares e procurará proteger os órgãos públicos que irão decidir de sofrer influência religiosa. Ou seja, considera-se que a constituição liberal não pode ignorar as contribuições que os grupos religiosos exercem no processo democrático da sociedade civil. A solução que Rawls propõe é que, no debate político, como há sempre a possibilidade de haver pessoas que raciocinam baseadas em argumentos religiosos e aquelas que o fazem por meio de argumentos seculares, deve haver um filtro de linguagem para possibilitar o debate público. Tal filtro será institucional nos órgãos públicos de deliberação coletiva, ou seja, não se está tentando de forma alguma adentrar no subjetivo, no pensamento daqueles que se encontrem discutindo: a ideia é proporcionar um critério objetivo para que seja possível o debate em um país democraticamente constituído. Religiosos e seculares terão que se respeitar mutuamente e a ideia é não sobrecarregar nenhum deles com um ônus excessivo, mantendo uma posição de igualdade para ambos. Para ser mais claro, é importante ser um pouco mais claro na construção do conceito de razão pública (Rawls 2000), segundo o qual as questões constitucionais essenciais, além dos elementos de justiça básica são construídos politicamente através dos valores que podem ser ratificados por todos os cidadãos por meio do consenso por sobreposição (em inglês, overlapping consensus) das doutrinas abrangentes razoáveis. Ressalta-se então o caráter pragmático do autor neste ponto. Rawls quer, com isto, criar um procedimento que possibilite a formação dos valores políticos de determinada sociedade que serão, obviamente, construídos politicamente e que, respeitado o processo, estão moralmente justificados. Novamente, a razão pública, então, é a forma de raciocínio argumentativo que se dá no processo de criação do consenso por sobreposição das doutrinas abrangentes da sociedade. Esse consenso nos dá os valores e conceitos políticos daquela sociedade e ressalta-se que as doutrinas abrangentes razoáveis podem ser qualquer manifestação de grupos da sociedade (religiosos, políticos, intelec-

Franklin Vinícius Dutra • 177 tuais, científicos, enfim), desde que respeitem os direitos humanos. Para ficar mais claro, pense no conceito de mérito. Existem diversas visões na sociedade sobre o mesmo, relacionadas a diversos fatores, por exemplo, o mérito para os cristãos, para os judeus, para os marxistas, pacifistas, neoliberais, entre outros. Contudo, com a razão pública, Rawls propõe um procedimento que irá criar o conceito político de mérito, que é alterável, mas que, por ter sido o consenso por sobreposição irá valer para todos naquela sociedade, e será adotado pelas instituições públicas, por exemplo, nas ações afirmativas. Para Rawls, é imprescindível que se passe por esse processo para que se possa estabelecer o ponto de partida dos valores políticos de qualquer sociedade que priorize a justiça em relação ao bem. A razão pública será, então, a razão dos indivíduos dentro de um contexto de compartilhamento de sua situação como cidadãos, sendo que o objeto da mesma é o bem público no sentido de estabelecer uma base pública de justificação que seja justa. É interessante notar que o autor norte americano bebeu da fonte kantiana na interpretação deste conceito de razão pública, pois Kant, em seu Resposta à pergunta: O que é Esclarecimento?, pois tal razão é delimitada tendo em vista três sentidos: ela é a razão do público, ou seja, a razão dos cidadãos que compartilham uma situação de igual cidadania; seu objeto é o bem público e as questões fundamentais de justiça; além de que sua natureza e conceito são públicos, isto é, são delimitados pelos princípios expressos pela concepção de justiça política daquela sociedade. Pois bem, no que tange à possiblidade do debate nos espaço público, o filtro da razão pública irá trazer, para os religiosos, a necessidade de ser razoável com seus argumentos, aceitar que decisões sobre conhecimento de mundano cabem à ciência natural e que conformar os seus dogmas religiosos com os direitos humanos. São estas as exigências linguísticas que se faz para que o debate político possa fluir e construir conceitos razoáveis e moralmente válidos para a totalidade da população. Com isso, no discurso democrático, a relação entre religiosos e seculares será de complementariedade, uma vez que ambos utilizam da razão pública, que é uma eficiente forma de garantir que o pluralismo da sociedade, tão marcante no mundo atual, seja espelhado na politica. Não se terá mais, com a adoção desta concepção, um antagonismo entre eles (além de se evitar que se confun-

178 • O filtro da razão pública rawlsiana no debate... dam ateísmo com laicidade), muito menos se quer retirar a religião da formação da vontade política daquela sociedade, mas sim se quer trazê-la para dentro do debate de forma moralmente aceitável.

Conclusão Reafirma-se mais uma vez a grande vantagem que o filtro da razão pública traz, pois ele atua no sentido de ampliação da participação dos diversos grupos sociais no debate política, de modo que a política possa espelhar a sociedade mais fielmente. Aliás, parece que é esta a ideia de democracia, a qual sempre deve ser pensada neste sentido de aumento da participação e da diversidade para que as mais importantes questões da sociedade possam ser construídas politicamente em um sistema o mais justo possível. Subjaz a essa visão a ideia de que a democracia é um projeto em aberto, não finalizado, tendo em mente que ela é o melhor que se encontrou até agora. Claro que há dificuldades práticas de aplicação do que se propõe aqui, mas, ainda assim, não se acredita por isto ter perdido o argumento a sua força. Com isso, fica apenas iniciado do debate do tema para que se prossiga e possa, desta forma, encontrar o melhor sistema possível para sua implementação prática. Não obstante, possibilita também a visão apresentada no artigo viabilizar a melhor representação, reprodução da sociedade no debate político, já que temos, então, representados no debate público não apenas os argumentos dos seculares, mas também o dos teístas, ambos, é bem verdade, moldados na sua exteriorização de uma forma que seja possível o debate entre eles e a obtenção de um resultado que bem represente a realidade. Uma compreensão universal dos direitos humanos nos lembra da necessidade de desenvolver modelos institucionais que melhor se adaptem às sociedades multiculturais da atualidade. Além do mais, acredita-se na força do que está apresentado aqui, pois está de encontro ao desenho jurídico que a liberdade religiosa tem na Constituição de 1988, demonstrando uma interpretação bem fundamentada da liberdade religiosa e que vai de acordo com os valores ressaltados na própria constituição, como a liberdade e a igualdade. Para finalizar, parece apropriado citar mais uma vez o gi-

Franklin Vinícius Dutra • 179 gante Immanuel Kant que resume bem o caminho por que todo este texto quis seguir: “[...] Então essa inclinação (e vocação de pensar livremente) age por sua vez sobre a sensibilidade do povo (graças à qual este se torna cada vez mais capaz de ter a liberdade de agir) e finalmente, também sobre os princípios do governo, que encontra o seu próprio interesse em tratar o homem, que doravante é mais do que uma máquina, na medida de sua dignidade” (Kant 1873, 8-9).

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180 • O filtro da razão pública rawlsiana no debate... Leiter, Brian. Why Tolerate Religion? Princeton University Press. Princeton, NJ. 2013. Mendes, Gilmar Ferreira, and Branco, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva. 2012. Rawls, John. A Brief Inquiry into the Meaning of Sin and Faith With On My Religion. Cambridge: Harvard University Press. 2009. Rawls, John. A ideia de razão pública. In RAWLS, John. Liberalismo Político. São Paulo: Editora Ática. 2000. Rawls, John. A theory of justice. Cambridge: Harvard University Press.1999. Rawls, John. Political Liberalism (Expanded Edition). New York: Columbia University Press. 2005. Russel, Bertrand. A Filosofia entre a Ciência e a Religião. 1935. Text in public domain: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/ DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=2292 Silveira, Denis Coitinho. “O papel da razão pública na teoria da justiça de Rawls”. Filosofia Unisinos 10 (2009): 65-78. Taylor, Charles. A Secular Age. Cambridge: Harvard University Press. 2013. Taylor, Charles. “Why we need a radical redefinition of secularism”. In Judith Butler, Jürgen Habermas, Charles Taylon and Cornel West. The Power of Religion in the Public Sphere. New York: Columbia University Press. 2011.

HATE SPEECH E ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO:

BREVES CONSIDERAÇÕES ACERCA DA LIMITAÇÃO À LIBERDADE DE EXPRESSÃO Mariana Colucci Goulart Martins Ferreira1 Alexandre Ribeiro da Silva2

Resumo Esse trabalho tem como objetivo tecer breves comentários acerca do Hate Speech em um Estado Democrático de Direito. Sendo assim, almeja-se estudar a possibilidade de limitação à liberdade de expressão em razão da utilização do discurso do ódio, tal como ocorreu no Habeas Corpus n. 82.424-2, considerando-se a Teoria Discursiva do Direito e a razão comunicativa habermasianas. Palavras-chave: Hate Speech. Estado Democrático de Direito. Limitação à Liberdade de Expressão. Teoria Discursiva do Direito. Razão Comunicativa.

Abstract This work intends to comment briefly the Hate Speech in a Democratic Constitutional State. In this manner, the purpose of the present study is to analyse the possibility of limitation of freedom É mestranda em “Hermenêutica e Direitos Fundamentais” pela UNIPAC e cursa pós-graduação lato sensu em “Direito Constitucional Aplicado” no Complexo Educacional Damásio de Jesus. Possui graduação em Comunicação Social pela UFJF (2010) e graduação em Direito pelo Instituto Vianna Júnior (2013). Jornalista e advogada. Brasil. Endereço eletrônico: marianacolucciadv@gmail. com. 2 Mestrando em “Hermenêutica e Direitos Fundamentais” pela UNIPAC. É advogado e professor de literatura e português. Possui pós-graduação em Direito Processual pela UFJF (2011), graduação em Direito pelo Instituto Vianna Júnior (2009) e graduação em Letras pela UFJF (2010). Brasil. Endereço eletrônico: [email protected]. 1

182 • Hate speech e Estado Democrático de Direito of expression because of the use of Hate Speech, as has occurred in the Habeas Corpus n. 82.424-2, considering Habermas’s Discourse Theory of Law and communicative reason.

Keywords: Hate Speech. Democratic Constitutional State. Limitation of Freedom of Expression. Discourse Theory of Law. Communicative Reason.

Introdução Contemporaneamente pode-se perceber a ascensão de discursos de cunho preconceituoso no seio social e um constante sentimento reacionário parece inebriar os mais diversos setores da sociedade. O Hate Speech evidencia-se em conversas cotidianas, meios eletrônicos, programas sensacionalistas e até mesmo publicações, tal como ocorreu no caso concreto que incitou o Habeas Corpus n. 82.424-2. Após a proclamação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, o respeito à dignidade da pessoa humana colocou-se como um dos objetivos e alicerces dos mais diversos sistemas jurídicos. No Brasil, considerado um Estado Democrático de Direito, a dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos da República Federativa e configura-se como uma das bases para a consecução de uma sociedade democrática, livre e igual. Ocorre que em um Estado Democrático de Direito também há o respeito inerente ao direito fundamental à liberdade de expressão, que abaliza a Democracia e permite aos cidadãos colocarem-se como iguais. E, após um período de repressão e censura ao pensamento que perdurou em nossa sociedade pátria por mais de vinte anos, a sociedade e os poderes constituídos resguardam e protegem imperativamente as opiniões escrita e falada e até mesmo aos controversos tipos de artes. Nesse sentido, no Brasil há, em sede de Hate Speech, um visível conflito entre a dignidade da pessoa humana e o direito fundamental à liberdade de expressão, ambos consagrados e protegidos pela Magna Carta de 1988. Deve-se ponderar, portanto, entre aquela e este a fim de aferir qual seria a fidedigna interpretação constitucional para a aplicação do Direito em um dado episódio. Para tal, a racionalidade comunicativa de Jürgen Habermas surge como forma de analisar a polêmica situação, uma vez que o

Mariana Ferreira & Alexandre da Silva • 183 uso de sua razão comunicativa não é mais atribuído ao ator individual ou a um macrosubject3 no nível do Estado ou de toda a sociedade, passando da análise do discurso do ódio como um todo, desde o emissor ao receptor, e envolvendo uma racionalidade que estaria inscrita no telos linguístico da mútua compreensão. Seria formado, assim, um conjunto de condições que possibilitariam e limitariam, servindo de resposta à indagação de validade ou não de uso de certa fala em nosso contexto democrático. Assim, apresentada a premissa, o presente artigo pretende analisar brevemente a relação entre a teoria habermasiana no que tange ao Hate Speech e aos limites do direito fundamental à liberdade de expressão, baseando-se também no julgamento do Habeas Corpus n. 82.424-2 pela Suprema Corte pátria.

O hate speech em ordens democráticas Segundo Anne Weber4, não há uma definição universal do discurso do ódio, ainda que a maioria dos Estados tenha adotado legislações que visem a eliminar expressões relacionadas àquele. Ressalta-se que o Hate Speech abarca comentários que são necessariamente direcionados contra uma pessoa ou um grupo particular de seres humanos5. De acordo com o manual do discurso do ódio de Weber6, esse tipo de discurso aborda uma série de situações: –Firstly, incitement of racial hatred or in other words, hatred directed against persons or groups of persons on the grounds of belonging to a race; –Secondly, incitement to hatred on religious grounds to which may A Sociedade seria um macrosubject [macro sujeito] de acordo com o pensamento de Habermas. Segundo explanação de James Gordon Finlayson na obra Habermas: a very short introduction. Tal concepção pode também ser encontrada em Platão, Rousseau, Schiller, Hegel, Marx e Durkheim. Esse pensamento significa que a Sociedade é um “todo inteiro orgânico” e não apenas uma pluralidade ou agregação de indivíduos, mas um tipo de pessoa coletiva. 4 Anne Weber, Manual on hate speech (Strasbourg: Council of Europe Publishing, 2009), 03, accessed September 20, 2014. http://www.coe.int/t/dghl/ standardsetting/hrpolicy/publications/hate_speech_en.pdf 5 Weber, Manual on hate speech, 03. 6 A. Weber, 2009, p. 03. 3

184 • Hate speech e Estado Democrático de Direito be equated incitement to hatred on the basis of a distinction between believers and non-believers; –And lastly, to use the wording of the Recommendation on “hate speech” of the Committee of Ministers of the Council of Europe, incitement to other forms of hatred based on intolerance “expressed by aggressive nationalism and ethnocentrism”7.

Em geral, o discurso do ódio encontra-se nas formas de expressão que aumentam, incitam ou justificam injuria racial, xenofobia, antissemitismo ou outros modos de discriminação baseados na intolerância, tais como o nacionalismo e o etnocentrismo agressivos e a hostilidade contra minorias e imigrantes. Nesse sentido, abarca comentários que são necessariamente direcionados contra uma pessoa ou um grupo particular de seres humanos. Por seu turno, Winfred Brugger8 aduz que a forma na qual os sistemas jurídicos devem lidar com o Hate Speech é matéria contestável, já que cada Estado lidaria com o mesmo consoante a sua ideologia. Para este autor, assim, Estados liberais valorizariam a liberdade de expressão, protegendo discurso do ódio em detrimento do receptor do mesmo, enquanto que Estados sociais tenderiam a não permitir a ocorrência do Hate Speech. É mister vislumbrar a importância da Declaração Universal para a conceituação do Estado Democrático de Direito, dos direitos fundamentais e da dignidade da pessoa humana. Nascida reação aos crimes do nacional-socialismo e aos anos de total desprezo aos direitos humanos pelos fascismos antes e durante a Segunda Guerra Mundial9, ela iniciou a atual luta que visa à proteção global dos direitos humanos, pois possui um texto jurídico-internacional com – Primeiramente, incitação ao ódio racial ou, em outras palavras, ódio direcionado a pessoas ou grupos de pessoas baseando-se no pertencimento a uma raça; – Segundamente, incitação ao ódio religioso, podendo este ser equiparado à incitação ao ódio baseando-se na distinção entre “fiéis” e “não-fiéis”;– E, por último, para utilizar as palavras da Recomendação em “discurso do ódio” do Comitê de Ministros do Conselho da Europa, incitação a outras formas de ódio baseadas na intolerância “expressada por agressivo nacionalismo ou etnocentrismo”. (tradução livre) 8 W. Brugger, 2001, p. 117. 9 Karl-Peter Sommermann, “El Desarrolo de los Derechos Humanos desde la Declaración Universal de 1948” in Derechos Humanos y Constitucionalismo ante el Tercer Milenio, ed. Antônio-Enrique Pérez Luño (Madri: Marcial Pons, 1996), 97-98. 7

Mariana Ferreira & Alexandre da Silva • 185 um catálogo compreensível a todos e que deve universalmente ser válido. Consoante Karl-Peter Sommermann10, uma vez cristalizados em documentos jurídico-internacionais, os direitos humanos influenciam o conteúdo das constituições depois elaboradas. Considerando-se que em torno de três quartos das constituições vigentes atualmente no mundo foram promulgadas após a Declaração Universal, faz-se patente em quantos Estados o constituinte teve à sua disposição os textos daquela na hora de redigir o capítulo sobre os direitos fundamentais11. Nesse contexto, a dignidade da pessoa humana é vista como uma qualidade intrínseca e distintiva de cada pessoa que a faz merecedora do mesmo respeito e apreço por parte do Estado e da comunidade, o que implica direitos e deveres fundamentais que assegurem defesa contra todo e qualquer ato degradante e desumano12.

A racionalidade comunicativa de Jürgen Habermas Jürgen Habermas tece críticas à concepção kantiana da razão prática, afirmando ser esta uma razão subjetiva e monológica. Assim, o conceito de razão prática teria sido inventado como uma capacidade subjetiva13. Salienta-se que Habermas14 aduz que havia uma ligação muito direta entre a razão prática e a prática social nas tradições culturais da velha Europa. Por sua vez, a razão comunicativa difere da razão prática no sentido que não é mais atribuída ao ator individual ou a um macro sujeito estatal ou social. O que faz a razão comunicativa ser possível é o meio linguístico através do qual as interações são amalgamadas e as formas de vida são estruturadas15. Essa racionalidade seria encontrada no telos linguístico do recíproco entendimento e formaria um conjunto de condições que Sommermann, “El Desarrolo”, 108. Sommermann, “El Desarrolo”, 108-109. 12 Dirley da Cunha Júnior, Curso de Direito Constitucional (Salvador: JusPodium, 2009), 528. 13 Jürgen. Habermas, Direito e Democracia: entre facticidade e validade (Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997), 17. 14 Habermas, Direito e Democracia, 19. 15 Habermas, Direito e Democracia, 20. 10 11

186 • Hate speech e Estado Democrático de Direito possibilitariam e limitariam. Quem quer que se utilize de uma linguagem natural para se entender com um destinatário sobre algo no mundo deve se compreender com certas preposições. No lugar da razão prática, Habermas sugere a utilização de uma razão comunicativa, inscrita no “telos linguístico do entendimento, formando um ensemble [conjunto] de condições possibilitadoras e, ao mesmo tempo, limitadoras”16. Ou seja, para o jusfilósofo17, ao transportamos o conceito de razão para o meio linguístico, aliviando-o da exclusiva conexão com a moral, aquele adquirirá outras concepções teóricas. Ao utilizar-se da linguagem natural, o emissor vê-se forçado a adotar certos pressupostos, tomando como ponto de partida que os participantes da comunicação perseguem seus objetivos ilocucionários sem reservas, conectam seu consenso ao reconhecimento intersubjetivo de pretensões de validade passíveis de crítica e revelam, assim, a disposição de “aceitar obrigatoriedades relevantes para as consequências da interação e que resultam de um consenso”18. Desse modo, a razão comunicativa, contrariamente à razão prática, não seria uma fonte de normas do agir e somente possuiria conteúdo normativo quando apoiada na pragmática-universal19. Quem age comunicativamente é obrigado a empreender idealizações, tais como conferir significado idêntico a enunciados e considerar os destinatários imputáveis20. A prática comunicativa, em conformidade à racionalidade comunicativa, possui uma dimensão normativa que a ela se refere e que cobra uma postura dos sujeitos que objetivam construir discursos sobre os quais fomentam expectativas de entendimento. Consoante Chamon Júnior21, caso dois ou mais sujeitos ambicionem debater certo assunto a fim de construir um dado entendimento, tal discurso não poderá ocorrer de qualquer maneira. Não será reconhecida liberdade de expor sua visão no discurso ou quando houver qualquer tipo de violência embutida ou a utilização de mero Habermas, Direito e Democracia, 20. Habermas, Direito e Democracia, 19. 18 Habermas, Direito e Democracia, 20. 19 Habermas, Direito e Democracia, 20. 20 Habermas, Direito e Democracia, 20. 21 Lúcio Antônio Chamon Junior, Filosofia do Direito na Alta Modernidade: incursões teóricas em Kelsen, Luhmann e Habermas (Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007), 238. 16 17

Mariana Ferreira & Alexandre da Silva • 187 argumento de autoridade. A razão comunicativa norteia a validação de possíveis reivindicações, mas não supre por si mesma qualquer orientação substancial para administrar tarefas práticas. Por outro lado, isso concerne apenas a compreensões – a declarações criticáveis que são acessíveis, em princípio, por elucidações argumentativas – e seria insuficiente para uma razão prática dirigida à motivação, à guia de vontade. Aquela abrange pretensões de validade da verdade proposicional, da veracidade subjetiva e da correção normativa e vai além do campo unicamente moral e prático. Contudo, a razão comunicativa refere-se apenas às intelecções e asserções sujeitas a críticas e abertas a uma elucidação argumentativa, permanecendo aquém de uma razão prática, que almeja a motivação e a condução da vontade22.

A racionalidade comunicativa e o hate speech Habermas propôs uma Teoria Discursiva do Direito, concebida em um Estado Democrático de Direito e orientada por uma racionalidade comunicativa que atua em conformidade com os pressupostos da democracia e da igualdade entre os seres humanos. Portanto, no contexto da pragmática-universal, implicou-se a exigência de que todas as pessoas atuem de acordo com uma postura que signifique a defesa de opiniões mediante a utilização do melhor argumento e não do uso de força ou de um argumento de autoridade. Habermas possui uma abordagem discursiva, sendo que o princípio do discurso é neutro e desdobra-se no princípio da democracia e no princípio da moralidade. O Hate Speech coloca em colisão a dignidade da pessoa humana e o direito fundamental à liberdade de expressão. Acentua-se que, consoante Ingo Wolfgang Sarlet23, nenhuma ordem jurídica pode proteger os direitos fundamentais ilimitadamente, uma vez que os mesmos não são absolutos. E, ainda, que “há casos em que o próprio preceito constitucional não comporta certa conduta ou modo de exercício, de tal sorte que existem determinadas situações Habermas, Direito e Democracia, 21. Ingo Wolfgang Sarlet, A Eficácia dos Direitos Fundamentais (Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012), 396.

22 23

188 • Hate speech e Estado Democrático de Direito que não integram o âmbito de proteção do direito fundamental”24. Ou seja, é possível haver limitações decorrentes da colisão de um direito fundamental com outros direitos fundamentais ou mesmo daqueles com a dignidade da pessoa humana, legitimando-se restrições, ainda que não autorizadas expressamente pela Constituição. Destarte, “em outras palavras, direitos fundamentais formalmente ilimitados (isto é, desprovidos de reserva) podem ser restringidos caso isso se revelar imprescindível para a garantia de outros direitos constitucionais”25. A aceitação de um Hate Speech, considerado como genuíno discurso do ódio, não é inerente a um Estado Democrático de Direito, visto que aquele não respeita, no contexto constitucional pátrio, os princípios inerentes aos direitos fundamentais e à democracia e, principalmente, afronta a dignidade da pessoa humana. Sublinha-se também que um Hate Speech não é detentor nem da racionalidade comunicativa. A colisão entre o direito fundamental à liberdade de expressão e a dignidade daqueles que se ofendem com o Hate Speech pode ser resolvida pela interpretação do anseio maior constitucional e pela primazia de um dos valores fundantes de nossa República. E, diante da inexistência de direito fundamental absoluto, essencialmente quando conflitante com um de nossos fundamentos, é prontamente possível interpretar, argumentar e decidir com base na pragmática universal. Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins26 sublinham que não existindo reservas legais que autorizem a limitação pelo legislador de um determinado direito fundamental, este ainda poderá ser limitado, visto não existir direito fundamental absoluto. Ressalta-se que as colisões nascem porque o exercício de um direito fundamental entra em conflito com outro ou com outros preceitos constitucionais, sempre em decorrência de um caso concreto27. Caberá ao intérprete/aplicador do Direito a sensível percepção da importância dos direitos fundamentais em conflito, sejam entre eles próprios ou entre a dignidade da pessoa humana, uma Sarlet, A Eficácia, 399. Sarlet, A Eficácia, 402. 26 Dimitri Dimoulis and Leonardo Martins, Teoria Geral dos Direitos Fundamentais (São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011), 155. 27 Dimoulis and Martins, Teoria Geral, 161. 24 25

Mariana Ferreira & Alexandre da Silva • 189 vez que as ideias de proporção e de razoabilidade encontram-se vinculadas às noções de justiça e equidade. Destaca-se que a decisão final do caso concreto cabe ao Poder Judiciário, que deverá sempre fundamentá-la de modo que seja juridicamente correta. Não é por acaso que nossa Constituição (artigo 93, inciso IX) impõe que todas as decisões dos juízes e dos tribunais devam ser fundamentadas e tal necessidade de fundamentação deriva, pois, do próprio significado dos direitos fundamentais e da dignidade da pessoa humana no Estado Democrático de Direito28. Baseando-se nos critérios da pragmática-universal e da racionalidade comunicativa de Habermas passaremos à análise de um caso prático acerca da impossibilidade de permissão do Hate Speech em nosso contexto democrático.

O hate speech no sistema jurídico brasileiro O Habeas Corpus n. 82.424-2, principal caso pátrio que envolveu o Hate Speech, foi julgado pelo STF em 2003. Nele figurava como paciente o editor Siegfried Ellwanger Castan, então acusado do crime de racismo devido a publicações de caráter antissemita. Debateu-se a questão da colisão entre o direito fundamental à liberdade de expressão e a dignidade da pessoa humana. Por seu turno, nossa Magna Carta reuniu os pilares do Estado Democrático e do Estado de Direito, inovando e ocasionando o amálgama entre os seus postulados. Sob essa esteira, “o Estado Democrático de Direito, portanto, é o Estado Constitucional submetido à Constituição e aos valores humanos nela consagrados”29. Não por menos, de acordo com o ministro relator Maurício Corrêa, “atos discriminatórios de qualquer natureza ficaram expressamente vedados, com alentado relevo para a questão racial”30. A previsão de liberdade de expressão não assegura o “direito à incitação ao racismo”, mesmo porque um direito individual não salvaguarda práticas ilícitas31. Ele considera essencial uma interpretação sistêmica e teleológica da Carta Magna, “de modo a conjugá-la com circunstâncias históricas, políticas e sociológicas, para que se locali28 29 30 31

Dimoulis and Martins, Teoria Geral, 162. Cunha Júnior, Curso, 511. HC n. 82.424-2 (STF, 2003), 584. HC n. 82.424-2 (STF, 2003), 584.

190 • Hate speech e Estado Democrático de Direito ze o sentido da lei para aplicá-la” 32. O ministro Celso de Mello33 analisa que a dignidade da pessoa humana “representa o reconhecimento de que reside, na pessoa humana, o valor fundante do Estado e da ordem que lhe dá suporte institucional”. A liberdade de expressão não pode ser exercida com o escopo de veicular práticas criminosas e que fomentam situações de intolerância34. Portanto, tal direito “não constitui meio que possa legitimar a exteriorização de propósitos criminosos, especialmente quando as expressões de ódio racial transgridem, de modo inaceitável, valores tutelados pela própria ordem constitucional” 35. Conforme o ministro Gilmar Mendes36, a discriminação racial levada a efeito pelo exercício do direito fundamental à liberdade de expressão “compromete um dos pilares do sistema democrático: a própria ideia de igualdade”. Seria necessário, pois, medir a proporção existente entre o objetivo perseguido pela Magna Carta, qual seja, a preservação dos valores inerentes a uma sociedade pluralista e da dignidade da pessoa humana, e o ônus imposto ao direito fundamental à liberdade de expressão do então paciente37. Por seu turno, o ministro Carlos Velloso38 pondera que a liberdade de expressão não pode sobrepor-se à dignidade da pessoa humana, visto ser esse um dos fundamentos da República e do Estado Democrático de Direito. Do mesmo modo, o ministro Nelson Jobim compreende que: As opiniões consubstanciadas no preconceito e no ódio racial não visam contribuir para nenhum debate inerente às deliberações democráticas para o qual surge a liberdade de opinião. Não visam a contribuir para nenhuma deliberação, não comunicam ideias que possam instruir o compromisso que preside a deliberação democrática. Os crimes de ódio não têm a intenção de transmitir ou receber comunicação alguma para qualquer tipo de deliberação. O objetivo é outro. Não está na base do deliberar democrático. Quer, isto sim, impor condu32 33 34 35 36 37 38

HC n. 82.424-2 (STF, 2003), 587. HC n. 82.424-2 (STF, 2003), 615. HC n. 82.424-2 (STF, 2003), 631. HC n. 82.424-2 (STF, 2003), 629. HC n. 82.424-2 (STF, 2003), 651. HC n. 82.424-2 (STF, 2003), 670. HC n. 82.424-2 (STF, 2003), 689.

Mariana Ferreira & Alexandre da Silva • 191 tas anti-igualitárias de extermínio, de ódio e de linchamento; desconhecer o lócus da liberdade de expressão e seu objetivo no processo democrático leva ao desastre; a miopia do fundamentalismo histórico conduz ao absurdo39.

Para a maioria dos ministros, a liberdade de expressão foi designada como um direito fundamental que, nos casos em que sua manifestação não observar os limites impostos pela própria Magna Carta, poderá ser restringido. Ou seja, no conflito entre a liberdade de expressão e a dignidade da pessoa humana prevaleceu, portanto, a última, que seria mais condizente com o fim almejado pela Constituição no presente Estado Democrático de Direito. Ou seja, configura-se em nosso sistema jurídico um Estado Democrático de Direito, segundo o qual há entre os direitos fundamentais e a democracia uma relação de interdependência e reciprocidade40. Nele, a dignidade da pessoa humana revela-se como um valor supremo de toda a sociedade, reconduzindo-se para ela todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana41.

Conclusão O direito fundamental à liberdade de expressão é essencial para a configuração de um Estado Democrático de Direito. Não é possível vislumbrar a democracia sem a existência da fidedigna daquele direito, visto que ambos devem atuar de forma coesa. Ocorre que, tal como acontece com outros direitos fundamentais, a liberdade de expressão não é absoluta, podendo ser limitada, após um julgamento democrático, diante de desrespeito à dignidade da pessoa humana. O Hate Speech possui como sustentáculo o direito à liberdade de expressão. A compreensão, contudo, de que tal direito fundamental deva ser absoluto parece não se adequar ao sistema jurídico pátrio, no qual a dignidade da pessoa humana aparece como a essência de nossa Magna Carta e como um dos fundamentos de nossa República. 39 40 41

HC n. 82.424-2 (STF, 2003), 973-974. Sarlet, A Eficácia, 61. Cunha Júnior, Curso, 527.

192 • Hate speech e Estado Democrático de Direito Foi o que ocorreu no julgamento do Habeas Corpus n. 82.4242, no qual a liberdade de expressão conflitou com a dignidade da pessoa humana. A Suprema Corte entendeu que as publicações de cunho antissemita possuíam teor racista e incitavam a violência racial, em um verdadeiro discurso do ódio, decidindo, portanto, pelo indeferimento do pedido de Habeas Corpus. No caso em tela, logo, a dignidade da pessoa humana colocou-se como valor basilar ao Estado Democrático de Direito brasileiro, limitando-se o direito à liberdade de expressão. O respeito à pragmática universal, com a utilização da racionalidade comunicativa de Habermas, pode ser aplicado para a compreensão do julgamento do HC n. 82.424-2. Os ministros, em sua maioria, compreenderem ser necessário verificar o anseio da Magna Carta para que a interpretação e a aplicação do Direito ocorram de forma devida, sendo que a construção discursiva de opiniões deve dar-se conforme a Democracia, respeitando-se os direitos fundamentais e essencialmente a dignidade da pessoa humana. Consideramos que o Hate Speech não seria cabível em decorrência de preceitos inerentes à racionalidade comunicativa e à pragmática-universal, pois os discursos devem ocorrer entre indivíduos livres e iguais e em um contexto democrático. Ora, diante do evidente desrespeito à dignidade da pessoa humana, intrínseco à prática do discurso do ódio, é possível enxergar que não há qualquer racionalidade comunicativa em um Hate Speech e muito menos respeito à pragmática-universal e à ordem democrática.

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Mariana Ferreira & Alexandre da Silva • 193 BRUGGER, Winfried. Proibição ou Proteção do Discurso do Ódio?Algumas Observações sobre o Direito Alemão e o Americano. Palestra proferida nas faculdades de Direito de Brooklyn University, Georgetown University, Golden Gate University, University of San Francisco, Vanderbilt University e Yeshiva University durante o semestre de outono de 2001. Disponível em: CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito Constitucional. Teoria do Estado e da Constituição. Direito Constitucional Positivo. 12ª ed., rev., atual. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. CHAMON JUNIOR, Lúcio Antônio. Filosofia do Direito na Alta Modernidade: incursões teóricas em Kelsen, Luhmann e Habermas. 2. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 223-255. COMPARATO, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. 7ª. ed., rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2010. CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de Direito Constitucional. 3ª ed., rev., ampl. e atual. Salvador: JusPodium, 2009. DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS. Adotada e proclamada pela resolução 217 A (III) da Assembléia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948. DIMOULIS, Dimitri; Martins, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. FINLAYSON, Gordon James. Habermas: a very short introduction. New York: Oxford University Press Inc., 2005. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. v. 1. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. ______. Law as a Category of Social Mediation between Facts and Norms. p. 1-25. In: Between Facts and Norms: Contributions to a Discourse Theory of Law and Democracy.

194 • Hate speech e Estado Democrático de Direito SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 11. ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. SOMMERMANN, Karl-Peter. El Desarrolo de los Derechos Humanos desde la Declaración Universal de 1948. In: LUÑO, Antônio-Enrique Pérez (coord.). Derechos Humanos y Constitucionalismo ante el Tercer Milenio. Madri: Marcial Pons, 1996, p. 97-112. WEBER, Anne. Manual on hate speech. Council of Europe Publishing. Disponível em: . Acesso em: 20 de setembro de 2014.

LIBERDADE DE EXPRESSÃO E DEMOCRACIA: PLURALISMO E JUSTIÇA NAS SOCIEDADES CONTEMPORÂNEAS Marina França Santos1

Introdução O presente trabalho se propõe a discutir qual a concepção de liberdade de expressão mais adequada às sociedades democráticas contemporâneas.

A análise empreendida parte de debates públicos sobre o tema havidos nos EUA e no Brasil e vale-se da contribuição da teoria da justiça, por meio das concepções de liberdade contidas nos estudos de John Rawls, Michael Walzer e Ronald Dworkin.

Conclui-se que a divergência existente nos debates públicos se deve à persistência de uma dicotomia injustificável nos discursos sobre liberdade e, ao mesmo tempo, de um hiato entre a concepção hegemônica de liberdade de expressão e o aprofundamento das pretensões democráticas da sociedade. Defende-se, finalmente, uma concepção de liberdade de expressão fundada na igualdade, com o sustentáculo irrecusável do pluralismo democrático contemporâneo.

A discussão na ordem do dia nas democracias contemporâneas EUA, 2010 A Suprema Corte dos EUA entendeu que viola o direito à liberdade de expressão a disposição de lei que proíbe sindicatos,

Doutoranda pela PUCRIO, Professora Assistente da Escola Superior Dom Helder Câmara, Brasil, marinafrancasantos@gmail. com 1

196 • Liberdade de expressão e Democracia corporações e organizações sem fins lucrativos de financiar propaganda eleitoral. O caso, conhecido como Citizens United vs. Federal Election Comission, apresentou a pretensão da organização “Cidadãos Unidos”, obstada pela Comissão Eleitoral Federal do Distrito de Columbia com base na lei McCain-Feingold, de divulgar o filme Hillary. The Movie, produção destinada à crítica de uma das principais candidatas nas prévias do Partido Democrata na eleição presidencial norte-americana de 2008, a então senadora Hillary Clinton. A decisão concluiu pela inconstitucionalidade da lei com base no entendimento de que restrições à propaganda eleitoral limitam a liberdade de expressão e, portanto, violam a Primeira Emenda à Constituição dos EUA, cuja força, segundo o Juiz Anthony M. Kennedy, relator do caso, está justamente em proibir o Congresso de multar ou prender os cidadãos norteamericanos por engajamento no discurso político (Kennedy 2010). Críticos asseveraram que a decisão chancelou e abriu espaço para um perigoso poder de influência sobre as eleições por parte de grupos de interesse, ameaçando frontalmente o autogoverno democrático (Liptak 2010). Segundo o Presidente dos EUA, Barack Obama “foi uma vitória da indústria petrolífera, de Wall Street, de seguradoras e outros grandes grupos que usam seu poder todos os dias em Washington para abafar as vozes de americanos comuns” (Obama 2010).

Brasil, 2004 Trazida definitivamente para a seara pública após a propositura dos Projetos de Lei nº 6.817, de 2002, e 3.985, de 2004, que pretendiam criar, respectivamente, a Ordem dos Jornalistas do Brasil e o Conselho Federal de Jornalismo, a discussão, no Brasil, até hoje se afirmou no sentido de que lei voltada para qualquer tipo de cerceamento da mídia é incompatível com a democracia. A motivação do arquivamento de ambos os projetos pelo Congresso Nacional se assemelha muito com a publicizada no caso norteamericano: “os projetos em epígrafe ferem a Constituição naquilo que há de mais sagrado: o direito à livre expressão” (Nonô 2004). Desde então, tentativas de regulação da mídia vêm sendo sugeridas, seja pelo Governo Federal, como a proposta de criação de marco legal da comunicação brasileira a partir do art. 221 da

Marina França Santos • 197 Constituição inserida no 3º Programa Nacional de Direitos Humanos, seja por  entidades da sociedade civil, como a campanha e projeto de lei popular em defesa da democratização da mídia (Para expressar a liberdade 2012), todos sustentando-se no entendimento de que a regulamentação não é impedimento à liberdade de expressão, sendo, ao contrário, a sua garantia. A ideia de regulação até agora, porém, não foi concretizada e vem sendo alvo de críticas de várias vozes da mídia brasileira (Civita 2010; Folha de São Paulo 2010), com fundamento na compreensão de que “só têm controle verdadeiro sobre um órgão de imprensa os seus proprietários ou, então, o departamento de censura” (Guzzo 2012) e que “se não opera em regime de concessão, [a mídia] pode ser o que queira - e se entenda com o seu público” (Estadão 2012).

O dualismo nas concepções de liberdade e a irresolução do dilema da liberdade de expressão como condição de possibilidade da democracia As duas discussões, conquanto digam respeito a questões fáticas distintas, trazem ao debate público um mesmo problema jurídico, qual seja, a legitimidade da imposição de limites à liberdade de expressão e a sua adequada conformação em sociedades cada vez mais heterogêneas, complexas e marcadas pelo pluralismo (Cittadino 2000, 2). A relevância do debate sobre os limites e extensões da liberdade de expressão alcança inestimável valor social por uma razão fundamental: a liberdade de expressão é condição de possibilidade da democracia. As concepções de liberdade disputadas nos dois casos citados parecem não alcançar, porém, uma conformação plenamente adequada ao aprofundamento desse ideal político de sociedade. O primeiro ponto a se observar nesse sentido é que a divergência existente em ambos os cenários revela uma mesma dinâmica, um dualismo classicamente conhecido: a liberdade dos antigos e a dos modernos (Constant 1985) ou, como recuperado por Isaiah Berlin, a liberdade negativa, como a ausência de impedimentos à ação do indivíduo e a liberdade positiva, como o desejo de participação na vida pública (Berlin 2002, 236). Em ambos os debates, de um lado, a oposição à regulação restritiva, considerada ingerência

198 • Liberdade de expressão e Democracia inadmissível porque ofensiva à livre autodeterminação dos indivíduos, do outro, a defesa da regulamentação como garantia de liberdade, atribuindo-se à restrição ao exercício do poder econômico a possibilidade de livre participação popular. Isto é, em duas situações fáticas e contextos político-culturais bastante distintos, a mesma polarização é formada, apresentando, para fundamentos idênticos, consequências opostas. Para alguns, a realização democrática, obtenível por meio da liberdade de expressão, dá-se pela não interferência estatal. Para outros, a liberdade de expressão e, por conseguinte, a concretização do regime democrático, viabiliza-se justamente pela intervenção do Estado. Ainda quando se abre margem, em ambos os debates, para a possibilidade de a restrição estatal não configurar afronta à liberdade disputada, não se acolhe ao discurso a investigação de quais seriam essas situações e o porquê de não serem elas observadas nos casos ali apreciados. Não se cuida, por exemplo, de distinguir por que é possível limitar a liberdade de expressão de quem difama, calunia ou injuria, mas não de quem, calcado em relevante poder econômico, influencia abusivamente a eleição ou a opinião pública. As situações, obviamente, são distintas, mas a necessidade de justificação é a mesma (talvez apartadas apenas por um maior grau de complexidade analítica da segunda). No mesmo sentido, o postulado, contido nas correntes favoráveis à regulação, de que a limitação da liberdade de expressão pelo Estado é garantia da própria liberdade, também desconsidera justificativa necessária para afastar suas odiosas consequências. Não se cuida, por exemplo, de discutir como proteger a liberdade de expressão da própria liberdade positiva. Em outras palavras, não parece haver clareza sobre quais limites separam a restrição promotora de liberdade de expressão e a restrição limitadora do direito fundamental. De tal modo que, em cada concepção, uma pergunta crucial permanece irrespondível: como identificar as situações em que a atuação restritiva pelo Estado não pode ser considerada ofensa à liberdade de expressão? Como identificar aquelas em que, por sua vez, é a atuação positiva a violadora desse direito? Da forma como são trabalhadas, ao contrário, ambas as perspectivas aparentam ser mutuamente excludentes e os fundamentos de que partem incapazes de se desconstruir reciprocamente e, assim, insuficientes para sustentar a si próprias. O segundo ponto a ser observado, ainda no esforço de se

Marina França Santos • 199 identificar as questões inadequadamente colocadas nos debates, diz respeito à posição dominante nos dois casos e o seu fraco vínculo com o aprofundamento democrático. A ideia de democracia, como nos retratam precisamente Santos e Avritzer (2002), de ameaçadora aos olhos dos séculos anteriores a objeto de desejo do século XIX, chega ao século XX como uma controlada democracia de baixa intensidade, calcada na mitigação das formas de participação e na ampliação da soberania por meio de um formal procedimento eleitoral. Em franca oposição, fortalecem-se, ainda no final do século XX, no contexto da terceira onda de democratização (Huntington, 1994), concepções de democracia que se sustentam em um liame necessário entre participação social e autonomia, potencializando-se a soberania popular, e, portanto, devendo ser considerada superior à concepção hegemônica, dado que aprofunda o próprio fator nuclear da democracia. A democracia democratizada (Santos & Avritzer 2002), ao reconhecer que é domínio completo dos indivíduos o poder de construir, de modo amplo, o seu destino político, posiciona a cidadania, em sua máxima potência, no centro vital da existência do Estado Democrático (O’Donnell 2011, 59) e assim, por conseguinte, os “direitos políticos primários inerentes ao processo democrático” (Dahl 1989, 170), sem os quais o exercício da cidadania é impossível, dentre os quais, com primazia, está a liberdade de expressão. Trata-se, como se vê, de um círculo virtuoso: a democracia se constrói a partir da cidadania, que por sua vez, requer como veículo de concretização a liberdade de expressão, que, enfim, depende e ao mesmo tempo aprofunda a própria democracia. Finalmente, deve-se levar em conta que os cidadãos das sociedades contemporâneas não podem mais serem considerados como uma estrutura amorfa, homogeneizada e conformada pela unidade de um projeto ético, o que significa não ser possível, no mundo atual, “configurar uma ideia substantiva acerca do bem que venha a ser compartilhada por todos” (Cittadino 2000, 1). E se há uma multiplicidade e diversidade de pontos de vistas e de valores, a expressão desses, nas suas mais variadas formas, torna-se necessária, fundamental e imperiosamente múltipla – e é com base nesses parâmetros que os instrumentos e a própria concepção de liberdade de expressão devem ser pensados. Nesse sentido, o entendimento que se fez (e se faz) dominante nos dois debates públicos, conivente com o controle dos ve-

200 • Liberdade de expressão e Democracia ículos de comunicação de massa por parte de alguns grupos minoritários, termina por ignorar a dependência do aprofundamento democrático da capacidade de acolhimento do processo de pluralização cultural e identitária das sociedades contemporâneas (Santos & Avritzer 2002, 42).

O elemento que parece faltar ao debate possui caráter político-normativo e pode ser buscado na teoria da justiça. O seu esclarecimento requer, aqui e acolá, a pesquisa da resposta a esta mesma indagação: qual a concepção mais democrática da liberdade de expressão?

A investigação ora empreendida se valerá da contribuição de três filósofos políticos contemporâneos que, nas últimas décadas, embrenharam-se no estudo da justiça e da democracia como projeto de identidade ética e política (Cittadino 2000, 77). Em seguida, será possível, finalmente, reconstruir a concepção de liberdade de expressão com o sustentáculo irrecusável do pluralismo democrático contemporâneo.

Três concepções de justiça para uma concepção de liberdade de expressão A justiça como equidade de John Rawls A teoria do norteamericano John Rawls parte de uma condição irrecusável à tradição democrática: a de que os cidadãos são pessoas livres e iguais (Rawls 1994, 16), o que os torna, segundo o filósofo, capazes de agir segundo princípios de justiça. Para atender a esse ideal irrecusável de pessoas morais e livres Rawls propõe a ideia de justiça como equidade (Rawls 2008, 15). A concepção de justiça em Rawls, de caráter metaético e deontológico (Vita 1992, 10), incide sempre que indivíduos “apresentam reivindicações conflitantes à divisão das vantagens sociais em condições de escassez moderada” (Rawls 2008, 155). Os seus dois princípios de justiça traduzem um liberalismo igualitário (Rawls 1994, 7) que visa garantir, a um só tempo, “o valor equitativo das liberdades políticas, de maneira que estas não sejam puramente formais”, a “igualdade equitativa (e novamente não puramente formal) de oportunidades” e “o assim chamado princípio da diferença, que sustenta que as desigualdades sociais e econômicas ligadas aos empregos e funções, sejam grandes ou pequenas, devem beneficiar aos membros menos favorecidos da sociedade”(Rawls 1994, 7).

Marina França Santos • 201 Trata-se de teoria que reconhece o pluralismo e o acolhe por meio do procedimentalismo, não se comprometendo com valores, nem impondo aos sujeitos uma concepção de bem prévia à construção pública. Não significa, entretanto, que a concepção política de justiça esteja ao arbítrio completo dos indivíduos já que, se for legada, a questão da igualdade e da liberdade, à livre deliberação dos indivíduos, é intuitivo pressupor que grupos de interesse dotados de maior poder poderiam pretender eliminá-la, subjugando, com subsídio em sua privilegiada condição fática, outros indivíduos e, consequentemente, desnaturalizando a própria essência de democracia. Assim, os critérios equitativos de cooperação devem ser, conforme Rawls, livremente acordados por cidadãos iguais, mas sujeitos a um elemento primário e inegociável, que é o reconhecimento da equidade na liberdade (Rawls 1994, 19).

A igualdade complexa de Michael Walzer Michael Walzer chama a atenção para o necessário caráter distributivo da justiça e afirma que um modelo de justiça deve levar em conta a pluralidade de significados dos bens sociais, variáveis conforme o contexto cultural, social e histórico vivido em cada sociedade, sendo este o fundamento básico de seu consenso ético substantivo: toda distribuição é justa se respeita o significado social do bem a ser repartido (Walzer 2003, 9-10). Walzer propõe dois conceitos centrais hábeis a verificar a realização ou não de justiça em determinada sociedade: o monopólio e o predomínio. O monopólio é a desigual distribuição do bem mais valioso de determinada sociedade e, em si, não é o problema principal com que se deve ocupar em busca de justiça (Walzer 2003, XIV). A injustiça só surge a partir do momento em que o monopólio em uma determinada sociedade se transforma em predomínio, que é a extensão do domínio a bens sociais alheios ao monopolizado, pelo simples fato do acesso privilegiado ao bem social mais valioso da sociedade. A democracia justa, em Walzer, é aquela que distribui os seus diferentes bens sociais de acordo com as suas significações, através de procedimentos e agentes distintos que não se vinculam à posse do bem social valoroso monopolizado (Walzer 2003, 25). Em

202 • Liberdade de expressão e Democracia outras palavras, nas democracias contemporâneas, toda vez que alguém utiliza o dinheiro para obter aquilo que o dinheiro não é destinado a comprar, os chamados “intercâmbios proibidos” (Walzer 2003, 133) há injustiça. Eis, assim, o princípio da igualdade complexa walseriano: as pessoas são livres para serem diferentes e, consequentemente, perseguir os bens sociais que lhes convêm, tornando-se, inclusive, independentemente da razão (seja sorte, seja talento pessoal ou trabalho), monopolizadores desses bens. A sociedade justa somente é assegurada, porém, se está garantida a pluralidade do acesso e do gozo desses bens na sociedade sem a possibilidade de conversão de monopólios em predomínios, isto é, o desígnio do igualitarismo político é “uma sociedade livre da superioridade” (Walzer 2003, XVI).

A liberdade como igual respeito e consideração em Ronald Dworkin A contribuição de Dworkin é a terceira e última de que nos valeremos para a apreciação da discussão proposta. Sua teoria, como as demais, apresenta-se, também, intimamente associada à igualdade (Dworkin 2005a, 306) e acompanhada de uma crítica à tradicional posição de conflito em que esta é colocada em face da liberdade (Dworkin 2005b, 158). Tratar as pessoas como iguais significa, segundo Dworkin, garantir “que cada uma tenha a permissão de usar, nos projetos aos quais dedica sua vida, não mais que uma parcela igual dos recursos disponíveis para todos” (Dworkin 2005a, 307). Propõe, assim, uma noção de liberdade como igual respeito e consideração, que se traduz no princípio igualitário abstrato de que “o governo deve agir para tornar melhor a vida daqueles a quem governa, e deve demonstrar igual consideração pela vida de todos” (Dworkin 2005b, 519). A democracia participativa deve reconhecer, portanto, que seus cidadãos, para serem soberanos, precisam ver garantidas, além das condições materiais para uma vida digna, estas três dimensões: a sua liberdade para expressar opinião, a igualdade de cidadania e a consideração de seus argumentos na construção da ação coletiva (Dworkin 2005b, 510-513). Tais pressupostos não são protegidos por qualquer liberdade de expressão, mas somente por aquela que,

Marina França Santos • 203 por não ser totalmente limitada, impeça o risco de que um governo “oculte do povo informações e discussões que deveria divulgar” (Dworkin 2005b, 518) e, ao mesmo tempo, por aquela que, não sendo totalmente desregulamentada, não confia “à riqueza e aos privilégios um poder flagrantemente antidemocrático” (Dworkin 2005b, 518). A “estratégia minuciosa” (Dworkin 2005b, 518) proposta por Dworkin consiste, desse modo, na compreensão de que as restrições legais do discurso são adequadas a uma democracia participativa desde que sirvam para aprimorar alguma de suas dimensões, “quando o defeito que pretendem reparar é substancial e quando a restrição não provocar nenhum dano genuíno à soberania dos cidadãos ou à igualdade entre eles” (DWORKIN, 2005b, p. 520).

Liberdade de expressão como garantia democrática: pluralismo e justiça A leitura da concepção política de justiça nos autores citados nos permite responder, mais adequadamente, à indagação quanto à ocorrência ou não de violação à liberdade de expressão tanto no ato de proibição de divulgação de filme com impacto eleitoral às vésperas da eleição, quanto no de restrição à propriedade concentrada da mídia, observando-se o fato comum que os une que é a tentativa de limitação do uso de veículos de expressão de massa por parte de sujeitos detentores de maior poder econômico na sociedade. A partir do princípio de justiça como equidade de Rawls, é possível observar que, tanto a lei norteamericana quanto a proposta de normatização brasileira, ao reduzir o poder de grandes corporações de realizar propaganda eleitoral ou de possuir concentradamente meios de comunicação, permite surgir um esquema isonômico de compatibilizações de liberdades. Isso porque a liberdade de expressão, em ambos os casos, somente será igual se a utilização do bem reivindicado - os canais de comunicação - por uns, for compatível com a igual liberdade de utilização desses mesmos canais por todos os demais. Nesses termos, se todos os indivíduos têm direito ao mesmo esquema de direitos e liberdades, a restrição à propaganda eleitoral e à propriedade da mídia - desde um ponto de vista moral imparcial -, justifica-se se voltada a garantir a equivalência de canais de

204 • Liberdade de expressão e Democracia expressão a todos os grupos existentes na sociedade. Não há que se falar em censura, portanto - ao contrário, há verdadeira promoção de liberdade – sempre que o direito atue para garantir que os indivíduos em sociedade sejam pessoas morais igualmente livres. A concepção de igualdade complexa em Walzer acrescenta à análise o perigo da conversão do poder econômico em predomínio sobre a liberdade de expressão, concretizável por meio do poder do dinheiro de comprar uma produção cinematográfica tendente a influenciar os resultados das eleições ou de adquirir todos, ou relevante parte, dos canais nacionais de mídia.

O monopólio do dinheiro não pode ser convertido em predomínio dos veículos de comunicação, pela condição especial desses bens que os tornam imediatamente traduzíveis em poder de influência. Os veículos de mídia negociam, junto com bens propriamente comerciáveis (filmes, jornais, programas de televisão e publicidade), ideologias, concepções de bem, estereótipos, desejos, opiniões e interesses. Tomam a forma, a um só tempo, de fonte de informação e de conhecimento e de fator de construção de identidades individuais, coletivas e nacionais, repercutindo na capacidade das pessoas de atuar na vida privada e pública e determinando, direcionando e influenciando o fazer dos negócios e da política. Assim, como o próprio Walzer já reconheceu em relação à circunstância fática distinta, mas adequada ao presente caso, a conversão de poder em direito de dominar, com primazia, o que as pessoas leem, ouvem, conhecem e, consequentemente, como pensam e agem deve ser considerada ilícita (Walzer 2003, 23). Conclui-se, por conseguinte, que, em um ordenamento jurídico justo, as exigências da igualdade complexa exigem que se regulamente a conversão do poder econômico em poder de influência. A exigência de igualdade, em uma sociedade democrática, impõe que a situação de um cidadão na esfera econômica não possa definir sua situação na esfera da liberdade de expressão e, por decorrência, na esfera da própria cidadania.

Finalmente, com Dworkin, no que se poriam de acordo Rawls e Walzer, devemos observar, inicialmente, que a limitação de gastos eleitorais e a restrição do controle sobre canais de mídia não se confundem com medidas voltadas à definição de conteúdos considerados bons ou aceitáveis à sociedade, nem, outro lado da mesma moeda, à censura daqueles considerados reprováveis ou gravosos. Não atinge, por conseguinte, a liberdade para expressar

Marina França Santos • 205 opiniões, primeira dimensão da democracia e elemento necessário à vazão da pluralidade de concepções de bens na construção do poder soberano. As proposições destinam-se, ao contrário, a evitar uma concentração do discurso nas mãos de poucos grupos e, por conseguinte, proteger a segunda dimensão da democracia que é a igualdade de cidadania, garantindo a todos os cidadãos canais igualmente poderosos de expressão e a diversidade cultural e social das informações recebidas. Como observou Dworkin, “quanto mais dinheiro os políticos precisam para serem eleitos, de mais contribuintes ricos necessitam, e mais influência esses contribuintes têm sobre suas decisões políticas depois de eleitos” (Dworkin 2005b, 492). De forma direta, uma pessoa rica, a quem é permitido despender irrestritamente seu dinheiro na política e nos veículos de mídia, terá o poder de influenciar, direcionar e determinar processos políticos e sociais consideravelmente mais do que uma pessoa pobre, ou seja, terá uma cidadania qualificada, inflada e mais poderosa. Podemos dizer, portanto, a partir também de Dworkin, que a criação de mecanismos capazes de multiplicar os canais de expressão sociais vai ao encontro da consideração dos argumentos de todos os cidadãos, e não somente daqueles que podem adquirir esses canais, na construção da ação coletiva. Assim, porque as restrições legais analisadas têm por consequência o aumento da igualdade de recursos, a liberdade de expressão, ao contrário de limitada, sairá potencializada, adequando-se e proporcionando a concretização de um ideal verdadeiramente democrático de soberania popular.

Conclusão A análise proposta partiu de debates públicos sobre o controle da propaganda eleitoral e o controle da mídia, responsáveis por trazer à tona argumentos contrastantes sobre a relevante questão da legitimidade na imposição de limites à liberdade de expressão nas sociedades democráticas contemporâneas. Observou-se que, conquanto estivessem na defesa de políticas opostas, os dois lados da discussão, em ambos os casos, justificaram suas posições na proteção dos mesmos valores, a liberdade de expressão e a democracia, atribuindo-lhes, entretanto, condições

206 • Liberdade de expressão e Democracia e consequências jurídicas completamente distintas.

Demonstrou-se que tal divergência no debate público se deve, em primeiro lugar, à persistência de uma dicotomia injustificável nos discursos sobre liberdade, já que as ideias de liberdade negativa e positiva contrapostas mostram-se incapazes de efetivamente desconstruir uma a outra e, ainda, são insuficientes para sustentar a si próprias, dado que não explicam o porquê de algumas exceções a seus pressupostos serem admitidas e outras, semelhantes, não. Argumentou-se, ainda, pela existência de um forte hiato entre a concepção de liberdade de expressão defendida pela concepção hegemônica e o aprofundamento do caráter democrático das sociedades contemporâneas, defendendo-se que a adequada conformação da liber-

dade de expressão em democracias cada vez mais heterogêneas e complexas é aquela que garanta, necessariamente, e em posição de igualdade, canais de expressão que acolham e reverberem o pluralismo das respectivas sociedades. Apresenta-se, pois, contrária a essa concepção, a possibilidade, ainda hoje defendida, de apenas alguns indivíduos e grupos serem capazes, em razão de seus maiores recursos financeiros, de se fazerem ouvir em campanhas políticas e nos canais de comunicação social. Nesses termos, a ampliação do número de proprietários de meios de comunicação, o financiamento público eleitoral, a proibição da propriedade cruzada de mídia, os limites à concentração de verbas publicitárias, a abertura de maior espaço para o sistema público e comunitário, a participação social na elaboração e acompanhamento das políticas públicas de comunicação, são todos exemplos de medidas que, conquanto restrinjam o exercício da liberdade de expressão de alguns, podem vir ao encontro da concretização de uma concepção de liberdade de expressão mais justa e democrática.

A atuação regulatória, ao restringir a margem desigual de expressão de grupos desigualmente empoderados (o que é diferente de imposição de valores e concepções de bem), significa a efetiva promoção da liberdade de expressão que se realiza no direito de todos os cidadãos de se expressarem e de verem considerados os seus argumentos em posição de igualdade. Esta a concepção de liberdade de expressão que oferece

uma melhor realização da democracia plural e participativa contemporânea e que nos aproxima um pouco mais da materialização da justiça.

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Marina França Santos • 207 BERLIN, I. Dois conceitos de liberdade. In: HARDY, H. e HAUSHEER, R. (orgs.) Isaiah Berlin: Estudos sobre a Humanidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. CITTADINO, Gisele. Pluralismo, direito e justiça distributiva. Elementos da Filosofia Constitucional Contemporânea, Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2000. CIVITA, Roberto. In. CONDE, Ana Paula. Roberto Civita abre o “1º Fórum Democracia e Liberdade de Expressão”. 1 de março de 2010. Acesso 19 out, 2013. . COLEMAN, Milton et all. Freedom of Expression in the Americas: Restricted Media in Venezuela, Ecuador, Bolivia, and Nicaragua. Acesso 19 out, 2013. . CONSTANT, Benjamin. A Liberdade dos Antigos Comparada com a dos Modernos. Revista Filosofia Política, nº 2. Porto Alegre: L&PM, 1985. DAHL, Robert. Democracy and its critics. New Haven: Yale University Press, 1989. DWORKIN, Ronald. A virtude soberana. A teoria e a prática da igualdade. São Paulo: Martins Fontes, 2005b. DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2005a. ESTADÃO. Os inimigos da mídia. Editorial. São Paulo, 17 de outubro de 2012. Mundo. Acesso 19 out, 2013. . GUZZO, José Roberto. Só com censura. Veja. São Paulo, 23 de setembro de 2012. HUNTINGTON, Samuel P. A terceira onda: A democratização no final do século XX. São Paulo: Ática, 1994.

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OS DIREITOS POLÍTICOS DOS ANALFABETOS:

O CASO BRASILEIRO E O PARADIGMA DA DEMOCRACIA LIBERAL Alexander Augusto Isac Beltrão1 Marcelo Sevaybricker Moreira2

Quando, em 1889, determinados grupos políticos decidiram instaurar por aqui uma república, influenciados pelos ideários liberais e federalistas, o que se alardeava é que era preciso promover a liberdade individual e a participação cidadã. Mas nossos republicanos não julgavam, todavia, que esse novo governo devesse ser um governo rigorosamente de “todos” ou de “muitos”, mas somente dos “melhores”. A essa época, muitos liberais e conservadores brasileiros concordavam num ponto: a participação política do povo era, em geral, indesejada e vista com profundo receio e temor, pois poderia gerar crises, ao trazer a paixão e a opinião, próprias às massas, para a esfera pública. Durante boa parte do Império, a despeito dos cinco diferentes sistemas eleitorais adotados entre 1824 e 1889, amparado pelo voto censitário, vigorou a exclusão política dos que não podiam comprovar renda suficiente. Todavia, curiosamente, em quase todo o período mencionado, os analfabetos puderam votar. Somente em 1881, com a chamada Lei Saraiva, tal permissão chegou ao fim. Pleiteando aumentar o rigor da legislação para coibir as fraudes eleitorais tão recorrentes, a referida lei promoveu inversamente um aumento na marginalização de qualquer forma de participação popular. Sobre isso, pondera Jairo Nicolau: Quando se compara o número de votantes do começo da década (1873) com o de eleitores após a promulgação da lei Graduando em Direito pela Universidade Federal de Lavras (UFLA), Brasil, email: alexbeltrã[email protected] 2 Doutor em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e professor adjunto da Universidade Federal de Lavras (UFLA), Brasil, email: [email protected]. 1

210 • Os direitos políticos dos analfabetos (1882), observa-se um declínio acentuado (87%): o eleitorado inscrito passou de 1,1 milhão para 142 mil eleitores (Nicolau, História do voto, 24).3

Dez anos depois, deposto o rei e expulsa a família real do país, a primeira Constituição republicana acabou enfim com o voto censitário, além de ter reduzido de 25 para 21 anos a idade mínima para o exercício do voto. Entretanto, revelando profundas afinidades políticas com o passado que combatia, a nova Constituição optou por manter a referida inovação institucional, de modo que aqueles que “não soubessem ler e escrever” (Nicolau, História do voto, 26) estavam terminantemente impedidos exercer quaisquer direitos políticos. Desta feita, proclamada a República brasileira, ao invés de se ampliar a participação política (como se esperava num modelo republicano), manteve-se o eleitorado em um patamar médio inferior a 5% da população (em algumas eleições, com um comparecimento eleitoral menor do que no Império), já que a essa época em torno de 80% da população era composta de analfabetos (Pandolfi, “Voto e participação política”, 67). Outra razão para que uma ínfima minoria fosse responsável por determinar os rumos da nação foi a exclusão política das mulheres. Embora a Constituição de 1891 não declarasse explicitamente nada a esse respeito, julgou-se conservadoramente que o silêncio da lei, no caso, só podia significar a manutenção do status quo. Defendia-se que a participação política feminina corromperia tanto a esfera privada, quanto a pública. Embora possa parecer contraditório o período republicano ter sido marcado nas suas primeiras quatro décadas por baixíssimos índices de participação popular, não o é, pois, como dissemos a “democracia” não era pensada como coisa para qualquer um, nem pelos “republicanos”, nem pelos “conservadores”. Não se deve, entretanto, imaginar que tal resultado tenha sido um efeito não preUma importante alteração promovida pela Lei Saraiva foi acabar com a eleição indireta, ou “em dois graus” para os cargos do Senado, da Câmara dos Deputados e das Assembleias Provinciais: no Império, exceto para os cargos locais, os votantes (com renda anual acima de 100 mil réis) escolhiam os eleitores (com renda anual de mais de 200 mil réis) que, por seu turno, escolhiam os ocupantes dos cargos públicos. Em 1846, os valores para votantes e eleitores, respectivamente, foram reajustados para 200 e 400 mil réis. 3

Alexander Beltrão & Marcelo Moreira • 211 visto de nossos republicanos. Mais razoável é supor que o requisito educacional servisse para nossas elites políticas como um bom substituto para a barreira de renda, então extinta, a fim de continuar impedindo a inclusão das classes populares no processo político. Tal padrão oligárquico manter-se-ia inalterado até a Revolução de 30, quando algumas inovações institucionais contribuíram para a promoção da participação política. Getúlio Vargas, tido usualmente como mero ditador, foi o grande responsável pela primeira onda de inclusão política no país. Não foi à toa que os míseros índices de comparecimento eleitoral do Império à Primeira República, só foram superados a essa época. Cabe lembrar que foi a partir de 1932 que se estabeleceu o voto secreto, os direitos políticos das mulheres e a Justiça eleitoral como responsável pela organização geral dos pleitos. Curiosamente, cinco anos depois, o mesmo Vargas decretou o fechamento do Congresso, o fim dos partidos e suspendeu as eleições, dando início a ditadura do Estado Novo, o que indica a não linearidade aos processos de democratização. Contando que a exclusão dos analfabetos no Brasil inicia-se em 1881 (com a Lei Saraiva, referendada dez anos depois pela Carta de 1891), é preciso destacar que passamos mais de cem anos privando tal categoria de seus direitos políticos plenos, haja visto que somente em 1989 eles passaram a votar para todos os cargos da República. Melhor dizendo, uma emenda constitucional promulgada o em 1 de julho de 1985 já previa o direito de voto aos analfabetos, de modo que eles já puderam exercê-lo nas eleições municipais desse ano. A Constituição de 88, ao contrário do que normalmente se pensa, não inovou, portanto, nesse aspecto. Comparando o Brasil a outras nações no que tange ao direito de voto dos analfabetos, Nicolau afirma: As exigências de alfabetização ou de certa escolaridade para ter direito de voto foram pouco frequentes na história eleitoral de outras democracias. Na Europa, apenas Portugal condicionou o direito de voto à alfabetização, exigência que foi banida em 1974. Já na América Latina, em muitos países os eleitores eram obrigados a saber ler e escrever para poderem votar. A abolição da exigência de alfabetização para o sufrágio ocorreu na seguinte ordem: Uruguai (1918), Colômbia (1936), Venezuela (1936), Bolívia (1952), Chile (1970) e Peru

212 • Os direitos políticos dos analfabetos (1986). O Brasil foi o último país a permitir o voto dos analfabetos (Nicolau, História do voto, 62).

Como em relação à abolição da escravidão, só extinguida nos estertores do século XIX, novamente o país dava mostras de seu elitismo arraigado, apesar de todo o discurso liberal e democrático a vigorar por aqui. Assim, a Carta “cidadã”, ainda hoje a regular o processo eleitoral do país, prevê que o alistamento eleitoral e o direito efetivo de votar (chamada de “cidadania ativa”) é facultativo aos analfabetos e, o que é mais importante, considera-os, todavia, inelegíveis; isto é, eles não possuem, destarte, a dita “cidadania passiva”, não podendo ser votados. Em outras palavras, na incrível onda de redemocratização que varreu o país das “Diretas Já” à Constituinte de 86, considerou-se os analfabetos aptos à vida política, mas apenas parcialmente. Cidadãos, portanto, de “segunda classe”. O caráter paradoxal de semelhante categoria reforça-se pelo fato de que eles compõem o único grupo social alistável, mas inelegível pela atual legislação. Para agravar esse quadro, sendo o voto facultativo aos analfabetos, eles passaram a ser incluídos estranhamente no mesmo grupo dos idosos (cidadãos com mais de 70 anos de idade). Além disso, cumpre dizer que os analfabetos são sujeitos de todos os direitos civis e sociais, podendo comprar e vender imóveis, contrair matrimônio, etc. e, o que é mais curioso, podem votar e serem votados para os cargos de sindicatos, segundo a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT). A despeito de serem considerados como indivíduos capazes de discernimento, e, inclusive, tendo que cumprir com os deveres de quaisquer cidadãos (como o pagamento de tributos), resta como um resquício de nosso passado oligárquico a inegibilidade dos analfabetos. Considerando que, segundo dados do IBGE de 2013, o Brasil conta com aproximadamente 13 milhões de analfabetos, pergunta-se qual é o impacto político do artigo 14 de nossa Constituição (e da Lei Complementar no 64 de 1990, que a regulamentou), que determina que o analfabetismo é um dos fatores de inegibilidade? Mais: em regiões brasileiras como o Nordeste, por exemplo, que concentra 54% dos analfabetos do país, o que significa semelhante escolha política? Como bem notou o cientista político brasileiro Wanderley

Alexander Beltrão & Marcelo Moreira • 213 Guilherme dos Santos (1998), em democracias contemporâneas, a grande disputa se dá em torno não de quem são os eleitores, mas em relação a quem são elegíveis, o que ele chama de eixo do “controle”. Sendo extremamente custoso retroceder e limitar o número dos que podem votar (o eixo da participação), em contextos em que tal direito já foi conquistado, a grande estratégia de certos grupos que disputam o poder é restringir o número dos que podem ser votados. Assim, comumente proíbe-se candidatos sem vínculo partidário, eleva-se a idade mínima para a elegibilidade para certos cargos e, o caso aqui discutido, determina-se que aquele que não seja alfabetizado não possa concorrer a uma eleição. Como no mercado econômico, na disputa eleitoral, quanto menor o número de adversários, maior a chance de cada qual ser eleito. Nesse sentido, esclarece Santos, a democracia é a antípoda da oligarquia, assim como a livre concorrência o é do oligopólio no plano econômico. Não deixa de ser curioso também que, no Brasil, ao mesmo tempo em que se reconhece publicamente a histórica incapacidade de prover a todos(as) esse bem público primordial, proíbe-se, ademais, os carentes dele ao ostracismo cívico. Em outras palavras, o Estado brasileiro cobra a alfabetização como um dever do cidadão, mas falha sistematicamente em garantir o seu direito constitucional que assegura a todos o direito social à educação. Passados quase vinte e sete anos da Constituição de 88 e de funcionamento regular da democracia brasileira, o debate sobre os direitos políticos dos analfabetos, todavia, ainda não foi retomado seriamente no país. E quando se trata de discutir quem deve participar ativamente do governo, a questão sobre que atributos são considerados como requisitos indispensáveis se apresenta com centralidade. Em resumo, quem tem condições de participar da política? Aqueles que sabem (e sabem o quê?), os que tem informação, os que são escolarizados? É verdade que muitas das teorias democráticas supõem que um cidadão bem informado é um elemento necessário para o bom funcionamento do sistema político. Crítico, vigilante, ciente dos debates públicos, esse é o cidadão comumente esperado (mas muitas vezes não encontrado) em uma democracia. Tanto o é que as democracias com frequência determinam que todo cidadão deve ter acesso gratuito ao ensino de qualidade; que a educação deve ser promovida pelo Estado, compreendida como instrumento necessário ao pleno exercício da cidadania e, portanto, “direito público

214 • Os direitos políticos dos analfabetos subjetivo”, quer dizer, que deve ser imediatamente oferecido pelo Estado por exigência do cidadão, quando o primeiro falhar em ofertá-lo espontaneamente.Contudo, se a escolarização é, em geral, tomada como um estímulo importante à conscientização do cidadão, ela não é sua condição necessária ou suficiente. Assim, se soa comum entender que uma democracia pressupõe cidadãos bem informados, não se sabe ao certo que “saber” é esse que ele deve possuir. Longe de ser questão trivial ou recente, esse é um dos temas mais caros à filosofia política. Estranha, portanto, o silêncio da teoria democrática contemporânea, sobretudo, daquela formulada no Brasil a respeito dos direitos políticos dos analfabetos. O que se quer destacar aqui é que, de alguma maneira, tudo se passa como se as razões para a cidadania “pela metade” de nossos analfabetos já estivessem bem assentadas, quando não estão. Não se deve igualmente esquecer que decidir sobre esse tema (mantendo ou não o seu ostracismo político, a somar-se às outras exclusões a que eles já estão habitualmente submetidos) não é algo a ser realizado por critérios técnicos. Ao contrário, é uma decisão política, com impacto concreto na organização da sociedade, como é o caso de qualquer reforma política. E, em meio a tantas propostas de reforma apresentadas desde a Constituição de 88 (tais como adoção do parlamentarismo, da cláusula de barreiras, do voto distrital, etc.), raramente a elegibilidade dos analfabetos é lembrada no debate público. A PEC 27/2010 (Proposta de Emenda Constitucional), de autoria do senador Magno Malta (PR/ES) que sugere essa alteração na legislação brasileira está, desde 2011, aguardando ainda a designação de um relator na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado. O desiderato mais amplo da pesquisa (que deu origem a este trabalho) é investigar, a partir da teoria democrática contemporânea, quais são as razões possíveis para fundamentar ou contestar a inclusão política plena dos analfabetos, e qual é o motivo do frequente silêncio dessa área do conhecimento a esse respeito. Como etapa inicial desse projeto mais amplo de pesquisa, realizaremos no espaço deste artigo uma análise inicial de como o chamado paradigma da democracia liberal, modelo hegemônico, ou pelo menos, ainda bastante influente no debate político e acadêmico sobre as democracias atuais, compreende esse problema. Ficará para um momento ulterior a análise da mesma temática a partir de outras

Alexander Beltrão & Marcelo Moreira • 215 abordagens da teoria democrática contemporânea.

A democracia liberal: contribuições e limites O século XX ficou marcado pela consolidação da democracia como forma de governo político mais desejável. Nesse sentido, atualmente dificilmente alguém se coloca frontalmente contrário à democracia. Se a conversão da democracia em slogan político é evidente, quando se trata de definir o seu significado, o dissenso grassa entre os atores políticos e os estudiosos do tema. Quais são as condições para o bom funcionamento da democracia? Quanto de participação popular ela requer? Quais são os fins que ela deve buscar? Entre tantas outras indagações, a pluralidade e a dissonância das abordagens da teoria democrática revelam a riqueza dessa seara de estudos. É quase um consenso entre os estudiosos que o que se convencionou denominar de democracia liberal, ou “liberal-pluralista” (Miguel, “Teoria democrática atual”, 9), constitui o modelo original e por muito tempo mais influente na teoria democrática contemporânea. Segundo esse paradigma, democracias são caracterizadas pelo sufrágio universal, vigência de liberdades mínimas aos cidadãos, eleições regulares e não fraudulentas e competitividade pelo poder político. Discutiremos a seguir três subvariantes desse modelo: o elitismo democrático, o pluralismo democrático e a teoria econômica da democracia, ou teoria da escolha racional. Em sua primeira versão, segundo o elitismo democrático, a democracia representativa é defendida em comparação a outras formas de governo, mas às expensas do princípio de soberania e de participação popular. Como defende Joseph Schumpeter, por exemplo, a democracia consiste tão somente em um método de tomada de decisões, um conjunto de procedimentos para a escolha de elites dirigentes através do voto popular, mas não um fim em si mesmo, não tendo, portanto, qualquer comprometimento com determinados resultados, como a promoção a igualdade social, por exemplo. Ademais, a participação direta dos cidadãos nos regimes democráticos contemporâneos é vista não apenas como impraticável, haja vista a enorme extensão geográfica média dos Estados e sua população numerosa e heterogênea, mas também como algo

216 • Os direitos políticos dos analfabetos indesejável. A irracionalidade das massas, tema frequente dessa escola, levadas à esfera pública e sua incapacidade de compreender questões complexas tecnicamente, interditam, na opinião desses autores, a presença do cidadão comum nas esferas deliberativas. Em resumo, a participação legítima e aceitável é apenas a eleitoral. Mesmo essa é descrita destacando-se suas distorções, como a frequente manipulação do povo pelos demagogos, a passionalidade dos atores políticos, etc., de modo que idealmente ela não deve influir decisivamente sobre as decisões dos governantes. Num tom que se diz “realista”, mas que, de fato, tangencia o cinismo, esses autores afirmam que a única democracia possível não é o “governo do povo”, mas o “governo dos políticos” (Guerra, El liberalismo conservador, 165). Portanto, a democracia deixa de ser um ideal moral ou um tipo de organização política que contribua para desenvolver plenamente as capacidades dos indivíduos. Não é tampouco um sistema que persiga a participação política dos cidadãos, nem pretende contribuir na formação de um espaço de opinião e vontade coletivas (Guerra, El liberalismo conservador, 165).

Ao restringir a participação popular ao momento eleitoral e ao caracterizá-la negativamente, pode-se dizer que, nesse modelo de compreensão da democracia, a participação política dos analfabetos deveria ser drasticamente limitada, senão totalmente proibida. Entretanto, como a literatura especializada tem mostrado com recorrência (Pateman, Participação e teoria democrática; Avritzer, A moralidade da democracia), não é apenas a corrente do elitismo democrático que é reticente à participação popular. Isso também se verifica em correntes mais recentes da teoria política que, inclusive, criticam o elitismo democrático, como o pluralismo democrático e as teorias econômicas da democracia. Na concepção de Robert Dahl, um dos maiores expoentes da abordagem pluralista, democracia são descritas como poliarquias, isto é, um governo de múltiplas minorias que competem pelo poder e que tem de ser responsivas perante o eleitorado. As poliarquias são regimes políticos bidimensionais, na medida em que são constituídas pela liberalização (contestação pública do poder) e pela par-

Alexander Beltrão & Marcelo Moreira • 217 ticipação da população. Esse autor mostra-se, destarte, favorável à ampliação da participação política, o que inclui conceder direitos políticos plenos (direito de voto, de ser votado, etc.) a todos indivíduos adultos de uma sociedade (que não são intrinsecamente desinteressados) e, inclusive, poderíamos acrescentar, aos analfabetos. Quanto mais inclusivo um regime, mais democrático ele o é. Contudo, Dahl esclarece que as democracias modernas usualmente não contam com uma participação ativa dos seus cidadãos e que, mesmo assim, elas podem funcionar regularmente. Sua sobrevivência dependeria, sobretudo, da aceitação das regras de competição pelo poder por parte dos atores mais envolvidos com a política. Nesse sentido, se sua obra sinaliza para a inclusão legítima dos não escolarizados à comunidade política, ela, por outro lado, sugere também que essa participação pode ser restrita a certos momentos decisivos, sobretudo, a eleição. As teorias econômicas da democracia, por seu turno, apesar também de criticarem a imputação de irracionalidade ao cidadão-eleitor, feita pelos elitistas democráticos, ainda entendem que o bom funcionamento de uma democracia prescinde da participação ativa dos cidadãos, que teriam que arcar com um custo superior aos benefícios esperados por isso. Segundo essa subvariante liberal, democracia é um sistema de competição em que cada ator político (candidatos e eleitores) tentam maximizar seu interesse particular; no caso dos primeiros, aumentar sua base eleitoral e apoio político numa situação de liberdade política (eleições livres, direito de voto ampliado, direitos civis, etc.) e manter-se no poder (reeleição); e no caso, dos segundos, conseguir políticas públicas que os beneficiem. Um cidadão vota para ter um governo de sua preferência, e ele busca primeiro as informações que poderiam alterar sua preferência partidária original. Tudo depende se a compensação prevista pela informação supera seu custo (caso em que ele a adquirirá) ou não (despreza-se a informação). Se um eleitor tem uma grande preferência partidária inicial será preciso uma grande quantidade de informações para convertê-lo. Como isso é incomum de acontecer, numa democracia, cidadãos com forte preferência partidária tendem a não mudar o seu voto. Para um eleitor apático, o custo de se informar é mais alto do que para o “militante”; logo, dificilmente, ele se mobilizará a adquirir informações, pois para ele isso é irra-

218 • Os direitos políticos dos analfabetos cional.

Downs repete a premissa de Schumpeter de que as elites (especialistas e o governo) são portadoras de racionalidade, mostrando-se incapaz de perceber que as elites podem formar uma agenda não necessariamente compatível com os interesses da maioria dos eleitores. Também ele não leva em consideração a formação da racionalidade como debate público, considerando a democracia apenas como um processo de formação de maioria e reduz a racionalidade dos indivíduos à maximização dos interesses materiais. Por outro lado, como se disse, Downs reintroduz o conceito de racionalidade na teoria democrática, ainda que não o relacione racionalidade a valores da comunidade. Ele opera com um conceito limitado de racionalidade (adequação de meios e fins). Nesse sentido, é curioso que se, por um lado, ele desvincula racionalidade de informação e conhecimento, permitindo que se pense, a partir de sua obra, que a plena inclusão política dos analfabetos não seria deletéria para a democracia, por outro lado, é enfático ao afirmar que os regimes democráticos contemporâneos podem funcionar com o grau razoável de apatia política. Para concluir, é preciso dizer que a democracia liberal, conforme avaliada a partir das suas três subvariantes, é ambígua em relação à participação política plena dos analfabetos, tema deste trabalho. Se na corrente do elitismo democrático, esse grupo seria facilmente caracterizado como irracional, passional e, portanto, passível de manipulação por líderes políticos, nas correntes pluralista e da escolha racional, existem elementos, ainda que parciais, para se pensar que a sua inclusão política tenderia senão a fortalecer a democracia, pelo menos a não produzir prejuízo para o seu funcionamento.

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Alexander Beltrão & Marcelo Moreira • 219 Downs, Anthony. Uma teoria econômica da democracia. São Paulo: Edusp, 1999. Guerra, Roberto, El liberalismo conservador contemporáneo. Universidad de la Laguna, 1998. Miguel, Luis Felipe. “Teoria democrática atual: esboço de mapeamento”, BIB 59, (2005): 5-42. Nicolau, Jairo. História do voto no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002. Pandolfi, Dulce Chaves. “Voto e participação política nas diversas repúblicas do Brasil”. In A república no Brasil editado por Ângela de Castro Gomes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002. Pateman, Carole. Participação e teoria democrática. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. Santos, Wanderley Guilherme dos. “Poliarquia em 3D”. Dados 41 (1998): 207-281.

A JUSTICIABILIDADE DO DIREITO FUNDAMENTAL SOCIAL À EDUCAÇÃO Natascha Alexandrino de Souza Gomes Paola Durso Angelucci1

Introdução Direitos fundamentais sociais implicam prestações estatais positivas, visando à concretização da isonomia substancial. O presente trabalho busca investigar quando é adequado o Judiciário exigir do Estado as devidas prestações referentes ao direito à educação. A hipótese aqui considerada é a de que, possuindo aplicabilidade imediata (artigo 5º, §1º, CF), os direitos fundamentais sociais podem ser exigíveis, por exemplo, em caso de omissão legislativa, através de mandado de injunção e, em caso de omissão do poder Executivo, através de Mandado de Segurança, ou Ação Civil Pública. Para a verificação de tal hipótese, utilizamos como marco teórico a Teoria dos Direitos Fundamentais de Robert Alexy que, ao contribuir para a definição do núcleo essencial do direito à educação, contribui para a delimitação dos casos em que se justifica a atuação judicial. Na ordem constitucional brasileira, o direito à educação é densamente normatizado pela Carta Magna, tamanha sua relevância, havendo, por exemplo, previsão de percentual orçamentário para a efetivação desse direito, bem como regras de competência, previsão da criação de fundos à educação, entre outros. Portanto, sendo o direito à educação fundamental, este é intangível e deve ser assegurado, a despeito de quaisquer argumentos orçamentários. Assim, as restrições relacionadas à reserva do possível não poderão prevalecer quando confrontadas com o conteúdo essencial definido. Desta feita, estas pretensões serão exigíveis judicialmente, visando às providências cabíveis para garantir, no caso concreto, a prevalência do direito fundamental social à educação e a dignidade Mestrandas em Direito e Inovação junto a Universidade Federal de Juiz de Fora (Brasil). E-mail: [email protected]; [email protected]

1

Natascha Gomes & Paola Angelucci • 221 da pessoa, inclusive o (re) direcionamento de prioridades em matéria de alocação de recursos. Em suma, da constitucionalização dos direitos fundamentais sociais decorre a irresistível necessidade de proteção dos seus respectivos núcleos essenciais, possibilitando, inclusive, a justiciabilidade dos direitos subjetivos definitivos contidos nesses conteúdos.

A teoria dos Direitos Fundamentais de Robert Alexy Algumas classificações das normas constitucionais e sua aplicabilidade A distinção mais importante para a teoria dos direitos fundamentais consiste na diferenciação entre regras e princípios (ALEXY, 2008, p. 85), amplamente conhecida. Com relação às normas constitucionais, destaca-se também a consagrada classificação de José Afonso da Silva, que as divide em normas constitucionais de eficácia plena e aplicabilidade imediata; normas constitucionais de eficácia contida e aplicabilidade imediata, passíveis de restrição, e normas constitucionais de eficácia limitada e aplicabilidade mediata, que dependem de integração infraconstitucional para operarem a plenitude de seus efeitos (SILVA, 2001). Relativamente aos direitos sociais, foco do presente artigo, estes possuem formação mais recente, remontando-se à Constituição mexicana de 1917 e à Constituição de Weimar, 1919, ocasião em que se consolidou a necessidade de ações estatais positivas aos jurisdicionados, com o fito de promover a igualdade material entre os indivíduos, na maior medida possível. Desta feita, depreende-se que os direitos sociais visam, precipuamente, a minimizar as distorções socioeconômicas presentes na sociedade, refletindo um aparato de Estado Social, que tem na solidariedade o seu alicerce. Cumpre salientar que, modernamente, reconhece-se o caráter jurídico vinculante e a exigibilidade dos direitos fundamentais; porém, aplicá-los ainda é um problema, mormente em razão das limitações econômicas (reserva do possível) e políticas (discricionariedade) que envolvem esta seara. Assim, analisar a classificação das normas constitucionais se mostra algo da maior importância

222 • A justiciabilidade do direito fundamental social à educação para essa empresa, bem como sua aplicabilidade. Os direitos fundamentais sociais, conforme o artigo 5º da CF/88, não podem mais ser interpretados como normas meramente programáticas, pois tratam, diretamente, de relações jurídicas individuais, concretas e que garantem direitos subjetivos. No entanto, em que pese a referida previsão constitucional, estes ainda encontram obstáculos para sua efetivação, não sendo diferente no que tange ao direito fundamental social à educação.

A ideia de núcleo essencial em Direitos Sociais Falar em núcleo essencial de um direito fundamental significa delimitar a parcela de seu conteúdo que é protegida de restrições. De acordo com Andrade2, o núcleo essencial traz posições jurídicas individuais que nada mais são do que direitos subjetivos, os quais não estão sob o poder de disposição de terceiros. Eventuais restrições não poderão eliminar tais posições jurídicas individuais, sem comprometer a própria fundamentalidade do direito constitucionalmente assegurado, isto é, sem destruir sua essência de direito fundamental. Destarte, o núcleo essencial dos direitos fundamentais pode ser entendido como o “limite dos limites”, já que delineia a parte do direito que não pode ser violada ou limitada (LOPES, 2004). Ademais, salienta-se que o núcleo essencial atende ao princípio da vedação do retrocesso social, pois garante que pelo menos uma parcela do direito fundamental seja necessariamente fornecida à população, independentemente de argumentos políticos e orçamentários.

Teoria absoluta e teoria relativa do núcleo essencial Segundo a teoria absoluta, cada direito fundamental possui um núcleo intangível, no qual não se pode intervir, em hipótese alguma. Já a teoria relativa defende que o conteúdo essencial é identificado a partir da ponderação dos princípios e interesses em colisão em um dado caso concreto (ALEXY, 2008, p. 296). ANDRADE, M.C. da Silva. Apontamentos para o reconhecimento do conteúdo essencial do direito fundamental à educação. No prelo. 2

Natascha Gomes & Paola Angelucci • 223 Para Alexy (2008), a defesa de um conteúdo essencial a partir da própria constituição acarreta uma definição a priori de tal núcleo, o que impede que tal conteúdo seja remodelado nas eventuais ponderações demandadas pelos imprevisíveis casos concretos. Por outro lado, os defensores da teoria absoluta defendem que a própria essência da fundamentalidade de um direito não pode ficar à disposição da ponderação, sob um juízo instrumental, contingencial e posterior ao caso concreto. Entendemos que as teorias absoluta e relativa convergem para o reconhecimento do núcleo essencial do direito à educação, pois a primeira permite admitir direitos subjetivos definitivos diretamente da Constituição, enquanto a segunda permite a definição de outros direitos subjetivos a partir da ponderação, diante do caso concreto.

Teoria interna e teoria externa Estas teorias estão relacionadas à limitação dos direitos fundamentais e seu âmbito de proteção. Para a teoria interna dos direitos fundamentais, estes traduzem posições definitivas. A restrição pertence ao direito fundamental, integrando-o, não vindo de fora. Segundo ela, o termo “restrição” é substituído por “limite”, também chamado “restrições imanentes” (LEIVAS, 2006). De outro norte, a teoria externa assevera que a restrição atua sobre o direito fundamental, posteriormente. Segundo esta teoria, a restrição é externa ao direito e os direitos fundamentais traduzem direitos prima facie. Cumpre ressaltar que direito fundamental completo consiste no conjunto de posições jurídicas asseguradas por uma proteção definitiva ou prima facie. Este não é um direito a algo, a uma liberdade, ou competência, mas sim um conjunto delas. O entendimento predominante é pela impossibilidade de restrições aos direitos fundamentais, na ausência de permissão expressa neste sentido. No entanto, ainda que não esteja expressamente autorizado, caberá sua restrição desde que com base em determinadas justificativas, por exemplo, em caso de colisão de direitos fundamentais, quando for necessária a concordância prática entre os direitos fundamentais envolvidos em conflito, em caso de

224 • A justiciabilidade do direito fundamental social à educação conflito com um objetivo público.

Direito à educação no ordenamento jurídico nacional Direito à Educação na Constituição Federal de 1988 O direito social à Educação encontra-se inserido, sobretudo, no Título VIII da nossa Constituição, denominado “Da ordem social”, recebendo especial tratamento em seu Capítulo III, “Da Educação, da Cultura e do Desporto”, Seção I, “Da Educação”. Do artigo 205 da Constituição Federal, depreende-se ser a educação direito de todos e dever do Estado, da família e da sociedade. A Constituição discrimina detalhadamente os princípios pelos quais o ensino será ministrado, em seu artigo 206. Mister destacar os parágrafos 1º e 2º do artigo 208 da Constituição Federal. O primeiro afirma ser “o acesso ao ensino obrigatório e gratuito um direito subjetivo público” (BRASIL, 1988). O segundo prescreve a garantia de que, em caso de descumprimento da referida norma, haverá responsabilidade da autoridade competente (BRASIL, 1988). Ademais, o artigo 227 da Constituição Federal reitera o dever da família, da sociedade e do Estado, de assegurar à criança, adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, entre outros, o direito à educação (BRASIL, 1988).

Educação infantil, ensino fundamental, ensino médio e superior na Constituição Federal Da análise da Constituição Federal infere-se que seu artigo 208 assevera ser dever do Estado garantir a educação básica obrigatória e gratuita dos quatro aos dezessete anos de idade, inclusive assegurando-a aos que a ela não tiveram acesso na idade apropriada (BRASIL, 1988). Ademais, garante-se o atendimento ao educando em todas as etapas da educação básica, por meio de material didático, transporte, alimentação e assistência à saúde. O referido artigo garante, ainda, a progressiva universalização do ensino médio gratuito e o atendimento educacional especializado aos portadores de necessidades especiais (artigo 208, II e III, CF).

Natascha Gomes & Paola Angelucci • 225 Além disso, dispõe o artigo 208 acerca da educação infantil, que se realizará em creches e pré-escolas, para as crianças até cinco anos de idade. Conveniente, neste sentido, destacar o julgado constante no informativo nº. 0317, emanado pelo Superior Tribunal de Justiça (2007): Trata-se de ação civil pública proposta pelo MP com objetivo de garantir a menores de família sem recursos o direito de matrícula e frequência na rede municipal de creches. O Min. Relator destacou que a CF/1988, no art. 208, o ECA (Lei n. 8.069/1990) e a Lei de Diretrizes e Base da Educação (Lei n. 9.394/1996, art. 4º, IV) asseguram o atendimento em creches e pré-escolas da rede pública às crianças de zero a seis anos. Compete à Administração Pública propiciar e assegurar esse atendimento - mas não cabe ao administrador público escolher entre prestá-lo ou não, pois constitui um dever administrativo estabelecido em lei de um lado e, do outro, o direito assegurado ao menor de ver-se assistido pelo Estado. Assim, não há que se questionar a intervenção do Judiciário porquanto se trata de aferição do cumprimento da exigência da lei. Para o Min. Relator, na espécie, não restou provada a falta de disponibilidade orçamentária alegada pela municipalidade. A divergência inaugurada pela Min. Eliana Calmon entendia que o MP autor não demonstrou as condições necessárias à obrigação de fazer postulada na inicial. Isso posto, a Turma, por maioria, ao prosseguir o julgamento, deu provimento ao recurso. Precedente citado: REsp 575.280-SP, DJ 25/10/2004. (REsp 510.598-SP, Rel. Min. João Otávio de Noronha, julgado em 17/4/2007.)

Por fim, o artigo 208, CF, dispõe sobre o acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um (BRASIL, 1988). Os Municípios atuarão de maneira prioritária no ensino fundamental e educação infantil (art. 211, §2º, CF). Já os Estados e Distrito Federal atuarão, sobretudo, no ensino fundamental e médio (art. 211, §3º, CF).

Legislação extravagante e Direito à Educação Segundo a previsão do inciso XXIV, do artigo 22, CF, com-

226 • A justiciabilidade do direito fundamental social à educação pete privativamente à União legislar sobre as diretrizes e bases da educação nacional. Assim, a Lei nº 9.394/96, denominada “Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional” (LDB) regulamenta todo o sistema educacional de nosso país, tanto reiterando aquilo que já fora disciplinado pela Constituição Federal em linhas gerais, quanto regulamentando de maneira mais detalhada outras matérias. O artigo 21 da LDB assevera que a educação escolar compõe-se de educação básica (formada pela educação infantil, ensino fundamental e ensino médio) e educação superior (BRASIL, 1996). Em suma, prevê a LDB ser a educação infantil composta por creches, que cuidam de crianças de até três anos de idade, e por pré-escolas, cujo público alvo é composto por crianças de até seis anos de idade, existindo a previsão de gratuidade, mas não de obrigatoriedade (BRASIL, 1996). Quanto ao ensino fundamental, há previsão legal tanto de gratuidade, quanto de obrigatoriedade. Cumpre destacar o disposto no caput do artigo 5º, da LDB, sendo oportuna sua transcrição: Art. 5º. O acesso ao ensino fundamental é direito público subjetivo, podendo qualquer cidadão, grupo de cidadãos, associação comunitária, organização sindical, entidade de classe ou outra legalmente constituída, e, ainda, o Ministério Público, acionar o Poder Público para exigi-lo.

Já a previsão legal relativa ao ensino médio garante a progressiva extensão da sua obrigatoriedade e gratuidade. Outra importante legislação infraconstitucional é o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), na medida em que seu artigo 54 reitera parte do artigo 208 da Constituição Federal, reafirmando ser dever do Estado assegurar à criança e ao adolescente, ensino fundamental, obrigatório e gratuito. Ademais, o supracitado artigo, reafirma, em seu parágrafo primeiro, ser o acesso ao ensino obrigatório gratuito um direito público subjetivo, bem como, em seu parágrafo segundo, prevê a responsabilização da autoridade competente em caso de desrespeito a esta norma (BRASIL, 1990).

Natascha Gomes & Paola Angelucci • 227

Custeio e financiamento da educação nacional Relativamente ao custeio da Educação, nossa Constituição dispõe, em seu o artigo 211, que União, Estados, Distrito Federal e os Municípios o farão através de regime de colaboração. Quanto ao seu financiamento, dispõe o artigo 212 da Constituição que a União aplicará, anualmente, pelo menos de dezoito por cento, e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios vinte e cinco por cento, no mínimo, da receita resultante de impostos, na manutenção e desenvolvimento do ensino. Outrossim, o artigo 69 da Lei 9.394/96, Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), reforça tal previsão orçamentária. Portanto, o constituinte estabeleceu, no artigo 212, que o custeio deste sistema ocorrerá através do financiamento do ensino público pelos entes federados, com as respectivas frações anuais obrigatória de aplicação no ensino, quais sejam, 18% para a União, 25% para os Estados, Distrito Federal e Municípios e na sequência determinou as regras de cálculo. Cumpre ressaltar que o artigo 60 do ADCT prevê que até o 14º (décimo quarto) ano a partir da promulgação da Emenda Constitucional nº. 53/2006, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios destinarão parte dos recursos a que se refere o caput do art. 212 da Constituição Federal à manutenção e desenvolvimento da educação básica e à remuneração dos trabalhadores da educação, conforme o disposto no referido artigo. O supracitado artigo prevê a criação do “Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação” (FUNDEB), previsto na EC nº 53/2006 e regulamentado pela Lei nº 11.494/2007 e pelo Decreto nº 6.253/2007. Ele veio em substituição ao “Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério” (FUNDEF), o qual vigorou nos anos de 1998 a 2006. Cumpre destacar que, no ano de 2014, fora aprovado o Plano Nacional de Educação (PNE), o qual prevê a aplicação de 10% do PIB em investimentos neste setor e estabelece metas a serem cumpridas nos próximos dez anos, como a erradicação do analfabetismo, a oferta de educação em tempo integral e o estabelecimento de prazos máximos para alfabetização de crianças.

228 • A justiciabilidade do direito fundamental social à educação

Núcleo essencial do Direito à Educação na ordem cosntitucional brasileira O artigo 205 da Constituição Federal assegura o direito à educação em linhas gerais e abstratamente, trazendo em seu bojo um princípio, que deve ser realizado na maior medida possível. Relativamente ao núcleo essencial, cumpre ressaltar que, caso se considere que apenas a educação infantil está contida nesse núcleo, enquanto as demais fases dependem de políticas públicas, disposição orçamentária e exercício da cidadania, entende-se que seu conteúdo essencial não estaria protegido adequadamente. Por isso a análise do núcleo essencial do direito à educação.

Justiciabilidade do Direito Social à Educação Como anteriormente esclarecido, direitos fundamentais sociais implicam em prestações estatais positivas, visando à concretização da isonomia substancial. Por serem direitos fundamentais, o entendimento aqui adotado é de que possuem aplicabilidade imediata (conforme artigo 5º, §1º, CF) e podem ser exigíveis. De acordo com as lições de Silva (2002, p. 44): Se se admite que a grande maioria dos direitos fundamentais são princípios, no sentido defendido por Robert Alexy (...) admite-se que eles são mandamentos de otimização, isto é, normas que obrigam que algo seja realizado na maior medida possível, de acordo com as possibilidades fáticas e jurídicas. E a análise da proporcionalidade é justamente a maneira de se aplicar esse dever de otimização no caso concreto.

Posições jurídicas individuais e garantias dos jurisdicionados ao Direito à Educação A educação básica - formada pelo ensino infantil, fundamental e médio – (artigo 208, CF/88) consiste em um direito público subjetivo. Relativamente à oferta de creches e pré-escolas, segundo o artigo 208, IV, é dever do Estado garanti-las aos educandos até os

Natascha Gomes & Paola Angelucci • 229 cinco anos de idade (BRASIL, 1988). Assim, diferentemente da abstração contida no artigo 205, CF, aquele dispositivo assegura um direito subjetivo definitivo. Portanto, não é uma faculdade do Poder Público fornecer creches e pré-escolas às crianças, mas um dever jurídico, passível de exigibilidade. Ademais, da análise da Carta Magna depreende-se que a matrícula na educação infantil é um direito da criança e um dever do ente estatal (neste caso, o Município), que se obriga a disponibilizar vagas na rede pública ou, em caso de ausência, em unidade privada de ensino. Integra o núcleo o que for substancialmente indispensável à garantia de uma eficácia mínima ao direito à educação, bem como o que for positivado constitucionalmente como direito subjetivo definitivo. De outro norte, para além desses limites, a exigibilidade judicial do direito à educação, dependerá da discricionariedade das políticas públicas, por exemplo, no caso dos programas suplementares de educação, tais como os que preveem o fornecimento de alimentação e transporte aos alunos, que, apesar de indissociáveis do referido direito subjetivo, não integram seu núcleo essencial e podem ser ponderados no caso concreto. No que tange ao atendimento educacional especializado às pessoas com deficiência, ele se refere às peculiaridades dos alunos com necessidades especiais, complementando a educação escolar e devendo estar disponível em todos os níveis de ensino. Tais necessidades consistem em um direito subjetivo dos portadores de necessidades especiais, contudo, passível de ponderação. Quanto ao direito de acesso aos níveis mais elevados de ensino, de acordo com as capacidades individuais, o Plano Nacional de Educação (PNE) prevê até o final da década, a oferta de educação superior para pelo menos 30% da faixa etária de 18 a 24 anos. O ingresso à educação superior se dá através de processo seletivo, conforme prevê o artigo 44 da LDB, em que se avalia o mérito individual do candidato. Desta forma, corroborando a posição de Andrade (não publicado) quanto à delimitação do núcleo essencial relativo ao Ensino Superior: “Na previsão do art. 208, V, a Constituição prevê a meritocracia como conteúdo essencial do direito de acesso aos níveis elevados de ensino. Assim, tal acesso deve, necessariamente, atentar para as capacidades de cada candidato”. Cumpre ressaltar ser objetivo do Estado a ampliação do acesso ao ensino superior, através de uma postura ativa, com a efetivação de políticas públicas, tais como a política de cotas (raciais

230 • A justiciabilidade do direito fundamental social à educação ou sociais), bem como por programas de bolsa de estudos, a citar, o PROUNI, ou de financiamento do ensino, a exemplo, o FIES. Por derradeiro, relativamente à universalização do ensino médio para os alunos em idade regular e a universalização para aqueles que não concluíram na idade recomendada, a proposta de Plano Nacional de Educação prevê a implementação efetiva de ensino médio universal, in verbis: “Meta 3: Universalizar, até 2016, o atendimento escolar para toda a população de 15 a 17 anos e elevar, até 2020, a taxa líquida de matrículas no ensino médio para 85%, nesta faixa etária.” (BRASIL, 2010).

Princípio da reserva do possível A construção teórica da reserva do possível originou-se na Alemanha, aproximadamente nos anos de 1970. Conforme esta noção, a efetividade dos direitos sociais, sobretudo daqueles que demandam prestações materiais, é limitada pela reserva das capacidades financeiras do Estado. Ocorre que há diversos casos concretos em que o titular do direito fundamental recorre ao Judiciário com o fito de ter sua pretensão material satisfeita. Desta feita, o conflito fica a cargo de uma decisão judicial, o que aponta a uma questão assaz delicada, inaugurando a colisão de diversos princípios, como o princípio da separação de poderes versus o princípio da inafastabilidade da tutela jurisdicional. Ocorre que, como já defendemos alhures, o núcleo essencial do direito fundamental social à educação é definitivo. Neste sentido, entende-se que o Judiciário deve promover o fornecimento do núcleo essencial aos indivíduos, não obstante o argumento da reserva do possível.

Conclusão Diante do explanado, entende-se ter restado superada a classificação de normas programáticas, já que os dispositivos que asseguram direitos fundamentais sociais possuem aplicabilidade imediata, por força do parágrafo 1º do artigo 5º da Constituição Federal, não obstante suas particularidades. Na ordem constitucional brasileira, o direito à educação é

Natascha Gomes & Paola Angelucci • 231 densamente normatizado pela Carta Magna, tamanha sua relevância, havendo, por exemplo, previsão de percentual orçamentário para a efetivação desse direito, bem como regras de competência, previsão da criação de fundos à educação, entre outros. Portanto, reconhecido o núcleo essencial do direito à Educação, este é intangível e deve ser assegurado, a despeito de quaisquer argumentos orçamentários. Assim, as restrições relacionadas à reserva do possível não poderão prevalecer quando confrontadas com o conteúdo essencial definido. Desta feita, estas pretensões serão exigíveis judicialmente, visando às providências cabíveis para garantir, no caso concreto, a prevalência do direito social à educação e a dignidade da pessoa, inclusive o (re) direcionamento de prioridades em matéria de alocação de recursos. Até mesmo a tese de que a reserva do possível poderia servir de argumento eficiente a afastar a responsabilidade do Estado, não pode ser aceita. Em suma, da constitucionalização dos direitos sociais decorre a irresistível necessidade de proteção dos seus respectivos núcleos essenciais, possibilitando, inclusive, a justiciabilidade dos direitos subjetivos definitivos contidos nesses conteúdos. Afinal, a própria Constituição reconheceu direitos subjetivos definitivos que não podem estar sob qualquer possibilidade jurídica de restrição ou não concretização. Podemos apontar o art. 208, que prevê que a educação básica é obrigatória e gratuita dos quatro aos dezessete anos de idade, além de assegurar a gratuidade a todos os que a ela não tiveram acesso na idade própria. Essa conclusão é corroborada pelo §1º do mesmo art. 208, em que a Constituição reconhece o acesso ao ensino obrigatório e gratuito como direito público subjetivo. Assim, diante de tal precisão constitucional, não é cabível nem mesmo a alegação de reserva do financeiramente possível, ainda mais se atentarmos para o fato de que a própria Constituição reservou porcentagem orçamentária mínima de aplicação compulsória na educação, além do fato de prever até mesmo a responsabilização da autoridade competente pela não oferta ou pela oferta irregular do ensino obrigatório. Nesse sentido, a previsão constitucional do direito de acesso à educação básica obrigatória e gratuita como direito público subjetivo definitivo revela-se como pedra angular da proteção assegurada pela Constituição ao direito fundamental social à educação. Essa

232 • A justiciabilidade do direito fundamental social à educação previsão oferece um preciso fundamento constitucional para o reconhecimento de outras posições jurídicas individuais pertencentes aos núcleos essenciais dos demais direitos fundamentais relativos à educação. Assim, teorias absoluta e relativa convergem para o reconhecimento do núcleo essencial do direito à educação, pois a primeira permite admitir direitos subjetivos definitivos diretamente da Constituição, enquanto a segunda permite a definição de outros direitos subjetivos a partir da ponderação, diante do caso concreto.

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AÇÕES AFIRMATIVAS E IGUALDADE DE OPORTUNIDADES: UM CONCEITO DE JUSTIÇA PARA ATORES SOCIAIS EM DISPUTA Priscila da Silva Barboza 1

Resumo Pretende-se questionar nesse trabalho conceitos como igualdade, diferença e reconhecimento. Estaria o princípio da igualdade imerso em inúmeros paradoxos? Conciliáveis? Acredita-se que a construção das ações afirmativas perpassa por considerações a respeito da construção histórica que os atores sociais realizam na esfera pública em torno de seus interesses sempre em disputa. Ora legitimando-se como grupo e, assim, requerendo medidas afirmativas em prol do que entendem como uma minoria. Ora preservando a sua necessidade de serem vistos como sujeitos detentores de direitos, ou seja, assumindo uma identidade para além do grupo. Palavras chave: Ações Afirmativas; Cotas Raciais; Reconhecimento; Igualdade.

Um breve conceito sobre ações afirmativas As ações afirmativas tornaram-se uma política de Estado a partir da década de 60 nos Estados Unidos da América. Inicialmente foram tratadas como medidas compensatórias a danos suportados por trabalhadores que sofriam alguma forma de discriminação. O presidente John F. Keneddy instituiu a Ordem Executiva de 6 de março de 1961para que as agências governamentais coibissem eventuais discriminações no momento da contração de pessoas por parte do Estado, estimulando a utilização de ações afirmativa para tanto. Posteriormente, tais políticas assumiram dimensões redistriPriscila da Silva Barboza, advogada, professora universitária (Unicuritiba), doutoranda em Direito pela Universidade Federal do Paraná, Brasil. priscilasbar@ yahoo.com.br.

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236 • Ações afirmativas e igualdade de oportunidades butivas. Desde então, as medidas afirmativas têm se difundido nos mais diversos países, ocasionando discussões em torno das noções de igualdade e diferença. As ações afirmativas podem ser caracterizadas como medidas de âmbito estatal ou privado que prevêem um tratamento especial para determinada categoria ou grupo de pessoas. Sua forma de atuação legal pode se dar das mais diversas formas, seja por meio de redistribuição de renda, protegendo determinadas ações, ou fomentando-as, etc. No que tange ao presente trabalho, chamar-se-á a atenção para as medidas afirmativas que pretendem resgatar a identidade de algumas minorias que foram subjugadas ou tornadas sem visibilidade ao longo do tempo. A título de exemplificação: Entre as medidas que podemos classificar como ações afirmativas podemos mencionar: incremento da contratação e promoção de membros de grupos discriminados no emprego e na educação por via de metas, cotas, bônus ou fundos de estímulo; bolsas de estudo; empréstimos e preferência em contratos públicos; determinação de metas ou cotas mínimas de participação na mídia, na política e outros âmbitos; reparações financeiras; distribuição de terras e habitação; medidas de proteção a estilos de vida ameaçados; e políticas de valorização identitária. (GEMAA, 2011).

Como se viu, sua forma de aplicação é bastante ampla. Na prática, as medidas afirmativas englobam iniciativas que visam atuar tanto no âmbito econômico, redistribuindo-se recursos econômicos, como também na afirmação simbólica de determinados grupos, na tentativa de fomentar uma visão positiva de suas identidades e características culturais. Faz-se necessário trazer um importante diploma internacional que traz em seu bojo o conceito de ações afirmativas: Artigo 2. Os Estados-partes tomarão, se as circunstâncias o exigirem, nos campos social, econômico, cultural e outros, medidas especiais e concretas para assegurar, como convier, o desenvolvimento ou a proteção de certos grupos raciais ou de indivíduos pertencentes a esses grupos, com o objetivo de garantir-lhes, em condições de igualdade, o pleno exercício dos direitos humanos e das liberdades fundamentais. Essas medidas não deverão, em caso algum, ter a finalidade

Priscila da Silva Barboza • 237 de manter direitos desiguais ou distintos para os diversos grupos raciais, depois de alcançados os objetivos, em razão dos quais foram tomadas. (Convenção internacional sobre a eliminação de todas as formas de discriminação racial, 1965).

Como se pode perceber, trata-se de uma medida transitória, já que as ações afirmativas não podem vir a caracterizar uma sobreposição de direitos frente a outros grupos sociais. Está-se a mencionar a Convenção internacional sobre a eliminação de todas as formas de discriminação racial de 1965, que foi ratificada pelo Brasil em 1969 por meio de Decreto n.º 65.810. No que se refere ao Brasil, pode-se citar como exemplos mais recentes acerca das ações afirmativas: a lei 8.112/90 (art. 5º, § 2º) que reserva 20% de cotas para os portadores de deficiência no serviço público civil da União e a lei 8.21391 (art. 93) que faz o mesmo no âmbito privado; a lei 9.504/97 (art. 10, § 2º) que estabelece cotas para mulheres nas candidaturas dos partidos (DOMINGUES, 2005, p. 28-29); o Estatuto da Igualdade Racial (lei 12.288/2010) e a lei 12.711/2012 (art. 1º, § 3º) que reserva vagas para pretos, pardos e índios no ingresso dos vestibulares nas instituições federais de ensino superior (GEMAA, 2011). Assim, tem-se no Brasil vários grupos abrangidos por políticas públicas afirmativas (portadores de deficiência, mulheres, negros, etc.), justamente em um país marcado por tanta diversidade de culturas, fruto de uma intensa miscigenação desde o período colonial, conforme afirmam clássicos da antropologia e sociologia Brasileiros como Gilberto Freire, Sérgio Buarque de Holanda, etc. Dentro desse contexto, as ações afirmativas no Brasil suscitam muitas controvérsias e dúvidas, principalmente para aqueles grupos que precisam se autodeclarar abrangidos por aqueles direitos. Como pensar um conceito de justiça que consiga equacionar as diversas demandas desses grupos? As ações afirmativas seriam uma solução jurídica justa, correta? A única certeza que se tem é o tamanho desafio que tais medidas suscitam para o qualquer sistema jurídico, não só para o brasileiro. Hodiernamente já não se pode mais fechar os olhos para as pressões sociais que tais grupos minoritários exercem nas instancias políticas em vistas a regulamentação jurídica de seus anseios. Diante desse cenário, cabe traçar algumas considerações a respeito do conceito de justiça tendo por objeto as ações afirmativas. Já que

238 • Ações afirmativas e igualdade de oportunidades empiricamente está-se diante de um universo indeterminável de demandas e justificações em torno da noção de direitos das minorias, torna-se mais confortável discorrer a respeito desses conflitos (atinentes às políticas públicas afirmativas) no âmbito deontológico da filosofia política.

O “justo” e o “injusto” nas ações afirmativas. Marina Velasco ao tratar o conceito de justiça tendo por objeto as ações afirmativas, analisa que este termo possui uma carga valorativa muito forte, assim, seu conceito só se definiria totalmente quando substancialmente preenchido por um outro valor. Nas palavras da autora: “Qualquer concepção de justiça só pode ser defendida ligando-a a outro valor, que não a justiça” (VELASCO, 2009, p. 31). Assim, torna-se difícil construir argumentos de correção e justificação para esse termo, pois estaria sempre precisando ser completado (porque não dizer “posicionado no tecido social?), ainda mais ao se pensar no multiculturalismo característico das sociedades atuais. Para analisar as cotas raciais universitárias, a autora divide sua abordagem acerca do conceito de justiça em dois “andares”, conforme menciona: “No ‘primeiro andar’, as normas são tomadas como dadas, e é colocada a questão da justiça (ou injustiça) das ações que se ajustam (ou não se ajustam) às normas. No ‘segundo andar’, é colocada a questão da justiça (ou injustiça) das próprias normas.” (VELASCO, 2009, p. 39). Como se pode perceber, a autora preconiza em sua análise um estudo acerca da linguagem das normas e não da linguagem dos valores. Com relação ao “primeiro andar”, constatou-se que a noção de justiça tem uma relação bastante próxima com a noção de igualdade, ao que se remonta à célebre frase de Aristóteles “tratar os iguais na medida de sua desigualdade e os desiguais na medida da sua desigualdade”. Ou seja, “ser justo é tratar de forma igual” (VELASCO, 2009, 0. 42). Outro elemento bastante importante da noção de justiça é a lei. Destes dois elementos – igualdade e lei – a autora chegou à conclusão de que uma norma para ser justa precisa sempre “trata(r) igualmente a todos os mencionados na norma e aplica(r) a norma certa.” (VELASCO, 2009, p. 45). A partir desses pontos no “primeiro andar”, a autora teceu

Priscila da Silva Barboza • 239 várias considerações, dentre elas serão citadas as mais relevantes. Tendo por base os escritos de Perelman, Velasco refere que a regra formal de justiça infere que as pessoas pertencentes a um mesmo grupo, ou categoria, devem ser tratadas de forma igual. Ademais, outro importante aspecto é que essa igualdade seja aplicada na proporção do conteúdo existente na norma, ou seja, segundo algum critério dado na norma, por exemplo o trabalho realizado, o mérito, a necessidade, etc. A partir de tais considerações se pode perceber que as pessoas até discordam do conteúdo da norma, ou, nas palavras da autora, das concepções de justiça existentes na norma, mas não a respeito do conceito formal de justiça, qual seja, de se aplicar aos iguais pertencentes àquele grupo o mesmo tipo de norma. Nas palavras da própria autora: “as pessoas estejam de acordo sobre a fórmula que deve ser aplicada (por exemplo, a do mérito ou a da necessidade) e, não obstante, não estejam de acordo sobre o critério substancial (o que deveria ser considerado meritório, ou uma necessidade). Todavia, na medida em que sabemos onde residem os desacordos, mais possibilidades haverão de superá-los.” (VELASCO, 2009, p. 54-55).

Como se pode perceber, a distinção entre conceito e concepção de justiça torna-se relevante ao se discorrer acerca da noção de justiça. A partir disso a autora questiona o que fazer, então, quando se tem duas perspectivas em conflito tidas como justas em relação a determinado caso concreto. Ou seja, as duas concepções parecem adequadas para determinada situação quando da aplicação da lei, mas esta não determina os diferentes “graus” em que essas concepções devem ser consideradas. Nesse caso, tem-se a questão da equidade, a qual não há uma fórmula dada e fechada para dirimir esse tipo de conflito. Por fim, ainda dentro do “primeiro andar”, Velasco chama a atenção para o aspecto de se “aplicar a norma ‘correta’”. Nesse sentido a autora refere que a aplicação do método da subsunção não é tão mecânica assim, pois, antes dele ser aplicado a determinado caso concreto, uma gama de considerações foram pressupostas e escolhidas (por exemplo, a adequação das premissas). Assim, existe uma gama de razões que devem ser justificadas na aplicação das

240 • Ações afirmativas e igualdade de oportunidades normas, além do que uma razão sempre vai estar atrelada à outra razão (VELASCO, 2009, p. 64). (autora fará distinção entre regra e princípio – agir-racional consequencialista e agir racional deontológico - autora prefere este último). Até então, discorreu-se acerca de como as normas devem ser aplicadas (atendendo a igualdade presente em determinado grupo, distinguindo-se o conceito formal de justiça das várias concepções de justiça, bem como acerca da percepção de que antes da subsunção de regras, já se levaram em consideração uma gama de rações para justificar a coerência racional da utilização desse método.), cabe fazer menção agora a respeito do conteúdo substancial da noção de justiça ou, como a autora refere: “o segundo andar” do nosso estudo. Conforme a preferência de cada autor, pode-se compilar as diversas concepções de justiça das mais variadas formas. Velasco assim as classifica em dois grandes grupos: a) Os igualitaristas distributivistas, os quais preconizam a distribuição igualitária de algum bem, sejam recursos (Dworkin), vantagens, oportunidades, capacidades (Amartya Sem). Para que haja justiça, as pessoas precisam ter igualdade de condições (seja qual for o bem de parâmetro), nesse sentido, eventuais desigualdades que existam, ocorrerão em função de suas próprias escolhas em igualdade de oportunidades. b) Os preconizadores da igualdade de status, que enfatizam a igualdade nas relações entre as pessoas, ou seja, em um sentido de não hierarquização e de não dominação. Assim, eventual igualdade de recursos terá a função de tornar as pessoas menos subordinadas, oprimidas, residindo na categoria reconhecimento (Honneth, Nancy Fraser) de sua identidade como o significado mais profundo da concepção de igualdade; (VELASCO, 2009, p. 92-93). Mas para que estes aportes teóricos sejam aceitos hoje como possíveis modelos de concepções de justiça que sirvam de correção para os conceitos formais de justiça existentes na realidade hodierna, há que se atentar para mudanças históricas importantes que tornaram essas visões de mundo possíveis. Está-se a falar das revoluções modernas (americana e francesa) que mudaram a tônica de como se percebia o sujeito no contexto social e, em última instância, o que significa igualdade normativamente. Ou seja, esses

Priscila da Silva Barboza • 241 movimentos históricos foram importantes para se deixar uma visão de mundo baseada em estamentos e em prestígio baseado na honra, para, enfim, haver uma construção de mundo apoiada no status (prestígio apoiado na categoria trabalho – fomentado pelo capitalismo) e tendo por base indivíduos iguais e detentores de iguais direitos. Ou seja, está-se a falar que um rearranjo no contexto social permitiu a difusão de novas concepções acerca do que é igualdade e, assim, do que vem a ser o justo. Dito de outro modo, novos valores surgiram para completar a carga normativa do conceito formal de justiça que se tem hoje. Esta ideia será retomada mais adiante. Por fim, tratando-se da noção formal de justiça tendo por objeto cotas raciais em universidades, Velasco tece uma série de considerações interessantes que colocam a discussão e um patamar não somente ideológico. Assim, traça distinções conceituais filosóficas apropriadas para a discussão de um tema tão intrincado atualmente. Primeiramente a autora afirma existir um paradoxo em torno da noção de igualdade. Considerando-se que este conceito formal quase sempre aponta alguma forma de tratamento distinto com relação a algum grupo, não há como se sustentar necessariamente que tratamentos desiguais geram discriminações e sejam injustos. Observe o exemplo trazido por Marina: “A justiça é para todos, mas castigo, apenas para os criminosos, ajuda social para os que necessitam, licença de conduzir para os que têm mais de X anos, escola obrigatória para crianças e jovens até idade X, e assim por diante.” (VELASCO, 2009, p. 123). Ou seja, não se pode confundir discriminação com distinção e isso as normas que preconizam igualdade também o fazem, a questão de fundo é saber quando tais distinções são vistas como contendo uma concepção substancial justa ou não e para isso há que se ter boas justificações como diz Marina Velasco. Considerando-se a emergência do estado de bem-estar social no século XX, a noção de igualdade adaptou-se historicamente ganhado um sentido de igualdade material e não só de igualdade formal. Assim, concebe-se que: não exige um tratamento igual no sentido de “dar a cada um a mesma coisa”, ou no sentido de que para as leis todos deva ser iguais em todos os aspectos. Segundo essa interpretação o princípio da igualdade será violado e, portanto, haverá discriminação injusta quando as leis prescrevem um tratamento

242 • Ações afirmativas e igualdade de oportunidades desigual entre os cidadãos para o qual não exista uma justificativa razoável. (VELASCO, 2009, p. 123).

Nesse sentindo a autora conclui que a igualdade formal deve ser respeitada, mas que isso não anularia a necessidade de o Estado promover a igualdade material, pois o paradoxo do sentido de igualdade nos informa que ao se tratar formalmente igual, no momento da aplicação da lei os sujeitos destinatários na norma podem ser tratados desigualmente (por meio de distinções legais). Além do que, tratar alguém de fato desigualmente pode promover a igualdade material, substancial. Outra distinção bastante interessante que a autora faz diz respeito às noções de igualdade política e igualdade como direito fundamental. Na primeira perspectiva, considera-se que a igualdade é um fim a ser atingido, assim, dentro de uma visão consequencialista, a igualdade será atingida tão-somente quando considerado o resultado alcançado por determinada política pública, o que para a autora e bastante difícil de ser avaliado faticamente. Outra forma de se ver a igualdade é como um direito fundamental e assim, numa perspectiva deontológica, esse direito deve ser sempre resguardado, não sendo a principal preocupação os meios pelos quais se atingirá esse propósito. Nas palavras da autora: A questão que deve ser discutida é se esse tratamento formalmente desigual, inevitável em toda política igualitária, tem que ser interpretado como uma violação do direito fundamental à igualdade, um direito que não deve ser violado por nenhuma política – menos ainda por uma política destinada a promover a igualdade. Essa é a discussão. (VELASCO, 2009, p. 130-131).

Dentro desse contexto, pode-se sustentar então que as políticas públicas que visam a igualdade material, desde que atinjam o propósito de resguardar o direito fundamental da igualdade, não seriam no seu bojo injustas. No entanto, no que tange ao resultado de eventual política pública de fomento à igualdade, não há como se garantir justiça quanto aos fins atingidos ou não, pois aqui há o elemento da liberdade do sujeito em jogo, algo difícil de aferir e significativo subjetivamente para casa pessoa. Com relação às políticas públicas de cotas raciais nas univer-

Priscila da Silva Barboza • 243 sidades, a autora pondera que, na sua leitura, tais políticas pretendem minimizar discriminações injustas no passado. Assim, dentro de um conceito deontológico de igualdade, tais políticas seriam justas em um sentido de moralidade (“moralmente bom ou devido”). A teoria da justiça que a autora mais pondera na sua defesa das cotas é o sentido moral de reconhecimento, salientando que aqui o sentido de igualdade deve ser visto em uma perspectiva mais ampla, ou seja, de não subordinação, de não dominação (VELASCO, 2009, p. 133). Dessa forma, parece-lhe justo que as políticas de cotas raciais existam para corrigir essa injusta falha histórica, no intuito de resguardar o direito fundamental da igualdade no seu sentido formal. Em resumo, pode-se sustentar, juntamente com a Marina que as ações afirmativas sob um ponto de vista filosófico não seriam injustas, ainda que tecer considerações sob sua carga de justiça seja bem mais complexo, pois atrelado a uma análise de eficácia dessas medidas. Sabendo-se que as políticas de ações afirmativas não ferem o princípio da igualdade sob o ponto de vista de seu direito fundamental, muito pelo contrário, ajudariam a fomentá-lo, pode-se sustentar sua não injustiça. Ademais, pretendem uma forma de discriminação positiva, o que não seria também injusto, já que ampliam o conceito de igualdade (além da garantia de não discriminação) para reparar diferenças históricas marcadas por subordinações e dominações. Segundo a autora, no que tange à aceitação do critério da utilização da cor para estar atrelado ou não ao direito de cotas raciais no ingresso das universidades federais no Brasil, há que se atentar para o fato de que “está ligada à posse de determinados traços permanentes e imodificáveis e que são avaliados de forma negativa pela maior parte da sociedade.” (VELASCO, 2009, p. 118). Assim, tendo por base as alterações de visões de mundo que o estado de bem-estar social trouxe no século XX, as concepções que agregam valor às regras formais de igualdade, passaram a admitir a igualdade material dentro desse cenário como uma faceta importante para a justiça. Por ora, faz-se necessário discorrer a respeito de como essas concepções de justiça são tratadas dentro de uma perspectiva sociológica: de atores em disputa no tecido social. O objetivo é pensar, posteriormente, como as questões de raça, meritocracia e igualdade são pesadas no Brasil. Mas antes, cabe considerar a carga de luta

244 • Ações afirmativas e igualdade de oportunidades histórica que tais questões envolvendo ações afirmativas possuem.

Pensando a noção de igualdade no Brasil Pretende-se tecer algumas considerações acerca de como o princípio da igualdade atrelado às ações afirmativas poderia ser pensado no Brasil, já que este precisa de um valor para completar o seu sentido conforme visto acima. O objetivo não é esgotar o tema, obviamente, mas apenas traçar uma linha de argumentação. Optou-se por tratar o tema sob o ponto de vista de que atores estão em disputa na estrutura social em torno desse conceito e que encontram na constituição de direitos uma forma de angariar poder simbólico para objetivarem os seus interesses, principalmente no que se refere a direitos de minorias como as ações afirmativas. Fabiano Engelmann (2009) tendo por base o autor francês Pierre Bourdieu retratou, dentre tantas questões, a forma como os “novos direitos” institucionalizaram-se no Brasil por meio de pesquisa de campo realizada nos Estados do extremo Sul do Brasil. Destacou que a temática dos “novos direitos” poderia ser pensada a partir de uma ressignificação de conceitos bastante tradicionais ao direito dentro do campo jurídico, como, por exemplo, o conceito de igualdade no que se refere ao direito das mulheres, ou no caso do artigo em tela, nas ações afirmativas. Dito de outra forma, ao conceito de igualdade formal tão caro ao direito seria atribuído um novo sentido – igualdade material, de fato – o qual se prestaria a afirmar direitos de grupos não tradicionais que pretendem ter suas necessidades por recursos e prestígio social atendidas. As cotas raciais em universidades federais seriam um exemplo, portanto, de como a ressignificação do conceito de igualdade no tecido social tornou possível a aceitação da noção atual de igualdade material e, assim, a possibilidade de uma medida jurídica afirmativa que pretende reconhecer esse grupo tido por minoritário (negros, pardos, índios). Essa perspectiva vem no sentido de corroborar com a ideia de que os atores disputam recursos escassos no tecido social com vistas a satisfazerem suas necessidades o que provoca um reflexo direto nas noções de justiça sustentadas em nossas codificações. Aprofundando essa perspectiva,

Priscila da Silva Barboza • 245 [...] não é de modo abstrato que os indivíduos obedecem às normas de sociedade, mas, necessariamente, através da ocupação de posições e do consequente desempenho de papéis. Ocupando posições é que o homem usufrui de direitos e contrai deveres, os quais se manifestam através de expectativas de comportamento padronizadas. (VILA NOVA, 2000, p. 126).

Ou seja, os indivíduos no processo de socialização ocupam posições sociais diferenciadas nas sociedades. Tais posições distribuem-se conforme os sujeitos consigam mobilizar mais ou menos recursos dentro da estrutura hierárquica das sociedades, está-se diante do conceito de status social. A cada status há um correspondente papel social que se expressa por meio de comportamentos. Assim, os sujeitos são atores sociais com papéis definidos conforme a posição social que ocupam. Ou seja, o fato de alguém expressar determinado gênero, desempenhar certa atividade profissional, frequentar certa escola, implica o pertencimento a um ou outro(s) status social(ais) e, assim, no desempenho de determinados papéis nas sociedades (VILA NOVA, 2000, p 117-120). Dentro do objeto de análise desse artigo, as ações afirmativas para o reconhecimento da identidade de certas minorias se justificariam porque os membros de tais grupos teriam ocupado ao longo do tempo status sociais que não lhe garantiam grande prestígio e estima. Conforme afirma Vila Nova: “O prestígio pertence ao status, a estima decorre do desempenho do indivíduo em determinado status.” (2000, p. 118). Assim, tais grupos por meio de uma intensa luta política engajaram-se no sentido de exigir “novos direitos” para si, isto é, ressignificaram certos conceitos tradicionais ao direito com vistas a constituírem espaços sociais e jurídicos para a atuação de seus grupos minoritários. Dentro desse contexto, Joan Scott no artigo “O enigma da igualdade” (ano???) chamou a atenção para o caráter de luta histórica que as ações afirmativas possuem, além do mais a noção de igualdade possui inúmeros paradoxos, cujos polos seriam interdependentes. A autora elenca três paradoxos: 1. A igualdade é um princípio absoluto e uma prática historicamente contingente. 2. Identidades de grupo definem indivíduos e renegam a ex-

246 • Ações afirmativas e igualdade de oportunidades pressão ou percepção plena de sua individualidade. 3. Reivindicações de igualdade envolvem a aceitação e a rejeição da identidade de grupo atribuída pela discriminação. Ou, em outras palavras: os termos de exclusão sobre os quais essa discriminação está amparada são ao mesmo tempo negados e reproduzidos nas demandas pela inclusão. (SCOTT, 2005, p. 15) Ou seja, o conceito de igualdade é absoluto e também se constitui no contexto social, político e histórico. Assim, dependendo do grupo considerado, ter-se-á certas características. Outro fato que chama atenção é que o conceito de igualdade enfoca ora a nuance individual, ora a perspectiva grupal, ainda que essas perspectivas trabalhem juntas de forma interdependente. Ou seja, grupos de mulheres que defendem direitos para si, o fazem com o intuito de buscarem igualdade sexual frente a todos, por exemplo. A grande questão é que o fazem enquanto pertencentes a um grupo (mulheres). Então querem ter sua individualidade respeitada enquanto sujeitos iguais, mas utilizam-se justamente do pertencimento a um grupo para isto. Tendo em vista tais paradoxos, a autora chama a atenção para o caráter de constituição histórica dos direitos de igualdade para certos grupos minoritários, pois o que justificaria que existam no Brasil cotas raciais para negros, pardos e índios e não para ruivos ou albinos? Nas palavras de Scott: que indivíduos e grupos, que igualdade e diferença não são opostos, mas conceitos interdependentes que estão necessariamente em tensão. As tensões se resolvem de formas historicamente específicas e necessitam ser analisadas nas suas incorporações políticas particulares e não como escolhas morais e éticas intemporais. (SCOTT, 2005, p. 14). Meu argumento tem sido o de que a tensão entre identidade de grupo e identidade individual não pode ser resolvida; ela é uma consequência das formas pelas quais a diferença é utilizada para organizar a vida social. (SCOTT, 2005, p. 22).

A justificativa de que esses direitos encontram vazão como luta política e assim mobilizam prestígio para si que se reflete em leis, por exemplo ações afirmativas, talvez consiga explicar o motivo de alguns grupos mobilizarem direitos e outros não. Ademais,

Priscila da Silva Barboza • 247 pode ajudar a pensar o porquê que determinados grupos legitimam a necessidade de direitos frente a outros grupos (negros em face de brancos, mulheres em face dos homens, homossexuais em face de heterossexuais, etc.). Tendo em vista que há uma disputa no campo social por direitos em função das diversas posições sociais ocupadas pelos sujeitos e que isso tem relação com a estima e o prestigio dos indivíduos no contexto social, faz-se necessário pensar como as ações afirmativas detém ou não legitimidade enquanto direitos na realidade brasileira. Para tanto cabe trazer as considerações de Jessé de Souza no livro “A ralé brasileira: como é e como vive” (2011), tem-se por objetivo pensar as categorias teóricas formuladas por ele a respeito das causas sobre a desigualdade social. Jessé de Souza refere que o aporte teórico clássico construído para explicar o Brasil não teria conseguido adentrar nas causas das desigualdades sociais, mas apenas demonstrado seus efeitos. Nas palavras de Jessé: o que Buarque chama de personalismo é uma forma de viver em sociedade que enfatiza os vínculos pessoais como amizade ou ódio pessoal, em desfavor de inclinações impessoais, de quem vê o outro com certa distância emocional [....] A cultura do personalismo nos lega o ‘homem cordial’, ou seja, literalmente o homem que se deixa levar pelo coração, pelos bons ou maus sentimentos e inclinações que acompanham nossa vida afetiva espontânea [...] em contraposição à esfera da política e da economia que exigem disciplina, distanciamento afetivo e racionalidade instrumental [....] Por conta disso, o Estado entre nós seria dominado pelo ‘patrimonialismo’, ou seja, por uma gestão da política baseada no interesse particular por oposição ao interesse público. (SOUZA, 2011, p. 55).

Assim conceitos como “personalismo” e “patrimonialismo” tratados por Sérgio Buarque de Holanda, e a visão positiva acerca da mestiçagem brasileira trazidos por Gilberto Freite, não conseguiram tornar claros os mecanismos que geram as diferenças sociais. Assim, serviriam apenas para construir um “mito da brasilidade” que obscureceria as verdadeiras causas de tais disparidades. Nesse sentido, Jessé propõe outro modelo explicativo que é o advindo da teoria do reconhecimento de Charles Taylor. Nas palavras do autor:

248 • Ações afirmativas e igualdade de oportunidades Se vimos que toda a atribuição de ‘respeito’ e de ‘reconhecimento social ‘ na modernidade depende da ideia de ‘trabalho útil’, como ficam aquelas sociedades que não lograram universalizar os pressupostos para o trabalho produtivo útil para todas as classes? Esse tema para mim é a chave para a superação de paradigmas conservadores e superficiais como os do personalismo e das versões hibridas do personalismo/ liberalismo entre nós. (SOUZA, 2011, p. 118).

Ou seja, conceitos como “personalismo” e “patrimonialismo” não são modelos teóricos capazes de problematizar o dilema que a visão contemporânea ocidental de mundo pautada no “trabalho útil” refere. Jessé alega que este conceito traz a ideia de que a falta de aptidão para os estudos escolares ou os eventuais dissabores profissionais seriam causados por escolha dos sujeitos que não se esforçam o suficiente e, assim, optam por experimentarem eventuais fracassos, assumindo as responsabilidades por isso de forma individual. Jessé reflete que existiriam motivos advindos de contextos sociais e, portanto, de fundo coletivo e que passam despercebidos em função da construção de mundo que temos a respeito do Brasil por meio das perspectivas trazidas por esse viés clássico. Jessé (2011) discorreu em seu livro no sentido de que o mérito individual seria uma “ilusão” “de que os privilégios modernos são ‘justos’” (p. 43). Jessé chama a atenção para o fato de o contexto social (contexto familiar, presença de classes e economia moral, mercado) influir nas condições individuais para se alcançar o sucesso da modernidade (posição de prestígio social por meio de importantes cargos profissionais, por exemplo). Assim, existiriam outros elementos coletivos (estima social, autoconfiança) que influem na conquista de eventuais posições sociais e profissionais dos sujeitos, não sendo adequado condicionar conquistas ao aspecto individual apenas (autodisciplina, autocontrole, pensamento prospectivo etc., aspetos bastante caros ao “trabalho útil” moderno.)

Considerações finais Nesse contexto, percebe-se que as noções “personalismo”” e “patrimonialismo” não dão conta de explicar os mecanismos da desigualdade social, mas a noção de reconhecimento expressada por Jessé de Souza talvez seja capaz, principalmente no que se refere à

Priscila da Silva Barboza • 249 questão da meritocracia. Esta noção está intimamente atrelada ao dilema encontrado nas argumentações a favor e contra ao ingresso de alunos por meio de cotas raciais e sociais nas universidades federais. No que se refere tão somente à questão racial (negros, pardos e índios) torna-se ainda mais desafiador pensar um conceito de justiça atrelado a tais ações afirmativas, já que se está diante de direitos que pretendem resguardar a identidade de determinados sujeitos, ou seja, está ligada a uma questão simbólica. Ademais, inevitável uma contraposição de grupos versos outros grupos frente aos quais se pretende igualdade de fato, conforme tratado por Marina Velasco e Joan Scott quando tratou-se acerca dos paradoxos do conceito de igualdade. Nesse sentido, cabe relatar a recente publicação do acórdão fruto da decisão que definiu no Brasil a aceitação de cotas raciais no ingresso dos vestibulares das universidades federais, a ADPF 186DF de 2010. No voto do relator Ricardo Lewandoski, cuja opinião foi acatada de forma unânime pelos demais Ministros, percebe-se que a discussão jurídica girou em torno de questões como reconhecimento simbólico dos negros em função da submissão e dominação histórica a que estiveram expostos ao longo de séculos de escravidão, bem como a respeito da conturbada aceitação do critério da auto declaração ou da hetero-declaração como razoáveis para se pautar a utilização da ação afirmativa. Ou seja, as questões tratadas até então no artigo estão em sintonia com o “entendimento de justiça” exposto pela Corte Constitucional brasileira, a qual reconhece a necessidade desse resgate histórico de estima e prestígio relegados a essa minoria. Por fim, ainda que as ações afirmativas signifiquem uma disputa bastante conturbada no tecido social em torno da ressignificação do conceito tradicional de igualdade formal e isso esteja presente em trocas de argumentos travados na esfera pública e até mesmo nos espaços sociais privados, o Supremo Tribunal Federal entendeu de forma unânime que se faz justiça ao se implementar o conceito da igualdade material na realidade brasileira.

Referências BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental n,º 186 – Distrito Federal, 2010.

250 • Ações afirmativas e igualdade de oportunidades DOMINGUES, Petrônio. As ações afirmativas para negros no Brasil: o início de uma reparação histórica. Revista Brasileira de Educação, núm. 29, maio-ago; 2005, pp. 164-176. Disponível em: http:// www.redalyc.org/articulo.oa?id=27502913. Acessado em: agosto de 2014. ENGELMANN, Fabiano. Sociologia do campo jurídico: juristas e usos do direito. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2009. GEMAA - Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa. Ações afirmativas. 2011. Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Disponível em: http:// gemaa.iesp.uerj.br/dados/o-que-sao-acoes-afirmativas.html. Acesso em: novembro de 2014. SCOTT, Joan W.. O enigma da igualdade. Rev. Estud. Fem.,  Florianópolis ,  v. 13, n. 1, abr.  2005 .   Disponível em . Acessos em  30  nov.  2014.  http://dx.doi. org/10.15 90/S0104-026X2005000100002. SOUZA Jessé. A ralé brasileira quem é e como vive. Belo Horizonte: UFMG, 2011. VELASCO, Marina. O que é justiça? O justo e o injusto na pesquisa filosófica. Um exemplo: as cotas raciais universitárias. Rio de Janeiro: Vieira & Lent, 2009. VILA NOVA, Sebastião. O indivíduo na Sociedade. In: Introdução à sociologia. 5 ed. São Paulo: Atlas, 2000.

A EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS SOCIAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS: UM DESDOBRAMENTO DO PROCESSO DE CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO Marcos Felipe Lopes de Almeida1

Resumo O presente artigo busca estabelecer uma relação entre o processo de constitucionalização do Direito, com a sua devida contextualização, e a eficácia dos direitos fundamentais sociais nas relações privadas. A partir disso, são elencados três argumentos favoráveis à tese da eficácia, os quais são construídos a partir da noção de fundamentalidade dos direitos sociais e como a adoção desta tese se coaduna com os preceitos constitucionais. Por fim, são apresentadas ementas de julgados de tribunais brasileiros em casos relativos a direitos fundamentais sociais, sendo analisada a argumentação empregada pelos magistrados para a fundamentação da sua decisão. Palavras-chave: direitos fundamentais sociais; eficácia; relações privadas.

Abstract The present article seeks to establish a connection between the constitucionalization of the Law and the efficaciousness of the fundamental social rights in private relations. Then, three are the arguments in favor of the efficaciousness thesis, based on fundamentality of social rights and on constitucional principles. Finally, some summary judgements of Brazilian courts in cases involving fundamental social rights are presented, analyzing the argumentation employed by judges to motivate their decisions keywords: fundamental social rights; efficaciousness; privaAcadêmico do curso de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora. Brasil. Endereço eletrônico: [email protected].

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252 • A eficácia dos direitos fundamentais sociais nas relações privadas te relations.

Introdução A temática da eficácia dos direitos fundamentais é cercada por controvérsias. Com o advento do constitucionalismo e a positivação de direitos fundamentais, acreditava-se que estes eram oponíveis apenas perante o Estado. No entanto, com o passar do tempo, foi percebida a relevância de tais direitos para a vida em sociedade, sendo reconhecida, inclusive jurisprudencialmente, a eficácia dos direitos individuais sobre a esfera particular. No que tange aos direitos fundamentais sociais, cuja dimensão precípua é prestacional, apontam-se alguns entraves à realização da eficácia, principalmente com base na alegação de que se estaria praticando uma ingerência sobre a esfera jurídica individual. Com o decorrer deste trabalho, intenta-se corroborar com a adoção da tese da eficácia, discorrendo, ainda, sobre os seus desdobramentos.

A constitucionalização do Direito Inicialmente, é preciso efetuar uma contextualização do processo que se tenciona discorrer. O neoconstitucionalismo – ou novo direito constitucional –, corolário da filosofia do pós-positivismo, tem como características principais: reconhecimento da força normativa da Constituição – em razão da sua importância, será explicado de forma mais minuciosa adiante – ; expansão da jurisdição constitucional, marcada pela consolidação do controle de constitucionalidade, bem como a formação de tribunais constitucionais; e a nova interpretação constitucional, a qual nada mais é que uma modalidade da interpretação jurídica, atenta aos paradigmas constitucionais, como a supremacia da Constituição, a presunção de constitucionalidade das normas e a atribuição de normatividade aos princípios (Barroso 2007, 5-12). A afirmação do neoconstitucionalismo foi responsável pela posição superior sustentada pela Constituição no ordenamento jurídico. De mero documento político, como outrora, capaz apenas de traçar os fins estatais, agora a Constituição passa a gozar de imperatividade, constituindo-se em documento jurídico, o que caracteriza o ganho de força normativa. A partir de então, há o reconhecimen-

Marcos Felipe de Almeida• 253 to de direitos subjetivos cujos titulares são os cidadãos, de modo que o desrespeito às normas constitucionais enseja a deflagração de mecanismos capazes de fazer cumprir o previsto normativamente. A Lei Fundamental torna-se, em razão de ser o ápice da hierarquia normativa, o referencial interpretativo do ordenamento infraconstitucional, levando-se em conta os valores positivados em seu texto. Nesse sentido, insere-se o processo de constitucionalização do Direito, marcado pela atribuição de um papel central à Constituição, cabendo aos ramos infraconstitucionais do Direito manter coerência com esta. Há, então, uma clara superação da clássica dicotomia entre Direito Público e Privado, já que modernamente os dois campos encontram-se em relação de interdependência, com geração de influências recíprocas. O processo de constitucionalização do Direito se dá de duas formas diversas: (1) presença de institutos tipicamente infraconstitucionais no texto constitucional; e (2) interferência de normas constitucionais no ordenamento infraconstitucional. A primeira modalidade é perceptível ao se analisar a Constituição Federal de 1988, uma vez que não contém apenas aspectos relativos à organização estatal e ao reconhecimento de direitos fundamentais. O constituinte foi além: não se ateve aos conteúdos materialmente constitucionais, também previu questões de natureza civil, penal, entre outros ramos jurídicos (Sarlet 2007, 92). Enfoca-se, aqui, na segunda via de constitucionalização, uma vez que é indiscutível a índole constitucional dos direitos fundamentais, os quais são de grande expressão no texto constitucional brasileiro vigente.

A eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas Inicialmente, os direitos fundamentais eram entendidos como oponíveis apenas perante o Estado, em razão da gênese do constitucionalismo, o qual surgiu com o intento de frear a atuação estatal arbitrária. Portanto, não era reconhecida a vinculação dos particulares aos direitos fundamentais. Com o passar do tempo, tal compreensão foi superada, chegando-se, primeiramente, ao entendimento de que apenas os direitos de liberdade teriam eficácia nas relações privadas, pois estes

254 • A eficácia dos direitos fundamentais sociais nas relações privadas demandam apenas uma postura abstencionista, não implicando onerosidade ao particular. Esse entendimento chegou a ser prolatado pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Recurso Extraordinário 201.819/RJ. EMENTA: SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. UNIÃO BRASILEIRA DE COMPOSITORES. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA DA AMPLA DEFESA E DO CONTRADITÓRIO. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. RECURSO DESPROVIDO. I. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. As violações a direitos fundamentais não ocorrem somente no âmbito das relações entre o cidadão e o Estado, mas igualmente nas relações travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado. Assim, os direitos fundamentais assegurados pela Constituição vinculam diretamente não apenas os poderes públicos, estando direcionados também à proteção dos particulares em face dos poderes privados. [...] A autonomia privada, que encontra claras limitações de ordem jurídica, não pode ser exercida em detrimento ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros, especialmente aqueles positivados em sede constitucional, pois a autonomia da vontade não confere aos particulares, no domínio de sua incidência e atuação, o poder de transgredir ou de ignorar as restrições postas e definidas pela própria Constituição, cuja eficácia e força normativa também se impõem, aos particulares, no âmbito de suas relações privadas, em tema de liberdades fundamentais. [...] (BRASIL 2006) (grifo nosso)

Tal como se pode perceber pela citação da ementa do julgado, fica claro, por parte do Supremo Tribunal Federal, a adoção da teoria da eficácia direta dos direitos fundamentais individuais. Reconhece-se que não apenas o Poder Público pode assumir a posição de violador de direitos fundamentais, devendo-se, então, também incluir os particulares nessa categoria. Assevera-se, ainda, que os particulares também estão sujeitos às imposições constitucionais, não podendo se escusar da obediência com base na autonomia da vontade.

Marcos Felipe de Almeida• 255 No entanto, em que estes direitos diferem dos direitos fundamentais sociais? Estes últimos também não gerariam as mesmas implicações que os individuais? Ao considerar a dimensão prestacional dos direitos fundamentais sociais, tem-se que estes requerem uma postura positiva, tendente à concretização desses direitos. Em razão dessa característica, há grande controvérsia no tema da vinculação destes direitos às relações privadas. Para superação dessa discussão, alguns argumentos merecem ser levantados a favor da tese da eficácia nas relações entre particulares.

A efetividade da Constituição Inicialmente, a negação da vinculação dos direitos fundamentais sociais significa negar a efetividade da própria Constituição. A Lei Fundamental representa os anseios de uma sociedade dentro de um contexto histórico. A inobservância dos direitos fundamentais sociais positivados no texto constitucional representa ignorar o ideal de justiça social delineado pelo Constituinte, tendo em vista que tais direitos têm a função precípua de realizar a igualdade material. Apesar de os particulares estarem numa relação, em tese, horizontal, é necessário considerar que, faticamente, isso não ocorre. Em algumas relações privadas, há evidente vantagem de uma parte sobre a outra, impedindo a plena fruição de direitos por parte daquele que se encontra em desvantagem. Portanto, tal situação não pode ser ignorada, pois se estaria acobertando a violação de um direito fundamental, o que poderia gerar abalos na dignidade humana.

O mínimo existencial O mínimo existencial deve ser entendido como o conjunto de direitos fundamentais sociais mínimos, capaz de garantir uma existência digna, não bastando a mera sobrevivência. Além disso, é composto não só de um mínimo vital, mas também de um mínimo sociocultural. O conteúdo do mínimo existencial é variável conforme a realidade socioeconômica de cada país. Com isso, nem todos os di-

256 • A eficácia dos direitos fundamentais sociais nas relações privadas reitos fundamentais sociais compõem-no, uma vez que o mínimo existencial visa a concretização da dignidade humana em um grau elementar. Ademais, o mínimo existencial é composto pelo núcleo essencial dos direitos fundamentais sociais mínimos. O mínimo existencial é orientado pela ideia de igualdade material, consistindo em um direito subjetivo definitivo, portanto é justiciável, isto é, em caso de violação, é exigível o seu cumprimento imediato (Toledo 2014, 22). Desrespeitar o mínimo existencial significa violar, flagrantemente, a dignidade humana, conferindo ao indivíduo uma existência incompatível com os preceitos constitucionais. Nesse sentido, faz-se necessária a vinculação dos particulares aos direitos fundamentais sociais como forma de resguardar o mínimo existencial. Negar a admissão da tese que ora é objeto deste trabalho poderia representar a chancela de uma violação ao mínimo existencial, a qual não deve ser acolhida.

O princípio da solidariedade Outro argumento levantado é o do Princípio da Solidariedade: superada a concepção individualista, característica do sistema liberal, surgem ideias pautadas na solidariedade, isto é, uma noção de responsabilidade social. As origens da solidariedade remontam ao Cristianismo, a partir dos preceitos de amor ao próximo. Posteriormente, dado o quadro de desigualdade social, não só o agir estatal é guiado pela busca de igualdade material, mas também a atuação individual deve se orientar nesse sentido. Ainda que se vislumbre uma origem moral, a solidariedade tem respaldo no ordenamento jurídico brasileiro: A Constituição Federal de 1988 estabelece, em seu art. 3º, inciso I – como objetivo fundamental da República –, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Ademais, no preâmbulo, ainda que não seja reconhecida a sua natureza de norma jurídica, não se pode desprezar sua função hermenêutica. Tal dispositivo prevê o estabelecimento de uma sociedade fraterna, pluralista, sem preconceitos e fundada na harmonia social. Segundo Rosso (2008, 25), a solidariedade funciona como força antagônica ao individualismo vigente na sociedade contemporânea, de forma a caracterizar particulares como corresponsáveis, juntamente com o Estado, pelo fornecimento de condi-

Marcos Felipe de Almeida• 257 ções materiais mínimas àqueles que não as tem, respeitando-se o mínimo existencial. A constatação da necessidade de atribuição de corresponsabilidade se deu devido à crise de financiamento do Estado Bem-estar Social, o que obsta o atendimento a todas as demandas da sociedade.

A ponderação entre o direito fundamental social e a autonomia Reconhecer a vinculação dos particulares aos direitos fundamentais sociais implicará em interferência na autonomia do particular obrigado a prestar o direito de outro. A tese da eficácia tem como escopo assegurar a realização de direitos fundamentais sociais por particulares, sem que estes possam se eximir da sua prestação. No entanto, admitir a eficácia é apenas o primeiro passo. Posteriormente, é preciso saber qual a sua extensão, o que será definido com base no caso concreto. A ponderação no caso concreto levará em conta, de um lado, o direito fundamental social e, do outro, a autonomia privada. Para guiar esse processo ponderativo, alguns elementos devem ser levados em consideração (Almeida and Augustin 2010, 4530). O primeiro elemento é a situação de (des)igualdade entre as partes: quanto maior a desigualdade fática, maior a necessidade de tutela do direito fundamental social discutido, uma vez que a assimetria dificulta o exercício da autonomia da vontade das partes mais débeis. O segundo elemento é a essencialidade do bem jurídico: quanto mais essencial este for para a vida humana, maior será a proteção do direito fundamental social; obviamente, em casos de bens supérfluos, a tutela do direito será menos intensa.

Jurisprudência brasileira Verificam-se, na jurisprudência brasileira, casos em que se afirma o dever de particulares efetivarem os direitos fundamentais sociais de outros. No entanto, os magistrados não fazem isso expressamente, não assumem o ônus argumentativo de decidirem com base na eficácia direta de tais direitos. As decisões apenas se limitam a reconhecer a violação do direito fundamental objeto do

258 • A eficácia dos direitos fundamentais sociais nas relações privadas caso. PLANO DE SAÚDE. LIMITE TEMPORAL DE INTERNAÇÃO. CLÁUSULA ABUSIVA. É abusiva a cláusula que limita no tempo a internação do segurado, o qual prorroga a sua presença em unidade de tratamento intensivo ou é novamente internado em decorrência do mesmo fato médico, fruto de complicações da doença, coberto pelo plano de saúde. O consumidor não é senhor do prazo de sua recuperação, que, como é curial, depende de muitos fatores, que nem mesmo os médicos são capazes de controlar. Se a enfermidade está coberta pelo seguro, não é possível, sob pena de grave abuso, impor ao segurado que se retire da unidade de tratamento intensivo, com o risco severo de morte, porque está fora do limite temporal estabelecido em uma determinada cláusula. Não pode a estipulação contratual ofender o princípio da razoabilidade, e se o faz, comete abusividade vedada pelo art. 51, IV, do Código de Defesa do Consumidor. Anote-se que a regra protetiva, expressamente, refere-se a uma desvantagem exagerada do consumidor e, ainda, a obrigações incompatíveis com a boa-fé e a equidade. (Brasil 2002) (grifo nosso).

No caso em tela, discutido no STJ, o direito à saúde está envolvido, no entanto não há referência a esse direito para conduzir a fundamentação da decisão tomada pelo juízo. Percebe-se que há remissão a dispositivo infraconstitucional para se sustentar o dever que uma parte está incumbida de cumprir. EMENTA: DIREITO DO CONSUMIDOR - PROCESSO CIVIL - RECURSO DE APELAÇÃO - AÇÃO COMINATÓRIA - PLANO DE SAÚDE - APLICABILIDADE DO CDC - SÚMULA 469 DO STJ - TRATAMENTO DE CÂNCER - FORNECIMENTO DE QUIMIOTERAPIA COM MEDICAMENTO DENOMINADO CAELIX (DOXORRUBICINA LIPOSSOMAL) - NEGATIVA DA OPERADORA DE PLANO DE SAÚDE - INDICAÇÃO DO TRATAMENTO - MÉDICO CREDENCIADO DO PLANO DE SAÚDE - OBRIGATORIEDADE. 1. A relação jurídica formada entre os associados e os convênios de saúde subsume-se aos ditames do Código de Defesa do Consumidor. 2. Os contratos de plano de saúde são pactos de adesão, sendo que suas cláusulas devem ser interpretadas em favor do

Marcos Felipe de Almeida• 259 consumidor aderente - inteligência do artigo 47 do CDC. 3. Ao contratar o seguro de saúde, pretende o contraente, através do pagamento de uma quantia mensal, a garantia de prestação de serviços médicos e hospitalares em caso de necessidade, incluído aí, sem dúvida, a cobertura do procedimento de quimioterapia com o medicamento denominado Caelix (doxorrubicina lipossomal) para o tratamento de câncer de endométrio, suas recidivas e metástases, ou seja, de doença que lhe traz dor, sofrimento e risco de morte, o que infelizmente acabou por acontecer ao longo do presente processo. 4. Tem-se como inquestionável que eventual cláusula do contrato em questão deve de fato sucumbir ao que restou pactuado pelas partes com a extensão necessária ao atendimento da parte autora, não sendo lícito que se excluam da assistência contratada o tratamento a que fez jus, mormente em razão da necessidade de serem interpretadas em seu favor as cláusulas contratuais que se revelem de significado dúbio ou de difícil entendimento. 5. A obrigação de cobrir tratamento ou procedimento solicitado por médicos conveniados deve prevalecer sobre a cláusula limitativa de direitos, pois, repita-se, as cláusulas dos contratos de plano de saúde devem ser interpretadas em favor do consumidor aderente - inteligência do art. 47 do CDC. 6. A quimioterapia com o medicamento indicado à falecida autora cuidava-se de prestação de serviço médico e hospitalar decorrente de moléstia cujos efeitos poderiam ocasionar, como de fato ocasionaram, a sua morte, de maneira que a negativa da parte requerida mostrou-se incompatível com a boa-fé e com a finalidade da prestação dos serviços contratados e cobertos, principalmente por se tratar de matéria afeta à garantia fundamental da saúde, tal como prevista no texto constitucional de 1988 (artigos 6º, caput, e 196 da CR/88). (Minas Gerais 2014) (grifo nosso)

No caso apresentado há discussão, no TJMG, acerca da cobertura oferecida pelo plano de saúde. Tal como se pode perceber, o magistrado, na sua fundamentação, recorre constantemente à legislação consumerista, isto é, infraconstitucional. A afirmação do direito da autora é feita com base na interpretação em favor do consumidor aderente. Não há manifestação acerca da eficácia direta do direito fundamental social à saúde, o qual é citado apenas para evidenciar a relevância do interesse da autora discutido em juízo.

260 • A eficácia dos direitos fundamentais sociais nas relações privadas PROCESSO CIVIL. DIREITO CIVIL. EXECUÇÃO. LEI 8.009/90. PENHORA DE BEM DE FAMÍLIA. DEVEDOR NÃO RESIDENTE EM VIRTUDE DE USUFRUTO VITALÍCIO DO IMÓVEL EM BENEFÍCIO DE SUA GENITORA. DIREITO À MORADIA COMO DIREITO FUNDAMENTAL. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. ESTATUTO DO IDOSO. IMPENHORABILIDADE DO IMÓVEL. 1. A Lei 8.009/1990 institui a impenhorabilidade do bem de família como um dos instrumentos de tutela do direito constitucional fundamental à moradia e, portanto, indispensável à composição de um mínimo existencial para vida digna, sendo certo que o princípio da dignidade da pessoa humana constitui-se em um dos baluartes da República Federativa do Brasil (art. 1º da CF/1988), razão pela qual deve nortear a exegese das normas jurídicas, mormente aquelas relacionadas a direito fundamental. 2. A Carta Política, no capítulo VII, intitulado “Da Família, da Criança, do Adolescente, do Jovem e do Idoso”, preconizou especial proteção ao idoso, incumbindo desse mister a sociedade, o Estado e a própria família, o que foi regulamentado pela Lei 10.741/2003 (Estatuto do Idoso), que consagra ao idoso a condição de sujeito de todos os direitos fundamentais, conferindo-lhe expectativa de moradia digna no seio da família natural, e situando o idoso, por conseguinte, como parte integrante dessa família. 3. O caso sob análise encarta a peculiaridade de a genitora do proprietário residir no imóvel, na condição de usufrutuária vitalícia, e aquele, por tal razão, habita com sua família imóvel alugado. Forçoso concluir, então, que a Constituição Federal alçou o direito à moradia à condição de desdobramento da própria dignidade humana, razão pela qual, quer por considerar que a genitora do recorrido é membro dessa entidade familiar, quer por vislumbrar que o amparo à mãe idosa é razão mais do que suficiente para justificar o fato de que o nu-proprietário habita imóvel alugado com sua família direta, ressoa estreme de dúvidas que o seu único bem imóvel faz jus à proteção conferida pela Lei 8.009/1990. 4. Ademais, no caso ora sob análise, o Tribunal de origem, com ampla cognição fático-probatória, entendeu pela impenhorabilidade do bem litigioso, consignando a inexistência de propriedade sobre outros imóveis. Infirmar tal decisão implicaria o revolvimento de fatos e provas, o que é defeso a esta Corte ante o teor da Súmula 7 do STJ.

Marcos Felipe de Almeida• 261 5. Recurso especial não provido. (Brasil 2002) (grifo nosso)

Aqui, há um caso de maior complexidade, que envolve a extensão da entidade familiar para se declarar a impenhorabilidade de bem de família. A impenhorabilidade é assegurada no ordenamento em respeito ao direito fundamental social à moradia, o qual comporta tanto uma dimensão negativa/abstencionista, quanto uma positiva/prestacional. No julgado em questão, discute-se a dimensão negativa, uma vez que há garantia do direito à moradia contra certas ingerências que possam se apresentar. Afirmar a impenhorabilidade do bem de família significa fortalecer o direito à moradia, impondo o seu respeito, inclusive para os particulares.

Conclusão A conexão existente entre o processo de constitucionalização do Direito e a tese sustentada neste trabalho é evidente, uma vez que o dito processo representa a consolidação da Constituição como marco axiológico-interpretativo de todo o ordenamento jurídico. Dessa forma, é necessária a conformidade de todo o Direito com a Constituição, estando toda a sociedade sujeita aos preceitos constitucionais. Apresentados os argumentos favoráveis à tese da eficácia direta dos direitos fundamentais sociais, impende reconhecê-la e adotá-la na prática jurídica. Deve-se destacar que os argumentos levantados pelo Supremo Tribunal Federal em favor da eficácia direta dos direitos fundamentais individuais nas relações entre particulares também são aplicáveis aos direitos fundamentais sociais. É perceptível que os magistrados não assumem o ônus argumentativo de fundamentarem suas decisões com base nas disposições constitucionais que preveem os referidos direitos, uma vez que se referem ao ordenamento infraconstitucional para motivar os seus posicionamentos. Possivelmente, enxergam que as normas de direitos fundamentais sociais têm cunho programático, indicando apenas os fins estatais a serem perseguidos, portanto, dependente de intermediação legislativa, a qual conferirá regulamentação infraconstitucional. Cumpre ressaltar que o exercício da ponderação será inevi-

262 • A eficácia dos direitos fundamentais sociais nas relações privadas tável, pois aqui se defende a eficácia direta e não a absoluta. Reconhecida a possibilidade de vinculação dos particulares aos direitos fundamentais sociais, será o processo ponderativo responsável por estabelecer a extensão da eficácia, tendo em vista as peculiaridades do caso concreto. Portanto, será a ponderação responsável por aplicar os direitos fundamentais sociais nas relações privadas, buscando-se a concretização da função precípua desses direitos, qual seja, a busca da igualdade material.

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Marcos Felipe de Almeida• 263 ta=20120423&tipo=5&formato=PDF. (Acessed 29 November, 2014). Minas Gerais, 2014. Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Apelação Cível 1.0024.10.173798-9/002, Relator: Desembargador Otávio Portes. http://www4.tjmg.jus.br/juridico/sf/proc_resultado2.jsp?listaProcessos=10024101737989002. (Acessed 29 November, 2014). Rosso, Paulo Sérgio. 2008. “Solidariedade e direitos fundamentais na Constituição Brasileira de 1988.” Revista de Direitos e Garantias Fundamentais 3: 11 – 30. Sarlet, Ingo Wolfgang. 2007. “Direitos fundamentais sociais, mínimo existencial e direito privado.” In Revista de Direito do Consumidor edited by Claudia Lima Marques. 90 – 125. São Paulo: Revista dos Tribunais. Toledo, Cláudia. 2014. “Fundamental Social Rights and Existenzminimum.” Philosophy Study 4: 20-27.

ANÁLISE DA INTERVENÇÃO JUDICIAL NO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE Mariana Dias Ferreira1

Resumo A doutrina da proteção integral em perfeita integração com o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana assegura às crianças e adolescentes, com absoluta prioridade, direitos fundamentais. Cabe à família, à sociedade e ao Estado o dever legal de assegura-los. Inserido nesse contexto, o Estado, por meio de entidades de atendimento, estabelece os recursos humanos e materiais necessários ao desenvolvimento dos programas e projetos sociopedagógicos das medidas socioeducativa, respeitando as garantias instituídas pela doutrina da Proteção Integral. Cumpre salientar que a atividade estatal deve reger toda a sua atuação pelas normas constitucionais, bem como toda sua atividade deve objetivar a realização das metas e propósitos estabelecidos pela Constituição, fixando atividades e serviços prioritários. Dessa forma, o legislador deixou clara a obrigação do administrador em dar preferência, com absoluta prioridade, a formulação e execução de políticas sociais públicas que visem à proteção à infância e juventude. Assim, a intervenção estatal sociopedagógica deve estar de acordo com o programa de atendimento e o efetivo respeito aos direitos e garantias infanto-juvenis. Há vários meios previstos na legislação brasileira que podem ser utilizados para exigir a atuação positiva estatal a fim de efetivar direitos fundamentais. O objetivo do presente trabalho é analisar a ação civil pública perpetrada pelo Ministério Público Estadual, por meio de suas promotorias da infância e juventude, contra o Estado do Rio Grande do Norte e a Fundação Estadual da Criança e do Adolescente (FUNDAC), a qual compete manter uma Graduanda em Direito na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Estagiária na 65ª Promotoria de Justiça da Comarca de Natal/RN. Brasil. E-mail: . 1

Mariana Dias Ferreira • 265 rede de atendimento para aplicação das medidas socioeducativas em meio fechado (semiliberdade e internação). A ação civil pública versa sobre a falta de gestão e o descumprimento dos preceitos da Lei do Sinase, requerendo a intervenção judicial da FUNDAC para seu reordenamento institucional, pedido este deferido em sede liminar. Constata-se a partir do presente estudo acadêmico que a intervenção judicial nesse caso é viável, uma vez que visa garantir o respeito à dignidade humana dos adolescentes que cumprem medidas socioeducativas, bem como da própria sociedade que sofre com o aumento da violência, assegurando seus direitos fundamentais que devem estar a sua disposição para o seu pleno exercício. Palavras – Chave: Direitos Fundamentais das Crianças e dos Adolescentes. Absoluta Prioridade. Sistema Socioeducativo. Políticas Públicas. Intervenção Judicial.

Considerações iniciais: Sistema Socioeducativo A Constituição Federal, de 05 de outubro de 1988, estabeleceu, em seu art. 227, a doutrina da proteção integral em perfeita integração com o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, assegurando às crianças e adolescentes, com absoluta prioridade, direitos fundamentais. Cabe à família, à sociedade e ao Estado o dever legal de assegura-los. As crianças e os adolescentes são reconhecidas como sujeitos de direitos e não mais meros objetos dependentes de seus responsáveis ou da arbitrariedade de alguma autoridade, como acontecia no cenário jurídico brasileiro até então (Rodrigo Augusto de Oliveira 2005 apud LAMENZA 2011, 18-19). A fim de dar efetividade à norma constitucional, foi promulgado o Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, o qual dispõe expressamente, em seu art. 1º “sobre a proteção integral à criança e ao adolescente”. Cumpre frisar que a doutrina da proteção integral adotou o princípio da descentralização político-administrativa. O legislador constituinte, no art. 227, § 7º, da Constituição Federal, reservou a execução dos programas de política assistencial às esferas estadual e municipal, bem como entidades beneficentes e de assistência social. Quanto à gestão, houve a revisão e reordenamento das re-

266 • Análise da intervenção judicial no sistema socioeducativo... lações entre esferas governamentais, pois limita as ações a cargo direto da União, ao deliberar sobre normas gerais e coordenação de programas assistenciais. Além do mais, restringe o papel dos Estados e amplia de forma considerável as competências e responsabilidades do Município (FUCHS 2010, 6). Inserida nesse contexto cabe ao Estado, por meio de entidades de atendimento, estabelecer os recursos humanos e materiais necessários ao desenvolvimento dos programas e projetos sociopedagógicos das medidas socioeducativa, respeitando as garantias instituídas pela doutrina da Proteção Integral. O Estatuto da Criança e do Adolescente traz as medidas socioeducativas como providências legais aptas à ressocialização do adolescente que pratica ato infracional, o qual consiste em conduta descrita como crime ou contravenção penal (art. 103 da Lei nº 8.069/90). Com isso, na concepção da Lei nº 12.594, de 18 de janeiro de 2012 (Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo – SINASE), a medida socioeducativa deve alcançar seu caráter sociopedagógico, que visa à reintegração do adolescente infrator, bem como a desaprovação da conduta infracional. Assim, sendo, o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo - SINASE conferiu ao Município, no seu art. 5º, incisos III, a responsabilidade pela criação, desenvolvimento, manutenção dos programas de atendimento destinados à execução das medidas socioeducativas em meio aberto, enquanto ao Estado das medidas em meio fechado, no seu art. 4º, inciso III. Essas medidas em meio fechado são aplicáveis quando um adolescente comete um ato infracional análogo à conduta descrita como crime ou contravenção penal, após o devido processo legal. As medidas socioeducativas possuem natureza sancionatória, em resposta à sociedade pela lesão decorrente da conduta típica praticada. Ademais, tais medidas contêm caráter predominantemente pedagógico, que visa à reintegração do adolescente na vida social. Desse modo, esses dois elementos conjugam-se a fim de que os propósitos da reeducação e da adimplência social do adolescente sejam alcançados (Moraes and Ramos 2014, 1010-1011). O regime de privação de liberdade ou meio fechado destina-se ao atendimento no âmbito de cumprimento das medidas socioeducativas de internação e de semiliberdade. Primeiro, a medida socioeducativa de semiliberdade consiste na possibilidade do adolescente que cometeu ato infracional

Mariana Dias Ferreira • 267 desenvolva atividades externas, sendo obrigatória a escolarização e capacitação (aprendizagem e profissionalização). Todavia, determina o recolhimento do adolescente ao longo do dia para orientação e avaliações, bem como noturno, para a sua proteção e vinculação ao plano individualizado socioeducativa. Por fim, pode ser aplicada desde o início ou como forma de transição para o meio aberto (Moraes and Ramos 2014, 1025). Segundo, a medida socioeducativa de internação é a intervenção estatal de cunho protetivo-pedagógica mais rigorosa. Ela continua a se sujeitar aos princípios da brevidade, da excepcionalidade e do respeito à condição peculiar do adolescente como pessoa em desenvolvimento (RAMIDOFF 2012, 45). Essa medida somente pode ser aplicada judicialmente nas hipóteses de tratar-se de ato infracional cometido mediante grave ameaça ou violência à pessoa; do adolescente, de forma reiterada, praticar outras ações conflitantes com a lei; e por descumprimento reiterado e injustificado de medidas socioeducativas anteriormente propostas, conforme art. 122 e incisos do Estatuto. Tanto a medida socioeducativa de semiliberdade e quanto à de internação, precisam de unidades específicas para o seu cumprimento. A entidade de atendimento deve destinar unidade adequada estrutural (material) e funcionalmente (recursos humanos) para orientação educacional e capacitação profissionalizante do adolescente (RAMIDOFF 2012, 45). Assim, importante esclarecer que o programa ou projeto de atendimento definirá o perfil organizacional e funcional de cada uma das Entidades de Atendimento, determinando as condições necessárias para o cumprimento das medidas socioeducativas em meio fechado, consoante art. 3º, inciso VI, da Lei do Sinase. O Estatuto da Criança e do Adolescente estabelece em seu artigo 94 as obrigações das entidades que desenvolvem programas de internação, in verbis: Art. 94. As entidades que desenvolvem programas de internação têm as seguintes obrigações, entre outras: I - observar os direitos e garantias de que são titulares os adolescentes; (...) III - oferecer atendimento personalizado, em pequenas unidades e grupos reduzidos;

268 • Análise da intervenção judicial no sistema socioeducativo... (...) V - diligenciar no sentido do restabelecimento e da preservação dos vínculos familiares; (...) VII - oferecer instalações físicas em condições adequadas de habitabilidade, higiene, salubridade e segurança e os objetos necessários à higiene pessoal; VIII - oferecer vestuário e alimentação suficientes e adequados à faixa etária dos adolescentes atendidos; IX - oferecer cuidados médicos, psicológicos, odontológicos e farmacêuticos; X - propiciar escolarização e profissionalização; XI - propiciar atividades culturais, esportivas e de lazer; (...) (grifo nossos)

O descumprimento dessas obrigações acima elencadas sujeitará às entidades de atendimento, seus dirigentes ou prepostos à aplicação das medidas, previstas no art. 97 do Estatuto e ratificada pela Lei do Sinase, sem prejuízo da responsabilidade civil e criminal. No caso específico das entidades governamentais, será advertência; afastamento provisório de seus dirigentes; afastamento definitivo de seus dirigentes; e fechamento de unidade ou interdição de programa. Essas medidas não possuem critério determinante para a sua aplicação, o magistrado deverá mostrar, no caso concreto, aquela medida suficientemente eficaz (TAVARES 2014, 439). A fiscalização das entidades de atendimento fica a cargo do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Conselhos Tutelares, conforme art. 95 do Estatuto. Assim, em caso de qualquer indício ou constatação de irregularidade em entidade de atendimento, cabe a instauração de procedimento visando à aplicação de determinadas medidas, com o fim do restabelecimento da ordem institucional. Diante disso, a descentralização do atendimento socioeducativos das medidas adveio do objetivo de que os direitos fundamentais sejam efetivamente vivenciados pelos adolescentes que cumpre tais medidas. Nesse sentido, comenta-se o seguinte: Quando a execução das medidas socioeducativas é definida no campo político, enquanto responsabilidade do poder executivo local (municipal), assumidas por este há ganhos

Mariana Dias Ferreira • 269 significativos para que estas ações sejam de caráter público e de interesse público, sobretudo na perspectiva da garantia de direitos (por meio das ações dessas diferentes políticas) para os adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa que poderão muito mais do que apenas terem status do seu exercício de cidadania exercerem concretamente o direito de acessá-los por meio de políticas públicas materializada nos seus diferentes serviços (FUCHS 2010, 8-9).

A atividade estatal deve reger toda a sua atuação pelas normas constitucionais, bem como toda sua atividade deve objetivar a realização das metas e propósitos estabelecidos pela Constituição, fixando atividades e serviços prioritários, consoante o princípio da legalidade. Com isso, a intervenção estatal consiste na formulação e execução de políticas públicas, indispensáveis para a consecução dos direitos fundamentais, colocadas à disposição das pessoas para o pleno exercício e gozo desses direitos (LIBERATI 2014, 89-98). O Estado não pode excluir os direitos essenciais de crianças e adolescente com o argumento de atender a outras demandas comunitárias tidas como igualmente relevantes, uma vez que cabe a ele dosar o atendimento, sem esquecer da prioridade absoluta que é conferida a essa parcela da população pelo ordenamento jurídico (LAMENZA 2011, 122). Desse modo, o legislador deixou clara a obrigação do administrador em dar preferência, com absoluta prioridade, a formulação e execução de políticas sociais públicas que visem à proteção à infância e juventude. Sob pena de ser responsabilizado, o Estado deve assegurar que políticas públicas destinadas a crianças e adolescentes tenham prevalência sobre as demais ações, em razão da sua condição peculiar de desenvolvimento (LIBERATI 2014, 103). Vale ressaltar que o Estatuto da Criança e do Adolescente, no art. 4º, determinou a destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas à proteção à infância e à juventude, a fim de materializar as políticas sociais públicas. Nesse contexto, a intervenção estatal sociopedagógica na execução de medida socioeducativas deve estar de acordo com o programa de atendimento e o efetivo respeito aos direitos e garantias infanto-juvenis. Contudo, a grande problemática envolve a dificuldade do Estado diante da fragilidade das políticas públicas no trato da in-

270 • Análise da intervenção judicial no sistema socioeducativo... corporação desses adolescentes em conflito com a lei na sociedade (SCLIAR 2003 apud FUCHS 2010, 13). Diante disso, há vários meios previstos na legislação brasileira que podem ser utilizados para exigir a atuação positiva estatal a fim de efetivar direitos fundamentais. Dentre eles destaca-se a ação civil pública. O controle judicial das políticas públicas pode ser feito quando houver a primazia do comando legal, não havendo oportunidade de o Poder Público invocar a discricionariedade dos atos administrativos, sendo possível no controle da legalidade e da moralidade. Com isso, o Poder Judiciário pode intervir nas políticas públicas imediatamente, em relação ao Estado, para proteção de direitos fundamentais, assim que violados ou ameaçados de violação, sem perquirir qualquer condição (LIBERATI 2014, 153-158).

Análise da intervenção judicial A ação civil pública foi perpetrada pelo Ministério Público Estadual em 25 de fevereiro de 2014, por meio de suas promotorias da infância e juventude, contra o Estado do Rio Grande do Norte e a Fundação Estadual da Criança e do Adolescente (FUNDAC), a qual compete manter uma rede de atendimento para aplicação das medidas socioeducativas em meio fechado. A ação civil pública versa sobre a falta de gestão e a descumprimento dos preceitos da Lei do SINASE, requerendo a intervenção judicial da FUNDAC para seu reordenamento institucional. O Sistema Socioeducativo do Estado do Rio Grande do Norte, até a propositura da ação civil pública, era de completo caos, em razão da falta de vagas, por aproximadamente dois anos, não havendo como determinar o cumprimento de medidas socioeducativas em meio fechado, refletindo na sociedade potiguar uma sensação de impunidade em relação aos adolescentes autores de atos infracionais. Na ação civil pública foi destacado que esse cenário tem gerado consequências gravíssimas para a sociedade, uma vez que: (...) tem provocado o recrudescimento da violência, de modo que grupos criminosos têm se valido de adolescentes para a prática de infrações e da fundada suspeita de que, dian-

Mariana Dias Ferreira • 271 te do sentimento de que não há responsabilização por parte do sistema de justiça, passam a existir verdadeiros grupos de extermínio de adolescentes, em verdadeira demonstração de realização da “justiça com as próprias mãos”.

Nesse contexto, cumpre frisar que a capital Natal é a décima segunda cidade mais violenta do mundo, segundo levantamento do Escritório sobre Drogas e Crime das Nações Unidas com base em assassinatos ocorridos no ano de 2012. Por outro lado, a capital Belo Horizonte está na posição quadragésima quarta (REMIGIO 2014). Outro dado relevante, consoante os registros das sentenças de extinção e baixas dos processos entre janeiro e dezembro de 2013 da 1ª Vara da Infância e Juventude da Comarca de Natal/RN, apenas 38% deles houve cumprimento de medida socioeducativa, 8% foi em decorrência de óbito de adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa e 11% foi por prisão do adolescente que atingiu a maioridade. O aumento da violência na cidade de Natal, os índices de óbitos de adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa e a continuação de cometimento de crimes pelo então adolescente até a fase adulta são reflexo de um sistema socioeducativo falido. Diante disso, o Ministério Público Estadual tratou as questões, inicialmente, de maneira pontual, isto é, as ações interventivas se davam em relação às próprias unidades de atendimento socioeducativo, sem analisar a verdadeira causa que acarretava os problemas observados nos estabelecimentos de responsabilidade da FUNDAC. O ponto de partida foi o relatório produzido pelo Conselho Nacional de Justiça – CNJ, no âmbito do “Projeto Justiça ao Jovem”, em decorrência de visitas realizadas no final de 2010. Em relação à unidade CEDUC Pitimbu, principal unidade do sistema socioeducativo da região metropolitana de Natal/RN: Esta unidade destoa em muito de qualquer outra do Estado do Rio Grande do Norte. Suas instalações são inadequadas e estão deterioradas; o ambiente é sujo, escuro e úmido […] há fezes humanas jogadas pelas paredes e teto e lixo acumulado; foi relatado que o odor é repugnante.

272 • Análise da intervenção judicial no sistema socioeducativo... O corpo técnico, de modo geral, demonstra falta de cuidados e dedicação ao trabalho, sem qualquer compromisso com o bem-estar dos adolescentes. Em suma, as instalações físicas e o atendimento são completamente impróprios. Os adolescentes que ali cumprem medida estão privados de praticamente todos os direitos que lhe são conferidos, especialmente, o da dignidade da pessoa humana. Não é possível imaginar que se possa alcançar a ressocialização dos jovens em condições como as brevemente descritas acima.

Outrossim, o relatório de revisão de inspeção judicial, realizado em 18 de abril de 2011 pela Corregedoria Geral de Justiça do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Norte concluiu que: A persistência do caos anteriormente constatado exige a responsabilização imediata da administração pública, na pessoa dos seus gestores, seja na esfera civil, administrativa ou mesmo penal, de forma que a figura estatal como um todo não se torne partícipe das violações ao princípio máximo da dignidade da pessoa humana.

Todavia, o Estado do Rio Grande do Norte e a FUNDAC nada fizeram perante os diversos pronunciamentos e documentos produzidos pelos agentes de fiscalização do sistema socioeducativo. Diante dos inúmeros ofícios encaminhados pela 3ª Vara da Infância e Juventude da Comarca de Natal/RN noticiando a ausência de vagas no sistema socioeducativo do Estado e solicitando a apuração da responsabilidade civil, administrativa e até criminal dos gestores públicos, o Ministério Público Estadual instaurou o inquérito civil nº 010/2012, com a finalidade de investigação das razões que levaram a essa situação de caos. Como resultado final, o relatório e parecer técnico nº 010/2012 constatou em cinco grupos os problemas que explicam o caos no sistema socioeducativo estadual: a) estrutura física, b) recursos materiais, c) recursos humanos, d) atividades socioeducativas e e) segurança. O Ministério Público Estadual, então, promoveu várias reuniões com o Poder Público, bem como fez requisições e solicitações

Mariana Dias Ferreira • 273 a fim de resolver a problemática pela via extrajudicial. No entanto, obteve apenas o “silêncio como resposta”, sem qualquer aplicação de medidas para a melhoria do sistema socioeducativo por parte do Estado e da FUNDAC. Nesse cenário, a ação civil pública identificou problemas de diversas ordens e de forma ainda mais específica destacou a gestão de recursos humanos, a infraestrutura, os recursos materiais, as atividades socioeducativas e questões de ordem institucional. Primeiramente, em relação à gestão de recursos humanos, constatou-se um número excessivo de servidores em cargos de provimentos em comissão, os quais, via de regra, possuíam lotação em unidades já desativadas e, consequentemente, a grande maioria se encontrava em desvio funcional ou não trabalhavam efetivamente na FUNDAC. Vale destacar que outra parcela dos servidores estava cedida a outros órgãos do Estado, o que acarretava excessiva oneração da folha de pagamento da Fundação. Ademais, no inquérito civil verificou-se que os servidores possuíam baixos salários, precariedade das condições de trabalho, desmotivação para o trabalho, além da existência de muitos servidores próximos da aposentadoria, em razão do último concurso público da FUNDAC ter ocorrido em meados dos anos 1990. O Termo de Ajustamento de Conduta Parcial º 001/2013 foi assinado em 21 de março de 2013, visando à adequação das unidades de atendimento ao que estabelece o SINASE, no tocante aos recursos humanos. Entretanto, não foi cumprido como o desejado pelo Ministério Público Estadual, o qual detectou outros problemas administrativos, como por exemplo, o percebimento indevido de gratificações e outras vantagens. No âmbito da infraestrutura, foram instauradas várias ações civis públicas de interdição e bloqueio de valores para reforma das unidades de atendimento socioeducativo, porém sem qualquer efeito, com obras intermináveis e aquém das reais necessidades. Para cada uma das unidades existe uma ou mais ações civis públicas para adequação física dos estabelecimentos às diretrizes do SINASE. Em relação à carência de materiais e serviços necessários ao funcionamento da entidade e de suas unidades de atendimento, a situação encontrava-se bastante grave. No momento da propositura da ação civil pública em questão, por exemplo, a FUNDAC estava a pelo menos 6 (seis) meses sem telefone e acesso à internet.

274 • Análise da intervenção judicial no sistema socioeducativo... As atividades socioeducativas estavam prejudicadas, tendo em vista a não existência de servidores suficientes nas unidades, os espaços disponibilizados eram inadequados e não existiam materiais para a prática das atividades, sendo inviável a realização de atividades esportivas, socioeducativas e profissionalizantes. Todos esses problemas encontrados nas entidades de atendimento socioeducativo advêm da falta de gestão da FUNDAC, sendo imprescindível a sua reforma institucional à luz do SINASE. Dessa forma, impõe-se que o órgão gestor estadual seja, sob a diretriz do SINASE, uma entidade descentralizada, com autonomia administrativa e financeira. Situação essa não encontrada no Estado do Rio Grande do Norte. A FUNDAC não realiza qualquer despesa sem a autorização do Governo do Estado, funcionando, na prática, como órgão do governo. Ademais, ação civil pública destacou a utilização da entidade como peça do jogo político, sujeita a lideranças que compõem a base aliada daquele que esteja no governo do Poder Executivo Estadual, em detrimento de profissionais capacitados e com experiência na defesa dos direitos da criança e do adolescente. No caso em tela, a 21º Promotoria de Justiça de Natal, a qual compete acompanhar a gestão da FUNDAC, em conjunto com outras Promotorias de Justiça responsáveis pela fiscalização das unidades de atendimento expediram 7 (sete) Recomendações Conjuntas, além de haver a Recomendação nº 005/2013, no sentido de serem resolvidas todas essas problemáticas. É importante salientar que há mais de oito ações civis públicas, quase todas com bloqueio de recursos deferido pelo Poder Judiciário. Por fim, existe outra ação civil pública, a qual requer a devolução dos servidores cedidos. Portanto, após várias tentativas no âmbito extrajudicial e até judicial, não há outra medida que não seja interferir na gestão administrativa e financeira da FUNDAC. Diante de problemas sociais graves, pode o Poder Judiciário, não havendo outra alternativa, proferir decisões determinando uma série de medidas necessárias para solucionar os graves problemas que afetam direitos fundamentais e que não encontram solução por meio da articulação direta entre os envolvidos. Nesse sentido, a intervenção judicial mostra-se como o mecanismo mais adequado para a efetividade da atuação jurisdicional no presente caso do sistema socioeducativo estadual. Deverá ser

Mariana Dias Ferreira • 275 atribuído ao interventor o poder de gestão administrativa e financeira da FUNDAC para adotar as medidas necessárias à reestruturação da entidade. Em sede de pedido de urgência, foi requerido o reordenamento institucional da FUNDAC e a nomeação de um interventor judicial pelo prazo de 180 (cento e oitenta dias), prorrogável por iguais períodos. Pedido esse deferido em decisão interlocutória proferida em dia 12 de março de 2014 pelo Juízo da 3ª Vara da Infância e Juventude da Comarca de Natal, nomeando-se a interventora indicada pelo Ministério Público Estadual. O referido Juízo argumentou no sentido de que, embora não haja previsão expressa no Código de Processo Civil sobre a figura da Intervenção Judicial em Órgão Público ou Fundação Pública, a Constituição Federal, preconiza em seu art. 5º, inciso XXXV, que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. Com isso, o magistrado filiou-se ao seguinte entendimento: A aplicação subsidiária do art. 102 Parágrafo Único da Lei nº 12.529/2011 ao presente caso concreto é medida que se impõe, uma vez que a nomeação de interventor judicial na Fundação Estadual da Criança e do Adolescente é o único remédio jurídico eficaz capaz de permitir a execução das medidas socioeducativas em meio fechado e semiaberto, no que se refere a adolescentes vinculados ao sistema socioeducativo, bem como garantir segurança à população Potiguar alvo da crescente violência infanto-juvenil.

Em entrevista ao 21º Promotor de Justiça da Comarca de Natal, Dr. Marcus Aurélio de Freitas Barros, foi esclarecido que ao longo do ano de 2014, após o início da atuação da interventora, problemas como recursos materiais foram solucionados, com a melhoria da infraestrutura e a retomada de vagas no sistema socioeducativo em meio fechado. Todas as unidades de atendimento estão reformadas ou em reforma. No entanto, há ainda a dificuldade no repasse de recursos financeiros, em razão da falta da autonomia orçamentária. O período de intervenção judicial foi renovado para mais um ano, segundo informações dadas pelo referido Promotor de Justiça, a fim de solucionar problemas referentes aos recursos humanos e à socioeducação.

276 • Análise da intervenção judicial no sistema socioeducativo... Desse modo, a intervenção judicial trouxe melhorias significativas ao sistema socioeducativo do Estado do Rio Grande do Norte, sendo a medida mais adequada diante das evidentes violações de direitos fundamentais dos adolescentes e da sociedade potiguar.

Considerações finais Diante do exposto neste trabalho, a intervenção judicial no Sistema Socioeducativo é viável, uma vez que visa garantir o respeito à dignidade humana dos adolescentes que cumprem medidas socioeducativas, bem como da própria sociedade que sofre com o aumento da violência, assegurando seus direitos fundamentais que devem está a sua disposição para o seu pleno exercício O Estado do Rio Grande do Norte mostrou-se completamente ineficiente e omisso no tratamento de políticas públicas de execução das medidas socioeducativas em meio fechado, descumprindo normas constitucionais e infraconstitucionais. O Poder Judiciário pode intervir quando versar sobre direitos difusos e coletivos, especificadamente, no que tange a atuação do Estado na implementação de políticas públicas direcionadas ao atendimento de adolescentes autores de atos infracionais, a fim de suprir as deficiências nas atividades administrativas das entidades responsáveis.

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JUSTICIABILIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS SOCIAIS E CONFLITO DE COMPETÊNCIAS Cláudia Toledo1*

Introdução Aborda-se nesse artigo a interpretação dada à crescente atuação do poder judiciário no tocante à efetivação dos direitos fundamentais sociais: se se trata de ingerência indevida na competência dos demais poderes ou se é mero cumprimento de seu dever de controle em relação a esses poderes com base no sistema de pesos e contrapesos do Estado Democrático de Direito. Para tanto, serão identificados os princípios formais (em relação ao poder legislativo, o princípio da democracia; ao poder judiciário, o princípio da inafastabilidade do controle judicial) e os princípios materiais (quanto ao poder legislativo, o princípio da liberdade do legislador; ao poder judiciário, os princípios dos direitos fundamentais), cuja ponderação é o fundamento para a determinação das competências. Visa-se então a demonstrar que a articulação desses princípios com os critérios da certeza epistêmica relativa ao objeto em debate, da efetividade e da legitimidade democrática do ordenamento jurídico são relevantes parâmetros para a solução de conflitos de competência.

Argumento de ativismo judicial Justiciabilidade significa exigibilidade judicial. Trata-se de termo jurídico novo e, sendo a língua expressão imediata da cultura, toda inovação linguística é reflexo de modificações na realidade social. Essa é precisamente a situação atual, em que justiciabilidade * Doutorado em Filosofia e Teoria do Direito (Universidade Federal de Minas Gerais); Pós-doutorado em Filosofia do Direito (Universidade Federal de Santa Catarina). Pós-doutorado em Filosofia do Direito (Christian-Albrechts Universität zu Kiel, Alemanha). Professora adjunta na Universidade Federal de Juiz de Fora, Brasil. [email protected]

1

Cláudia Toledo • 279 passa a ser atribuída, de forma crescente, a direitos que não eram dela dotados, especialmente os direitos fundamentais à ação positiva fática do Estado, quais sejam, os direitos fundamentais sociais. São marcadamente os processos judiciais, cujo objeto é a demanda de direitos fundamentais sociais, aqueles geradores dos mais relevantes conflitos de competência entre os poderes estatais na atualidade. O questionamento está na adequação da atuação do poder judiciário em relação a ações ou omissões dos demais poderes na efetivação daqueles direitos. Debate-se então se essa atuação do Judiciário é decorrência do devido cumprimento de sua função de controle dos atos (e omissões) dos outros poderes públicos, segundo as determinações constitucionais ou se ela configura “ativismo judicial”, expressão que assumiu conotação negativa, traduzindo o entendimento da atividade do Judiciário como extrapoladora de sua competência, o que causaria sua ingerência indevida nos outros poderes. Essa ingerência atentaria contra dois princípios formais elementares à estrutura do Estado atual: princípio da separação dos poderes e princípio da democracia. Como sabido, o princípio da separação dos poderes consolidou-se com Montesquieu, desde o século XVIII, quando se instaurou o Estado de Direito em contraposição ao Estado Absolutista de então. O Estado, enquanto, organização institucional da sociedade, continua detentor do poder, que é uno. Seu exercício é, todavia, especializado, tripartido nos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. Conforme a já clássica disposição, o poder legislativo é o responsável, mediante o debate parlamentar, pela tomada de decisões político-normativas tornadas jurídicas mediante sua disposição em leis; o poder executivo é o responsável pelo eficiente cumprimento daquelas decisões legislativas, que são advindas dos cidadãos na figura de seus representantes; o poder judiciário é o responsável não só pela solução de conflitos entre particulares, mas também pelo controle dos atos e omissões dos demais poderes públicos. Segundo o princípio da democracia, o poder político do Estado é exercido pelo povo, ou seja, pelos membros daquela sociedade. Democracia (indireta) é, portanto, forma (ou regime) de governo em que as decisões sobre a vida social são tomadas pelos próprios indivíduos, mediante seus representantes políticos. As conclusões a que se chega no debate público, esfera de exposição de argumentos, são resultado do consenso da maioria de seus participantes e

280 • Justiciabilidade dos Direitos Fundamentais Sociais... esse debate ocorre no poder legislativo. Desse modo, o Legislativo é o poder imediatamente responsável pela legitimidade do Direito, a qual é elemento inerente ao modelo contemporâneo de Estado Democrático de Direito – e o Judiciário não a detém imediatamente, pois os juízes não são eleitos.2 Outros argumentos contrários à atuação do poder judiciário na implementação de direitos fundamentais sociais se referem ao seu déficit cognitivo em relação a fatores empíricos que determinam a realidade social. Tais fatores seriam, no entanto, imprescindíveis para a elaboração de políticas públicas, única forma se efetivarem aqueles direitos: a) Visão macro da totalidade da realidade social. O Judiciário não a possuiria, porque se dedica ao julgamento de casos concretos, individualizados. Para um panorama global da sociedade e satisfação do interesse coletivo, são indispensáveis informações de âmbito regional e nacional, advindas dos indivíduos, associações, empresas situadas nessas regiões. Suas demandas são feitas nesse contexto e expressas através dos representantes que elegem; b) Conhecimento técnico, imprescindível para a obtenção de informações com base nas quais se tomam as decisões. Esse conhecimento, resultado do desenvolvimento científico de então, é exposto e debatido nas discussões que se realizam em sede parlamentar. Essas deficiências levantam o argumento prático de maior impacto contra a atuação do poder judiciário em sede de direitos fundamentais sociais: as sentenças judiciais, que se situam no âmbito individual, poderiam então desequilibrar o orçamento público elaborado com base naqueles dados, conhecidos propriamente ape-

O conflito de competências relacionado à justiciabilidade dos direitos fundamentais sociais dirige-se primordialmente à relação entre Judiciário e Legislativo, pois a determinação das ações do Estado é estabelecida em lei, todo ato administrativo tem como princípio central regente o da legalidade. O Legislativo é assim o poder diretamente relacionado com a liberdade do indivíduo, motivo pelo qual se dará ênfase aqui ao conflito entre Judiciário e Legislativo, a despeito de certamente poder o Executivo prejudicar a realização de direitos fundamentais mediante ação ou omissão. No entanto, elas representam o cumprimento ou não dos deveres do Estado, os quais são estabelecidos em lei. 2

Cláudia Toledo • 281 nas pelo Legislativo3. Dessa forma, haveria o prejuízo do interesse coletivo em benefício do interesse individual. Como se percebe, a justiciabilidade dos direitos fundamentais sociais é uma das questões mais prementes do debate jurídico contemporâneo e, como todo novo conceito, é marcada pela controvérsia. Quanto mais relevante a matéria, mais polêmica tende ela a ser e não há conteúdo normativo de maior importância social do que aquele disposto nos direitos fundamentais.

Determinação de competências – princípios formais e materiais Em tese, não há dúvida quanto ao acerto das colocações feitas acima nos argumentos contrários à justiciabilidade dos direitos fundamentais sociais, ou seja, à sua arguição perante o Judiciário e a consequente atuação jurisdicional para sua efetivação. A questão, porém, está em que também em tese, ou seja, do ponto de vista abstrato-conceitual, não há dúvida quanto ao acerto de argumentos favoráveis àquela justiciabilidade e, portanto, à atuação do poder judiciário na decisão de matérias relativas àqueles direitos. Parte desses argumentos são, inclusive, os mesmos utilizados contra a justiciabilidade dos direitos fundamentais sociais. Isso porque é exatamente em decorrência do princípio da separação dos poderes, o qual estrutura o Estado de Direito, que o Judiciário detém competência de controle dos atos dos demais poderes. Trata-se então de sistema de freios e contrapesos, em virtude do qual os poderes exercem controle recíproco de suas atividades. Tal controle não apenas não se apresenta como uma ingerência indevida, mas, ao contrário, impõe-se como uma interferência obrigatória. Do mesmo modo, é justamente em virtude do princípio da democracia, que os indivíduos, autonomamente através de seus reEm defesa do interesse coletivo e do equilíbrio das contas públicas, levanta-se o argumento da reserva do possível (“Vorbehalt des Möglichen”), primeiramente utilizado pelo Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, na chamada “decisão numerus clausus” (BVerfGE 43, 291), de fevereiro de 1977. Segundo tal argumento, o interesse individual apenas pode ser realizado se satisfizer duas exigências: (i) razoabilidade entre o pedido individual e o ônus social por ele gerado, (ii) disponibilidade fática e jurídica de recursos públicos para sua implementação. 3

282 • Justiciabilidade dos Direitos Fundamentais Sociais... presentantes, protegem seus interesses em lei. Se o poder legislativo for então omisso em suas funções ou se atuar contrariamente àqueles interesses mediante a elaboração de leis que lhes são adversas, deve o Judiciário intervir em sua garantia através da revisão judicial das ações e omissões do Legislativo. Dessa maneira, com base nos mesmos princípios formais levantados pelos argumentos contrários à atuação do poder judiciário, ela se faz não apenas permitida, mas necessária. Não obstante, a tais princípios formais se acresce outro. O princípio formal que desempenha papel central na afirmação da adequação da revisão judicial dos atos do poder legislativo é o da inafastabilidade do controle judicial4. Por ele, o Estado fica obrigado à prestação jurisdicional para a garantia dos direitos subjetivos lesados por ação ou omissão do Legislativo. O princípio da inafastabilidade do controle judicial tem desempenhado papel cada vez mais relevante nessa matéria, na medida em que progressivamente se consideram os direitos fundamentais sociais passíveis de arguição perante o poder judiciário. Sendo essencialmente o Estado5 o destinatário desses direitos, a exigência de sua efetividade significa a demanda de atuação do Judiciário na revisão das ações e especialmente omissões do Legislativo no desempenho de sua competência. Art. 5º, XXXV da CF/88 – A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. 5 Embora o Estado seja o principal destinatário desses direitos, em virtude do efeito horizontal dos direitos fundamentais, há também seus efeitos perante terceiros. Isto é, também os particulares podem ser seus destinatários, na medida em que os direitos fundamentais, enquanto ordem objetiva de valores dispostos em princípios constitucionais, orientam a interpretação de todos os ramos do Direito, tanto legislativa quanto jurisprudencialmente. Robert Alexy, Theorie der Grundrechte (Baden-Baden: Suhrkamp, 1994), 475-492. Essa situação já resta clara no contexto alemão do pós-guerra, quando em 1958, o Tribunal Constitucional Federal prolatou a clássica “decisão caso Lüth” – BVerfGE 7,198 (166-206) – , em que “em virtude de mandamento constitucional, o juiz deve controlar se as prescrições materiais de direito civil a serem por ele aplicadas são influenciadas pelos direitos fundamentais na forma descrita; se assim o for, ele, na interpretação e na aplicação dessas prescrições, tem que levar em consideração as modificações do direito privado que daí decorrem”). Desse modo, tanto o direito público quanto o direito privado devem ser interpretados conforme a Constituição, ou seja, conforme os direitos fundamentais. 4

Cláudia Toledo • 283 Contudo, a despeito de os princípios formais estarem diretamente envolvidos nos conflitos de competências, sua articulação não é capaz, isoladamente, de fornecer soluções à questão. Por definição, princípios formais não detêm conteúdo, mas organizam a estrutura da ordem jurídica, bem como determinam procedimentos responsáveis pela viabilização dos princípios materiais. Isto é, o conteúdo de toda construção normativa social é objeto dos princípios materiais. Em uma ponderação, o balanceamento é feito em relação ao peso de cada um dos princípios colidentes. Esse peso é determinado a partir do grau de importância da satisfação6 dos objetos protegidos pelos princípios colidentes, que são o seu conteúdo. Desse modo, o que se compara são os conteúdos dos princípios materiais opostos para que se determine aquele cuja satisfação tem maior importância, ou seja, para que se decida qual é o princípio preponderante naquele caso concreto.

Ponderação de princípios – Determinação de competências O princípio material relativo ao poder legislativo é o princípio da liberdade do legislador (que nada mais é do que o princípio material da liberdade do indivíduo, representado na figura do legislador). O princípio formal com ele relacionado é o da democracia. Já os princípios materiais atinentes ao poder judiciário são aqueles consagradores dos direitos fundamentais – todos eles são dispostos em princípios jurídicos. O princípio formal relativo é o da inafastabilidade do controle judicial. Desse modo, é da composição da liberdade do legislador com os direitos fundamentais dos indivíduos que se consegue harmonizar, equilibrar, de um lado, a revisão judicial garantida pelo princípio formal da inafastabilidade do controle judicial com, por outro lado, o regime ou forma de governo em que o exercício do poder político é desempenhado pelos membros da sociedade, ou seja, com a democracia7. Segundo a lei da ponderação, tão mais afetado será o princípio preterido quanto maior for o grau de importância da satisfação do princípio prioritário. Alexy, Theorie der Grundrechte, 146. 7 Da articulação desses princípios formais e materiais, resulta a observância do 6

284 • Justiciabilidade dos Direitos Fundamentais Sociais... A noção de equilíbrio implica a de ponderação da importância dos objetos em análise. Sendo o conteúdo dos princípios materiais o objeto aqui analisado, da solução da colisão principiológica resulta a solução do conflito de competências. Toda ponderação implica uma avaliação não limitada ao esquema binário de tudo-ou-nada. A complexidade da realidade social é incompatível com a simplicidade desse reducionismo. Toda ponderação é então fundada na gradação do peso atribuído a cada um dos objetos em exame, ou seja, dos princípios materiais. Para que se garanta a racionalidade no processo de definição da competência dos poderes, devem-se seguir critérios no estabelecimento do peso a ser conferido ao princípio da liberdade do legislador, de um lado, e aos princípios dos direitos fundamentais, de outro. Quanto mais critérios se conseguir identificar para solucionar qualquer questão – e não apenas a fixação de competências –, mais parâmetros objetivos são apontados, maior afastamento se consegue, portanto, da subjetividade decisionista e do arbítrio que com ela anda.8 Para a solução racional de conflitos de competência, portanto, o primeiro critério é o da definição da competência originária para a tomada de decisões. Em um Estado Democrático de Direito, essa competência é do poder legislativo, dado ser liberdade o princípio elementar da democracia. O que estrutura essa forma de governo é a autonomia dos indivíduos, a capacidade de se autodeterminarem, o que é feito através de seus representantes parlamentares. Relacionado à competência originária, outro conceito cenprincípio da separação dos poderes, respondendo-se com isso tanto à crítica de ingerência indevida do Judiciário, feita por aqueles que defendem a existência de ativismo judicial, quanto à crítica de omissão do poder judiciário na sua função de controle dos atos dos demais poderes, feita por aqueles que afirmam a inexistência de ativismo judicial. 8 Racionalidade é a primeira exigência para a satisfação da pretensão de correção do Direito. A correção formal só é alcançada através das regras da argumentação jurídica, cuja formulação decorre da reflexão, da racionalização do discurso e cujo cumprimento decorre da concordância (vontade e razão) do seu acerto. Do ponto de vista material, apenas se pode identificar racionalmente a concepção de justiça socialmente regente mediante o debate público, ou seja, o uso de argumentos, que são a forma racional de externalização do pensamento. Daí a necessidade de se definirem critérios objetivos em qualquer discurso, especialmente no jurídico, em virtude dos relevantes efeitos na realidade individual e social gerados pelo Direito.

Cláudia Toledo • 285 tral surge como critério para a racionalização do processo de definição de competências. Trata-se do conceito de Spielraum, advindo do direito alemão. Por ele, o legislador deve ter prioritariamente respeitado seu espaço de ação, sua margem de atuação, sua discricionariedade na tomada das decisões que conduzirão a vida social. A liberdade, como todo princípio, deve ser realizada na maior medida possível. Isso significa que, quando do conflito de competências, prioridade será dada ao Legislativo, pois é nele que os indivíduos exercem sua autonomia expressa em seu poder de decisão. Por isso, a discricionariedade do legislador é a mais ampla possível, compreendendo tudo aquilo que as normas constitucionais não proíbem nem ordenam definitivamente. Isto é, “aquilo que não é proibido ou comandado é deixado livre” ao legislador.9 Entretanto, a liberdade do legislador não é irrestrita. Seu limite está precisamente nos direitos fundamentais, os quais são direitos tão importantes que não podem ser deixados à decisão de uma simples maioria parlamentar.10 O legislador pode afetar os direitos fundamentais mediante ação ou omissão, ultrapassando com isso as fronteiras de sua larga discricionariedade, transformando-a em arbitrariedade. Nesse momento, deve atuar o Judiciário, na medida em que o poder do Estado é um só, seu exercício é que é tripartido para viabilizar a mais eficiente implementação de suas finalidades. E a finalidade maior de um Estado Democrático de Direito é a realização e garantia dos direitos fundamentais dos membros daquela sociedade. Assim, nesse caso, não apenas não há ingerência indevida do poder judiciário na competência do Legislativo, como é obrigatória sua intervenção nos atos ou omissões desse poder. Do contrário, tem-se o Estado descumprindo suas próprias ordens, as normas Robert Alexy, Princípios formais e outros aspectos da Teoria Discursiva do Direito, ed. Alexandre Trivisonno (Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014), 2230. Faz-se menção aqui à discricionariedade material do legislador, não obstante Alexy tenha recentemente desenvolvido seu pensamento no tocante aos princípios formais, estabelecendo, além da discricionariedade material, a discricionariedade epistêmica. No entanto, como a otimização epistêmica é uma ponderação de segunda ordem (ou “metaponderação”), ou seja, é um “aprofundamento” da fórmula do peso – que passa então a se chamar “fórmula do peso refinada” –, não se trabalhará aqui com esse grau de especificidade, pois ele não se faz necessário neste trabalho em virtude do tema central analisado. 10 Alexy, Theorie der Grundrechte, 410. 9

286 • Justiciabilidade dos Direitos Fundamentais Sociais... constitucionais que positiva e que, portanto, o vinculam. Daí não apenas a pertinência, mas exigência da revisão judicial. Não se está invadindo competência de outro poder, mas, diversamente, está-se fazendo o que o poder originalmente competente devia ter realizado e não o fez. No entanto, a mensuração da atuação do legislador em seu espaço de ação como adequada, abusiva ou insuficiente em relação aos direitos fundamentais é de fluidez ou imprecisão tão elevadas que não é possível sua definição em abstrato. Ela somente é viabilizada na singularidade da situação empírica, a partir das condições fáticas e jurídicas que marcam sua contingência. Daí somente se poder determinar como devida ou indevida a revisão judicial em relação ao caso concreto. Destarte, a determinação da competência dos poderes é relativa. Esse é outro parâmetro doutrinariamente construído para essa determinação.

Determinação relativa – proporcionalidade

de

competências

A contraposição entre o princípio da liberdade do legislador e os princípios dos direitos fundamentais não se reduz a um mero antagonismo, mas implica a necessidade de se ponderar, no caso concreto, qual deles é preponderante. Como visto, a ponderação relaciona-se com a noção de gradação, ou seja, trabalha com a noção de grau. Em matéria de definição de competências, o princípio da liberdade do legislador possui uma “margem de vantagem”11, pois é dele a competência originária da tomada de decisões numa democracia. Os direitos fundamentais apenas entram em cena na figura de limites. Para que possa haver limites, deve haver o principal, ou seja, o objeto a ser limitado. Isto é, a liberdade do legislador sempre está presente numa democracia, já o seu limite, nem sempre, só em hipótese de abuso daquela liberdade. Assim, o grau de afetação aos direitos fundamentais gerado pelas ações ou omissões do legislador, no exercício de sua liberdade, é outro critério desenvolvido no sentido da objetividade e racionalidade na definição das competências. Matthias Klatt. “Positive rights – Who decides? Judicial review in balance” (palestra apresentada na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora, March 24, 2014). 11

Cláudia Toledo • 287 Desse modo, quando, no caso concreto, há questionamento quanto à adequação ou não de controle judicial, está-se diante de conflito entre dois princípios materiais: a liberdade do legislador e os direitos fundamentais. Isto é, trata-se todos de mandamentos de otimização, que devem ser realizados na máxima medida possível. Não há como otimizar a realização de dois princípios em colisão senão a partir da proporcionalidade da aplicação do princípio considerado precedente sobre o princípio preterido naquele caso concreto. Essa proporcionalidade ordena que a máxima satisfação de um princípio seja alcançada com a menor afetação possível do princípio preterido.12 Os elementos determinantes para que, em cada situação de conflito de competências, se identifique o “grau máximo de satisfação” de um princípio, o “grau mínimo de afetação” de outro princípio, qual será o princípio preponderante e qual o princípio preterido, são dados pelas condições fáticas peculiares de cada caso concreto. Para que se defina se a ação do poder legislativo foi insuficiente ou excessiva, é necessário então o balanceamento entre o peso do princípio da liberdade do legislador e os princípios dos direitos fundamentais. No entanto, a mensuração quantitativa do grau da interferência sofrida pelo princípio preterido devido ao grau de importância da satisfação do princípio precedente não é algo exato. Qualquer critério de aferição deontológica ou axiológica é fortemente marcado pela limitação de sua precisão. Ciente dessa marcada limitação, mas em constante busca de promoção de racionalidade no discurso jurídico13, Robert Alexy propõe uma escala triádica do grau Isso nada mais é do que a utilização do princípio lógico de Pareto, integrante da estrutura da máxima da proporcionalidade, na solução das colisões principiológicas que ocorrem nos casos difíceis. 13 Não se tem, com esse tipo de elaboração conceitual, a ingênua pretensão de se ter alcançado o máximo nível de objetividade no tratamento dos valores consagrados nos princípios e regras jurídicas, nem a eliminação da subjetividade do intérprete dessas normas. Valoração é a antítese da neutralidade e a objetividade buscada na interpretação e aplicação do Direito é, por muitos, ingenuamente identificada à neutralidade. Isto é, a procura de plena ou absoluta objetividade no Direito implica a crença na possibilidade de alcance de exatidão matemática no tratamento da realidade juridicamente normatizada. A procura desse grau de precisão na produção cultural normativa humana é fadada ao fracasso. Contudo, isso não significa dizer que o Direito é, por essência, arbitrário ou que o discurso 12

288 • Justiciabilidade dos Direitos Fundamentais Sociais... de interferência no princípio preterido ou do grau de importância de satisfação do princípio preponderante: leve, moderado ou grave.14 Com base nesses parâmetros, traça-se exemplificativamente uma ponderação entre os princípios colidentes da seguinte forma: se, nas contingências daquele caso concreto, o grau de importância da satisfação do princípio de proteção do direito fundamental for leve e a interferência no princípio da liberdade do legislador for grave, então este tem maior peso do que aquele, pelo que o poder competente para lidar com aquela matéria é o Legislativo. Ao contrário, se o legislador, por ação ou omissão, afetou gravemente direitos fundamentais que são o limite, a fronteira de sua liberdade, à qual foi atribuído peso leve, é cabível a revisão judicial, uma vez que a competência para o tratamento daquela questão é do Judiciário. Sua atuação não configura então ingerência indevida no poder legislativo, mas apenas o cumprimento de sua função de controle sobre os atos daquele poder.

Critérios para a solução de conflito de competências Em primeiro lugar, para que a revisão judicial seja cabível, ou seja, para que o Judiciário seja fixado como o poder competente para lidar com aquela situação fática em análise, devem-se satisfazer basicamente duas exigências. Os direitos fundamentais dos jurídico seja irracional. Ele pode sim ser irracional. Mas também pode ser racional, na medida em que racionalizável. Em se tratando de construção cultural da mais acentuada relevância para a vida social, o Direito não apenas pode, mas deve ser abordado da forma mais racional possível, seja por seu criador, o legislador, seja por seu intérprete, o juiz. Porém, sendo a obra humana invariavelmente permeada por alto grau valorativo, a forma de desenvolvimento científico do Direito, é a consideração da objetividade como ideia regulativa de seu tratamento. Isto é, o incremento da objetividade deve ser buscado na maior medida possível, pois apenas assim se viabiliza a abordagem não arbitrária do Direito. Somente assim se consegue diminuir a subjetividade no tratamento do Direito também na maior medida possível. 14 Robert Alexy, “Constitutional Rights, Balancing and Rationality”, Ratio Juris, v.16.,n. 2 (jun. 2003): 136-137. Robert Alexy, “Rights and Liberty as Concepts”, in Comparative Constitutional Law, ed. Michael Rosenfeld, and András Sajó (Oxford: Oxford University Press, 2012), 295. Cláudia Toledo. “Direitos Fundamentais Sociais: entre Ponderação e Subsunção” in Direitos Sociais em Debate, ed. Cláudia Toledo (Rio de Janeiro: Elsevier, 2013), 85.

Cláudia Toledo • 289 membros da sociedade devem ter sido afetados por: 1) Clara inadequação ou completa insuficiência das ações do legislador em relação aos fins aos quais se destinavam; 2) Completa omissão do legislador no cumprimento da função de regulamentação das normas constitucionais. A exigência de que a inadequação seja “clara” e que a insuficiência ou omissão sejam “completas” conduz nitidamente à noção de gradação, ou seja, de grau de deficiência do objeto em análise. A revisão judicial somente é cabível se houver a evidência dessa deficiência. Esse é o chamado “controle de evidência” também advindo da doutrina alemã (Evidenzkontrolle)15. Nesse caso, fica claro então que a intervenção do poder judiciário é demandada para que a integridade do direito fundamental em questão seja garantida. Além da necessidade de satisfação do controle de evidência do descumprimento pelo Legislativo de seus atos, há outros fatores centrais cujo peso influencia na determinação da competência do Legislativo ou do Judiciário, dentre eles: a) Certeza epistêmica (tanto empírica quanto normativa) relativa ao objeto; b) Efetividade do ordenamento jurídico; c) Legitimidade democrática do ordenamento jurídico.16 (A) Quanto menor for a certeza epistêmica empírica, ou seja, quanto maior for a demanda por conhecimento técnico da matéria a ser regulada, mais peso tem o princípio da liberdade do legislador. Isso porque, numa democracia, o processo legislativo é o espaço público do debate, por excelência. Através dos argumentos trazidos para o discurso, viabiliza-se o conhecimento das matérias que se pretendem regular. O Legislativo é então o poder competente nesses casos. A incerteza epistêmica normativa ocorre quando surgem questões politicamente controversas. Enquanto no Legislativo decidem-se questões políticas com alta interferência em matérias jurídicas, no Judiciário decidem-se questões jurídicas com alta repercussão política. A fluidez da linha divisória entre das dimensões política e jurídica Decisão conhecida como Hartz V (BVerfGE 125, 175). Karlsruhe, 09 fev. 2010, p. 32. 16 Klatt, “Positive rights – Who decides?” 15

290 • Justiciabilidade dos Direitos Fundamentais Sociais... torna a determinação da competência dos poderes matéria distante de qualquer precisão exata. Não obstante, fixa-se o parâmetro de quanto mais política a questão, maior a liberdade do legislador, pois não se trata de matéria técnico-jurídica a ser decidida. A competência para tratamento dessa questão é do poder legislativo. Por outro lado, quanto maior o conteúdo jurídico da questão, mais envolvidos quantitativa e/ou qualitativamente estão os direitos fundamentais, pelo que maior é seu peso. O poder competente é então o Judiciário; (B) Quanto maior a efetividade do ordenamento jurídico como um todo, maior a liberdade de decisão do legislador. Isto é, quanto maior é o grau de observância da ordem jurídica, quanto mais regularmente é cumprido o Direito, maior é o peso atribuído à liberdade do legislador, uma vez que não é preciso estabelecer politicamente mais normas jurídicas nem verificar seu cumprimento; (C) Quanto maior a busca de legitimidade democrática da decisão, maior é o peso da liberdade do legislador. A competência é então do poder legislativo, imediatamente ligado à vontade popular (legitimidade), uma vez que é formado por representantes eleitos, que regularão autonomamente a vida social. Todavia, também a decisão do Judiciário é dotada de legitimidade, na medida em que este órgão desempenha a função de garantia da democracia, que é a própria autodeterminação popular. Isto é, a legitimidade do poder judiciário é mediata, advinda da institucionalização de suas atividades e especialmente da argumentação desenvolvida no discurso jurídico em questão, pois, quanto mais racional, quanto mais objetiva ela é, ou, por outro lado, quanto menos volitiva, quanto menos subjetiva ela é, melhor se consegue determinar qual a pretensão de correção existente naquela sociedade, ou seja, mais próximo fica o discurso jurídico da realidade social, mais legítimo se torna. Como se vê, a definição de competências não se apresenta como questão de fácil implementação, seja em virtude da diversidade e impacto de suas implicações sociais, seja devido à complexidade das nuances da situação empírica. Não obstante, percebe-se que parâmetros de aferição do grau (leve, moderado ou grave) do peso atribuído, no caso concreto, aos princípios materiais da liberdade do legislador, de um lado, e dos direitos fundamentais, do outro, têm sido desenvolvidos. Mediante reflexão crítica, a doutrina tem crescentemente fornecido

Cláudia Toledo • 291 elementos para a determinação do poder competente para a tomada da decisão no caso concreto, cumprindo sua função científica e social. Afinal, da dificuldade do fornecimento de resposta racionalmente articulada não decorre a impossibilidade de sua realização.

Conclusão Buscou-se, neste artigo, contribuir para a solução dos conflitos de competência que vêm surgindo quanto mais se firma a justiciabilidade dos direitos fundamentais sociais, ou seja, sua exigibilidade judicial como direitos subjetivos públicos. Procurou-se então identificar quais princípios formais (princípio da democracia, relacionado ao poder legislativo, e princípio da inafastabilidade do controle judicial, relativo ao poder judiciário) e materiais (princípio da liberdade do legislador, quanto ao poder legislativo, e princípios dos direitos fundamentais, quanto ao poder judiciário) estão envolvidos nessa temática. Demonstrou-se como, mediante sua ponderação e identificação dos princípios prioritários no caso concreto, alcançam-se os fundamentos para a determinação das competências. Da articulação desses princípios com os critérios da certeza epistêmica relativa ao objeto em debate, da efetividade e da legitimidade democrática do ordenamento jurídico foram oferecidos critérios necessários, ainda que não bastantes – pois se trata de tema atual na realidade jurídica não apenas brasileira, mas também europeia e latino-americana, do que resulta sua recente e permanente elaboração teórica – para a solução dos atuais conflitos de competência.

Referências ALEMANHA. Bundesverfassungsgericht, BVerfGE 125, 175. Karlsruhe, 09 fev. 2010. Alexy, Robert. Theorie der Grundrechte. Baden-Baden: Suhrkamp, 1994. Alexy, Robert. Princípios formais e outros aspectos da Teoria Discursiva do Direito, edited by Alexandre Trivisonno, Aziz Saliba, and Mônica Lopes. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014.

292 • Justiciabilidade dos Direitos Fundamentais Sociais... Alexy, Robert. “Constitutional Rights, Balancing and Rationality”. Ratio Juris, v. 16., n. 2 (2003): 131-140. Alexy, Robert. “Rights and Liberty as Concepts”. In Comparative Constitutional Law, edited by Michael Rosenfeld, and András Sajó, 283-297. Oxford: Oxford University Press, 2012. Klatt, Matthias. “Positive rights – Who decides? Judicial review in balance”. Palestra apresentada na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora, March 24, 2014. Toledo, Cláudia. “Direitos Fundamentais Sociais: entre Ponderação e Subsunção”. In Direitos Sociais em Debate, edited by Cláudia Toledo, 81-90. Rio de Janeiro: Elsevier, 2013.

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