Constituição de Cabo Verde de 1992 – Fundação de uma República Liberal de Direito, Democrática e Social

Share Embed


Descrição do Produto

CONSTITUIÇÃO DE CABO VERDE DE 1992 – FUNDAÇÃO DE UMA REPÚBLICA LIBERAL DE DIREITO, DEMOCRÁTICA E SOCIAL José Pina Delgado* De um desconhecido uma homenagem a John Rawls (19212002) por nos ter ensinado a todos que é possível ligar Liberalismo, Democracia e Solidariedade.

Resumo: Cabo Verde é classificado pelos artigos 1º e 2º da Constituição como uma República e como um Estado de Direito Democrático baseado na solidariedade. Este texto parte precisamente desses preceitos constitucionais para procurar as bases e a configuração jurídica da Comunidade Política nacional promovidas pela Constituição de 1992. A partir de uma leitura filosófico-política da Lei Fundamental, conclui-se que, mais do que um Estado de Direito Democrático, ela se materializa como uma República de Direito Democrático e Social, combinando quatro modelos de Estado, o Liberal, o Democrático, o Republicano e o Social, e que, para além disso absorve igualmente contribuições de origem realista, cosmopolita, comunitarista, nacionalista, de entre outras. Palavras-chave: Cabo Verde, Constituição de 1992, Filosofia Política, Uma República de Direito, Democrática e Social. Abstract: Under articles 1 and 2 of the Constitution, Cape Verde is classified as a Republic and as a Democratic and Constitutional State based on solidarity. This text exactly assumes those constitutional precepts to search for the basis and legal framework of the national political community established by the Constitution of 1992. Through an interpretation of the Basic Law that takes political philosophy into account, one concludes that more than a Constitutional Democratic State, it materializes in a Social and Constitutional Democratic Republic, combining four models of State, the Liberal, the Democratic, the Republican and the Social. Moreover, it also absorbs contributions of realist, cosmopolitan, communitarian-nationalist influences, among others.

Keywords: Cape Verde, Constitution of 1992, Political Philosophy, A Constitutional, Democratic and Social Republic.

Introdução A Constituição é tida como o acto fundador do Estado1. Livre na sua essência, determidora, mas não determinada, é resultado de uma * Professor Graduado do Instituto Superior de Ciências Jurídicas e Sociais. 1 A respeito deste conceito, Mark Tushnet, “Constitution” in: Michel Rosenfeld & András Sajó (eds.), The Oxford Handbook of Comparative Constitutional Law, Oxford, UK, Oxford University Press, 2012, pp. 217-232.

110

Estudos em Comemoração do XXº Aniversário da Constituição

conduta de pura criação intencional do legislador constituinte, com as configurações que lhe resolve impor com o objectivo de estabelecer as bases da organização política. A ideia de uma independência total do acto constitucional e da liberdade de conformação da Constituição em relação a condicionantes externas são muito discutíveis2. Não só do ponto de vista concreto, porque a Constituição formal não funda, confirma um pré-arranjo material3 e relações reais de poder4, mas porque, particularmente para o que nos interessa, a lei fundamental é o produto possível de teorias filosófico-políticas de fundo5 que abarcam concepções sobre o poder, a sua legitimação, a sua organização, bem como, nalguns casos, por ideias sobre os seus limites e os direitos que os indivíduos possuem em relação àqueles que o exercem, o modo como se preserva e as relações que o Estado estabelece com outras comunidades políticas6. Num outro registo, mas relevante para o entendimento desta discussão, até porque referese, numa perspectiva comparada, ao caso de Cabo Verde e dos demais países lusófonos, Fernando Loureiro Bastos, “Os limites ao poder constituinte. Algumas considerações sobre a feitura e a modificação de uma Constituição de um Estado de Direito”, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, v. 47, n. 1-2, 2006, pp. 55-76. 3 É de se reter nesta matéria a discussão promovida por Carl Schmitt, Teoría de la Constitución, Francisco Ayala (trad.), Madrid, Alianza, 1982, pp. 45-46, que destaca: “La Constitución en sentido positivo surge mediante um acto del poder constituyente no contiene como tal unas normaciones cualesquiera, sino, y precisamente por un único momento de decisión, la totalidad de la unidad política considerada en su particular forma de existencia. Este acto constituye la forma y modo de la unidade política, cuya existencia es anterior”, a qual, no fundo deriva do seu célebre dito de 1921, de acordo com o qual “soberano é quem decide o estado de excepção” (p. 23) (Teología Política. Cuatro Capítulos sobre la teoría de la soberanía in: Héctor Orestes Aguillar (sel.), Carl Schmitt, Teólogo de la Política, México, D.F., Fondo de Cultura Económica, 2001, pp. 19-62; é de igual utilidade, Jon Elster, Ulysses Unbound. Studies in Rationality, Precommitment, and Constraints, Cambridge, UK, Cambridge University Press, 2000. 4 Ferdinand Lassale, A Essência da Constituição, 5. ed., Aurélio Bastos (trad.), Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2000, passim. 5 Como Ronald Dworkin, Taking Rights Seriously, London, Duckworth, 1977, p. viii, formulou há anos sobre a teoria do direito e que se aplica também ao Direito Constitucional do Estado Liberal de Direito (“a general theory of law will have many connections with other departments of philosophy. The normative theory will be embedded in a more general political and moral philosophy which may in turn depend upon philosophical theories about human nature or the objectivity of morality”) e recuperou mais recentemente em relação específica ao Direito Constitucional na obra Freedom’s Law. The Moral Reading of the American Constitution, Cambridge, Mass, Harvard University Press, 1996. No ângulo oposto diz-nos Tom Campbell, “The Contribution of Legal Studies” in: Robert Goodin & Philip Pettit (eds.), A Companion to Contemporary Political Philosophy, Oxford, UK/Malden, Mass, Blackwell,1993, pp. 183211, que igualmente “it seems clear that the discipline of law has much to contribute to the development of political philosophy (…)”. 6 O acompanhamento desta discussão é facilitado pela leitura de obras introdutórias à 2

Constituição de Cabo Verde de 1992

111

O objectivo deste artigo é analisar os fundamentos filosóficopolíticos da Constituição de Cabo Verde a partir das formulações fundacionais vertidas para o seu texto7, identificáveis nos artigos 1º e 2º 8 e no Preâmbulo, e responsáveis pelos princípios e soluções concretas que são agasalhados pelas partes que a compõem. Trata-se de um empreitada descritiva e não normativa9. Tenta-se, pois, apresentar os fundamentos filosófico-políticos da Constituição da República de Cabo Verde tais como eles são e não como deveriam ser. O resultado dessa empreendimento permitirá simplesmente verificar uma incontornável sobreposição de correntes filosóficas que dão origem ao constitucionalismo moderno e contemporâneo, mas que gravita em torno de uma das suas ideias de base, os direitos liberais10, filosofia política contemporânea (v. Noel O’Sullivan (ed.), Political Theory in Transition, London/New York, Routledge, 2000; Dudley Knowles, Political Philosophy, London/ New York, Routledge, 2001; Will Kymlicka, Contemporary Political Philosophy. An Introduction, 2. ed., Oxford, UK, Oxford University Press, 2002; Robert Simon (ed.), Blackwell Guide to Social and Political Philosophy, Malden, Mass/Oxford, Blackwell, 2002; John Christam, Social and Political Philosophy. A Contemporary Introduction, London/New York, Routledge, 2002; Robert Goodin & Philip Pettit (eds.), A Companion to Contemporary Political Philosophy, passim; Gerald Gaus & Chandran Kukhatas (eds.), Handbook on Political Theory, London, Sage, 2004; John Dryzek; Bonnie Honig & Anne Phillips (eds.), Oxford Handbook on Political Theory, Oxford, Oxford University Press, 2006; no mundo de expressão portuguesa, João Carlos Espada & João Cardoso Rosas (orgs.), Pensamento Político Contemporâneo. Uma Introdução, Lisboa, Bertrand, 2004; Cecília Caballero Lois (org.), Justiça e democracia. Entre o universalismo e o comunitarismo – a contribuição de Rawls, Dworkin, Ackerman, Raz, Walzer e Habermas para a moderna teoria da justiça, São Paulo, Landy, 2005, e João Cardoso Rosas, Concepções da Justiça, Lisboa, Edições 70, 2012). 7 Notar que, na literatura nacional, Casimiro de Pina, “A Outra Face de Jano: Tópicos Juspolíticos sobre a Liberdade Bem Ordenada”, Direito & Cidadania, a. 5, n. 16/17, 2003, pp. 303-321, e “Constituição e Ad-Hocracia”, Revista de Direito Público de Língua Portuguesa, a. 1, n. 1, 2013, pp. 45-122, tem também promovido discussões em linha muito similar à que se segue neste escrito. 8 A nível do Direito Comparado, ver também o estudo clássico de Jorge Miranda, “O artigo 1º e o artigo 2º da Constituição” in: Estudos sobre a Constituição, Lisboa, Petrony, 1978, v. II, pp. 9-41, e, em especial, Werner Maihofer, “Principios de una democracia en libertad” in: Ernesto Benda; Werner Maihofer; Conrado Hesse et al. (org.), Manual de Derecho Constitucional [Handbuch des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland. Studienausgabe], António Lopez Pina (trad.), Madrid, Marcial Pons, 1996, pp. 217-323. 9 Guardadas as devidas proporções e diferenças, pode-se recuperar o que Herbert Hart, The Concept of Law, 2. ed., Oxford, Clarendon Press, 1994, p. vi, diz sobre o seu texto fundamental (“It is concerned with the clarification of the general framework of legal tought, rather than with the criticism of law or legal policy. Moreover, at many points, I have raised questions which may well be said to be about the meaning of words”). 10 Há relativamente pouco tempo, um dos maiores vultos da filosofia política contemporânea chamava a atenção para a “centrality of liberal democracy to contemporary political

112

Estudos em Comemoração do XXº Aniversário da Constituição

sem a ela se submeter integralmente, já que igualmente tributária de elementos democráticos, republicanos, sociais, e, por vezes, nacionalistas, comunitaristas, cosmopolistas e realistas. É a esta mestiçagem filosófico-política11 e aos ajustes necessários para fazer transitar concepções abstracto-mentais para uma realidade concreta12, que se philosophy (…)” e que os conceitos de “rights, liberty, the greatest good of the greatest number, equal opportunity, etc. – dominates political discourse at both the theorectical and practical level” (Will Kymlicka, Contemporary Political Philosophy. An Introduction, p. x). 11 Para uma aplicação do termo num estudo sociológico-juridico da justiça cabo-verdiana, Odair Varela, Mestiçagem Jurídica? O Estado e a Participação Local na Justiça em Cabo Verde: Uma Análise Pós-Colonial, Tese de Doutoramento, Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, 2012. 12 Seria perfeitamente aceitável incorporar o conceito e o conteúdo da “sequência em quatro etapas” do reconhecido filósofo político liberal, John Rawls, “Reply to Habermas”, Journal of Philosophy, v. 92, n. 3, 1995, pp. 132-180, em larga medida responsável por toda esta discussão (veja-se, em especial, os textos em Samuel Freeman (ed.), The Cambridge Companion to Rawls, Cambridge, UK, 2003; Thomas Pogge, John Rawls. His Life and Theory of Justice, Oxford/New York, Oxford University Press, 2007, e Samuel Freeman, Rawls, London/New York, Routledge, 2007), que assim sumariza a sua posição: “We begin in the original position where the parties select principles of justice; next, we move to a constitutional convention where, seeing ourselves as delegates, we are to draw the principles and rules of a constitution in the light of the principles of justice already in hand. After this we became, as it were, legislators enacting laws as the constitution allows and the principles of justice require and permit; and, finally, we assume the role of judges interpreting the constitution and the laws as members of the judiciary” (pp. 151-152). Aliás, se tivéssemos que identificar uma filosofia política individual que mais se aproxima da lógica da Constituição e do constitucionalismo, não seria equivocado apontar para a obra de John Rawls (A Theory of Justice, Original Edition, Cambridge, Mass/London, Belknap Press, 1971), mesmo na sua segunda e menos atractiva versão (Political Liberalism, New York, Columbia University Press, 1993), atendendo que, como aponta um dos seus principais estudiosos, Samuel Freeman, Rawls, p. xiii, “ He remained confident to the end, however, that, whatever the shortcomings of human nature, reasonable people are still capable of an effective sense of justice and morally endorsing a liberal conception that protects basic liberties, provides equal opportunities, and secures a social minimum for all citizens” (A propósito, Frank Michelman, “Rawls on Constitutionalism and Constitutional Law” in: Samuel Freeman (ed.), The Cambridge Companion to Rawls, pp. 394-425, e, na perspectiva da sua influência mesmo em países que seguem a tradição jurídica europeia continental, Maria Lúcia Amaral, “John Rawls: Homenagem de um Jurista Europeu Continental”, Anuário Português de Direito Constitucional, v. 3, 2003, pp. 149-158). Isso, evidentemente, sem descurar o contributo expressivo das ferramentas analíticas e interpretação desenvolvidos por Jürgen Habermas, Direito e Democracia. Entre Facticidade e Validade [Faktizität und Geltung. Beiträge zur Diskurstheorie des Rechts und des demokratisches Rechtstaats], Flávio Beno Siebeneichler (trad.), Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1997 (uma apresentação mais sumária, mas igualmente consistente pode ser encontrada em id., “Constitutional Democracy: A Paradoxical Union of Two Contrasting Principles?”, Political Theory, v. 29, n. 6, 2001, pp. 766-781), com o qual, aliás, teve debates e disputas “familiares” (seguir Fernando Vallespín, “Introdución. Una disputa de familia: el debate Rawls-Habermas” in: Jürgen Habermas & John Rawls, Debate sobre el liberalismo político, Barcelona/Buenos Aires/México, Paidós/I.C.E. de la Universidad Autónoma de Barcelona, 1998, pp. 9-37) para o entendimento do Estado de Direito Democrático na sua dimensão mais dogmática (vide adicionalmente Kenneth Baynes, “Democracy and the Rechtsstaat: Habermas’s Faktizität und Geltung” in: Stephen White, The Cambridge Companion to Habermas, Cambridge,

Constituição de Cabo Verde de 1992

113

pode, em simultâneo, exaltar pelas virtudes e elasticidade do sistema constitucional, por um lado, mas também responsabilizar pelas tensões inexoráveis produzidas pelas suas componentes em movimento permanente, do outro, que define as fundações jurídicas dos sistemas políticos. Se o constitucionalismo contemporâneo é largamente tributário dessas mesmas bases, portanto, por motivos evidentes, o cabo-verdiano não é diferente. No entanto, disso não se pode inferir que haja uma identidade entre os diversos sistemas constitucionais, mau grado muitas vezes partilharem bases filosófico-políticas. O decisivo, neste quadro, é identificar a corrente que influencia a sua estrutura básica e a arrumação e ajustes complementares que é submetida por forma a acomodá-la com as restantes que nela marcam presença. Nisso residem as particularidades da maior parte dos sistemas, que, sendo mistos, se desenvolvem de formas distintas. Havendo pequenas diferenças no modo de arrumação dos elementos que o compõem, podem determinar mudanças com impactos consideráveis sobre as suas feições globais. É certo que qualquer análise que se prenda exclusivamente com o que se verte para as Constituições formais, sem analisar as materiais e as práticas constitucionais concretas, pode ser enganadora, haja em vista a existência de textos fundamentais que se postam como meros formulários de soluções constitucionais que não têm qualquer reflexo no mundo vivido da organização política e utilização do poder13 ou visam outros propósitos, como a criação de uma narrativa comum ou garantir a unidade e estabilidade nacionais14. Na experiência constiUK, Cambridge University Press, 1995, pp. 201-232; Cecília Caballero Lois, “A Filosofia Constitucional de John Rawls & Jürgen Habermas: Um Debate sobre as Relações entre Sistemas de Justiça e Sistemas de Direitos”, Revista Sequência, n. 50, 2005, pp. 121-141; e Delamar Dutra, Manual de Filosofia do Direito, Caxias do Sul, Brasil, EDUCS, 2008, passim). 13 Mark Tushnet, “Constitution”, p. 225, denomina-as de ‘Constituições simuladas” (“Sham constitutions)”, lembrando o exemplo paradigmático da União Soviética (“of which the Soviet Constitution of 1937 is the paradigm embody the normative values associated with constitutionalism in their texts but in operation fall dramatically short of actualizing those values (...)”). 14 Por exemplo, certos autores designam este fenómeno de “soft constitutionalism” (cf. Li-ann Thio, “Soft Constitutionalism in NonLiberal Asian Constitutional Democracies”,

114

Estudos em Comemoração do XXº Aniversário da Constituição

tucional ocidental dificilmente se consegue encontrar formas puras15, sejam elas liberais, democráticas, republicanas, sociais, e provavelmente um Estado que se configurasse nesses termos excludentes estaria fadado ao fracasso. No fundo, o que pode ocorrer é o predomínio de uma corrente ou outra, como efectivamente ocorre com os Estados Unidos da América (o Estado Liberal de Direito)16, com a República International Journal of Constitutional Law, v. 8, n. 4, 2010, pp. 766-799), e id., “Constitutionalism in Illiberal Polities” in: Michel Rosenfeld & András Sajó (eds.), The Oxford Handbook of Comparative Constitutional Law, pp. 133-152). 15 Simplesmente porque, como lembra um dos ícones do comunitarismo moderado contemporâneo, Charles Taylor, “Cross-Purposes: the Liberal Communitarian Debate” in: Derik Matravers & John Pike (eds.), Debates in Contemporary Political Philosophy: An Anthology, London/New York, Routledge, 2003, p. 207, “No political theory can be implemented in all the purity of its original model. There have to be some compromises with reality, (…)”. 16 Apesar de a Constituição dos Estados Unidos em si não dispor concretamente neste sentido, o sentido lógico do sistema constitucional permitiria essa inferência haja em vista o Preâmbulo da Constituição redigido com recurso a terminologia tipicamente jusnaturalista de justificação do Estado (“We, the People of the United States, in Order to form a more perfect Union, establish Justice, insure domestic Tranquility, provide for the common defence, promote the general Welfare, and secure the Blessing of Liberty to ourselves and our Posterity do ordain and establish this Constitution for the United States” (The Constitution of the United States of America, Washington, Government Printing Office, 2007), pelo facto de a Bill of Rights, que foi introduzida a partir de 1789, não conter referências expressas aos direitos sociais, e, finalmente, por as leis federais ou estaduais, como veio a ser esclarecido pela Supreme Court, órgão ao qual a Constituição dizia ser beneficiário de um poder judicial sobre “all Cases, in Law and Equity, arising under this Constitution, the Laws of the United States (…) (Ibid., art. 3, sec. 2)”, no caso Marbury v. Madison de 1803, poderem ser declaradas inconstitucionais (v. igualmente Bernard Schwartz, A History of the Supreme Court, New York/Oxford, Oxford University Press, 1993, pp. 39-45), limitando a vontade do povo pela existência da própria Constituição, já que em diversas dictas presentes no acórdão sublinhava que “The powers of the legislature are defined and limited; and that those limits may not be forgotten, the constitution is written” (p. 19) (Cf. ‘Marbury v. Madison (1803)’ in: James Daley (ed.), Landmark Decisions of the U.S. Supreme Court, Mineola, New York, Dover, 2006, pp. 1-22), que “it is emphatically the province and duty of the judicial department to say what the law is. Those who apply the rule to particular cases, must of necessity expound and interpret that rule. If two laws conflict with each other, the courts must decide on the operation of each. So, if a law be in opposition to the Constitution, if both the law and the Constitution apply to a particular case, so that the Court must either decide that case conformably to the law, disregarding the Constitution, or conformably to the Constitution, disregarding the law, the Court must determine which of these conflicting rules governs the case. This is of the very essence of judicial duty. If, then, the Courts are to regard the Constitution, and the Constitution is superior to any ordinary act of the Legislature, the Constitution, and not such ordinary act, must govern the case to which they both apply” (p. 20) e, para fechar que “(…) the particular phraseology of the Constitution of the United States confirms and strenghtens the principle supposed to be essential to all written constitutions, that a law repugnant to the constitution is void, and that courts, as well as other departments, are bound by that instrument (p. 22). Ronald Dworkin, Freedom’s Law. The Moral Reading of the American Constitution, passim, sublinha a mesma percepção quando diz que “Nor do I read the Constitution to contain all the important principles of political liberalism [refere-se à versão moderada que resulta de desenvolvimentos de aproximação ao ideário da igualdade]. In other writings, for example, I defend a theory of

Constituição de Cabo Verde de 1992

115

Francesa (o Estado Republicano e o Estado Democrático)17, com os países escandinavos (o Estado Social)18 ou com o Estado de Israel (o Estado Comunitário)19. O constitucionalismo cabo-verdiano trilhou o seu percurso que poderá ser cada vez autónomo, sem embargo da ligação umbilical do ponto de vista estrutural e em vários sectores que se nota com o conseconomic justice that would require substancial redistribution of wealth in rich political societies. Some national constitutions do attempt to stipulate a degree of economic equality as a constitutional right, and some American lawyers have argued that our Constitution can be understood to do so. But I have not; on the contrary, I have insisted that integrity would bar any attempt to argue from the abstract moral clauses of the Bill of Rights, or from any other part of the Constitution, to any such result” (p. 36). 17 Assim, a ‘Constitution du 4 Octobre 1958 (Version mise à jour en novembre 2011)’, Disponível na página da rede http://www.assemblee-nationale.fr/connaissance/ constitution_11-2011.pdf, acesso a 24 de Agosto de 2013, dispondo que “La France est une République indivisible, laïque, démocratique et sociale. Elle assure l’égalité devant la loi de tous les citoyens sans distinction d’origine, de race ou de religion. Elle respecte toutes les croyances. Son organisation est décentralisée” (art. 1º). Por todos, Jeremy Jennings, “Citizenship, Republicanism, and Multiculturalism in Contemporary France”, British Journal of Political Science, v. 30, n. 4, 2000, pp. 575-597, e, com igual proveito, Cécile Laborde, Critical Republicanism. The Hijab Controversy and Political Philosophy, Oxford, UK, Oxford University Press, 2008, passim, e o comentário de Michel Borgetto “Article 1” In: François Luchaire; Gérard Conac & Xavier Prétot (dir.), La Constitution de la République Française. Analyses et Commentaires, 3ª ed., Paris, Economica, 2009, pp. 129-162. 18 Cf., por exemplo, Urban Lundberg & Klas Amark, “Social Rights and Social Security: The Swedish Welfare State, 1900-2000”, Scandinavian Journal of History, v. 26, n. 3, 2001, pp. 157-176, e Urs Steiner Brandt & Gert Tinggaard Svendesen, “The Survival of the Nordic Welfare State and Social Trust”, Nordic Journal of Political Economy, v. 36, 2010, pp. 1-15, e, especialmente, a sua representação Constitucional no Instrumento de Governo da Suécia, de acordo com o qual “ Art. 2. Public power shall be exercised with respect for the equal worth of all and the liberty and dignity of the individual. The personal, economic and cultural welfare of the individual shall be fundamental aims of public activity. In particular, the public institutions shall secure the right to employment, housing and education, and shall promote social care and social security, as well as favourable conditions for good health”, disponível na página da rede do Parlamento http://www.riksdagen.se/en/How-the-Riksdag-works/Democracy/TheConstitution/The-Instrument-of-Government/, acesso a 24 de Agosto de 2013. 19 Cf. numa das leis básicas do Estado de Israel, a ideia de que “The purpose of this Basic Law if to protect freedom of occupation, in order to establish in a Basic Law the values of the State of Israel as a Jewish and democratic state” (‘Basic Law: Freedom of Occupation [1994]’, disponível na página da rede http://www.knesset.gov.il/laws/special/eng/basic4_ eng.htm, acesso a 11 de Agosto de 2013). Vide complementarmente Michael Karayanni, “Two Concepts of Group Rights for the Palestinians under Israel’s Constitutional Definition as a “Jewish and Democratic’ State”, International Journal of Constitutional Law, v. 10, n. 2, 2012, pp 304-339, e, com uma argumentação importante, Yael Tamir, Liberal Nationalism, Princeton, NJ, Princeton University Press, 1993, p. 148 (“(…) The Israeli parliament is called the Knesset, after the ‘Great Knesset’, a central religious institution in the period of the Second Temple. Modeling itself after ‘the Great Knesset’ the Israeli parliament has 120 members. Its symbol, the seven-arm candelabra, was a traditional ritual object. Hebrew is one of the official languages of Israel (alongside Arabic); the Sabbath is the day of rest”).

116

Estudos em Comemoração do XXº Aniversário da Constituição

titucionalismo português20 e de a Constituição ser o produto, como muitas outras, de um constitutional borrowing21 intenso, neste caso da mesma fonte supramencionada. Num momento em que se desenham novas associações materiais fundacionais, designadamente o que parece ser uma deriva comunitária22 da qual decorre uma aproximação à religião tradicional das Ilhas, o catolicismo23, com a celebração da Concordata, da pensão atribuída ao antigo Bispo de Cabo Verde e com a polémica gerada pela visita presidencial ao Vaticano, é importante pelo menos traçar o estado da arte24. Uma necessidade que requer elucidar as bases e os efeitos concretos das expressões caracterizadoras fundamentais do Estado Cabo-Verdiano como República de Direito, Democrática e Social e a extensão em que o sistema compreende valores adicionais de origem cosmopolita, realista, O estudo mais importante nesta matéria é ainda o artigo de Jorge Carlos Fonseca, “Do regime de partido único à democracia em Cabo Verde: as sombras e a presença da Constituição Portuguesa de 1976”, Themis. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, Edição Especial: 30 Anos de Constituição Portuguesa, 1976-2006, 2006, pp. 81-118. 21 Sobre a noção geral de constitutional borrowing, não se adoptando qualquer valoração sobre os seus méritos, veja-se, por todos, Nelson Tebbe & Robert Tsai, “Constitutional Borrowing”, Michigan Law Review, v. 108, n. 4, 2010, pp. 459-522; mais especificamente sobre emigração/imigração de institutos, ideias e normas constitucionais, Frederich Schauer, “On the Migration of Constitutional Ideas”, Connecticut Law Review, v. 37, n. 4, 2005, pp. 907-919, textos em Sujit Choudhry (ed.), The Migration of Constitutional Ideas, Cambridge, UK, Cambridge University Press, 2006, e em Donald W. Jackson; Michael Tolley & Mary Volcansek (eds.), Globalizing Justice. Critical Perspectives on Transnational Law and the Cross-Border Migration of Legal Norms, Albany, NY, State University of New York Press, 2010. 22 Esta deriva pode ser também operada através de práticas constitucionais e de actos jurídicos de direito ordinário (cf. Winfried Brugger, “Communitarianism as the Social and Legal Theory Behind the German Constitution”, International Journal of Constitutional Law, v. 2, n. 3, 2004, pp. 431-460). 23 Cf. Frederico Cerrone, História da Igreja de Cabo Verde, Praia, Diocese de Cabo Verde, 1983. 24 Veja-se as notícias que vieram a público e a polémica suscitada por estes factos na imprensa local: ‘Cabo Verde assina Concordata com a Igreja Católica’, A Semana, 24 de Maio de 2013, pp. 2-3; ‘Acordo jurídico com Santa Sé foi assinado na Praia: Primeiroministro destaca papel da Igreja Católica em Cabo Verde’, Expresso das Ilhas, n. 602, 12 de Junho de 2013, p. 4; ‘Acordo reafirma papel da Igreja Católica em Cabo Verde’, A Nação, n. 30, 13 de Junho de 2013, p. A 25; ‘Pensão a D. Paulino [Antigo Bispo de Cabo Verde e de Santiago] nada tem a ver com a Concordata’, A Nação, n. 303, 20 de Junho de 2013, p. A8A9; por fim, veja ‘Igreja do Nazareno: Superintendente critica silêncio a volta da assinatura da Concordata’, Expresso das Ilhas Online, 11 de Junho de 2013, disponível na página da rede do jornal http://www.expressodasilhas.sapo.cv/sociedade/item/37782-igreja-donazareno-superintendente-critica-silencio-que-rodeou-acordo-juridico-entre-cabo-verde-ea-santa-se, acesso a 25 de Agosto de 2013, em que as autoridades dessa confissão religiosa manifestam preocupação em relação a esses desenvolvimentos. 20

Constituição de Cabo Verde de 1992

117

comunitarista e/ou nacionalista. Fá-lo-emos recorrendo a uma dimensão teórico-normativa, portanto sem pretender estabelecer pontes com a realidade concreta, pelo menos no sentido da verificação da eficácia da Constituição de Cabo Verde nos últimos vinte anos25, nem apresentar, fora do limitado contexto desta contribuição26, uma reconstrução histórica dos modelos de Estado adoptados no Arquipélago ou sequer do constitucionalismo cabo-verdiano27. I. As Repúblicas Sociais de Direito Democrático – Virtudes e tensões de um modelo híbrido28 O modelo de organização seguido pela comunidade política caboverdiana, não obstante as diversas fundamentações lógico-racionais que foi recebendo ao longo dos tempos, designadamente através da utilização do artifício do contrato social29, e diferentes arquitecturas, é uma construção histórica cujas origens remontam aos Séculos XVII Fazem este balanço, Aristides Lima, “A Constituição do Estado de Direito Caboverdiano”; Carlos Veiga, “Estado de Direito e Democracia em Cabo Verde trinta anos depois”, Direito & Cidadania, Número Especial: Cabo Verde, Trinta Anos Depois, pp.1330; 31-47, bem como, a partir de olhares externos, Joel Hesse Ferreira, “Funcionamento e evolução do sistema político-constitucional em Cabo Verde”, Direito & Cidadania, a. 5, n. 18, 2001, pp. 145-152, e o texto recente de Fernando Menezes de Almeida, “Vinte Anos de Constituição de Cabo Verde”, Política Externa, v. 21, n. 1, 2013, pp. 209-219, com versão reproduzida neste volume; ao longo do tempo de vigência da Constituição outros autores foram fazendo avaliações pontuais da sua aplicação. Foram os casos de Wladimir Brito, “Um balanço da Constituição de 92“; José Lopes Graça, “Balanço de cinco anos de vigência da Constituição”, Direito & Cidadania, a. 2, n. 4, 1998, pp. 181-198, 205-208. 26 Sem embargo de, por motivos evidentes, a história estar intimamente ligada a qualquer discussão de natureza jurídico-política e filosófico-política (por exemplo, cf. J.G.A. Pocock, “Theory in History: Problems of Context and Narrative” in: John Dryzek; Bonnie Honig & Anne Phillips (eds.), Oxford Handbook on Political Theory, pp. 163-174, e, complementarmente, Richard Tuck, “History” in: Robert Goodin & Philip Pettit (eds.), A Companion to Contemporary Political Philosophy, pp. 72-89. 27 Ver Mário Ramos Pereira Silva, Contributo para a História Político-Constitucional de Cabo Verde, Praia, 2012, Mimeo (arquivado com o autor), a síntese de Wladimir Brito, “O Processo Constitucional Cabo-Verdiano”, K(c)ultura. Revista de Estudos Cabo-Verdianos, Número Especial, 2001, pp. 49-56, e, para os textos relevantes, Mário Ramos Pereira Silva (comp.), As Constituições de Cabo Verde e textos históricos de Direito Constitucional CaboVerdiano, 2. ed., Praia, Edição do Autor, 2007 (contém síntese histórica na introdução). 28 São de igual interesse as obras de Jorge Reis Novais, Contributo para uma Teoria do Estado de Direito. Do Estado de Direito Liberal ao Estado Social e Democrático de Direito, Coimbra, Coimbra Editora, 1987, e Emílio Kafft Kosta, Estado de Direito. O Paradigma Zero: entre Lipoaspiração e Dispensabilidade, Coimbra, Almedina, 2007. 29 Por todos, Jean Hamton, “Contract and Consent” in: Robert Goodin & Philip Pettit (eds.), A Companion to Contemporary Political Philosophy, pp. 379-393. 25

118

Estudos em Comemoração do XXº Aniversário da Constituição

e XVIII, estando atrelado às chamadas revoluções liberais, a inglesa, a americana e a francesa30. Era, desde aquela altura, e na senda dos Estados limitados (que não eram liberais, por motivos óbvios) que a humanidade já conhecera31, uma tentativa ousada de apresentar uma alternativa viável entre o poder total consagrado nas monarquias absolutas e a ausência de poder consubstanciado na anarquia. Pelo seu carácter necessariamente híbrido, o Estado limitado padece de uma existência frágil, perpassada pela constante possibilidade de absolutização ou de anarquização do poder32. Reflexões sobre teoria política ensinam-nos que, apesar da aparente unidade da expressão “Estado de Direito Democrático” utilizada em Cabo Verde 33 e em vários países que, há mais tempo, seguem a mesma tradição constitucional (Alemanha34 ou Portu Cf., com proveito, Eric Hobsbawm, The Age of Revolutions, 1789-1848, New York, Vintage, 1962. 31 Seguir a obra de Scott Gordon, Controlling the State. Constitutionalism from Ancient Athens to Today, Cambridge, Mass, Harvard University Press, 1999. 32 Experiências como a da República de Weimar (Para a parte descritiva, cf. o polémico David Abraham, The Collapse of the Weimar Republic. Political Economy and Crisis, 2. ed., New York, Holmes & Meyer, 1986, e, em especial, Arthur Jacobson & Bernhand Schlink (eds.), Weimar. A Jurisprudence of Crisis, Berkeley/Los Angeles/London, University of California Press, 2000) e a actualidade dos Estados de Direito Democráticos com elevado grau de consolidação como a Grécia (veja-se, por exemplo, Christos Lyrintzis, “Greek Politics in the Era of Economic Crisis: Reassessing Causes and Effects”, Hellenic Observatory Papers on Greece and Southern Europe, n. 45, 2001, apesar de considerar que “it’s a remote possibility for the time being” (p. 22), e, para os efeitos sociais, Michael Herzfeld, “Crisis attack: Impromptu Ethnography in the Greek Maelstrom”, Anthropology Today, v. 27, n. 5, 2011, pp. 22-26) mostram à saciedade que motivos financeiros, sociais e internacionais podem ser tão determinantes para o surgimento do caos, da anarquia, do extremismo e da absolutização do poder, quanto outros de matriz puramente política. 33 A Constituição de Cabo Verde utiliza a seguinte fórmula no artigo 2º: “A República organiza-se em Estado de Direito Democrático assente nos princípios da soberania popular, no pluralismo de expressão e de organização política democrática e no respeito pelos direitos e liberdades fundamentais” (Cita-se a partir da versão actual republicada com as alterações introduzidas pela ‘Lei Constitucional nº 1/VII/2010, de 3 de Maio’, Boletim Oficial da República de Cabo Verde, I Série, nº 17, 3 de Maio de 2010, pp. 394-457 [doravante designada de ‘Constituição da República de Cabo Verde de 1992, versão de 2010’]. 34 Na Alemanha, uma das pátrias do constitucionalimo europeu continental, apesar de a Constituição (v. ‘Das Grundgesetz für die Bundesrepublik Deutschland [vom 23 Mai 1949]’ in: Deutschen Verfassungen, 20. auf., München, Goldmann Verlag, 1985, pp. 137-188) não fazer referência a um Estado de Direito Democrático, mas, antes, a um “Estado Federal Democrático e Social [demokratischer und sozialer Bundesstaat]”, entre os princípios, referese, mais à frente, ao “Estado de Direito Republicano Democrático e Social [republikanischen, demokratischen und sozialen Rechtsstaates]” (art. 28 (1)) e, antes disso, a uma “ordem fundamental livre e democrática [freiheit demokratische Grundordnung]”(art. 18; 21 (1)); para comentários, Werner Maihofer, “Principios de una democracia en libertad”, pp. 218-219 e ss. 30

Constituição de Cabo Verde de 1992

119

gal35) ou fórmulas similares como “Estado Democrático de Direito” (como no Brasil36, por exemplo) e da inevitável intersecção entre esses elementos37, há diferenças substanciais entre o Estado Democrático e o Estado de Direito38, e entre estes e o Estado Social e com o Estado Republicano. Definir é estabelecer fronteiras. Qualquer definição é, no entanto, necessariamente arriscada. Podemos, ainda assim, apresentar orientações operacionais desses termos, no sentido de que o Estado Democrático seria um modelo de organização política de acordo com o qual todo o poder emana do povo, estribando-se na soberania popular e em mecanismos idóneos e permanentes de sua externalização, nomeadamente através da democracia directa ou representativa, de eleições livres e periódicas, plebiscitos e referendos, contando com cidadãos obrigatoriamente activos em todas as decisões importantes para a vida colectiva e para a realização do bem comum. Num modelo em que a soberania do povo é único princípio estruturante, a vox populi não controlada seria sempre a vox dei39. A generalidade das constituições lusófonas utiliza esta expressão, a começar pela ‘Constituição da República Portuguesa de 1976’ in: Jorge Bacelar Gouveia (org.), As Constituições dos Estados de Língua Portuguesa, Coimbra, Almedina, 2012, pp. 53149, de acordo com a qual “A República é um Estado de Direito Democrático baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democrática, no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependência de poderes, visando a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa” (art. 2º). Adicionalmente, seguir os principais comentários a este texto fundamental da lavra de J. J. Gomes Canotilho & Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4. ed., Coimbra, Coimbra Editora, 2007, v. I, pp. 202-212; Jorge Miranda, “Artigo 2º” in: Jorge Miranda & Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Coimbra, Coimbra Editora, 2005, t. I, pp. 5865, e Marcelo Rebelo de Sousa & José de Melo Alexandrino, Constituição da República Portuguesa Comentada, Lisboa, Lex, 2000. 36 Ver ‘Constituição da República Federativa de 1988’ in: Jorge Bacelar Gouveia (org.), As Constituições dos Estados de Língua Portuguesa, p. 151, que, no seu artigo 1º, aponta que “A República Federativa do Brasil (…) constitui-se em Estado Democrático de Direito” (p. 151), e os comentários de Alexandre de Moraes, Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional, 6. ed., São Paulo, 2006, pp.126-136, e José Afonso da Silva, Comentário Contextual à Constituição, 5. ed., São Paulo, Malheiros, 2008, pp. 31-42. 37 Jürgen Habermas, Direito e Democracia. Entre Facticidade e Validade, passim, e, antes, Frank Michelman, “Law’s Republic”, Yale Law Journal, v. 97, n. 8, 1988, pp. 1493-1537. 38 Para esta discussão ver também Jorge Reis Novais, Os princípios constitucionais estruturantes da República Portuguesa, Coimbra, Coimbra Editora, 2004. 39 Complementarmente, veja-se, com proveito, a discussão feita por Paulo Otero, A Democracia Totalitária – Do Estado Totalitário à Sociedade Totalitária. A Influência do Totalitarismo na Democracia do Século XXI, Cascais, Principia, 2001. 35

120

Estudos em Comemoração do XXº Aniversário da Constituição

O Estado de Direito é distinto, simbolizando meramente o modelo em que o poder está organizado e contido por normas, permitindo graus diferenciados de restrição, os quais podem ir desde uma autocontenção meramente formal-organizatória com uma materialidade mínima40 (e, neste sentido, um Estado moldado em linhas hobbesianas também seria um Estado de Direito41) até uma situação em que o poder é afectado através de normas intrusivas externas, aos indivíduos se atribuem posições jurídicas oponíveis aos poderes públicos42 e os poderes do Estado são pulverizados por vários órgãos, precisamente para permitir a sua limitação e controlo mútuos (o princípio da separação e interdependência dos poderes43). Estes podem ser qualificados de Estados Liberais de Direito44, que, alicerçados em concepções individualistas da política, não pressupõem um cidadão plenamente comprometido com a vida pública, muito pelo contrário. Esta tem um valor equivalente à realização individual e privada45. Logo, as instituições do Estado devem ser moldadas de forma adequada a permitir que o indivíduo possa prosseguir os seus objectivos particulares sem ter necessariamente uma intervenção permanente na vida pública, até porque o papel de vigilância é delegado às instituições. De um ponto de vista filosófico-político, as fundações desses dois modelos são diferentes, amparando-se a democracia em visões positivas sobre a liberdade (a liberdade positiva ou o que Benjamin O tipo de Estado que ficou conhecido por Rechtsstaat (Girish Bhat, “Recovering the Historical Rechtstaat”, Review of Central and East European Law, v. 32, n. 1, 2007, pp. 65-97, e Eric Millard, “L’ État de droit, ideologie contemporaine de la democratie”, Boletín Mexicano de Derecho Comparado, Nueva Série, a. 37, n. 109, 2004, pp. 111-140), ou, como o chamaram alguns, “absolutismos auto-limitados” (vide Samuel Finer, A História do Governo, José Espadeiro Martins, (trad.) Lisboa, Europa-América, 2004 [orig.: 1997], v. III). 41 Cf. Thomas Hobbes, Leviathan or the Matter, Forme, & Power of a Commonwealth, Ecclesiasticall and Civil, C.B. MacPherson (ed.), London, Penguin, 1985, parte II. 42 Aprofundar conceito em José de Melo Alexandrino, Direitos fundamentais. Introdução geral, Cascais, Principia, 2007. 43 Para uma apresentação e reflexão histórico-jurídico-política, Nuno Piçarra, A separação de poderes como doutrina e princípio constitucional. Um contributo para o estudo das suas origens e evolução, Coimbra, Coimbra Editora, 1989. 44 A expressão já foi utilizada por Jorge Reis Novais, Contributo para uma Teoria do Estado de Direito. Do Estado de Direito Liberal ao Estado Social e Democrático de Direito, p. 51. 45 É, em concreto, um dos focos da crítica de republicanos e comunitaristas (vide Michael Sandel, “The Constitution of the Procedural Republic: Liberal Rights and Civic Virtues”, Fordham Law Review, v. 66, n. 1, 1997, pp. 1-20). 40

Constituição de Cabo Verde de 1992

121

Constant chamou de liberdade dos antigos) e o Estado de Direito contemporâneo na liberdade liberal clássica negativa (a liberdade dos modernos)46. Neste sentido, pelo menos de um ponto de vista abstracto-formal, pode existir Estado Democrático sem Estado de Direito ou Estado de Direito sem Estado Democrático47, sendo exemplos aproximados, no primeiro caso, a Venezuela Bolivariana e os sistemas populistas que têm sido criados na América Latina48 ou eventualmente para o segundo, as monarquias constitucionais em que os Reis tenham poderes efectivos e cuja legitimidade, por motivos óbvios, não emana, pelo menos em todos os seus elementos, da vontade democrática-directa do povo49. O Estado Social é uma criação filosófica e jurídico-política posterior, datando do século XIX e consolidando-se constitucionalmente no Século XX, particularmente na segunda metade com o advento do Estado de Bem-Estar Social50. Traduziu-se na expansão dos poderes Veja-se Benjamin Constant, “De la liberté des anciens comparée a celle des modernes (discours prononcée a l’athénée de Paris”) in: Oeuvres Politiques de Benjamin Constant, Charles Loundre (introduction, notes et index), Paris, Charpentier e Co., 1874, pp. 258286, e Isaiah Berlin, “Two Concepts of Liberty” in: Nigel Warburton (ed.), Arguments for Freedom, London, Open University Press, 1989, pp. 155-165. 47 Em Cabo Verde, embora com objectivos diferentes, autores como Casimiro de Pina, “Direito, Justiça e Estado. Notas sobre o Direito Eleitoral em Cabo Verde: lembranças de uma certa conferência”, Direito & Cidadania, a. 4, n. 10-11, 2001, p. 77 (falando da necessidade de “uma harmonização do princípio do Estado de Direito com o princípio democrático”, mas sustentando que “o Estado de Direito é, assim, um Estado Democrático”), e mais enfaticamente outros, como Felisberto Vieira Lopes, “Direitos Humanos e Democracia. A Constituição e os Direitos Fundamentais”, Direito & Cidadania, a. 3, Número Especial: Direitos e Democracia em Cabo Verde, 1999, p. 27 (“A expressão ‘Estado de Direito Democrático’ é pleonástica na medida em que não há, nem pode haver, Estado de Direito que não seja democrático”). 48 Cf., por todos, Frank Walsh, “The Legal Death of the Latin American Democracy: Bolivarian Populism’s Model for Centralizing Power, Eliminating Political Opposition, and Undermining the Rule of Law”, Law and Business Review of the Americas, v. 16, n. 2, 2010, pp. 241-258. 49 Por todos, veja-se Jackie Abell & Clifford Stevenson, “Defending the Faith’s? Democracy and Hereditary Rights in England”, Political Psychology, v. 32, n. 3, 2011, pp. 485504, Thomas Poole, “United Kingdom: the Royal Prerrogative”, International Journal of Constitutional Law, v. 8, n. 1, 2010, pp. 146-155, bem ainda como a obra de Vernon Bogdanor, The Monarchy and the Constitution, Oxford, UK, Oxford University Press, 1995. 50 Para a sua evolução e caracterização, seguir, por todos, Torben Iversen, Capitalism, Democracy, and Welfare, Cambridge, UK, Cambridge University Press, 2005, cap. 2; J. Donald Moon, “The Political Theory of the Welfare State” in: Gerald Gaus & Chandran Kukhatas (eds.), Handbook on Political Theory, pp. 210-221, e os textos em Christopher Pierson & Francis G. Castles (eds.), The Welfare Reader, 2. ed., Cambridge, UK, Polity 46

122

Estudos em Comemoração do XXº Aniversário da Constituição

do Estado no sentido deste assumir certas obrigações positivas em relação às pessoas, particularmente nos domínios da educação, saúde, habitação, segurança social, saneamento básico e condições mínimas de vida em troca da sua lealdade para com o Estado Liberal e uma economia de base capitalista, por definição financeiramente desigual. Através da utilização de recursos arrecadados pelo Estado, particularmente através de imposição tributária, garante serviços públicos ou subsidiados parcialmente pelo Erário público, de modo mais ou menos expandido, representando um compromisso entre a democracia e o capitalismo51, permitindo extender à maioria dos cidadãos um padrão mínimo de conforto e justiça social52. Como é sabido, em alguns países esses arranjos têm enfraquecido, em função das dificuldades financeiras existentes53. O Estado Republicano e o republicanismo são realidades antigas54. É um modelo sobretudo associado a pequenas comunidades políticas erigidas sobre valores comuns que, do ponto de vista político-territorial, remete-nos às cidades-Estado do período clássico, em especial Roma55. Neste percurso que começa séculos antes de Cristo Press, 2006. 51 Veja-se o prognóstico de Joseph Schumpeter, Capitalism, Socialism & Democracy, London/New York, Routledge, 2003 [orig.: 1943], o estudo já antigo, mas ainda assim válido, de Jürgen Habermas, A crise de legitimação no capitalismo tardio [Legitimationsproblem im spaetkapitalismus], Eduardo Portella (trad.), Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1980 [orig.: 1973], para aspectos mais empíricos, a supramencionada obra de Torben Iversen, Capitalism, Democracy, and Welfare, passim, e, por último, Wolfgang Streeck, “As Crises do Capitalismo Democrático”, Alexandre Morales (trad.), Novos Estudos, n. 92, 2012, p. 36, autor crítico, que assim sumariza a questão: “O capitalismo democrático só se estabeleceu completamente após a Segunda Guerra Mundial e à época apenas nas porções “ocidentais” do mundo, na América do Norte e na Europa Ocidental. Ali funcionou muito bem durante as duas décadas seguintes — tão bem, de fato, que esse período de crescimento econômico ininterrupto ainda domina nossas ideias e expectativas sobre o que o capitalismo moderno é ou poderia e deveria ser”. 52 Conferir Bruce Ackerman, Social Justice in the Liberal State, New Haven, Conn, Yale University Press, 1980; Cass Sunstein, Free Markets and Social Justice, New York/Oxford, Oxford University Press, 1997, e Ronald Dworkin, Sovereign Virtue. The Theory and Practice of Equality, Cambridge, Mass, Harvard University Press, 2000. 53 Ver do já citado autor, Wolfgang Streeck, “As Crises do Capitalismo Democrático”, passim. 54 Datando, em certo sentido, da Antiga Grécia (Atenas em particular) e Roma, e algumas do período medieval, renascentista (Florença e Veneza) e até moderno (Províncias Unidas) (seguir Scott Gordon, Controlling the State. Constitutionalism from Ancient Athens to Today, passim, para uma apresentação individualizada destas experiências). 55 Cf. Knud Haakonssen, “Republicanism” in: Robert Goodin & Philip Pettit (eds.), A

Constituição de Cabo Verde de 1992

123

até à actualidade, podemos distinguir uma República formal, que, no essencial, depende de um misto de auto-classificação constitucional e da distinção com a forma de governo monárquica56, de uma República material, na qual, para além disso e das práticas de legitimação do governo e do seu exercício, há uma conexão semântica indiscutível entre a ideia da “coisa de todos” que corresponde à tradução do termo latino original (res publica), e a forma como o Estado é concebido, ou seja, como a expressão mais perfeita de um regime em que os governantes são os governados e os governados são os governantes, todos sendo proprietários do Estado57. No entanto, como nem todos podem estar em posição de exercício directo do poder como nas repúblicas da antiguidade – da Grécia e Roma – fazem-no através dos seus representantes e por via de instituições de controlo. II. Criação e Consolidação do Estado Democrático/do Estado de Direito/ do Estado Social e do Estado Republicano em Cabo Verde Muitos Estados contemporâneos, não obstante os seus particularismos, passaram por processos de transição de regimes não-democráticos para países democráticos com graus diferenciados de consoCompanion to Contemporary Political Philosophy, p. 569, e Roberto Noninni, Entrada “República Romana” in: Norberto Bobbio; Nicolla Mateucci & Gianfranco Pasquino (org.), Dicionário de Política, 10 ed., Carmen Varriale e al., (Trad.) Brasília, UNB, 1997, v. II, pp. 1109-1114; J. G. A. Pocock, The Machiavellian Moment. Florentine Political Thought and the Atlantic Republican Tradition, 2. ed., Princeton, NJ, Princeton University Press, 2003; na doutrina lusófona, ver também Ricardo Leite Pinto, Neo-Republicanismo, Democracia e Constituição, Lisboa, Universidade Lusíada, 2006. 56 Ver Niccola Mateucci, Entrada “República” in: Noberto Bobbio, Nicola Mateucci & Gianfranico Pasquino (org.), Dicionário de Política., pp. 1107-1109, e, especialmente, aplicando o termo à experiência constitucional lusitana, Maria Lúcia Amaral, A forma da República. Uma introdução ao estudo do direito constitucional, Coimbra, Coimbra Editora, 2005, pp. 127-128. 57 Ver o programa republicano na pena de um dos seus principais proponentes contemporâneos, Philip Pettit, Republicanism. A Theory of Freedom and Government, Oxford, UK/New York, Oxford University Press, 1997 e Id., On the People’s Terms. A Republican Theory and Model of Democracy, Cambridge, UK, Cambridge University Press, 2012. Também Maria Lúcia Amaral, A forma da República. Uma introdução ao estudo do direito constitucional, pp. 127-128, centrada, por motivos evidentes, no caso português (“Portugal é uma República porque é uma res publica, ou um ser colectivo autogovernado e autodeterminado, onde o domínio público se exerce não para o bem de alguns mas para o bem de todos”).

124

Estudos em Comemoração do XXº Aniversário da Constituição

lidação. Foi o que também ocorreu no Arquipélago. Em Cabo Verde, o Estado Democrático data, formal e materialmente, de 1990-1991, com a última revisão da Constituição de 1980 e a transferência de soberania do Partido Africano da Independência de Cabo Verde (PAICV) para o povo com a célebre queda do artigo 4º, de acordo com o qual ele era “a força política dirigente da sociedade e do Estado”58. Foi esta a base que possibilitou a realização das primeiras eleições multipartidárias em 1991 e a mudança no poder para a oposição59. É verdade que nesse período60 são aprovadas algumas leis que acabam por contornar o esvaziamento formal dos principais direitos, liberdades e garantias previstos pela Constituição de 198061 e, nesta matéria, propiciam a efectivação da própria democracia e das eleições multipartidárias (liberdades de expressão, reunião e associação política62), todavia, o Estado Liberal de Direito é uma realidade pos Assim a ‘Lei Constitucional nº 2/III/90, de 29 de Setembro,’ B.O.C.V, n. 39, 29 de Setembro de 1990, pp. 1-12, que, no seu artigo 2º estabelecia que “o artigo 4º da Constituição é substituído por: (…) é livre a Constituição de partidos políticos”. 59 Para uma apresentação geral, ver Aristides Lima, Reforma política em Cabo Verde. Do paternalismo à modernização do Estado, Praia, Grafedito, 1992 [?]; Fafali Koudawo, Cabo Verde e Guiné-Bissau: da democracia revolucionária à democracia liberal, Bissau, Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa, 2001; Roselma Évora, Cabo Verde. A abertura política e a transição para a democracia, Praia, Spleen, 2004, e Mário Ramos Pereira Silva, Contributo para a História Político-Constitucional de Cabo Verde, caps. III e IV. 60 Fase que é muito bem capturada por Simão Monteiro, “Constituição de 1992 – Alguns Aspectos”, Revista Cabo-Verdiana de Direito, a. 3, n. 2, 1992, pp. 7-11, que a denomina de “fase transitória autónoma” (p. 8). 61 Veja-se na doutrina nacional, Mário Ramos Pereira Silva, O regime dos direitos sociais na Constituição Cabo-Verdiana de 1992, Coimbra, Edição do Autor, 2004, pp. 76-77, que assim sumariza a sua posição: “Uma das características mais importantes de alguns direitos e liberdades residia no facto de remeter para a lei a fixação dos pressupostos do seu exercício, estabelecendo a Constituição que determinadas liberdades eram garantidas nas condições previstas na lei (…) outra característica importante do sistema de direitos e liberdades instituído consistia na constante auto-limitação constitucional dos mesmos, sendo determinados direitos e liberdades livres, desde que não contrariassem a promoção do progresso social ou fossem exercídos de acordo com as necessidades e imperativos fundamentais de reconstrução nacional ou ainda em conformidade com as possibilidades da economia nacional (…). Não inteiramente satisfeito com estes preceitos, cujo âmbito de aplicação era mais restrito, o legislador constituinte rematava com uma cláusula geral aplicável a todos os direitos e liberdades (…) (Art. 30º)”. 62 A mais importante terá sido a previsão, na própria Constituição da liberdade de constituição de partidos políticos que passou a integrar o artigo 4º na revisão constitucional de 1990 com a seguinte redacção: “É livre a constituição de partidos políticos (…)” (‘Lei Constitucional nº 2/III/90, de 29 de Setembro’, art. 2º, bem como a aprovação da ‘Lei 81/III/90, de 29 de Junho (Liberdade de reunião e de manifestação]’, B.O.C.V, n. 25, Suplemento, 29 de Junho de 1990, pp. 14-15. 58

Constituição de Cabo Verde de 1992

125

terior que, num sentido abrangente, remonta à Constituição de 1992, quando são materialmente consagradas e juridicamente consolidadas verdadeiras posições jurídicas dos indivíduos contra os poderes públicos63 e consolida-se a separação e interdependência de poderes e o poder judicial independente64. Assim sendo, à soberania do povo consagrada em 1990 e efectivamente exercida em 1991, adicionaram-se a esse modelo de Estado, em 1992, as categorias especiais de direitos subjectivos que chamamos de direitos fundamentais, numa linha abrangente e efectiva. O Estado Social perpassa esses períodos e pode-se dizer que é uma realidade quase incontornável para pequenos Estados com índices de pobreza extrema ou com graus significativos de exclusão social. Tem sido realizado, verdade seja dita, à medida das possibilidades do país, nos domínios da saúde, educação e protecção social, e com algum sucesso, mas com uma materialização tolhida pela falta de recursos. A República material é também recente. Sem embargo de todas as leis fundamentais classificarem o Estado de Cabo Verde como uma República65, ela é uma realidade que, não obstante começar com a aquisição da independência, somente ocorre quando há a transição política em 1990-91 e ocorre a emergência do Estado (Liberal) de Direito Democrático em 1992, quando todos passam a ser efectivamente cidadãos livres de uma República livre66. José Pina Delgado, O sistema cabo-verdiano de direitos fundamentais. Notas de aula, Praia, Instituto Superior de Ciências Jurídicas & Sociais, 2009, e, pioneiramente em Cabo Verde, Mário Ramos Pereira Silva, O regime dos direitos sociais na Constituição CaboVerdiana de 1992, caps. IV e V; o Relatório Nacional de Direitos Humanos 2004-2010, Praia, Comissão Nacional para os Direitos Humanos e a Cidadania, 2011, passim, do qual fomos responsáveis pela parte jurídica, contém apresentação geral dos direitos fundamentais em espécie. 64 Estes aspectos são abordados na retrospectiva do sector feita por Simão Monteiro, “Justiça Cabo-Verdiana – 30 Anos Depois – Uma Retrospectiva e uma Perspectiva Futura”, Direito & Cidadania, Número Especial: Cabo Verde, Três Décadas Depois, Jorge Carlos Fonseca (org.), 2007, pp. 191-261. 65 Explicitamente, a ‘Constituição da República [13 de Outubro de 1980]’, B.O.C.V, n. 41, 13 de Outubro de 1980, art. 1º (“Cabo Verde é uma república (…)”, cuja versão mantém-se inalterada nas versões seguintes até 1990. 66 Nesta dimensão particular não deixamos de concordar com Casimiro de Pina, Constituição e Ad-Hocracia”, pp. 171-172, quando chama a atenção para a “a impropriamente chamada ‘1ª República’ em Cabo Verde”. Mário Ramos Pereira Silva, Contributo para a História Político-Constitucional de Cabo Verde, cap. III, na sua história constitucional de Cabo Verde 63

126

Estudos em Comemoração do XXº Aniversário da Constituição

III. O Modelo Filosófico-Político da Constituição da República de Cabo Verde Apesar das diferenças conceptuais, na realidade concreta, o Estado Democrático, o Estado de Direito, o Estado Social e o Estado Republicano, se fundem, resultado que são de “diversas mentes”67 e da necessidade de ajustar o ideal ao operacional. O Estado de Cabo Verde é uma República Direito Democrático e Social, como decorre, aliás, da forma como é concebido constitucionalmente, o que significa que o modelo político que foi adoptado no país agrupa precisamente um Estado Republicano, um Estado (Liberal) de Direito, um Estado Democrático e um Estado Social, fundindo-o num todo. Será sobre essas componentes distintas do modelo adoptado em Cabo Verde que se debruçará esta secção do artigo. 3.1. Um Estado Republicano Apesar de passar normalmente desapercebido, o Título I da Parte I da Constituição da República de Cabo Verde, foi intitulada de “Da República” e que a primeira formulação verdadeiramente normativa do texto constitucional é “Cabo Verde é uma República (…)”68, como tal “soberana”69, portanto não subordinada a qualquer poder externo dentro de um determinado território70. Quando o legislador constiem preparação, usa os termos “República com uma Constituição Autoritária” e “República com uma Constituição Democrática” para marcar o contraste. 67 Cass Sunstein, A Constitution of Many Minds. Why the Founding Document Doesn’t Mean What it Meant Before, Princeton/Oxford, Princeton University Press, 2009. 68 ‘Constituição da República de Cabo Verde de 1992, versão de 2010’, artº 1º. 69 Ibid. 70 Decorrente, pelo menos simbolicamente, da concepção Bodiniana de que a “soberania é a potência absoluta e perpétua de uma República [(…) la puissance absoluë et perpetuelle d’une Republique” (Jean Bodin, Les Six Libres de la République, Paris, Fayard, [1576], l. I, cap. VIII, p. 179), noção que é, por exemplo, completada ao nível externo pelos elementos destacados pelo laudo arbitral do famoso Caso da Ilha de Palma (‘Island of Palma Case’, Parties: Netherlands/USA, Max Huber (arb.), The Hague, April 1928 in: Reports of International Arbitral Awards/Recueil des Sentences Arbitrales, New York, United Nations, 2008, v. II, pp. 829-871, de autoria do famoso internacionalista Helvético Max Huber (Por todos, Daniel Thürer, “Max Huber – a Portrait in Outline”; Dietrich Schindler, “Max Huber – A Life”; Daniel-Erasmus Khan, “Max Huber as Arbitrator: The Palmas (Miangas) Case and Other Arbitrations”; European Journal of International Law, v. 18, n. 1, 2007, pp. 69-80; 81-75; 145-170), em que se a define deste modo: “Sovereignty in the relations

Constituição de Cabo Verde de 1992

127

tuinte opta por mencioná-lo não está somente a seleccioná-la de entre todas as formas de governo, particularmente com a sua concorrente mais directa, a monarquia, mas, antes, a adoptar uma concepção material, de acordo com a qual o Estado, independente desde 1975, passaria a ser uma coisa de todos, uma co-propriedade de todos os cidadãos cabo-verdianos residentes e na diáspora, sendo governado, ainda que de forma indirecta, por todos eles. As consequências dessa assertiva são evidentes e operam, para além da sua positividade, pela exclusão teórica e política que produz, mormente porque rejeita a ideia de um Estado gerido por um só (a monarquia absoluta, um governo personalista ou dominado por um partido único), mas também renuncia a qualquer propósito democrático puro, de acordo com o qual o Estado seria a pertença da maioria, e, sobretudo, no caso concreto de Cabo Verde, insurge-se contra a concepção de que ele poderia pertencer a parcela da população nacional, seja a que tenha estado ligada à luta de libertação nacional ou à própria democratização do país, seja a que, fora deste âmbito, estivesse ou venha a estar engajada com um partido único ou qualquer outro grupo identificável pela sua posição económica, social, racial, religiosa, etc. O segmento publica, “todos” em latim, significa realmente uma comunidade política de todos que tenham ligação às “Ilhas Afortunadas”71 pelo sangue, pelo nascimento ou por aquisição72. between States signifies independence. Independence in regard to a portion of the globe is the right to exercise therein, to the exclusion of any other State, the functions of a State. The development of the national organisation of States during the last few centuries and, as a corollary, the development of international law, have established this principle of the exclusive competence of the State in regard to its own territory in such a way as to make it the point of departure in settling most questions that concern international relations” (p. 838). Acompanhar com o clássico de Herman Heller, La soberanía. Contribuición a la teoría de derecho estatal y del derecho internacional, Mário de la Cueva (trad.), México, D.F., La Fundación, Escuela Nacional de Jurisprudencia/Fondo de Cultura Económica, 1995 [1927], e, com os mais recentes, Michel Troper, “Sovereignity” in: Michel Rosenfeld & András Sajó (eds.), The Oxford Handbook of Comparative Constitutional Law, pp. 354369, e Jean Cohen, “Sovereignity in the Context of Globalization: A Constitutional Pluralist Perspective” in: Samantha Besson & John Tasioulas (eds.), The Philosophy of International Law, Oxford/New York, Oxford University Press, 2010, pp. 261-280. 71 Termo emprestado de Basil Davidson, The Fortunate Islands. A Study in African Transformation, Trent, NJ, Africa World Press, 1990. 72 Em concreto, critérios densificados e formatados pela Lei da Nacionalidade ainda em vigor (‘Lei nº 80/III/90, de 29 de Junho’, B.O.C.V., nº 25, Suplemento, 29 de Junho de 1990, conforme

128

Estudos em Comemoração do XXº Aniversário da Constituição

Faz, deste modo, todo o sentido que o texto constitucional apresente no número 2 do artigo 1º a fórmula da igualdade enquanto princípio constitucional estruturante, de acordo com a qual “A República de Cabo Verde reconhece a igualdade de todos os cidadãos perante a lei, sem distinção de origem social ou situação económica, sexo, religião, convicções políticas ou ideológicas e condição social”73. A Constituição da República, ademais, não esconde a sua influência republicana ao explicitar claramente um conjunto de deveres fundamentais devidos ao Estado74, com a seguinte e simbólica formulação: “todo o indivíduo tem deveres para com a família, a sociedade e o Estado, e, ainda para com outras instituições legalmente reconhecidas”75, completando com mais uma formulação do mesmo teor, de acordo com a qual “todo o indivíduo tem o dever de respeitar os direitos e liberdades de outrem, a moral e o bem comum”76. Faz-se referência a direitos e liberdades de outrem, num quadro de reciprocidade. Porém, o curioso é que a própria concepção desse tipo de deveres para com outros indivíduos, é resultante de uma fórmula predominantemente republicana de relações horizontais entre cidadãos de uma mesma República, ao consagrar que “todo o indivíduo tem o dever de respeitar e considerar os seus semelhantes, sem discriminação de espécie alguma, e de manter com eles relações que permitam promover, salvaguardar e reforçar o respeito e a tolerância recíprocas”77. redacção dada pela ‘Lei 41/IV/92, de 6 de Abril’, B.O.C.V., nº 14, Suplemento, 6 de Abril de 1991 e pela ‘Lei nº 64/IV/92, de 30 de Dezembro’, B.O.C.V., nº 25, Suplemento, 30 de Dezembro de 1992, nomeadamente pelo nascimento (art. 7º), origem (art. 8º) ou aquisição, recobre o que for causado pelo casamento (art. 9º), filiação (art. 10), adopção (art. 11) ou naturalização (art. 12). Complementarmente, veja-se o estudo de Júlio Martins Tavares, “A nacionalidade, o princípio constitucional da proibição de extradição de nacionais, a proibição constitucional da extradição em função da pena aplicável e a política criminal” in: José Pina Delgado; Jorge Carlos Fonseca & Liriam Tiujo Delgado (orgs.), Aspectos Polémicos da Extradição em Cabo Verde e no Espaço Lusófono: Nacionalidade, Pena Aplicável, Institutos Afins, Praia, Instituto Superior de Ciências & Sociais/ Fundação Direito & Justiça, 2009, pp. 159-216, 165-190. 73 Seguir igualmente Martim de Albuquerque, Da Igualdade. Introdução à Jurisprudência, Coimbra, Almedina, 1993, pp. 9-79. 74 Para um estudo dogmático, José Casalta Nabais, “Dos deveres fundamentais” in: Por uma Liberdade com Responsabilidade. Estudos sobre Direito e Deveres Fundamentais, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, pp. 197-386. 75 ‘Constituição da República de Cabo Verde de 1992, versão de 2010’, art. 83 (1). 76 Ibid., art. 83 (2). 77 Ibid., art. 84.

Constituição de Cabo Verde de 1992

129

Os deveres fundamentais especiais são, na sua maioria, destinados, numa dimensão, a garantir a coesão da República, a lealdade dos seus membros e promover a sua exaltação patriótica78. É isso que se consagra quando se diz que “todo o cidadão tem o dever de “ser fiel à pátria (…)”79, “(…) honrar e respeitar os símbolos nacionais”80, “promover a consolidação da unidade e coesão nacionais”81, “servir as comunidades e colectividades em que se integra e o país, pondo ao seu serviço as suas capacidades físicas, morais e intelectuais”82, e, por fim, “contribuir activamente para a preservação e a promoção do civismo, da cultura, da moral, da tolerância, da solidariedade, do culto da legalidade e do espírito democrático de diálogo e concertação”83. Ademais, noutra, a promover a sua existência material, por meio do dever de “desenvolver uma cultura de trabalho e de trabalhar, na medida das suas possibilidade e capacidades”84 e, sobretudo, de “pagar as contribuições e impostos nos termos da lei”85, colocando-se ainda sob a sua responsabilidade a preservação existencial do Estado, devendo “participar na sua defesa”86, o que requer, em última instância, a possibilidade de se exigir o sacrifício máximo ao cidadão, o de dar a sua vida pela República87, num quadro em que se man Que até transcendem as decorrências constitucionais do conceito contemporâneo de “patriotismo constitucional” (ver Jan-Werner Müller, Constitutional Patriotism, Princeton, NJ, Princeton University Press, 2007), e Dolf Sternberg, Patriotismo Constitucional, Luís Villar Borda (Trad.), Bogotá, Universidad Externado de Colômbia, 2001[1980]). 79 ‘Constituição da República de Cabo Verde de 1992, versão de 2010’, art. 85 (b). 80 Ibid., art. 85 (c). 81 Ibid., art. 85 (d). 82 Ibid., art. 85 (e). 83 Ibid., art. 85 (h). 84 Ibid., art. 85 (f); junta-se a fórmula do artigo 61 (2), de acordo com o qual “O dever de trabalhar é inseparável do direito ao trabalho”, aprovada mais entusiasticamente do que o autor deste artigo por Geraldo da Cruz Almeida, Direito do Trabalho Cabo-Verdiano, Praia, Imprensa Nacional de Cabo Verde/Instituto Superior de Ciências Jurídicas & Sociais, 2010, pp. 174-179, destacando, no entanto, o seu “valor pedagógico” (p. 178), porém, pelo menos em parte na mesma linha deste artigo, já que associado implicitamente a bases republicanas que a derivam da responsabilidade cívica (p. 179). 85 ‘Constituição da República de Cabo Verde de 1992, versão de 2010’, art. 85 (g), e, complementarmente, para aspectos teórico-dogmáticos gerais, José Casalta Nabais, O Dever Fundamental de Pagar Impostos, Coimbra, Almedina, 2004. 86 ‘Constituição da República de Cabo Verde de 1992, versão de 2010’, art. 85 (b), in fine. 87 Veja-se discussão filosófico-política em Michael Walzer, “The Obrigation to Die for the State” in: Obligations. Essays in Disobedience War and Citizenship, Cambridge, Mass/ London, Harvard University Press, 1970, pp. 77-98. 78

130

Estudos em Comemoração do XXº Aniversário da Constituição

tém o serviço militar obrigatório88. Aliás, a forma como é concebida a defesa nacional acaba também por ser tributária dessa orientação republicana, no sentido de ser “a disposição, integração e acção coordenadas de todas as energias e forças morais e materiais da Nação, face a qualquer forma de ameaça ou agressão, tendo por finalidade garantir, de modo permanente, a unidade, a soberania, a integridade territorial e a independência de Cabo Verde, a liberdade e a segurança da sua população bem como o ordenamento constitucional democraticamente estabelecido”89. A presença do Estado Republicano é igualmente sentida em matéria económica e financeira90. A Constituição dispõe que “a exploração das riquezas e recursos económicos do país, qualquer que seja a sua titularidade e as formas de que se revista, está subordinada ao interesse geral”91, função republicana e social92 perpectivada também subjectivamente no sentido de conduzir à “fruição por todos os cidadãos dos benefícios resultantes do esforço colectivo de desenvolvimento, traduzida, nomeadamente na melhoria quantitativa e qualitativa do seu nível e condição de vida”93. Destarte, o mercado é submetido ao princípio da sã concorrên94 cia , permitindo a adopção das medidas necessárias para evitar que os agentes económicos, de forma livre ou induzida, adoptem qualquer medida que afecte o interesse geral. Com tal objectivo em mente, ‘Constituição da República de Cabo Verde de 1992, versão de 2010’, art. 249 (1). Ibid., art. 246. 90 Ver o interessante artigo de Ulisses Correia e Silva, “Cabo Verde: Três Décadas de Economia à Luz da Constituição e da Praxis Governativa”, Direito & Cidadania, Número Especial: Cabo Verde, Três Décadas Depois, Jorge Carlos Fonseca (org.), 2007, pp. 79-124, seguindo a dicotomia economia liberal-iliberal. 91 ‘Constituição da República de Cabo Verde de 1992, versão de 2010’, art. 91 (1). 92 Ver também Cass Sunstein, Free Markets and Social Justice, p. 6, para quem “it is necessary to know not simply whether a society is rich in economic terms, but also how its resources are distributed” e que salienta igualmente que “some goods should not be sold in markets at all; consider the right to vote or the right to be free from discrimination on the basis of sex”. 93 ‘Constituição da República de Cabo Verde de 1992, versão de 2010’, art. 91 (2) (a). 94 Assim, a Constituição Económica quando prevê que “O Estado e os demais poderes públicos garantem as condições de realização da democracia económica, assegurando, designadamente: (…) b) A igualdade de condições de estabelecimento e de actividade entre os agentes económicos e a sã concorrência; (…)” (Ibid, art. 91 (2) (b)). 88 89

Constituição de Cabo Verde de 1992

131

o mercado e qualquer actividade económica devem ser submetidos a “regulação” e “fiscalização”95, mormente destinadas a proteger os consumidores96, trabalhadores97, e outras partes vulneráveis das relações económicas, já que estas podem assumir contornos assimétricos. No geral, pode-se sustentar que grande parte dos princípios vertidos para a Constituição Económica de Cabo Verde98, os quais têm por objecto harmonizar o direito à propriedade e a liberdade de iniciativa económica com o interesse geral99, denotam um teor fortemente republicano, nomeadamente levando em conta valores públicos relevantes que partem do princípio de que a República transcende os seus cidadãos e tem objectivos próprios que não podem ser capturados por interesses individuais, nomeadamente levando a ordem económica a levar em conta o “ordenamento territorial e o planeamento urbanístico equilibrados”100; a necessidade de as actividades económicas serem “realizadas tendo em vista a preservação do ecossistema, a durabilidade do desenvolvimento e o equilíbrio das relações entre o homem e o meio envolvente”101, o apoio aos “agentes económicos nacionais na sua relação com o resto do mundo e, de modo especial, os agentes e actividades que contribuam positivamente para a inserção dinâmica de Cabo Verde no sistema económico mundial”102 e o “ investimento Ibid., art. 91 (2) (c). Assim, o artigo 81 da Constituição da República: “1. Os consumidores têm direito à qualidade dos bens e serviços consumidos, à adequada informação, à protecção da saúde, da segurança e dos seus interesses económicos, bem como à reparação dos danos sofridos pela violação de tais direitos” (Ibid.). 97 Cf. infra 3.4. 98 Ver a apresentação feita neste volume por Liriam Tiujo Delgado, “A Constituição Económica Cabo-Verdiana”, passim, e os estudos sobre a Constituição Económica que, não obstante dizerem respeito a outros ordenamentos jurídicos, seguem discussões com interesse para a realidade cabo-verdiana, António Sousa Franco & Guilherme d’Oliveira Martins, A Constituição Económica Portuguesa. Ensaio Interpretativo, Coimbra, Almedina,1993; Eros Roberto Grau, A Ordem Económica na Constituição de 1988, 14. ed., São Paulo, Malheiros, 2008; Rolf Stober, Direito Administrativo Económico Geral. Fundamentos e Princípios do Direito Constitucional Económico e do Direito Administrativo Económico Geral, do Direito Económico Mundial e do Direito do Mercado Interno, António Francisco de Sousa (trad.), Lisboa, Universidade Lusíada, 2008. 99 Sobre esta questão e os princípios constitucionais em matéria económica, alguns dos quais mencionados abaixo, ver o texto de Liriam Tiujo Delgado, “A Constituição Económica Cabo-Verdiana”, passim. 100 ‘Constituição da República de Cabo Verde de 1992, versão de 2010’, art. 91 (2) (f). 101 Ibid., art. 91 (3). 102 Ibid., art. 91 (4). 95 96

132

Estudos em Comemoração do XXº Aniversário da Constituição

externo que contribua para o desenvolvimento económico e social do país”103, a existência dos sectores público junto ao privado na economia104, bem ainda como a limitação da apropriabilidade de bens considerados públicos105, por um lado, e a possibilidade condicionada de publicização de propriedade privada, por outro lado106. 3.2. Um Estado (Liberal) de Direito Ainda que esse efeito não pudesse ser inferido autonomamente, a formulação que se segue no artigo 1(1) permitiria, dentro do seu âmbito de aplicação, esclarecer qualquer dúvida. Cabo Verde é uma República que “garante o respeito pela dignidade da pessoa humana e reconhece a inviolabilidade e inalienabilidade dos direitos humanos como fundamento de toda a comunidade humana, da paz e da justiça”107 , pronuncia-se o texto constitucional. Traz, deste modo, o grande qualificativo material e filosófico da República, a dignidade e o respeito pelos direitos humanos, verdadeiro limite imposto à Comunidade Política, no sentido de que os indivíduos portam uma dignidade intrínseca, que impede que sejam utilizados como meras peças para servir o Estado e como tais instrumentalizáveis e descartáveis por motivos de conveniência108, e que trazem para dentro da Ibid., art. 91 (5). Ibid., art. 91 (6) (“É garantida, nos termos da lei, a coexistência dos sectores público e privado na economia, podendo também existir propriedade comunitária autogerida”). 105 “São do domínio público: a) As águas interiores, as águas arquipelágicas, o mar territorial, seus leitos e subsolos, bem como os direitos de jurisdição sobre a plataforma continental e a zona económica exclusiva, e ainda todos os recursos vivos e não vivos existentes nesses espaços; b) Os espaços aéreos sobrejacentes às áreas de soberania nacional acima do limite reconhecido ao proprietário; c) Os jazigos e jazidas minerais, as águas subterrâneas, bem como as cavidades naturais, existentes no subsolo; d) As estradas e caminhos públicos, bem como, as praias; e) Outros bens determinados por lei. É, ainda, do domínio público do Estado, a orla marítima, definida nos termos da lei, que deve merecer atenção e protecção especiais (Ibid., art. 91 (7) e (8)). 106 Numa perspectiva de direitos fundamentais, diz-se que “a requisição ou expropriação por utilidade pública só podem ser efectuadas com base na lei e sempre mediante o pagamento da justa indemnização” (Ibid., art. 69 (3)). Comenta o instituto em Cabo Verde, Alfredo Teixeira, “Expropriação por Utilidade Pública”, Direito & Cidadania, a. 1, n. 1, 1997, pp. 149-154. 107 ‘Constituição da República de Cabo Verde de 1992, versão de 2010’, art. 1 (1). 108 As orientações normativas concretas do princípio da dignidade da pessoa humana podem, pelo menos parcialmente, ser derivadas da Segunda Fórmula do Imperativo Categórico de Kant, de acordo com a qual “Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua 103 104

Constituição de Cabo Verde de 1992

133

República posições jurídicas que se lhe podem opor109. A formulação constitucional nesta matéria é tão significativa que, propugnando por uma linha liberal tradicional na sua dimensão política110 e não comunitarista liberal111, utiliza e acentua a linguagem da “garantia” pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como um meio” (Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Artur Morão (trad.), Lisboa, Edições 70, 1995, p. 69), já que, como diz, “o homem não é uma coisa; não é portanto um objecto (…)” (Ibid., p. 70); acompanhar com Roger Sullivan, An Introduction to Kant’s Ethics, Cambridge, UK, Cambridge University Press, 1994, passim. 109 Como a célebre invectiva anti-utilitarista (mas que se aplicaria a qualquer teoria colectivista dos direitos), de John Rawls, A Theory of Justice, p. 3, põe em evidência “Each person possesses and inviolability founded on justice that even the welfare of society as a whole cannot override. For this reason, justice denies that the loss of freedom for some is made right by a greater good shared by others. It does not allow that the sacrifices imposed on a few are outweighed by the larger sum of advantages enjoyed by many. Therefore in a just society the liberties of equal citizenship are taken as settled; the rights secured by justice are not subject to political bargaining or to the calculus of social interests. The only thing that permits us to acquiesce in an erroneous theory is the lack of a better one; analogously, an injustice is tolerable only when it is necessary to avoid an even greater injustice. Being first virtues of human activities, truth and justice are uncompromising”. 110 Temos que a Constituição da República reproduz na sua essência concepções de natureza liberal, mas não libertária (Robert Nozick, Anarchy, State, and Utopia, New York, Basic Books, 1971) ou neoliberal (cf. paradigmaticamente F. A. Hayek, The Constitution of Liberty, Chicago/London, Chicago University Press, 1960). Estruturalmente trata-se de um liberalismo moderado de matriz política e somente incidentalmente económico. A formulação sobre a liberdade de iniciativa económica e a justificação da propriedade na Constituição Cabo-Verdiana enquanto “Democracia Constitucional” (ver Miguel Nogueira de Brito, A Justificação da Propriedade Privada num Democracia Constitucional, Coimbra, Almedina, 2007) são tributárias sobretudo da ideia de que sem alguma liberdade económica não há verdadeira liberdade política, simplesmente porque o indivíduo fica totalmente submetido ao Estado e este se agiganta excessivamente, pondo em risco a própria liberdade. Porém, está longe de ter como pressuposto a concepção defendida por aquelas correntes que têm a liberdade económica como um fim em si mesmo (tendencialmente pela forma como estabelece uma relação ontológica entre a liberdade política e uma liberdade económica quase ilimitada, Milton Friedman, Capitalism and Freedom, Chicago/London, Chicago University Press, 1962). Assim, se a Lei Fundamental da nossa República absorve a ideia de que a ausência de liberdade económica – embora muitas vezes mal concretizada face à volúpia do Estado de Cabo Verde nesta matéria – pode ser o “caminho para a servidão” (Veja-se o clássico de F.A. Hayek, The Road to Serfdom in: Bruce Caldwell (eds.), The Collected Works of F.A. Hayek, Chicago/London, Chicago University Press, 2007 [1944]), não considera que para se evitar este resultado não se a pode limitar de modo nenhum. Outrossim, em concreto, o legislador constituinte opta para que a base da ordem económica de Cabo Verde (ver a este respeito a sistematização feita neste volume por Liriam Tiujo Delgado, “A Constituição Económica Cabo-Verdiana”, passim), não determine as fundações da Constituição (ver este tipo de formulação em outras paragens, com Charles Austin Beard, An Economic Interpretation of the Constitution of the United States, Memphis, General Books, 2012 [1913]), mas, ao contrário, é determinada pelas opções fundamentais e fundacionais de base eminentemente política. 111 Cf., por exemplo, Charles Taylor, “Cross-Purposes: the Liberal Communitarian Debate”, pp. 195-212, e a sua opus magnum The Sources of the Self, Cambridge, Mass, Harvard University Press, 1989.

134

Estudos em Comemoração do XXº Aniversário da Constituição

ao invés da “concessão”, do “reconhecimento” e não da “criação”, demonstrando claramente que, para o legislador constituinte, tratavase de um mero acto de positivação de direitos pré-estaduais, válidos extra-constitucionalmente, cuja existência independente da vontade do legislador, mas decorre substancialmente da natureza humana. Por conseguinte, mesmo que sigamos, como eu próprio, o sentido do positivismo jurídico de que mesmo um Estado que contenha um Direito profundamente injusto (imoral) continua a ser de Direito112 e a poder ser Estado de Direito (numa dimensão formal)113, o facto é que o Estado Liberal de Direito qualifica o Direito114 à medida que o erege a Ver discussão promovida por Herbert Hart, The Concept of Law, p. 207-212 (“A concept of law which allows the invalidity of law to be distinguished from its immorality, enables us to see the complexity and variety of these separate issues; whereas a narrow concept of law which denies legal validity to iniquitous rules may blind us to them”) e o “Positivism and the Separation of Law and Morals” in: Dennis Patterson (ed.), Philosophy of Law and Legal Theory. An Anthology, Oxford, Blackwell, 2003, pp. 69-90, em que, no seu debate com Gustav Radbruch sobre o assunto, reclama implicitamente um carácter liberal para a sua teoria positivista moderada da separação entre Direito e Moral (“I think, uncharitable to say that we can see in his argument that he has only half-digested the spiritual message of liberalism which he is seeking to convey to the legal profession. For everything that he says is really dependent upon an enormous overevaluation of the importance of the bare fact that a rule may be said to be a valid rule of law, as if this, once declared, was conclusive of the final moral question. ‘Ought this rule of law to be obeyed?’. Surely the truly liberal answer to any sinister use of the slogan ‘law is law’ or of distintion between law and morals is ‘Well, but that does not conclude the question. Law is not morality; do not let it supplant morality’”) (p. 81). 113 Cf. Hans Kelsen, Teoria Pura do Direito, João Baptista Machado (trad.), São Paulo, Martins Fontes, 1998, cap. vi (Direito e Estado), especialmente a síntese feita, de acordo com a qual “Se o Estado é concebido como uma comunidade social, esta comunidade apenas pode, como já cima se expôs, ser constituída por uma ordem normativa. E, visto que uma comunidade apenas pode ser constituída por uma tal ordem normativa (sim, identifica-se mesmo com esta ordem), a ordem normativa que constitui o Estado apenas pode ser a ordem de coerção relativamente centralizada que nós verificamos ser a ordem jurídica estadual” (p. 318) ou, como sublinha, “Se o Estado é reconhecido como uma ordem jurídica, se todo o Estado é um Estado de Direito, esta expressão representa um pleonasmo” (p. 346) e, mais tarde arremata, “Todo o Estado tem que ser um Estado de Direito no sentido de que todo o Estado é uma ordem jurídica” (p. 353). 114 O publicista e jusfilósofo austríaco acertadamente destaca na sua opus magnum, que a expressão Estado de Direito “é efectivamente utilizada para designar um tipo especial de Estado, a saber, aquele que satisfaz aos requisitos da democracia e da segurança jurídica. ‘Estado de Direito’ neste sentido específico é uma ordem jurídica relativamente centralizada segundo a qual a jurisdição e a administração estão vinculadas às leis – isto é, às normas gerais que são estabelecidas por um parlamento eleito pelo povo, com ou sem intervenção de um chefe de Estado que se encontra à testa do governo –, os membros do governo são responsáveis pelos seus actos, os tribunais são independentes e certas liberdades dos cidadãos, particularmente a liberdade de crença e de consciência e a liberdade de expressão do pensamento são garantidas” (Ibid., p. 346), mas que não se o pode extrapolar para se confundir com o conceito geral de Estado (“Uma tal suposição, [diz], é um preconceito jusnaturalista. Também uma ordem coercitiva relativamente centralizada que tenha carácter autocrático e, em virtude da sua flexibilidade ilimitada, não ofereça qualquer espécie de 112

Constituição de Cabo Verde de 1992

135

partir de pressupostos inquestionavelmente morais115, um deles sendo os direitos humanos. É o caso da Constituição da República de Cabo Verde, que, por este motivo, consagra direitos, liberdades e garantias de base liberal. Estes são, de forma extensa, consagrados no texto constitucional, abarcando o direito à vida116, à integridade pessoal117, à liberdade118 e à privacidade119. E, para protegê-los, em última instância, ao indivíduo se reconhece a ‘bomba atómica’ liberal contra o Estado120, o direito de resistência121, ainda que de modo relativamente limitado122. segurança jurídica, é uma ordem jurídica e a comunidade por ela constituída – na medida em que se distinga entre ordem e comunidade – é uma comunidade jurídica e, como tal, um Estado” (p. 353). 115 Cf. Ronald Dworkin, Freedom’s Law. The Moral Reading of the American Constitution, passim, e Jürgen Habermas, Direito e Democracia. Entre Facticidade e Validade, cap. III e IV, derivando-os do princípio do discurso, ainda que mediados pelo direito e pela política; id., “Constitutional Democracy: A Paradoxical Union of Two Contrasting Principles?”, p. 767 (“If the normative justification of constitutional democracy is to be consistent, then it seems one must rank the two principles, human rights and popular sovereignty”); complementarmente, Luís Pereira Coutinho, A Autoridade Moral da Constituição. Da Fundamentação da Validade do Direito Constitucional, Coimbra, Coimbra Editora, 2009. 116 “A vida humana (…) é inviolável”, dispõe, no segmento relevante do artigo 28 (1), a Constituição da República (Ibid); para comentários, Relatório Nacional de Direitos Humanos 2004-2010, pp. 20-27 117 No mesmo artigo prevê-se que “a integridade física e moral das pessoas é inviolável” (‘Constituição da República de Cabo Verde de 1992, versão de 2010’, art. 28 (1), que constituíria a norma de protecção da integridade pessoal em todas as suas dimensões. Complementarmente, Relatório Nacional de Direitos Humanos 2004-2010, pp. 27-32. 118 “1. É inviolável o direito à liberdade. 2. São garantidas as liberdades pessoal, de pensamento, de expressão e de informação, de associação, de religião, de culto, de criação intelectual, artística e cultural, de manifestação e as demais consagradas na Constituição, no direito internacional geral ou convencional, recebido na ordem jurídica interna, e nas leis”, expõe, sintetizando e prevendo, um direito geral à liberdade a Constituição (‘Constituição da República de Cabo Verde de 1992, versão de 2010’, art. 29). Ver Relatório Nacional de Direitos Humanos 2004-2010, pp. 32-60. 119 “Todo o cidadão tem direito (…) à reserva da intimidade da sua vida pessoal e familiar” (‘Constituição da República de Cabo Verde de 1992, versão de 2010’, art. 41 (2)). Vide Relatório Nacional de Direitos Humanos 2004-2010, p. 61 e ss. 120 Recorde-se que John Locke, The Second Treatise of Government: An Essay Concerning the True Original, Extent, and End of Civil Government in: John Locke, Two Treatises of Government, Peter Laslett (ed.), Cambridge, UK, Cambridge University Press, 1988 (Student Edition), cap. XVIII § 202-208, defendia essa possibilidade como forma de oposição à tirania; para reflexões sobre o direito constitucional de resistência, ver, por todos, Maria de Assunção Esteves, A Constitucionalização do Direito de Resistência, Lisboa, AAFDL, 1989; Maria Garcia, Desobediência Civil. Direito Fundamental,São Paulo, Revista dos Tribunais, 1994, e José Carlos Buzanello, Direito de Resistência Constitucional, Rio de Janeiro, América Jurídica, 2003. 121 “É reconhecido a todos os cidadãos o direito de não obedecer a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias”, é a fórmula utilizada pela (‘Constituição da República de Cabo Verde de 1992, versão de 2010’, art. 19). 122 Se o compararmos, designadamente, à Lei Fundamental da Alemanha, onde se inscreve que “Todos os Alemães têm o direito de resistir a qualquer pessoa que vise abolir esta ordem consti-

136

Estudos em Comemoração do XXº Aniversário da Constituição

Os desdobramentos constitucionais objectivos deste Estado de Direito são parcialmente traduzidos no número 2 do artigo 2º da Lei Fundamental, em que se consagra, a separação e interdependência de poderes, a separação entre as Igrejas e o Estado, a independência dos tribunais, a autonomia do poder local e a descentralização democrática da Administração Pública123, ao que se deve acrescentar a subordinação do Estado à Constituição formulada no artigo 3 (1) e a supremacia da Lei Fundamental124. Não que se possa sustentar que todos fazem parte do núcleo da ideia do Estado de Direito ou se seriam meras esferas acessórias da mesma concepção. A separação e interdependência de poderes e a independência dos tribunais fazem parte seguramente dessa esfera central, sendo, no fundo, salvaguardas inerentes em relação ao poder político, obrigando à pulverização desses poderes (no nosso caso, três deles, o Presidente da República, a Assembleia Nacional e o Governo, como é natural no sistema semipresidencial adoptado125 pela Constituição126) para que se controlem mutuamente e a existência de um poder não-político, legitimado pelo próprio Estado de Direito, o judicial, dotado de independência em relação aos outros127, que permite aos indivíduos protegerem os seus tucional, se outro remédio não estiver disponível [Gegen jeden, der es unterninmt, diese Ordnung zu beseitigen, haben alle Deutschen das Recht zum Widerstand, wenn andere Abhilfe nicht möglich ist]” (‘Das Grundgesetz für die Bundesrepublik Deutschland [vom 23 Mai 1949]’, art. 20 (4)) 123 Para a discussão cabo-verdiana, cf. Edésio Fernandes & Carlos Veiga, “Descentralizando Cabo Verde”, Direito & Cidadania, a. 7, n. 22, 2005, pp. 193-207, e Carlos Veiga, “Descentralização e desconcentração administrativa – Questões Conceptuais. Reforma da Admnistração Pública e Regionalização – Desafios e Perspectivas em Cabo Verde”, Direito & Cidadania, a. 8, n. 25-26, 2006/07, pp. 251-269. 124 “O Estado subordina-se à Constituição e funda-se na legalidade democrática, devendo respeitar e fazer respeitar as leis”, é a redacção utilizada pela nossa lei fundamental ((‘Constituição da República de Cabo Verde de 1992, versão de 2010’, art 3(2)). 125 Por todos, ao longo dos tempos, na literatura cabo-verdiana, Aristides Lima, “O Sistema de Governo na Perspectiva da Revisão Constitucional”, Direito & Cidadania, a. 9, n. 28, Número Especial: Revisão Constitucional, Jorge Carlos Fonseca & José Pina Delgado (coords), 2009, pp. 69-81; Mário Pereira Silva, “Sistema de Governo: a Singularidade Caboverdiana” in: Jorge Bacelar Gouveia (coord.), I Congresso do Direito de Língua Portuguesa, Coimbra, Almedina, 2010, pp. 197-240, e Jorge Carlos Fonseca, “Sistema de Governo na Constituição da República de Cabo Verde de 1992” in: Cabo Verde. Constituição – Democracia – Cidadania, Praia/Lisboa, ISCJS/Almedina, 2011, pp. 135-151. 126 Como sustenta Cindy Skatch, “The ‘Newest’ Separation of Powers: Semi-Presidentialism”, International Journal of Constitutional Law, v. 5, n. 1, 2007, pp. 93-121, o semi-presidencialismo não deixa de ser uma técnica de separação de poderes. 127 Ver ‘‘Constituição da República de Cabo Verde de 1992, versão de 2010’, art. 211

Constituição de Cabo Verde de 1992

137

direitos fundamentais128 ou interesses legítimos de actos do próprio Estado129, para além da garantirem a própria Constituição em relação a actos legislativos inconstitucionais130. Mais determinante para este estudo é a separação entre o Estado e a Igreja131, do qual decorre um indício de rejeição de um Estado Comunitarista puro, assente na partilha global de elementos identitários (mormente de religião ou de etnia), como ocorre com os exemplos de (“No exercício das suas funções, os tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à Constituição e à lei”), e, para uma reflexão, Rui Araújo, “Legitimidade e Independência do Poder Judicial num Estado de Direito Democrático”, Direito & Cidadania, a. 3, n. 8, 19992000, pp. 189-203, e, mais recentemente, Mário Pereira Silva, “O Poder Judicial e a Revisão Constitucional: um Novo Modelo para a Justiça” in: Mário Pereira Silva; Leão de Pina & Paulo Monteiro Jr. (orgs.), Estudos em Comemoração do Quinto Aniversário do ISCJS, Praia, Instituto Superior de Ciências Jurídicas & Sociais, 2012, pp. 253-295. 128 Em particular, ‘‘Constituição da República de Cabo Verde de 1992, versão de 2010’., art. 20 (“A todos os indivíduos é reconhecido o direito de requerer ao Tribunal Constitucional, através de recurso de amparo, a tutela dos seus direitos, liberdades e garantias fundamentais, constitucionalmente reconhecidos, (…)”) e 22 (“A todos é garantido o direito de acesso à justiça e de obter, em prazo razoável e mediante processo equitativo, a tutela dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos”). Seguir os trabalhos a este respeito de José Lopes da Graça, “O ‘Recurso de Amparo’ no Sistema Constitucional Cabo-Verdiano. Breves Reflexões”, Direito & Cidadania, a. 1, n. 2, 1998, pp. 199-209; Wladimir Brito, “O Amparo Constitucional”, Direito & Cidadania, a. 3, n. 7, 1999, pp. 9-33; Carlos Veiga, “Recurso de Amparo”, Direito & Cidadania, a. 5, n. 16/17, 2003, pp. 163-175, e, por fim, Aristides Lima, O Recurso Constitucional de Amparo Alemão e o Recurso de Amparo Cabo-verdiano: uma Análise Comparativa, Praia, Edição do Autor, 2004. 129 “O particular, directamente ou por intermédio de associações ou organizações de defesa de interesses difusos a que pertença, tem, nos termos da lei, direito a: (…) e) Requerer e obter tutela jurisdicional efectiva dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, nomeadamente através da impugnação de quaisquer actos administrativos que os lesem, independentemente da forma de que se revistam, de acções de reconhecimento judicial desses direitos e interesses, de pedido de adopção de medidas cautelares adequadas e de imposição judicial à Administração de prática de actos administrativos legalmente devidos; f) Impugnar as normas administrativas com eficácia externa lesivas dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos”; para alguns desenvolvimentos, Anildo Martins, “Contencioso Administrativo (Algumas questões)”, Direito & Cidadania, a. 6, n. 20-21, 2004, pp. 189197; José Manuel Sérvulo Correia, “Modernização do Contencioso Administrativo”, Direito & Cidadania, a. 7, n. 24, 2006, pp. 135-151, e, por fim, Eduardo Rodrigues, “Garantia dos Administrados”, Direito & Cidadania, a. 3, n. 8, 1999-2000, pp. 241-259. 130 Ver ‘Constituição da República de Cabo Verde de 1992, versão de 2010’, Parte VI, cap. II, seguir com os comentários de Nuno Piçarra, “A evolução do sistema de garantia da Constituição em Cabo Verde”, Direito & Cidadania, a. 7, n. 22, 2005, pp. 211-248; Jorge Carlos Fonseca, “Fiscalização da Constitucionalidade – Algumas notas, em jeito de tópicos desenvolvidos, com incidência particular sobre o direito cabo-verdiano”, Direito & Cidadania, a. 3, Número Especial: Direitos e Democracia em Cabo Verde, 1999, pp. 109121, e a monografia do jurista nacional José Lopes Graça, Controlo da Constitucionalidade das Leis no Espaço Lusófono, Praia, Edição do Autor, 2003. 131 De acordo com a ‘Constituição da República de Cabo Verde de 1992, versão de 2010’, art. 2 (2), “A República de Cabo Verde reconhece, (…) a separação entre as Igrejas e o Estado, (…)”.

138

Estudos em Comemoração do XXº Aniversário da Constituição

Israel, Grécia ou alguns outros. Evidentemente, a laicidade do Estado é também uma salvaguarda do Estado de Direito, à medida em que a sua inexistência limitaria sobremaneira as liberdades em matéria religiosa132. 3.3. Um Estado Democrático O número 1 do artigo 1º da Constituição não se limita a estabelecer o carácter republicano do Estado. Cabo Verde não é uma mera República, ainda que, como se viu, necessariamente material. É, ademais, “democrática”, no sentido de que o forjar da vontade nacional resulta da intervenção e legitimação do demos, o soberano supremo, operacionalizável através da regra da maioria133, de onde decorre a justificação para o exercício do poder134. O contéudo deste Estado Democrático não deixa de ser estabelecido pelo legislador constituinte. Na sequência do que prescreve a Constituição no artigo 3 (1), o texto fundamental dispõe que o “O poder político é exercido pelo povo através do referendo, do sufrágio e pelas demais formas constitucionalmente estabelecidas” (art. 4(1))135. Esses princípios são densificados pela Parte IV da CRCV136 e regulados infra-constitucionalmente pelo Código Eleitoral137, que Designadamente as consagradas por Ibid., art. 49 (1): “É inviolável a liberdade de consciência, de religião e de culto, todos tendo o direito de, individual ou colectivamente, professar ou não uma religião, ter uma convicção religiosa da sua escolha, participar em actos de culto e livremente exprimir a sua fé e divulgar a sua doutrina ou convicção, contanto que não lese os direitos dos outros e o bem comum. Cf. igualmente o trabalho de Jónatas Machado, Liberdade Religiosa numa Comunidade Constitucional Inclusiva. Dos Direitos da Verdade aos Direitos dos Cidadãos, Coimbra, Coimbra Editora, 1996, seguindo linha filosófico-política; são de interesse complementar as obras de Paulo Pulido Adragão, A Liberdade Religiosa e o Estado, Coimbra, Almedina, 2002, e Elza Galdino, Estado sem Deus. A Obrigação da Laicidade na Constituição, Belo Horizonte, Del Rey, 2006. 133 Veja-se a discussão promovida pelo politólogo cabo-verdiano, Nilton Reis, O princípio da maioria em democracia, Dissertação de Mestrado, Lisboa, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2008, p. 99. 134 Estipula a ‘Constituição da República de Cabo Verde de 1992, versão de 2010’, art. 3 (1) “A soberania pertence ao povo, que a exerce pelas formas e nos termos previstos na Constituição”. 135 Ibid., art. 4 (1). 136 Ibid., parte IV ((“Do Exercício do Poder Político”). 137 Ver versão consolidada em ‘Código Eleitoral’, B.O.C.V., n. 23, 3º Suplemento, 22 de Junho, pp. 22-90, e Mário Pereira Silva, Código Eleitoral Anotado, Praia, Edição do Autor, 2005 (para comentários úteis, ainda que referentes a uma versão anterior à que actualmente está em vigor); ver também Aristides Lima, “Quo Vadis – Sistema Eleitoral? Questões fundamentais em debate no sistema cabo-verdiano?”, Direito & Cidadania, a. 7, n. 24, 2006, pp. 61-79. 132

Constituição de Cabo Verde de 1992

139

levam ao critério obrigatório de legitimação democrática, directa ou indirecta, de todos os titulares dos órgãos políticos do Estado, respectivamente, do Presidente da República138 e dos deputados à Assembleia Nacional139 e do Primeiro Ministro140 e dos Membros do Governo141. A estes se confere um poder de moderação do sistema político e de representação da República142, de feitura das leis143 para regular as relações sociais que se produzem em Cabo Verde144 e para rever a Constituição145 e de administração geral no país146. De acordo com a Constituição, “O Presidente da República é eleito por um período de cinco anos, que se inicia com a tomada de posse e termina com a posse do novo Presidente eleito” (‘Constituição da República de Cabo Verde de 1992, versão de 2010’, art. 126 (1)). 139 “A Assembleia Nacional tem um mínimo de sessenta e seis e um máximo de setenta e dois Deputados, eleitos nos termos da Constituição e da lei” (Ibid., art. 141 (1)). 140 Estabelece o texto constitucional que “O Primeiro-Ministro é nomeado pelo Presidente da República, ouvidas as forças políticas com assento na Assembleia Nacional e tendo em conta os resultados eleitorais, a existência ou não de força política maioritária e as possibilidades de coligações ou de alianças” (Ibid., art. 194 (1)). 141 Na sequência, prevê-se que “Os Ministros e os Secretários de Estado são nomeados pelo Presidente da República sob proposta do Primeiro-Ministro” (Ibid., art. 194 (2)). 142 De acordo com o artigo 125, “1. O Presidente da República é o garante da unidade da Nação e do Estado, da integridade do território, da independência nacional e vigia e garante o cumprimento da Constituição e dos tratados internacionais. 2. O Presidente da República representa interna e externamente a República de Cabo Verde e, por inerência das suas funções, é o Comandante Supremo das Forças Armadas” (Ibid). 143 No geral, Wladimir Brito, “A feitura das leis em Cabo Verde”, Direito & Cidadania, a. 4, n. 12-13, 2001, pp. 15-42, e Geraldo da Cruz Almeida, “Tipologia dos Actos Legislativos no Direito Cabo-Verdiano” in: Reforma do Estado, Teoria da Legislação e Regulação, Praia, Dakar/Praia, Fundação Friedrich Ebert/Assembleia Nacional, 2003, pp. 129-157. 144 Particularmente, o artigo 175, de acordo com o qual “Compete, especificamente, à Assembleia Nacional: a) Aprovar as leis constitucionais; b) Fazer leis sobre todas as matérias, excepto as da competência exclusiva do Governo; c) Conferir autorizações legislativas ao Governo; d) Velar pelo cumprimento da Constituição e das leis; e) Apreciar o programa do Governo; f) Aprovar o Orçamento do Estado, sob proposta do Governo; g) Aprovar tratados e acordos internacionais; h) Tomar as contas do Estado e das demais entidades públicas que a lei determinar; i) Propor ao Presidente da República a sujeição a referendo nacional de questões de relevante interesse nacional; j) Autorizar ou ratificar a declaração do estado de sítio e do estado de emergência; k) Autorizar o Presidente da República a declarar a guerra e a fazer a paz; l) Conceder amnistias e perdões genéricos; m) Desempenhar as demais funções que lhe sejam atribuídas pela Constituição e pela lei” (Ibid.); (‘Constituição da República de Cabo Verde de 1992, versão de 2010’. 145 Complementarmente ao que se prevê no artigo 175 (a), a Constituição da República de Cabo Verde de 1992, versão de 2010’, art. 126 (1)) estabelece que “1. A Assembleia Nacional pode proceder à revisão ordinária da Constituição decorridos cinco anos sobre a data da publicação da última lei de revisão ordinária. 2. A Assembleia Nacional pode, contudo, a todo o tempo assumir poderes de revisão extraordinária da Constituição por maioria de quatro quintos dos Deputados em efectividade de funções. 3. A iniciativa de revisão da Constituição compete aos Deputados” (Ibid.). 146 Ver, em particular, o artigo 185 (“O Governo é o órgão que define, dirige e executa a política geral interna e externa do país, e é o órgão superior da Administração Pública”) (Ibid.). 138

140

Estudos em Comemoração do XXº Aniversário da Constituição

3.4. Um Estado Social Por fim, extensas formulações no artigo primeiro indicam a natureza igualmente social do Estado de Cabo Verde. Desde logo porque há um desdobramento natural da ideia da dignidade humana sobre a ideia do Estado Social. Pelo menos até certo ponto, a substância desse princípio sistémico espraiar-se-ia por areias sociais, para impedir que a situação material de qualquer cidadão (ou pessoa) se degradasse a um ponto de desumanizá-lo ou, num outro prisma, de coisificá-lo 147 . O legislador constituinte, no entanto, não se limita a permitir indirectamente essa inferência, mas inclui entre os objectivos fundamentais da “(…) República a realização da democracia económica, política, social e cultural e a construção de uma sociedade (…) justa e solidária” 148 . Nesta senda, ainda que com uma formulação de teor incremental e programático, também se dispõe que ao Estado cabe “Promover o bem estar e a qualidade de vida do povo cabo-verdiano, designadamente dos mais carenciados, e remover progressivamente os obstáculos de natureza Em Immanuel Kant, Fundamentação da Metafísica dos Costumes, p. 71, podemos encontrar, mais uma vez, as bases para uma solidariedade mínima que se pudesse traduzir em direitos sociais, quando destaca que “No que concerne o dever meritório para com outrem, o fim natural que todos os homens têm é a própria felicidade. Ora, é verdade que a humanidade poderia subsistir se ninguém contribuísse para a felicidade dos outros, contanto que também lhes não subtraísse nada intencionalmente; mas se cada qual se não esforçasse por contribuir na medida das suas forças para os fins dos seus semelhantes, isso seria apenas uma concordância negativa e não positiva com a humanidade como fim em si mesma. Pois que se um sujeito é um fim em si mesmo, os seus fins têm que ser quanto possível os meus, para aquela ideia poder exercer em mim toda a eficácia”, e a sua concretização na Metafísica dos Costumes. Princípios Metafísicos da Teoria do Direito, Artur Morão (trad.), Lisboa, Edições 70, 2004, pp. 140-141, quando aponta que “graças ao Estado, é lícito ao Governo obrigar os poderosos a fornecer os meios de subsistência aos que de tal são incapazes, inclusive no tocante à necessidades mais básicas”. 148 ‘Constituição da República de Cabo Verde de 1992, versão de 2010’, art. 1 (3). 147

Constituição de Cabo Verde de 1992

141

económica, social, cultural e política que impedem a real igualdade de oportunidades entre os cidadãos, especialmente os factores de discriminação da mulher na família e na sociedade” 149 . Amparado ainda, como se apresentou, no princípio da solidariedade, de acordo com o qual o Estado em representação da Comunidade Política assegura o amparo as pessoas, justificando-se, desta forma, os direitos económicos, sociais e culturais150, ao trabalho151, à segurança social152, à saúde153, à habitação154, à educação155, à fruição cultural156, à cultura física e ao desporto157, bem assim como a especial protecção concedida a grupos vulneráveis158 como os tra-

Ibid., art. 7 (e). Para comentários sobre o princípio da igualdade de oportunidades, Mário Ramos Pereira Silva, O regime dos direitos sociais na Constituição Cabo-Verdiana de 1992, p. 102 e ss. 150 Para a teoria geral, Ibid. passim; em relação aos direitos sociais em espécie é útil a consulta do trabalho de nossa autoria Relatório Nacional de Direitos Humanos 2004-2010, pp. 76-94. 151 “Todos os cidadãos têm direito ao trabalho, incumbindo aos poderes públicos promover as condições para o seu exercício efectivo” (‘Constituição da República de Cabo Verde de 1992, versão de 2010’, art. 61 (1). Para comentários, Geraldo da Cruz Almeida, Direito do Trabalho Cabo-Verdiano, p. 174. 152 Assim, a ‘Constituição da República de Cabo Verde de 1992, versão de 2010’, art. 70 (1): “Todos têm direito à segurança social para sua protecção no desemprego, doença, invalidez, velhice, orfandade, viuvez e em todas as situações de falta ou diminuição de meios de subsistência ou de capacidade para o trabalho”. 153 De acordo com o artigo 71 (2), “Todos têm direito à saúde e o dever de a defender e promover, independentemente da sua condição económica” (Ibid.) 154 Com base no número 1 do artigo 72, “Todos os cidadãos têm direito a habitação condigna” (Ibid.). 155 Diz a Constituição que “Todos têm direito à educação” (Ibid., art. 78 (1)). 156 “Todos têm direito à fruição e criação cultural”, foi a fórmula utilizada pelo legislador (Ibid., art. 79 (1)), ainda que de forma dogmaticamente confusa, já que o direito à criação cultural é um direito, liberdade e garantia. 157 Estipula-se que “1. A todos é reconhecido o direito à cultura física e ao desporto” (Ibid., art. 80 (1)). 158 A respeito do tratamento desta categoria de direitos no sistema cabo-verdiano, ver o nosso Relatório Nacional de Direitos Humanos 2004-2010, pp. 95-160, o tratamento parcial dado por José Lopes da Graça, “A Mulher, a Criança e o Deficiente, no Direito Cabo-Verdiano”, Direito & Cidadania, a. 3, Número Especial: Direitos e Democracia em Cabo Verde, 1999, pp. 61-71, e, por fim, Fernando Menezes de Almeida, “Vinte Anos de Constituição de Cabo Verde”, p. 214, que mostra os riscos dessa opção constitucional quando diz que “(…) em que pese embora afirmar a ‘universalidade’ dos direitos fundamentais em geral (art. 23), chega mesmo a detalhar direitos aplicáveis a certos segmentos da sociedade – numa perspectiva comum na política contemporânea, mas não isenta de críticas, por ser portadora de certo estímulo à desagregação da visão de conjunto da solidariedade social”. 149

142

Estudos em Comemoração do XXº Aniversário da Constituição

balhadores159, as crianças160, jovens161, pessoas com deficiência162 e idosos163, nos termos da Constituição. As influências adicionais Para além da estrutura básica composta pelos quatro pilares supramencionados, não se pode deixar de salientar, a fim de completar o quadro das influências filosófico-políticas na Constituição de Cabo Verde, as que podem ser consideradas complementares. São-no, na maior parte dos casos, ou porque são pressupostas e, neste sentido, mesmo que de forma não assumida, estão imbricadas às concepções filosófico-políticas que sustentam a Constituição, ou porque, fora deste quadro, são inseridas no texto constitucional sem ter a conDispõe a ‘Constituição da República de Cabo Verde de 1992, versão de 2010’, art. 62º (Direito à retribuição) que “1. Os trabalhadores têm direito a justa retribuição segundo a quantidade, natureza e qualidade do trabalho prestado. (…); 3. O Estado cria as condições para o estabelecimento de um salário mínimo nacional”, e art. 63º(Outros direitos) que “1. Os trabalhadores têm, ainda, direito a: a) Condições de dignidade, higiene, saúde e segurança no trabalho; b) Um limite máximo da jornada de trabalho; c) Descanso semanal; d) Segurança social; e) Repouso e lazer. 2. É proibido e nulo o despedimento por motivos políticos ou ideológicos. 3. O despedimento sem justa causa é ilegal, constituindo-se a entidade empregadora no dever de justa indemnização ao trabalhador despedido, nos termos da lei”. 160 Veja-se o artigo 74, de acordo com o qual “1. Todas as crianças têm direito à protecção da família, da sociedade e dos poderes públicos, com vista ao seu desenvolvimento integral. 2. As crianças têm direito a especial protecção em caso de doença, orfandade, abandono e privação de um ambiente familiar equilibrado. 3. As crianças têm ainda direito a especial protecção contra: a) Qualquer forma de discriminação e de opressão; b) O exercício abusivo da autoridade na família e nas demais instituições a que estejam confiadas; c) A exploração de trabalho infantil; d) O abuso e a exploração sexual. 4. É proibido o trabalho infantil. 5. A lei define os casos e condições em que pode ser autorizado o trabalho de menores. 6. A lei pune especialmente, como crimes graves, o abuso e exploração sexuais e o tráfico de crianças. 7. A lei pune, igualmente, como crimes graves as sevícias e os demais actos susceptíveis de afectar gravemente a integridade física e ou psicológica das crianças” (Ibid.); para uma apresentação geral, ver o nosso José Pina Delgado & Liriam Tiujo Delgado, Directrizes Gerais para um Novo Regime Jurídico da Criança e do Adolescente em Cabo Verde’ in: Comissão para a Reforma Legal e Institucional em Matéria de Infância e Adolescência, ‘Directrizes Gerais para um Novo Regime Jurídico da Criança e do Adolescente em Cabo Verde, Praia, Ministério do Trabalho, Família e Solidariedade, 2006, pp. 9-47, em especial 14-16, e Benfeito Mosso Ramos, “A Criança e o Direito em Cabo Verde: Um Percurso Ascendente de Trinta Anos”, Direito & Cidadania, Número Especial: Cabo Verde, Três Décadas Depois, Jorge Carlos Fonseca (org.), 2007, pp. 161-181. 161 De acordo com a ‘Constituição da República de Cabo Verde de 1992, versão de 2010’, art. 75 (1), “Os jovens têm direito a estímulo, apoio e protecção especiais da família, da sociedade e dos poderes públicos”. 162 No mesmo sentido, o artigo 76 (1), de acordo com o qual, “Os portadores de deficiência têm direito a especial protecção da família, da sociedade e dos poderes públicos” (Ibid.). 163 Fixa o artigo 77 (1) que “Os idosos têm direito a especial protecção da família, da sociedade e dos poderes públicos” (Ibid.). 159

Constituição de Cabo Verde de 1992

143

dição de um dos seus pilares ou sequer de princípios estruturantes, mas, como soluções específicas destinadas a completar e sistematizar, atendendo a eventuais necessidades não recobertas claramente pelas suas doutrinas de base. Neste grupo incluíriamos o realismo, o comunitarismo-nacionalista e o cosmopolitismo, de acordo com as observações e ressalvas vertidas para este texto, deixando de fora as outras grandes correntes ou derivações teóricas da filosofia política contemporânea164 que ou não têm qualquer presença constitucional explícita165 (por exemplo, o multiculturalismo166, o marxismo ou o socialismo167 ou outras teorias críticas168) ou que que nela se reconheça apenas um papel secundário (o feminismo169) ou negligenciWill Kymlicka, Contemporary Political Philosophy. An Introduction, passim. O que não significa que não haja sobreposição ou mesmo absorção de seus contructos teóricos ou soluções políticas e constitucionais pelas teorias do mainstream, como ocorre com o marxismo ou mesmo o feminismo. 166 Seguir Will Kymlicka, Multicultural Citizenship. A Liberal Theory of Minority Rights, Oxford, UK, Clarendon Press, 1995. 167 Ver Friedrich Engels & Karl Marx, Manifesto do Partido Comunista, Marco Aurélio Nogueira & Leandro Konder (trads.), Petrópolis, RJ, Vozes, 1999, e Barry Hindess, “Marxism”; Peter Self, “Socialism” in: Robert Goodin & Philip Pettit (eds.), A Companion to Contemporary Political Philosophy, pp. 312-332, 333-355. 168 Ver, por exemplo, textos em Kimberlé Crenshaw; Neil Gotanda; Gary Peller & Kendall Thomas (eds.), Critical Race Theory.The Key Writings that Formed the Movement, New York, The New Press, 1995, e Lois Tyson, Critical Theory Today. A User Friendly Guide, 2. ed., London/New York, Routledge, 2006. 169 Seguir os artigos compilados em Nilda Martin Alcoff & Eva Feder Kittay (ed.), The Blackwell Guide to Feminist Philosophy, Malden, Mass, Blackwell, 2007; D. Kelly Weisberg (ed.), Feminist Legal Theory. Foundations, Philadelphia, Temple University Press, 1993, e o livro de Valerie Bryson, Feminist Political Theory. An Introduction, 2. ed., Basingstoke, Palgrave-MacMillan, 2003, que dão uma imagem abrangente a partir das suas principais figuras, e algumas soluções decorrentes da dimensão material do princípio da igualdade constitucional (vertido para a ‘Constituição da República de Cabo Verde de 1992, versão de 2010’, art. 24 no segmento “Todos os cidadãos têm igual dignidade social (…)”, e a prevista pelo art. 63 (“4. A lei estabelece especial protecção ao trabalho de menores, de portadores de deficiência e de mulheres durante a gravidez e pós-parto. 5. A lei garante à mulher condições de trabalho que facilitem o exercício da sua função maternal e familiar”) e pelo artigo 88 (2) (O Estado tem ainda o dever de velar pela eliminação das condições que importam a discriminação da mulher (…), bem como a afectação constitucional que é imposta à liberdade de expressão e de informação no artigo 48 para proteger, dentre outros, as mulheres, e a garantia de igual retribuição por trabalho igual decorrente do artigo 62 (2)); a principal reivindicação relacionada aos direitos das mulheres em Cabo Verde, as quotas para o acesso a cargos políticos (ver a interessante discussão promovida pelo politólogo Suzano Costa, “Mulheres e Participação Política em Cabo Verde” in: Carmelita Silva & Celeste Fortes (orgs.), As Mulheres em Cabo Verde. Experiências e Perspectivas, Praia, Edições da UNICV, 2011, pp. 77-108, e, complementarmente, Crispina Gomes, Mulher e Poder. O Caso de Cabo Verde, Praia, Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro, 2011, e Edeltrudes Neves, “Direito, Política e Cidadania no Feminino”, Direito & Cidadania, a. 3, n. 9, 2000, pp. 153-161), tem um estatuto constitucional dúbio. 164 165

144

Estudos em Comemoração do XXº Aniversário da Constituição

ável (teorias pós-coloniais170), apesar da presença, em Cabo Verde, sobretudo académica e a partir de abordagem das ciências sociais, de influências analíticas, metodológicas e ideológicas provenientes de perspectivas raciais críticas171, pós-coloniais172, feministas173 e mesmo marxistas174. O realismo175, uma doutrina também com presença antiga na história política e constitucional, cuja representação simbólica é feita pela célebre expressão de Maquiavel de que “(…) há tamanha distância entre como se vive e como se deveria viver, que aquele que trocar o que faz por aquilo que se deveria fazer aprende antes a sua ruína do que a sua preservação; pois um homem que queira fazer em todas as coisas profissão de bondade deve arruinar-se entre tantos que não são bons”176 e consagrada especialmente na proposta Hobbesiana da criaRusultante essencialmente da Constituição da República de Cabo Verde de 1992, versão de 2010’, art. 11 (7) (“O Estado de Cabo Verde empenha-se no reforço da identidade, da unidade e da integração africanas (…)”); em Bill Ashcroft; Gareth Griffiths & Helen Tiffin (eds.), The Post-Colonial Studies Reader, London/New York, Routledge, 1995, podem ser encontrados textos das figuras de referência dessa corrente. 171 Cf. José Carlos dos Anjos, Intelectuais, Literatura e Poder em Cabo Verde: Lutas pela Definição da Identidade Nacional, Porto Alegre/Praia, UFRGS/ INIPC, 2002. 172 Neste registo, Gabriel Monteiro Fernandes, A diluição da África. Uma interpretação da saga identitária cabo-verdiana no panorama político (pós) colonial, Florianópolis, Editora da UFSC, 2002, e Odair Varela, Mestiçagem Jurídica? O Estado e a Participação Local na Justiça em Cabo Verde: Uma Análise Pós-Colonial, passim. 173 Veja-se, adoptando esta perspectiva, Eurídice Furtado Monteiro, Mulheres, Democracia e Desafios Pós-Coloniais. Uma análise da Participação Política das Mulheres em Cabo Verde, Praia, Edições da UNICV, 2009. 174 É o caso da colega do Departamento de Ciências Sociais, Políticas e Económicas do Instituto Superior de Ciências Jurídicas & Sociais, Jandira Barros, “Desenvolvimento em Cabo Verde, Desafios para a Formação e a Investigação em Ciências Sociais” in: Iolanda Évora & Sónia Frias (orgs.), In Progress - Seminários sobre Ciências Sociais e Desenvolvimento em África, Lisboa, CEsA, 2012, pp. 291-299. 175 Para apresentações do realismo político contemporâneo, William Galston, “Realism in Political Theory”, European Journal of Political Theory, v. 9, n. 4, 2010, pp. 385-411, e Ze’ev Emmerich, “Political Theory and the Realistic Spirit” in: Duncan Bell (ed.), Political Thought and International Relations.Variations on a Realist Theme, Oxford/ New York, Oxford University Press, 2008, pp. 195-218 e dos seus principais proponentes, Bernard Williamms, "Realism and moralism in political theory" in: In the Beginning was the Deed: Realism and moralism in political argument, Princeton, NJ, Princeton University Press, 2005, pp. 1-17, e Raymond Geuss, Philosophy and real politics, Princeton, NJ, Princeton University Press, 2008. 176 “Perché gli è tanto discosto da come si vive a come si doverrebbe vivere, che colui che lascia quello che si fa, per quello che si doverrebbe fare, impara più presto la ruina che la perservazione sua: perché uno uomo che voglia fare in tutte le parte professione di buono, conviene che ruini in fra tanti che non sono buoni. Onde è necessario, volendosi uno principe mantenere, imparare a potere essere non buono e usarlo e non usarlo secondo la necessità” 170

Constituição de Cabo Verde de 1992

145

ção de um Estado forte e soberano para conter as vaidades, paixões e confrontações humanas177, paradoxalmente desempenha um papel constitucional importante, ainda que assumido de forma muito tímida. Essa conjugação, em última análise, parte da constatação de que, no fundo, nem, por um lado, uma entidade política de base liberal pode sustentar-se prescindindo de incorporar elementos realistas178, nem, por outro, que o realismo seja tão incompatível com um Estado limitado quanto os seus doutrinadores clássicos pretenderam179. A Constituição da República assume-o explicitamente quando, ao pressupor a existência de forças anti-democráticas ou anti-liberais e seguindo o postulado de que a ‘Constituição não é um Pacto Suícida’180, adopta um conjunto de salvaguardas contra os ‘Inimigos (cap. xv) (Niccolò Machiavelli, “Il Principe” in: Opere Completa di Niccolò Machiavelli, Cittadino e Segretario Fiorentino, Firenze, Borghi, 1833, pp. 294-320”). . 177 Thomas Hobbes, Leviathan or the Matter, Forme, & Power of a Commonwealth, Ecclesiasticall and Civil, Parte II, cap. 17, “The only way to erect such a Common Power, as may be able to defend them from the invasion of Forraigners, and the injuries of one another, and thereby to secure them in such sort, as that by their owne industrie, and by the fruites of the Earth, they may nourish themselves and live contentedly; is, to conferre all their power and strength upon one Man, or upon one Assembly of men, that may reduce all their Wills, by plurality of voices, unto one Will: which is as much as to say, to appoint one man, or Assembly of men, to beare their Person; and every one to owne, and acknowledge himselfe to be Author of whatsoever he that so beareth their Person, shall Act, or cause to be Acted, in those things which concerne the Common Peace and Safetie; and therein to submit their Wills, every one to his Will, and their Judgements, to his Judgment. This is more than Consent, or Concord; it is a reall Unitie of them all, in one and the same Person, made by Covenant of every man with every man, in such manner, as if every man should say to every man, ‘I Authorise and give up my Right of Governing my selfe, to this Man, or to this Assembly of men, on this condition, that thou give up thy Right to him, and Authorise all his Actions in like manner.’ This done, the Multitude so united in one Person, is called a COMMON-WEALTH, in latine CIVITAS. This is the Generation of that great LEVIATHAN, or rather (to speake more reverently) of that Mortall God, to which wee owe under the Immortall God, our peace and defence. For by this Authoritie, given him by every particular man in the Common-Wealth, he hath the use of so much Power and Strength conferred on him, that by terror thereof, he is inabled to forme the wills of them all, to Peace at home, and mutuall ayd against their enemies abroad”. 178 Cf. o interessante e influente artigo de Judith Shklar, “Liberalism of Fear” in: Political Thought & Political Thinkers, Stanley Hoffmann (ed.), Chicago/London, Chicago University Press, 1998, pp. 3-21, e o nosso José Pina Delgado, “Interdependência e NeoRealismo: Perspectivas para um Enfoque Liberal-Realista nas Relações Internacionais” in: Odete Maria de Oliveira & Arno dal Ri (org.), Relações Internacionais. Interdependência e Sociedade Global, Ijuí, Ed. da Unijuí, 2003, pp. 289-323. 179 Em certa medida, Bernard Williams, "Realism and Moralism in Political Theory", pp. 1-17. 180 Veja-se, e.g., Richard Posner, Not a Suicide Pact. The Constitution in a Time of National Emergency, Oxford/New York, Oxford University Press, 2006.

146

Estudos em Comemoração do XXº Aniversário da Constituição

da Constituição Liberal’181, os partidos políticos que visam fins inconstitucionais182, as associações anti-sistémicas183, as religiões que são contrárias ao bem comum184 (no fundo, as que não se adaptam à República e ao seu secularismo razoável185), permitindo-se ao Estado, em certas situações de excepção, assumir maiores poderes para combatê-los de forma mais eficaz. Aliás, a ideia utilizada na Alemanha de uma “Democracia Militante”186 tem alguns elementos objectivos que podem aplicados também a Cabo Verde187, acrescentando-se que a militância é democrático-liberal, porque usada não só para a salvaguarda da democracia, como também do Estado de Direito, e é resultado de uma realismo constitucional que, antecipando situações em que a sua sobrevivência possa ser posta em causa, delinea um conjunto de mecanismos de auto-preservação. Por vezes, são até utilizados contra a própria democracia, que se manifesta com os poderes de fiscalização da constitucionalidade das Cf. Karl Popper, The Open Society and its Enemies, 5. ed., London, Routledge, 1966. De acordo com a ‘Constituição da República de Cabo Verde de 1992, versão de 2010’, art. 57 (4) “É proibida a constituição de partidos que: a) (…);b) Se proponham utilizar meios subversivos ou violentos na prossecução dos seus fins; c) Tenham força armada ou natureza para-militar”. 183 De acordo com a Lei Fundamental pátria, “São proibidas as associações armadas ou de tipo militar ou paramilitar, e as que se destinam a promover a violência, o racismo, a xenofobia ou a ditadura ou que prossigam fins contrários à lei penal” (Ibid., art. 52 (3)). 184 “É inviolável a liberdade de consciência, de religião e de culto, (…), contanto que não lese os direitos dos outros e o bem comum” (Ibid., art. 49 (1)). 185 Cf. Rajeev Barghava, “Political Secularism” in: John Dryzek; Bonnie Honig & Anne Phillips (eds.), The Oxford Handbook of Political Theory, pp. 636-655, para esta problemática na actualidade. 186 Ver o caso da proibição do partido político de extrema direita pelo Tribunal Constitucional Federal da Alemanha (‘BverfGE 2, SRP – Urteil [23 Oktober 1952]’ in: Dieter Grimm & Paul Kirchhof (hrsg.), Entscheidugen des Bundesverfassungsgerichts, Tübingen, J.C.B. Mohr (Paul Siebeck), 1993, pp. 9-20), e o comentário de Erardo Denninger, “Democracia Militante y defensa de la Constitución” in: Ernesto Benda; Werner Maihofer; Conrado Hesse et al. (org.), Manual de Derecho Constitucional [Handbuch des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland. Studienausgabe], pp. 445-485; para avaliações contemporâneas deste conceito e da sua utilização, cf. Patrick Macklem, “Militant Democracy, Legal Pluralism, and the Paradox of Self-Determination”, International Journal of Constitutional Law,v. 4, n. 3, 2006, pp. 488-516, e András Sajó, “From Militant Democracy to the Preventive State?”, Cardozo Law Review, v. 27, n. 5, 2006, pp. 2255-2295. 187 Muito embora, como bem nota Jorge Carlos Fonseca, “O papel dos partidos políticos numa democracia – entre o monopólio dos partidos políticos e o poder dos cidadãos” in: Democracia, Sistemas Eleitorais & Economia Social, Dakar/Praia, Friedrich Ebert Stiftung/ Assembleia Nacional, 2002, pp. 69-91, “se bem interpretarmos os dispositivos da Lei Fundamental cabo-verdiana, a CRCV estatui um regime bem mais razoável do que, por exemplo, os de Portugal, de Espanha ou da Alemanha”) (p. 77). 181 182

Constituição de Cabo Verde de 1992

147

leis atribuídos a órgãos judiciais independentes – tribunais comuns, um Tribunal Constitucional ou um Supremo Tribunal –, e atinge o seu zénite com a cláusula dos limites materiais à revisão constitucional188, que petrificam ou, como usou um constitucionalista brasileiro comtemporâneo, “fossilizam”189 certas normas constitucionais, protegendo-as de alterações desfigurantes por medo do povo ou dos seus representantes190, por desconfiança dos governantes191 e receio último da emergência de um tirano legitimado pelas urnas192. Nesta medida, realismo e liberalismo se associam para viabilizar a própria sobrevivência material da Constituição. Ademais, somente um realismo presente, mas, por vezes, incómodo, justifica acções directamente focadas na possibilidade da limitação de direitos, seja por via legislativa, a restrição193, por invocação da existência de certos interesses públicos relevantes como a segurança, seja através da suspensão194 de direitos em situações de excepção constitucional195, mormente, ainda que de modo limitado196, É de grande interesse a leitura de Miguel Nogueira de Brito, A Constituição Constituinte. Ensaio sobre o Poder de Revisão da Constiuição, Coimbra, Coimbra Editora, 2000, com um viés igualmente filosófico-político. 189 Ver Virgílio Afonso da Silva, “A Fossilised Constitution?”, Ratio Juris, v. 17, n. 4, 2004, pp. 454-473. 190 Cf. o interessante e influente artigo de Judith Shklar, “Liberalism of Fear”, passim. 191 A este respeito, recomenda-se o ensaio clássico de John Hart Ely, Democracy and Distrust. A Theory of Judicial Review, Cambridge, Mass/London, Harvard University Press, 1980, bem como, complementarmente, Philip Pettit, “Republican Theory and Political Trust” in: Margaret Levi & Valerie Braithwaite (eds.), Trust and Governance, New York, Russell Sage Foundation, pp. 295-314, e Stephen Holmes, Passions & Constraints. On the Theory of Liberal Democracy, Chicago/London, Chicago University Press, 1995. 192 Ver, com grande proveito, Eric Posner & Adrian Vermeule, “Tyrannophobia” in: Tom Ginsburg (ed.), Comparative Constitutional Design, Cambridge, UK, Cambridge University Press, 2012, pp. 307-349. 193 Ver, ainda que naturalmente redigido na perspectiva dos direitos fundamentais, o artigo 17 nos seus números 4 (“Só nos casos expressamente previstos na Constituição poderá a lei restringir os direitos, liberdades e garantias”) e 5 (“As leis restritivas dos direitos, liberdades e garantias serão obrigatoriamente de carácter geral e abstracto, não terão efeitos retroactivos, não poderão diminuir a extensão e o conteúdo essencial das normas constitucionais e deverão limitar-se ao necessário para a salvaguarda de outros direitos constitucionalmente protegidos”) (‘Constituição da República de Cabo Verde de 1992, versão de 2010’, art. 17). 194 “Os direitos, liberdades e garantias só poderão ser suspensos em caso de declaração do estado de sítio ou de emergência, nos termos previstos na Constituição” (Ibid., Art. 27). 195 Veja-se, no geral, o estudo de Jorge Bacelar Gouveia, O Estado de Excepção no Direito Constitucional. Entre a eficiência e a normatividade das estruturas de defesa extraordinária da Constituição, Coimbra, Almedina, 1998, 2 v. 196 Mormente porque a própria Lei Magna da nossa República estabelece que “A declaração 188

148

Estudos em Comemoração do XXº Aniversário da Constituição

aquando da declaração de estado de sítio ou do estado de emergência197; no mesmo sentido, a própria previsão das forças armadas198 e da polícia199 indicía uma antecipação típica da necessidade de confrontação com situações que exigem o uso de meios coercitivos no cenário internacional ou interno. Mesmo a abordagem em matéria de controlo financeiro, de responsabilidade de titulares de cargos políticos200 e de controlo judiciário externo pelo Tribunal de Contas201, é tributária, na sua base, de pressupostos realistas, associados à desconfiança em relação ao exercício do poder por homens202, tentados ao desvio, o mesmo ocorrendo com certas formulações relacionadas às relações internacionais, nas quais ressalta-se o princípio da reciprocidade de interesses como directriz da acção externa do Estado Cabo-Verdiano203. do estado de sítio ou de emergência em nenhum caso pode afectar os direitos à vida, à integridade física, à identidade pessoal, à capacidade civil e à cidadania, a não retroactividade da lei penal, o direito de defesa do arguido e a liberdade de consciência e de religião” (Constituição da República de Cabo Verde de 1992, versão de 2010’, art. 274). 197 A ‘Constituição da República de Cabo Verde de 1992, versão de 2010’, art. 270 (Estado de sítio) prevê que “O estado de sítio só pode ser declarado, no todo ou em parte do território nacional, no caso de agressão efectiva ou iminente do território nacional por forças estrangeiras ou de grave ameaça ou perturbação da ordem constitucional”, e o 271 (…) (Estado de emergência), dispõe que “O estado de emergência será declarado, no todo ou em parte do território nacional, em caso de calamidade pública ou de perturbação da ordem constitucional cuja gravidade não justifique a declaração do estado de sítio”. 198 De acordo com o artigo 247 (Forças Armadas), “1. As Forças Armadas são uma instituição permanente e regular, compõem-se exclusivamente de cidadãos caboverdianos e estão estruturadas com base na hierarquia e na disciplina” (Ibid.). 199 Estipula o artigo 244 (Polícia) que “1. A polícia tem por funções defender a legalidade democrática, prevenir a criminalidade e garantir a segurança interna, a tranquilidade pública e o exercício dos direitos dos cidadãos” (Ibid). 200 Ibid., art. 123 (1) dispõe “Os titulares de cargos políticos respondem política, civil e criminalmente pelos actos e omissões que praticarem no exercício das suas funções e por causa delas, nos termos da lei”. 201 Estipula-se que “O Tribunal de Contas é o órgão supremo de fiscalização da legalidade das despesas públicas e de julgamento das contas que a lei mandar submeter-lhe” (Ibid., art. 219 (1)) e o nosso José Pina Delgado, “A importância do Tribunal de Contas na Consolidação de Repúblicas Sociais de Direito Democrático” in: VII Assembleia-Geral da Organização das Instituições Superiores de Controlo da CPLP, Lisboa, Centro de Estudos e Formação da Organização das Instituições Superiores de Controlo da CPLP, 2013 (?), no prelo. 202 Seguir, por exemplo, Jürgen Habermas, Direito e Democracia. Entre Facticidade e Validade, cap. III. 203 Dispõe a Constituição da República de Cabo Verde de 1992, versão de 2010’, art. 11 (1), “O Estado de Cabo Verde rege-se, nas relações internacionais, pelos princípios (…) da reciprocidade de vantagens, da cooperação com todos os outros povos e da coexistência pacífica”.

Constituição de Cabo Verde de 1992

149

Sem embargo desse realismo a Constituição, para além disso, tem uma pequena dimensão cosmopolita204, que, paradoxalmente, é a némesis idealista205 dessa teoria sobre o poder206. A Lei Magna, de facto, absorveu estas ideias antigas esposadas na Antiguidade Clássica207 e popularizadas pela proposta Kantiana de criação de uma Volksbünd (Federação de Povos) no quadro do seu projecto de Paz Perpétua208, Em tons limitados, integra ideários dessa concepção no seu texto. Em concreto, isso se manifesta no tratamento reservado ao estrangeiro que esteja em território nacional ou que tenha um direito de nele ser recebido como pessoa protegida209, garantindo-se, no primeiro caso, um regime equiparado ao reconhecido ao cabo-verdiano210, e, no seA respeito das ligações entre o cosmopolitismo e o constitucionalismo, cf. Thomas Kumm, “The Cosmopolitan Turn in Constitutionalism: On the Relationship between Constitutionalism in and Beyond the State” in: Jeffrey Dunnof & Joel Trachtman, Ruling the World: Constitutionalism, International Law, and Global Governance, New York, Cambridge University Press, 2009, pp. 258-324, e Vlad Perju, “Cosmopolitanism and Constitutional Self-Government”, International Journal of Constitutional Law, v. 8, n. 3, 2010, pp. 326-353. 205 Seguir a discussão de Roman Altshuler, “Political Realism and Political Idealism: The Difference Evil Does”, Public Reason, v. 1, n. 2, 2009, pp. 73-87. 206 Thomas Pogge, “Cosmopolitism” in: Robert Goodin; Philip Pettit & Thomas Pogge (eds.), A Companion to Contemporary Political Philosophy, 2. ed., Malden, Mass, Blackwell, 2007, pp. 312-331; Brian Barry, “International Society from a Cosmopolitan Perspective” in: David Mapel & Terry Nardin (eds.), International Society. Diverse Ethical Perspectives, Princeton, NJ, Princeton University Press, 1998, pp. 144-163, e, por fim, de um dos seus proponentes mais radicais, David Held, “Democracy: From the City-States to a Cosmopolitan Order?” in: Prospects for Democracy: North, South, East, West, London, Polity Press, 1993, pp. 13-52; em Cabo Verde, Gabriel Monteiro Fernandes, Em Busca da Nação. Notas para a Reinterpretação do Cabo Verde Crioulo, Florianópolis/Praia, Editora da UFSC/Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro, 2006. 207 Paradigmaticamente dizia o Imperador Romano Marco Aurélio, Meditações, ed. bilíngüe, William Li (trad.), São Paulo, Iluminuras, 1995, l. III, § 4, que “o destino de cada homem é tanto condicionado pelo universo como também o condiciona. Ele tem em mente também o parentesco que existe entre todos os seres racionais; que é conforme a natureza humana preocupar-se com todos os homens”, e conta Diógenes Laertio, Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres, Mário Kury (trad.), Brasília, UNB, 1988, l. VI que perguntado sobre a sua pátria, Diógenes, o cínico, respondeu: “Sou um cidadão do mundo (kosmou politês)”. 208 Veja-se Immanuel Kant, Zum Ewigen Frieden, in: Werke, Berlim, Walter de Gruyter, 1968, Ak. VIII, passim, e um comentário no nosso José Pina Delgado, “Cosmopolitismo e os dilemas do humanismo: as relações internacionais em Al-Farabi e Kant” in: Odete Maria de Oliveira (org.), Configuração dos humanismos e relações internacionais: ensaios, Ijuí, Ed. da Unijuí, 2006, pp. 211-271 (contém literatura secundária relevante). 209 Para uma discussão filosófico-política de interesse para o Direito Público, cf. Linda Bosniak, The Citizen and the Alien. Dilemmas of Contemporary Membership, Princeton, NJ/Oxford, Princeton University Press, 2006. 210 A norma geral está assim redigida “Com excepção dos direitos políticos e dos direitos e deveres reservados constitucional ou legalmente aos cidadãos nacionais, os estrangeiros e 204

150

Estudos em Comemoração do XXº Aniversário da Constituição

gundo, um direito a receber asilo caso esteja a ser perseguido por motivos de actividades em prol da liberdade nacional, da democracia e dos direitos humanos211. Também se a reconhece no quadro de certas fórmulas do sistema cabo-verdiano de direitos fundamentais, mormente em sede de abertura constitucional a direitos fundamentais atípicos previstos em tratados212 ou em normas costumeiras internacionais213 e na regra da interpretação conforme a Declaração Universal dos Direitos Humanos214. Fluoresce igualmente no tratamento que a Constituição reserva ao Direito e às instituições internacionais, recebendo as normas geradas naquele espaço como normas internas215, fixando a sua posição hierárquica acima das leis ordinárias da República216 e, em alguns casos, conferindo-lhes estatuto constitucional217, apátridas que residam ou se encontrem no território nacional gozam dos mesmos direitos, liberdades e garantias e estão sujeitos aos mesmos deveres que os cidadãos cabo-verdianos” (‘Constituição da República de Cabo Verde de 1992, versão de 2010’, art. 25). 211 De acordo com a Constituição da República de Cabo Verde de 1992, versão de 2010’, art. 39 (1), “Os estrangeiros ou apátridas perseguidos por motivos políticos ou seriamente ameaçados de perseguição em virtude da sua actividade em prol da libertação nacional, da democracia, ou do respeito pelos direitos do homem, têm direito de asilo no território nacional”. 212 Prevê-se na Constituição que “As leis ou convenções internacionais poderão consagrar direitos, liberdades e garantias não previstos na Constituição” (Ibid., art. 17 (1)). 213 Conforme explicita-se “São garantidas as liberdades pessoal, de pensamento, de expressão e de informação, de associação, de religião, de culto, de criação intelectual, artística e cultural, de manifestação e as demais consagradas na Constituição, no direito internacional geral ou convencional, recebido na ordem jurídica interna, e nas leis” (Ibid. art. 29 (2)). 214 “As normas constitucionais e legais relativas aos direitos fundamentais devem ser interpretadas e integradas de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem”, é a formulação de Ibid., art. 17 (3). 215 De acordo com o artigo 12 da Constituição “1. O direito internacional geral ou comum faz parte integrante da ordem jurídica cabo-verdiana. 2. Os tratados e acordos internacionais, validamente aprovados ou ratificados, vigoram na ordem jurídica caboverdiana após a sua publicação oficial e entrada em vigor na ordem jurídica internacional e enquanto vincularem internacionalmente o Estado de Cabo Verde. 3. Os actos jurídicos emanados dos órgãos competentes das organizações supranacionais de que Cabo Verde seja parte vigoram directamente na ordem jurídica interna, desde que tal esteja estabelecido nas respectivas convenções constitutivas” (Ibid.). Acompanhar com o nosso, José Pina Delgado, “Relações Internacionais e Direito Internacional no Processo de Revisão Constitucional 2008-2009”, Direito & Cidadania, a. 9, n. 28, Número Especial: Revisão Constitucional, Jorge Carlos Fonseca & José Pina Delgado (coords), 2009, pp. 119-159. 216 De acordo com o mesmo artigo, mas na ‘Constituição da República de Cabo Verde de 1992, versão de 2010’, art. 12 (4), “As normas e os princípios do direito internacional geral ou comum e do direito internacional convencional validamente aprovados ou ratificados têm prevalência, após a sua entrada em vigor na ordem jurídica internacional e interna, sobre todos os actos legislativos e normativos internos de valor infraconstitucional”. 217 Foi introduzido um novo número na cláusula constitucional dedicada às relações

Constituição de Cabo Verde de 1992

151

aceitando a ideia de que instituições judiciárias internacionais fazem parte do sistema cabo-verdiano de tribunais218, promovendo a subordinação geral ao Direito Internacional219 (a menos que viole preceitos constitucionais220) ou submetendo a política externa cabo-verdiana a um conjunto de princípios de Direito Internacional221, para além de expressar uma visão idealista da ordem internacional em certos momentos222. Apesar do seu credo cosmopolita, a Constituição, em mais uma manifestação do seu ecletismo de base, apresenta elementos comuinternacionais, prevendo que “O Estado de Cabo Verde pode, tendo em vista a realização de uma justiça internacional que promova o respeito pelos direitos da pessoa humana e dos povos, aceitar a jurisdição do Tribunal Penal Internacional, nas condições de complementaridade e demais termos estabelecidos no Estatuto de Roma” (Ibid., art. 11 (8)), que garante equiparação constitucional às normas do Estatuto de Roma que criou o Tribunal Penal Internacional, como ocorre em outras paragens que serviram de inspiração a esta solução de incorporação (Ver, e.g., o nosso José Pina Delgado, Entrada ‘Tribunal Penal Internacional’ in: Jorge Bacelar Gouveia & Francisco Pereira Coutinho (coords.), Enciclopédia da Constituição Portuguesa, Lisboa, Quid Juris, 2013, pp. 379-381). 218 Um dispositivo pouco conhecido e discutido, estabelece que “A Justiça é também administrada por tribunais instituídos através de tratados, convenções ou acordos internacionais de que Cabo Verde seja parte, em conformidade com as respectivas normas de competência e de processo” (‘Constituição da República de Cabo Verde de 1992, versão de 2010’, art. 210 (2)), mas que tem servido para reforçar a ideia da abertura e do cosmopolitismo constitucional em questões específicas (ver o nosso José Pina Delgado, “Obstáculos Constitucionais à Ratificação do Estatuto de Roma e (outros) problemas de consolidação do Tribunal Internacional Penal: desenvolvimentos recentes, principalmente relativos a Cabo Verde”, Direito & Cidadania, a. 6, n. 19, 2004, pp. 143-194. 219 “O Estado de Cabo Verde rege-se, nas relações internacionais, pelos princípios (…) do respeito pelo direito internacional (…)” (‘Constituição da República de Cabo Verde de 1992, versão de 2010’, art.11 (1)). Veja-se igualmente o nosso José Pina Delgado, “Os Princípios Condutores da Política Externa na Constituição de Cabo Verde”, in: Conferência 20 Anos de Constituição Cabo-Verdiana (1992-2012), Liberdade, Democracia e Desenvolvimento, Lisboa, 6 de Outubro de 2012, disponível na página da rede http://www.youtube.com/ watch?v=R5qJNn_7uZs. 220 A Constituição continua, por força do princípio da supremacia constitucional, previsto pela ‘Constituição da República de Cabo Verde de 1992, versão de 2010’, art. 3 (2) (“O Estado subordina-se à Constituição e funda-se na legalidade democrática, devendo respeitar e fazer respeitar as leis”), e sobretudo do seu papel material, a ser a parâmetro de validação de todas as outras normas. 221 O Estado de Cabo Verde rege-se, nas relações internacionais, pelos princípios do respeito (…) pelos direitos humanos, da igualdade entre os Estados, da não ingerência nos assuntos internos dos outros Estados, (…), da cooperação com todos os outros povos e da coexistência pacífica”, dispõe Ibid., art. 11 (1), e o nosso José Pina Delgado, “Os Princípios Condutores da Política Externa na Constituição de Cabo Verde”, passim. 222 De acordo com o mesmo dispositivo, “O Estado de Cabo Verde preconiza a abolição de todas as formas de dominação, opressão e agressão, o desarmamento e a solução pacífica dos conflitos, bem como a criação de uma ordem internacional justa e capaz de assegurar a paz e a amizade entre os povos” (‘Constituição da República de Cabo Verde de 1992, versão de 2010’, art. 11 (3)).

152

Estudos em Comemoração do XXº Aniversário da Constituição

nitaristas-nacionalistas223, influentes correntes políticas da actualidade, com um rastro histórico invejável, ainda que pré-moderno na sua parte mais substancial (comunitarista), que marca presença como base constitucional de vários países não-ocidentais, e, ainda que numa versão moderada, em certos países ocidentais. Aqui, não obstante haver sinais de alguma prática nesse sentido em matéria religiosa e da aproximação apresentada no proémio deste texto, o facto é que ainda não são mais do que indícios inconsistentes. O elemento nacionalista-comunitarista, de tez fraca, é representado através de aspectos simbólicos do Estado, nomeadamente relacionados à Bandeira, ao Hino e às Armas nacionais224 e à língua225 e na configuração de várias garantias fundamentais ligadas ao direito à nacionalidade, nomeadamente a proibição da privação da nacionalidade do caboverdiano de origem226, da expulsão de qualquer cabo-verdiano227 e a proibição da sua extradição na maior parte das situações228. Ainda Apesar de o comunitarismo (em especial, a apresentação de Will Kymlicka, “Community” in: Robert Goodin & Philip Pettit (eds.), A Companion to Contemporary Political Philosophy, pp. 366-378, e a aplicação constitucional de Beau Breslin, The Communitarian Constitution, Baltimore, Maryland, John Hopkins University Press, 2004) e o nacionalismo (“Cf., e.g., David Archard, “Nationalism and Political Theory” in: Noel O’Sullivan (ed.), Political Theory in Transition, pp. 155-171; David Miller, “Nationalism” in: John Dryzek; Bonnie Honig & Anne Phillips (eds.), Oxford Handbook on Political Theory, pp. 529-545”, serem concepções teóricas diferentes, no caso de Cabo Verde pode considerar-se que se apresentam de forma quase interligada, já que os elementos comunitaristas típicos estão intimamente relacionados com aspectos nacionalistas associados à noção de cabo-verdianidade que liga os Ilhéus. 224 De acordo com ‘Constituição da República de Cabo Verde de 1992, versão de 2010’, art. 8º (“A Bandeira, o Hino e as Armas Nacionais são símbolos da República de Cabo Verde e da soberania nacional”). 225 Cf. Ibid., art. 9º (“1. É língua oficial o Português; 2. O Estado promove as condições para a oficialização da língua materna cabo-verdiana, em paridade com a língua portuguesa; 3. Todos os cidadãos nacionais têm o dever de conhecer as línguas oficiais e o direito de usá-las”). Acompanhar com Mário Pereira Silva, “Proibição e Constitucionalização: Marcos do Percurso Normativo da Língua Cabo-Verdiana” in: Konstituison di Republika di Kabu Verde, Praia, Fundação Direito e Justiça, 2013, pp. 5-17. 226 Conforme dispõe a ‘Constituição da República de Cabo Verde de 1992, versão de 2010’, art. 40, “Nenhum cabo-verdiano de origem poderá ser privado da nacionalidade ou das prerrogativas da cidadania”. 227 Assim, Ibid., artigo 37 (1): “Nenhum cidadão cabo-verdiano pode ser expulso do país”. 228 O Ibid., art. 38 limita de forma quase total a extradição de nacionais: “2. Também não é admitida a extradição de cidadãos cabo-verdianos por crimes a que corresponda, segundo o direito do Estado requerente, pena ou medida de segurança privativa ou restritiva da liberdade com carácter perpétuo ou de duração indefinida, salvo quando o mesmo Estado ofereça garantias de que tal pena ou medida de segurança não serão executadas. 3. Não é ainda admitida a extradição de cidadãos cabo-verdianos do território nacional, salvo quando se verifiquem, cumulativamente, as seguintes circunstâncias: a) O Estado requerente admita 223

Constituição de Cabo Verde de 1992

153

se a pode associar às garantias institucionais reservadas à família229, considerada a celula mater da sociedade pelo texto constitucional230. Considerações Finais A Lei Fundamental de um Estado, por mais que tente espelhar uma realidade231, é também a tradução e materialização de ideias, conceitos e categorias cuja fonte é a filosofia política e, por vezes, jurídica. Na medida em que tradução, como destaca o dito italiano, é também traição, a transposição de fórmulas idealizadas para uma realidade concreta por meio da criação de institutos e instituições é sempre acompanhada por ajustes que inevitavelmente contaminam a sua pureza, mas que, para além de serem inevitáveis, podem estabelecer uma entidade mais forte do que as suas matrizes. Como materialização está sujeita às vicissitudes de qualquer acto político colectivo, a necessidade de compatibilizar as vontades, visões e experiências das diversas forças que a elaboram. Assim sendo, uma Constituição que não depende de um único sujeito confronta-se naturalmente com a necessidade de gerir a pluralidade. A Constituição da República de Cabo Verde de 1992 inaugurou um modelo de organização política complexa cujos contornos convém precisar para que seja possível acompanhar a(s) filosofia(s) a extradição de seus nacionais para o Estado de Cabo Verde e consagre garantias de um processo justo e equitativo; b) Nos casos de terrorismo e de criminalidade internacional organizada; c) Tenha o extraditando adquirido ou readquirido a nacionalidade cabo-verdiana após o cometimento do facto tipificado na lei penal como crime, que tenha dado causa ao pedido de extradição”. Para uma discussão antes da última revisão da Constituição sobre a base jurídico-política desta cláusula e da necessidade da sua flexibilização, ver José Pina Delgado, “Extradição de Nacional (Cabo-Verdiano): Acto Indigno, Abandono de uma Relíquia do Passado ou Possibilidade Razoável?” in: José Pina Delgado; Jorge Carlos Fonseca & Liriam Tiujo Delgado (orgs.), Aspectos Polémicos da Extradição no Espaço Lusófono: Nacionalidade, Pena Aplicável, Institutos Similares, pp. 71-123. 229 Ver ‘Constituição da República de Cabo Verde de 1992, versão de 2010’, cap. II, tit. V (Da Família), em especial o artigo 87 (1) de acordo com o qual “A família deverá ser protegida pela sociedade e pelo Estado de modo a permitir a criação das condições para o cumprimento da sua função social e para a realização pessoal dos seus membros”. 230 Estabelece Ibid., art. 87 (1) que “a família é o elemento fundamental e a base de toda a sociedade”. 231 Termo emprestado da obra de Cecilia Caballero Lois; Luiz Magno Pinto Bastos Júnior & Roberto Basilone Leite (orgs.), A Constituição como Espelho da Realidade. Interpretação e Jurisdição Constitucionais em Debate – Homenagem a Silvio Dobrowolski, São Paulo, LTr, 2007.

154

Estudos em Comemoração do XXº Aniversário da Constituição

constitucionais que inspiraram o legislador constituinte pátrio. Denominámo-lo, à falta de melhor palavra e com grande hesitação, de República de Direito, Democrática e Social, agrupando por esta ordem as suas componentes originárias: o Estado Republicano, o Estado Liberal, o Estado Democrático e o Estado Social. Esta é a arquitectura básica do Estado Cabo-Verdiano, corpo que, no entanto, ainda contém membros com outras origens filosófico-políticas, mormente derivadas da teoria realista, cosmopolita e comunitarista-nacionalista. Por mais que se celebre a mestiçagem e as relações de complementaridade e reforço mútuo que dinamizam, um acto particularmente relevante entre cabo-verdianos, a associação entre elementos com origens diferentes pode ser tensa. Para se produzir o modelo de Estado mais acertado para a comunidade política nacional, paga-se o preço de se conviver com fricções contantes no sistema político, as quais opõem todas as suas componentes entre si, mormente o Estado (Liberal) de Direito ao Estado Democrático; o Estado (Liberal) de Direito ao Estado Republicano; o Estado (Liberal) de Direito ao Estado Social; este com o Estado Democrático e com o Estado Republicano e os últimmos entre si. O mesmo ocorre quando se chocam com as normas realistas, cosmopolitas ou comunitaristas-nacionalistas presentes na Constituição. Infelizmente, os limites desta contribuição não me permitem tratar das consequências do hibridismo filosófico-político da Constituição, mas o bom entendimento dessa dimensão seria igualmente indispensável para uma percepção mais fina da complexidade sistémica do texto fundacional, retirando-se dali elementos necessários para a sua aplicação na realidade vivida, dentro de um quadro que, apelando e glosando um dos maiores ícones do pensamento constitucional, Aristóteles, se consubstancie numa postura de equilíbrio no tratamento de questões constitucionais232. Cf., sobretudo, Aristóteles, Ética a Nicómacos, Mário da Gama Kury (trad.), Brasília, Editora da UNB, 1985, p. 37 (“(…) a excelência moral é constituída, por natureza, de modo a ser destruída pela deficiência e pelo excesso (…) e preservadas pelo meio termo”, e id., A Política, Roberto Leal Ferreira (Trad.), São Paulo, Martins Fortes, 1998, cap. xiv (Das Virtudes do Justo Meio) (“A decisão sobre todas as questões desta matéria acerca desta matéria depende dos mesmos princípios. O que dissemos de melhor em nossa Ética é que 232

Constituição de Cabo Verde de 1992

155

a vida feliz consiste consiste no livre exercício da virtude, e a virtude da mediania; seguese necessariamente daí que a melhor vida deve ser a vida média, encerrada nos limites de uma abastança que todos possam conseguir. O que dizemos da virtude e do vício do Estado devemos dizer do governo, que é a vida do Estado inteiro”; para comentários, Jill Frank, “Aristotle on Constitutionalism and the Rule of Law”, Theoretical Inquiries in Law, v. 8, n. 1, 2007, pp. 37-50, e, em particular, Gerard Hughes, Aristotle on Ethics, London/New York, Routledge, 2001, e Fred Miller Jr., “Aristotle on the Ideal Constitution” in: Georgios Agnastopoulos (ed.), A Companion to Aristotle, Malden, Mass, Blackwell, 2009, pp. 540554.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.