Constituição e identificação genética compulsória: SOBRE QUANDO A técnica INVADE A VIDA, SOB O OLHAR COMPLACENTE DO DIREITO

June 8, 2017 | Autor: Xana Valerio | Categoria: Ideologia, Constituição Federal, Identificação Genética Compulsória
Share Embed


Descrição do Produto





Mestra em Direito Público pela Unisinos. Membro do Grupo Jusnano - grupo de pesquisa vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Direito - Mestrado e Doutorado - da Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS, São Leopoldo – RS. Advogada em Porto Alegre. e-mail: [email protected].

Sobre o significado de constrangimento epistemológico: STRECK, Lenio Luiz. O que é isto – decido conforme minha consciência? 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. STRECK, Lenio Luiz; TOMAZ DE OLIVEIRA, Rafael. O que é isto? as garantias processuais penais? Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012.
Informação extraída da palestra proferida pela Dra. Maria José Cabezudo Bajo (estudiosa da temática sobre Bancos de Perfis Genéticos na comunidade europeia), no II Congresso Internacional sobre Bancos de Perfis Genéticos para fins de persecução criminal.
Disponível em: . Acesso em: 28 set. 2015.
Para aprofundar: FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 4. ed. São Paulo: Globo, 2008.

constituição E identificação genética compulsória: SOBRE QUANDO A técnica INVADE A VIDA, SOB O OLHAR COMPLACENTE DO DIREITO.
Xana Campos Valério

Introdução

Através do método fenomenológico-hermenêutico, buscar-se-á fazer um apelo à fenomenologia da investigação criminal no Brasil, que desde 2012, conta com a possibilidade da utilização de provas genéticas extraídas de suspeitos e/ou condenados. Motivada pela sensação de impunidade que grassa no senso comum do brasileiro, bem como pela existência de inúmeros crimes cometidos com violência, que ficam sem solução, foi publicada, em maio de 2012, a Lei nº 12.654/2012 (prevendo a coleta de perfil genético, como forma de identificação criminal, entre outras providências).
Como bem observado por Heidegger, "o descobrir do mundo e o abrir do Dasein (ente privilegiado que compreende o ser) sempre se efetuam como remoção de encobrimentos" (HEIDEGGER, 2012, p. 371). Assim, objetiva-se com este trabalho desvelar as inconstitucionalidades que se escondem por trás da Lei em questão. Em específico, a previsão de submissão a intervenção corporal compulsória, para fornecimento de material genético, por condenados por crimes hediondos ou, que dolosamente, tenham praticado delito, por meio de violência grave contra a pessoa.
Motivados por forte cunho ideológico (a técnica e o senso de que a causa da criminalidade é a impunidade, como ideologias), os responsáveis pela elaboração das leis, na pátria nacional, ainda não conseguiram incorporar a Constituição Federal, como um existencial, consoante a Crítica Hermenêutica do Direito trabalhada por Lenio Streck. A Constituição, no seu sentido substancial, deveria constituir-a-ação dos sujeitos, identificando o seu modo-de-ser autêntico. A autenticidade da tradição constitucional, na sua feição de resgate das promessas incumpridas da modernidade, perpassa essa reflexividade no modo de ser dos intérpretes da Constituição, responsáveis pela resposta adequada à Constituição na disciplina legal (STRECK, 2007, p. 168).
Defende-se, desta feita, que a introdução de qualquer inovação científica no ambiente jurídico e social nacional deveria permear esse processo dialógico, que implica num caráter de comportar-se consigo mesmo, já que, como afirma Streck, nos compreendemos como ser-aí, enquanto somos no mundo e, enquanto somos no mundo, compreendemos o ser (STRECK, 2007, p. 168). Assegurar a supremacia da Constituição, conforme a previsão uníssona da doutrina nacional, implica obrigatoriamente, no processo explicitação do conteúdo pré-compreensivo dos legisladores, através da incitação de preconceitos ideológicos que os determinam existencialmente, uma vez que, o que confere coerência e integridade ao ordenamento jurídico não é o intérprete, seja ele legislativo ou judiciário, mas a própria Constituição, no seu sentido sedimentado na historicidade da tradição. A Constituição do cidadão e dos membros de Poder deve ser a mesma. A Constituição apresenta um concentrado de valores fundamentais que a definem como uma instituição durável, exercendo, simultaneamente, uma função pedagógica relativamente às gerações futuras e fixando as orientações em que os textos derivados devem, em princípio, inspirar-se. Funcionando como guardiã dos pactos anteriores, a constituição garante a identidade da Democracia, entendida como uma forma que não permanece a mesma através do tempo, mas que se mantém à maneira de uma promessa feita. (OST, 1999, p. 94). Desta feita, a capacidade infinita de mudança está associada à ordem constitucional. A lei não pode fazer qualquer coisa, pois deve obediência irrestrita à Carta Magna, dentro do seu contorno principiológico característico – compromissário e democrático. Há, dessa forma, com Streck (2011, p.170), um direito fundamental a que a constituição seja cumprida.
Destarte, um poder político estruturado segundo pressupostos antropológicos aceitáveis, dentro de um pacto democrático, é um poder configurado de modo que, ao obedecer-lhe, o homem possa obedecer a si mesmo (o povo é o soberano). E, para o homem, obedecer-se a si mesmo, significa afirmar que ele é dotado de uma identidade e de uma correspondente autocompreensão. Ora, isso determina inevitavelmente que o homem apresente, perante os outros e perante o poder, uma pretensão de respeito e, desde logo, uma pretensão de autorrespeito, a pretensão de não ser coagido a desrespeitar-se naquilo em que identitariamente se deposita, em que moralmente se move (COUTINHO, 2009, p. 25). A contemporânea identidade ocidental (projetada nas ordens constitucionais que legitimamente integram os sujeitos) se centra nuclearmente na ideia de dignidade humana ou igualdade fundamental de todos na humanidade comum, isto é, na verdade parametrizadora de que todos os homens, meramente enquanto homens, são dotados de um imprescritível valor. Luís Pedro Pereira Coutinho, amparado em Karl Löwith, expõe que a moral responsável pela positivação da dignidade humana nos códigos internacionais e constituições nacionais é matricialmente uma moral religiosa, mais especificamente, Cristã. O mundo que deu origem à convicção de que todos os que têm qualidade humana possuem, como simples decorrência desse fato, a dignidade e o destino de seres humanos é o mundo do Cristianismo, no qual o homem divino, Cristo, é a medida da relação do homem consigo mesmo e com o próximo (COUTINHO, 2009, p. 130). Isso significa que as interpretações religioso-metafísicas do mundo estão envolvidas em certos conceitos do bem viver. O modo como o sujeito deve se comportar em relacionamentos interpessoais resulta de um modelo de conduta exemplar. Com a passagem para o pluralismo ideológico nas sociedades modernas, a religião e o ethos nela enraizado se decompõem enquanto fundamento público da validação de uma moral partilhada por todos (HABERMAS, 2002, p. 16-18). Aí está a origem da cooriginariedade entre Direito e moral, no sentido de configurar o Direito um sistema moralmente parametrizador, interiorizado por aqueles que logram reconhecer-se a si mesmos numa ordem jurídica e que constituem o suporte que uma ordem qualquer terá necessariamente de ter para que seja exequível (COUTINHO, 2009, p. 106). Desse modo, o princípio da dignidade humana resulta, entre outros, de uma parametrização moral Cristã positivada no Direito – (Evangelho de Lucas 6, 31 – o que desejas que os homens façam por vós, fazei-o também por eles), a demonstrar a legitimidade da pretensão do homem de autorrespeito naquilo em que identitariamente se deposita, que deve guiar todo o processo de elaboração de leis, especialmente as de cunho criminal. O legislador deve fazer a lei, pensando em si, como objeto da mesma. A dignidade de que se crê depositário é a mesma do sujeito passivo do processo penal.
Desta feita, evidente que a intervenção corporal coativa, para a extração de material genético do sujeito passivo do processo penal, contra a sua vontade, contraria a moralidade de autorrespeito humano, positivada na Constituição Federal de 1988 (art.5º, inciso LXIII da CF), sob a forma do princípio do Nemo Tenetur se Detegere – nada a temer por se deter, segundo o qual o sujeito passivo não pode sofrer nenhum prejuízo jurídico por omitir-se de colaborar em uma atividade probatória da acusação ou por exercer seu direito de silêncio, quando do interrogatório (LOPES JR, 2014, p. 232-641). Sob o argumento generalíssimo de garantia social contra a impunidade, uma importante garantia individual acabou suprimida pela Lei nº12.654/2012 do processo penal, em evidente contrariedade à Constituição Federal. Registre-se que os princípios constitucionais, além do caráter moral, possuem viés deontológico, ao operarem como limites frente ao legislador – funcionam como uma barreira à maioria parlamentar democraticamente legitimada (FELDENS, 2012, p. 41). Na prática, porém, observa-se que os princípios não balizam as condutas legislativas, em função, entre outros, dos preconceitos ideológicos, que ao modelarem o modo-de-ser dos sujeitos, no mundo da vida em geral, impedem que a pré-compreensão constitucional tome conta do ser, no seu sentido existencial. Onde há o predomínio da técnica ocorre o velamento do ser, que acaba diluído nos processos que modelam o seu conceber, agir e relacionar-se. A dominação do homem pela técnica, segundo as concepções filosóficas contemporâneas, seria resultado direto do enquadramento humano na razão instrumental, na adequação do indivíduo às regras do jogo econômico e técnico, que teriam forjado o rompimento da identidade do sujeito. O indivíduo não se constitui antes do sistema coletivo ideológico de referência, mas sim, graças a ele, como as cartas do jogo, que em si não significam nada, porque o valor delas depende das regras do jogo que se quer jogar (GALIMBERTI, 2006, p. 750). Nesse cenário, a peculiaridade das regras do jogo econômico e técnico consiste na absoluta falta de voluntariedade, quanto ao querer jogar. Os sujeitos jogam conforme tais regras, sem a consciência de o estar fazendo, são levados simbolicamente pelo jogo, domesticados conforme as regras do jogo, que chega ao limite de subverter a concepção de sujeito, com a sua autonomia característica. De forma circular, numa democracia representativa, os representantes eleitos são formados no mesmo ambiente social de predomínio ideológico da economia e da técnica, de modo que as políticas públicas e legislativas refletirão tal modelo de ideias, soterrando, muitas vezes, princípios constitucionais, que são consequência direta de conquistas históricas e tomadas de consciência, a respeito da vulnerabilidade social que se estabelece, quando o homem assume um caráter de objeto. O aniquilamento do Nemo Tenetur se Detegere pelo aprimoramento das pesquisas genéticas traduz um exemplo contundente de invasão do Direito pela técnica, que com sua promessa de solução de crimes de autoria desconhecida, promove uma diminuição na dignidade humana, em solo brasileiro, num caminho de objetivação do humano, enquanto sujeito passivo de um processo penal, que merece ser problematizado.
Não se trata, evidentemente, de afirmar verdades absolutas, mas apenas defender uma experiência hermenêutica Constitucional, que aponta o horizonte e o caminho a percorrer, para a conquista do ideal de vida boa preconizado, quando se institucionalizou a promessa pós-ditadura militar, no Brasil, de que o futuro não seria mais como era antigamente. A Constituição Federal de 1988 aponta para a necessária observância de critérios probatórios, no processo penal, que partam da inocência do acusado em direção à sua responsabilidade, sendo constitucionalmente vedado o caminho inverso (FELDENS, 2012, p. 60). Assim, é preciso destacar ou incitar os preconceitos ideológicos, que afugentam a Constituição, como um existencial, do modo-de-ser dos sujeitos. Pois, como elucida Gadamer, à medida que os sujeitos são determinados por um preconceito, não terão conhecimento dele e nem o pensarão como um juízo (GADAMER, 2011, p. 80). E, o que permite destacar os preconceitos é o encontro crítico com as ações legislativas, quando estas dão às costas à Constituição – sendo em suma, este o escopo do presente arrazoado: realizar um constrangimento epistemológico da Lei nº 12.654/2012, naquilo em que ela contraria a Carta Magna, pois relativiza um direito fundamental em hipótese não relativizável.

A TÉCNICA COMO UMA REPRESENTAÇÃO PÓS-HUMANISTA

Em interessante estudo, com projeção niilista a respeito da técnica, Umberto Galimberti, filósofo italiano, afirma que hoje, o horizonte da compreensão humana não é mais a história, mas a técnica, no sentido de que a técnica se apresentaria como aquele cenário único a partir do qual o homem chegaria a uma representação de si. Falar da "idade da técnica" não significaria, então, falar de uma época histórica em que a técnica é hegemônica, mas falar da época em que o sujeito se autocompreende, não a partir da história que se vive e narra, mas a partir da técnica, a qual desvela um espaço interpretativo que definitivamente teria se despedido da história. O horizonte histórico seria aquele que se enquadra nas possibilidades da manipulação técnica, cujo poder de experimentar seria ilimitado. E, assim como o homem não existiria prescindindo daquilo que faz, a sua capacidade de autoexperienciação estaria circunscrita às infinitas possibilidades técnicas de manipulação (GALIMBERTI, 2006, p. 597/598).
Defende Galimberti que, quanto mais a sociedade se faz complexa e interdependente, mais as estruturas técnicas condicionam a ação prática dos sujeitos, que aparecem como resultado e não como promotores das ações. A ação dos sujeitos dimensionar-se-ia mais como uma função prevista pelo sistema do que como expressão de si. Assistir-se-ia, assim, ao declínio da identidade na funcionalidade e ao nascimento de um sujeito póstumo, identificado não mais em função de suas ações, mas como resultado das funções que exerce (GALIMBERTI, 2006, p. 632).
O conteúdo da atividade humana traduzir-se-ia, na idade da técnica, em realizar a passividade, fazer com todos os outros e como todos os outros, o que em geral se faz. A ocupação humana seria cada vez menos um negócio humano e cada vez mais um negócio do aparato técnico (GALIMBERTI, 2006, p. 753).
A sociedade teria se tornado o lugar da livre competição dos interesses individuais, de forma que o indivíduo conservaria a própria qualidade de ser social, somente enquanto perseguisse os próprios interesses materiais, no lugar de interação automática de interesses contrastantes que é o livre mercado (GALIMBERTI, 2006, p. 619).
No espaço do livre mercado, que hoje é inexoravelmente mundial, estariam os interesses que colocam em relação os indivíduos, os quais integram esse espaço, não enquanto indivíduos com as suas especificidades e peculiaridades, mas enquanto titulares de interesses, enquanto personificações (na acepção latina de persona), o termo que designava a máscara de teatro, e por isso, o rosto do indivíduo desaparece sob a máscara do representante de interesses. Figuram, assim, relações de coisas entre pessoas e relações sociais entre coisas. Os indivíduos perdem a sua especificidade e, enquanto meros representantes das coisas que possuem ou das funções que exercem, tendem a se tornar cada vez mais semelhantes uns aos outros. A persecução do interesse individual isola as mônadas umas das outras, mas, instaurando-se como simples representantes dos interesses que entram em relação entre si, tende a torná-las cada vez mais semelhantes umas às outras. O indivíduo, cujo rosto fica escondido por detrás da máscara de titular de interesses, termina por ser destituído de qualquer relevância porque, para a visão econômica e técnica, o que conta não é mais o sujeito, mas a sua titularidade. E desta feita, por trás da pessoa, por trás da máscara, não há ninguém; – "ninguém" se torna o verdadeiro nome de cada indivíduo, do qual a economia e depois a técnica retirou a especificidade do rosto, sob a máscara da personificação de interesses (GALIMBERTI, 2006, p. 620-621).
Contudo, é de se levar em conta que o indivíduo se torna "ninguém" sem a consciência de ser "ninguém". Daí o caráter (in)sincero da técnica e da economia, como ideologias que são interiorizadas na percepção dos sujeitos, retirando-lhes a liberdade e a autonomia, fazendo-os crer, todavia, que são senhores de suas condutas.
O projeto da técnica indicaria avanço, mas não no sentido da história. A contração entre passado recente e futuro imediato, na qual se recolhe o seu agir, não permitiria discernir fins últimos, mas só progressos em vista da própria potencialização. A técnica nada mais perseguiria que o próprio crescimento, um mero sim a si mesma (GALIMBERTI, 2006, p. 40).
A técnica não tenderia a um objetivo, não promoveria um sentido, não abriria cenários de salvação, não redimiria, nem desvendaria a verdade: a técnica funciona, e o seu funcionamento se torna planetário (GALIMBERTI, 2006, p. 20).
E, esse mecanismo de funcionalidade e utilidade, incorporado pela técnica, dissemina-se com a evidência de sentido, um dos estratagemas fundamentais da ideologia – "olhe por si mesmo como são as coisas" ou "deixem os fatos falarem por si" – como arquiafirmação de ideologia – considerando-se, justamente, que os fatos nunca falam por si, mas são sempre levados a falar por uma rede de mecanismos discursivos. (Zizek, 1996, p.17). Diferentemente de Galimberti, para quem a técnica não teria viés ideológico, sustenta-se o convencimento de Zizek, que aponta para o lema de Lacan (no real não falta nada), toda a percepção de uma falta ou de um excesso – não há bastante disto, há demais daquilo, implica sempre um universo simbólico (Zizek, 1996, p.17).
A técnica não fala por si, a percepção de que ela é boa ou ruim depende da utilização do mecanismo discursivo hegemônico. Desta feita, o que importa aqui, não é denunciar os avanços tecnológicos como se fossem obras malignas, mas compreender como o discurso da técnica genética adentrou o Direito, impondo curvatura a um princípio constitucional. A técnica impõe o seu domínio, justamente pela falta de reflexão crítica em relação a ela, que predomina nos espaços onde ela se difunde discursivamente.

A COLONIZAÇÃO DO DIRETO PELA TÉCNICA E POR IDEOLOGIAS DIVERSAS DAQUELAS APREGOADAS NA CONSTITUIÇÃO, QUE DETERMINAM A CRIAÇÃO DE LEIS COM VIESES INCONSTITUCIONAIS, COMO É O CASO DA LEI Nº 12.654/2012

Sob a aparência de uma força libertadora e revolucionária, a técnica apresenta-se como mecanismo de instrumentalização do homem, através de uma estrutura discursiva de racionalização progressiva da sociedade, dependente da institucionalização do progresso científico e técnico. Com Habermas, "na medida em que a técnica e a ciência invadem as esferas institucionais da sociedade, transformam as instituições, e desmoronam as antigas legitimações" (Habermas, 2011, p. 45).
O conceito de razão técnica é, em si mesmo, ideologia. Não só a sua aplicação, mas a própria técnica é dominação metódica, científica, calculada e calculante (sobre a natureza e sobre o homem). Determinados fins e interesses da dominação não são outorgados à técnica apenas posteriormente e a partir de fora – inserem-se já na própria construção do aparelho técnico; a técnica é, em cada caso, um projeto histórico-social; nele se projeta o que uma sociedade e os interesses nela dominantes pensam fazer com homem e com as coisas (Habermas, 2011, p. 46-47).
Desta feita, a técnica genética, com a institucionalização de bancos de perfis genéticos para fins de persecução criminal, projeta o que os interesses dominantes pensam em fazer com o sujeito passivo do processo penal, dentro dos preconceitos absorvidos na comum-unidade de quem ou o que sejam tais sujeitos.
A racionalidade tecnológica protege, assim, a legalidade da dominação, em vez de eliminar o horizonte instrumentalista da razão abre-se a uma sociedade totalitária de base racional (Habermas, 2011, p. 49). Sem dúvida, a técnica, como ideologia, serve para ocultar os fundamentos sociais da sua institucionalização (Habermas, 2011, p. 81). Cabendo, então, à fenomenologia hermenêutica descortinar o que se esconde na previsão legal (Lei nº 12.654/2012) de submissão a intervenção corporal compulsória, para fornecimento de material genético, por condenados por crimes hediondos ou, que dolosamente, tenham praticado delito, por meio de violência grave contra a pessoa.
A introdução da legitimação, no Brasil, de um banco de perfis genéticos para fins de investigação criminal, foi influenciada pela prática europeia e estadunidense, que os utiliza já há algum tempo. Teve motivação, também, na promessa de solução de crimes de autoria desconhecida, que resultariam impunes. Colaciona-se, para demonstrar a assertiva, o parecer de análise da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal, do Projeto de Lei do Senado Federal nº 93 de 2011 que se transformou na Lei nº 12.654/2012 (www.senado.leg.br, 2011).

Não verifiquei vícios de constitucionalidade, porquanto a matéria trata de ciência, cuja competência para proporcionar os meios de acesso pode ser da União, por iniciativa de qualquer membro do Congresso Nacional, tendo em vista o disposto nos arts. 23, V, e 48, ambos da Constituição Federal.
Quanto ao mérito, destaque-se que, de acordo com estudo de Sérgio D. J. Pena, intitulado Segurança pública: determinação de identidade genética pelo DNA, do ponto de vista social, a determinação de identidade genética pelo DNA (ácido desoxirribonucléico) constitui um dos produtos mais revolucionários da moderna genética molecular humana. Em menos de 20 anos ela se tornou uma ferramenta indispensável em investigação criminal.
A determinação de identidade genética pelo DNA é uma técnica muito superior a todas as técnicas preexistentes de medicina forense, inclusive às impressões digitais clássicas. O DNA pode ser encontrado em todos os fluidos e tecidos biológicos humanos. Além disso, os estudos dos polimorfismos de DNA (regiões do genoma nas quais existem variações entre pessoas sadias) permitem construir um perfil genético de cada indivíduo.
O primeiro banco de dados de perfis genéticos de criminosos foi criado na Inglaterra, mas sem dúvida o banco mais importante, criado pelo FBI nos Estados Unidos (EUA), é o Sistema de Índice de DNA Combinado (CODIS – Combined DNA Index System). (...)
Tendo em vista que a tecnologia de bancos de perfis genéticos já se mostrou extremamente eficaz em vários países, notadamente nos EUA e Reino Unido, o seu impacto na promoção da justiça e combate à impunidade tem sido fator determinante para sua implantação no Brasil. (...)
Ainda, em conformidade com o recente Congresso, estudos recentes apontam o Brasil como o sexto País do mundo em taxa de homicídios (26,4 homicídios em 100.000 habitantes/ano) e destacam uma situação igualmente grave em relação aos crimes sexuais. As taxas de elucidação desses delitos são baixas, com menos de 10% dos homicidas apropriadamente identificados e condenados, devido à ausência de prova material; tal fato tem causado comumente o arquivamento de vários inquéritos e denúncias.
A efetiva atuação da Rede Integrada de Bancos de Perfis Genéticos certamente diminuirá esses índices alarmantes de violência. Todavia, a legislação em vigor não obriga os condenados por crimes graves a fornecer amostras biológicas de referência.
Entendo, portanto, que a presente proposição ofertará mais eficiência ao banco de dados de identificação de perfil genético, ao permitir a colheita de DNA por procedimento não invasivo, não ofendendo, por conseguinte, os princípios de respeito à integridade física e à dignidade humana. (...) (Grifos nossos).

Como se vê, a técnica genética, apresentando-se de uma utilidade, evidente por si mesma, no processamento de identificação de indivíduos, aparentando uma força revolucionária na solução de crimes de autoria desconhecida, não sofreu o necessário questionamento e confrontamento quanto aos fins a que se destina – diminuição da impunidade – em relação aos meios propostos – diminuição da dignidade de sujeitos passivos do processo penal, pela obrigatoriedade no fornecimento de seus dados genéticos, independentemente de suas vontades.
Parece se confirmar a máxima de Galimberti descrita acima, de que na idade da técnica se opera uma negação da autonomia humana, pela operacionalidade e funcionalidade incorporadas pela técnica, e absorvidas pelos sujeitos no seu modo de ser, agir e relacionar-se. A dimensão coletiva deixa de ser o aspecto do qual o indivíduo pode participar ou se subtrair, para passar a ser a forma que o define, a regra do jogo fora do qual não existe sentido (Galimberti, 2006, p. 620-621). A falta de uma inquirição aprofundada a respeito da constitucionalidade da incorporação em lei federal de uma medida que restringe um direito fundamental (direito de não fazer prova contra si mesmo no processo penal - art.5º, inciso LXIII da CF), num órgão institucional a quem caberia fazer isto - Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal, demonstra que talvez estejamos indo para o lugar, o tempo e o espaço que a técnica dirige e organiza. Os representantes eleitos para a função de legislar, numa democracia representativa, constituem-se como sujeitos, dentro do mesmo organismo social, onde a técnica impõe a dominação, num espaço onde há a demissão da arte do pensar, para se gozar a qualquer preço e em qualquer medida daquilo que a técnica oferece.
Justamente, esta arte do pensar faz falta, quando se trata de manter a promessa democrática, dentro das regras do jogo eleitas com a instauração de um constitucionalismo analítico e comprometido com as presentes e futuras gerações.
O pensar, com Hannah Arendt, tem uma força paralisante em relação ao sujeito, no sentido da suspensão dos preconceitos que direcionam a sua ação, operando um entorpecimento do mimetismo do senso comum, uma vez que qualquer coisa que barra a liberdade do pensar pertence ao mundo das aparências e às experiências do senso comum, onde a técnica impõe o seu domínio, e, automaticamente, assegura o sentido da realidade. O pensamento estabelece as suas próprias condições, cegando a si mesmo para o sensorialmente dado, removendo tudo o que está à mão, para que o distante se torne manifesto (ARENDT, 2008, p. 97-103).
Desta feita, trazendo um pouco a vida contemplativa para a vida ativa, na forma de palavras escritas, sedimentadas através de uma linguagem crítica e hermenêutica filosófica, visualiza-se que nos Estados soberanos onde é utilizado o banco de perfis genéticos para fins de investigação criminal, não há, oficialmente, nenhum dado estatístico a respeito da solução de crimes com o intercâmbio de tais dados. Ou seja, a técnica genética não promove o fim a que se destina. Não resolve o problema da impunidade, de forma genérica.
O que faz cair por terra o argumento de legitimação da violação do direito ao silêncio no processo penal, para garantia da solução da impunidade, sob a justificativa de que não se trata de direito absoluto. Ainda que se acolhesse tal ponderação, a medida estatal desencadeada (meio) deveria ser adequada (idônea) para atingir a finalidade perseguida (fim legítimo). Trata-se, pois, de controlar a relação de adequação medida-fim, a partir de um juízo de prognose em que se considerem conforme à Constituição apenas aquelas medidas legislativas (a) que se mostrem, desde o princípio, como idôneas para alcançar o fim almejado pelo legislador, (b) em que o próprio fim almejado se mostre legítimo (FELDENS, 2012, p.151). Assim, para quem defende a ponderação, a violação do direito ao silêncio, no processo penal, para obrigar a coleta de material genético do sujeito passivo, não passa no primeiro requisito – adequação, o que demonstra a falta de constitucionalidade da medida. A coleta de material genético nos países paradigmas (utilizados como referência para a incorporação da coleta em terra brasileira) não serve para a resolução da criminalidade. O banco de dados de perfis genéticos não resolve o problema da impunidade. A medida proposta não é idônea para alcançar o fim almejado. Dispensável, então, a análise dos demais requisitos da proporcionalidade – necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.
Por outro lado, não se sustenta a afirmação de que não haveria proteção do direito ao silêncio sendo violada, pois a Lei nº 12.654/2012 fala em identificação genética obrigatória apenas dos condenados por crimes hediondos, ou por delitos dolosos, praticados por meio de violência, de natureza grave, contra a pessoa. Não se esqueça que os perfis genéticos dos condenados irão alimentar um banco de dados, para serem comparados com a coleta genética em locais de crimes praticados após a condenação. O quê, ainda que se trate de uma prova genética de probabilidade (o sujeito esteve no local do crime, pode não ter sido o autor), poderá levar a um novo processo, onde o sujeito foi obrigado a fazer, anteriormente, prova contra si mesmo, contra a sua vontade, contra um direito fundamental (art.5º, inciso LXIII da CF).
Importante registrar, com Streck, que a decisão legislativa não se dá a partir de uma escolha, ou de um consenso parlamentar, mas sim, a partir do comprometimento com algo que se antecipa. Esse algo que se antecipa é a compreensão daquilo que a comunidade política constrói como Direito (STRECK; TOMAZ DE OLIVEIRA; 2012, p. 16).
A fundamentação da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal, pela aprovação do Projeto de Lei do Senado Federal nº 93 de 2011, que se transformaria na Lei nº 12.654/2012, com a previsão de identificação genética compulsória de condenados por crimes hediondos ou por crimes dolosos cometidos, por meio de violência grave, contra a pessoa, demonstra a inocorrência de uma autêntica antecipação de sentido daquilo que a comunidade jurídica construiu como Direito, e que se cristalizou, em 1988, na forma de uma promessa de ideal de vida boa, que precisa ser mantida para ser alcançada. Nesse ideal de vida boa, o sistema acusatório é um imperativo do moderno processo penal (LOPES JR, 2014, p. 95).
Desta feita, se não há possibilidade de se atingir um real social anterior à simbolização ideológica, como defende Paul Ricoeur (1983, p. 84), então a ideologia consagrada na Constituição de 1988 é a que deve legitimar as condutas dos intérpretes da Carta Magna, na sua feição pluralista de resgate das promessas incumpridas da modernidade, uma vez que o regime constitucional representa um êxito histórico, que tendo o valor principal de uma explicação, apresenta o mérito essencial da sinceridade. Contudo, a simetria das formas constitucionais dissimula, muitas vezes, mais do que revela, o equilíbrio real das forças políticas. Juan Cruet afirma que, para conhecer o regime constitucional de um país, não basta ler a sua Constituição. Os textos, com efeito, nunca formam uma rede bastante cerrada, nem bastante firme, para impedir os costumes parlamentares e governamentais de fazer prevalecer tacitamente contra a Constituição regular uma Constituição oculta que a exceda e possa desnaturá-la (CRUET, 1908, p.88). Essa Constituição oculta e tácita se afirma e se difunde nas antecipações de sentido que se confundem com preconceitos ideológicos distantes da pré-compreensão constitucional.
Nesse diapasão, além da técnica, parece haver um outro preconceito ideológico incorporado pelo legislador federal, que se descortina com a promulgação da Lei nº 12.654/2012. Trata-se do discurso da impunidade num país com a quarta população carcerária do mundo, composta basicamente por negros, pardos, de baixa renda e baixo nível de escolaridade (MONTEIRO; CARDOSO, 2013, p. 106).
Pesquisa realizada pelo InfoPen (Sistema Integrado de Informações Penitenciárias - programa de computador – software de coleta de dados do sistema penitenciário no Brasil, para a integração dos órgãos de administração penitenciária de todo país), demostra que a população carcerária no país, no ano de 2000, correspondia a um montante de 232.735 presos. Em 2010 esse total havia subido para 496.251. A população carcerária cresce de forma mais elevada que o índice demográfico. Enquanto, no ano de 2000, a cada 100.000 pessoas, 140,12 delas estavam presas, em 2010, de 100.000 pessoas, 260,18 encontravam-se em reclusão (Mattos Monteiro; Ribeiro Cardoso, 2013, p. 98). Sendo que a maioria deste contingente populacional custodiado pelo Estado não possui o ensino fundamental completo.
Isto é, não há impunidade. Contudo, a punição tem endereço específico. O sujeito passivo do processo penal tem cor e classe social não coincidentes, via de regra, com as da classe estamental composta pelos membros de poder, legislativo, em específico, para o caso em debate. A dignidade de que se crê portador, o membro do poder legislativo penal, não é a mesma do sujeito passivo do processo penal. A promulgação da Lei nº 12.654/2012 parece demonstrar ter havido um corte da dignidade entre o membro de poder e o abstrato destinatário da norma, quando da previsão da obrigatoriedade da identificação genética. Nas palavras de Streck – "o establischment jamais legisla contra si mesmo". Por isso, a ausência histórica de punições mais efetivas contra crimes contra o erário público, corrupção, etc. Não se olvide, ademais, a relevante circunstância de que criminalizar a pobreza é um eficaz meio de controle social (STRECK, 2012, p.5). A política do combate à impunidade se utiliza da ideologia de que a impunidade é a causa da criminalidade, como projeto patrimonialista-liberal-capitalista de manutenção dos excedentes do consumo (aqueles que não podem consumir) excluídos do convívio social, pois as suas identidades não se enquadram em nenhuma funcionalidade. O que não funciona se descarta ou se isola.
A tradição que se formou com a assunção, no Brasil, do Estado Democrático de Direito, no qual não há (mais) oposição entre Estado e sociedade (STRECK, 2012, p.8) ainda não foi incorporada no existencial dos membros de poder, que se comportam como se fossem senhores míticos do dever-ser, que criam normas para não serem cumpridas por si.
A distância da Constituição do modo-de-ser dos membros de Poder pode implicar na problemática tendência de se rasurar, por completo, toda a herança histórica que resultou na sistemática positivação da dignidade humana nas diferentes ordens jurídicas. A Declaração Universal dos Direitos do Homem, quando firmou algumas "verdades" como evidentes de per si não firmou um conhecimento moral arbitrário, pois que positivou uma parametrização moral projetada em direitos, que já se faziam operantes na tradição ocidental, fruto de um complexo processo de maturação cultural, fundamentada na consciência de uma igualdade fundamental de todos na humanidade comum (COUTINHO, 2009, p.69), que rechaça qualquer forma de tratamento do homem como mero objeto, obrigando-o a fazer algo contra a sua vontade. Por melhores que sejam as intenções, qualquer passo nesse sentido deve ser fulgurado, para ser questionado e retrocedido. A concepção do homem como objeto implica que outro homem seja o sujeito deste objeto, o que contraria frontalmente a igualdade material e fundamental entre os sujeitos, nas ordens jurídicas contemporâneas, dentre elas, a do Brasil.
A Constituição, nesse viés, é o espaço onde se opera a cristalização de mensagens ideológicas. Cuida-se de ideologia que se expressa nos princípios adotados na ordem jurídica, significando que esta é a que se comprometerá com o aspecto político, quando tomada enquanto direito positivo. Essa ideologia, perfeitamente determinável e definível no bojo do discurso constitucional, vincula o intérprete, de sorte, precisamente a repudiar a postura assumida por quantos optem por concepções ideológicas dela diferentes. Assim, o discurso do texto normativo constitucional está parcialmente aberto à inovação, mesmo porque o que lhe confere contemporaneidade é a sua transformação em discurso normativo. Daí que ele deve ser atualizado por intérpretes autênticos, isto é, que exprimam uma pré-compreensão compatível com aquela que a Constituição consagrou (GRAU, 2012, p. 164) sob pena de o ideal de vida boa transformar-se em pesadelo de via péssima.
A função essencial do Direito constitucional, tantas vezes esquecida, é afirmar o sentido da vida em sociedade (OST, 1997, p. 10). Condutas legislativas não podem desautorizar aquilo que a Constituição determinou, ou elas se adaptam ao texto constitucional ou não podem ser aceitas.
Com Vicente de Paulo Baretto, a dignidade humana situa-se no cerne da luta contra o risco da desumanização, consequência do desenvolvimento desmesurado da tecnociência e do mercado. O inimigo não é mais unicamente e exclusivamente o poder do Estado, mas também o próprio produto do conhecimento humano e do sistema produtivo (BARRETTO, 2013, p. 66), razão pela qual a luta pela preservação da ideologia constitucional deve se fazer presente e perene contra toda e qualquer tentativa de subjugação de seus princípios fundadores, dentre eles o Nemo Tenetur se Detegere.

A CONSTITUIÇÃO COMO UM ESPAÇO DE MANUTENÇÃO DO COMPROMISSO ASSUMIDO EM 1988

A perspectiva utilitarista-totalitarista, com seu perfil ideológico, ao ser incorporada nos Estados Democráticos, produz aquilo que Tocqueville denomina de renúncia ao hábito dos seres dirigirem-se por si mesmos. O processo de alienação que o utilitarismo provoca, acaba materializando um mecanismo estatal despótico e paradoxalmente tutelador, sendo a crise atravessada pelo sistema penal brasileiro (com a separação de sujeitos do bem/úteis e do mal/inúteis) uma das suas manifestações mais evidentes.
Procuro descobrir sob que traços novos o despotismo poderia ser produzido no mundo; vejo uma multidão inumerável de homens semelhantes e iguais, que sem descanso se voltam sobre si mesmos, à procura de pequenos e vulgares prazeres, com os quais enchem a alma. Cada um deles, afastado dos demais, é como que estranho ao destino de todos os outros: seus filhos e seus amigos particulares para ele constituem toda a espécie humana; quanto ao restante dos seus concidadãos, está ao lado deles, mas não os vê; toca-os e não os sente; existe apenas em si e para si mesmo, e se ainda lhe resta uma família, pode-se ao menos dizer que não mais tem pátria. Acima destes, eleva-se um poder imenso e tutelar, que se encarrega sozinho de garantir seu prazer e velar sobre a sua sorte. É absoluto, minucioso, regular, previdente e brando. Lembraria mesmo o pátrio poder, se, como este, tivesse tido por objeto preparar os homens para a idade viril; mas ao contrário, só procura fixá-los irrevogavelmente na infância; agrada-lhe que os cidadãos se rejubilem desde que não pensem em rejubilar-se. Trabalha de bom grado para a sua felicidade, mas deseja ser o único agente e árbitro exclusivo; provê à sua segurança, prevê e assegura as suas necessidades, facilita os seus prazeres, conduz os seus principais negócios, dirige a sua indústria, regula as suas sucessões, divide as suas heranças; que lhe falta tirar-lhes inteiramente, senão o incômodo de pensar e a angústia de viver? (TOCQUEVILLE, 1998, p. 531).

Assim, contra os erros do povo atual e das maiorias demagógicas de circunstância, a proteção do futuro, deve ser feita através de normas constitucionais inatingíveis e de direitos individuais inderrogáveis, haja vista o caráter prospectivo e com pretensão de durabilidade materializado na positivação do ideal de vida boa nas Constituições republicanas. A Constituição é, por excelência, o instrumento jurídico de ligação do futuro, marcada pelo seu firme propósito de instaurar uma ordem nova dentro de princípios estabelecidos (OST, 1999, p. 243 -265).
François Ost elucida que toda a modernidade jurídica (Constituição, lei, tratado, contrato) se pensará doravante na forma de promessa: promessa pública, promessa privada, convenção, acordo, contrato social, contrato civil. Há, seguramente, diferentes formas de se reportar ao futuro: o autor de ficção científica fá-lo por meio da imaginação, o investidor econômico pela aposta especulativa; para o crente, o futuro é uma questão de fé e de esperança, ao passo que para o homem político é objeto de cálculos estratégicos e de opções táticas. A promessa compromete o futuro ao comprometer o promitente; este arrisca aí algo de si mesmo sob o regime de auto-obrigação. Pela promessa, o futuro é tornado menos imprevisível, é lhe dado um sentido no modo normativo: as coisas serão assim, pois a isso me comprometo; este compromisso não é uma questão de imaginação nem de esperança, nem de cálculo estratégico, é da ordem da norma – uma norma que é aplicada a si mesma. A promessa traduz a continuidade do querer, a memória da vontade que dá vida a uma confiança preexistente sem a qual ela (a promessa) não existiria (OST, 1999, p. 204-206). Desta feita, a promessa de manutenção do sistema acusatório, com todos os seus contornos característicos, como o respeito ao direito ao silêncio, precisa ser mantida, para que o futuro não retorne ao passado, e as disfuncionalidades do sistema penal possam ser problematizadas e corrigidas dentro do compromisso normativo assumido com a promulgação da Carta Republicana. De forma que a técnica genética deve compatibilizar as suas promessas específicas, com as promessas perpetradas pelo sistema do Direito, que se obriga diante de uma antevisão do lugar onde se quer chegar, por isso apresenta o mérito da sinceridade.

CONCLUSÃO

A Constituição, ao apontar para o horizonte de construção de sua promessa (ideal de vida boa), oferece ao homem um sentido para a sua existência, que acabou perdendo força diante da técnica, da economia, enfim, de aparelhos ideológicos que servem a interesses inconfessos de poder, e se ocupam apenas do eterno presente. A investigação implementada tentou descortinar esses interesses ideológicos, nas formas veladas como se apresentam, afastando-se da ideologia constitucional, importando na construção de preceitos legais inconstitucionais (Lei nº 12654/2012, art. 9º-A), pormenorizados no decorrer deste debate.
Acredita-se que trazendo à tona a técnica e a economia, como processos onde há o ocultamento dos sujeitos, em nome da funcionalidade e da utilidade, pode-se entender como o pensar que alimenta a técnica está abafado, e por isso, ela se difunde com tanta facilidade nos meios sociais e normativos.
É importante ter em mente que as conquistas do Estado Democrático de Direito somente tomarão forma no momento em que o intérprete, responsável pela efetivação dos preceitos constitucionais no plano normativo, se der conta desta guinada representada pelo advento deste novo modelo de conformação estatal, com todas as suas significações características, que impedem que o Direito seja entendido como mera realidade instrumental, a serviço da técnica, da economia ou do que quer que seja.
A lei obriga antes pelo seu conteúdo do que pela sua forma ou origem. O único respeito à lei deve ser o respeito crítico – aquele que pode ser exigido de uma nação inteligente e animada pelo espírito de discussão -, como forma de resgate da angústia de viver, e como contorno ao silêncio que contribui para que o status quo permaneça irrevogavelmente estático ou retroceda.
referências
ARENDT, Hannah. A vida do espírito: o pensar, o querer, o julgar. Trad. Cesar Augusto de Almeida. Antônio Abranches. Helena Martins. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.

BARRETTO, Vicente de Paulo. O fetiche dos direitos humanos e outros temas. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013.

BRASIL. Ministério da Justiça. Informações Infopen. Brasília, 2011. Disponível em: . Acesso em: 28 set. 2015.

COUTINHO, Luís Pedro Pereira. A autoridade moral da Constituição. Coimbra: Coimbra Editora, 2009.

CRUET, Juan. A Vida do direito e a inutilidade das leis. Lisboa: Bibliotheca de Philosophia Scientifica, 1908.

DUARTE, A.M. 2009. Heidegger e a técnica. Instituto Dasein. Psicologia hermenêutica fenomenológica. São Paulo, Janeiro. Disponível em: http://www. institutodasein.org/pages/grupo.asp?pagina=102.

FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 4. ed. São Paulo: Globo, 2008.
FELDENS, Luciano. Direitos fundamentais e direito penal – a Constituição penal. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012.

GADAMER, Hans Georg. Verdade e método II: complementos e índice. 6. ed. Trad. Ênio Paulo Giachini. Petrópolis: Vozes, 2011.

GALIMBERTI, Umberto. Psiche e techne: o homem na idade da técnica. Trad. José Maria de Almeida. São Paulo: Paulos, 2006.

GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na constituição de 1988. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2012.

HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro. Trad. George Sperber, Paulo Astor Soethe. São Paulo: Loyola, 2002.

HABERMAS, Jürgen. Técnica e ciência como ideologia. Trad. Artur Morão. Lisboa: Edições 70.2011.
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Trad. Fausto Castilho. Campinas: Editora da Unicamp; Petrópolis: Vozes, 2012.

LOPES JR. Direito Processual Penal. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.

MONTEIRO, Felipe Mattos; CARDOSO, Gabriela Ribeiro. A seletividade do sistema prisional brasileiro e o perfil da população carcerária: Um debate oportuno. In: Revista Civitas. v. 13. n. 1. Porto Alegre: 2013. p. 93-117.

OST, François. A natureza à margem da lei: a ecologia à prova do direito. Trad. Joana Chaves. Lisboa: Instituto Piaget, 1997.

OST, François. O tempo do direito. Trad. Maria Fernanda Oliveira. Lisboa: Instituto Piaget, 1999.

PARECER da comissão de constituição, justiça e cidadania do senado federal sobre o projeto do senado federal nº 93 de 2011. Brasília, 14 set. 2011. Disponível em: < http://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/99463>. Acesso em: 23 set. 2015.

RICOEUR, Paul. Interpretação e ideologia. 2. ed. Trad. Hilton Japiassu. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1983.

STRECK, Lenio Luiz. Crime e sociedade estamental no Brasil: de como la ley es como la serpiente; solo pica los descalzos. In: Cadernos IHU ideias. Instituto Humanitas Unisinos. Ano 10. n.178. São Leopoldo: Universidade do Vale do Rio do Sinos, 2012.

STRECK, Lenio Luiz; TOMAZ DE OLIVEIRA, Rafael. O que é isto? as garantias processuais penais? Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012.

STRECK, Lenio Luiz. O que é isto – decido conforme minha consciência? 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012.

STRECK. Lenio Luiz. Verdade e consenso: Constituição, hermenêutica e teorias discursivas - da possibilidade à necessidade de respostas corretas em direito. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.

STRECK, Lenio Luiz. Da interpretação de textos à concretização de direitos – A incindibilidade entre interpretar e aplicar a partir da diferença ontológica (Ontologische Differentz) entre texto e norma. In: ROCHA, Leonel Severo; STRECK, Lenio Luiz (Org.). Constituição, sistemas sociais e hermenêutica: anuário do Programa de Pós-graduação em Direito da Unisinos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005.

STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica e decisão jurídica: questões epistemológicas. In: STEIN, Ernildo. STRECK, Lenio (Org.). Hermenêutica e epistemologia 50 anos de verdade e método. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011.

TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América. 4. ed. Belo Horizonte: Itatiaia limitada, 1998.

ZIZEK, Slavoj. O espectro da ideologia. In: Um mapa da ideologia. Slavoj Zizek (org). Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.



Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.