CONSTRUÇÃO DA SANTIDADE E ESCRITURA DA HISTÓRIA. ANTONIO RUIZ DE MONTOYA E GABRIELE MALAGRIDA, VIDAS EXEMPLARES E MODELOS DE SANTIDADE POPULAR

June 30, 2017 | Autor: G. Rodrigues de M... | Categoria: History of Missions
Share Embed


Descrição do Produto

255

CONSTRUÇÃO DA SANTIDADE E ESCRITURA DA HISTÓRIA. ANTONIO RUIZ DE MONTOYA E GABRIELE MALAGRIDA, VIDAS EXEMPLARES E MODELOS DE SANTIDADE POPULAR

Luiz Fernando Medeiros Rodrigues1 Prof. Dr. PPG-História – Unisinos [email protected]

Msda. Gabriele Rodrigues de Moura2 PPG-História – Unisinos [email protected]

Resumo: O artigo investiga dois casos de santidade popular que não receberam o reconhecimento oficial pela Igreja católica. Estes dois atores sociais, pertencentes à Companhia de Jesus, atuaram em tempos e regiões diferentes. Antonio Ruiz de Montoya (limenho) foi missionário nas missões do Paraguai, no séc. XVII; Gabriele Malagrida (italiano) missionou no norte-nordeste do Brasil, no séc. XVIII. O primeiro distinguiu-se por ser o principal fundador de reduções no Guairá e por ter advogado em defesa do armamento dos indígenas, em Madrid. Já Malagrida, depois de muitos anos como missionário nordeste brasileiro e entre os Guanarés e os Barbados, no Amazonas. Envolvido na trama da conjura contra D. José I, foi garroteado e esquartejado num auto de inconfidência em Lisboa. Ambos foram aclamados como exemplos de virtudes e modelos de santidade popular. Do conjunto de textos escritos sobre suas vidas e obras criou-se uma hagiografia institucional que a Companhia e as crenças populares propuseram como modelo de jesuítas, e por extensão, como modelos comportamentais sobre os quais se poderiam construir discursivamente o missionário ideal e apóstolo evangélico. Este artigo busca desenvolver, no seu horizonte de produção, estes casos de santidade e a sua não aclamação oficial. Palavras-chave: Santidade Popular, Antonio Ruiz de Montoya, Gabriele Malagrida

Introdução

Desde a fundação da Companhia de Jesus, muitos jesuítas, pelas suas vidas exemplares, foram reconhecidos oficialmente como beatos e santos. Na América colonial, os relatos de missionários apresentados como virtuosos serviram para propor à sociedade um modelo ideal de santidade pessoal, e para os membros da Companhia, como missionários jesuítas exemplares a serem imitados e venerados. Entretanto, nem todos os jesuítas propostos como modelos de santidade e de virtudes exemplares foram reconhecidos pelo magistério da Igreja Católica. Antonio Ruiz de Montoya e Gabriele 1 �������������������������������������������������������������������������������������������������������� Este artigo é resultado das pesquisas feitas pelo autor no âmbito do projeto “A contribuição dos jesuí� tas expulsos, em 1759, para o conhecimento das culturas indígenas das missões do Grão-Pará e Mara� nhão”, que conta com a com a bolsa de pesquisa PqG/FAPERGS. 2  Este artigo é resultado das pesquisas feitas pelo autor no âmbito do projeto “Jesuítas nas Américas”, que conta com a com a bolsa de pesquisa CAPES/PROSUP, sob a orientação do Prof. Dr. Luiz Fernando Medeiros Rodrigues.

256

Malagrida são exemplos deste não reconhecimento oficial pela hierarquia da Igreja. Antonio Ruiz de Montoya, jesuíta limenho, foi missionário na Província Jesuítica do Paraguay na primeira metade do século XVII. Como missionário da Companhia de Jesus, em solo guayreño, Antonio Ruiz de Montoya dedicou-se não apenas a aprender a falar a língua dos Guaranis, Gualachos, Guayanas, Guañanas, Guayanases, Cabelludos e Coronados3, mas lutar em favor do direito destes indígenas como súditos da Coroa Espanhola. O impulso de seus talentos, virtudes e sua extensa produção documental fez com que este jesuíta fosse aclamado santo pela população de Lima e Asunción e comparado com o Francisco Javier, pelos seus companheiros de missão; com um poderosíssimo xamã, pelos indígenas; com outros padres que tiveram grande importância no apostolado em solo americano, tais como: Huamán Poma de Ayala (1534- 1615), Bernardino de Sahagún (1499-1540), José de Anchieta (1534-1597), Bartolomé de Las Casas (1474- 1566), José de Acosta (1539-1600), pelos historiadores, antropólogos e linguistas4. Gabriel Malagrida foi um jesuítas extraordinário. Homem de ação, professor, escritor, dramaturgo e missionário entre colonos e indígenas do norte/nordeste do Brasil do séc. XVIII. Malagrida também foi um autêntico desbravador dos sertões nordestinos e das florestas da Amazônia. Além do grande dinamismo apostólico, Malagrida se distinguiu pelas fundações de seminários e casas de recolhimentos para as “convertidas”, realizando uma das mais importantes obras sociais e espirituais naqueles tempos (1720-1760). Exímio pregador dos Exercícios Espirituais, será chamado duas vezes à corte portuguesa para pregar retiros de conversão ao monarca D. João V e sua esposa, D. Marianna da Áustria. Por ocasião do terremoto de 1755 que destruiu Lisboa, Malagrida acusará a corrupção no reino como causa do “castigo divino”, provocando a ira de Sebastião José de Carvalho e Melo (futuro marquês de Pombal). Será apontado como instigador moral do atentado a D. José I por Carvalho e Melo. Acusado de heresia, será julgado pelo tribunal da inquisição de Portugal e condenado ao garrote. Seu corpo seria queimado e as cinzas dispersas no mar. Para a Companhia, o taumaturgo Malagrida é modelo exemplar de missionário e jesuíta. Antonio Ruiz de Montoya: apóstolo dos índios Guaranis e Gualachos

Antonio Ruiz nasceu, na Ciudad de los Reyes (Lima, Perú), no dia 13 de junho de 1585. Filho natural de Cristóbal Ruiz (espanhol de Sevilha) e, de Ana Vargas (limenha). Aos cinco anos, Antonio ficou órfão de mãe, sendo educado pelo pai que pretendia leválo para a Espanha, onde o menino seria educado de maneira cristã. Porém, isto não foi possível, devido ao fato de que o menino adoeceu, fazendo com que o pai desistisse da viagem e voltasse com ele para Lima. Perdendo o pai, aos oito anos, teve que resolver por si próprio os rumos de sua vida, quando foi entregue nas mãos de tutores (JARQUE I, 1900: 54-55). Desta forma, a única coisa que foi respeitada pelos tutores, foi desejo de seu pai de matriculá-lo no Real Colegio San Martín, fundado pelos jesuítas na cidade. Depois 3  Jean Tiago Baptista, afirma que os relatos dos jesuítas representam “um bom exemplo das múltiplas escamoteadas sob uma única apresentação étnica. Ali quatro povoamentos são ocupados exclusivamente pelos [indígenas do grupo lingüístico Macro-]Jê de então, conhecidos entre os missionários como Guala� chos, Guañanas (também grafado como Guayabás, Guananás ou Gayanás) e Coroados, muitos inicial� mente identificados apenas como ‘caras de macaco’” (BAPTISTA, 2009: 110. Grifos nossos). 4  CHAMORRO, 2007: 257.

257

da infância, passou a viver de maneira turbulenta durante a juventude, abandonando os estudos e seguindo o caminho de uma vida licenciosa, que serviu para gastar a herança que havia recebido (Idem, ibid: 61-65). Tais fatos tiveram como conseqüência as ameaças de prisão e a de ser desterrado. Esta vida desregrada, salvo as necessárias diferenças, lembra a vida de Ignacio de Loyola antes de sua conversão. Assim, pretendendo abandonar sua vida desregrada de um quase vagabundo, dirigiu-se ao Vice Rei do Peru, solicitando permissão para seguir ao Chile, por dois anos, num plano de lutar contra os araucanos, um grupo considerado indomável. Quando estava a ponto de partir, teve um sonho estranho que o fez desistir da idéia. Na segunda tentativa de abandonar a cidade de Lima e, consequentemente, a vida complicada que tinha, decidiu ir para o Panamá (ROUILLON ARRÓSPIDE, 1997: 14). Acreditamos que a sua formação em uma escola jesuíta, e por ter passado pelas vicissitudes da orfandade, ajudem-nos a entender os motivos que o levaram a querer ardentemente se confessar antes da viagem ao Panamá e a revolta que apresentou diante da negativa dada ao confessor que ele havia procurado para receber a absolvição (AGUILAR, 2002: 149). Não se dando por vencido, Ruiz de Montoya foi, durante a noite, ao Colegio Máximo de San Pablo de la Compañía em busca de outro confessor. Após receber, do Pe. Juan Domínguez, a absolvição que tanto procurava, acabou conhecendo o Pe. Gonzalo Suárez, com quem fez Montoya decidisse retomar a sua virtude abandonada por muitos anos. Foi esta disciplina, que o fez no ano de 1605 decidir retomar os estudos e a mudar de vida. Essa mudança, em parte, se deve ao fato de que o “tenía el P. Suárez un don especial para convertir a jóvenes de mala vida” (ROUILLON ARRÓSPIDE, 1997: 24). Ao recomeçar os seus estudos em linguística/gramática, dialética/lógica e retórica, foi aconselhado pelo seu diretor espiritual (Gonzalo Suárez) a entrar definitivamente para a Companhia de Jesus. Seguindo este conselho entrou para a Ordem de Santo Ignacio, fazendo os Exercícios Espirituais, entre os dias 20 a 28 de maio de 1605, no Colegio Mayor de San Pablo, onde terminou os seus estudos e foi admitido, em seguida, para o noviciado (Idem, ibid: 29). Assim, em 1606, após ter passado por uma profunda conversão, voltou ao Real Colegio de San Martín e iniciou os seus estudos superiores em Letras Clássicas, Humanidades (Literatura) e Retórica (modo de propor e meios de expressão). Os traços marcantes de personalidade não se anularam com a sua entrada na Companhia. Pelo contrário, o jesuíta os integra àqueles típicos da formação jesuítica (ROUILLON ARRÓSPIDE, 1991: LXV). Do Real Colegio de San Martín, seguiria com a expedição de Diego de Torres Bollo em direção ao Chile. Para empreitada decidiu refazer os Exercícios Espirituais durante a viagem ao Chile. Acompanhou os seus companheiros para Santiago, onde permaneceram alguns dias. Prosseguiram para Córdoba de Tucumán, onde receberam orientação do padre Juan de Viana. Seria em Córdoba que Ruiz de Montoya daria prosseguimento aos seus estudos e receberia apenas um curso de teologia moral, antes da sua ordenação (JARQUE I, 1900:163-164). Consideramos como um fato importante, em meio a essa formação apressada, os exemplos de importantes nomes do grupo dos sete fundadores da Companhia de Jesus5. 5  Segundo Rabuske “os estudos superiores de Montoya – contra a tradição da Companhia! – tinham sido curtos, podendo dizer-se que não ultrapassaram em muito os dois anos inteiros. [...] Concedemos-lhe razões fundadas para o Estudo do Latim ou de Humanidades, tendo-lhe, contudo reservas quanto à Filosofia. Em todo o caso achamos que não fez um Curso regular nem de Filosofia Escolástica, nem de Teologia” (RA� BUSKE, 1985: 51).

258

Terminando seus estudos, foi ordenado junto a outros três estudantes, em 1611, na cidade de Santiago del Estero, por decisão do padre Diego de Torres, com quem foi no mesmo ano a Asunción (JARQUE I, 1900: 208). A chegada e o início do seu trabalho como missionário coincidiu com a promulgação das Ordenanzas de Alfaro, em 11 de outubro de 1611, em favor dos indígenas, na questão da proibição do serviço pessoal6. No ano seguinte, Antonio Ruiz de Montoya seria enviado, junto ao padre Antonio Moranta, à Província do Guayra para encontrar os padres José Cataldini e Simón Mascetta, fundadores das primeiras reducciones na região: Nuestra Señora de Loreto del Pirapó e San Ignacio Miní (RUIZ DE MONTOYA, 1639: f. 7v [§ VII]). A partir de sua chegada, o missionário passou a auxiliar os seus outros missionários nos cuidados espirituais dos guayreños e dos indígenas catequizados. Durante os anos 6  Na “Ordem do Tenente Geral do Governador do Paraguai e Rio da Prata”, consta a proibição da entrada de espanhóis na região do rio Paranapanema, pelo governador Pedro de Añasco,da seguinte forma: “Por el presente mando al cap.ª Pero garçia y outra qualquer Justiçia de guayra, que em ning.ª manera preçisa ata que outra cosa se ordene y mande, no salgan ni embien a hacer malocas Jornadas ni entrada ning.ª a la Prov.ª del yparanapane y Atibaxiba, ni outro ningun rio que cayga em el paranapane, porq.to de presente se pretende reduçir a los naturales della por médio del Padre Joseph Cataldino y el Pe. Simon Maseta de la compañia del nombre de Jesus a quien lês esta cometida de dha reduçion, antes para Ella lês acudiran y haran acudir com todo el favor y ayuda que fuere neccess.º por ser cosa tan del serviçio de dios nuestro Señor y de su magestad y bien de la tierra, ni menos consientan que ningún soldado ni viçino entre a inquie� tar los indios con achaque de que van por la mita porque podría resultar alguna desorden, lo qual guarden y cumplan y manden pregonar con penas públicamente porque asi conviene como del servicio de ambas majestades, ques (sic) fecho en la assumpsion del Paraguay en veinte y seis días del mes de Nobiembre de mil y seiscientos y nueve años” (MCA I, 1951: 137). A proibição de nada adiantou, gerando uma situação problemática por parte dos jesuítas, que estavam no Paraguay, e guayreños, devido à excessiva exploração do trabalho indígena na extração da erva mate e as tentativas, por parte dos missionários de afastar os in� dígenas destes guayreños. “De modo que cuando Montoya llegó al Guairá, reinaba una gran insatisfacción en Ciudad Real y una hostilidad contra los ignacianos” (CHAMORRO, 2007: 253). Com isso, buscou-se como solução a presença do ouvidor do Conselho da Fazenda, Dr. Francisco de Alfaro. O ouvidor seguiu à Província do Paraguay para analisar o que estava ocorrendo na região, dado o fato de que as relações entre indígenas e guayreños, não estavam mais sendo cordiais, como ocorria no princípio da colonização. As relações foram evoluindo até chegar a insustentável exploração do trabalho indígena, sob o pretexto de que eles deveriam pagar tributos ao Rei sob forma de encomienda. Cabendo ao Visitador Real, Francisco de Alfaro, o estabelecimento de “leis”, que receberiam o nome de “Ordenanças de Alfaro”, cuja função era regulamentar os princípios dos direitos indígenas. Evitando o acesso dos guayreños à comunidade indígena, afinal, estes estavam mais interessados em explorá-los. As leis foram aplicadas após o ano de 1611, entre� tanto, foram postas em prática de maneira bastante precária em diversos lugares, exceto onde estava sob a administração dos jesuítas. Isso se deve a uma significativa influência dos padres Diego de Torres e Marçal de Lorenzana. As Ordenanças acabaram de alguma forma ajudando para a melhoria da situação indígena, no que se refere às questões jurídicas, havendo, ao que parece, contribuições significativas por parte dos jesuítas. Isso demonstra que os missionários tinham “consciência de que o trabalho encomendado acirrava as relações entre brancos e índios e valia-se desse acirramento para constituir e legitimar o processo redu� cional” (QUEVEDO DOS SANTOS, 2006: 106). Outra proibição de Alfaro foi a questão do resgate dos índios, porém, devido as ineficiências do controle político, dos administradores espanhóis, muitas de suas Ordenanças, não foram aplicadas. Todavia, as Ordenanças não eram cumpridas em sua totalidade, passando a ter algumas limitações de algumas das ordens e, melhorias em outras tantas. Cabe lembrar que, contudo, as Ordenanças não proibiam a encomienda, que obrigava os indígenas a pagarem tributos ao Rei e ao enco� mendeiros. O regime de encomienda fez com que houvesse choques entre os guayreños e os jesuítas. Além dos já citados, autores como: ROUILLON ARRÓSPIDE, 1997: 58-65; AGUILAR, 2002: 153-154; TOR� MO SANZ e ROMÁN BLANCO, 1989: 55-57; 71-75; MELIÀ, 1988: 123-124; RUIZ DE MONTOYA, 1639: ff. 8r-11r [§§ VII-VIII]; dentre outros, tratam de maneira mais detalhada o assunto.

259

de 1615 até 1622, Ruiz de Montoya se dedicou a construção da igreja da reducción de Nuestra Señora de Loreto, ao mesmo tempo em que seguia o exemplo dos primeiros jesuítas que chegaram a Província do Paraguay, ao utilizar-se das missões volantes para entrar em contato com os caciques (RABUSKE, 1985: 47). Foi através desta estratégia de reunião dos indígenas, que Ruiz de Montoya teve a possibilidade de observar as distinções existentes entre cada tribo contatada. Essa capacidade de perceber com rapidez, até mesmo os traços culturais mais sutis, tornou possível que a sua numerosa produção escrita fosse repleta de detalhes minuciosos em relação aos hábitos indígenas e às formas de estabelecer relações sociais, através da compreensão das diferenças e do estabelecimento de maneiras para lidar com elas. Isso o ajudou a ampliar os confins da Civitas Dei, cristianizando e “humanizando” os indígenas, protagonizando assim, junto aos padres Simón Mascetta, José Cataldini, Cristóbal de Mendoza, entre outros, os tempos heroicos das missões feitas pelos companheiros de Jesus, na Província Jesuítica do Paraguay. Com o conhecimento obtido e o auxílio dos outros jesuítas, Ruiz de Montoya tornou-se o principal responsável, entre os anos de 1622 até 1628, pelo impulso de fundar novas reducciones: San Javier, San José, Encarnación, San Miguel, San Pablo, San Antonio, Concepción de Nuestra Señora de los Gualachos ou Concepción de Nuestra Señora de los Guañanas, San Pedro, Los Angeles de Tayaoba, Arcangeles ou Siete Arcangeles, Santo Tomás Apostól ou Tomé, e, Jesús Maria7. Entre os anos de 1628 até 1631, durou o período Entre os anos de 1628 até 1631, durou o período das invasões bandeirantes, chefiadas por Antônio Raposo Tavares e Manuel Preto, que destruíram as reducciones e aprisionaram um grande número de indígenas para o trabalho escravo nos engenhos de cana de açúcar. O envolvimento das autoridades coloniais, tanto espanholas quanto portuguesas, fez com que os jesuítas ficassem abandonados junto aos seus índios diante da violência dos paulistas. Foi decidido não lutar ou resistir às invasões, pois não havia como os indígenas se defenderem usando arcos e flechas contra os arcabuzes que os bandeirantes utilizavam (RABUSKE, 1985: 48). A solução foi a de escapar dos bandeirantes abandonando o Guayra, em um êxodo organizado por Ruiz de Montoya que reuniu cerca de 12 mil indígenas, que aceitaram o plano fugir junto com os padres. A transmigração ocorreu em 1631, pelo rio Paranapanema, descendo o rio Paraná até às Sete Quedas. As balsas ou canoas foram jogadas com o intuito de enganar os bandeirantes, o que fez o “povo Israelico” seguir o resto do trajeto a pé até a região mesopotâmica argentina (entre os rios Paraná e Uruguay), onde já existiam reducciones estabelecidas (RUIZ DE MONTOYA, 1639: f. 49r [§ XXXVIII]). Do grupo que fugiu junto aos jesuítas restou o número de 4 mil índios, que ajudaram a fundar as novas reducciones de Nuestra Señora de Loreto e San Ignacio del Yabebirí. Neste período de crise, os jesuítas acabaram assumindo um papel de liderança junto aos caciques, ao demonstrarem segurança e firmeza diante das situações de fome e epidemias, que ocorreram após a transmigração (GADELHA, 1985: 127-128). Nos anos seguintes, 7  Conforme Guillermo Furlong, “en la fundación de todas estas Reducciones intervino o como misionero o como superior de las misiones del Guayrá, el Padre Antonio Ruíz de Montoya, pero todas ellas fueron perseguidas y deshechas, en gran parte, por el sanguinario proceder de los paulistas” (FURLONG, 1962: 107). Para Ernesto Maeder e Ramón Gutiérrez foram “de ubicación y existencia incierta fueron las de San Pedro y de Concepción de Gualachos. También corresponden a esa área la ermita de Nuestra Señora de Copacabana y el Tambo de las minas de hierro” (MAEDER e GUTIÉRREZ, 2009: 21).

260

estas duas reducciones, e as outras que foram criadas posteriormente, se estabeleceram; enquanto as já existentes e as que estavam sendo fundadas nas regiões do Tape e Itatines8, sofreriam com o retorno dos bandeirantes. Neste período, mais especificamente em 1636, Ruiz de Montoya foi nomeado Superior de Todas as Missões. Logo tratou de iniciar as visitas às reducciones, devido às ameaças de um iminente ataque por parte dos bandeirantes. A reação para os jesuítas decidirem tomar atitudes drásticas contra tais ameaças foi a invasão e destruição das reducciones do Tape, entre os anos de 1637 e 1638. Novamente, Ruiz de Montoya assumiu a organização da fuga dos indígenas para a região do Paraná e Uruguay, indo contra as ordens do Provincial Diego de Boroa, que não concordava com o abandono da região. Novamente, as autoridades coloniais nada fizeram para deter ou punir os bandeirantes. Tentando resolver o problema definitivamente os jesuítas organizaram a Sexta Congregação Provincial, onde foi decidido que Ruiz de Montoya e Francisco Díaz Taño seriam enviados para Madrid e Roma, respectivamente, para denunciarem os crimes cometidos pelos bandeirantes, a conivência das autoridades coloniais, a defesa do armamento indígena, como também, para pedirem o envio de novos missionários (MELIÀ, 2008: 6). Díaz Taño conseguiu retornar ao solo americano (primeiramente no Rio de Janeiro, e, depois seguiu para a região do Paraná e Uruguay) em 1640, trazendo consigo um grupo de novos missionários (MCA III, 1969: 329-334, 335-343); todavia, Ruiz de Montoya prosseguia em Madrid acompanhando o processo movido contra os bandeirantes e o de defesa do armamento (MELIÀ, 2008: 8). O armamento chegou às mãos indígenas, antes da resolução final do Conselho das Índias, pois em 1639 e 1640, o governador de Buenos Aires, Don Pedro de Lugo y Navarra, concedeu armas aos índios para que estes defendessem as reducciones do Paraná e Uruguay, nas batalhas de Caazapaguazú (1639) e M’bororé (1641)9. 8  Nesse ponto podem ser incluídas as reducciones do Paraná e Uruguai, as da região do Tape e as do Itatines, a partir das considerações de Ernesto Maeder e Ramón Guitiérrez: “En el Paraná y Uruguay occidental se fundaron los siguientes pueblos: San Ignacio del Paraná o Guazú (1610), Encarnación de Itapúa (1615), Concepción de Nuestra Señora (1620), Corpus Chrsti (1622), Nuestra Señora de los Reyes de Yapeyú (1626) y San Francisco Javier (1629). En los afluentes del alto Paraná se ubicaron Nuestra Señora de la Natividad del Acaray (1624) y Santa María la Mayor del Iguazú (1626). […] Las reduc� ciones formadas al este del río Uruguay, fueron San Nicolás del Piratini (1626), Nuestra Señora de la Candelaria de Caazapamini (1627), Mártires del Caaró (1628), San Carlos del Caapí (1631), Apóstoles Pedro y Pablo, en Aricá (ex Natividad) (1632), Santo Tomé de Ibití (1632) y Nuestra Señora del Acaraguá o del Mbororé. De ubicación incierta resulta San Francisco Javier del Tabitiú, un sitio anterior del San Javier de 1629. Poco después, en camino a las serranías del Tape, se agregaron San Miguel (1632), San José (1633), Santa Ana del Igaí (1633), Jesús Maria del Ibiticaray (1633), San Joaquín (1633) y Santa Teresa del Curití (1633). Las últimas fundaciones fueron San Cristóbal (1634) y Santo Cosme y Damián de Ibitimirí (1634). Incierta es la ubicación de la misión de Nuestra Señora de la Visitación. En la región del Itatín, las misiones sufrieron traslados, concentraciones y divisiones sucesivas. De los cuatro poblados iniciales, Ángeles de Tacuaty, San José de Ycaray, San Benito de Yray y Natividad de Nuestra Señora de Taragüí (1632), se formó uno en Yatebó (1634), para después, entre 1635 y 1647 dividirse en dos: Nuestra Señora de Fe y San Ignacio de Caaguazú” (MAEDER e GUTIÉRREZ, 2009: 21). 9  As Batalhas de Caazapaguazú e M’Bororé foram muito importantes para o fim do ciclo de apresamento indígena por parte dos bandeirantes. Porque têm relevância pelo empenho das lideranças indígenas e dos jesuítas na defesa de suas reducciones. Segundo Kern, dentre os jesuítas, podemos colocar como um dos principais articuladores “o Irmão Domingos de Torres, que participou como ‘assistente técnico-militar’ na orientação do ainda emergente exército guarani, nos importantes combates de Caaçapaguaçu e M’Bororé (1639 e 1641), o responsável pela orientação e organização da milícia das Reduções no momento mais

261

A vitória nestas duas batalhas auxiliou Ruiz de Montoya na argumentação de que os indígenas tinham o direito de defesa como súditos da Coroa Espanhola, possibilitando que ele pudesse retornar, em 1643, a cidade de Lima, onde entregaria as Cédulas Reais para o Vice-rei do Perú, Don Pedro de Toledo y Leiva (FURLONG, 1962: 126). O missionário apenas conseguiu a autorização do Vice-rei, após a chegada do ex-governador do Paraguay, Lugo y Navarra, que o ajudou a convencer as autoridades a liberarem o armamento (AGUILAR, 2002: 165-166). Ainda em Lima, Ruiz de Montoya envolveu-se na defesa da Companhia de Jesus diante das acusações feitas pelo bispo de Asunción, Don Bernardino de Cárdenas10, questão esta que se prolongou pelos seus seis últimos anos de vida. Em Lima, o missionário dedicou parte de seu tempo aos cuidados espirituais dos escravos negros, a ensinar língua Guarani, dar orientação espiritual, e, escrever. Ao falecer em 1652, Ruiz de Montoya não era mais apenas um missionário, ele havia se tornando um padre santo, um xamã poderosíssimo vestido com uma soitana preta. Seus “filhos” foram buscá-lo em Lima para enterrar e manter o “Sol Resplandecente” (Quaracytî11) perto deles, na reducción de Nuestra Señora de Loreto (ROUILLON ARRÓSPIDE, 1997: 355).

Santo Padre Xamã

Desde a sua entrada na Companhia de Jesus (1605), Antonio Ruiz de Montoya começou a ser reconhecido pelos superiores como um santo. Os relatos dos provinciais do Paraguay reconheciam os seus feitos heroicos, visões proféticas e diversos milagres relacionados à conversão dos indígenas. O primeiro provincial do Paraguay, Diego de Torres Bollo, foi o primeiro a observar as experiências místicas de Montoya, quando este ainda era noviço. Sonhos proféticos diziam a Montoya que ele logo seria enviado a um importante da história do conflito entre jesuítas e bandeirantes. Militar de carreira, tornou-se membro da Companhia e terminou sendo o ‘mestre dos índios no manejo das armas de fogo’. Foi ele que feriu com um tiro na coxa o chefe paulista da Bandeira de Caaçapá-guaçu” (KERN, 1982: 188). Foi nessa mesma batalha de Caazapaguazú que o padre Diego de Alfaro morreu com um tiro no pescoço. Como essas batalhas não são o tema da presente pesquisa, consideramos oportuno indicar os estudos feitos por: TORMO SANZ e ROMÁN BLANCO, 1989: 220-225; AGUILAR, 2002: 287-351; dentre outros. O assunto também é trata� do na documentação jesuítica: MCA III, 1969: 303-314, 329-334, 345-368. 10 ���������������������������������������������������������������������������������������������������� O conflito entre o Frei Bernardino de Cárdenas e a Companhia de Jesus, no Paraguay, iniciou após a nomeação de Cárdenas como Bispo da diocese de Assumpción por Felipe IV. Nas primeiras cartas envia� das pelo bispo ao rei, o primeiro demonstrava simpatia pela Companhia, contudo, após se interessar por uma propriedade na cidade de Assumpción pertencente aos jesuítas, ameaçou-os de expulsão da Província do Paraguay. Para obter êxito na empreitada, aproveitou a nomeação de Diego Escobar y Osório, como novo governador do Paraguay, para influenciá-lo contra os jesuítas. As inúmeras acusações, feitas por Cárdenas contra os jesuítas, incluiriam o uso herético de palavras escandalosas, oriundas de um cate� cismo todo escrito em Guarani. Seguindo com o seu plano, aproveitou a morte de Escobar y Osório, para assumir o governo da cidade. Este fato perdurou até a nomeação de Sebastián de Léon como governador interino de Assumpción, no mesmo ano da morte do governador, 1649. Como governante, Don Léon, restabeleceu a ordem, fazendo várias reparações aos danos sofridos pelos jesuítas e ordenou que o Bispo de Cárdenas fosse exilado à Chuquisaca, local onde o bispo faleceu em 1666 (AGUILAR, 2002: 167-169; MELIÀ, 2008: 10-11). 11 ��������������������������������������������������������������������������������������� Os autores que retomaram este assunto foram: CHAMORRO, 2007��������������������������� :�������������������������� 259; ROUILLON ARRÓSPIDE, 1997: 100; MELIÀ LITTERES, 2010: 72.

262

campo repleto de selvagens, estando cercado por homens mais reluzentes do que o sol (RUIZ DE MONTOYA, 1997: 30). Ao ser enviado ao Paraguay, os relatos sobre essas experiências começaram a ser abundantes. Visto pelos seus companheiros de missão como um varão apostólico, homem de muita oração e de insigne santidade, tornou-se personagem principal de muitas cartas contando os seus sucessos. Os relatos de presença divina e sucessos vindouros, muito frequentes na Conquista Espiritual, são atribuídos nas caras ânuas (dos padres Diego Ferrer, Ignacio Hernat, Juan de Salas, José Cataldini, Simón Mascetta; além dos provinciais, Diego de Torres, Nicolás Durán Mastrilli e Pedro de Oñate) as visões proféticas e o constante “diálogo” que Montoya mantinha com a Virgem de Loreto. Esse “dom” tornou-se tão evidente, que os indígenas passaram a considerá-lo a reencarnação do lendário xamã Quaracitî (Sol Resplandecente), que havia regressado para salvá-los. Após os quase 30 anos como missionário no Paraguay, foi enviado para advogar na Corte madrileña pela causa do armamento indígena. Nestes 5 anos de vida cortesã (1638-1643), Montoya previu que só morreria ao regressar ao solo paraguaio (JARQUE IV, 1900: 239). Como relatado pelo padre Simón de Ojeda, esta previsão se concretizou. Montoya, ao conseguir a liberação do armamento indígena pelo vice-rei do Peru, pode chegar até Salta, contudo, precisou regressar a Lima para defender a Companhia de Jesus das acusações feitas pelo bispo de Cárdenas (ASTRAIN V, 1916: 592-624). Ao falecer, em 11 de abril de 1652, os exemplos de sua santidade o fizeram ser aclamado como santo pelos moradores de Lima e Asunción. As autoridades eclesiásticas e coloniais, além dos populares, compareceram ao Colegio Maximo de San Pablo. Durante o enterro, grande parte dos presentes beijavam o corpo, outros tocavam os rosários. Pela quantidade de pessoas tentando guardar reliquias, fez com que o enterro fosse apressado para evitar que o desnudassem ou arrancassem os dedos e cabelos (ROUILLON ARRÓSPIDE, 1997: 355). Seriam essas relíquias (pedaços de batina ou trechos das cartas) que iniciariam os relatos dos milagres e cura de doenças graves, atribuídos a Montoya. Os relatos desta santidade foram todos reunidos por Francisco Jarque (primeiro biógrafo de Antonio Ruiz de Montoya). O autor inicia relatando sobre o caso de uma senhora moradora de Lima, que sofria de um grave câncer que já estava alastrado por quase todo o corpo. Ao receber uma relíquia (uma carta escrita por Montoya), esta senhora encostou o papel em sua perna. No dia seguinte, estava curada das chagas e os vestígios da doença estavam todos impregnados no papel (JARQUE IV, 1900: 242-243). Contudo, foram os indígenas foram os que receberam maiores graças e milagres. Testemunhas das diversas vezes em que ficou “suspenso no ar” enquanto estava em oração, das previsões, o aclamavam cada vez mais como um santo, o maior xamã de todos. No translado do corpo para as reducciones, os indígenas foram, mais uma vez, testemunhas da santidade de Montoya. Em meio a uma tempestade que destruiu as embarcações dos indígenas, a que se encontrava o corpo do jesuíta se manteve intacta. O segundo caso relatado é o de Nicolás Ruiz, ajudante de Montoya nas missas. Ruiz tomado por uma disenteria que o fazia pôr sangue para fora ao colocar uma carta escrita por Montoya em seu ventre se curou. Trechos dessa carta foram distribuídos pelo padre Pedro Comentalli entre os devotos (Idem, ibid: 249). O terceiro caso de cura foi a de um índio carpinteiro que sofria do mesmo mal que o anterior. Ao colocar a carta sobre o local de enfermidade foi curado. O último caso, foi a de uma menina de 6 anos, filha de um cacique. A menina sofria de um problema cardíaco. Como era um caso mais grave, foi lhe dado várias tiras da carta para que sempre que precisasse, as pusesse sobre o coração.

263

Tal fato, fez com que a menina nunca mais voltasse a sofrer do mal (Idem, ibid: 250). Gabriele Malagrida, modelo de vida exemplar

Gabriele Malagrida nasceu aos 5 de dezembro do ano de 168912, numa pequena cidade comasca, Menaggio, da Diocese de Nova Como, que pertencia ao Ducado de Milão. Seu pai, Giacomo Malagrida, era doutor em medicina, médico particular dos Duques Farnese de Parma e Placência, Eduardo e Doroteia, parentes da rainha viúva de Espanha Elizabete Farnese; e mestre na arte médica na Academia Real de Turim. Religioso, Giacomo Malagrida, atendia os pobres, visitando os doentes com frequência, ainda que tivesse que percorrer longas distâncias a pé. A mãe de Gabriele Malagrida, Angela Rusca, era mulher religiosa e virtuosa. O casal tivera onze filhos (quatro mulheres e sete homens); Gabriele era o quarto entre os irmãos. Na biografia escrita por Matias Rodrigues13, companheiro de Malagrida, em latim da época, o autor narra que desde o início da sua infância, Malagrida já se entregara e se submetia aos seus pais com piedosos e ótimos costumes. Construía em casa pequenos altares, aos quais convidava seus amigos a reverenciarem por amor a religião; desprezando os jogos infantis para dedicar-se à virtude, com o seu exemplo. E, pelos costumes angélicos, recebera o alcunha de “Anjo”. Com nove anos, foi enviado a Como, sendo inscrito entre os alunos do Colégio Gallio em 1698. Ali, na sexta-feira, 31 de março de 1702, na Capela do andar superior, Malagrida, com 13 anos, será admitido aos “dois primeiros anos” do Seminário. Neste período de estudos Gabriele Malagrida exercitou, sob a direção do P. César Airoldo, da Congregação Somasca14, a Gramática, a Retórica e a Filosofia. Segundo seu biógrafo, Malagrida se empenhava tanto nos estudos que por vezes era obrigado a relaxar. Contudo, não descuidava de partilhar o seu saber com os demais. Na Retórica e Poética foi tão exímio que as suas anotações eram lidas e ouvidas por todos. Isto lhe valeu o convite a participar da academia em honra de Santo Tomás em S. João Pedementano. O progresso das letras se observa na virtude e piedade. Como fiel observador das normas do colégio, ao terminar os estudos de Filosofia, foi convidado a assumir o cargo de bedel para supervisionar os clérigos do colégio. De costume, este era um ofício que se encarregavam 12 ����������������������������������������������������������������������������������������������� Os catálogos referentes ao Maranhão trazem a data de nascimento de Malagrida como sendo 18 de dezembro (os primeiros) e 18 de setembro (os últimos, ARSI, Bras. 28, f. 6r). Matias Rodrigues registra no seu manuscrito a data de “14 dias das calendas de outubro”, isto é, 18 de setembro. Mas conforme o livro de registros batismais da Igreja Arcipetral de Menaggio, o seu nascimento é de 5 de dezembro de 1689. E esta é a data mais aceita. 13 ��������������������������������������������������������������������������������������������� Bibliotéque Municipale D’Ajaccio [Córseca], Fonds Cardinal Fesch - Fonds Ancien. Cote - MSS 117: De vita Ven. P. Malagridae, e Soc. Jes., libri IV a P[atre] Math[ia] Rodriguez elecubrati. [Manu� scrit]. - Romae, [18° siècle], 1762. 14 �������������������������������������������� A Ordem dos Clérigos Regulares de Somasca (Ordo Clericorum Regularium a Somascha - O.C.R.S.), também chamados de “Religiosos Somascos ou Somascos”, é uma ordem religiosa católica de tipo mona� cal, fundada por São Jerónimo Emiliano (Veneza, 1481 - Somasca, 1537), destinada a socorrer as crianças órfãs e pobres. A ordem foi estabelecida em 1568, sobre a base da chamada “Companhia dos Servos dos Pobres” de 1534, constituída por sacerdotes e irmãos leigos que abandonavam o mundo para se dedica� rem às virtudes evangélicas e à assistência aos pobres nas obras fundadas pelo próprio Jerônimo. Progres� sivamente tomou a forma de congregação religiosa, passando a chamar-se posteriormente de “Somasca”, pela localidade onde se estabeleceu a sua sede.

264

aos religiosos de fora do colégio, mas pela sua maturidade, Malagrida já o exercia, ao mesmo tempo que assistia aulas com os dominicanos, uma vez que o Colégio Gallio não tinha aulas de Teologia. Dois episódios são indicados pelo biógrafo de Malagrida como causas motivadoras de sua opção à vida religiosa: o primeiro foi ao presenciar a devota morte de um religioso doente; o segundo, quando representava uma peça teatral no colégio e deu-se conta do despojamento do Cristo crucificado, em contraste com os ricos trajes de cena que usava, animando-o a viver em modo símile. Uma vez que o seu pedido para entrar na congregação dos padres somascos foi rejeitado, Gabriele Malagrida voltou para a sua família. E, como já tinha as ordens menores, com frequência exercia os ministérios correspondentes, além da doutrina cristã. Transferindo-se para Milão, entrou no Colégio Helvético e ali estudou um ano de Teologia Moral. Aos 22 anos, pede para ser admitido ao noviciado da Companhia, mas tendo receio de comunicar pessoalmente a sua decisão ao pai, parte para Milão, deixando uma carta para ser entregue pelo cunhado. Muito provavelmente, temia a oposição paterna, uma vez que o pai pedira o bispo de Como, um canonicato para o filho, e também porque o próprio bispo pensava em dar a Malagrida encargos na diocese. Em Milão, Malagrida teve que esperar por cerca de seis meses antes de ser aceito pelos jesuítas, sendo enviado logo depois ao noviciado em Gênova (aos 5 de novembro de 171115). Segundo os catálogos da Vice-Província do Grão Pará e Maranhão, Malagrida tinha dois anos de Retórica, dois de Filosofia e três de Teologia. Matias Rodrigues anota que desde este período, Malagrida despojava-se da veste do homem velho, vestindo a do homem novo, nula alusão à carta paulina aos Efésios (Ef. 4, 22-23), acentuando a dedicação de Malagrida no “combate” para se revestir das virtudes cristãs e vencer as atitudes desordenadas. O biografo ressalta a perfeita linearidade entre a vida do noviço Malagrida e o costumeiro do noviciado da Companhia: silêncio e modéstia, ocupando o tempo inteiro da meditação e o restante do tempo com coisas úteis; estudando a história da Companhia e de seus membros, para lhe imitar nas virtudes da caridade, da obediência, da humildade e da paciência, entre outras. Mas sobretudo, Matias Rodrigues sublinha a virtude da mortificação da carne, com abstinências e dos sentidos, com a flagelação do corpo e outros rigores. É importante notar que o papa Bento XIV com a De Servorum Dei Beatficatione et Beatorum canonizatione16, ao apresentar um quadro completo da tradição eclesiástica em matéria de culto e de canonização dos santos, modificou os critérios e as normas para o reconhecimento oficial da Igreja da santidade. No livro III, sobre as virtudes heroicas, o papa esboçava os contornos fundamentais do ideal católico da santidade, estabelecendo uma doutrina (na verdade, não nova) com maior precisão terminológica. Inserido pela primeira vez o conceito pelo Colégio dos Salmaticenses17, numa suplica de 6 de fevereiro 15 �������������������������������������������������������������������������������������������������� Os catálogos da Província de Milão dão como data de entrada na Companhia, 23 de outubro; o refer� ente à Vice-Província do Grão-Pará e Maranhão, a 28 daquele mês (ARSI, Bras. 28, f. 6r). 16 ��������������������� Benedictus PP. XIV, De servorum Dei beatificatione et beatorum canonizatione. In Benedicti XIV ... olim Prosperi ... de Lambertinis Opus de servorum Dei beatificatione et beatorum canonizatione, nunc primum in septem volumina distributum. Editio novissima. In typographia Bassenensi, sumptibus Remon� dinianis. Venetiis, 1766. 17 ���������������������������������������������������������������������������������������������������� Trata-se do grupo de autores dos cursos de Filosofia escolástica e Teologia Moral divulgados pelos mestres do colégio filosófico dos Carmelitas Descalços de Alcalá de Henares, Espanha, e do colégio

265

de 1602 ao papa Clemente VIII, para a canonização de Teresa de Jesus, o conceito de heroicidade das virtudes começou a aparecer entre os anos de 1614 e 1616 nas relações dos Uditores da Rota. Todavia, se o papa Urbano VIII não usava este conceito nos seus decretos, falava nas cartas apostólicas de 1629, com as quais concedia o título de beato ad interim a Gaetano di Thiene e, em 1630, a João de Deus. Por conseguinte, com Bento XIV, a centralidade da fama miraculorum vem a ser substituída pelo novo conceito de conceito de fama sanctitatis (LEONI, 1992: 83). E esta era alcançada através do exercício em grau heroico das virtudes, na qual a santidade, como maturidade plena da vida vivida coerentemente com a caridade se transformava na dimensão mais peculiar do cristão ideal, e por extensão, do “jesuíta modelo”, segundo a imagem desenhada por Ignacio de Loyola nas Constituições da Companhia18. Daí a constante insistência do biografo na precocidade da vivência destas virtudes por Malagrida. Seriam o testemunho mais importante, de acordo com os cânones da época, para a sua santidade. Sucessivamente ao tempo em Gênova, Malagrida volta a Milão para os estudos humanísticos (Retórica), onde fez o seu período de magistério. Passou dois anos em Adjaccio (Córsega), ensinando gramática e onde compôs a peça teatral, o Ammanus, com tema devocional. Ali também se ocupa dos alunos internos do colégio e do ensino de catecismo para os de fora. Depois foi para o colégio de Nice por um ano e mais outro ano em Vercelli. De volta à Gênova, fez mais um ano de Teologia, sendo ordenado em julho de 172119. Enquanto esteve em Gênova, Malagrida escreveu uma carta para o Geral Tamburini20, pedindo para ser enviado para as missões na Índia. A ocasião se apresentou com a passagem do P. Visitador Bento da Fonseca, buscando jesuítas para a Vice-Província do Maranhão, em 1719. De Gênova partiu para Lisboa e, de lá, para S. Luís do Maranhão, onde chegou no fim do ano de 1721, com 30 anos de idade. Muito embora pedisse para ser enviado como missionário às aldeias indígenas, Malagrida ainda necessitava concluir os estudos de letras e prestar o seu “examen ad gradum”21. Novamente, o biógrafo Matias Rodrigues anota que, contrariamente ao que se deveria esperar, Malagrida aplicou-se nas confissões, dentro e fora do colégio de S. Luís, nas pregações e em outros ministérios próprios da Companhia, sem deixar de se dedicar com afinco à preparação do exame. Restará no Maranhão até 1753. Deste primeiro período de missão no Brasil, os testemunhos sobre a vida cotidiana de Gabriel Malagrida abundam de informações hagiográficas, por vezes exageradas, uma vez que as poucas fontes que foram conservadas são quase todas favoráveis a Malagrida. Nos arquivos, no entanto, poucas informações de fontes não jesuítas podem ser encontradas. Suspeitase que, depois da cruenta execução de Malagrida e da expulsão da Companhia de Portugal, o ministério pombalino, na sua política anti-jesuítica, tenha censurado e eliminado muita documentação sobre Malagrida.

teológico de Salamanca (Colegii Complutensis). 18  Sobre as Virtudes na Companhia de Jesus, veja-se: Sancti Ignatii de Loyola Constitutiones Societatis Jesu. Tomo I: Monumenta Constitutionum praevia; Tomo II: Textus hispanus [ed. por A. Codina], Romae: IHSI, 1934, 1936 (= MHSI 63 64), nn. 813; 671; 637; 260; 263; 148,156; 66-68,98,285,297; 117; 340; 518; 486; 582; 522; 516,520,819; 55,256; 48; 523; 624; 431; 423; 725-728. 19 ������� ARSI, Med. 63, f. 186r. 20 ������� ARSI, Med. 41, f. 133r. 21 ���������������������������������������������������������������������������������������������������� É o exame final que compreende toda a Filosofia e Teologia, depois do qual é considerada concluída a formação de estudos do jesuíta e que antecedia a profissão perpetua na Companhia. Do bom desem� penho neste exame dependia a concessão da profissão de 4 votos e a possibilidade de acesso a cargos de governo.

266





O que se pode recolher com segurança dos testemunhos nos documentos que se conservaram permite traçar um regime de vida segundo o qual Malagrida era incansável, grande orador popular, completamente dedicado ao apostolado, à oração e à penitência corporal. O P. João Brewer, seu companheiro de missão, assim descrevia uma sua jornada típica: Durante o ano de 1747, o P. Malagrida morou comigo na Missão do Ibiapaba, de 5 a 17 de fevereiro, e pude observar o seu modo de viver. Depois de um brevíssimo sono, e deita uma rigorosa flagelação, se preparava para a meditação. Depois de recitar as hora canônicas dirigia-se ao confessionário, onde permanecia até às 10:00. Em seguida, subia ao tablado, elevado para este fim na igreja, onde explicava a doutrina cristã, depois da qual, suposta a santa confissão, se preparava ao santo sacrifício da missa, que celebrava com grande devoção dentro da meia hora, segundo as prescrições. Fica em ação de graças até a primeira hora da tarde e, às vezes, além. De volta para casa, comia alguma fava ou um pouco de leite, deixando a farinha brasileira, e, em lugar da farinha, vez por outra, acrescentava como complemento um bocadinho de café, ou um ou dois “mondubi” [amendoim], que é um fruto com um núcleo de pequena noz, de cor e de sabor não diferente, de tamanho um pouco maior. Quase sempre se absteve de carne e peixe. No entanto, enquanto comia, ou se ocupava ao mesmo tempo em escrever cartas ou escutava a leitura de algum capítulo da Imitação de Cristo. E esta exígua refeição lhe bastava por 24 horas. Concluído o ofício divino, preparava o sermão, na qual pregava com tanta devoção e zelo, que às vezes lhe chegava a faltar a voz, e, se por ventura, durante o sermão lhe faltasse um vocábulo em português, supria-o com um latino ou italiano. O mesmo acontecia ao escrever cartas. Terminado o sermão, atendia as confissões e as meditações até tarda noite. O venerável P. Malagrida era de estatura mediana, benévolo e alegre na conversação, e, embora tratasse o seu corpo com contínuos jejuns e trabalhos, todavia não apresentava macilência; pelo contrário, o seu rosto era sempre hilariante e benigno, as faces rubicundas, de cabelos cor castanho, que davam um pouco ao preto e [a barba] totalmente branca. A mais perfeita representação do P. Gabriele Malagrida é dada pela estátua de S. Francisco Xavier, com 4 palmos de altura, que se conservava sobre o altar maior, do lado do Epístola [à direita do altar], na igreja da Missão de Ibiapaba, tendo em conta que esta imagem tinha a barba de cor castanha (MURR, 1788: 41)22.

Neste relato, é importante ressaltar a relação de simetria entre Malagrida e o grande apóstolo das missões no Oriente e co-fundador da Companhia, Francisco Javier. Aliás, para se ter a noção da importância desta relação, deve-se considerar que a própria canonização do fundador da Companhia, Ignacio de Loyola, foi muito favorecida pela causa de canonização do próprio Francisco Javier, que justamente a partir de 1748 foi considerado o patrono das missões. Alguns comentaristas afirmam que sem Francisco Javier, a causa de canonização de Ignacio teria sido bem mais difícil. O acostamento destes dois jesuítas, Malagrida e Francisco Javier, evocam portanto o protótipo modelar do missionário na Companhia. O P. Roque Hunderpfund, também companheiro de Malagrida nas missões do Maranhão, relatava que:

22  Para todo o relato do P. Brewer, ver as pp. 41-54 (trad. do latim).

267

Nas vastas zonas desérticas do Brasil, na maior parte das vezes, viajava a pé, e nunca fez uso de alguma bebida inebriante; de nada mais se nutria se não somente de legumes e de frutas. Era de estatura média, de corporatura magra, só pele e ossos, todavia com olhos vívidos e luminosos, alegre no rosto e de coloração rósea, os cabelos de cor castanho claro, a barba muito longa e toda branca, branquíssima. Assim o vi no Maranhão de volta do Brasil em 1747, quando tinha 60 anos (MURR, 1788: 300).

O território de apostolado do P. Malagrida abrangia o Pará-Maranhão até a Bahia e Nordeste, cerca de 2.000 km. Como companhia de viagem, Gabriele Malagrida levava consigo uma imagem de Maria, a qual usava para as suas pregações populares, levando-a em procissão ao final das missões. À imagem, o povo do sertão atribuía prodígios extraordinários, e ao próprio Malagrida como um “taumaturgo”. Especial atenção pastoral, a exemplo do próprio fundador Ignacio de Loyola, o jesuíta italiano dedicava às públicas pecadoras, para as quais empenhou-se na fundação de institutos de recolhimento. Além do povo em geral, Malagrida foi particularmente sensível às necessidades do clero secular; ora reavivando a vida cristã, ora promovendo, sob o seu estímulo e exemplo, ações de mutirão para o reparo das igrejas. Um exemplo desta vitalidade pastoral de Malagrida foi registrada na carta do consultor de D. João V, D. Frei Inácio de Santa Teresa. Apresentando-me o vigário [de Estância, Sergipe] a lamentável situação de abandono e de pouco zelo dos fieis da sua igreja, fiz uma pregação com tanta força e felicidade, que me presentearam 900.000,00 réis em dez dias, além de quanto me prometeram recolher nos dias seguintes. Tudo ficou nas mãos do vigário. E para dar maior calor às missões, na tarde do último dia, convidei todos a carregarem pedras e eu mesmo fui com eles com os meus dois companheiros jesuítas. Que espetáculo belo e santo de ver-se. Toda aquela multidão (foram mais de 4.000 pessoas, segundo os cálculos dos meus companheiros) correu ao glorioso trabalho, carregando não mais ad pompam e cantando os hinos das missões. Limparam todo o rio, que estava cheio de pedras. E, como naquele momento não havia bois para ajudar no transporte, não se envergonhou uma boa escolta de valentes jovens de puxar uma carreta como se fossem eles mesmos os bois. Cena que não sei se convidava mais a rir pela novidade ou a chorar pela devoção e ternura que inspirava (BNP, Reservados, cód. 1527: ff. 603ss).

Malagrida nunca deixou de ser homem de letras. Além de incansável e dinâmico missionário popular e junto aos índios, sem nunca deixar o apostolado dominical, viajando a pé toda a noite do sábado, também foi professor de Teologia para os alunos da Companhia (por 4 anos). Deve-se a sua iniciativa a criação de seminários diocesanos pelo norte-nordeste do Brasil. Especialmente no norte/nordeste brasileiro, o clero secular era escasso e com má formação teológica. Fundou seminários na Paraíba (1745), em Belém (1748), em S. Luís do Maranhão (1752) e já se preparava para fundar um também no Rio de Janeiro, quando foi chamado à Lisboa. Todavia, a fundação de seminários encontrou não poucas dificuldades, a começar pela oposição do bispo do Maranhão, ao qual competia essa faculdade, segundo os cânones do Concílio de Trento. Na verdade, muito embora estivesse munido de cédulas reais que lhe permitiam a fundação de seminários, no tempo de D. Frei Miguel de Bulhões, bispo do Pará, Malagrida entrou em choque tanto com o bispo, quanto com o próprio governador, irmão de Sebastião José de Carvalho e Melo. O

268

problema recaía numa das condições necessárias para a aprovação real das fundações: a garantia de auto-sustentação dos seminários. Malagrida também se empenhou na fundação de casas de recolhimento de “convertidas”. Fundou bem dois conventos destinados a elas: em 1738 aquele de Soledade, na Bahia; e em 1742, aquele de Iguaraçu, em Pernambuco. Os dois dedicados ao Sagrado Coração de Jesus. No momento da sua primeira volta ao Reino, em 1750, Malagrida tinha fundado 4 conventos para irmãs, 3 casas para as prostitutas convertidas e 3 seminários, além da reconstrução de várias igrejas. A sua ação também se estendeu às missões entre os indígenas do Maranhão: os Aruás, Caicaizes, Guanarés, Barbados, Gamellas, Cerobis e Harois. Não poupou esforços para missionar estes grupos, contados entre os mais difíceis pelos demais missionários. Além da diversidade de língua e cultura, havia ainda as normais dificuldades da geografia e topografia típicas do norte do Brasil: desertos cheios de capoeiras e pedras, e longas distâncias de navegação em canoa por rios. Os imprevistos eram muitos. Certa vez, ao virar a canoa em que navegava, ele que não sabia nadar, foi salvo por dois índios remeiros, os quais lhe fizeram entender que se desejasse ser levado à margem do rio, deveria aumentar a recompensa combinada (machados, facas, imagens, contas de vidro, anzóis...); ou ainda, depois de entregar todos os dons que levava consigo, os índios Caicaizes o abandonaram num bosque, sem sequer lhe deixar um pouco de comida, que davam aos seus cães. Malagrida se salva, comendo a sua cinta das suas calças e alguns frutos do mato. Ou como quando os Guanarés o amarraram a um tronco e iniciaram a dança da morte. No momento em que estava para ser abatido, uma velha do grupo o salvou contando que uma outra tribo (os Caicaizes), depois de terem matado e comido o P. Villar tinha sido infectada por uma grave epidemia. Empurrado até uma canoa no rio Itapicuru, foi expulso da região. A dificuldade em conquistar a confiança das tribos indígenas um foi dos maiores desafios na missionação de Malagrida. Escrevendo ao P. Geral, aos 4 de agosto de 1727, Gabriele Malagrida manifestava o seu desacordo com os métodos da política geral de “pacificação” dos índios, sentindo-se inclusive incompreendido e, até mesmo, manipulado pelos seus superiores, que apoiavam as expedições punitivas dos portugueses contra os indígenas revoltosos (ARSI, Bras. 26, ff. 252r-255v). Em 1754, depois de ter passado 30 anos no Brasil, Malagrida volta definitivamente para Portugal, a pedido da rainha-mãe, D. Marianna d’Austria, que o havia conhecido em 1750, quando pregava exercícios espirituais, atendia ao rei D. João V e buscava ajuda financeira para as obras que fundava no Brasil. Agora, o missionário recebia a tarefa de preparar à morte a rainha e fundar casas de exercícios no palácio real e em outros lugares do reino. Algumas dificuldades com o provincial frearam as suas inciativas. Por ocasião do terremoto de 1755, Malagrida entregou-se completamente ao auxílio das vítimas, estimulando-as a conversão, e imputando à corrupção dos costumes a causa do “castigo divino”. Estas ideias colocou-as por escrito no panfleto Juizo da verdadeira causa do terremoto que padeceo a corte de Lisboa... (MALAGRIDA, 1756, BNP, Reservados, cód. 6.688 P.). As tensas relações entre a Companhia de Jesus no Brasil e em Portugal com o ministro de D. José I, Sebastião José de Carvalho e Mello, se complicaram. Carvalho atribuiu a Malagrida a acusa de ser a senão a causa, uma das causas da ira divina contra Lisboa. O fato forneceu ao ministro elementos que azedaram ainda mais a relação da Companhia com a monarquia. Poucos anos depois, em 1759, por ocasião de um atentado contra o rei, a Companhia seria expulsa do Brasil e supressa no reino de Portugal. Seus

269

membros encarcerados ou expulsos para os Estados da Igreja. Malagrida dera exercícios espirituais à Marquesa dos Távoras. Em 11 de janeiro de 1759, sem qualquer acusa formal, foi aprisionado com outros, como inspirador moral do atentado ao rei. Mas, enquanto os envolvidos no atentado foram sentenciados e brutalmente executados, Malagrida não foi envolvido nem no juízo, nem na sentença de condenação. Malagrida foi incriminado pelo Tribunal da Inquisição de Portugal, controlado pelo irmão de Sebastião José de Carvalho e Mello (Paulo), por heresia, falsas profecias e obscenidade. O objetivo era destruir a fama de santidade de Malagrida, desacreditando o nome da Companhia em Portugal. Em 21 de setembro de 1761, com uma grande manifestação pública organizada, Malagrida foi arrastado pelas ruas de Lisboa, com as mãos amarradas às costas, com a boca amordaçada com um pedaço de madeira, levando na cabeça uma espécie de mitra de papel, vestindo a batina de jesuíta. Em praça pública, foi garroteado. Seu corpo foi queimado e suas cinzas lançadas ao mar. Tinha 72 anos de idade.

Conclusão

Nos corpus dos escritos que formam as principais fontes da espiritualidade inaciana, a “virtude” ou “virtudes” se referem a contextos muito variados e com qualificações e significados diferentes. Nos textos inacianos, encontramos o uso do termo “virtude” em relação ao significado medieval de “virtus”. Em geral, este termo latino era utilizado para significar o que se poderia traduzir por “força” (dynamis) de Deus, da qual fala S. Paulo, e a “virtus” (areté) de Aristóteles. Em alguns textos inacianos, o primeiro sentido, i.e., de dynamisi tem uma conotação não moral, e se refere ao poder ou a força divinas (EE 2). Mas é o segundo sentido que mais abunda na literatura inaciana. E esta sim, tem uma conotação fortemente moral, mas sempre no contexto da vida cristã (ou, no caso das Constituições e outros escritos da Companhia, na vida religiosa na Companhia de Jesus) e no horizonte teologal no qual as virtudes humanas não se concebem sem a virtus divina. Em geral, tanto no singular, quanto no plural, o termo “virtude” se refere a uma ideia comum que a relaciona com a vida moral da pessoa, i.e., de uma vida segundo a ordem moral, vida de integralidade, íntegra ou segundo o reto modo de proceder. Daí que à “virtude” se associe a “bondade” (Const. 813, por exemplo). Por isso, na ótica da Companhia, há uma estreita relação (quase qual “causa e efeito”) entre “virtude” e o “hábito de fazer o bem” (enquanto habilidade adquirida mediante o exercício perseverante de uma determinada atividade), ou a constante dispositio do espírito na virtude da qual se vive retamente ou se atua em conformidade com a lei moral. É neste sentido que nos textos fundacionais da Companhia se enfatiza a importância capital das práticas concretas para a aquisição da virtude e para de distanciar de todas as afeições desordenadas [EE 245]. As narrações sobre a vida de Antonio Ruiz de Montoya e Gabriele Malagrida entram dentro deste horizonte conceitual. Os exemplos acima mostram os autores escreveram as “vidas” de Antonio Ruiz de Montoya e de Gabriele Malagrida considerando os conceitos do que se entendia como História nos séculos XVII e XVIII para os fins de um processo de beatificação e/ ou canonização. Fundamentalmente, tratava-se de uma forma narrativa que objetivava

270

mostrar vícios e, sobretudo, virtudes heroicas. O caráter retórico deste tipo de narração não tem por objeto contar a verdade no sentido moderno do termo, mas “moralizar” a partir do verossímil. Verossimilidade e ficção só se separariam a partir do séc. XIX e, portanto, conforme a História, de acordo com o modelo vigente clássico dos sécs. XVI a XVIII, é um gênero da Gramática (assim como a literatura), regulada pelas regras da retórica. Neste sentido, as vidas exemplares dos dois jesuítas descritos neste artigo respondem a esta expectativa, na medida em que seguiam as regras retóricas clássicas, além do conceito de “virtude” da tradição cristã e “virtudes heroicas” de Bento XIV. Isto, como já se acentuou, provocou uma mudança de eixo na centralidade da fama miraculorum, pela sua substituição pelo conceito de fama sanctitatis. Além disto, como a Retórica propunha a persuasão através do ensinar, divertir e transformar, estes três aspectos estarão presentes nas narrações das vidas exemplares: ensinar verdades morais-dogmáticas e virtudes, divertir o ouvinte e transformar os sentimentos, isto é, imitar as virtudes. Como tais narrativas se destinavam a um amplo público de leitores, tanto ad intra quanto ad extra da Companhia, os autores das “vidas”, que aqui apresentamos como exemplo, sublinharam com insistência as “virtudes heroicas” dos dois jesuítas descritos. Indiretamente, opondo-os aos modelos não virtuosos de missionários e de leigos. Implicitamente, narram uma Historia magistra vitae (conforme o conceito clássico de Cícero). Daí a abundância dos testemunhos “à vista”, orais e escritos de pessoas que ou tinham convivido com os personagens exemplares ou deles tinham ouvido falar de forma bem precisa. A afirmação de “ter visto” ou do “ter ouvido” atestava a verossimilidade do narrado e, ao mesmo tempo, dava legitimidade à vida exemplar. Mas não só, as narrações “localizam” os personagens exemplares dentro de uma dinâmica clássica histórica (conforme Cícero, a História como res gesta), incluindo-os dentro do plano de salvação. Neste sentido, a narrativa sobre estes personagens aparece como uma autêntica rerum gestrarum, isto é, rica em detalhes que possibilitassem recuperar uma história, contala, mais que fazer a história. Por isso mesmo, a história destes missionários virtuosos é magistra vitae; porque suas vidas revelam atitudes e virtudes dignas de serem imitadas, servindo para o bem viver dos demais jesuítas, por exemplo. E este era o objetivo de tais narrações: ensinar e estimular a imitar as virtudes. centralidade da fama miraculorum vem a ser substituída pelo novo conceito de fama sanctittatis. Disto resultava, finalmente, um modelo exemplar de jesuíta missionário e de cristão.

Referências Bibliográficas

Manuscritos

Carta do P. Gabriele Malagrida, missionário no Brasil, a D. Frei Inácio de Santa Teresa, bispo dos Algarves, conselheiro de D. João V, in BNP, Reservados, cód. 1527, ff. 603ss. Cópia de uma Carta do P. Gabriel Malagrida, missionário do Maranhão, ao P. Geral. Maranhão, 4 de agosto de 1727., ARSI, Bras. 26, ff. 252r-255v. De vita, morte, et causa mortis Gabrielis Malagridae Jesuitae. Manuscrito, ARSI, Vitae, 64.

271

Vita del P. Gabriele Malagrida della Provincia del Maragnone. Manuscrito, ARSI, Vitae, 94. ARSI, Bras. 28, f. 6r. ARSI, Med. 63, f. 186r. ARSI, Med. 41, f. 133r. De vita Ven. P. Malagridae, e Soc. Jes., libri IV a P[atre] Math[ia] Rodriguez elecubrati. [Manuscrit]. - Romae, [18° siècle], 1762.Bibliotéque Municipale D’Ajaccio [Córseca], Fonds Cardinal Fesch - Fonds Ancien. Cote - MSS 117. Obras editadas

AGUILAR, Jurandir Coronado. Conquista Espiritual: A História da Evangelização na Província Guairá na obra de Antônio Ruiz de Montoya, S.I. (1585-1652). Roma: Pontifícia Universitá Gregoriana, 2002. ASTRAIN, Antonio de. História de La Compañía de Jesús en La Asistencia de España: Vitellesch, Carrafa, Piccolomini (1615-1652). Tomo V. Madrid: Administración de Razón y Fé, 1916. AZEVEDO, João Lúcio d’. Os Jesuítas no Grão-Pará: suas missões e a colonização. Coimbra: Impr. da Universidade, 1930. BAPTISTA, Jean. T. O Temporal: sociedades e espaços missionais. São Miguel das Missões: Museu das Missões, 2009. ________. O Eterno: crenças e práticas missionais. São Miguel das Missões: Museu das Missões, 2009. BENEDICTUS PP. XIV. De servorum Dei beatificatione et beatorum canonizatione. In Benedicti XIV... olim Prosperi... de Lambertinis Opus de servorum Dei beatificatione et beatorum canonizatione, nunc primum in septem volumina distributum. Editio novissima. In typographia Bassenensi, sumptibus Remondinianis. Venetiis, 1766. BORJA GÓMEZ, Jaime Humberto. Historiografía y hagiografia: vidas ejemplares y escritura de la historia en el Nuevo Reino de Granada. Fronteras de la Historia, 12, pp. 53-78, 2007. BUTIÑÁ, Francisco. Vida del P. Gabriel Malagrida de la Compañía de Jesús, quemado como hereje por el Marqués de Pombal. Barcelona: Impr. de Francisco Rosal y Vancell, 1886. CAEIRO, José. Jesuítas do Brasil e da Índia na perseguição do Marques de Pombal. (De exílio Provinciarum Transmarinarum Assistentuae Lusitanae Societatis Jesu). Academia Brasil. de Letras. Baía: ETS, 1936. CHAMORRO, Graciela. Antonio Ruiz de Montoya: promotor y defensor de lenguas y pueblos indígenas. História Unisinos, v. 11, n.2, pp. 252-260, maio/agosto de 2007. CORTESÃO, Jaime. Manuscritos da Coleção de Angelis I. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1951-1969. COUTINHO, Marcus Odilon. O Livro proibido do Padre Malagrida. João Pessoa:

272

UNIGRAF, 1986. ECKART, Anselmo. Memórias de um Jesuíta prisioneiro de Pombal. Braga/São Paulo: L.A.I./Loyola, 1987. FRANCESCO, Leoni. I processi di canonizzazioni attraverso i secoli: problemi e prospettive. In: OTRANTO, Giorgio; PALESE, Salvatore [ed.]. Giacomo Varingez da Bitetto: fra storia e culto popolare. Per Storia dela Chies adi Bari. Bari: Edipuglia, 1992. FURLONG, Guillermo. Misiones y sus pueblos guaraníes. Buenos Aires: Imprenta Balmes, 1962. GADELHA, Regina Maria d’Aquino Fonseca. Montoya e as relações de produção nas missões. Anais do VI Simpósio Nacional de Estudos Missioneiros - Montoya e as reduções num tempo de fronteiras.  Santa Rosa:  Fac. Filos. Ciências e Letras Dom Bosco, 1985, pp. 119-131. GOVONI, Ilário. Pe. Malagrida, o missionário popular do Nordeste. Porto Alegre: L.E. P. Reus, 2000. ________. Gabriele Mlagrida. martire di ieri, modelo per oggi. In: Civiltà Cattolica, ano 141, vol. 4/3367-3372, pp. 119-130, 1990. JARQUE, Francisco. Ruiz de Montoya en Indias (1608-1652) [1662]. Madrid: editado por Victoriano Suárez, 1900 (Volumes I e IV). KERN, Arno Alvarez. Missões: uma utopia política. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982. KRATZ, Wilhelm. Der Prozess Malagrida nach den originalakten der in Torre doTombo in Lissabon. In: Archivum Historicum Societatis Iesu, 4, pp. 1-43, 1935. LAMEGO, Alberto. Pela terra Goytacaz. Bruxelas/Niterói: Ed. d’ Art Oficial, 19231941. LEITE, Serafim, História da Companhia de Jesus no Brasil. 10 vols., RJ/Lisboa: Civ. Bras./INLP, 1938-1950. MAEDER, Ernesto J.A.; GUTIÉRREZ, Ramón. Atlas territorial y urbano de las misiones jesuíticas de guaraníes. Argentina, Paraguay y Brasil. Sevilla: Consejería de Cultura, 2009. MALAGRIDA, Gabriel. Juizo da verdadeira causa do terremoto que padeceo a corte de Lisboa no primeiro de Novembro de 1755 / pelo padre Gabriel Malagrida da Companhia de Jesus, Missionario Apostolico. Lisboa: Oficina de Miguel Soares, 1756 (BNP, Reservados, cód. 6.688 P.). MARTÍNEZ, Julio Luis. Virtudes. In: CASTRO, José García de [dir.]. Diccionario de Espiritualidad Ignaciana (G-Z). Grupo de Espiritualidad Ignaciana. Madrid: Mensajero/ Sal Terrae, 2007, pp. 1774-1778. MELIÀ, Bartomeu. El guarani conquistado y reducido: Ensayos de etnohistoria. Asuncion: Universidad Catolica, 1988. ________. Un catecismo bilingüe en guaraní y castellano. In: RUIZ DE MONTOYA,

273

Antonio. Catecismo de la lengua guarani (1640). Asunción: Centro de Estudios Paraguayos “Antonio Guasch” (CEPAG)/ Fondec, 2008, pp. 5-35. MENDONÇA, Marcos Carneiro de. A Amazônia da era pombalina. São Paulo: Gráfica Carioca, 1963 (3 volume). MURR, Christoph Gottlieb von (Hrsg.). Journal zur Kunstgeschichte und zur allgemeinen Literatur. Bd. XVI, Nürnberg, 1788. MURY, Paul. História de Gabriel Malagrida da Companhia de Jesus, apóstolo do Brazil no século XVIII estrangulado e queimado no Largo do Rocio de Lisboa aos 21 de setembro de 1761. Transladado a Português e Prefaciado por Camillo Castello Branco. Lisboa: Livr. Ed. Mattos Moreira, 1875. PLATEL, Relazione della condanna del gesuita Gabriele Malagrida dall’ abate Platel scritta a um vescovo. Lisbona: Michele Rodriguez, 1761. SANCTI Ignatii de Loyola. Constitutiones Societatis Jesu. (Tomo I: Monumenta Constitutionum praevia; Tomo II: Textus hispanus [ed. por A. Codina]). Romae: IHSI, 1934, 1936 (= MHSI 63 64). QUEVEDO DOS SANTOS, Júlio Ricardo. As Missões Jesuítico-Guaranis. In: CAMARGO, Fernando; GUTFREIND, Ieda; REICHEL, Heloísa (dir.) Colônia. Passo Fundo: Livraria e Editora Méritos, 2006, pp. 103-133. RABUSKE, Arthur. Antônio Ruiz de Montoya: vida e obra em geral. Anais do VI Simpósio Nacional de Estudos Missioneiros - Montoya e as reduções num tempo de fronteiras. Santa Rosa: Fac. Filos. Ciências e Letras Dom Bosco, 1985, pp. 43-56. RODRIGUES, Luiz Fernando Medeiros. Conquista recuperada e liberdade restituída: a expulsão dos Jesuítas do Grão-Pará e Maranhão (1759). Dissertatione ad Doctoratum in Fac. Hist. ac Bonorum Culturalium Ecclesiae, PUG, Romae, 2006. ROUILLON ARRÓSPIDE, José Luis. Introdución. In: RUIZ DE MONTOYA, Antonio. Sílex del Divino Amor (1648 c.). Lima, Perú: Pontificia Universidad Católica del Perú/ Fondo Editorial, 1991, pp. XIX-XCIII. ________. Antonio Ruiz de Montoya y las Reducciones del Paraguay. Asunción, Paraguay: Centro de Estudios Paraguayos “Antonio Guasch”, 1997. RUIZ DE MONTOYA, Antonio. Conqvista espiritval hecha por los religiosos de la Compañía de Iesus, en las Prouincias del Paraguay, Parana, Vruguay y Tape. Madrid: Imprenta del Reyno, 1639. ________. Conquista Espiritual feita pelos religiosos da Companhia de Jesus nas Províncias do Paraguai, Paraná, Uruguai e Tape. 2ª edição. Porto Alegre: Martins Livreiro Editor, 1997. TORMO SANZ, Leandro; ROMÁN BLANCO, Ricardo.  Montoya y su lucha  por la libertad de los índios: Batalla de Mbororé. São Paulo: Eveloart, 1989.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.