Construindo a história do Institucionalismo no Brasil: linhas, modelos e ação

May 29, 2017 | Autor: Heliana Conde | Categoria: História da Psicologia
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Construindo a história do Institucionalismo no Brasil: linhas, modelos
e ação #

Heliana de Barros Conde Rodrigues*

Participar de um Seminário, notadamente de um Primeiro Seminário,
representa um desafio para um convidado, por mais que este acredite
possuir certa familiariedade com o campo institucional em que aquele se
desenvolve, bem como alguma aliança com a ferramentaria conceitual que ali
se põe em ação. Um tanto apavorada, recorro a meu habitual "calmante"
e....ponho-me a ler! No caso, a ler e encher de rabiscos o folder que
anuncia nosso encontro. Em tal processo, nele encontro três fragmentos -
linhas de pesquisa, modelos historiográficos e história da ação - que me
servirão de plataforma (ou trampolim) para o que até agora ainda me parece
um salto no vazio.

Gilles Deleuze, companheiro discursivo que muito aprecio, gosta de se
aproximar de campos de investigação como se fossem paisagens em
constituição, à maneira de um cartógrafo. Neste proceder, compara duas
formas de composição possíveis, distinguindo as linhas duras das linhas
flexíveis. As primeiras constituem diagramas de tipo arborescente, à
maneira dos fluxogramas e organogramas: a cada movimento se é obrigado a
fazer uma escolha, inspecionada por terríveis arbitragens transcendentes,
entre caminhos bipolarizados e mutuamente excludentes, figuráveis pelo
conectivo ou. Já as últimas elaboram rizomas, traçados imanentes múltiplos,
imperfeitos, intercruzados, singulares, marcados pela heterogênese, pelas
misturas e pela impureza, permitindo visualizar o conectivo e.

É derivando por estas linhas flexíveis que penso em abordar o tema dos
modelos historiográficos. Sendo assim, não pretendo dizer que aqueles que
tenho adotado excluam, invalidem ou desqualifiquem outros possíveis, embora
insista, paralelamente, no fato de que é crucial avaliar o modo como cada
um deles - os que vou expor e tantos outros quantos sejam imagináveis -
funciona, ou exerce efeitos, sobre nosso presente (e, conseqüentemente,
nosso futuro). No mínimo, sobre nosso presente e nosso futuro na medida
em que somos parte da composição da história da ação da Psicologia no
Brasil.

Concluo estas digressões preliminares utilizando, a meu bel prazer -
pois foram proferidas em contexto bastante distinto -, algumas palavras de
Michel Foucault, publicadas no Le Monde, em 1979, sob o título "É inútil
revoltar-se?".

"Não se pretende que essas vozes confusas [nossos modelos
historiográficos] sejam preferíveis a outras e exprimam a
verdade última [algum novo universalismo, essencialismo,
metodologismo...] (...) [mas] é por causa dessas vozes [as que
vinculam a historicização e seus modelos ao presente e ao
futuro] que o tempo dos homens não toma a forma de uma
evolução, mas, precisamente, a de uma história".(FOUCAULT,
1994: 793-794) (Adendos nossos, entre chaves)

Para apresentar essas importantes vozes confusas, buscarei apoio em
meu próprio percurso enquanto "aprendiz de feiticeiro". Formada em
Psicologia há vinte e sete anos, iniciei há aproximadamente dez algumas
composições discursivas no campo da historiografia. Penso que este
acontecimento se torne minimamente inteligível se pensarmos que a
historicização/desnaturalização de realidades - subjetivas ou psíquicas,
inclusive! - já constituía o componente fundamental da história de minha
ação enquanto uma - aceitemos, por ora, o apelido fixador -
"institucionalista" ou "analista institucional" do Rio de Janeiro.

Mais especificamente, foi no mestrado do Instituto de Medicina Social
da UERJ que comecei a tentar fazer história - e já a da Análise
Institucional -, ao desenvolver uma dissertação, concluída em 1994,
intitulada "As subjetividades em revolta: institucionalismo francês e novas
análises". Ali, mediante o que bastante presunçosamente denominei uma
"genealogia dos discursos, práticas e subjetivações", procurei reconstituir
a emergência, as vicissitudes e as transformações da Análise Institucional
francesa em seu campo geo-político natal, nas vertentes socioanalítica e
esquizoanalítica[1] em que temos por costume dividi-la. Já então, mais do
que em uma história das idéias, mais do que em uma história de um objeto de
pensamento previamente delimitado, o trabalho acabou por resultar em uma
exploração e conseqüente periodização dos regimes de verdade, prática e
subjetivação que sucessivamente caracterizaram a intelectualidade francesa
entre o pós-guerra e a década de 80[2]. Em meio a tais regimes, o
Institucionalismo emergiu, simultaneamente, como formação teórico-prático-
ética sobre a qual se voltava uma atenção especial e como um sistema de
diferenças e desvios, epistemológica e politicamente "impuro" ou
"irregular"[3].

A partir deste ponto, dou início a uma exposição razoavelmente
detalhada, menos dos modelos historiográficos, talvez, que do percurso
então seguido para construí-los, no qual se colocava pergunta análoga à que
nos propomos hoje: Como se escreve a história?[4] Tentando respondê-la
descobri, conforme afirmam alguns historiadores, que na tribo de Clio - a
musa da história, para os gregos - há muitas famílias distintas (e quase
sempre rivais). Passemos, pois, à exploração de algumas delas.



Famílias de Clio
Teremos por guia um texto de François Châtelet que, dentre as
conformações do trabalho historiográfico atual, identifica três linhas
principais: a HISTÓRIA POSITIVISTA; a FILOSOFIA DA HISTÓRIA e a NOVA
HISTÓRIA.
A História Positivista se confunde com o instituído da história:
fatos, datas e nomes bem encadeados, na forma de uma espécie de jornalismo
superior que tem horror ao vazio. Seus ídolos são certo sujeito (grande
vulto), certo âmbito político (o documento oficial - decreto, resolução...-
e/ou a grande batalha) e certa cronologia (a dos encadeamentos causais sem
brechas)[5].
"Um jornalismo retrospectivo que tenta encontrar, no outrora e
no antigamente, o desenrolar dos fatos, a causalidade dos
sentimentos e dos acontecimentos materiais (...); vai-se
assim do "qualquer coisa" dos cronistas historiadores (...) à
"seriedade" dos fabricantes de livros escolares e
universitários, preocupados em construir imagens confortadoras
e bem ligadas (...)".(CHÂTELET, 1974: 211-212)


Por Filosofia da História, Châtelet entende um trabalho que poderíamos
caracterizar como orientado "pelas pontas": o desenrolar histórico confirma
uma significação totalizante das transformações no tempo, em que uma origem
e/ou uma finalidade sustentam o meio do caminho. De Santo Agostinho a
certos marxistas contemporâneos, fazendo uma demorada pausa em Hegel, vemos
a história constituir-se na forma de um processo previsível, seja linear
(ao modo de evolução/progresso ou queda/decadência), seja dialético (via
contradições e superações). Fazendo referência a certo tipo de História
Marxista enquanto Filosofia da História, Châtelet ironiza:
"Do lado da revolução, está o marxismo, que aguarda o momento
em que as relações de produção entrarão em contradição com as
forças produtivas; estas se defrontarão, entrarão em choque,
até o momento em que (...) será estabelecida uma leitura
tranqüilizante da história: a galinha capitalista não poderá
deixar de pôr seu ovo socialista (aconteça o que acontecer,
contanto que nos organizemos!)".(CHÂTELET, 1974: 211)


A Nova História tem destaque especial no texto de Châtelet, que a vê
como eixo essencial da historiografia na atualidade. O trabalho da Escola
dos Anais, criada em 1929 por L. Febvre e M. Bloch, é apreendido como
repúdio simultâneo das coleções de historietas dos positivistas e das
visões cavalheirescas das diferentes formas de filosofia da história.
Pouco interessado em saber "quem" exatamente fez tal coisa e/ou
precisamente "em que data" aconteceu tal fato, pertencente a tal desenrolar
reconfortante, o trabalho da Nova História tem por objeto a sociedade
inteira e suas transformações, recorrendo, nesta tarefa de
inteligibilidade, a todas as contribuições disciplinares, desde que
meticulosamente avaliadas.
"Recusando tanto o acontecimento como a lei, tanto a crônica
quanto a sociologia, eles indicam que estão fora da triste
problemática do "acontecimento" ou do doloroso referencial
cronológico; esforçam-se - para esclarecer o presente - por
restaurar a opacidade das práticas passadas, em sua
diversidade." (CHÂTELET, 1974: 213)


Total porque não-factual, sempre inacabada porque sem princípio
totalizante, a Nova História propõe seus novos problemas (retomada do
sentido do conceito, da quantificação, do fato, da temporalidade), novos
objetos (o clima, a língua, as mentalidades, o livro, o corpo, a doença, o
filme, a festa, ...), novas abordagens (a contribuição da economia,
demografia, religião, literatura, arte, psicanálise, etnologia...)[6].
Neste processo, a noção de acontecimento se modifica. O acontecimento
não é pensado como fato (datado, localizado e em princípio compreensível),
mas enquanto irrupção ou ruptura, produto que remete a outras redes de
acontecimentos, inclusive em campos distintos: o documento factual torna-
se, assim, monumento a ser incluído em séries diversificadas[7]. No que
tange ao sentido atribuído ao acontecimento, a abordagem da Nova História
se assemelha, portanto, à marxista, sem se embaraçar com algum eventual
economicismo em última instância desta última: se a galinha capitalista
não está obrigada a pôr seu ovo socialista, rigor conceitual não se
confunde com princípios a priori.
A Nova História, tributária de tantas alcunhas - história viva,
história das intimidades, das mentalidades, do cotidiano, história serial,
...[8] -, aparentemente fala de tudo em todos os tempos. No entanto, aquilo
de que fala (e principalmente como o faz) se insere nas lutas do
presente. É nesta direção que Châtelet encaminha as conclusões de seu
artigo, ao abrir o debate sobre os efeitos políticos do discurso do
historiador. Isto porque, como que imperceptivelmente, ao criticar as
posturas políticas de um marxismo dominado pelo centralismo, filosofismo e
economicismo, e de um positivismo oficial, onde os fatos apontam à evolução
e ao progresso, a Nova História corre o risco de ser a primeira vítima da
ruptura que empreende. Este risco estaria no instalar-se ela em uma
perspectiva que, apesar de enfatizar a ruptura histórica, a novidade
incessante gerada pelo encadeamento dos combates sociais, assume por vezes
uma posição tão científica e especializada, que supostamente não tomaria
posição nestes mesmos combates.
"(...) o importante, nesta questão decisiva para o
historiador, consiste em mostrar que um objeto que o prende
(...) entra num combate ideológico, que os conhecimentos que
ele elabora aí estão presentes e têm peso, que a erudição e a
especialização não poderão ser tomadas por álibis de
neutralidade. É nisto, justamente, que consiste a questão da
objetividade em história".(CHÂTELET, 1974: 219)
Nesta linha, para Châtelet (como para nós), o Materialismo Histórico
tem um mérito fundamental, que jamais deve ser ignorado pelo historiador:
cada momento analisado na luta histórica é instrumento nas lutas do
presente. Instrumento, neste caso, não para validar uma Filosofia da
História previamente definida como "libertadora" - por um partido, um
intelectual universal, uma vanguarda dirigente, um autor onisciente -, mas
necessariamente instrumento, porque toda história é perspectiva
afirmada[9]. Nenhuma história é inocente. Toda história é marcada por sua
paixão, seja história, aqui, o objeto ou o discurso sobre o objeto.
É exatamente deste problema - o da "objetividade em história",
conforme as palavras de Châtelet - que parte a tentativa, desenvolvida a
seguir, de situar a perspectiva de um Foucault-historiador frente à Nova
História.


Concurso de tiro e engenhos de guerra
Embora a criação da Escola dos Anais date do final dos anos 20,
quando, em 1969, M. Foucault publicou A Arqueologia do Saber, a primeira
parte do livro foi saudada na qualidade de explicitação da episteme[10] da
Nova História. Durante os anos 70, no entanto, apesar das declarações
recíprocas de apreço, dos elogios e da freqüente colaboração entre Foucault
e os novos historiadores, a tribo de Clio não se abriu facilmente ao
filósofo invasor. Segundo A. Farge, a história da relação entre Foucault e
os historiadores faz surgir, em lugar da figura de uma harmonia, a de uma
relação difícil, ou constituição de uma "no man's land".(FARGE, 1984: 114)
Seria fácil atribuir os desencontros às corporações, às divisões
instituídas do saber. Acreditamos, entretanto, que mais vale seguir a
sugestão da autora e contar a história desse desencontro. Para tanto, Farge
constrói uma história de acontecimentos, no sentido que o próprio Foucault
atribui a tal conceito: construir um acontecimento é fazer surgir uma
singularidade, mostrar que não seria necessário que tivesse sido assim; é
ligar fios de redes diferentes, engendrando-os uns a partir dos outros; é
seguir uma genealogia de relações de forças, estratégias, táticas,
produzindo uma historicidade bélica e não "institucional" (enquanto
sinônimo de "legitimadora").
Para fazê-lo, Farge lembra que, em 1971, M. Foucault, J.-M. Domenach e
Pierre Vidal-Naquet criam o GIP (Grupo de Informações sobre as Prisões),
depois de uma greve de presos políticos de esquerda aliados aos detentos do
direito comum, a fim de denunciar as condições do sistema penitenciário
francês. Em 1975, publica-se Vigiar e Punir, livro que faz parte de uma
estratégia para desobstruir o campo da história (lembremos a problemática
da objetividade levantada por Châtelet). É um texto quase sem referências
ao discurso anterior dos historiadores, fundando suas bases em textos nunca
lidos, arquivos pouco conhecidos - aquilo que Foucault denomina "maçonaria
da erudição inútil".(FOUCAULT, 1979: 168-169) Com isso, destrói uma série
de evidências históricas, como, p. ex., a prisão considerada como pura
descontinuidade - revelando seus nexos com outras práticas punitivas de
diferentes âmbitos institucionais -; a referência a um responsável, como O
Poder ou O Estado - quase não há sujeito identificável. Não surgem,
conseqüentemente, as questões familiares ao historiador especialista e ao
militante político tradicional: Quem é responsável? Que fazer agora?
Segundo Farge, tais diferenças teriam provocado uma espécie de
bloqueio dos debates, só retomados a partir dos anos 80. Desde então,
delineiam-se melhor as preocupações de lado a lado, permitindo levantar
três pontos fundamentais de distância entre M. Foucault e os
historiadores[11].
1 - O primeiro ponto é a intuição fundamental de Foucault: há que
partir, nunca do objeto, mas das práticas - discursivas e não discursivas,
saberes e fazeres - que o engendram, a fim de especificar segundo que
regras tais práticas funcionam. Não se estabelece uma narrativa da
evolução de um objeto no tempo, tampouco dos diferentes olhares e
comportamentos quanto a um "objeto incógnita" previamente suposto. O
objetivo é tentar colocar-se no lugar preciso onde as práticas engendram, a
cada momento, o objeto que lhes corresponde.
"O crime e o comportamento criminoso serão então estudados a
partir das práticas punitivas e do modelo disciplinar. A
loucura é vista através daquilo que estabeleceu a separação
entre loucura e não loucura. A sexualidade é lida como uma
experiência onde o saber, a normalidade e as formas de
subjetividade fabricam um ser "sujeito do desejo""(FARGE,
1984: 116)


Se seguirmos a radicalização que P. Veyne atribui a Foucault - uma
revolução da história - , poderemos mesmo afirmar que, para este último,
não existem objetos naturais. A loucura não existe, tampouco o criminoso,
o governo, o Estado, a infância, a família, a sexualidade, o indivíduo, ou
nossa tão querida subjetividade. Só as práticas existem; ou melhor,
apenas o que são os dizeres e os fazeres em certo momento - as regras não
conscientes a que obedecem -, independentemente do que possamos justificar
a respeito (nossa ideologia) ou da mentalidade característica de nossa
época ou cultura (nossas maneiras de perceber, atitudes ou representações
acerca de algo).
Se só as práticas existem, nada é necessário: tudo sempre poderia ter
sido de outro modo, assim como tudo sempre pode ser diferente. Nada é pura
naturalidade, necessidade, destino, astúcia da razão. Aquilo que Foucault
afirma dos poderes, poderíamos dizer da história: ela se exerce, é um
como, e não um quem, um para que ou um por que totalizantes. Caso
queiramos indagar do por que, ou seja, perguntar de onde vem a
transformação das práticas, teremos de nos defrontar com um vazio, isto é,
com insuspeitadas conexões entre práticas, que nossa tranqüila razão não
supõe a princípio. Cada evento, em história, é uma raridade, um bibelô de
época. Vale, por conseguinte, acontecimentalizá-lo; quer dizer,
desconstruí-lo como evidência ou natureza, produzindo-o na qualidade de
diferença irredutível a qualquer espécie de "mesmo" (mecanismo econômico,
estrutura antropológica, processo demográfico, etc... etc...).
"Enfim, tudo é histórico, tudo depende de tudo (e não
unicamente das relações de produção), nada existe
transistoricamente e explicar um pretenso objeto consiste em
mostrar de que contexto histórico ele depende. A única
diferença entre essa concepção e o marxismo é, em suma, que o
marxismo tem uma idéia ingênua de causalidade (uma coisa
depende de uma outra...)".(VEYNE, 1982: 198)


2 - O segundo ponto a diferenciar Foucault dos novos historiadores
implica a própria definição de real. O primado das práticas (ou das
relações) sobre os objetos desmistifica o grande objeto - a instância
global do real, a sociedade enquanto tal - como totalidade a restituir, a
interpretar, a compreender. Foucault se refere a uma mecânica do real
(modo múltiplo de engendramento) e não à realidade como "inteireza"
representada e/ou atuada, globalmente, pelos agentes.
Talvez a melhor ilustração desse modo de proceder seja a referência ao
conceito de sociedade disciplinar, em contraste com sociedade disciplinada.
A disciplina não é uma espécie de tipo ideal weberiano - o homem
disciplinado como categoria global de interpretação -, mas uma
generalização nominalista (denominação sintética) para um conjunto de
técnicas de adestramento, vigilância e individuação. O fato de nunca
funcionar completamente, já que nenhuma sociedade é inteiramente
disciplinada, não a torna uma idealidade ou utopia ordenada confrontada a
uma realidade desordenada. A disciplina não é o real já dado, mas do real
enquanto modo de produção: microfísica do poder, micropolítica do real,
versus realidade macro ou global à qual corresponderia determinada reação
social. Nesta linha de trabalho, mais uma vez Foucault se distingue dos
historiadores, inclusive dos novos.
"Os historiadores trabalham habitualmente sobre objetos (o
corpo, a alimentação, o casamento, a solidão,... etc...)
para determinar a evolução das práticas que lhes correspondem
e encontrar mutações e descontinuidades. Eles tentam também
captar os esquemas de representação da sociedade e das classes
sociais frente a estes objetos e trabalham sobre as reações
sociais".(FARGE, 1984: 117)


Por conseguinte, a apreensão micro do que é do real não se distingue
da macro frente ao real à maneira da oposição entre o pequeno -
estabelecimentos, grupos, minorias - e o grande - A sociedade, O estado,
A formação social. Trata-se, sim, do contraste entre uma apreensão pela
via da produção-engendramento - desnaturalizadora, contingenciadora - e
uma apreensão pela via da representação-reação - meramente relativizadora
e próxima a um "colapso racionalizador". Se a primeira resulta em uma
certa figuração do real, em uma certa totalização sempre à beira do
desfiguramento, a segunda parte de uma idealidade totalizadora - O real -
que deverá ser necessariamente figurada ou representada.
3 - Aqui se abre o terceiro ponto de distância entre Foucault e os
historiadores, que estes últimos, por sinal, reconhecem como sua grande
lição: a história enquanto tal é prática histórica de produção de real, à
qual se há de indagar quanto às suas próprias condições de existência e
modos de funcionamento. As perguntas foucaultianas não são as de um
tranqüilo cientista que sempre põe (ou supõe) previamente seu objeto, mas
as de um filósofo que coloca "entre parênteses"[12] a ciência, a fim de
elaborar uma visão crítica da experiência do presente. De tal visão, a
história - enquanto certa família da tribo de Clio - será o suporte. E se,
conforme argumentam criticamente alguns historiadores, partes do real são
postas de lado em tal empreendimento - representações, reações,
quantidades, responsáveis, consecuções revolucionárias... -, é por vontade
realizadora: para produzir real como acontecimento, raridade,
historicidade radical.
Nas palavras de Foucault, em entrevista concedida a G.Raulet em 1983,
este aspecto pode ser nitidamente relacionado à problemática da
objetividade em história, isto é, à presença da história nas lutas do
presente:
"....a história tem por função mostrar como aquilo que é nem
sempre foi, isto é, que é sempre na confluência de encontros,
de acasos, no curso de uma história frágil, precária, que são
formadas as coisas que nos dão a impressão de ser as mais
evidentes. (...) Porque as coisas foram feitas, elas podem, se
soubermos como foram feitas, ser desfeitas".(FOUCAULT, 1994a:
449)



Por meio dos três pontos aqui apresentados talvez se clarifique a
diferença entre o que a partir de agora denominaremos desnaturalização
foucaultiana e a mera relativização historicista-culturalista. Se o objeto
é afirmado de início, mesmo que como pura incógnita, o alvo, colocado pelo
historiador, não é, ele mesmo, historicizado. Seguindo a sugestão de
Veyne, é possível afirmar: uma frase tal como "a loucura[13] é apreendida
diferentemente por culturas e contextos históricos distintos" deve ser dita
metafísica.(VEYNE, 1982: 170) Metafísica porque desconsidera, ativamente,
os efeitos da prática historiadora, a qual está lançando, para o lugar
idealizado (e idealista) de um "alvo visado", aquilo que engendra, no seu
exercício, como conceito.
Neste tipo de raciocínio, culturas e formações históricas distintas
"acertariam" em algum ponto deste alvo de "concurso de tiro", seja seguindo
certo tipo - linear ou dialético - de "evolução da pontaria", seja em
função de simples diferenças de códigos histórico-culturais (tipo de lente
usada na mira da arma, talvez...). Às primeiras, o historiador ofereceria
ajuda em direção à "civilização" ou à "revolução"; às últimas, a
tolerância de "ocidental do século XX"[14]. Embora isso possa ferir alguns
antropólogos e historiadores, parece-nos que o "colapso racionalizador" do
relativismo está, neste sentido, quase sempre à beira de colapsos ainda
piores: o do evolucionismo e o do revolucionarismo-vanguardista.
Desnaturalizar objetos pressupõe fazer o mesmo com nossos discursos e
práticas.
Vale a pena, neste momento, inventar diagramas inspirados nas
expressões de Veyne: concurso de tiro versus engenhos de guerra.
DIAGRAMA 1 - Concurso de Tiro
-abordagem relativizadora-representacional-macro.
(EX: Nova História, Antropologia Cultural,
atc...)


(DIACRÔNICAS ou SINCRÔNICAS)
Fenômeno,
Objeto,
Realidade,
Fato
(Transcendência macro
suposta, mesmo que como "incógnita")

.DIAGRAMA 2 - Engenhos de Guerra
-abordagem desnaturalizadora-produtivista-micro.
(EX: História aos moldes foucaultianos)




A expressão de Veyne, quanto ao segundo diagrama, é bélica: "engenhos
de guerra" que estouram em todas as direções, e não "concurso de tiro" em
que variam, na aparente tranqüilidade da representação ou do código,
pontarias ou focos de mira. Pois a ferramenta desnaturalizadora-
produtivista-micro recusa, no dizer de Foucault,
"(...) análises que se referem ao campo simbólico ou ao campo
das estruturas significantes (...) [e recorre] às análises
que se fazem em termos de genealogia das relações de força, de
desenvolvimentos estratégicos e de táticas (...). A
historicidade que nos domina é belicosa e não
lingüística".(FOUCAULT, 1979: 7)




Disciplinas e Travessias
Belicosa, nem por isso tal historicidade repudia certa estética. Ao
estourar em todas as direções, estes engenhos de guerra configuram certas
práticas, discursivas e não discursivas . Estas surgem no seio de outras
práticas do mesmo tipo que, mais do que causá-las, as atualizam, ao
produzir o vazio que elas vêm preencher. Mesmo se pensarmos que os dizeres
e os fazeres de uma época têm certa gramática - conjunto de regras pré-
conceituais que a história se empenha em determinar conceitualmente -, há
que pensar igualmente que tais regras não estão instaladas na plenitude de
qualquer razão soberana ou grande princípio. Aquilo que permite que certas
"formas de dizer" e "formas de fazer" apareçam em certo momento são "as
saliências e reentrâncias das práticas vizinhas"(VEYNE, 1982: 161), e não
alguma nobre (ou vil) direção pré-determinada.
"(...) em uma certa época, o conjunto das práticas engendra,
sobre tal ponto material, um rosto histórico singular (...);
mas, em outra época, será um rosto particular muito diferente
que se formará no mesmo ponto e, inversamente, sobre um novo
ponto, se formará um rosto vagamente semelhante ao precedente
(...): não há, através do tempo, evolução ou modificação de
um mesmo objeto que brotasse sempre no mesmo lugar.
Caleidoscópio, e não viveiro de plantas".(VEYNE, 1982: 172)


Estética de caleidoscópio: práticas que, como múltiplos pedaços de
vidro, se deslocam, dando lugar a um vazio que certo pedaço "outro" vem a
preencher, por uma confluência de articulações. Se identifico certo pedaço-
acontecimento-atualização, enquanto historiador devo intensificar sua
raridade, seu improvável, seu rosto de época, relacionando-o a séries de
deslocamentos de pedaços outros.
À primeira vista, isto parece nos lançar simplesmente na exigência de
recorrer a "campos disciplinares vizinhos": um acontecimento-pedaço-de-
vidro no campo da penalidade ou punição, por exemplo, demanda o recurso aos
campos econômico, militar, pedagógico, fabril, religioso, etc... Outro no
campo da constituição de conhecimentos - os psicológicos, por exemplo -
exige a referência às dimensões políticas, econômicas, culturais, etc.
Porém um caleidoscópio não é um jardim botânico de espécies disciplinares
(e disciplinadas): os pedaços de vidro não são obedientes e imóveis,
aprioristicamente ordenados em domínios. Há, pois, que aplicar aos
próprios domínios de saber uma estratégia de caleidoscopização: nem multi-
disciplinarizá-los nem inter-disciplinarizá-los, mas des-disciplinarizá-los
(ou transversalizá-los).
Estas reflexões dão lugar, mais uma vez, a diagramas inventados, por
meio dos quais tentamos pôr em contraste nossas ferramentas
historiográficas - des-disciplinadoras ou transversalizantes - com outras
que lhes são, por vezes, assemelhadas.







DIAGRAMA 1: Multidisciplinar, multicausal.























DIAGRAMA 2: Interdisciplinar, intercausal.

























DIAGRAMA 3: Desdisciplinar, transversalizadora.







Novos problemas

A dissertação de mestrado desenvolvida no Instituto de Medicina
Social, cujo percurso em busca de um modelo acabamos de examinar, marcou
para mim o início de certo caminho como pesquisadora no campo da
historiografia, no qual defini alguns procedimentos mínimos sob nítida
ótica foucaultiana. Isto significou uma rejeição, dir-se-ia quase visceral,
às histórias tranqüilizantes, lineares, supostamente realistas ou
objetivas, continuístas, factuais, estritamente causalistas, antropológico-
humanistas, expressivas, comportadamente multi ou interdisciplinares,
judiciosamente internalistas, religiosamente apoiadas em origens e/ou
telos, evolucionistas ou progressistas, globalizadoras, consciencialistas,
descuidadamente anacrônicas, alegadamente apolíticas, etc.etc. Decerto não
consegui escapar a todos esses riscos no primeiro trabalho, como jamais o
conseguirei, desde que efetivamente trabalhe... Mas me tornei muito
precavida quanto aos mesmos. Talvez precavida em demasia, a ponto de me
sentir atualmente bastante temerosa frente ao desafio da construção de uma
narrativa histórica.

Roland Barthes dizia, em 1951, que "a história é um sonho porque
conjuga, sem assombro e sem convicção, a morte e a vida."(apud FARGE,
1997:27). Em um texto bem mais recente, Arlette Farge nos desafia a
contrariá-lo:

"Como conjugá-las [a morte e a vida] com assombro e com
convicção, a fim de que a história não seja um sonho, mas, ao
contrário, um meio de estar no passado a fim de decidir quanto
ao presente e, quem sabe, quanto ao futuro?". (FARGE, 1997:
27)




Passando à investigação que desenvolvo atualmente, diria que
incorporei novas inquietudes a meu campo problemático. Quando, em certa
reunião de pesquisadores, apresentei pela primeira vez o projeto sobre a
"História do Institucionalismo no Brasil" - aos tateios e um tanto às
cegas, efetiva face de funcionamento daquilo que à superfície se mostra
organizado e luminoso, com suas "justificativas, objetivos e metodologias"-
, alguém me remeteu a questões até então pouco advertidas: à história do
tempo presente, às histórias de vida e, em suma, à História Oral -
desafios de uma narrativa histórica que, ao menos em parte, seria baseada
em fontes orais, depoimentos provocados ou testemunhos. Sendo assim,
percebi que na elaboração de tal narrativa teria que me haver não apenas
com as questões que já me colocara - a desnaturalização das realidades, o
construtivismo radical, o exercício da perspectiva micropolítica, a efetiva
transversalização dos níveis de análise -, como igualmente com algumas
perturbadoras relações entre a história e a memória.

A partir de então, meu problema de pesquisa se tornou mais refletido:
trata-se, hoje, de construir uma história da Análise Institucional no
Brasil, apoiada em uma estratégia genealógica, na qual virtuais
descontinuidades nos regimes de verdade, prática e subjetivação sejam
simultaneamente o conceito operatório e os eventuais resultados a
estabelecer; para tanto, o corpus em análise está constituído de discursos
e práticas, incluindo-se, entre os primeiros, as práticas da oralidade, ou
seja, os testemunhos daqueles que, qual o pesquisador, são os agentes de
uma história do tempo presente. Ressalte-se que tudo isso, no projeto
inicial, aparecia sob a tranqüila rubrica "metodologia", dividida nos três
clássicos ítens "pesquisa bibliográfica", "pesquisa documental" e "pesquisa
de campo"...

Estas novas inquietações - "heterotopias", "lugares outros" , no dizer
de Foucault (1992:7) - , embora ainda sob a forma de uma história-problema,
se têm feito minimamente palavra. Nesta linha, ganhou a investigação um
título diferente e provavelmente definitivo: "Rastreando os "cavalos do
diabo": movimentos sociais, história e memória na reconstituição da
trajétória do grupalismo-institucionalismo no Brasil". Julgo que algumas
pontuações sobre os termos e expressões nele utilizados possam balizar
minha história-problema e mesmo provocar novas contribuições, necessárias
e desejáveis, por parte dos companheiros aqui presentes.




Rastreando os "cavalos do diabo"

"Os cavalos do diabo" é o nome de um livro de Georges Lapassade, um
dos representantes da Análise Institucional Socioanalítica francesa,
publicado em Paris em 1974. Constitui uma espécie de "diário de campo" da
visita de seu autor ao Brasil, durante o segundo semestre de 1972, a
convite do Setor de Psicologia Social da Universidade Federal de Minas
Gerais.

O uso da expressão para compor o título de nossa investigação não
remete a qualquer intenção de basear a história do institucionalismo
brasileiro em "obras"- que supostamente expressariam sua significação, seu
não-dito individual, temporal ou social - ou em "autores" - presumidas
fontes de tais significações, por mais que eles próprios as desconheçam.
Tampouco pretendemos identificar uma "origem", uma "tradição" ou uma
"descendência" do institucionalismo no Brasil tomando como ponto de partida
a presença de um de seus "heróis" ou "ídolos". Mediante a expressão
"rastreando os cavalos do diabo" desejamos explorar algumas hipóteses
estratégicas.

1 - "Cavalos" deixam marcas, rastros, registros de passagem, pistas,
ou seja, uma massa de discursos - escritos ou orais, na forma de textos,
documentos, depoimentos, diários, memórias, testemunhos - que se articulam,
segundo formas que é preciso particularizar - tanto em seu momento de
emergência quanto nos diferentes tempos de sua permanência, reativação ou
transformação - com elementos não discursivos, de ordem técnica,
orgnizacional, econômica, social, política, etc. Supõe-se que esta seja a
forma de apreendê-los historicamente, isto é, do ponto de vista de sua
existência material, de sua instância, de sua ação - voltando a fazer
referência à expressão "história da ação", presente no folder deste
Seminário, que tanto me agradou.

2 - Dizer "do diabo" os cavalos sugere a irrupção de acontecimentos,
ou melhor, rupturas, emergências, inversões de força presumidamente
efetuadas pelo institucionalismo quanto a outras massas de rastros - em
nosso caso específico, os saberes sobre o sujeito aspirantes à
cientificidade e à universalidade, hegemônicos na formação e intervenção
psi nos últimos 30 ou 40 anos (período abrangido por nossa pesquisa).
Aponta-se assim para um primeiro critério, provisório, para a constitução
de um "referencial" discursivo a investigar, bastante diferente dos que
seriam definidos a partir de autores, obras, disciplinas, tradições ou
objetos tomados como naturais - aquelas continuidades irrefletidas que já
se apresentam como que prontas, à disposição do historiador. No caso da
construção de uma história do institucionalismo, o referencial a adotar, em
primeira instância, convidaria a incluir todos aqueles traços ou rastros,
por mais distintos que se apresentem (quanto a objetos, estilos, conceitos
ou opiniões), desde que definam condições de subjetivação. Ou seja, desde
que considerem o sujeito enquanto "cavalo" das condições (instituições) que
o instauram, quaisquer que sejam as "faces do diabo" invocadas em tal
procedimento.

3 - Porém o termo "cavalo" permite ainda uma terceira aproximação: não
apenas sugere galopes desenfreados (em ruptura com rebanhos disciplinados e
disciplinadores)[15] como pode apontar à própria constituição de
disciplinamentos. Pois não é certo que se chamam "cavalos do santo" aqueles
que passam por um "desenvolvimento", por um processo de iniciação nos e de
aprendizado dos rituais, que o oficializam no culto? Neste sentido, ao ter
por propósito elaborar uma história da Análise Institucional no Brasil, já
não nos teremos desprendido, ao menos em parte, das regras e funcionamentos
da Análise Institucional, a ponto de poder considerá-los como parte de uma
história que não seria mais a nossa? Se este é o caso, não somos mais parte
imersa no universo que pesquisamos, havendo este mergulhado nas
continuidades disciplinares, nos "fazer a cabeça", nos "desenvolvimentos"
ou "continuidades"' dos saberes psi.

"....de onde poderia ele [o historiador] falar, com efeito,
senão a partir dessa ruptura que lhe oferece como objeto a
história - e sua própria história?"(FOUCAULT, 1994b :698)




História, movimentos sociais, grupalismo-institucionalismo

Para dar início a nosso atual trabalho de historicização, algumas
outras preocupações preliminares se alinham: que discursos e práticas
pertencem efetivamente ao âmbito de nossa análise?; como estabelecer suas
articulações recíprocas?; que tipo de narrativa histórica devemos
estabelecer e que lugar, nela, reservar aos acontecimentos?

1 - A resposta à primeira indagação está esboçada na substituição do
termo simples "institucionalismo" pelo composto (e bem mais ambíguo)
"grupalismo-institucionalismo". Por que esta decisão? Enquanto com
"institucionalimo" ou "análise institucional" parecíamos obter como efeito
a visualização de um paradigma dotado de alguma coerência interna - campo
razoavelmente delimitado de autores (Lourau, Lapassade, Deleuze, Guattari e
suas descendências) e conceitos (instituição, analisador, intervenção,
transversalidade, implicação, heterogênese, multiplicidade, produção
desejante, produção de subjetividade, campo de imanência) -, com
"grupalismo-institucionalismo" perdemos tal especificidade, mesclando desde
o início uma imaginariamente "pura" análise institucional a um conjunto
bastante heterogêneo de outras abordagens.

Cabem aqui dois argumentos, fundados em pontos de partida distintos. O
primeiro se baseia em uma constatação quase empírica: jamais houve, no
Brasil, um institucionalismo ou Análise Institucional "puros", estando os
referenciais franceses - tampouco "puros" em seu contexto geo-político de
emergência - inevitavelmente mesclados a perspectivas psicanalíticas,
psicossociológicas, sanitaristas, comunitárias, preventivistas, operativas,
desenvolvimentistas, etc., situação para a qual contribuíram tanto os
impropriamente apelidados "psicanalistas argentinos"[16] como a construção
nacional do campo de saberes e intervenções psi nos últimos 30 ou 40 anos,
com todas as relações que aqui se possam imaginar com as políticas estatais
(do populismo-desenvolvimentismo à atualidade neo-liberal, passando pelo
período ditatorial e a nova república) e com os movimentos sociais
(populares, contra-culturais, identitários e/ou democratizantes). A segunda
resposta fornece à primeira um campo analítico de formulação: quando se faz
história, a seleção de unidades tomando por base campos disciplinares já
constituídos transforma conceitos e especificidades historicamente
engendrados em pontos de partida evidentemente anacrônicos, lançando, na
origem dos processos, os resultados dos mesmos. Conseqüentemente, se for
possível identificar sistemas de regras distintos com base nos quais
parcelar a multiplicidade heterogênea a princípio incluída, isto deverá ser
o resultado da análise histórica, e nunca seu ponto de partida.

2 - No que tange à segunda questão levantada - a articulação recíproca
de saberes e práticas - , trata-se de um delicado caminho, em que as
múltiplas séries de acontecimentos (discursivas e não discursivas) não
obedecem necessariamente a uma temporalidade globalizante, a qual só
poderia ter por medida um virtual sujeito da história a desenvolver sua
dialética previamente estabelecida. Trata-se, portanto, mediante o próprio
(e árduo) exercício da historicização, de estabelecer diferentes séries e
diferentes temporalidades, bem como os tipos particulares de vínculos - não
necessariamente causais ou expressivos - que se podem definir
horizontalmente (dentro das séries) e verticalmente (entre elas)

3 - Finalmente, voltemos nossa atenção para o tipo de narrativa
histórica a estabelecer e para o lugar a reservar aos acontecimentos.
Quanto a este problema, afirmamos que a rejeição de algumas unidades - o
sujeito constituinte, o autor, a obra, a tradição, a disciplina
constituída, o devir globalizante, a influência, etc -, tantas vezes
alegadas indispensáveis para a construção de uma "história viva" ou de uma
"descrição densa"[17], não precisa necessariamente redundar em uma espécie
de morte da narrativa histórica. Sob tal perspectiva, uma história do
institucionalismo no Brasil deve partir em busca de acontecimentos, não
enquanto "fatos que se sucedem ininterruptamente em uma linearidade
seqüencial onde o descontínuo é impensável", mas, exatamente, como "aquela
existência irregular que se atualiza no que se diz, no que se faz"
(Foucault, apud FARGE, 1997:22), procurando "não barrar o caminho às
intensidades da vida e suas criações"(idem: 25).

Há, pois, que considerar o acontecimento como, simultaneamente,
ruptural e rompido. Ruptural porque em lugar de conectar-se a puras e
solenes origens, aponta à entrada em cena de forças diversas e dispersas, à
exterioridade dos acidentes. Rompido porque uma narrativa histórica não
pode deixar de tentar tornar os acontecimentos inteligíveis, analisando-os
em seus menores detalhes, segundo suas relações com as batalhas que se
desenrolam em todas as ordens de discursos e práticas. Portanto, o lugar do
acontecimento na narrativa histórica é configurado por séries diversas e
entrecruzadas, freqüentemente divergentes mas não totalmente autônomas,
pois , entre elas, se devem estabelecer articulações específicas e
singulares.




Memória e história

A problemática da História Oral mereceria tratamento bem mais
detalhado do que aquele que lhe poderei oferecer nesta breve exposição.
Deixando de lado, a bem da concisão, as extensas discussões implicadas, por
exemplo, pela história da História Oral, limitar-me-ei a dois movimentos
identificados pelo historiador americano Michael Frisch, que, embora
pareçam diametralmente opostos, delimitam um campo problemático comum.

Através do primeiro movimento, "a memória é invocada para subverter as
afirmações da história ortodoxa"(FRISCH et al., 1996: 75) , mostrando-se a
História Oral crucial para "superar noções convencionais acerca do que vale
como história e, portanto, do que a história pode contar"(idem: 76).
Mediante o segundo, a subversão se dá em direção contrária: sendo nossas
imagens do passado, na sociedade contemporânea, conservadas e transmitidas
através de construções culturais administradas e midiatizadas, pode-se
igualmente afirmar que "a história é importante por sua capacidade de
subverter e moldar a memória coletiva".(idem:77)

Se a memória subverte a história e esta, por sua parte, subverte a
memória, como poderia ficar indiferente alguém que trabalha com a história
oral na reconstituição do grupalismo-institucionalismo no Brasil? Ainda
mais se nos lembrarmos das palavras do historiador francês Jean Chesneaux,
que nos convida a inverter a tradicional relação linear passado-presente,
destacando o peso político, para o presente (e, portanto, para o futuro) da
construção do passado. Em poucas palavras, segundo ele "nosso conhecimento
do passado é um elemento ativo do movimento da sociedade (...) uma zona
asperamente disputada".(CHESNEAUX, 1995: 24).

É imprescindível, portanto, continuar a analisar e debater os efeitos
das armas - os modelos historiográficos - com que nos dirigimos à conquista
do passado, a fim de que possamos construir, com linhas flexíveis de
pesquisa, uma história da ação voltada para a construção de um novo
presente quanto à Psicologia no Brasil.


Referências Bibliográficas

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São Paulo: UNESP, 1991
- BURKE, P.(org.) - A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo:
UNESP, 1992
- CHÂTELET,F. (org) - A história. Em Châtelet, F.(org.) - A filosofia das
ciências sociais, col.História da Filosofia, vol.8. Rio de Janeiro:
Zahar, 1974
- CHESNEAUX, J. - Devemos fazer tábula rasa do passado? Sobre a história e
os historiadores. São Paulo: Ática, 1995
- COIMBRA, C.M.B. - Guardiães da ordem: uma viagem pelas práticas psi do
Brasil do milagre. Rio de Janeiro: Oficina do Autor, 1996
- DOSSE,F. - A história em migalhas. São Paulo: Ensaio, 1992
- FARGE, A. - Frente à história. Em ESCOBAR,C.H.(org) - Michel Foucault
Dossier, Rio de Janeiro: Taurus, 1984
- FARGE, A. - L'instance de l'evénement. Em Franche,D.; Prokhoris,S.;
Roussel,Y. (eds.) - Au risque de Foucault. Paris: Éditions du Centre
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- FOUCAULT, M. - As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 1992
- FOUCAULT, M. - Genealogia e poder. Em Foucault, M. - Microfísica do
poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979
- FOUCAULT, M. - Inutile de se soulever? Em Foucault, M. - Dits et écrits,
vol. III. Paris: Gallimard, 1994
- FOUCAULT, M. - Structuralisme et Post-structuralisme. Em Foucault, M. -
Dits et écrits, vol. IV. Paris: Gallimard, 1994a
- FOUCAULT, M. - Réponse au Cercle d'Epistémologie. Em Foucault, M. - Dits
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- FOUCAULT, M. - A Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro: Forense
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- FRISCH, M.; THOMPSON, A.; HAMILTON, P. - Os debates sobre memória e
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1996.
- LE GOFF, J. ; NORA, P. - História: novos problemas, novas abordagens,
novos objetos. Rio de Janeiro: F. Alves, 1989 (3 vol).
- LE GOFF, J. - História e memória. Campinas: Ed. da Unicamp, 1990
- RODRIGUES,H.B.C. - As subjetividades em revolta: institucionalismo
francês e novas análises. Dissertação de mestrado. IMS/UERJ, 1994
- RODRIGUES,H.B.C.; DUARTE, M.G.S.; FERNANDES, P.J. - Georges Lapassade no
Brasil, 1972: um acrobata no circo da ditadura militar. Em Anais do I
Seminário sobre História da Psiquiatria: a loucura da (na) história.
Rio de Janeiro: ENSP/Fiocruz, 1999
- RODRIGUES,H.B.C. - Sobre as histórias das práticas grupais: explorações
quanto a um intrincado problema. Em Jacó-Vilela, A.M.;Mancebo, D.
(orgs.) - Psicologia Social: abordagens sócio-históricas e desafios
contemporâneos.Rio de Janeiro: Eduerj, 1999
- VAZ, P. - Um pensamento infame. Rio de Janeiro: Imago, 1992
- VEYNE,P. - Foucault revoluciona a história. Em Veyne, P. - Como se
escreve a história. Brasília: EUB, 1982
-----------------------
# Trabalho apresentado no I Seminário de Historiografia da Psicologia,
promovido pelo GEHPAI, em 21/09/99
* Professora e procientista do Departamento de Psicologia Social e
Institucional/Instituto de Psicologia da UERJ; doutoranda do Programa de
Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano /Instituto de Psicologia da
USP.
[1] A fim de localizar minimamente o leitor não especializado, é possível
afirmar - em uma perspectiva bem distante da que adotamos no próprio texto
- que por Socioanálise nos referimos às produções ligadas - conceitual e/ou
institucionalmente - aos nomes de René Lourau e Georges Lapassade. Por
Esquizoanálise, às associadas a Gilles Deleuze e Felix Guattari. Os termos
Socioanálise e Esquizoanálise, entretanto, são construções a posteriori que
de nenhuma forma se identificam às transformações históricas constitutivas
da Análise Institucional na França.
[2] Assim se constituíram os períodos e seus limites: (1) Do "Efeito
Stalingrado" à "ruína das plantações do escritor" (1944/45 a 1956); (2) De
"quando Bandung substituiu Billancourt" à "Grande Recusa" (1956 a 1968);
(3) Do "Maio feito Mao" ao "Gulag" (1968 a 1974); (4) Do "arrependimento"
ao "triunfo da Rosa" (1974-1981); (5) Os "anos de inverno" (1981 em
diante). Para um detalhamento, ver Rodrigues (1994).
[3] Tal forma de emergência se deu de maneira desejada e desejável, e não
por eventuais carências de recursos analíticos ou documentais.
[4] "Como se escreve a história?" é, por sinal, o título de um belo livro
do historiador Paul Veyne, originalmente publicado em 1971.
[5] Nesta caracterização, coincidimos com a crítica do sociólogo
durkheimiano Simiand aos três ídolos da história: o subjetivo, o político e
o cronológico. A este respeito, pode-se consultar Dosse (1992).
[6] Ilustramos o texto com o plano geral da obra organizada por Le Goff,
J. e Nora, P. - História: novos problemas, novas abordagens, novos
objetos.
[7] Sobre o tema do documento como monumento pode-se consultar Foucault,
M. - A Arqueologia do saber e Le Goff, J. - História e memória.
[8] Sem negar que tais diferenças possam ser significativas, remetemos a
Dosse (1992) e Burke (1991) para uma historicização do movimento dos
Anais.
[9] O termo perspectiva, conforme o estamos utilizando, diverge da
concepção que supõe olhares diversos sobre uma realidade idêntica a si
própria. A caracterização positiva do termo será construída ao longo do
texto.
[10] "Episteme" no sentido de conjunto de regras que comandam uma
formação discursiva.
[11] A partir deste momento, seguindo o procedimento adotado por A.
Farge, apoiamo-nos no texto Foucault revoluciona a história, de P. Veyne.
[12] Não desconhecemos a semelhança entre esta atitude e a
fenomenológica. Mas as práticas e os discursos sem sujeito de Foucault
constituem uma explicação dos objetos-correlatos-inexistentes bem distinta
da compreensão dos objetos-significações-existentes da fenomenologia. No
caso de Foucault, a "experiência" ou "presença" não é uma evidência, mas um
problema que requer explicação.
[13] O termo loucura pode ser substituído nesta frase por delinqüência,
corpo, casamento, família, criança, etc., mantendo-se a argumentação.
[14] Para uma abordagem da relação entre o pensamento de Foucault e a
questão da diferença, em uma perspectiva mais filosófica que
historiográfica, embora não sem relação com a que estamos expondo,
consultar Vaz (1992).
[15] Para uma primeira aproximação substantiva - e não , como aqui, apenas
sugestiva de estratégias metodológicas - à visita de Lapassade ao Brasil,
pode-se consultar Rodrigues et al. (1999).
[16] Para críticas a esta denominação geográfico-totalizante, encontrada em
muitos dos trabalhos que partem do problema da reconstituição histórica da
Psicanálise no Brasil, ver Coimbra (1996) e Rodrigues (1999).
[17] Expressão utilizada pelo antropólogo C.Geertz para caracterizar o tipo
de narrativa desejável em sua área, retomada por alguns historiadores, como
Burke (1992).
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