Construindo o conceito de Justiça no Território Urbano

June 8, 2017 | Autor: R. Alves | Categoria: Urban Planning, Direito, Cidades, Direito Urbanístico
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Construindo o conceito de Justiça no Território Urbano Rafael de Oliveira Alves Sumário: Apresentação; Princípios de um outro direito – a luta pela reforma urbana; O lugar do espaço no território – a contribuição da geografia; Direito à cidade: princípios e território – uma nova unidade conceitual; A justiça do direito à cidade; Conclusões: Como fazer justiça na cidade; Referências bibliográficas

Apresentação Este trabalho pretende apresentar os princípios enunciados na “CARTA Mundial pelo Direito à cidade” – documento construído no Fórum Social Mundial de 2001 pelos movimentos de luta pela reforma urbana – para em seguida redefinir os elementos constitutivos do direito à cidade em um novo arranjo teórico que importe categorias interdisciplinares e explicite a localização do justo e suas possibilidades de realização. Tal como expresso na CARTA, o direito à cidade constitui-se pela efetividade de três princípios, a saber, a cidadania plena, a gestão democrática e a função social da propriedade e da cidade – todos orientados pelas diretrizes da sustentabilidade e da justiça social. Resumidamente, pode-se dizer que a cidadania plena é a realização do conjunto de direitos fundamentais – interdependentes e indissociáveis. A gestão democrática são as garantias de controle e de participação sobre os interesses públicos. E a função social diz respeito à prevalência dos interesses sociais comuns sobre as pretensões particulares. Em trabalho anterior (ALVES, 2006), estes princípios foram trabalhados de forma conexa a categoria território, o que nos ajudou a apontar tanto a base substantiva (espaço) quanto relacional (ação) do direito à cidade. Nesse momento, então, pretende-se esboçar os contornos de uma relação intrínseca entre direito à cidade e realização da justiça social, ou, mais especificamente, como o elemento do justo se insere no conceito de direito à cidade. Como importantes contribuições, lançar-se-á mão das lições de Hannah Arendt (1978; 1989) sobre espaço público, cidadania e igualdade, e com Amartya Sen (2000) conjugaremos a preocupação em se ampliar os referenciais conformadores da justiça social e do direito à cidade. Princípios de um outro direito – a luta pela reforma urbana Para se compreender a conformação do direito à cidade faz-se necessário primeiramente voltar os olhos para a atuação do Movimento Nacional de Reforma Urbana, um conjunto de atores sociais (movimentos comunitários, sindicatos, Ongs, centros de pesquisa, etc) que buscou reconstruir a questão urbana em novas bases argumentativas, reivindicando uma nova lógica de atuação no

espaço urbano e uma ampliação das exigências de infra-estrutura e serviços para se combater a exclusão urbana. Sobre essas bases, o Movimento redefiniu a noção de direito para apresentar suas demandas pela reforma urbana não mais como pedido de favores próprio da tradição clientelista. Dessa forma, assume-se uma nova postura ativa no espaço público e frente ao Estado: não mais solicita favores, mas sim, reivindica direitos. Essa nova concepção de direitos, associada muito mais ao exercício da cidadania do que a enunciação de diplomas legais estatais, serviu de fundamento para criar em todo o Brasil uma ampla rede de comunicabilidade, em especial na questão habitacional, que fornecesse subsídios de ação e de argumentação às bases locais dos movimentos e, simultaneamente, fortalecesse o Fórum Nacional de Reforma Urbana como instância legítima de articulação e pressão política na esfera federal. Assim, o Movimento de Reforma Urbana atuaria, basicamente, em duas dimensões: a institucional nacional e a movimentalista local. Pela primeira, congregaram-se forças políticas para a construção de políticas nacionais e de instrumentos regulatórios. Destacam-se, aqui, a emenda popular pela Reforma Urbana apresentada à Assembléia Constituinte que foi transformada nos artigos 182 e 183 da Constituição de 1988 e a regulamentação desses artigos, que só ocorreu com a aprovação do Estatuto da Cidade em 2001. Numa segunda frente de atuação, movimentalista local, o Movimento construiu uma rede de organizações com atuação local para a reivindicação de intervenções pela reforma urbana. Ressalta nessa dimensão a construção de valores tais como participação, democracia de base e direta, autonomia e independência dos movimentos, redes de solidariedade, etc, que vão constituir códigos ético-políticos (DOIMO, 1995) característicos dos novos movimentos sociais. A partir desses novos códigos ético-políticos o movimento pela reforma urbana edificará o direito à cidade, um novo padrão normativo (projetivo) para a cidade. Como produto de um longo percurso desde a década de 60, diversos movimentos de reforma urbana, reunidos no Fórum Social Mundial de 2001, formularam um documento que enunciou os fundamentos e as diretrizes para a efetividade dessa construção histórica dos movimentos sociais denominada de direito à cidade. Assim, a CARTA Mundial pelo Direito à Cidade enuncia o direito à cidade conformado pela realização indissociável dos princípios do Exercício Pleno da Cidadania, da Gestão Democrática da Cidade e da Função Social da Cidade e da Propriedade – todos eles guiados pelos eixos do “uso socialmente justo e ambientalmente sustentável do espaço urbano” (CARTA, 2001). Para o presente trabalho, deseja-se destacar o direito à cidade não só como um valor ou um código ético-político difuso na sociedade, mas primordialmente como um fenômeno jurídico, ou seja, uma estabilização da realidade histórico-social produzida pela complexidade dos atores a partir e sobre as contingências históricas e materiais dadas. Em especial, o direito à cidade é,

aqui, compreendido como um direito construído pelos movimentos sociais unificados pela plataforma de reforma urbana, entendida esta, não mais como intervenções urbanísticas na cidade, mas sim, percebida como uma redefinição dos lugares sociais dos sujeitos, ou melhor dito, pela redefinição da cidadania como condição para a construção e materialização dos direitos fundamentais, para a validade e eficácia normativa material dos direitos. Enfim, pretende-se apresentar o direito à cidade como uma redefinição do conceito de cidadania como um “direito a ter direitos”. Desse modo, especificamente porque dispensamos a metodologia estreita à legalidade, podemos, ora, associar os complexos processos sociais aos processos de inserção de novos códigos normativos no cânone de garantias institucionais e, desse modo, não reduzir a dinâmica do direito à cidade à proclamação de norma positiva estatal. Este alerta torna-se necessário para não se restringir o direito à cidade tão somente à manifestação do Estatuto da Cidade. Ou seja, o Estatuto da Cidade (manifestação legal positiva de demandas sociais) não deve ser apresentado como a fonte máxima ou exclusiva do direito à cidade (trama de processos históricos materializados na cidade). Quem dá causa ao Estatuto da Cidade é o direito à cidade construído pelos movimentos contrahegemônicos à ordenação capitalista da cidade e não o inverso, como pensam os positivista – para os quais é a lei que dá causa à realidade. O direito à cidade é, como pretendido pelo Movimento de Reforma Urbana, a realização de um padrão de estabilidade das relações sobre o espaço da cidade que seja construído publicamente pela pluralidade de sujeitos, considerando todos eles portadores de projetos de mundo orientados em comum pela justiça social e pela sustentabilidade ambiental. O lugar do espaço no território – a contribuição da geografia Para melhor compreensão do direito à cidade acreditamos que, pela complexidade de seu processo gerador, faz-se necessário, igualmente, uma análise complexa, ou seja, que comporte a apreensão conjunta de categorias interdisciplinares para além da ciência jurídica. Portanto, considerando que se trata de uma dimensão materializada das relações históricas no espaço da cidade, acreditamos que a compreensão dos conceitos de espaço, território e lugar – próprios da geografia – são de suma importância para a afirmação teórica mais adequada a natureza do direito à cidade. Assim, o espaço não será aqui entendido como a dimensão físicogeográfica do solo urbano ou questão fundiária em si, mas sim como um conceito substantivo relacionado a concretude das relações sociais. Pode-se dizer que espaço é a materialidade disponível pela história a um determinado grupo de sujeitos. Por isso, dizer que o espaço que interessa ao homem é o “espaço tangível”, isto é, aquele passível de interação porque receptáculo de sentido. Em resumo, o espaço tangível é a dimensão objetiva/substantiva das relações sociais.

Em paralelo, há uma dimensão geográfica relacional denominada território. Essa categoria é compreendida como um “espaço definido e delimitado por e a partir de relações de poder". Ou seja, um “conjunto de relações de poder espacialmente delimitadas operando sobre um substrato referencial” (SOUZA, 2002). Daí o nosso entendimento de que o território é a dimensão mais propriamente “política”, construída a partir das relações de poder sobre o espaço tangível, isto é, sobre a materialidade histórica. Dessa forma, quando se enuncia o termo espaço quer-se referir à materialidade histórica ou às suas condições substantivas de possibilidade; ao passo em que quando se destaca o conceito território intenta se referir à complexa trama de relações políticas próprias e constitutivas dos sujeitos, ou seja, as linhas de forças que estruturam a ação entre os sujeitos a partir e sobre suas condições históricas materiais. Um terceiro subsídio geográfico é o lugar. Categoria esta que se aproxima da linha antropológica ao indicar que os elementos e os valores de identificação do sujeito para com o espaço são constitutivos do próprio sujeito. Em outras palavras, lugar "é o espaço vivido, com significado e experiências intersubjetivas" (SOUZA, 2002). Diferencia-se, então, do conceito de território que é, como dito, uma trama de relações construída sobre o substrato material (espaço) a partir de e por relações de poder; ao passo em que o lugar constitui-se como algo construído pela identificação intersubjetiva com o espaço e o território sobre os quais se vive a partir de elementos e valores culturais de pertencimento. Mais claramente, Brito ensina que o território é "uma parte do espaço apropriado e usado sob a liderança de um agente hegemônico, mediante relações de poder" (BRITO, 2002:). Temos aí, então, os três elementos necessários a nossa formulação teórica: espaço tangível, relações de poder (ou políticas) e agente ou processo hegemônico. É, portanto, o agente ou processo hegemônico que lança os principais vetores de força (desejo transformado em projeto) que organizam o território – as relações políticas e as instituições políticas. Ou seja, o agente hegemônico constrói, a partir de seu substrato, vetores de força que são projetados sobre o espaço tangível, (re)criando-o de modo a gerar um território (emaranhado de relações políticas) que lhe dê sustentabilidade enquanto agente com pretensões de permanência histórica. Importante, ressaltar que não há uma pré-existência ontológica, secular ou divina, do poder, mas, ao contrário, uma permanente construção e reconstrução das relações políticas conformadas a partir do espaço tangível, isto é, a partir da materialidade histórica. E porque não estático, o território também pode ser redefinido pelos outros sujeitos não-hegemônicos que se encontram sobre o mesmo espaço, desde que se apresentem como sujeitos ativos portadores de matrizes territoriais próprias. O território, enfim, nunca é algo perfeito, acabado. Mas, sempre algo que está sendo na constante tensão entre o processo hegemônico, que reitera

constantemente sua função ordenadora do espaço e do território, e os agentes contra-hegemônicos que contestam a legitimidade e a exclusividade da matriz territorial hegemônica. Direito à cidade: princípios e território – uma nova unidade conceitual Apresentados, então, os elementos modulares do direito à cidade (princípios da CARTA Mundial e as categorias geográficas), faz-se imperioso apresentá-los conjuntamente em uma nova unidade conceitual. Contudo, primeiramente será apresentada uma breve compreensão acerca dos termos direito e cidade, de modo a reforçar nossa moldura conceitual. Para os fins deste trabalho compreende-se cidade como sendo a resultante objetiva/material de uma trama de relações de poder construídas a partir e sobre o espaço tangível dado pela história. Especificamente, destaca-se a cidade moderna como o produto do processo de urbanização que é, por sua vez, caracterizado pela alta e complexa aglomeração dos fatores de produção – incluindo-se, aí, a mão de obra – necessários à dinâmica do modo de produção capitalista próprio da modernidade. Em suma, a cidade a que nos referimos se fez a partir da matriz territorial própria da modernidade: modo de produção capitalista, organização estatal, alta densidade e exploração das pessoas e dos bens em um reduzido espaço geográfico, etc. No entanto, a cidade é multiforme. O que há, de fato, é uma pluralidade de atores e processos que se relacionam em diversos tempos e escalas, constituindo, nessa complexidade, uma matriz territorial estável, isto é, uma arquitetura de forças sobre o espaço. Seguindo a análise do direito à cidade, tem-se que compreender o direito, preliminarmente, como um fenômeno histórico multidimensional que estabiliza relações e materializa projetos comumente construídos. Afasta-se, portanto, qualquer referência positivista de se reduzir o direito à cidade à forma estreita de uma regra positivada pelo Estado, ainda que esta seja o Estatuto da Cidade. Ora, como dito, os processos hegemônicos lançam suas funções determinantes, seus vetores organizativos, sobre o espaço com a intenção de refazê-lo a sua imagem e semelhança e, assim, proporcionar-lhes o substrato e a estabilidade necessários para sua ação. Portanto, o direito vem a ser esse vetor próprio dos processos para organizar e estabilizar o espaço e o território. Nesse íter, o direito realiza duas funções: 1) uma função civilizatória por organizar o mundo – território e espaço – segundo a imagem dos agentes hegemônicos, tornando-o a estes um espaço familiar e conhecido, isto é, constituindo-lhes lugares de pertencimento. Portanto, o direito enquanto fenômeno jurídico civiliza porque, ao ordenar a materialidade história segundo

uma lógica própria, dá identidade e sentido aos sujeitos, em suma, constrói um mundo comum. E 2) o direito perfaz sua função normativa ao estabilizar o espaço e o território segundo o projeto hegemônico, isto é, tornando possível e previsível a ação dos agentes sobre o mundo comum. Como já apontado por Hannah Arendt (1989), a condição humana é altamente imprevisível, tanto em sua manifestação quanto em suas conseqüências. Instaurar a “promessa”, a tentativa de manutenção da vontade para além do momento efêmero da ação, e o “perdão”, desresponsabilização pelas conseqüências não premeditadas, seriam maneiras de se combater essa imprevisibilidade da ação humana. Todavia, o direito moderno preferiu primordialmente outra via: a homogeneidade e docilidade dos corpos e a promessa dos contratos. E quando necessário reordenar o sujeito replicante, invés do perdão, a culpa individual e a sanção punitiva exemplar. Nesse estágio de idéias, reforça-se essa dupla natureza do direito – civilizar e prescrever – pelo argumento interdisciplinar de Boaventura Santos (2000) que considera que “o direito, tal qual os mapas, é uma distorção regulada da realidade”, ou seja, o mapa, tal qual o direito, é um instrumento de dupla função: 1) representação e 2) orientação. A função de representação consubstancia-se pela construção do mundo, pela construção de uma civilização (a representação do que nós somos). E a função de orientação tem o condão de guiar as ações sobre uma materialidade que, porque alienada, é desconhecida pelo sujeito (o sentido que nós buscamos). Como outras possibilidades, o direito pode ser apreendido, ainda, como um código lingüístico (que permite a comunicação no mundo), um código normativo (que apresenta um projeto de mundo) ou um código ético-político (que estrutura a ação e o discurso público). Mais à frente veremos que o acesso, a utilização e a transformação desses códigos-fonte caracterizam a cidadania crítica – aquela pela qual o sujeito se emancipa e redefine a função social da cidade. Retomando os princípios matriciais do direito à cidade, temos que cidadania plena pode ser hoje compreendida, segundo os movimentos de reforma urbana, como a realização do conjunto de direitos humanos interdependentes e indissociáveis que conformam o substrato de existência do homem. Portanto, podemos associar a cidadania, enquanto esta dimensão constitutiva dos sujeitos (realização objetiva de direitos), à categoria de espaço tangível (substrato de existência) – associação esta que se aproxima do termo “mundo comum”, como presente no pensamento arendtiano. A efetividade dos direitos fundamentais ou humanos, reiteramos, não quer dizer o mesmo que eficácia da hipótese normativa; mas, antes, um processo de territorialização, isto é, um processo constitutivo do sujeito a partir e sobre os elementos do espaço tangível e através da agência possível sobre o território. Em outros termos, esse processo visa construir o pertencimento do sujeito a um território, garantindo-lhe um substrato para sua existência no mundo comum e, em assim o fazendo, permite que o indivíduo se apresente como cidadão, i.e.,

sujeito com o poder de ação (práxis) e de interlocução (lexis) nesse espaço comum (pólis). Em um outro contexto, Arendt (1976) alertava para o fato de que a perda do território e, portanto, da cidadania nacional (processos de desterritorialização) significaria a perda de todos os direitos, inclusive os direitos humanos pretensamente formulados acima da realidade estatal. Por isso, Arendt considera que o primeiro direito humano é o “direito a ter direitos”, isto é, pertencer a uma comunidade política (pólis) em que sua fala (lexis) seja significante e sua ação (práxis) seja eficaz. É em paralelo a esse sentido que creditamos à efetividade dos direitos fundamentais a territorialização do sujeito – um processo tal que o faz pertencer ativamente a uma comunidade, o que implica: 1) em uma cidadania espacial, pela qual o sujeito constitui-se a partir do substrato de materialização de direitos comum a todos os membros da comunidade ou cidade; 2) uma cidadania territorial pela qual o sujeito aparece sobre o território com o poder de falar e de agir de forma relevante para os outros; e 3) uma cidadania crítica ou emancipadora pela qual o sujeito reconhece ou refuta a matriz territorial vigente e, assim, torna-se gerador de seu próprio processo de constituição como cidadão. O segundo princípio enunciado pela CARTA Mundial pelo Direito à cidade, gestão democrática, caracteriza-se pela participação popular e pelo controle social sobre o interesse público. Importante notar que o princípio da gestão democrática deve ser compreendido primordialmente como uma instância de deliberação pública, um espaço próprio para o exercício e manifestação da cidadania. Nesse sentido, busca-se não reproduzir a subversão, como alertada por Arendt (1989), entre os campos da economia e da política ocorrida na era moderna, em que o espaço político ficou reduzido à mera administração nacional dos recursos pelo Estado. Por isso, subsidiado pelos códigos ético-políticos dos novos movimentos sociais e para não reduzir a gestão da cidade a um espaço restrito e dominado por técnicos “preocupados” com a melhoria da eficiência na alocação de recursos sociais, o princípio da gestão democrática prima pela constituição de um espaço público comum no qual se busque a realização plena da condição de cidadão, ou seja, a realização da cidadania ativa. Para Hannah Arendt (1989), a realização da verdadeira condição humana é a própria realização da cidadania ativa no espaço público, no mundo comum. Portanto, como pretendemos propor, as reivindicações pelo direito à cidade não se dirigem primeiramente para a garantia de acesso a bens e serviços urbanos – os quais se constituem meios – mas, antes, tem por objetivo a realização da cidadania, que é a condição de sujeito ativo (portador de um projeto) no território da cidade. Como terceiro princípio indicado na CARTA, a função social orienta o uso da cidade e da propriedade de forma socialmente justa e ambientalmente sustentável. Ou seja, a função social pretende ser um novo vetor organizativo de

todo o espaço e território – contraposto, pois, a exclusividade da função econômica capitalista da cidade. Como já apontado, a cidade consiste em uma obra coletiva multidimensional, multi-temporal, o que permite, então, que outros atores, que não o hegemônico, também formulem projetos de construção do mundo – de organização do espaço e do território. Nesse sentido, os movimentos de luta pela reforma urbana se entendem como sujeitos, porque pertencentes ao mesmo território que os agentes hegemônicos, autorizados a implicar uma nova função reordenadora do território e do espaço, de modo a dar sustentabilidade à sua existência como cidadãos. Ou seja, mesmo não sendo hegemônicos, os movimentos de reforma urbana indicam e tentam implementar uma função determinante sobre o território que, até então, está orientado e con-formado pelos agentes geradores do modo de produção capitalista da cidade. Esse processo de inserir novos códigos éticopolíticos na estrutura territorial da cidade, transformando-a, passa pela democratização tanto dos aparatos estatais para acolher institucionalmente as demandas sociais, quanto das instituições sociais para se legitimar e reproduzir os novos padrões de estruturação do espaço físico e do território político da cidade. *Assim sendo, reafirma-se, nosso objetivo não é a reivindicação de um direito contra um Estado de Bem-estar Social (o que muitas vezes é confundido), isto porque o direito à cidade não reivindica primordial e essencialmente provisão pública de bens ou a prestação positiva de direitos sociais de saúde, educação, habitação, trabalho, etc. O direito à cidade, como aqui delineado, é a afirmação de uma cidadania (ação política e objetivação de direitos) contra a exclusividade dos processos hegemônicos (políticos, econômicos e culturais). Em uma palavra, direito à cidade é a cidadania sobre o território urbano. A justiça do direito à cidade Esboçado o arranjo teórico a partir dos subsídios do movimento pela reforma urbana e dos conceitos geográficos, passamos nossa atenção a localizar uma possível intrinsecalidade da justiça nesta concepção de direito à cidade. Visto que o direito à cidade corresponde à realização da condição de cidadão no espaço e no território da cidade orientado pelo “uso socialmente justo e ambientalmente sustentável do espaço urbano”, agora nosso propósito, especificamente, é indagar como esse elemento “socialmente justo” se insere na conceituação do direito à cidade conforme delineado na seção anterior. Uma primeira observação vai no sentido de identificar a expressão “uso socialmente justo e ambientalmente sustentável do espaço urbano” como uma diretriz-mor para a realização dos princípios conformadores do direito à cidade. Ou seja, a materialização da cidadania plena, da gestão democrática e da função social devem, de acordo com a CARTA e pela categoria território, estar

orientados, isto é, ter como objetivo final a justiça social e a sustentabilidade ambiental. Como se percebe, tanto “justiça social” quanto “sustentabilidade ambiental” comportam sentidos diversos, dependendo do locutor e do auditório do discurso. Acreditamos, entretanto, que consistem em objetivos finais cuja significação está aberta à deliberação pública pelos sujeitos ativos. Assim, nossa atenção, aqui, não será discutir o conteúdo substantivo desses termos, mas antes, passamos a localização teórica desse elemento justiça social no interior do direito à cidade. Mais claramente, nosso propósito é tentar delinear o elemento do justo no interior do conceito de direito à cidade e, assim, apontar sua função dinâmica. Para tanto, chamamos à discussão a lição de Roberto Lira Filho (1995) que nos demonstra: 1) o direito é um instrumento para a realização do homem, e 2) a justiça vem a ser um construto histórico atualizador dessa realização humana. Portanto, afasta-se, de plano, qualquer conceituação de justiça, tais como a divina ou a racional, que não tenha suas razões de ser dentro do processo histórico dialético. Para Lira Filho a razão de ser do homem é sua constante emancipação. “O que é ‘essencial’ no homem é a sua capacidade de libertação, que se realiza quando ele, conscientizado, descobre quais são as forças da natureza e da sociedade que o ‘determinariam’ se ele se deixasse levar por elas” (1995:81). Nesse momento da dialética histórica o homem se utiliza do direito como um instrumento para a realização de seu fim – emancipação. Contudo, esse fim sempre está em reformulação, o que nos indica que a emancipação humana é atualizada constantemente no processo histórico. Todavia, Lira Filho acusa uma problemática relação nessa atualização: “Direito e Justiça caminham enlaçados; lei e Direito é que podem divorciam com freqüência” (1995:85). Esse alerta aponta para a grande inversão que se produziu pelo pensamento jurídico: em um primeiro momento 1) considerou que as normas fossem o próprio Direito, o que levou, depois, 2) a definir o Direito unicamente a partir das normas, e, por fim, 3) limitou as normas enunciadoras do Direito a tão somente àquelas do Estado e da classe dominante. Ou seja, o Direito, esse instrumento para a realização da emancipação humana, atualizado no processo histórico dialético pela Justiça, passou a ser compreendido restritivamente como normas estatais, o que levou, conseqüentemente, a restringir as possibilidades legítimas de emancipação àquelas impostas pelo Estado e pela classe dominante – leia-se, por fim, emancipação como conformidade à ordem imposta! Portanto, orientados que estamos na definição do direito à cidade como uma matriz geradora de um novo espaço e território urbanos socialmente justos e ambientalmente sustentáveis, devemos rechaçar, igualmente, os opiniões que compreendem o direito à cidade reduzido ao Estatuto da Cidade ou qualquer outro diploma legal do Estado.

Ainda, nessa linha argumentativa, a justiça que orienta a realização do direito à cidade não pode, igualmente, ser aqui compreendida como uma formulação a priori racional ou transcendental de bem comum. Mas, conforme ensina Lira Filho (1995), justiça é a conformação histórica da atualização do direito, enquanto fenômeno histórico multidimensional. Portanto, o justo constitui um elemento atualizador do território urbano, ou mais propriamente dito, um referencial ético-político que atualiza o direito rumo a realização da emancipação humana – rumo a condição de cidadania crítica redefinidora da matriz territorial da cidade. Se, seguindo o raciocínio aqui desenvolvido, o direito é um fenômeno civilizatório e normativo – um vetor organizativo do espaço e do território – que é colocado pelos processos hegemônicos para a ação estável e previsível dos sujeitos, então podemos avançar para concluir que o justo configura-se como um código ético-político produzido a partir dos elementos presentes no espaço e sobre os vetores de força organizativos do território pelos sujeitos não contentes com esta estabilidade vigente. O justo, assim compreendido, é colocado pelos sujeitos subalternos de forma difusa como uma função que se pretende determinante – estruturante e figurativa – do mundo (espaço e território urbanos). Pode-se observar que, o que se tenta pela luta do movimento da reforma urbana, é atualizar o espaço e o território da cidade por meio de uma nova função social da cidade que considere primeiramente a condição de sujeito como cidadão que, em assim se realizando, constrói ele próprio seu espaço e território. Esta se constitui como uma concepção contraposta aos pleitos assistencialistas de provisão pública de bens e serviços previamente determinados pelas elites políticas e econômicas dentro do acordo de se conceder o mínimo possível para que as bases de sustentabilidade espacial e territorial dos agentes hegemônicos não sejam comprometidas pelo não reconhecimento crescente entre os sujeitos subalternos e o espaço da cidade. O esforço de luta pela reforma urbana, portanto, tenta reinstaurar a função determinante da cidade o que, já podemos enunciar, significa um esforço para se redefinir um novo elemento do justo atualizador da organização da cidade. Caracteriza-se, então, como um esforço contra-hegemônico (Boaventura Santos; Gramsci) para a atualizar o espaço e território de modo a garantir o substrato sobre o qual esses sujeitos subalternos possam exercer sua condição de cidadão – ou nos termos arendtianos, possam realizar a verdadeira condição humana de cidadania ativa. Portanto, quando enunciado que a função social deve orientar o uso “socialmente justo e ambientalmente sustentável”, procura-se atualizar o direito enquanto instrumento de ordenação urbana vigente e organizador da vida social. Se até aqui a função ordenadora do espaço e do território da cidade foi a livre iniciativa capitalista de exploração dos meios (bens e pessoas), o Movimento de Reforma Urbana propõe e reivindica a redefinição das funções estruturantes da cidade moderna no sentido de se priorizar a igual condição de cidadania ativa a todos os sujeitos presentes no espaço e no território da cidade.

Porém, como se deduz, essa atualização do direito à cidade não parte de um sujeito único ou transcendente, ao contrário, a justiça, alerta Lira Filho, é construída a partir dos elementos presentes no substrato histórico. Portanto, o próprio Movimento de Reforma Urbana não se apresenta como o sujeito proclamador dos substantivos da justiça social, mas busca pela reunião de uma pluralidade de organizações, com histórias e plataformas próprias, construir um espaço público em que a ação política se oriente para a transformação da cidade em um espaço de realização da condição humana. Nesse ponto, ancorado em Lira Filho para quem a justiça é um constructo histórico, avançamos à afirmação de Arendt de que “nós não nascemos iguais; nós nos tornamos iguais como membros de uma coletividade em virtude de uma decisão conjunta que garante a todos direitos iguais. A igualdade não é um dado – ela não é physis, nem resulta de um absoluto transcendente externo à comunidade política. Ela é um construído, elaborado convencionalmente pela ação conjunta dos homens através da organização da comunidade política” (1976:243). Deste modo, concluímos, então, que a igualdade, aqui tomada preliminarmente como a guia de realização da justiça, não é um dado, mas um construto revisto, revalidado e reformado cotidianamente pelas forças ativas sobre o espaço e o território urbanos. O que importa dizer que a justiça social, em suma, é esse padrão histórico construído pelos sujeitos subalternos ativos no território da cidade que atualiza o direito à cidade – esse instrumento, esse código normativo que reestrutura o espaço e o território da cidade a despeito de não se configurar como a função determinante hegemônica da matriz territorial. Finalizamos, portanto, cônscios de que a justiça se localiza, em contrário à estabilidade vigente, como um movimento contra-hegemônico rumo a emancipação, ou nas palavras de Boaventura Santos (1996), como uma “permanente reavaliação, revalidação e rompimento com as estruturas sociais, políticas, culturais e econômicas opressoras, com o propósito de aprofundamento da organização e do associativismo para a ampliação das lutas democráticas”. Conclusões: Como fazer justiça na cidade Nesta última seção, pela impossibilidade de uma conceituação prévia do substantivo justiça que sirva de norte à atualização, pretendemos voltar a atenção para possíveis caminhos de conjugação do “como” atualizar o direito à cidade (espaço e território urbanos), ou seja, “como” fazer justiça (atualizar a cidadania e o território) na cidade. Para tanto, apoiamo-nos nas proposições de Amartya Sen (2000). Os trabalhos de Sen estão, primordialmente, preocupados em reconceituar o desenvolvimento humano como um processo articulado de expansão das liberdades substantivas. Nesse sentido, ele é um veemente crítico daqueles que associam desenvolvimento humano à abundância de riqueza econômica e, especificamente, se utilizam do índice do Produto Interno Bruto per capita para enunciar desenvolvimento ou subdesenvolvimento de um país ou de uma pessoa.

Em contrário, Sen aponta que o subdesenvolvimento é um estado de privação humana que acarreta o comprometimento do exercício pleno das liberdades. Desse modo, não só a pobreza econômica, mas também a carência de serviços públicos e de assistência social, a negação de liberdades civis e políticas, dentre outras, constituem-se privações humanas e, portanto, obstáculos ao desenvolvimento humano. E para superar tais privações faz-se necessário, e cotidianamente, proceder a escolhas políticas orientadas à expansão das liberdades e das capacidades. Contudo, para se evitar a tomada de decisões que estejam fundamentadas exclusivamente pelo critério de riqueza/pobreza econômica (PIB per capita), Amartya Sen considera que a escolha socialmente justa, ou seja, aquela pela qual se atingirá o desenvolvimento humano como expansão das liberdades substantivas, deve se apoiar em um maior número possível de variáveis. Pondera, assim, que “a verdadeira ‘essência’ de uma teoria de justiça pode, em grande medida, ser compreendida a partir de sua base informacional: que informações são – ou não são – consideradas diretamente relevantes” (SEN, 2000:76). Assim, para demonstrar uma possível expansão da base informacional, Sen indica cinco dimensões relevantes para se considerar quando de uma tomada de decisão que se pretenda justa: as liberdades políticas; as facilidades econômicas; as oportunidades sociais; as garantias de transparência; e a segurança protetora. Resumidamente, as Liberdades Políticas são os canais de representação e de expressão política, especialmente aqueles que se façam possíveis na microescala; as Facilidades econômicas dizem respeito ao aumento da dinâmica e das oportunidades de mercado que favoreçam o mercado interno, os programas de renda mínima, o acesso ao micro-crédito, ao banco popular, etc; as Oportunidades sociais são o conjunto indissociável de moradia, alimentação, saúde, educação, mobilidade, reconhecimento da diferença, prática do multiculturalismo, etc; as Garantias de transparência se fundam na confiança depositada nas instituições sociais, no combate à corrupção, nas medidas de controle social, etc; por fim, a Seguridade protetora consiste em garantias institucionais necessárias ao exercício efetivo das liberdades substantivas: segurança pública, defesa civil, seguridade social, acesso à justiça, atendimento jurídico, etc. Estas cinco dimensões de liberdades substantivas devem ser consideradas como interdependentes e indissociáveis, haja vista que a deficiência de um dos elementos prejudica a plenitude de todas as outras. O que, para a nossa discussão, importa dizer que a fraturas em uma dessas liberdades acarretará a perda de espaço (substrato comum de existência) e de território (possibilidades de ação) que perfazem o sujeito em sua condição de cidadão. É importante destacar que tais proposições contribuíram para a construção do Índice de Desenvolvimento Humano pelas Nações Unidas. No IDH, como se sabe, são considerados os níveis de educação, longevidade e renda –

havendo, portanto, a expansão da base informacional, o que sugere uma análise e tomada de decisão mais justa à realidade pelo fato de se considerar diferentes dimensões além da econômica (PIB per capita). Retomando a discussão da seção anterior, quando o Movimento Nacional da Reforma Urbana propõe que a função determinante da matriz territorial deve ser uma função socialmente justa, que importe em considerar os interesses coletivos preponderando sobre os particulares, abre-se o direito à cidade – esse fenômeno histórico espacial multidimensional – para a lição de Amartya Sen pelo fato de que, nesse processo contra-hegemônico, é ampliado o número de agentes autorizados a implicar uma nova base informacional – uma nova territorialidade – sobre o espaço e o território da cidade. Dá-se, portanto, a expansão da base informacional pela ampliação dos sujeitos ativos no território com poder de fala e de ação relevantes para a construção do mundo comum. Como já alertado, o direito à cidade não se confunde com a provisão pública de bens e serviços, mas antes reivindica a condição de sujeito ativo sobre o espaço e o território da cidade – o que, igualmente, está em paralelo ao pensamento de Sen, para quem o desenvolvimento humano expressa-se pela expansão das liberdades substantivas fundantes da condição humana. Para o nosso trabalho, a expansão da efetividade dos direitos sociais sobre o espaço da cidade importa em condições de possibilidade para a ação política no território urbano, perfazendo, portanto, a condição humana de cidadania ativa ou, para Sen, o desenvolvimento humano pleno. Assim, podemos concluir que a função social da cidade e da propriedade são, em verdade, demandas por justiça na cidade, o que quer dizer demandas por uma redefinição das estruturas e dos fluxos que organizam o espaço (materialidade, substrato existencial, mundo) e o território (dimensão, cenáculo da ação política) a partir da instauração da condição de igualdade dos sujeitos como seres autorizados a inserir informações relevantes na estrutura da cidade e a produzir sua própria história, sua própria emancipação. Operacionalmente, o que se busca é a construção de espaços públicos (arena política) em que os indivíduos possam adentrar igualmente como sujeitos ativos (cidadãos) e, reconhecidos como tais, tenham sua fala e sua ação como relevantes para o discurso e para a práxis dos outros. Aí estão duas dimensões necessárias a um território urbano que se pretenda democrático: 1) a igualdade da condição de cidadania que autoriza os sujeitos a apresentarem como relevantes novos projetos de mundo na esfera pública; e 2) a reflexividade do discurso e da ação característica da construção pública e democrática de uma matriz territorial que mantenha a condição de igualdade em cidadania ativa. Ainda na trilha de Amartya Sen, o substrato sobre o qual se construirão as relações territoriais deve ser o mais amplo possível. Por isso, as tradicionais dimensões urbanísticas de moradia, vias de acesso, rede de água potável, saneamento básico, serviços de saúde e de educação constituem tão somente um primeiro passo na expansão da base informacional da justiça na cidade. Logo devem ser ampliadas tais dimensões para além das melhorias de acesso a bens

e serviços, como, por exemplo, considerar as dimensões de participação pública, de definição de gastos públicos, da questão de gênero, de medidas estruturais de melhoria de renda, de respeito à diferença, aos direitos culturais, etc, etc. Afastam-se, então, os discursos acerca do “mínimo existencial”, seja salário, habitação, serviços públicos, etc. – uma proposta contrária a lição de Sen, mas muito própria de um Estado populista de acomodação de interesses privados. As chamadas soluções urbanísticas alternativas constituem, para o nosso entendimento, uma territorialização de segunda classe, uma subcidadania, pois importa em considerar como aceitável para uma parcela da população um padrão de realização de direitos que de modo algum seria tolerado para a cidade legal das elites. Ainda, nesse sentido, a proposta neoliberal de amenizar a pobreza extrema pelas chamadas políticas sociais compensatórias (assistência social, renda mínima, reciclagem profissional, etc) não favorecem a emancipação, ao contrário, reiteram as relações clientelistas e o padrão de exclusão social que é estrutural do modo de produção. Mais uma vez: a efetividade do direito à cidade que coincide com a justiça na cidade não se reduz ao acesso a bens e serviços tampouco ao alívio superficial da pobreza. O elemento do justo no direito à cidade está na dimensão da cidadania crítica, aquela pela qual há a imbricação, redefinição, revalidação, emancipação da função estruturante do espaço (concretude das relações sociais) e do território (relações políticas) a partir de uma pluralidade de agentes e discutida e construída em um espaço público. Portanto, o fundamental do direito à cidade é o exercício da cidadania. Marcelo Lopes SOUZA (2002) aponta-nos três argumentos principais por que ser necessária a participação ativa no espaço público: 1) a ampla participação minimiza as distorções no poder; "poucos tentando interpretar as necessidades da maioria à luz dos seus próprios valores e critérios, sem considerar a opinião da maioria, a probabilidade de corrupção e erro é bem maior" ; 2) ao participar dos processos de decisão e gestão o cidadão se sente co-responsável pelos resultados; isto implica no amadurecimento político de responder pelas conseqüências de cada decisão tomada; e 3) participar é,ainda, um direito à autonomia, ou seja, a capacidade de se autodeterminar, haja vista que a heteronomia implica sempre em assimetrias nas relações de poder; "abrir mão desse direito é colocar-se numa posição de tutela, como uma criança perante um adulto”. Tais contornos da participação são o que diferencia o direito à cidade, construído ao longo das últimas décadas, daqueles direitos propostos pelo Estado social (provisão pública de bens e serviços para a reprodução social), pelo Estado caritativo (provisão privada de bens e serviço para a dignidade das almas) e pelo Estado neoliberal (minimizar superficialmente a pobreza extrema para não comprometer a eficiência sistêmica). *Justiça passa a ser compreendida como a igualdade de possibilidades de acessar e alterar o código-fonte estruturante do território. Ou seja, justiça está intimamente ligada a concepção de autonomia dos sujeitos em um determinado

espaço e território urbanos. Assim, a justiça do direito à cidade caracteriza uma terceira dimensão da cidadania (condição de sujeito na cidade): a cidadania crítica, pela qual ocorre a “permanente reavaliação, revalidação e rompimento com as estruturas sociais, políticas, culturais e econômicas opressoras, com o propósito de aprofundamento da organização e do associativismo para a ampliação das lutas democráticas” (Santos, 1996), enfim, a emancipação do sujeito pela reterritorialização (reordenação do espaço e do território) da cidade. afinal Se entendermos que a justiça se realiza na igualdade da condição de sujeito ativo que acessa, revalida e reforma a função estruturante do espaço e do território, concebemos que a justiça está na realização da autonomia do sujeito que se propõe um projeto de mundo no espaço público e, assim o fazendo, constrói-se a si mesmo. Essa postura de conectar direito à cidade, justiça, autonomia e emancipação, em suma, constitui um projeto de transformação da realidade presente (assistencialismo, cultura do favor, patrimonialismo, cooptação política, homogeneidade consumidorista, apatia política, exploração humana pelos meios de produção capitalista e achatamento da criatividade humana) em um território da cidadania – um espaço público marcado pela realização do direito à cidade: cidadania substantiva, cidadania política e cidadania crítica. Referências bibliográficas ALVES, Rafael de Oliveira. Princípios do direito à cidade: território da cidadania. In: MAGALHÃES; ROCHA (orgs.). O município e a construção da democracia participativa. Belo Horizonte: Mandamentos, 2006. pp. 195 a 234. ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989. ARENDT, Hannah. As origens do totalitalismo. Rio de Janeiro: Documentário, 1976. BRITO, Cristóvão. Revisitando o conceito de território. Revista de Desenvolvimento Econômico. Salvador, ano IV, nº 6, julho de 2002. CARTA MUNDIAL PELO DIREITO À CIDADE. [Disponível em: http://www.forumreforma urbana.org.br] DOIMO, Ana Maria. A vez e a voz do popular: movimentos sociais e participação política no Brasil pós-70. Rio de Janeiro: Relume-Dumará / ANPOCS, 1995. LIRA FILHO, Roberto. O que é direito? São Paulo: Brasiliense, 1995. SANTOS, Boaventura de Sousa. Crítica da razão indolente. São Paulo: Cortez, 2000. SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. Porto: Afrontamento, 1996. SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Cia das Letras, 2000. SOUZA, Marcelo Lopes. Mudar a cidade: uma introdução crítica ao planejamento e à gestão urbanos. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.

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