Construindo pelas bordas: (i)legibilidades, Estado e o camelódromo de Porto Alegre/RS

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XVII Congresso Brasileiro de Sociologia 20 a 23 de julho de 2015, Porto Alegre (RS)

GT 15 - Mercados Ilícitos e Processos de Criminalização: desafios metodológicos

Construindo pelas bordas: (i)legibilidades, Estado e o camelódromo de Porto Alegre/RS

Andressa Nunes Soilo (UFRGS)

1. Introdução Os camelódromos brasileiros correspondem a um fenômeno urbano recente, que abarca comerciantes informais em lugares concentrados, como prédios, geralmente organizados e construídos por parcerias público-privadas. O camelódromo de Porto Alegre – também conhecido como shopping popular – consiste em um prédio planejado pelo poder público a fim de abarcar profissionalmente

vendedores

informais

que

comercializavam

suas

mercadorias nas ruas, vendedores estes comumente conhecidos como “camelôs”1. A construção do espaço em questão foi realizada a partir de parceria público-privada com determinada construtora que edificou o local e, em contrapartida, lucra com tal investimento através do pagamento dos aluguéis dos comerciantes. A construtora e o poder público esforçam-se, atualmente, em promover a noção de um comércio popular regularizado pela perspectiva estatal, caracterizado pela presença de alvarás e relacionado à figura do pequeno-empreendedor, e não mais com a figura do estigmatizado camelô. Este artigo visa proporcionar reflexões acerca da produção relacional entre Estado e margem comercial representada pelas práticas realizadas no shopping popular em questão, a partir das noções de Veena Das e Deborah Poole (2004) sobre o diálogo entre ente estatal e suas margens, assim como da noção de legibilidade articulada por James Scott (1998). É importante destacar que a margem a qual direciono meu estudo corresponde às práticas consideradas oficialmente ilegais e/ou ilegítimas realizadas no camelódromo porto-alegrense. Nesse sentido, o argumento que proponho é que é possível compreender a construção do camelódromo como um projeto de produção de legibilidade, e que tal produção não se dá sem conflitos, tensões e práticas que redefinem fronteiras entre Estado e comércio popular ilegal. Para pensar tais limites negociáveis e móveis entre esses espaços, enfatizarei a presença de produtos conhecidos como “piratas”2 comercializados no shopping popular por 1 Entendo o ator social “camelô” enquanto vendedor informal que comercializa suas mercadorias nas ruas. 2 Produtos piratas são aqueles reproduzidos, distribuídos ou vendidos em desacordo com as leis de propriedade intelectual.

antigos camelôs e novos comerciantes, em uma tentativa de elucidar a produção e atuação de legibilidade nesse local. Este artigo é uma compilação de minha dissertação de mestrado em Antropologia Social pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) defendida em março de 2015. Tal pesquisa corresponde a uma temporalidade que excede o período em que estive no mestrado (2013-2015) abarcando, também, o período em que fui aluna de graduação no curso de Ciências Sociais (2008-2013) onde realizei pesquisas de iniciação científica, com ênfase em antropologia, junto ao camelódromo e tive a oportunidade, desde então, de reunir vasta coleta de dados sobre tal espaço. Dito isso, a pesquisa e as análises que passarei a expor a seguir foram realizadas através do método etnográfico,

método

que,

devido

à

observação

participante

e,

mais

precisamente, da sensibilidade do “olhar etnográfico” (OLIVEIRA, 2000, p.19) contribuiu substancialmente para que, em minha percepção, as fronteiras entre Estado e comércio popular se mostrassem permeáveis. Em se tratando de um estudo, sobretudo, qualitativo, privilegiei, dentre outras, a técnica da observação participante junto ao grupo dos comerciantes do camelódromo. Minha inserção no ethos desses vendedores, – etapa importante da pesquisa – envolvendo, sobretudo, a aceitação do grupo estudado (MALINOWSKI, 1976), se deu desde o ano de 2009, ano em que o camelódromo foi inaugurado. A partir dos contatos que estabeleci nos primeiros anos de existência do shopping popular, uma rede de novos comerciantes e interlocutores me foi apresentada, permitindo-me o aprofundamento de minhas investigações. Com o decorrer do tempo conheci novos comerciantes, ao mesmo passo que muitos dos vendedores com os quais havia estabelecido uma relação profissional deixaram o camelódromo para exercer outras atividades. Ao pretender estudar as relações de poder e sentidos que constituem o Estado e sua margem comercial no camelódromo da capital gaúcha, estabeleci contato não somente com comerciantes, mas também com o poder público, através de órgãos fiscalizadores das práticas consideradas ilegais mais recorrentes entre os vendedores. Assim, estabeleci contato, no ano de 2014, com a Receita Federal e com a SMIC (Secretaria Municipal da Produção, Indústria e Comércio), órgãos fiscais que estão presentes – seja fisicamente,

ou através de medos, fofocas e suposições – no cotidiano dos vendedores desde o período em que exerciam suas atividades nas ruas. Meu contato com esses dois órgãos deu-se a fim de compreender como operam frente às práticas marginais do shopping popular em questão. Realizei, então, entrevistas semi-estruturadas, não tendo achado interessante, devido à minha relação com os comerciantes, fazer observação participante durante as fiscalizações. Desse modo, a partir de etnografia realizada no camelódromo portoalegrense entre os anos de 2009 a 2014 – com maior intensidade nos anos de 2013 e 2014 no que concerne à temática que aqui apresento –, pretendo demonstrar a permeabilidade presente entre as fronteiras do Estado e de sua margem comercial aqui representada pelo shopping popular a partir da produção mútua desses dois espaços e de suas relações com a legibilidade (SCOTT, 1998).

2. Apresentando o camelódromo porto-alegrense

No século XVIII, o comércio da cidade de Porto Alegre expandiu-se a partir da chegada dos açorianos e de alguns negociantes geralmente nãoespecializados na atividade comercial (FRANCO, 1983). No século XIX, o cenário comercial assume característica mais ativa e é ampliado, recebendo produtos de diferentes locais (FLORES, 2004). Como explica Pesavento (1994), a burguesia porto-alegrense do final do século XIX e início do século XX, interessada em promover a higiene pública e moral da cidade, orientava ações intervencionistas no espaço público a fim de que Porto Alegre se ajustasse ao então emergente ideal de modernidade urbana, afastando assim cortiços, sobrados, bordéis e outros locais que ofendessem a moral burguesa. Nesse período, os comerciantes que trabalhavam nas ruas 3 eram percebidos de modo estigmatizante pela sociedade em geral, já que o labor exercido nas ruas também destoava do ideário modernizante em voga. Espacialmente, a 3 Tais comerciantes trabalhavam, principalmente, com a prática do escambo e com um intenso mercado de peixes (PINHEIRO-MACHADO, 2004).

atuação dos comerciantes nas ruas foi complexificada quando tais espaços se tornaram zonas de interesses político-econômicos de atores sociais abastados, o que acarretou a realocação dos vendedores para outros lugares. Com certo distanciamento temporal, mas não fatual, as tentativas de controle do espaço de atuação dos comerciantes de rua, podem, ainda hoje, ser identificadas em diversas cidades brasileiras. No ano de 1989, por exemplo, a Prefeitura Municipal de Porto Alegre, através da SMIC, regularizou parte dos vendedores de rua existentes na região central da cidade. A partir de tal

cadastramento,

foi

possível

a

muitos

comerciantes

trabalhar

no

“Camelódromo da Praça XV”, região central da cidade que acabou, ao ar livre, concentrar comerciantes em sua maioria cadastrados. Porém, os históricos conflitos entre diferentes atores sociais que compõem o mesmo espaço comercial porto-alegrense como, por exemplo, lojistas (comerciantes formais) e atores

políticos,

incentivaram nova

intervenção

estatal

relacionada

à

espacialidade das práticas do comércio popular, dessa vez através do projeto “Viva o Centro”, plano que tinha como objetivo a revitalização da cidade. De acordo com o governo municipal, o projeto “Viva o Centro”, dentre outras aspirações práticas relacionadas à cidade, visava melhorar as condições de trabalho dos comerciantes que atuavam nas ruas, assim como a imagem do Centro Histórico, região a qual camelôs cadastrados e não-cadastrados habitavam (PREFEITURA DE PORTO ALEGRE, s.d). As melhorias de condições de trabalho dos camelôs, e a revitalização estética da cidade, desencadearam a elaboração de um novo camelódromo, dessa vez arquitetonicamente semelhante a um shopping center convencional. Tal ideia de realocar, em um local marcado por paredes e teto, os camelôs cadastrados pela prefeitura surgiu em 2005, e contou com parceria público-privada para sua edificação. Através de licitação, determinada construtora encarregou-se em investir na edificação do novo espaço e, em contrapartida, se tornou legítima em receber os valores de aluguéis e demais custos que os comerciantes passaram a ter responsabilidade. A questão financeira de tal mobilidade espacial foi - e ainda é - tópico intrincado entre os atores sociais envolvidos na implantação do camelódromo. Inaugurado em 9 de fevereiro de 2009, o recente prédio comercial repleto de boxes e corredores estreitos, desencadeou diversos

conflitos

entre

governantes,

vendedores

e

mesmo

com

a

administração do local (administração conduzida pela empresa privada que construiu o camelódromo), devido, sobretudo, às incertezas financeiras decorrentes da transição4. As novidades ocasionadas pela transição dos comerciantes populares, para além da arquitetura do espaço, estão presentes também, como já apontei, na cobrança de aluguéis. No cenário comercial anterior, as mercadorias dos comerciantes eram, geralmente, guardadas em depósitos situados perto do local de trabalho, depósitos esses que, conforme interlocutores os quais tive contato, cobravam valores irrisórios. Além das questões caras a todo o comércio no contexto capitalista, o lucro, o camelódromo suscita outras problematizações, como a identidade móvel dos comerciantes – o perceber-se e ser percebido enquanto camelô e lojista (SOILO, 2013); as novas estratégias de venda em um ambiente distinto (idem); e, o que procurarei me ater neste artigo, as relações entre Estado e camelódromo enquanto uma relação de coprodução entre esses dois espaços. A construção do prédio que abriga os camelôs cadastrados pela prefeitura porto-alegrense pode ser percebida através da perspectiva da gentrificação, mas também por meio de uma tentativa governamental de tornar atores sociais considerados à margem da lei em comerciantes formais e legíveis ao poder público. Desde a inauguração do novo espaço, por exemplo, a administração do camelódromo se empenhou em promover eventos que motivassem o camelô das ruas a atuar e se perceber como um lojista formalizado, assim como campanhas do poder público exaltavam as facilidades e a nova característica de formalidade em estado processual do comércio popular para impulsionar o interesse da clientela e as vendas. É nesse contexto de reconfiguração do comércio popular portoalegrense que analisarei as relações entre Estado e margem representada pelo camelódromo. É importante destacar que ao me referir à margem comercial neste trabalho não quero reforçar estigmas históricos que recaem sobre o comércio popular, mas sim problematizar o que é considerado (na perspectiva 4 Para mais informações sobre as relações políticas entre os atores sociais envolvidos na constituição do camelódromo ver: KOPPER, Moisés. De camelôs a lojistas: etnografia da transição do mercado de rua para um shopping popular em Porto Alegre-RS. 196 fls. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFRGS, Porto Alegre, 2012.

estatal) margem. Para isso o suporte teórico de Veena Das e Deborah Poole (2004) se apresenta a mim analiticamente valioso, assim como o conceito de “legibilidade” desenvolvido por James Scott (1998), pois permitem pensar as dinâmicas realizadas entre Estado e margem e seus desdobramentos.

3. (I)Legibilidades e margens: (co)produzindo espaços Tratar de legibilidade implica, como procurarei mostrar ao longo deste artigo, abordar complexas relações repletas de negociações e adaptações presentes nos diálogos entre Estado e demais atores sociais. Para prosseguir, acredito ser importante esclarecer o termo “legibilidade” utilizado por James Scott (1998) em seu trabalho. O autor ao tratar sobre tal conceito destaca as tecnologias de controle dos Estados modernos direcionados a suas populações. Essas técnicas, conforme Scott, devem ser simples e capazes de abranger informações dos mais variados grupos sociais que interagem em sociedade. Assim, a legibilidade estaria relacionada à leitura das realidades (plurais) pelo poder público, leitura esta que pretende padronizar, de certo modo e a certo nível, controlar a vida social 5. Em minha etnografia, mais precisamente em seu limiar, o que mais me despertava a atenção era a comercialização massiva e notória de mercadorias que a mim pareciam ser piratas em um espaço planejado e promovido pelo Estado – o que me indicava uma contradição, pois nesse local, a ilegibilidade se apresentava bastante atuante através da venda de bens piratas. As escassas fiscalizações também me causavam curiosidade, pois se as mercadorias

consideradas

ilegais

eram

tão

expostas

nos

boxes

do

camelódromo, por que não havia fiscalização para apreender tal transgressão da lei oficial? A partir dessas indagações do início de pesquisa de meu mestrado, me interessei em etnografar as relações entre Estado e margem comercial enquanto um processo dialógico e de produção mútua desses espaços. 5 Os sobrenomes perduráveis, a estandardização de pesos e medidas, os recenseamentos aplicados às populações são exemplos de práticas que tornam, teoricamente, o Estado informado sobre seus habitantes.

Minha inserção no camelódromo porto-alegrense, como já apontei, se deu no ano de sua inauguração, em 2009. Nesses seis anos em que estive envolvida com tal comércio, dicotomias como centro/margem e lícito/ilícito, se apresentavam em minhas observações, não como categorias estanques, mas confluentes e permeáveis entre si. Autores como Das & Poole (2004) e Scott (1998) me possibilitaram estudar Estado e margem para além das categorias bifurcadas de estudos clássicos (centro/periferia; Estado/margem). Os escritos de Veena Das & Deborah Poole (2004) demonstram que não só o Estado constrói suas margens, mas também as margens constroem o Estado; e os escritos de James Scott (1998) sobre legibilidade, como já salientado, discutem tecnologias de controle estatais frente à sua população. Tais categorias analíticas me permitiram perceber que entre o ente estatal e o comércio considerado à sua margem estabelece-se um diálogo constitutivo que, longe de promoverem suas exclusões, proporcionam suas permanências. Para expor meu argumento de que existe uma coprodução entre Estado e margem comercial, acredito ser importante retomar o cenário no qual são realizadas tais produções, o camelódromo porto-alegrense, e as possíveis interpretações acerca de sua elaboração. Assim, a partir dos enfoques delineados pelos autores, apreendo a constituição do camelódromo da capital gaúcha e as práticas entre comerciantes e agentes estatais ali realizadas, assim como as formas de comércio ali presentes, enquanto elementos que permitem pensar a constituição do Estado e de suas margens. Busco, então, enfatizar que nesses espaços/práticas ditas marginais, ordens distintas das idealizadas e propostas pelo Estado são elaboradas impulsionando contínuas reconfigurações oficiais e locais. Nesse sentido, o camelódromo em questão é um local especialmente interessante para a discussão sobre legibilidade, pois dá visibilidade aos rearranjos e produções do Estado nas margens. Como já demonstrei, a ação estatal de remoção dos comerciantes das ruas e a gestão de uma empresa privada, pode ser interpretada como uma tentativa pedagógica de conversão (DAS & POOLE, 2004) do camelô em pequeno-empresário. Tal conversão pode ser compreendida enquanto empenho em tornar o camelô, ator historicamente estigmatizado, em sujeito integrado na legibilidade estatal

(SCOTT, 1998). Esse esforço pode ser percebido através de práticas como o cadastramento do comerciante e de seus funcionários perante a gestão do espaço e órgãos fiscais; o controle do pagamento de aluguéis e demais custos pela gestão administrativa; a presença de boxes fixos; e as regras internas do shopping – como os limites espaciais de exposição das mercadorias. Tais práticas são exemplos de técnicas que tornam tal comércio legível ao Estado. Através do trabalho etnográfico realizado junto ao camelódromo de Porto Alegre, me foi possível perceber o interesse de órgãos fiscalizadores estatais, da gestão da empresa privada que edificou o espaço comercial, e até mesmo dos próprios comerciantes do camelódromo em tornar certas práticas do shopping popular legíveis ao Estado como mostrarei a seguir. Pretendi destacar como pedra-de-toque em minha observação a comercialização de bens piratas, o que me proporcionou atentar as relações bilaterais entre Estado e margem comercial. De mesmo modo que o espaço, as mercadorias vendidas no camelódromo também desempenham papel relevante na identidade legal/ilegal, formal/informal do comerciante e contribuem para pensar zonas de (i)legibilidades. A legibilidade pretendida no shopping popular encontra-se em descompasso com o histórico modo de vida dos camelôs, fundamentando-se apenas em relações informais e venda de bens piratas. Contudo, práticas consideradas ilegais como a pirataria constituem a subsistência da maioria dos comerciantes no camelódromo, fazendo com que (i)legibilidades sejam constantemente negociadas com o poder público. O que quero destacar, é que tais ilegibilidades presentes no camelódromo, como a venda de mercadorias piratas, não constituem indício de debilidade estatal em alcançar as zonas consideradas marginais, mas sim de que existem outras racionalidades atuantes e coexistentes com a racionalidade do Estado. Dentre as razões que motivam tal comércio considerado informal, está a desigualdade social baseada no regime de propriedade intelectual, condição apresentada a mim por meus interlocutores como legítima para a realização e manutenção desse mercado entre os vendedores (SOILO, 2013). O Estado, ao produzir tais condições de desempenho das margens, constrói-se a si mesmo através de suas tecnologias de controle como, por exemplo, técnicas de combate ao crime de pirataria. Trata-se de um fortalecimento mútuo em que os limites entre o que é permitido e proibido são construções

relacionais evocadas por duas racionalidades que negociam suas produções de legitimidades constantemente. Em etnografia realizada junto aos órgãos da Receita Federal e da SMIC, ficou claro a mim que a fiscalização estatal se manifesta enquanto uma prática organizada

de

modo

a

dar

preferência

a

produtos

caracterizados,

hierarquicamente, como danosos ao público consumidor e que são, em sua maioria, vendidos de modo velado no camelódromo. Nesse sentido, armas de fogo, drogas ilícitas, medicamentos (abortivos, emagrecedores, remédios para disfunção erétil), pirotécnicos, cigarros e óculos de grau recebem maior atenção dos órgãos fiscalizadores, devido à irregularidade não só de sua venda, mas também da origem desses produtos. A preferência em fiscalizar bens nocivos à sociedade em geral decorre, de acordo com interlocutor da SMIC, de um reduzido número de fiscais que atendem toda a cidade, não comércios populares, mas também casas noturnas, feiras, bares, postos de gasolina e estabelecimentos que estiverem operando sem alvará de funcionamento. Tal fato permite-nos pensar o Estado como um ente ilegível e contraditório em sua própria estrutura (DAS & POOLE, 2004) ao não ser capaz de cumprir suas leis, flexibilizando-as em sua prática ao tratar certos bens mais relevantes que outros. As criatividades elaboradas pelo e no modo de vida dos comerciantes e presentes nas práticas do comércio popular como, por exemplo, estratégias de vendas e obtenção de mercadorias irregulares, constituem ameaças à legibilidade oficial que pode se reorganizar a fim de que tais ameaças se encerrem, ou mesmo utilizar a força policial. As criatividades comerciais podem ser compreendidas como resistência dos comerciantes frente ao poder público, objetivando a permanência do comércio popular. É interessante perceber como a pirataria contribui para visualizarmos em tais criações e tensões a maleabilidade das fronteiras e a construção do Estado e da identidade do comércio popular enquanto margem. Na perspectiva estatal, a comercialização da pirataria enquanto um ilícito é permeada por questões como jurisdições, competências e até mesmo impasses a respeito das definições sobre quais bens podem ser classificados enquanto piratas. As tecnologias de controle frente ao crime de pirataria envolvem procedimentos que, de certo modo, facilitam a continuidade de venda de tais produtos, ou seja, colaboram para a

continuidade da margem, como a necessidade de denúncia de representantes de marcas lesadas pela pirataria, mesmo que órgãos fiscais tenham ciência do comércio desses bens; e a impossibilidade do Estado em definir, por si só, se um bem é pirata, mesmo que encontre indícios como o baixo preço do produto – nesses casos, os donos das marcas suspeitas devem se pronunciar a respeito. A esse respeito, o Superintendente da Receita Federal da 10ª Região Fiscal diz: Isso aí (verificação da originalidade do produto) tem que ser ou no âmbito da justiça com a lei de propriedade intelectual (porque só quem pode questionar, na verdade, é o dono da marca, né), ou então se faz uma perícia. (Entrevista realizada com o Superintendente da 10ª Região Fiscal em 29/08/2014).

Permeado por relações de poder, o shopping popular de Porto Alegre interage com órgãos fiscalizadores e seus representantes que fazem parte do cotidiano dos vendedores6. A produção do Estado pelas margens pode ser percebida, além das práticas de fiscalização, por leis que visam mitigar o mercado de bens irregulares, como a Lei 11.898/2009 que trata sobre o RTU (Regime de Tributação Unificado). Essa lei também é conhecida como Lei do Sacoleiro e mencionada pelos representantes dos órgãos fiscais que entrevistei como uma tentativa de legalizar as importações realizadas no Paraguai. O RTU é, basicamente, um modo pelo qual microempresas optantes do Simples Nacional7 transportam, de modo reconhecido pelo poder público, determinadas mercadorias via terrestre, do Paraguai ao Brasil, pagando uma taxa única sobre as mercadorias8. Conforme os entrevistados, a Receita Federal organizou palestras informativas para os comerciantes do camelódromo a fim de esclarecer os benefícios da RTU. Contudo, de acordo com o Superintendente a maioria dos 6 As fiscalizações, quando realizadas por representantes estatais são, a depender dos produtos alvo de apreensões, recebidos com grande alvoroço e resistência coletiva por parte dos comerciantes (SOILO, 2015). 7 O Simples Nacional corresponde a um regime tributário simplificado destinado a pequenas e microempresas. Para mais informações ver: http://www8.receita.fazenda.gov.br/SimplesNacional/Documentos/Pagina.aspx?id=3 Acesso em: 29, maio, 2015. 8 Para mais informações sobre a RTU ver: Acesso em 03 nov. 2014.

vendedores “preferem correr o risco e trazer (mercadorias) sem fazer a importação simplificada. Trata-se de legislação criada especialmente para favorecer, para que eles venham para a legalidade. A adesão à RTU é baixíssima”. A alíquota a ser paga em tal regime é de 25% não estando incluso o ICMS (Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação). No RTU, algumas especificidades são encontradas, como a determinação de mercadorias passíveis de serem importadas, assim como a necessidade de CNPJ (Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica). Assim, a Lei dos Sacoleiros pode ser percebida como um ajuste das leis frente as práticas marginais e uma tentativa de integrar essas condutas comerciais à legibilidade estatal, em uma clara demonstração da flexibilidade das leis no sentido malinowskiano9 (MALINOWSKI, 2003) – sentido em que o cumprimento pode ser parcialmente satisfatório e não somente integral. Contudo, enquanto estive envolvida com os comerciantes, não soube de nenhum vendedor que tenha aderido à lei. É interessante perceber que as dificuldades do Estado em realizar apreensões de bens irregulares consistem em suas próprias leis, como o exemplo da necessidade de representação de donos de marcas que se sentem prejudicados pela pirataria ou mesmo do reconhecimento do que vem a ser uma mercadoria pirata. Tais exemplos acabam por corroborar com o que Veena Das & Deborah Poole (2004) asseveraram sobre o Estado ser permeado e definido por ilegibilidades, não só de suas margens, mas também da própria impossibilidade em realizar completamente sua própria racionalidade. Além de tais dinâmicas na própria construção e verificação da legalidade dos bens, pode-se dizer que as relações entre agentes fiscalizadores e comerciantes não é, sempre, de mão única, ou seja, nem sempre o Estado é o único ator capaz de produzir legibilidade. Como já apontado, a administração 9 Malinowski ao realizar trabalho empírico junto aos trobriandeses da Melanésia percebe que as leis possuem caráter coercitivo. Contudo, observa possibilidades de flexibilização de seu cumprimento, indo de encontro à noção presente no início do século XX que leis constituem-se pela rigidez de suas execuções. “[...] Também está claro que embora o tipo de regras que estamos discutindo sejam indiscutivelmente regras compulsórias da lei, elas não têm o caráter de mandamentos religiosos estabelecidos de modo absoluto, obedecidos rígida e integralmente. As regras aqui descritas são essencialmente elásticas e ajustáveis deixando um considerável espaço no qual seu cumprimento é considerado satisfatório” (MALINOWSKI, 2003 [1926], p. 30).

do camelódromo empenhou-se em promover eventos no recente espaço. Tais eventos eram caracterizados, em sua maioria, por conteúdos e mensagens legalizantes e pedagógicas a fim de que práticas consideradas irregulares pelo poder estatal fossem evitadas e afastadas pelos comerciantes. Um exemplo de tal esforço instrutório, em minha interpretação, ocorreu durante a inauguração do mais recente nome do camelódromo (“Pop Center”) 10. Nessa ocasião foram convidados dois atores de uma famosa novela brasileira e somente aqueles comerciantes que apresentassem notas fiscais poderiam ser fotografados com os artistas. O caso de a empresa privada que gerencia o atual camelódromo também ser, além do Estado, produtora de legibilidade, pode não causar admiração, já que sua administração é pautada em trâmites legais. No entanto, é válido perceber que legalismos e ilegalismos são impulsionados, negociados e gerados em distintos espaços e situações. Nesse sentido destaco a produção de legibilidade exercida entre os comerciantes do camelódromo portoalegrense quando a comercialização esbarra na moral. Em casos nos quais produtos moralmente controversos pela maioria dos comerciantes (como medicamentos irregulares, armas de fogo e drogas), as apreensões realizadas pelos órgãos estatais são distintas das apreensões usuais – nestas, os órgãos fiscalizadores são, frequentemente, recebidos com tumultos e manifestações coletivas de repúdio ao esquadrinhamento e confisco de bens próprios e de vizinhos. Quando se trata da fiscalização e apreensão de mercadorias moralmente controversas, os agentes fiscais são recebidos com menos inquietação, e parte de tal atitude moderada decorre de serem os próprios comerciantes os delatores de colegas que vendem produtos potencialmente mais danosos aos consumidores. As denúncias que os próprios vendedores realizam junto à fiscalização constituem outro exemplo de produção da legibilidade a partir de diálogos entre as fronteiras do legal/ilegal. Dedico especial atenção à legibilidade produzida pelos próprios comerciantes frente a situações que afrontam a moralidade do grupo. Essa moral que atinge a maioria de um grupo heterogêneo como o dos vendedores do shopping popular pode dar pistas para compreender os modos 10 O camelódromo teve seu nome alterado três vezes. Primeiramente se chamava “Centro Popular de Compras”, após “Shopping do Porto”, e atualmente é nominado “Pop Center”.

pelos quais o camelódromo em questão mantém sua racionalidade e lógica internas que refletem seus modos de vida, suprem suas necessidades e preservam sua sobrevivência. Desse modo, a economia moral presente no comércio pode ser concebida como um código de conduta do grupo. Sobre tal moral que normaliza, os interlocutores que tive acesso percebiam os vendedores de produtos estigmatizados como marginais, pessoas que não mereciam respeito, pois enfatizavam, através do comércio, a violência, além de exporem seus consumidores a possíveis danos e até a morte. No caso da venda de medicamentos abortivos, as opiniões pessoais dos interlocutores apontavam o desprezo direcionado aos vendedores desses remédios, pois, além das substâncias poderem prejudicar a mulher, matavam os fetos. Em conversas informais com alguns interlocutores, me foi possível perceber que a venda velada de tais mercadorias por uma parcela dos comerciantes perturba a outra parcela que, apesar de vender bens conhecidos como “piratas” (bens considerados oficialmente ilegais), não aprova a comercialização de produtos considerados “proibidões” - termo êmico referente a mercadorias que são vendidas sigilosamente e podem ocasionar vários anos de prisão ao comerciante. Muitos vendedores que oferecem mercadorias dentro da tolerância de tal comércio (produtos piratas com consubstancial aceitação da sociedade) desejam que a venda dos bens “proibidões” tenha fim, pois se sentem trabalhando ao lado de criminosos. Durante minha etnografia, um de meus interlocutores, comerciante que realizava transações moralmente questionáveis pelo grupo, parecia corroborar com a ideia de que pertencia a uma margem em seu coletivo. Nas parcas conversas que foram realizadas com tal interlocutor, me foi possível perceber seu respeito em relação a seus vizinhos que vendiam mercadorias moralmente aceitas (e que seu respeito se dava por essa razão), além de falar, com olhar de constrangimento, sobre o tipo de comércio que estava envolvido. A heterogeneidade do comércio não permite estabelecer uma única economia moral entre os vendedores, porém, existem economias morais que prevalecem sobre outras, ou seja, assumem reconhecimento de grande parcela dos comerciantes. Trata-se de pacto velado de um grupo considerado marginal pelo Estado que também delimita suas margens internas, o que acaba por nortear suas ações e reações. Tal pacto, calcado em moralidades, assemelha-

se, por vezes, à moralidade estatal como, por exemplo, a reprovação da maioria dos vendedores no que diz respeito àqueles que comercializam bens de características que transpõem a questão da propriedade intelectual e passam a ameaçar a vida das pessoas. Nesses casos, a economia moral que prevalece é a de repulsa a tais comerciantes, o que acarreta aos órgãos fiscais receberem denúncias de vendedores vizinhos ao negociante estigmatizado sobre as ações deste. Por fim, procurei apontar neste artigo relações de negociações entre Estado e sua margem comercial representada pelo atual camelódromo da capital gaúcha. As margens e sua relação com a (i)legibilidade são, como dizem Das & Poole (2004), uma relação de coprodução, pois o Estado ao deparar-se com ilegibilidades ou mesmo com suas ameaças reforça-se a si mesmo produzindo novos mecanismos de controle; e as práticas estatais, por sua vez, definem sujeitos e práticas que encontram-se à sua “margem”. Esse entendimento das autoras de Anthropology in the Margins of the State também foi interessante para pensar os diferentes modos e atores que produzem legibilidade, seus interesses e negociações junto ao poder público.

4. Considerações finais

Como demonstrei, apreendo a constituição do camelódromo da capital gaúcha e as práticas entre comerciantes e agentes estatais ali realizadas, enquanto elementos que permitem pensar a constituição do Estado e de suas margens. Isso porque o espaço pode ser percebido como uma tentativa de conversão de pessoas que não se enquadravam nos marcos legais do Estado e, também, em razão da legibilidade estatal ser constantemente ameaçada e reconfigurada pelas práticas dos comerciantes. Busquei enfatizar nesses espaços/práticas ditas marginais, ordens distintas das idealizadas e propostas pelo Estado, ordens essas que são elaboradas impulsionando contínuas reconfigurações oficiais e locais. Assim, objetivei, neste artigo, questionar as fronteiras e ressaltar a fluidez das categorias Estado/margens e legal/ilegal a partir de análise etnográfica realizada no camelódromo de Porto Alegre.

Questões como normatividades, estratégias e negociações permeiam as relações entre poder público e práticas consideradas ilegais no shopping popular. Nesse cenário, pensar somente em uma via normativa, a normatividade estatal, é desconsiderar a agência e racionalidade presente nas margens. Aliás, a coprodução entre Estado e margem que destaco neste artigo remete à agência direcionada não somente “de cima para baixo”, mas também “de baixo para cima” em confluência constitutiva de espaços e práticas. Os diversos atores que participam, direta, ou indiretamente, das relações de poder que

envolvem

poder

público

e

margem,

também

estão

sujeitos

a

desempenharem papéis importantes nessas constituições, como, no caso que apontei, a empresa privada que atualmente administra o camelódromo produz, em sua gestão, técnicas de controle que facilitam e também promovem, a elaboração de legibilidade.

5. Referências Bibliográficas

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