Construir o ato-instante: o ator e o treinamento como poiesis

June 1, 2017 | Autor: Junior Romanini | Categoria: Lygia Clark, Teatro, Trabalho De Ator, Treinamento
Share Embed


Descrição do Produto

Construir o ato-instante: o ator e o treinamento como poiesis1

Moacir Romanini Junior2

Resumo Este trabalho estabelece um diálogo entre pensamentos complementares acerca de conceitos de experiência e o posicionamento do ator como ser-experiência. Investiga no pensamento da artista plástica brasileira Lygia Clark a concepção do sujeito vulnerável e agente na construção do ato-instante. A partir das considerações sobre esta concepção, posiciona este ator e sua instabilidade como o indivíduo do treinamento como poiesis. Palavras-chave: Treinamento. Ator. Ato. Lygia Clark.

1

Poiesis: uma das denominações para processos de treinamento a partir de vivências do pesquisador Prof. Dr. Matteo Bonfitto Junior, da UNICAMP. Termo extraído do capítulo “Treinamento – Materiais – Dramaturgia”, de seu livro, “Entre o Ator e o Performer”. 2 Moacir Romanini Junior é ator graduado em Artes Cênicas, pela Universidade Estadual de Londrina, UEL, e atualmente mestrando em artes da cena no Instituto de Artes da Unicamp, sob a orientação de Matteo Bonfitto Junior.

Ouviu o som do vento presentificado no feixe de bambu. Fez do som ação. A ação do instante.3

Na metade da década de 60, Lygia Clark, uma das fundadoras do Grupo Frente - que se dedicava a estudos do espaço e da materialidade do ritmo - para além de sua produção material, registrou seu fazer artístico em uma série de textos que, a exemplo de outros artistas e grupos contemporâneos, dava a este novo artista o status de pensador de sua obra e dos desdobramentos da mesma naquele tempo-espaço. Sobre sua produção, em “O Ato” (1965), Lygia recoloca a função do artista – a sua função – como um ser instável e em constante desagregação, um refazendo-se precariamente. Vulnerável, o ser aí apresentado por Clark é o ser de uma nova experiência, em detrimento do ser do experimento. “Viver a percepção, ser a percepção...”4 Com os verbos devidamente destacados, Lygia Clark acentua outros níveis da experiência no fazer artístico, posicionando este indivíduo-artista em um terreno movediço capaz de, a todo o momento, acionar ações-instantes como combustíveis para a criação. Assim, a prática artística já não perfaz caminhos anteriormente trilhados, mas se coloca em constante vir-a-ser-novamente-de-outro-modo-e-sendo-ainda. O instante do ato não é renovável. Ele existe por si próprio: o repetir é lhe dar uma significação. Ele não contém nenhum traço da percepção passada. É um outro momento. No mesmo momento em que ele se desenrola, ele já é uma coisa em si. Só o instante do ato é vida. Por natureza, o ato contém em si mesmo seu próprio excesso, seu próprio vir-a-ser. O instante

3

Descrição de roteiro dramático da prática construída na primeira etapa da disciplina “Seminário Temático I: Entre o Ator e o Performer: em busca de uma especificidade epistemológica”, ministrada pelo Professor Dr. Matteo Bonfitto Junior, no Programa de Pós Graduação em Teatro, da Universidade Estadual de Santa Catarina – UDESC. Maio de 2013. 4 CLARK, Lygia. Catálogo da Exposição Lygia Clark: Del Acto. Organização: Fundació Antoni Tàpies. Barcelona. 1997, p. 164.

do ato é a única realidade viva em nós mesmos. Tomar consciência já é ser no passado. A percepção bruta do ato é o futuro de se fazer. O passado e o futuro estão implicados no presente-agora do ato.

5

Na autodescoberta como ser efêmero, e na compreensão do tempo e espaço igualmente cambiantes, o artista desprende-se de toda a possibilidade de cristalização e automatismos e, mesmo que vivencie ações cotidianas – por si só repletas de mecanicismos – passa a reencontrar e redescobrir novos sabores naquilo que seu paladar já se habituava. Ao pretender a instabilidade na vivência de fato do atoinstante, sujeito-espaço e sujeito-tempo se reconfiguram. O que seria então este sujeito vulnerável e em construção se não o próprio sujeito da experiência? Se assim como descreve Bondía6, ao contrário do experimento, a experiência é irrepetível, heterogênea e plural, o indivíduo artista traçado por Lygia ainda em 1965, capaz de estar aberto a todas as transformações, é o próprio ser da experiência. Para ambos, a escuta do momento – e nesta escuta cabem outras dezenas de verbos - apresenta-se como ignição para que a experiência do sujeito aconteça de fato. Na apreensão de tempo e espaço por este sujeito disponível a novos níveis de experiência, seu corpo, como veículo da prática artística, é então tecido poroso por onde penetram e se agarram informações e sentidos. Via Bondía, Martin Heidegger, em seu De camino al habla (1987), apresenta o indivíduo da experiência como um ser “derrubado” dada à receptividade a que se coloca como agente do instante, contrário aquele que, dotado de objetivos estabelecidos, é impassível, mantendo-se sempre de pé diante do novo. Composto, o sujeito-artista da experiência-de-fato é o próprio presente – entendendo presente aqui como produção de presença – uma vez que na vivência do ato-instante é possível tatear o presente do presente, conforme apresentado por

5

CLARK, Lygia. “1965: A propósito do instante”. In: CLARK, Lygia. Lygia Clark. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1980, p. 27. 6 Jorge Larrosa Bondía, doutor em pedagogia pela Universidade de Barcelona, Espanha e autor do artigo “Notas sobre a experiência e o saber da experiência”, de julho de 2001.

Eleonora Fabião7. Ao apreender em si as dimensões espaço-temporais, como resultado de um outro nível do “experenciar”, e como um sujeito atento à escuta, Fabião apresenta a possibilidade de, neste estado, o sujeito ser capaz de “transformar uma sucessão linear de eventos em ações-reações imediatas”8. Estariam aí os eventos em diálogo com os experimentos e a segunda possibilidade para a experiência, conforme apresentado por Bondía. Assim como em Clark, Fabião defende a ideia desse sujeito-artista como um corpo-campo provisório, em permanente transformação. Ao revelar diferentes e cambiantes qualidades ao corpo da cena, a pesquisadora interseciona-se em Clark que, na defesa da valorização do instante, permite ao sujeito mobilizar o tempo, dando a este diferentes estados. Arrastar o tempo, endurecer o tempo, arredondar o tempo, espremer o tempo, apressá-lo, são possíveis novos estados temporais que, devidamente experenciados pelo sujeito, tornam-se também novas ignições para processos criativos. Absorvido por este tempo micro ou macro, o sujeito insere-se em outro nível de percepção, encontrando preciosidades nas frestas desse tempo. No domínio desse estado, este sujeito poroso, membranoso, túrgido, cambiante, pulsante, sujeito-ouvidos, torna sua prática uma verdade. Heidegger, em A Origem da obra de arte”, afirma que “a arte, então, é o surgir e o acontecer da verdade”9. Sendo então a experiência - de fato - do ato-instante como produtora de presença e de verdade, é neste momento em que o sujeito torna-se responsável e componente da obra arte,

como um momento de encontro entre forças

complementares.

7

FABIÃO, Eleonora. Corpo Cênico¸ Estado Cênico. Revista Contrapontos. Rio de Janeiro. 2010, p. 322. Idem, p. 322. 9 GUMBRECHT, Hans Ulrich. Produção de Presença: o que o sentido não consegue transmitir. Contraponto: Ed. Puc-Rio. Rio de Janeiro, 2010. p. 141. 8

O ser vulnerável e o treinamento como poiesis.

Após as considerações e a apresentação do sujeito transitório a partir do pensamento dos autores já mencionados, proponho neste percurso situar este indivíduo nos limites de um terreno mais específico. Até este momento, me propus neste trabalho a não mencionar a denominação ator – com exceção do título e resumo -, no intuito de não tê-lo como o centro do conhecimento abordado, por acreditar que a configuração do sujeito da experiência-de-fato está para além do fazer teatral. A partir de então, me coloco aqui como o próprio sujeito da experiência e, sendo ator, passo a uma abordagem singular com a utilização do termo. Em diálogo com os conceitos de experimento e experiência mencionados anteriormente, Bonfitto apresenta duas categorias distintas de treinamento para o ator: práxis e poiesis. A primeira – assim como para o conceito de experimento - pressupõe ações intencionais, que teriam objetivos estabelecidos a priori. Já em poiesis – assim como para o conceito de experiência – as ações não são intencionais e não há a busca determinada por uma finalidade pré-estabelecida. Em “Para interromper o som do vento”, título dado à experiência prática em maio de 2013, na Universidade Estadual de Santa Catarina, pude processar-me como o próprio sujeito da experiência. Em uma primeira etapa do trabalho, o objetivo era perceber como mecânicas corporais, nascidas a partir de um treinamento específico, passavam a figurar como ignições psicofísicas que, por sua vez, desencadeavam processos criativos com a construção de ações que emergiam naquele instante. Na continuidade, processos de contaminação, com interferência de outro ator nas ações anteriormente construídas, apresentavam-se como mais um agente transformador do instante. O outro, neste momento, era como um texto, um som, uma música, uma imagem, uma memória, que interferia na construção e passava a deixar ali rastros que indicam novos e possíveis caminhos.

Como mais um elemento de interferência, a utilização da música instrumental “Exu”, do grupo Metal Metal, serviu o instante. Carregada de referências sonoras de rituais africanos, este material poderia surgir como norteador para a criação de um tipo teatral, quase que figurando como um texto onde podemos encontrar detalhes, ações e situações, pré-estabelecendo e fechando caminhos para chegar a um fim. No entanto, como mais um elemento de adição ao percurso, o material prestou-se em seus timbres, agudezas, extensões, intervindo fisicamente na prática. Ações antes acumuladas passaram à experiência de outros timbres: corpo agudo, extenso, pontuado. E dessa forma, em um processo acumulativo, o agora já era outro. Embora os materiais utilizados fossem guiando o trabalho para uma possibilidade ficcional, não era possível tatear intenções pré-estabelecidas: não havia um texto de qualquer natureza, ou uma imagem, ou mesmo uma memória clara. Havia um vazio sendo transformado a cada etapa, o instante direcionando e o ato em criação constante. Com a utilização desses materiais, era possível perceber a criação de um estado ficcional em detrimento de um ser ficcional. O que difere um do o outro é que o primeiro, na apreensão de tempo e espaço e das suas potencialidades, estaria em constante estado de transformação e permeabilidade, dando a si e ao instante a qualidade de vulnerabilidade, de risco saudável, de exposição do ator: carne, corpo vivo e intensidade. Já o segundo, estaria para a criação de algo que se encerra em si, de que é possível apontar um universo mais claro; ele é aquilo. No entanto, as comparações entre estas duas possibilidades não tem a intenção aqui em ajuizá-las, mas de colocá-las como diferentes modos do experenciar. É também uma tentativa de dialogá-las com os dois tipos de treinamento apresentados por Bonfitto, cada qual resultando de um diferente percurso. Como último estágio do construir, optei por testar este estado em outro espaço. A intenção não era ter neste espaço uma ornamentação ou um cenário, mas mais uma vez, como sujeito poroso, permitir que as interferências desse local pudessem surgir

como mais um elemento de contaminação. À procura desse espaço, encontrei-o pelo som, antes de vê-lo. Com um forte vento de fim de tarde, um bambuzal inquieto chamou-me a atenção pelo som de suas hastes e folhas. Era um som perturbador. Coloquei-me em silêncio, calado, paciente, dando tempo e espaço.10 Como sujeito perturbado, os sons passaram a guiar o instante. Uma vez guiado por eles, o objetivo era servir-se de um possível programa – dado ao processo acumulativo vivido até então – e atento às transformações do momento, modular e distribuir aquela construção no momento presente, servindo e sendo servido pelo instante; acontecendo e acontecido. A comunicação dessa construção com o público presente ali, somente era possível por, talvez, haver naquele momento forças vibráteis que emanavam naquele círculo pequeno de pessoas sentadas muito próximas ao ato. Tendo em mãos um possível programa, o som, o vento, a luz do sol ofuscando, a proximidade e respiração das pessoas, eram todos agentes a favor do ato instante. E com as forças desses elementos finais – som, vento, luz - e a difícil possibilidade de serem repetidos na mesma intensidade, já não seria possível perfazer um caminho, caso houvesse a tentativa de repetir o ato. Assim, os estados de instabilidade estariam sempre presentes a favor da construção do ato-presente, do surgimento e acontecimento da verdade, como apontado por Heidegger. Estaria então, o ator construtor para o treinamento como poiesis, distinto do ator fazedor. Inquieto, este construtor é o próprio sujeito da experiência que, mesmo movido por esta inquietude – como antônima à passividade - e pelos estados instáveis, ouve e aquieta-se para agir, para absorver o tempo-espaço presentes e construir o ato instante.

10

Ações propostas por Bondía como instauradoras da experiência de fato. p. 19.

Referências Bibliográficas BONDÍA, Jorge Larossa. Notas sobre a experiência e o saber da experiência. Leituras SME. Textos-subsídios ao trabalho pedagógico das unidades da Rede Municipal de Educação de Campinas/FUMEC. Campinas. 2001. BONFITTO, Matteo Jr. Entre o ator e o performer. São Paulo: Editora Pespectiva, 2013. CLARK, Lygia. Catálogo da Exposição Lygia Clark: Del Acto. Organização: Fundació Antoni Tàpies. Barcelona. 1997. ______, Lygia Clark - 1965: A propósito do instante. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1980. FABIÃO, Eleonora. Corpo Cênico, Estado Cênico. Revista Contrapontos – Eletrônica, Vol. 10 – n.3 – p. 321-326. Set-dez-2010. GUMBRECHT, Hans Ulrich. Produção de Presença: o que o sentido não consegue transmitir. Contraponto: Ed. Puc-Rio. Rio de Janeiro, 2010.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.