Construções Semânticas e Ideológicas presentes em obras musicais do período ditatorial

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CONSTRUÇÕES SEMÂNTICAS E IDEOLÓGICAS PRESENTES EM OBRAS MUSICAIS DO PERÍODO DITATORIAL
Aluno: Paulo Henrique Gonçalves Oliveira da Silva
Orientadora: Professora Doutora Elisa Guimarães Pinto
Apoio: PIVIC Mackenzie

RESUMO
Este artigo tem como objetivo apresentar, em primeiro plano, as dimensões do texto e do discurso, bem como a ideologia presente nas obras musicais escolhidas para análise – situadas no período ditatorial brasileiro (1964-1985). A pesquisa tem como ponto de partida a contextualização, base fundamental para o entendimento dos discursos e das ideologias da época. O entendimento do posicionamento dos governantes e dos órgãos de censura do período será explicado no decorrer das análises. O corpus escolhido esclarece a maneira de pensar dos censuradores – o que permite a quem os lê entender a ideologia por trás de seus atos. Verifica-se que os artistas, por meio de algumas composições, encontravam uma maneira de protestar, revelando, assim, seus ideais, que podiam, também, ser entendido como a voz de muitos cidadãos da época. A partir da análise, tornou-se evidente o esforço de alguns artistas em não serem entendidos em primeira instância. Através do uso de figuras de linguagem ou até mesmo de palavras que remetiam ao contexto do período, os compositores puderam passar a mensagem desejada, mesmo que por um curto período de tempo. Outros ainda viram suas canções serem vetadas, porque o governo via nelas um ataque aos ideais de um país perfeito que eles almejavam construir. Sendo assim, o trabalho em questão mostrará como o texto pode carregar em si não só um aglomerado de palavras e sentenças, mas também, a ideologia e a intencionalidade discursiva do enunciador.
Palavras-chave: Semântica; Ideologia; Discurso ditatorial.

ABSTRACT
This scientific article has the objective of exposing the dimensions of both text and discourse, as well as presenting the ideology contained in the chosen songs – extracted from the Brazilian's dictatorship period (1964 – 1985). The contextualization is an important mechanism for the understanding not only of the discourses but also the ideologies of that period. The analyzes of the songs will reveal both the government and censorious' positions. For these objectives, songs were selected to compose this paper. The lyrics in these songs explain the censorious' way of thinking as well as the artists' thoughts that were shown on their compositions, revealing, this way, the artists' ideal that could also be understood as the voice of many people who lived in that period. The composers used to use figures of speech and words that were connected with the context of that period because they wanted to pass their messages but, at the same time, they needed to be careful because the censorious could censor their songs. Some song writers had their compositions censored just because the government saw some aspects which confronted the ideal of a perfect country. Summing up, this article will show how the text can be more than an aggregation of words and sentences to become an ideology and discursive intentionality.
Key-words: Semantics; Ideology; Dictatorial speech.




















INTRODUÇÃO
Nenhuma produção humana é gratuita. Até mesmo a sua linguagem carrega valores sociais e ideológicos que são responsáveis por estabelecer as relações de comunicação entre os humanos. Sobre a interação verbal entre os usuários da língua, Ronaldo de Oliveira Batista (BATISTA, 2012, p. 26, 27) em seu livro Introdução à pragmática – A linguagem e seu uso diz que existe interação quando há "uma troca dialógica, isto é, uma interação entre emissor e receptor". Tal afirmação leva à conclusão de que, quando se fala, espera-se que o outro, o receptor, também produza sentidos que o levarão a responder ao enunciado.
É através dessas interações que se concretizam os textos, objetos de nossos estudos. O trabalho, aqui proposto, teve o objetivo de analisar, nas dimensões textuais e discursivas, obras musicais de uma época que marcou a história do Brasil, a ditadura militar (1964 -1985). Por meio dessa análise, buscou-se entender aspectos semânticos e ideológicos que fizeram com que algumas das obras musicais da época fossem censuradas.
O objeto fundamental, portanto, desta pesquisa, é a análise de três obras musicais censuradas da época: "Samba do Arnesto" (1953), de autoria do cantor e compositor Adoniran Barbosa; "Cálice", parceria dos também cantores e compositores Chico Buarque e Gilberto Gil; e "Roda Viva", de Chico Buarque. A escolha pela análise de tais canções se deu pelo fato de existir uma riqueza ideológica muito grande da época em que essas obras foram compostas. Essas ideologias envolviam a rejeição ao governo ou ao comportamento da população diante de seus abusos. Apesar de se tratar de músicas censuradas, algumas delas ainda conseguiram repercussão breve no contexto da época. O motivo pelo qual isso ocorreu envolve aspectos semânticos tanto das sentenças que compunham as músicas quanto lexicais, que por vezes não eram entendidos facilmente pelo avaliador/censurador. Fez-se necessário, então, identificar a carga semântica das sentenças ou das palavras entendidas pelos examinadores, como também a intenção do compositor ao escrevê-las. Centralizaram-se, então, em torno desses dois interesses – estudo do léxico e exame da ideologia, sem abandonar os estudos pragmáticos e contextuais – os rumos que o trabalho procurou alcançar.
O artigo busca explicar e identificar aspectos que ultrapassam as questões textuais, enxergando neles um reflexo da realidade. A partir dessas considerações, propôs-se como problema de pesquisa a questão que indaga sobre o maior ou menor grau de comprometimento entre a letra das canções e sua repercussão no contexto social.
REFERENCIAL TEÓRICO
Para que haja comunicação é preciso interação por meio dos usuários da língua, ou seja, é necessário o uso de textos e, consequentemente de discursos que fazem do texto seu refratário. Apesar de se constituírem como elementos organizadores do texto, pode-se separá-los para entender a maneira como cada um se apresenta no universo linguístico, bem como as influências que caracterizam um e outro, sejam influências textuais/discursivas ou extratextuais.
A palavra "texto", que possui raiz etimológica na palavra texēre, proveniente do latim e que significa tecer, é resultado de uma unidade temática, um formato e um contexto, aos quais os dois primeiros são inseridos, dando, desta forma, significado a eles, de acordo com Teun Van Dijk (1980, p. 18 apud GUIMARÃES, Elisa, 2009, p. 12). A unidade temática é, portanto, responsável por estabelecer um tema, ou seja, apresentar uma informação tomada como conhecida e, desenvolvê-la mediante a apresentação de novas informações, ou seja, o rema. O formato do texto é dado tanto por intermédio dos tipos e gêneros textuais quanto por meio de unidades formadoras chamadas macroestruturas e microestruturas. A respeito da tipologia textual, pode-se dizer que ela estabelece uma organização que carrega consigo um objetivo específico (narrar, descrever e argumentar, por exemplo) e, quanto aos gêneros textuais, seguindo as regras pré-estabelecidas por cada um deles, refletem a série de mudanças que ocorrem na sociedade. Ingedore Villaça Koch e Vanda Maria Elias em seu livro Ler e escrever – Estratégias de produção textual apresentam o conceito do pensador russo Mikhail Bakhtin (1992) sobre a noção dos gêneros. Pode-se observar abaixo:
Todas as esferas da atividade humana, por mais variadas que sejam, estão relacionadas com a utilização da língua. Não é de surpreender que o caráter e os modos dessa utilização sejam tão variados como as próprias esferas da atividade humana [...]. O enunciado reflete as condições específicas e as finalidades de cada uma dessas esferas, não só por seu conteúdo temático e por seu estilo verbal, ou seja, pela seleção operada nos recursos da língua – recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais – mas também, e sobretudo, por sua construção composicional. (BAKHTIN, 1992 apud KOCH & ELIAS, 2012, p. 55)
Pelo que se observa na citação acima, a comunicação humana é baseada na utilização da língua por intermédio de sua atividade. Os gêneros textuais encontram-se no âmbito da "construção composicional", como expõe Bakhtin, ou seja, são responsáveis por submeter a organização textual às ocorrências de ordem social que se verificam também nas diversas maneiras de comunicação.
Retomando agora o que foi discorrido sobre os tipos textuais, ainda pode-se explorar a maneira pela qual estes são construídos. Ingedore Koch e Vanda Elias ainda falam sobre o tema mostrando que através da escolha lexical, estruturação, uso de determinados advérbios, tempos verbais e dos dêiticos, pode-se reconhecer o tipo textual predominante em um texto (2012, p.63).
Além do formato textual mediante a utilização dos tipos e gêneros textuais, ainda se pode discutir o assunto levando-o para o ambiente micro e macroestrutural. A microestrutura, de acordo com Elisa Guimarães em seu livro Texto, discurso e ensino, diz respeito ao conjunto articulado de frases, resultante da conexão dos mecanismos léxico-gramaticais que integram a superfície textual, enquanto a macroestrutura é a estrutura que se identifica como o significado global do objeto do texto (2009, p.11). Parafraseando-se o que foi dito anteriormente, pode-se compreender a microestrutura como responsável pelos elementos de coesão do texto, aqueles que dão atenção às ligações estabelecidas entre os elementos dele. Relacionado a isso, há o entendimento do porquê a origem latina para a palavra texto, texēre, é tão apropriada. Visto que o significado da palavra remete à ideia de tecer, entende-se que ao produzir um texto, escolhem-se a todo o momento, dentro do paradigma da língua, palavras agrupadas de forma a tornar o texto harmonioso, organizado e bem construído ou tecido. A macroestrutura refere-se à coerência que o texto deve apresentar. Tal coerência deve, portanto, trabalhar juntamente com a coesão para que o texto se torne claro e atinja o seu objetivo. A coerência é um aspecto que envolve não apenas o enunciador, mas também o enunciatário. Ambos devem compartilhar conhecimentos, visto que ambos são produtores de sentido. A esse respeito, pode-se dizer então que, para que haja a interação, o enunciador deve levar em conta as características do seu enunciatário.
Embora se tenha falado sobre as unidades estruturantes do texto, ainda há uma que não se encontra no texto propriamente dito: o contexto. A questão da contextualização é de extrema importância, pois o contexto gera a comunicação no sentido de que somente por meio dele é que se podem entender as relações existentes entre os usuários da língua e os objetivos pelos quais eles escolhem determinados enunciados ou maneiras de dizer. Conforme Teun Van Dijk fala em seu livro Discurso e contexto – uma abordagem sociocognitiva, "a contextualização é um componente fundamental de nosso entendimento da conduta humana, em geral, e da literatura e outros textos e discursos, em particular. Na verdade, os con-textos são assim chamados porque, etimologicamente, eles vêm junto com os 'textos'" (2012, p. 21). Não se poderia analisar corretamente a intencionalidade e a ideologia presentes nas obras musicais escolhidas sem uma base histórica que explicasse as condições de produção dos textos. É impossível analisar o discurso e a intencionalidade dos textos sem os contextos, pois um anda ao lado do outro no processo comunicativo.
Van Dijk ainda explora um pouco mais a natureza dos contextos ao explicar como se dão o entendimento e o processo de construção da coerência dos textos e dos discursos:
Uma sequência de sentenças de um texto é coerente se os usuários da língua forem capazes de construir modelos mentais dos eventos ou fatos sobre os quais estão falando ou ouvindo, e se forem capazes de relacionar entre si os eventos ou fatos que estão nesses modelos, por exemplo por meio de relações de temporalidade ou causalidade. (2012, p.90)
O raciocínio abordado nos leva a uma conclusão lógica de que é necessário que haja uma contextualização comum entre os falantes para que se entenda o que determinada pessoa deseja transmitir. O autor utiliza a expressão "modelos mentais" para se referir às experiências e associações da fala com as situações, diferentes de indivíduo para indivíduo. Por esse motivo, pode-se dizer que os modelos mentais são variáveis, enquanto as situações são as mesmas.
Portanto, para entender o sentido de um texto e de um discurso, é necessário que tanto o que escreve ou o que fala, como o que lê ou escuta devem compartilhar um conhecimento, ou seja, "o conhecimento 'controla' a produção e compreensão do discurso". (DIJK, Teun Van. 2012, p.180) No caso das canções de protesto, tanto compositores quanto militares sabiam da maneira agressiva como estes estavam controlando o país, motivo pelo qual os compositores queriam expor a real situação.
Quando se fala sobre discurso, há a ideia de que ele se materializa no texto, porém, ele existe mesmo que não se efetue essa materialização. Entretanto, algumas características podem ser percebidas e analisadas quando ele se materializa, como por exemplo, a posição social, cultural e política do falante. É por isso que Elisa Guimarães, em seu livro já citado diz que "é próprio do discurso privilegiar a natureza funcional e interativa e não o aspecto formal e estrutural da língua – o que é, como vimos, característica do texto" (2009, p.89). No discurso, busca-se entender as relações exteriores do texto, bem como a maneira em que este será recebido por parte do enunciatário, produzindo nele alguma reação.
Outra característica dos discursos é o fato de que eles estão em constante conversa com outros discursos (interdiscursividade), assim como os textos e a questão da intertextualidade. De acordo com os estudos de Bakhtin a respeito do dialogismo, pode-se entender que a formação de um discurso não se dá apenas com a voz daquele que o produziu no momento, mas podemos dizer que ele o (re)produziu, pois um conjunto de outras vozes já se faziam presentes no seu discurso.
Ronaldo de Oliveira Batista e Alexandre Huady Torres Guimarães em seu livro Linguagem, comunicação, ação – Introdução à Língua Portuguesa dizem a respeito da comunicação:
Algumas teorias definem duas categorias: o discurso, como as formas de atuação na interação verbal por meio de um texto – assim o discurso são os efeitos de sentido, as manifestações efetivas assumidas por usuários da língua em diferentes situações com diferentes propósitos de comunicação e expressão; o texto, em seu sentido efetivo, visto então como forma linguística, materialidade essencialmente definida pelas relações gramaticais e organizações lexicais. (2012, p. 66)
A definição apresentada acima faz com que se chegue à conclusão de que o discurso se define como o que está além do texto, os efeitos de sentido que os textos produzem bem como as posições adotadas pelos usuários da língua, tanto enunciador quanto enunciatário, quando produzem ou recebem a mensagem.
Há, portanto, diferentes tipos de discursos. A título de exemplificação, pode-se falar sobre o discurso político, racista, autoritário. Cada discurso é responsável por carregar sua ideologia e possui sua maneira de se comportar. Neste trabalho, serão analisados os aspectos de dois tipos discursivos: o autoritário, quando se fizer referência aos militares da ditadura, e o de protesto, quando as canções ou os artistas que as produziram estiverem em questão. O que se pode concluir até aqui é que texto e discurso andam juntos e que, ambos estabelecem a comunicação ou a interação entre os participantes do ato da fala. À medida que se produz um texto, há a construção de relações entre os usuários, referente aos efeitos de sentido produzidos entre eles. Trata-se de relações que geram nos usuários a oportunidade de resposta aos textos. Ao mesmo tempo, são utilizados mecanismos textuais para se fazer entender e alcançar os objetivos comunicativos.
MÉTODO
O método que foi empregado na formação do artigo buscou, por meio de textos teóricos, a explicação da ideologia presente bem como a construção semântica – aspectos que envolvem não somente a sentença, mas também o léxico – nas três composições, já citadas, do período ditatorial. Muitas músicas nesse período da história foram alvo de censura, porém para uma pesquisa mais profunda e detalhada do assunto, optou-se focalizar a atenção em apenas três.
Dentre os pontos teóricos, nos quais o trabalho se centralizou, foi de grande importância o estudo do contexto. Visto que estudar e analisar o discurso envolve sempre o uso da linguagem não se pôde abandonar o estudo pragmático. É nesse campo que o contexto surge. Analisar como ele pode mudar o ponto de vista em todas as situações humanas foi de ajuda para o entendimento das ideologias presentes. Por esse motivo, como o trabalho se centralizou em um período específico da História, nesse caso, o período ditatorial, entender o que se passou na época é de suma importância.
Portanto, pode-se dizer que, em termos gerais, a formação do trabalho de iniciação científica buscou, primeiramente, levantar algumas canções do período e estabelecer quais delas seriam analisadas. Feito isso, o estudo da pragmática e do contexto em suas formas teóricas colaborou para a aplicabilidade do conteúdo ao contexto histórico da época. Por fim, os estudos semânticos e ideológicos foram realizados, contribuindo, assim, para a análise composicional das músicas em questão.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Assim como os textos, os discursos também possuem maneiras de se organizar. A respeito disso, pode-se atribuir à organização discursiva dois campos fundamentais: o sintático e o semântico. Sobre a organização sintática ou a sintaxe discursiva, como nomeia José Luiz Fiorin em seu livro Linguagem e Ideologia (2007, p. 17-19), conclui-se que são as estratégias discursivas conscientes, ou seja, a estruturação que espera produzir no enunciatário reações ou impressões. Dentro, ainda, da sintaxe discursiva, pode-se comentar a respeito da instauração dos dêiticos que revelam intenções diferentes, dependendo da escolha dos usuários da língua. Por exemplo, os chamados dêiticos enunciativos (eu - tu - agora) geram no enunciatário efeitos de sentido de proximidade e subjetividade, enquanto os dêiticos enuncivos (ele - ali - então) produzem efeitos contrários, de distanciamento e objetividade. No processo comunicativo, cada um desses recursos possui seu lugar e, a utilização de um ou de outro depende da real intenção dos usuários da língua.
Quando se fala a respeito de semântica discursiva, diz-se que essa é influenciada pelo meio social e a época em que o discurso foi produzido. Isso ocorre porque cada época possui temas, ideias e discursos diferentes abordados pelas pessoas, que satisfazem, portanto, suas necessidades comunicativas. A semântica discursiva em combinação com a sintaxe discursiva produz noções de dominação, sujeição, indução e manipulação, que por sua vez, formam o conceito de ideologia nas relações humanas.
"A ideologia é constituída pela realidade e constituinte da realidade. [...] diz-se que ela é determinada, em última instância, pelo nível econômico." (FIORIN, 2007, p. 30) O conceito de ideologia surgiu com Marx a partir de suas reflexões sobre o trabalho, os trabalhadores e o salário. Percebia-se que havia duas considerações a respeito da relação trabalho x salário, uma delas estava no âmbito da essência, ou daquilo que realmente ocorria e a outra estava na margem da aparência, ou a mera idealização que era representada. Os trabalhadores eram explorados, pois trabalhavam para enriquecer seus chefes e não a si próprios, exemplificando, assim, o que ocorria no nível da essência. No nível da aparência, tudo era considerado normal, tendo em vista que havia a relação de homens livres que vendiam seu trabalho para um que os pagava, mesmo não sendo um pagamento condizente ao trabalho realizado. Do ponto de vista ideológico, portanto, entende-se que em todas as relações, apresentam-se as ideias de duas classes, a do dominante e a do dominado. Mesmo que os que são explorados reivindiquem ou lutem pelos seus direitos, ainda assim, a ideologia que prevalecerá será a da classe dominante.
Uma formação ideológica deve ser entendida como a visão de mundo de uma determinada classe social, isto é, um conjunto de representações, de ideias que revelam a compreensão que uma determinada classe tem do mundo. [...] essa visão de mundo não existe desvinculada da linguagem. Por isso, a cada formação ideológica corresponde uma formação discursiva, que é um conjunto de temas e figuras que materializa uma dada visão de mundo. (FIORIN, 2007, p. 32)
A classe dominante do período ditatorial, sem dúvida, era a dos militares, enquanto artistas, jovens estudantes e boa parte da população, com medo do que poderia ocorrer a eles, constituíam a classe dominada. As ideias repressivas e autoritárias dos militares eram materializadas através do discurso dominador que se apresentava através das ações violentas e muitas vezes sem explicações. A classe dominada procurava expor sua voz à medida que protestava ou exigia seus direitos, mesmo que isso causasse problemas aos que participavam de tais manifestações.
1) ADONIRAN BARBOSA "SAMBA" COM O "SAMBA DO ARNESTO"
O Arnesto nos convidou prum samba, ele mora no Brás
Nóis fumos não encontremos ninguém
Nóis vortermo com uma baita de uma reiva
Da outra vez nóis num vai mais
Nóis não semos tatu!
No outro dia encontremo com o Arnesto
Que pediu desculpas mais nóis não aceitemos
Isso não se faz, Arnesto, nóis não se importa
Mas você devia ter ponhado um recado na porta
Um recado assim ói: "Ói, turma, num deu pra esperá
Aduvido que isso, num faz mar, num tem importância,
Assinado em cruz porque não sei escrever"
No ano de 1974, Adoniran Barbosa se preparava para lançar um LP, porém, o governo do general Garrastazu Médici estava no poder e por conta de duas músicas que o LP continha, a prensa não foi liberada. Uma dessas canções foi a música, de sua própria autoria, intitulada "Samba do Arnesto". Vale ressaltar que essa mesma canção já havia sido gravada e vendida em um outro LP antes mesmo de os militares assumirem o comando do país. As palavras de Celso Campos Jr. em seu livro Adoniran - Uma Biografia explicam o motivo da censura:
Os erros de português contidos na letra de "Samba do Arnesto" irritaram os censores, que, além de proibirem o disco, ainda sugeriram ao produtor que encaminhasse o compositor para o Mobral - sigla do malfadado Movimento Brasileiro de Alfabetização, engendrado pelos militares em 1967 e que passou longe da meta original de erradicar o analfabetismo no país. (CAMPOS JÚNIOR, 2009, p. 480)
Adoniran, anos antes, já havia comentado como ele compunha as canções, o que explica o fato de a letra dessa música conter tantos erros de português de acordo com a norma-padrão. Ele disse:
"[...] As minhas letras tenho impressão que pegaram porque nelas está o sentimento do povo. Escrevo errado como o povo fala. Prefiro dizer 'nóis deve' do que 'nós devíamos'. É mais autêntico. O meu samba é uma mistura de italiano com preto. Tenho cem amigos, dos quais oitenta são pretos. Eu ouço, presto atenção. Depois faço as letras. Escrever errado é a coisa mais difícil que existe." (CAMPOS JÚNIOR, 2009, p. 423)
O cantor e compositor, com sua linguagem popular, poderia até agradar os ouvidos da população e fazer com que ela se sentisse próxima ao que ouvia, porém, com essa composição, Adoniran Barbosa acabou atacando o princípio fundamental que os militares buscavam alcançar, a formação de uma nação ordeira e que servisse como modelo. Com certeza, o linguajar popular em uma música que teria repercussão em todo o território nacional saía do que era esperado pelos militares. A música não combatia os atos do governo, como iremos analisar em outras canções mais à frente, entretanto, ela saía dos moldes do governo preconceituoso da época.
Ao agir dessa maneira, o governo demonstrou extrema falta de respeito para com a parcela da população que falava da maneira expressa na música. Além disso, foi sugerido que o cantor frequentasse o Movimento Brasileiro de Alfabetização, como se ele fosse analfabeto ou semianalfabeto pelo fato de compor a música daquela maneira.
O uso feito pelo compositor das palavras "Arnesto", "prum", "nóis", "fumos", "encontremos", "vortemo", "reiva", dentre outras, é a representação da fala de pessoas de classes sociais mais pobres. Ao falar dessa maneira, apesar de conseguirem atingir o objetivo principal, o da comunicação, essas pessoas sofrem discriminação da parte de pessoas de classes sociais mais altas, que pode resultar em humilhação. Adoniran queria mostrar a realidade das pessoas, muitos até mesmo amigos dele, como ele próprio mencionou, e não ridicularizá-los. Porém, a partir do momento em que o governo os classificou como analfabetos e que a letra da canção não condizia com o tipo de país que eles queriam formar, houve, então, preconceito linguístico e falta de respeito às suas variações.
Conclui-se, então, que a ideologia dominante do governo, materializada no seu discurso autoritário, fez com que o cantor fosse obrigado a retirar de seu LP a canção gravada.
2) CHICO BUARQUE E GILBERTO GIL PROVAM DO "CÁLICE"
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue
Como beber dessa bebida amarga
Tragar a dor, engolir a labuta
Mesmo calada a boca, resta o peito
Silêncio na cidade não se escuta
De que me vale ser filho da santa
Melhor seria ser filho da outra
Outra realidade menos morta
Tanta mentira, tanta força bruta

Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado eu permaneço atento
Na arquibancada pra a qualquer momento
Ver emergir o monstro da lagoa

De muito gorda a porca já não anda
De muito usada a faca já não corta
Como é difícil, pai, abrir a porta
Essa palavra presa na garganta
Esse pileque homérico no mundo
De que adianta ter boa vontade
Mesmo calado o peito, resta a cuca
Dos bêbados do centro da cidade
Talvez o mundo não seja pequeno
Nem seja a vida um fato consumado
Quero inventar o meu próprio pecado
Quero morrer do meu próprio veneno
Quero perder de vez tua cabeça
Minha cabeça perder teu juízo
Quero cheirar fumaça de óleo diesel
Me embriagar até que alguém me esqueça
No ano de 1973, ainda debaixo do governo Médici, Chico Buarque e Gilberto Gil escreveram a canção acima, intitulada "Cálice". O título da música é o resultado do jogo de palavras provocado pela homonímia homofônica entre o substantivo "cálice" e o verbo "calar" conjugado em adição da partícula "se", formando a palavra "cale-se". O jogo de palavras é revelador da intenção dos autores, os quais visavam expor que a mídia e até mesmo músicas e outras manifestações artísticas eram censuradas da parte do governo, sofrendo, então, ação do calar imposto pelo sistema ditatorial da época.
A música utiliza-se da estratégia da intertextualidade em seu refrão com o texto bíblico de Lucas, capítulo 22, versículo 42, em que Jesus roga a seu Pai para que o cálice seja afastado dele. O versículo citado diz: "Pai, se queres, afasta de mim este cálice". Nessa ocasião, a palavra cálice, a que Jesus fez referência, indica o sofrimento que ele padeceria posteriormente. Quando proferiu essas palavras, Jesus estava no Monte das Oliveiras com seus apóstolos e sabia o que ocorreria consigo: morreria cruelmente, pregado em uma estaca de tortura, além de ser julgado como criminoso.
Chico Buarque e Gilberto Gil aproveitam-se desse ato emotivo de Jesus Cristo, que implora para que o sofrimento se afaste dele, para estabelecer relação entre a vida de Jesus e a situação vivida no Brasil no período ditatorial. O "cálice", portanto, pode ser entendido tanto como o sofrimento vivido pelas pessoas que foram repreendidas severamente pela ditadura quanto como o ato de ordenar que alguém se cale. Sobre esse último, os atos institucionais eram responsáveis por fazer com que músicas como essa fossem caladas ou censuradas. Suplicar, portanto, era sinal de que a população já se encontrava fadada pelo fato de não poder expressar sua opinião.
Na segunda estrofe da canção, Chico e Gil continuam a mostrar sua indignação por indicar o conteúdo encontrado dentro do cálice, uma bebida amarga que gera dor e sofrimento pela labuta. A bebida a que eles se referem significa o sistema repressor brasileiro. Ambos os autores se recusavam a aceitar os mandamentos opressores do governo e, além disso, não queriam ser calados por ele. Ao contrário, o desejo dos compositores era o de expressar suas opiniões de maneira que as pessoas também pudessem ficar a par de seus pensamentos.
O terceiro verso da segunda estrofe foi construído de modo a expressar uma figura de linguagem, a metáfora, quando apresenta um peito que representa os sentimentos e as emoções do povo brasileiro e que toma o lugar da boca, que se encontra impossibilitada de agir porque está calada, vetada. Mesmo não sendo possível expressar-se livremente, os órgãos repressores não eram capazes de oprimir ou censurar os sentimentos das pessoas, que se encontravam contidos no peito. Embora os militares buscassem silenciar as pessoas, a tentativa deles foi em vão, pois mesmo que houvesse a proibição de algumas músicas e outras expressões, as pessoas tinham noção do que acontecia e, mesmo com as bocas silenciadas, tinham seus pensamentos e sentimentos dentro de si, que falavam mais alto do que qualquer expressão oral.
Ainda nessa estrofe, pergunta-se "De que me vale ser filho da santa?", os autores novamente se comparam a Jesus. A pergunta revela que o sofrimento de Cristo era algo que não podia ser evitado, afinal, ele havia vindo à Terra para cumprir o objetivo principal de dar a sua vida em prol das pessoas. A pergunta também aponta um grau de insatisfação de Jesus pela forma como ele iria ser morto - condenado como um criminoso. Aplicando os versos cinco, seis e sete aos acontecimentos do país, Chico Buarque e Gilberto Gil expõem explicitamente a vontade de pertencer a uma realidade diferente da vivenciada por eles durante o período ditatorial. Para eles, não havia benefícios em ser filho de Maria, como Jesus era, sem que pudessem expressar seus desejos, medos ou opiniões. A estrofe termina, portanto, acusando o país de viver uma realidade calcada pela mentira e que tinha como representantes pessoas que usavam da força bruta para impor as ideias do sistema.
O pronunciamento de que permanecer calado é algo difícil é apresentado na terceira estrofe. Essa dificuldade é agravada pelo fato de atos repressores ocorrerem sem que se pudessem expô-los. O uso, portanto, da expressão "calada da noite" indica a intenção dos militares para que seus atos fossem escondidos, como que se estivessem na escuridão. Logo, "acordar" indicaria que tais atos podiam ser vistos e deveriam ser expostos.
Quando se diz "quero lançar um grito desumano", na terceira estrofe e, "essa palavra presa na garganta", presente na quarta estrofe, Maria Camila Bedin, em sua tese de mestrado intitulada Aspectos linguistico-discursivos nas composições de Chico Buarque de Hollanda, retoma a intertextualidade do texto, pois faz alusão ao grito dado por Jesus expresso no livro bíblico de Mateus, capítulo 27, versículo 46. Nesse versículo, Jesus, que já se encontra pregado na estaca, suplica ao seu Pai: "'Eli, Eli, lama sabactâni? isto é: 'Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste?'". Maria Camila Bedin conclui seu pensamento a respeito desses versos da canção, dizendo: "A súplica de Jesus seria, na canção, a súplica dos brasileiros, indignados e cansados de toda aquela situação repressora". (2007, p. 97) Mediante esse grito ou súplica, a população poderia ser escutada.
A letra ainda aponta para a atenção dada em face de um silêncio atordoante, ou seja, um silêncio que chega a perturbar. Há, no sétimo verso da terceira estrofe, a colocação da população em uma arquibancada, que espera o "monstro da lagoa" emergir. O livro bíblico de Isaías, capítulo 27, versículo 1, apresenta um monstro marinho que seria morto por Deus. O texto diz: "Naquele dia, Jeová, com a sua espada dura, e grande, e forte, voltará sua atenção para o leviatã, a serpente deslizadora, sim, para o leviatã, a serpente sinuosa, e certamente matará o monstro marinho que há no mar". A indicação da morte desse monstro marinho, que seria representado pelo governo repressivo, mostra que a esperança depositada era de que apenas Deus seria capaz de livrar a população brasileira daquela situação, assim como somente Deus poderia livrar Jesus do sofrimento, ressuscitando-o.
A penúltima estrofe da música faz referência aos israelitas que, como povo escolhido de Deus, não comia carne de porco, de acordo com a ordem dada por Ele no livro de Levítico, capítulo 11, versículo 7, que diz: "Também o porco, porque tem casco partido e tem fenda no casco, mas não é ruminante. É impuro para vós". Entende-se que a "porca" mencionada por Chico e Gil na música é, dessa forma, o governo da época, que por intermédio de suas leis opressivas não se adequava às necessidades da população. Muito pelo contrário, apenas reprimia a opinião pública e não saía do lugar em que se encontrava. O Brasil não via mudanças significativas. O mesmo ocorre no segundo verso dessa estrofe, que utiliza a imagem de uma faca que já não é capaz de cortar, ou seja, os instrumentos governamentais não eram qualificados para liderar o país. Em vista desses ataques à ditadura, o terceiro verso diz que há a dificuldade de "abrir a porta", ou seja, deixar que a melhoria entre em ação. Essa dificuldade estava ligada, principalmente, ao fato de que a voz do povo não era levada em consideração e, assim, não se podia entender as reais necessidades da população.
Os autores da canção terminam a quarta estrofe com o questionamento "De que adianta ter boa vontade?". Mesmo que houvesse atos "homéricos", ou, ligados ao heroísmo, essa boa vontade era vetada pelo sistema governamental. Há, novamente, a metáfora apresentada na segunda estrofe, porém, referindo-se agora à "cuca", ou seja, às mentes das pessoas. Ainda sobre essa parte da música, Maria Camila Bedin conclui que "a censura atingia o superficial, mas não conseguia adentrar as profundezas da alma humana". (2007, p. 103)
Por fim, a quinta e última estrofe da música apresenta a ideia da liberdade tanto esperada e desejada. A utilização em quatro versos dessa estrofe do verbo "querer" conjugado na primeira pessoa do presente do indicativo aponta o desejo intenso de mudar a situação vivida e poder expressar aquilo que as pessoas quisessem, sem medo de ser reprimidas. Em uma dessas expressões, é dito que se quer morrer do próprio veneno. Isso indica que a população já estava cansada de não ter o direito de escolher o que dizer ou fazer. Sofrer as represálias do governo, que incluíam até mesmo atos violentos, sem ter culpa era algo que indignava as pessoas. Era preferível sofrer por uma escolha errada do que pela falta de oportunidade de escolher.
Cheirar fumaça de óleo diesel e ficar embriagado foram alusões aos atos violentos praticados pela ditadura, que usavam essa artimanha para fazer com que as pessoas perdessem a noção da realidade e, dessa maneira, falassem aquilo que eles queriam saber. O desejo dos compositores ao finalizar a canção com esses versos era o de poder expressar livremente as suas ideias e opiniões de modo que não fossem castigados por estarem contra as ideias do governo.
Vale ressaltar que durante a apresentação cantada da música, por várias vezes pode-se ouvir que a palavra "cálice / cale-se" é mencionada. Esse uso da palavra, repetidas vezes, enfatiza o quanto a ditadura queria calar qualquer expressão que fosse de encontro aos seus ideais. Outra palavra que recebe destaque é a palavra "pai", que é utilizada como símbolo de súplica ou clamor a Deus para que o sofrimento imposto pela ditadura acabe.
Dessa maneira, a música "Cálice", exprime muito bem a luta dos oprimidos contra os opressores. Além disso, saber que a música foi censurada ressalta que a ideologia que predomina é a da classe dominante, que no período era a dos militares.
3) CHICO BUARQUE "RODA" NAS MÃOS DA CENSURA - "RODA VIVA", UMA DE SUAS COMPLICAÇÕES COM O GOVERNO
Tem dias que a gente se sente
Como quem partiu ou morreu
A gente estancou de repente
Ou foi o mundo então que cresceu
A gente quer ter voz ativa
No nosso destino mandar
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega o destino pra lá
(Refrão)
Roda mundo, roda-gigante
Rodamoinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração

A gente vai contra a corrente
Até não poder resistir
Na volta do barco é que sente
O quanto deixou de cumprir
Faz tempo que a gente cultiva
A mais linda roseira que há
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega a roseira pra lá
(Refrão)
A roda da saia, a mulata
Não quer mais rodar, não senhor
Não posso fazer serenata
A roda de samba acabou
A gente toma a iniciativa
Viola na rua, a cantar
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega a viola pra lá
(Refrão)
O samba, a viola, a roseira
Um dia a fogueira queimou
Foi tudo ilusão passageira
Que a brisa primeira levou
No peito a saudade cativa
Faz força pro tempo parar
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega a saudade pra lá
(Refrão)
"Roda Viva" foi uma canção criada no ano de 1967 por Chico Buarque. A música compunha o repertório da peça teatral que levava o mesmo nome da composição acima. Uma curiosidade a respeito da peça é que ela não tinha cunho político, porém, "na noite de 17 de julho, a organização paramilitar CCC (Comando de Caça aos Comunistas) invadiu e depredou o teatro, destruiu o cenário e espancou violentamente os atores". (HOMEM, 2009, p. 55) Após esse ato de extrema violência, outro episódio semelhante ocorreu em Porto Alegre, pondo um fim à peça. Chico acredita que a intenção dos militares era atacar outra peça que estava em cartaz na mesma noite, que atacava o sistema ditatorial, entretanto, como a peça em questão já havia terminado, eles resolveram não perder a viagem e atacar "Roda Viva".
"A peça criticava a situação do artista, esmagado pela mídia" (PINHEIRO, 2011, p. 59). Como já mencionado, a música a ser analisada foi criada para o espetáculo, porém, há vários pontos dela que podem ter indicado uma crítica à ditadura e à censura. A indicação do sentimento do eu-lírico da música como uma pessoa que "se sente como quem partiu ou morreu", pode ter sido entendida pelos avaliadores como alguém que teve seus sentimentos e opiniões reprimidos pelo governo e que, dessa maneira, encontrava-se morto, estático e sem emoções. Nos versos seguintes, há a provável indicação de que o mundo pode ter crescido de maneira a deixar o Brasil para trás. Os quatro últimos versos da primeira estrofe, que precedem o refrão, apresentam a vontade de um povo, quando se faz uso da expressão "a gente", indicação do pronome "nós" inclusivo. Diz-se que o povo "quer ter voz ativa" e no próprio destino mandar. Havia, portanto, a insatisfação da população que vivia debaixo de regras absurdas e repressões violentas, sem poder expressar seus desejos e vontades.
No mesmo momento em que se diz querer ter voz ativa, há o aparecimento da "roda-viva", que carrega o destino de cada brasileiro para o lugar que ela estipula. O Dicionário Priberam da Língua Portuguesa define o termo roda-viva como andar em grande azáfama, movimento contínuo. "Azáfama" pode significar, por sua vez, muita pressa ou, até mesmo, falta de ordem, confusão. A escolha do título da música, portanto, em si só já carrega o significado de um sistema que atropela qualquer coisa que esteja impedindo o seu caminho ou que vá de encontro aos seus ideais, mas, ao mesmo tempo, pode indicar que o governo vivia em constante confusão, bagunça.
O movimento intenso expresso no refrão da canção mostra como a chegada da ditadura e, principalmente, da instauração dos órgãos de censura, intensificados pela criação do Ato Institucional de número cinco - o AI-5 - pegou a população de surpresa. Além disso, não se sabia, muitas das vezes, o porquê de algumas leis ou atos repressores. O tempo, portanto, havia rodado num instante, como que em um piscar de olhos.
A segunda estrofe apresenta o posicionamento de alguns que, sem temer as represálias do governo, andavam contra a corrente até não poder resistir, ou seja, contra a ideologia dominante. A "roseira" mencionada na música pode ser entendida como os sentimentos dentro da pessoa, que foi cultivada, mas que sofreu as ações negativas da ditadura, cortando a roseira ou os sentimentos das pessoas.
A terceira estrofe começa apresentando um ponto de vista totalmente disfórico em relação aos acontecimentos. Diz-se nessa estrofe: "a roda da saia, a mulata não quer mais rodar (...) Não posso fazer serenata, a roda de samba acabou (...)". Todos esses versos mostram como o governo proibia e inibia a opinião pública e os comportamentos que iam de encontro aos ideais militares, que, conforme eles próprios, colaborariam para a formação de um Brasil melhor. Mesmo quando se tentava agir para mudar a situação do país, ou quando se tentava apresentar a voz do povo, ou seja, quando a iniciativa era tomada, a roda-viva, ou o sistema ditatorial, com seu movimento desenfreado levava tudo embora.
A última estrofe mostra o final que o samba, a roseira e a viola - elementos que simbolizavam os sentimentos da população, a liberdade esperada e a própria voz, por muitas vezes silenciada - tiveram. Todos eles acabaram na fogueira e, até mesmo a saudade que se encontra no peito não encontra espaço no cenário conturbado e agitado promovido pela ditadura.
CONCLUSÃO
A partir das considerações feitas por intermédio deste trabalho de iniciação científica, pôde-se concluir que os textos servem de instrumento comunicacional das pessoas. Cada produção, seja ela escrita, oral, imagética ou até mesmo sincrética, apresenta-se no mundo com um objetivo, uma intenção, que pode ser o de simplesmente informar, descrever, narrar algo até fornecer instruções, argumentar, influenciar e persuadir alguém. Todas as manifestações que envolvem a interação entre as pessoas, instaurando, portanto, um enunciador e um enunciatário, ambos capazes de produzir textos e dialogar com base em seus próprios pensamentos e ideias, resultam na formação de uma sociedade que faz uso da comunicação para agir no mundo.
O tema escolhido para a pesquisa - as canções do período ditatorial brasileiro (1964-1985) - revela que o contexto situacional é de grande importância quando se deseja analisar um discurso histórico. As relações de poder que os falantes da língua exercem sobre outros nem sempre são apresentadas no momento exato de produção dos textos. Em muitos casos, para se entender essas relações, faz-se necessário o estudo do contexto.
A união das construções textuais, com base nos princípios básicos de coesão e coerência, com o contexto de criação dos enunciados, produz os efeitos de sentido dos textos. Tais efeitos, que podem determinar relações de objetividade, subjetividade, distanciamento, opressão, bem como sentimentos de liberdade, além de outros, são responsáveis por exprimir as ideologias que os textos carregam.
Este trabalho apresentou dois posicionamentos ideológicos: de um lado o governo ditatorial, com sua visão fechada a respeito do progresso e da ordem, e de outro a população oprimida, que sofria nas mãos dos ataques repressores da ditadura. Os ideais ditatoriais não permitiam que a opinião pública fosse manifestada, pois tinham medo de que essas opiniões influenciassem o modo de pensar da população e, dessa forma, o país não conseguisse encontrar as melhorias esperadas. Acreditavam, portanto, que ninguém além deles podia propor soluções para os problemas do Brasil. Esse pensamento foi responsável pela criação de um órgão de censura no país, o qual causou muitos problemas, principalmente para os artistas que, por meio de sua música, protestavam contra o governo e as decisões tomadas por ele.
Sobre a carga lexical e as relações semânticas observadas nas canções, pôde-se concluir que os compositores da época tiveram de usar de criatividade para conseguir escapar das ameaças de censura. O uso de palavras ambíguas ou com significados, muitas vezes, de difícil compreensão eram estratégias recorrentes e eficazes, pois nem sempre os avaliadores/censuradores conseguiam captar o real objetivo daquilo que havia sido escrito. Havia, portanto, a intenção, num primeiro momento, em não ser compreendido. Além do caráter ambíguo de algumas palavras específicas no conteúdo das canções, foi possível constatar que palavras soltas, fora de um contexto, não são capazes de estabelecer relações interativas entre os falantes, assim como se faz necessário que as palavras estejam inseridas dentro de um texto para que o discurso e a ideologia sejam materializados.
Em resumo, muito se pode discorrer a respeito dos textos, dos discursos e das ideologias presentes no mundo. Para não ser enganado por si próprio ou pela manifestação linguística de outro, é preciso que se busque o entendimento da intencionalidade discursiva de cada usuário da língua. Nem sempre o que se diz apresenta o significado básico da sentença ou do texto. Muitas vezes, faz-se necessário entender o que há por trás do texto para que se consiga o pleno entendimento dele e das intenções das pessoas.
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Acesso em 22/05/2013

Paulo Henrique Gonçalves Oliveira da Silva – [email protected]
Profª Drª Elisa Guimarães Pinto – [email protected]

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