CONSTRUÇÕES VISUAIS DE CONCEITOS ABSTRATOS: UMA ANÁLISE DA ÁRVORE DO PECADO DA IGREJA DE ST. ETHELBERT, SÉC. XIV

June 6, 2017 | Autor: Amanda Basilio | Categoria: Iconography, Medieval History, Medieval Studies, Medieval England, Medieval Art, Christian Iconography
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CONSTRUÇÕES VISUAIS DE CONCEITOS ABSTRATOS: UMA ANÁLISE DA ÁRVORE DO PECADO DA IGREJA DE ST. ETHELBERT, SÉC. XIV. Amanda Basilio Santos1 Carlos Alberto Ávila dos Santos2 RESUMO: Este trabalho trata-se de um recorte da pesquisa em andamento na Especialização em Artes, na linha Patrimônio Cultural, pela Universidade Federal de Pelotas. Em nossa pesquisa fazemos a análise de 16 pinturas parietais, datando do século XIV e XV, todas inglesas. Para este artigo selecionamos uma das pinturas, a Árvore do Pecado que se encontra na nave da Igreja de St. Ethelbert. Considerando a importância que a iconografia tinha no medievo, torna-se importante a análise das construções estabelecidas na representação de ideias abstratas, principalmente por estas ideias apresentarem padrões representativos, que estão sendo verificados na pesquisa em desenvolvimento. Palavras-chave: Pintura parietal; Medievo; Iconografia. VISUAL CONSTRUCTION OF ABSTRACT CONCEPTS: AN ANALYSIS OF THE TREE OF SINS IN THE CHURCH OF ST. ETHELBERT, 15TH CENTURY. Abstract: This work is part of a research in progress in the Specialization in Arts, in Cultural Heritage, of the Federal University of Pelotas. In our research we do the analysis of 16 wall paintings, dating from the fourteenth and fifteenth century, all in England. For this article we select one of the paintings, the Tree of Sin which is in the nave of the Church of St. Ethelbert. Considering the importance that the iconography had in the Middle Ages, it’s important to analyze the structures established in the representation of abstract ideas, mostly because these ideas show representative patterns that are being checked in research in development. Keywords: Wall Painting; Middle Ages; Iconography.

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Mestranda em História (PPGH – UFPel). Especialização em Artes em andamento (PPGA – UFPel). Membro do LAPI (Laboratório de Política e Imagem – UFPel). E-mail de contato: [email protected]. 2 Orientador. Doutor em Conservação e Restauro (UFBA), Mestre em História Teoria e Crítica da Arte. (UFRGS). E-mail de contato: [email protected].

INTRODUÇÃO A pintura parietal medieval inglesa ainda é muito pouco estudada no Brasil, porém é uma vasta fonte da iconografia medieval e, portanto, importante para a compreensão do período e das funções desta arte dentro do contexto de sua produção. As pinturas parietais versam sobre diferentes temáticas e possuem distintos propósitos dentro do espaço religioso. Na Inglaterra há poucas pinturas preservadas de um período anterior a conquista normanda, porém temos um número considerável de pinturas preservadas do século XII até a Reforma Protestante no século XVI, sendo que muito material se perdeu exatamente pelo ideal iconoclasta que acabou fazendo parte das propostas reformistas. Sobre as pinturas parietais na Inglaterra Anne Marshall observa que o provável é que as paredes das igrejas devem ter sido pintadas desde que começou o hábito de cobrir as paredes com estuque, incluindo as igrejas anglo-saxãs, embora pouco tenha restado para afirmar-se tal fato. A maior parte das pinturas parietais que restaram são do período normando em diante, tendo algumas do século XI que foram preservadas. É possível verificar uma dinâmica evolução estilística até o advento da Reforma Protestante, quando muda radicalmente a postura para com as pinturas parietais. Em questões técnicas, os materiais utilizados, são em geral, bastante simples, sendo dominante pigmentos terrosos, como o amarelo ocre e o vermelho, o que nos demonstra a sua grande disponibilidade. Estes tons ganhavam diversas variações em misturas com o preto e o branco, formando uma paleta bastante rica. Os pigmentos azulados são raros, e eram muito caros, considerando que o azul oriundo do lápis-lazúli custava mais que folhagem de ouro, e mesmo os azuis mais escuros e comuns, eram caros. O verde também é raro, mas por vezes é encontrado, feito a partir do sal de cobre, e também é possível encontrar o vermelho

escarlate.

(MARSHALL,

2000,

disponível

em

, acessado em 4 de julho de 2015). Estas questões técnicas e econômicas limitam as representações iconográficas que encontramos em solo inglês, e que estas estiveram presentes assim que se começou a ter uma base para pintar. Podemos, deste modo, ver que as imagens sempre possuíram um papel central dentro da arquitetura religiosa, e por consequência na vida social, sendo não apenas um patrimônio material, mas um patrimônio que resguarda elementos culturais do passado, sendo ao mesmo tempo um patrimônio imaterial.

Porém, seu estado atual é de bastante desgaste. Isso deve-se a alguns fatores específicos: primeiramente as pinturas parietais inglesas não se tratam (em sua massiva maioria) de afrescos, portanto elas começam a craquelar e desgastar-se muito mais rapidamente do que outras pinturas, pois são pinturas sob um estuque seco, que acaba por fazer com que a tinta depositada não se integre ao suporte. Em segundo lugar, exatamente por conta deste desgaste, muitas pinturas foram cobertas por estuque, pois não se encontravam em um estado esteticamente atraente. A maioria das pinturas parietais inglesas encontravam sob camadas de estuque e começaram a ser redescobertas no século XIX e no início do século XX, e este processo continua em andamento. Além destas questões técnicas e de escolhas estéticas, o fato de muitas destas pinturas não terem recebido intervenção deve-se a um legado da teoria de John Ruskin, pois para ele "o edifício é histórico se for preservado, não como era no momento em que foi concebido ou planejado, mas com todas as marcas que traz em si das diferentes épocas que testemunhou." (MENEGUELLO, 2008, p. 233). Nesta linha de pensamento, o desgaste é histórico, é uma pátina do tempo que deve ser incorporada à historicidade do edifício. Porém, embora seja amplamente conhecido, Ruskin não foi força única na Inglaterra, pelo contrário, grandes restaurações foram feitas na Inglaterra, que ele se opunha ferozmente por defender que muito se perdeu não por vandalismo, mas por tentativas malsucedidas de restauração. Os revivals históricos foram os maiores culpados dessa destruição. Segundo Meneguello o revival gótico tentava restituir as características originais dos edifícios, fundamentadas e justificadas pelos trabalhos da Cambridge Camndem Society e pelo Movimento Tractarian, destruindo, deste modo, elementos que consideravam estar poluindo a imagem de um gótico ideal. (MENEGUELLO, 2008, p. 238-239). Não foram apenas os edifícios que sofreram por conta das restaurações no século XIX, as pinturas parietais também tiveram sua cota de destruição: Paradoxalmente, foi a restauração das igrejas no século 19 que levou tanto a descoberta da maioria das pinturas que vemos hoje e, inversamente, a destruição de um número muito maior de outras. [...] Várias gerações de arquitetos rotineiramente despojou as paredes de seu

estuque antigo para revelar a pedra original.3 (ROSEWELL, 2008, p.

220. Tradução da Autora). O "desnudamento" das paredes deve-se a intenção de restaurar a igreja a um momento específico, a tentativa de deixá-la na visão de seu arquiteto original, removendo, portanto, as modificações históricas posteriores. Deste modo, muitas igrejas perderam suas imagens, primeiramente pela iconoclastia, posteriormente pelo ideal restaurador. Podemos ver que as próprias políticas anti-intervencionistas de Ruskin surgiram como uma resposta às perdas causadas pela má restauração, mais uma vez, sendo a preservação associada à depredação. Ainda se visa na Inglaterra a prevenção como principal meio de conservação dos bens históricos, e as intervenções diretas ao patrimônio devem ser muito bem pensadas e justificadas: A intervenção pode ser justificada se aumenta a compreensão do passado, revela ou reforça determinados valores patrimoniais de um lugar, ou seja necessária para sustentar esses valores para as gerações presentes e futuras, desde que nenhum dano resultante seja decididamente superado pelos benefícios.4 (BRUCE-LOCKHART,

2008, p. 22. Tradução da Autora). Podemos ver que a intervenção deve ser vista como uma possível danificação, sendo necessário pensar se a interferência não causará mais dano do que virá a beneficiar o bem. Vemos também que a intervenção só deve ser feita se for aumentar a compreensão do patrimônio, atribuir-lhe sentido ou facilitar-lhe a leitura, não é meramente uma questão estética. Porém, embora a maior parte das pinturas parietais inglesas estejam com a compreensão prejudicada por conta do profundo desgaste, poucas restaurações são feitas, o foco de investimento recai sobre a estrutura arquitetônica e seus bens integrados (fora os que são considerados como tesouros nacionais, e que recebem muita atenção turística) acabam ficando em segundo plano.

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Original: "Paradoxically, it was the restoration of the churches in the 19th century that led to both the discovery of most of the paintings we see today and conversely, the destruction of a far larger number of others. [...] Several generations of architects routinely stripped walls of their ancient plaster to reveal the original stone." (ROSEWELL, 2008, p. 220). 4 Original: " Intervention may be justified if it increases understanding of the past, reveals or reinforces particular heritage values of a place, or is necessary to sustain those values for present and future generations, so long as any resulting harm is decisively outweighed by the benefits." (BRUCE-LOCKHART, 2008, p. 22).

DA FILOSOFIA ÀS PAREDES: UMA INTRODUÇÃO À IDEIA DE PECADO Os Sete Pecados Capitais não estão organizados na Bíblia Sagrada, apesar de serem parte constituinte fundamental da episteme medieval, estes foram compilados pelo Papa Gregório, o Grande, em torno de 590 d.C., baseado nos oito pensamentos pecaminosos elencados por Evagrius Ponticus, um monge cristão que viveu em meados de 375 d.C, que após passar por um período de privação auto imposta no deserto egípcio organizou os piores sentimentos e tentações que o abateu. Em uma forma automática, hoje relacionamos os Sete Pecados – Soberba, Avareza, Luxúria, Gula, Preguiça, Ira e Inveja – diretamente com os conceitos católicos construídos no decorrer da Idade Média, porém, estes sentimentos e ações não são combatidos e conhecidos apenas no âmbito do cristianismo ocidental medieval. A lista de Evagrius não foi muito difundida até sua reorganização pelo Papa Gregório, o Grande. Em torno de 400 d.C, seu contemporâneo Prudêncio, um advogado, escreveu uma obra intitulada Psychomachia, uma obra de fundamental importância para o ocidente, com uma lista semelhante de pensamentos e ações terríveis e boas, uma alegoria da ambiguidade humana entre o vício e a virtude, que ficou muito popularizada, pois nesta obra cada vício e virtude é um ser que fala e sente, muito próxima da realidade e das pessoas para quem se destinava, tornando a obra realística através da personificação. Traço muito importante desta obra é que não é apenas uma batalha das pessoas pela sua alma, é em essência uma batalha entre os valores do cristianismo e o paganismo. Para demonstrar a importância dos pecados capitais na vida dos medievais vale citar parte do verbete “Pecado” de Carla Casagrande e Silvana Vecchio: Os homens e as mulheres da Idade Média aparecem dominados pelo pecado. A concepção de tempo, a organização do espaço, a antropologia, a noção do saber, a idéia do trabalho, as ligações com Deus, a construção das relações sociais, a instituição de práticas rituais, toda a vida e a noção de mundo do homem medieval gira em torno da presença do pecado. (CASAGRANDE; VECCHIO, 2006, p. 337).

Pensando nas características gerais atribuídas aos Pecados, começaremos por aquele que é considerado o pior entre todos: a Soberba. Tal pecado, responsável pela rebelião e queda do anjo Lúcifer, era originalmente dividido em duas categorias por Evagrius Ponticus, como a Vaidade e Orgulho. Esses sentimentos estão presentes em

diversas mitologias de outras culturas, e aparece com frequência em muitos mitos gregos, como Ícaro, com sua intenção de voar superando os demais, Narciso, apaixonado pela própria imagem e Aracne, desafiando a própria Atena por sua soberba excessiva, todos sucumbindo ao fim por conta da soberba, seja seu castigo a morte ou uma maldição. Para os gregos este pecado se denominava Húbris, sendo uma temática recorrente no campo filosófico, das tragédias gregas e da mitologia antiga, onde seus protagonistas muitas vezes eram tomados pela mesma e sofriam por isso o castigo ou a desavença esperada dos deuses por sua transgressão, arrogância e desmedida. Havia inclusive uma deusa, para a personificação de todas estas características e a lista de personagens que sofreram de húbris é grande, Agamenon, Cassandra, Édipo, Euforvo, Orestes, Páris, Quione, etc. Evagrius descrevia a Soberba como “Tumor da alma”, especialmente propenso a encaminhar o fiel a outros pecados. Para o Papa Gregório, o Grande, a Soberba era a semente do mal, o próprio princípio do pecado e do ato pecaminoso. Toda a alegoria por trás do mito da queda de Lúcifer é um grande e poderoso demonstrativo do poder catastrófico da Soberba, responsável por dar início a uma cadeia de males e sofrimentos para a humanidade em sua experiência mundana que passa de uma série de prazeres para provações e sofrimentos necessários para sua expiação. O pecado dos anjos é a Soberba, por conta do fascínio e a tentação que exerce sobre as criaturas de Deus. A Soberba, seja na forma de um egocentrismo exacerbado representado pela vaidade, ou o orgulho, não parece apenas ter sido cometida, mas sido necessária durante a Idade Média. Seja na soberba aparente e presente no seio da nobreza, que para a manutenção e justificação do próprio status social depende deste pecado. Seja no clero, que para a legitimação de fé que defende como sendo a verdadeira, precisa afirmar isso em exibições que não deixam de ser em sua essência e na sua imagem, atos soberbos. A Soberba, em essência, leva os homens à categoria de desafiadores de Deus, da autoridade e da ordem divinamente estabelecida, é um pecado que leva a questionar os comandos divinos, cega as criaturas, não lhes permitindo ver a Deus e ao bem.

Passando para a Preguiça, que inicialmente era listada por Evagrius como duas tentações, acedia e tristitia, que Gregório, o Grande as combinou na Preguiça. Apesar da aparente inocência da preguiça, dela provém sofrimentos, a fome, as necessidades, e a falta de vontade para alterar esta realidade, é considerada uma aversão ao trabalho e ao esforço, e o trabalho é uma demanda de Deus, após a expulsão do Paraíso. O ócio é um mal para o homem, e para o desenvolvimento da sociedade e seu êxito. Nos bestiários medievais as formigas são exemplos de seres trabalhadores nos quais os indolentes deveriam se espelhar. As formigas labutam pelo grupo, e são capazes de prover as necessidades de uma comunidade, pois não se abatem pela Preguiça, portanto, este pecado afeta o bem-estar não apenas de um indivíduo ou de sua família, mas de toda uma comunidade e uma sociedade com um sistema que só funciona se todos executarem seu papel pré-determinado num mundo interligado em que todos obedecem uma ordem divina na terra. Sintomas que hoje em dia associamos à depressão clínica, durante o período medieval eram sintomas de um desespero pessoal, de uma falta de fé em Deus e em seu poder. Observa-se uma apatia pela sua criação, de uma apatia para com a vida e suas obrigações, portanto, uma atitude pecaminosa influenciada por demônios, mais em específico por Noonday, segundo Evagrius, mais tarde o demonólogo Binsfeld associou a Preguiça à Belphegor. O pecado da Preguiça acabava podendo culminar na atitude suicida, atitude que consumava uma grande transgressão da lei divina, no momento em que a pessoa toma a vida que Deus lhe concebeu, sendo uma atitude impossível de ser redimida e não passível de perdão. A Ira reveste-se de importância por seu caráter destruidor de homens, que os coloca diretamente e fatalmente um contra o outro. Enquanto na tradição posteriormente estabelecida pelo cristianismo em que a soberba é tida como a maior forma de pecado, para Evagrius, era a Ira o mais preocupante, pois a Ira cega o homem para Deus e para os seus iguais. Uma de suas definições está no desejo de vingança, e vingança no código próprio dos homens medievais era um mal necessário e regulamentador da sociedade, utilizada para manutenção da honra e dos privilégios. Assim sendo, a violência é compreendida

dentro do sistema social medieval como necessária e até mesmo como um direito pessoal ou comunitário que anula a ideia de vínculo com o pecado da Ira. Segundo Claude Gauvard: Para ela5, a violência é o resultado de um encadeamento de fatos necessários à manutenção da honra ou do renome, qualquer que seja a procedência social dos indivíduos, sejam eles nobres ou não nobres. A violência não está então ligada a um estado moral condenável em si; é o meio de provar a perfeição de uma identidade. (GAUVARD, 2006,

p. 606) Este distanciamento do pecado da Ira, em geral associado a um ato não passível de controle racional, entra em contradição com uma ideia medieval de violência codificada, que obedece a regras e estágios, não sendo, portanto, um instinto irracional ou primitivo, sendo que a violência aceitável não é contaminada pelo pecado, ela é oficializada dentro de um sistema muito rígido de preceitos. Outras religiões, como a Islâmica abordam a Ira como um problema, sendo um mal intrínseco ao ser humano, onde se é necessário “domar” estes sentimentos danosos. Segundo Dante, o pecado da Ira localiza-se no quinto nível do inferno, os pecadores lá condenados espancam-se mutuamente tentando sair das águas do rio Extix. A Luxúria possui um caráter, ao contrário dos demais pecados, particularmente medieval ocidental, partindo de uma herança oriunda do Oriente Médio sobre como encarar o próprio corpo e o corpo dos outros, que foi expandida e transformada em pecados do pensamento, o que não procede na tradição judaica. Em Roma as próprias demarcações urbanas inicialmente eram feitas com símbolos fálicos chamados hermas, em relação ao deus Hermes, que foram se modificando com o tempo, que eram sinais de boa sorte e fertilidade. Já o Vaticano exigiu que os falos de suas estátuas fossem amputados por serem considerados imorais e uma alusão ao pecado da Luxúria. Nas religiões consideradas pagãs o comum é os deuses se originarem dos atos sexuais com outros deuses, que possuem então uma vida conjugal, familiar, ou ainda que têm filhos em relacionamentos ocasionais. No cristianismo a sexualidade divina

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Refere-se à Idade Média.

desaparece, a mãe de Cristo é uma virgem, portanto não passível de uma concepção carnal, como nas religiões pagãs. O clero no transcorrer da história cristã tornou-se celibatário, e buscava uma castidade que teologicamente aproxima os homens de Deus, mas que possui efeitos sociais profundos, não repartindo riquezas da igreja com familiares do clero. Ao lermos a compilação de Jacopo de Varazze é saliente o fato da virgindade ser um precedente à santidade, e no caso de santos/as que não fossem virgens o celibato é regra. Os pecados possuem uma interligação, e alguns se afeiçoam mais a uns do que aos outros, dois pecados que muito se combinam e que muitas vezes a prática de um leva ao outro, no caso da Luxúria é a Gula. A Luxúria possuía seu demônio represente, este era Asmodeus. Assim como os outros demônios que possuíam seu contingente de ajudantes para tentar a humanidade, Asmodeus tinha as súccubu5, que ao mesmo tempo em que proporcionavam prazeres incríveis podiam consumir a energia vital, além da danação da alma. UMA PINTURA MURAL EM HESSET: DANDO VISUALIDADE AOS PECADOS CAPITAIS. Durante o medievo as igrejas eram coloridas, e suas paredes repletas de pinturas, que hoje encontram-se sob o estuque branco moderno. A importância que estas pinturas tinham podem ser compreendidas através da afirmação de Migne: É bom representar os frutos da humildade e do orgulho como uma espécie de imagem visual de modo que qualquer pessoa estudando para melhorar a si mesmo possa ver claramente que coisas vão resultar a partir deles. Portanto vamos mostrar aos noviços e aos homens ignorantes duas árvores pequenas, diferindo em frutas e em tamanho, cada uma exibindo as características das virtudes e os vícios, para que as pessoas possam compreender os produtos de cada uma e escolher qual das árvores que irão estabelecer para si mesmos.6 (MIGNE, apud

CAIGER-SMITH, 1963, p. 50)

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Original: “It is good to represent the fruits of humility and pride as a kind of visual image so that anyone studying to improve himself can clearly see what things will result from them. Therefore we show the novices and untutored men two little trees, differing in fruits and in size, each displaying the characteristics of the virtues and the vices, so that people may understand the products of each and choose which of the trees they would establish in themselves”

O que veremos nas imagens abaixo são construções visuais de ideias doutrinárias, de modo que fosse possível exemplificar aos fiéis as atitudes correspondentes aos pecados representados. Através do método de Panofsky pretendemos dar destaque às alegorias7 iconográficas criadas para representação dos Pecados Capitais. Em Hessett, Suffolk, temos uma árvore do pecado bastante tradicional, pintada no século XV. A distribuição dada aos pecados ao longo da árvore é bastante representativa de um padrão da construção visual para o pecado, podendo ser vista na maioria das árvores encontradas. Em seu topo vemos o pior dos pecados, o pecado

da

Soberba,

com

um

homem

elegantemente vestido, com uma longa pena em seu chapéu, quase como se exibindo em seu topo. A Soberba é considerado o maior dos pecados – inclusive sendo responsável pela rebelião e queda do anjo Lúcifer. Ao verificar outras pinturas murais, é visível a recorrência da Soberba sendo representada por alguém muito bem vestido, o que indica um status social elevado, nem sempre da nobreza necessariamente, mas podendo ser pertencente a uma classe burguesa, que começava a se formar no século XII. Os aspectos de representação social estão sempre presentes nas árvores do pecado ou das virtudes. O pecado da Soberba é centrado em pessoas com posses, o que indica que se pensava ser mais suscetível a este pecado aqueles que

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Imagem 1: Árvore do Pecado em Hessett, século XV. Fonte: http://paintedchurch.org/hessds.htt, acessado em 5 de setembro de 2015.

Uma alegoria é aquilo que representa uma coisa para dar a ideia de outra através de uma ilação moral [...]. Etimologicamente, o grego allegoría significa "dizer o outro", "dizer alguma coisa diferente do sentido literal" [...] Na arte medieval, o processo de construção das grandes catedrais, como a de Chartres, por exemplo, obedece também a complicados esquemas alegóricos, pois acredita-se que tudo na Natureza significa algo mais do que o simplesmente observável. (CEIA, C. Sobre o Conceito de Alegoria. Matraga, nº10, p. 1-7, agosto de 1998. p. 1-4).

vivessem uma vida abastada, onde se possuísse um juízo de superioridade entre outros homens, o que levaria ao sentimento de superioridade. As cores das vestes dos Soberbos sempre são fortes, e com boa diversidade coral, o que indica uma vida e personalidade leviana, de alguém com pouca atenção às atitudes e comportamentos virtuosos, levando em consideração que a Virtude para a Soberba era a Humildade. Como destaca Evagrius, “a soberba é um tumor da alma, cheio de pus. Se maduro, explodirá, emanando terrível fedor. [...]. A alma do soberbo alcança grandes altitudes e, daí, cai no abismo.” 8. Como podemos ver nesta frase, há uma clara conexão entre a questão simbólica, onde a “alma do soberbo alcança grandes altitudes”, pois na imagem em Hessett, o soberbo ocupa o topo da árvore. O fato deste desabar no abismo é visto pelos pequenos demônios que serram a árvore, o que o fará cair no Inferno. Esta presença central e de destaque dado ao pecado da soberba é recorrente em todas as árvores do pecado encontradas na pesquisa, e a de Hesset torna-se um exemplo nítido desta reincidência. Um galho abaixo estão duas representações, à esquerda do homem ao topo temos a Ira, com um homem com uma arma em posição de combate, visivelmente irado e aparentemente jovem, em uma mão uma adaga e na outra um chicote. A Ira reveste-se de importância por seu caráter destruidor de homens, que os coloca diretamente e fatalmente um contra o outro. Enquanto na tradição posteriormente estabelecida pelo cristianismo da soberba como o maior dos pecados, para Evagrius, era a Ira o mais preocupante, pois a Ira cega o homem para Deus e para os outros homens, por seu malefício direto à convivência humana a qualifico como um pecado social. A alegoria escolhida em geral para representar o pecado da Ira é um homem jovem como via de regra, assim como na árvore de Hesset. Na sequência, à direita, temos um casal de namorados que sem inibição se abraçam e se beijam apaixonadamente, representando a Luxúria, à esquerda o homem, à direita a mulher, ambos bem vestidos. Esta é uma forma clássica que iremos encontrar nas árvores do pecado, a luxúria é sempre representada por um casal jovem, com um homem e uma mulher, que se entregam aos prazeres de sua relação.

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Tradução do De Octo Spiritibus Malitiae de Evagrius Ponticus, por Carlos Martins Nabeto. Disponível em: , acessado pela última vez em 5 de novembro de 2015.

Abaixo, à esquerda temos um invejoso, simbolicamente representado em verde, que segura seu cinto e aponta, como que desdenhoso do que possui, sua face é cadavérica, pois a inveja nada produz, ela consome o pecador, sendo que o invejoso se torna um peso na sociedade em que vive, e que possui em seu cerne um desejo predatório, melhor definido como Schadenfreude. (NEWHAUSER, 2000). No mesmo nível, à direita, temos a Preguiça, representado por um homem que está deitado, podendo estar dormindo, e seu rosto, como o da Inveja, tem aparência cadavérica, resultado da falta de atividade do preguiçoso que se deixa na inércia, mesmo que isso o custe a própria vida, um ser que também não produz, e por sua falta de entusiasmo pela vida demonstra profunda ingratidão à Deus. Os preguiçosos também estavam associados às atitudes suicidas, o que não era admissível de perdão no período medieval. Apesar da aparente inocência da preguiça, dela provém sofrimentos, a fome, as necessidades, e a falta de vontade para alterar esta realidade, sendo deste modo, considerada uma aversão ao trabalho e ao esforço, e o trabalho é um demando de Deus, após a expulsão do Paraíso. O ócio é um mal para o homem, e para o desenvolvimento da sociedade e seu êxito, pois o invejo não produz bens econômicos, apenas deseja o que outros possuem e produzem. No próximo nível temos a Avareza, representada por uma mulher que segura em suas mãos sacos de dinheiro. Este é um pecado interessante por possuir uma forte característica dualística, pois embora seja um pecado tanto quanto os demais, há um nível de tolerância, pois a avareza pode ser oriunda de um profundo estado de pobreza e necessidade, portanto, os desprovidos do básico para sua sobrevivência se tornam avarentos pela dificuldade de sobreviver e a dor de suas privações. O mal da Avareza reside basicamente naqueles, que possuindo mais do que o necessário para si, negam aos outros, ou acabam prejudicando sua comunidade que poderia viver de sua abundância, o que o faz ser comparável a um assassino. Um avarento não contribui com a Igreja e não é caridoso, o que causa danos tanto à sociedade quanto à instituição. Por fim, há uma representação da Gula que já não é muito aparente e não dá margens confiáveis para interpretação. De qualquer forma o demônio representativo da Gula é Belzebu, sempre retratado com uma aparência repugnante, que chega a inspirar asco, exatamente pela ligação que foi estabelecida entre o alimento em descomedimento

com um aspecto ascoso. O Papa Gregório Magno, ao organizar a lista dos Sete Pecados Capitais, também elaborou maneiras precisas pelas quais estes são cometidos e havia algumas maneiras de se tornar um glutão: comendo em excesso; comer em períodos do dia que não deveriam ser destinados à comida, ou seja, em períodos não prédeterminados, sem o controle devido; ser muito exigente ou se preocupar em excesso com o sabor ou modo de preparo de um alimento, lhe dedicando muita atenção; apetite excessivo que faz com que os pensamentos estejam sempre voltados para a comida, ou seja, apenas o desvio do pensamento se tornava um pecado em fato. Em última instância, tratava-se de uma violação ao corpo, que seria a morada divina da alma. A comida tornava os homens menos humanos e mais animalescos, e para Santo Agostinho apenas gostar de comer seria uma ofensa a Deus. Embora seja dada tanta atenção à comida, na iconografia, a forma mais comum da representação da Gula é através da bebedeira e não de comilança. CONCLUSÃO Considerando a iconografia como fruto de uma intenção e de um envolto cultural, a imagem dos pecados, ao tentar exemplificá-los de forma simples e acessível à “leitura” deste código visual, podemos concluir que seu objetivo final seja didaticamente doutrinar os fiéis, com base em ilustrações que retratam a simplicidade de atos humanos, auxiliando ao entendimento das ações que levam ao pecado e incitando a não cometê-los, sendo que há um incentivo para que não pequem, já que há uma promessa de sofrimento, de que ao cruzar certos padrões e normas divinas, as consequências advindas serão severas. Podemos observar um contraste nítido entre as imagens dos pecados em si e as imagens das consequências dos pecados cometidos. Os pecados são retratados com certa inocência, com naturalidade, como se não fossem em fato tão terríveis, mostrando como o ato pecaminoso pode ser traiçoeiro, porém as implicações são aterradoras, e as suas imagens tendem a inspirar medo e horror. Há a intenção da formação de um caráter vigilante dos atos aparentemente mais inocentes que levam a sofrimentos terríveis, pois escondem no dia-a-dia das atitudes humanas a sua verdadeira natureza. O ato de condenação, na iconografia das árvores dos pecados, ainda se encontra em suspenso, as pessoas estão nos galhos da árvore que por toda a Idade Média teve uma

conotação simbólica extremamente positiva, ligada à prosperidade, abundância. A importância de ser uma árvore o suporte dos Pecados é fundamental, pois mesmo quando a árvore é substituída por uma pessoa, a pintura é feita de modo a lembrar uma árvore, com a formação de animais que seguram as pessoas semelhantes a galhos de árvores. Isso nos leva a uma consideração interessante de compreensão, e chance de redenção, ao invés de uma condenação irreversível. No livro de Caroline Walker (BYNUM, 1984), vemos uma mudança no seio da fé cristã, na busca e na concepção de um Deus que não apenas castiga, mas compreende e perdoa. Isso podemos ver refletido na iconografia dos pecados, um Deus mais próximo, que alerta sobre o mal, que condena se necessário, mas que também deixa uma oportunidade para o perdão. Referências Bibliográficas BESANÇON, A. Arte e Cristianismo. In: FABRIS, A.; KERN, M. L. B. Imagem e Conhecimento. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006. p. 31-53. BYNUM, C. W. Jesus as Mother: Studies in the Spirituality of the High Middle Ages. California: University of California Press, 1984. CAIGER-SMITH, A. English Medieval Mural Paintings. Oxford: Clarendon Press, 1963. CASAGRANDE, C.; VECCHIO, S. Histoire de péchés capitaux au Moyen Age. Paris: AUBIER/Collection historique, 2003. CASAGRANDE, C.; VECCHIO, S. Pecado. In: GOFF, J. L.; SCHMITT, J.-C. Dicionário Temático do Ocidente Medieval. São Paulo: EDUSC, v. II, 2006. p. 337351. CEIA, C. Sobre o Conceito de Alegoria. Matraga, nº10, agosto de 1998, p. 1-7. EDWARDS, R. Art and context in late Medieval English narrative. Cambridge: Cambridge University Press, 1994. MARSHALL, A. Painted Church. Medieval Wall Painted: A short introduction, 2000. Disponivel em: . Acesso em: 4 Julho 2015.

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