Consulex n. 466 - Decisão do Min. Celso de Mello na ADI 3.396: possibilidade de recurso contra decisão que nega ingresso de amicus curiae e a questão da representatividade e abertura do diálogo no controle de constitucionalidade

June 1, 2017 | Autor: A. Melo Franco de... | Categoria: Amicus Curiae, Controle De Constitucionalidade, Supremo Tribunal Federal, Novo CPC
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ANO XX - Nº 465 1º DE junho DE 2016

in cidente

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impeachment

e o processo interdisciplinar tendências

propostas e projetos

IN VOGA

MAURÍCIO DANTAS GÓES E GÓes

EURO BENTO MACIEL FILHO

murilo aith

o impacto do novo cpc nas empresas

ENDURECER PENA PARA O ESTUPRO É DEMAGOGIA

A REFORMA E O SUPOSTO DÉFICIT DA PREVIDÊNCIA

18 IMPEACHMENT E O PROCESSO INTERDISCIPLINAR

SUMÁRIO

arquivo pessoal

Poderia a decisão do incidente de resolução de demandas repetitivas ser vista como precedente obrigatório ou vinculante? O professor Luiz Guilherme Marinoni explica que o instituto trazido pelo Novo Código de Processo Civil não pode ser visto como um precedente obrigatório, quando a questão envolver direitos que ultrapassem a esfera de um único indivíduo, mas sim como uma decisão do Judiciário que impeça a repetição do litígio em uma demanda sobre um mesmo direito já resolvido. Para o festejado jurista, “A coisa julgada erga omnes formada no incidente depende da participação de um ente que faça efetivamente ouvir a voz dos litigantes excluídos”.

DIVULGAÇÃO

ENTREVISTA CAPA ARTIGOS

6 INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DEMANDAS REPETITIVAS

Nesta edição, a Revista Jurídica Consulex Digital convidou vários professores para emitirem a sua opinião sobre o processo de impeachment, em andamento no Senado. Por ser um processo totalmente interdisciplinar, no qual os Direitos Constitucional, Administrativo, Financeiro, Penal e Processual Penal, entre outros são de fundamental importância, os juristas que assinam as matérias trataram de fazer uma abordagem também interdisciplinar, de modo que os leitores tenham uma compreensão bem ampliada da complexidade de toda a demanda.

IN VOGA A reforma e o suposto déficit da Previdência 54  Murilo Aith tendências O impacto do novo CPC nas empresas 56  Maurício Dantas Góes e Góes CONJUNTURA Aumentar a tributação não é melhor opção para gerar receitas 58  Allan Tittonelli Nunes ENFOQUE Empoderamento feminino: o que os indicadores não dizem 60  Renê Sanda e Dulcejane Vaz

CONTEXTO A quitação de débitos tributários da União com a dação em pagamento em bens imóveis 62  Leonardo Dias da Cunha

SEÇÕES 5

Com a palavra...

8

Indicadores Econômicos

DOUTRINA Condução coercitiva como medida cautelar autônoma: isso existe mesmo no Brasil? 64  Rômulo de Andrade Moreira

10 Gestão de Escritório

PONTO DE VISTA A coisa julgada e a abrangência de terceiros beneficiados 67  Amadeu Garrido

16 Painel do Leitor

11 Painel Econômico 12 Direito e Bioética 14 Propostas e Projetos

17 Destaque

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Johannes Gerrit Cornelis van Aggelen ANO XX - Nº 464 15 DE MAIO DE 2016

Colaboradores: Alexandre de Moraes, Alice Monteiro de Barros, Álvaro Lazzarini,

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Antônio Carlos de Oliveira, Antônio José de Barros Levenhagen, Aramis Nassif,

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Arion Sayão Romita, Armand F. Pereira, Arnoldo Wald, Benedito Calheiros Bonfim, Benjamim Zymler, Cândido Furtado Maia Neto, Carlos Alberto Silveira Lenzi, Carlos Fernando Mathias de Souza, Carlos Pinto C. Motta, Damásio E. de Jesus, Décio de Oliveira Santos Júnior, Edson de Arruda Camara, Eliana Calmon, Fátima Nancy Andrighi, Fernando Tourinho Filho, Fernando da Costa Tourinho Neto, Francisco Fausto Paula de Medeiros, Georgenor de Souza Franco Filho, Geraldo Guedes, Gilmar Ferreira Mendes, Gustavo Filipe B. Garcia, Humberto Gomes de Barros, Humberto Theodoro Jr., Igor Tenório, Inocêncio Mártires Coelho, Ives Gandra da Silva Martins, Ivo Dantas, J. E. Carreira Alvim, João Batista Brito Pereira, João Oreste Dalazen, Joaquim de Campos Martins, Jorge Ulisses Jacoby Fernandes, José Alberto Couto Maciel, José Carlos Arouca, José Carlos Barbosa Moreira, José Luciano de Castilho Pereira, José Manuel de Arruda Alvim Neto, Lincoln Magalhães da Rocha, Luiz Flávio Gomes, Marco Aurélio Mello, Maria Cristina Irigoyen Peduzzi, Mário Antonio Lobato de Paiva, Marli Aparecida da Silva Siqueira, Nélson Nery Jr., Reis Friede, René Ariel Dotti, Ricardo Luiz Alves, Roberto Davis, Tereza Alvim, Tereza Rodrigues Vieira, Toshio

MARCO LEGAL DA PRIMEIRA INFÂNCIA

PRIMEIRAS IMPRESSÕES SOBRE A LEI Nº 13.257/2016 IN VOGA

TENDÊNCIAS

ENFOQUE

ALLAN TITONELLI

VICENTE BAGNOLI

EMERSON GARCIA

O COMBATE À SONEGAÇÃO ENTRA NA AGENDA INTERNACIONAL

COOPERAÇÃO NO PROCESSO CONCORRENCIAL

DA DEMOCRACIA À PARTITOCRACIA: REFLEXOS NO CRESCIMENTO DA CORRUPÇÃO

Mukai, Vantuil Abdala, Vicente de Paulo Saraiva, William Douglas, Youssef S. Cahali.

Arte e Diagramação: Charles Augusto Revisão: Murilo Oliveira de Castro Coelho Marketing: Ramirez Diogo Sanches Comercial: Geraldo Aguimar da Silva Central de Atendimento ao Cliente Tel. (61) 3365-3385 [email protected] Redação e Correspondência [email protected]

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arquivo pessoal

com a palavra

Ana Frazão

Corrupção, concorrência e transparência

O

enfrentamento da corrupção de maneira sistêmica e prospectiva, no Brasil, requer necessariamente mudanças institucionais. É indispensável estabelecer novas regras para assegurar melhores e mais transparentes relações entre o poder econômico e o poder político. Mais do que isso, é preciso que as mudanças institucionais se projetem sobre as estruturas de mercado, a fim de torná-los mais competitivos e transparentes, reduzindo os excessivos custos de transação que decorrem da corrupção. Dentre as inúmeras iniciativas que podem ser trilhadas nesse sentido destaca-se a mudança nos valores e práticas do mercado, a fim de se criar uma nova ética empresarial, tal como pretendem o Pacto Global da ONU (Organização das Nações Unidas) e o Programa Empresa Pró-Ética, desenvolvido em nosso próprio país, pela CGU (Controladoria Geral da União). No caso do primeiro, trata-se de extenso programa de alcance internacional que propõe o fortalecimento do compromisso empresarial em quatro importantes searas: respeito e proteção aos direitos humanos; respeito e proteção ao trabalho humano, inclusive no que diz respeito ao reconhecimento do direito à negociação coletiva pelos trabalhadores, à erradicação do trabalho infantil e do trabalho forçado ou compulsório, e à eliminação de qualquer tipo de discriminação no emprego; respeito e proteção ao meio ambiente, inclusive no que se refere ao desenvolvimento e difusão de tecnologias ambientalmente amigáveis; e o combate à corrupção em todas as suas formas. Já o Programa Empresa Pró-Ética, da CGU, tem foco mais preciso nas práticas anticorrupção direcionadas à realidade brasileira. O conjunto de proposições visa assegurar que as empresas “parceiras” dos agentes públicos promovam boas práticas corporativas não apenas internamente, mas também externamente. Ou seja, adotem ações que alcancem também todos os seus clientes e fornecedores, reforçando a formação de uma rede cujo objetivo é a construção de uma sociedade comprometida com valores éticos. Tais programas envolvem a adesão voluntária dos agentes econômicos e reforçam a importância da autonomia privada na mudança institucional.

Os recentes acontecimentos em curso no Brasil, sobretudo a partir da chamada Operação Lava Jato, estão impulsionando os agentes públicos e privados a tomar conhecimento dessas novas regras. E, mais do que isso, a implementá-las em suas organizações. Empresas flagradas nas investigações já formalizaram publicamente compromissos para futuras mudanças de conduta. Com esse novo cenário, irá se tornar comum uma base de regras que norteiam há tempos as atividades econômicas em outras nações democráticas: os chamados programas de compliance. Numa tradução livre, programas de compliance ou de integridade são meios que cada agente econômico tem de estruturar e monitorar o cumprimento de normas éticas a serem observadas por toda a organização. É um conjunto de regras claras, com base na legislação em vigor, a orientar a conduta de dirigentes e funcionários, a dar transparência às ações e às relações e a incentivar a ética concorrencial e de mercado. Essas iniciativas são de extrema importância para o fortalecimento de princípios éticos, até porque os recursos do Estado são limitados para combater a corrupção apenas por meio de uma legislação punitiva. Por isso, há que se estabelecer os adequados incentivos para que os agentes econômicos possam, espontaneamente, conduzir seus negócios em observância aos preceitos éticos e legais. O momento delicado que o Brasil atravessa deve priorizar a mudança de cultura e de práticas empresariais, ainda que isso também dependa do estímulo e do enforcement estatais. Em se tratando do combate à corrupção, há de se ter cautela para resolver não apenas as consequências atuais das práticas nocivas. De nada adianta neutralizar os efeitos, se as causas, relacionadas ao ambiente institucional, continuarem a propiciar ou estimular a prática da corrupção. Como a corrupção apenas pode ser enfrentada de maneira estrutural, isonômica e consistente, do ponto de vista prospectivo, é preciso levar a sério a questão da mudança das práticas e dos valores, criando novas regras do jogo e novo ambiente institucional que iniba efetivamente as práticas ilícitas e incentive os agentes econômicos a atuarem dentro da lei e das normas éticas.

Ana Frazão é advogada, doutora em Direito Comercial, professora de Direito Civil e Comercial na UnB (Universidade de Brasília), ex-conselheira do Cade e sócia de Gustavo Tepedino Advogados.

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ARQUIVO PESSOAL

entrevista

Luiz Guilherme Marinoni

Prof. Titular da UFPR. Advogado, com escritórios em Curitiba, Porto Alegre e Brasília.

INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DEMANDAS REPETITIVAS Revista Jurídica CONSULEX – O incidente de resolução de demandas repetitivas é um dos mais importantes instrumentos do novo CPC. Poderia explicá-lo? LUIZ GUILHERME MARINONI – O incidente de resolução de demandas repetitivas surgiu como meio para facilitar e acelerar a resolução de demandas múltiplas, que dependem da análise e da decisão de uma “mesma” questão de direito (art. 976, I, CPC). Pretendeu-se, igualmente, evitar decisões diferentes para uma mesma questão, frisando-se que a instauração do incidente depende de “risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica” (art. 976, II, CPC). Na verdade, a isonomia e a segurança jurídica não constituem propriamente requisitos para a instauração do incidente, mas a justificativa do legislador para a sua previsão no Código de Processo Civil. É que, havendo centenas ou milhares de demandas que dependem da solução de uma mesma questão de direito, sempre há possibilidade de decisões diferentes para casos iguais. Parte-se da premissa de que, como há apenas uma única questão a atingir todos os demandantes, cabe resolvê-la em separado, outorgando-se à decisão eficácia perante todos os litigantes das diversas ações individuais. CONSULEX – Qual a relação do incidente com os precedentes obrigatórios? LUIZ GUILHERME MARINONI – O legislador, para justificar a instituição do incidente, apegou-se à ideia de decisão que deve ser obrigatoriamente observada pelos juízes e tribunais. Afirma o art. 927, III, do Código de Processo Civil, que “os juízes e os tribunais observarão” [...] “os acórdãos em incidente de assunção de incompetência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos”.

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revista JURÍDICA consulex - ano xX - nº 465 - 1º DE JUNHO/2016

Trata-se de clara suposição de que a decisão proferida em incidente que julga questão de direito de titularidade de muitos pode a eles ser naturalmente estendida, como se fosse um precedente obrigatório. O incidente de resolução de demandas repetitivas, ao afastar os litigantes das ações individuais da discussão da mesma questão de direito (art. 976, I, CPC), supõe que a decisão dessa questão nada mais é do que um precedente que se aplica aos casos pendentes. Note-se que o art. 985 traz confissão neste sentido, estabelecendo não só que a decisão – chamada de “tese jurídica” – “será aplicada” a “todos os processos individuais ou coletivos que versem sobre idêntica questão de direito e que tramitem na área de jurisdição do respectivo tribunal, inclusive àqueles que tramitem nos juizados especiais do respectivo Estado ou região” como também “aos casos futuros que versem idêntica questão de direito e que venham a tramitar no território de competência do tribunal, salvo revisão na forma do art. 986” (art. 985, I e II, CPC). É preciso ter claro, no entanto, que um precedente fixa o sentido do direito e, por isso, naturalmente diz respeito a todos. Já uma decisão que resolve questão de direito pode ser prejudicial à tutela jurisdicional do direito de muitos, pois além de ter valor enquanto resolução de uma específica questão de direito, tem eficácia de coisa julgada em relação àqueles que têm os seus direitos discutidos. Assim sendo, a decisão do incidente não pode ser vista como precedente obrigatório ou vinculante. Mas toda a confusão é explicável, na medida em que o civil law praticamente desconhece o significado teórico de precedente obrigatório e de coisa julgada em benefício de terceiros. Esses institutos são típicos ao common law, tendo nascido no direito inglês e se desenvolvido significativamente nos Estados Unidos.

No common law ainda hoje é atual, sofisticada e complexa a teorização da relação entre precedentes obrigatórios ou stare decisis e coisa julgada em benefício de terceiros ou non-mutual collateral estoppel. A precisa delimitação de um e outro tem se tornado cada vez mais relevante em razão do desenvolvimento do Direito. CONSULEX – O fato de a decisão do incidente servir para a resolução da questão de muitos traz algum problema? LUIZ GUILHERME MARINONI – A decisão do incidente, ao resolver questão prejudicial à tutela de direitos múltiplos, não pode ser vista como um precedente obrigatório, mas como uma decisão que proíbe a relitigação da questão resolvida nas demandas repetitivas, afetando todos aqueles que estiverem inseridos na situação conflitiva concreta que tenha lhes dado origem. A coisa julgada erga omnes formada no incidente depende da participação de um ente que faça efetivamente ouvir a voz dos litigantes excluídos. Sem a participação de alguém que, efetiva e vigorosamente, represente os excluídos, o modelo do incidente de resolução de demandas carece de constitucionalidade, reclamando interpretação apropriada – que ofereça oportunidade à intervenção de representantes adequados. A decisão do incidente não pode ser mascarada de precedente para dispensar o direito de participação na discussão da questão de direito. Ora, quando se decide para muitos é indispensável conferir a todos o direito de influenciar o Juiz ou de falar perante a Corte, ainda que por meio de um representante adequado. Aliás, a Suprema Corte dos Estados Unidos – em Richards v. Jefferson County – foi chamada a analisar decisão que proibiu membros de um grupo de voltar a discutir questão que já havia sido decidida entre a mesma parte demandada e outros membros do mesmo grupo. Alegou-se que a decisão teria sido equivocada ao proibir a relitigação da questão, uma vez que as pessoas que figuraram no primeiro processo não representavam o grupo. A Suprema Corte, depois de argumentar que tanto os autores da segunda como os da primeira ação poderiam ser descritos como “strangers” uns aos outros, decidiu que a decisão feriu o precedente firmado em Hansberry v. Lee – célebre por ter estabelecido a necessidade da “representação adequada” para compatibilizar a class action com a garantia constitucional de participação no processo. A Suprema Corte disse, claramente, que uma pessoa só pode ser proibida de voltar a discutir uma questão quando já a discutiu ao menos por intermédio de um representante adequado, sob pena de violação ao due process. De modo que o problema do incidente está em afastar os litigantes das demandas repetitivas, sem prever que alguém deve defendê-los. Ora, decide-se questão que lhes pertine, sem que tenham a oportunidade de exercer o direito constitucional de influir sobre o convencimento do Tribunal. CONSULEX – Tendo em vista a inconstitucionalidade, há algo que pode ser feito pelo intérprete? LUIZ GUILHERME MARINONI – A doutrina tem sério e inafastável compromisso com os direitos fundamentais. Assim, obviamente não pode dizer “amém” a um procedimento que, sob o pretexto de dar otimização à resolução das de-

mandas, viola claramente os direitos fundamentais de ser ouvido e de influenciar o juiz. Se no Estado Democrático de Direito a participação é indispensável requisito de legitimação do exercício do poder, não há como imaginar que uma decisão possa gerar efeitos a pessoas que não tiveram a oportunidade de participar ou que não foram adequadamente representadas. Contudo, a invalidade constitucional de um procedimento é resultado extremo, que deve ser evitado quando se pode corrigi-lo de modo a dar-lhe legitimidade constitucional. Admitindo-se que o legislador tenha cometido um equívoco, ou seja, que não quis excluir a possibilidade de participação indireta do litigante, mas que apenas tenha se esquecido de regulá-la, há como aceitar a possibilidade de a doutrina e os tribunais, mediante interpretação, corrigirem o desvio do legislador, evitando-se, assim, a simples proclamação da invalidade ou da inconstitucionalidade do incidente, cuja repercussão sobre o novo sistema processual civil certamente não seria boa. CONSULEX – Qual seria o fator positivo do incidente, uma vez corrigido o déficit de participação dos litigantes excluídos? LUIZ GUILHERME MARINONI – Bentham, no início do século XIX, já dizia que há razão para dizer que um homem não deve perder a sua causa em consequência de uma decisão proferida em processo de que não foi parte; mas não há qualquer razão para dizer que ele não deve perder a sua causa em consequência de uma decisão proferida em um processo em que foi parte simplesmente porque o seu adversário não foi. O recado do eminente jurista inglês é no sentido de que uma questão que diz respeito a muitos só deve ser rediscutida quando foi decidida de modo contrário ao litigante que não participou do processo. O incidente de resolução permite que a questão seja resolvida para todos, independente do resultado, desde que todos participem, ainda que por meio de representante adequado (legitimado à tutela de direitos individuais homogêneos, em regra). Com isso, se evita a relitigação da mesma questão em demandas que se repetem, eliminando-se os gastos financeiros e de tempo dos litigantes e da administração da justiça. Diante da vedação da relitigação simplesmente não há possibilidade de decisões diferentes para a mesma questão, tutelando-se a igualdade e a segurança jurídica. CONSULEX – Professor, o senhor já escreveu a respeito do tema? LUIZ GUILHERME MARINONI – A Editora Revista dos Tribunais está preparando o lançamento de uma grande e espetacular coleção de Comentários ao Código de Processo Civil, em aproximadamente 15 volumes, sob a minha coordenação. Escrevi alguns volumes desta coleção, entre eles – junto com Daniel Mitidiero – o volume que versa sobre o “processo nos tribunais” (recursos, ação rescisória, incidente de assunção, incidente de resolução de demandas, etc.) Também acabo de preparar uma monografia específica sob o título “Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas”, em que trato de todas as questões teóricas e práticas que dizem respeito à novíssima técnica processual. O livro será publicado pela Ed. Revista dos Tribunais em setembro.

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indicadores econômicos

SEGURIDADE SOCIAL NOVOS VALORES 1. Tabela de salários-de-contribuição dos segurados empregado, empregado doméstico e trabalhador avulso, para pagamento a partir de 1º de janeiro de 2016.

AGENDA PARA JUNHO/2016 OBRIGAÇÃO – FATOS GERADORES OCORRIDOS EM MAIO/2016

PAGAMENTO APÓS O VENCIMENTO

DATA DE VENCIMENTO PARA O PAGAMENTO

Cofins (Contribuição Social para Financiamento da Seguridade Social) Pis/Pasep INSS sobre salários

DIA 24 DE junho, sexta-FEIRA DIA 24 DE junho, sexta-FEIRA

DIA 24 DE junho, SEXTA-FEIRA

FGTS Salários

DIA 7 DE junho, terça-FEIRA DIA 6 DE junho, segunda-FEIRA

OBRIGAÇÃO/PERÍODO DO FATO GERADOR

DATA-LIMITE PARA O PAGAMENTO

IRRF (TRABALHO ASSALARIADO)

Para pagamento após o vencimento de obrigação não incluída em notificação fiscal de lançamento. 1. MULTA DE MORA a) 0,33% por dia de atraso, limitado a 20% b) 20% a partir do segundo mês seguinte ao do vencimento da obrigação

DIA 20 DE JUNHO, SEGUNDA-FEIRA

ALTERAÇÃO DADA PELA LEI Nº 11.196/05 ARTIGO 70, INCISO i, ALÍNEA D

Salários-de-contribuição (R$)

Alíquota para fins de recolhimento ao INSS (%)

até 1.556,94

8,00%

de 1.556,95 até 2.594,92

9,00%

de 2.594,93 até 5.189,92

11,00%

2. Os contribuintes individuais contribuem, respectivamente, com base na remuneração auferida durante o mês, em uma ou mais empresas ou pelo exercício

IRPF (CARNÊ-LEÃO) RECOLHIMENTO MENSAL

limites mínimo e máximo do salário-de-contribuição mensal. A partir de 1º de janeiro de 2016, o limite máximo do salário-de-benefício será de R$ 5.189,82. 3. O valor da cota do salário-família, a partir de 1º de janeiro de 2016, será de R$ 41,37 sendo devida ao segurado com remuneração mensal não superior a R$ 806,80, e de R$ 29,16 para o segurado que recebe entre R$ 806,80 e R$ 1.212,64. 4. O responsável por infração a qualquer dispositivo do Regulamento da Previdência Social – RPS, para a qual

ÚLTIMO DIA ÚTIL DO MÊS SUBSEQUENTE AO DA OCORRÊNCIA DO FATO GERADOR

NOTA: A data de recolhimento de alguns tributos foi alterada pela Medida Provisória nº 449, de 3 de dezembro de 2008.

IMPOSTO DE RENDA NA FONTE

Base de Cálculo Mensal em R$

de 1.903,99 de 2.826,66 de 3.751,06 acima

Alíquota %

Parcela a deduzir do Imposto em R$

– 7,5 15,0 22,5 27,5

– 142,80 354,80 636,13 869,36

até 1.903,98 até 2.826,65 até 3.751,05 até 4.664,68 de 4.664,68

DEDUÇÕES: R$ 189,59 por dependente – R$ 1.903,98 – aposentadoria e pensão. Dispositivo legal: Lei nº 12.469, de 26.08.11, DOU 29.08.11, IN nº 1.142, de 31.03.11 e Lei nº 13.149, de 21.07.15.

VIGÊNCIA

VALOR

01.02.09 01.01.10 01.03.11 01.01.12 01.01.13 01.01.14 01.01.15 01.01.16

R$ 465,00 R$ 510,00 R$ 545,00 R$ 622,00 R$ 678,00 R$ 724,00 R$ 788,00 R$ 880,00

FUNDAMENTO LEGAL Lei nº 12.255/10 (DOU 16.06.10) Lei nº 12.382/11 (DOU 28.02.11) Lei nº 12.382/11 e Dec. nº 7.655 (DOU 26.12.11) Lei nº 12.382/11 e Dec. nº 7.872 (DOU 26.12.12 Ed. Extra) Lei nº 12.382/11 e Dec. nº 8.166 (DOU 24.12.13) Lei nº 12.382/11 e Dec. nº 8.381 (DOU 30.12.14) Lei nº 12.382/11 e Dec. nº 8.618 (DOU 30.12.15)

DÓLAR COMERCIAL

COMPRA VENDA DIA COMPRA VENDA

03.05.16 04.05.16 05.05.16 06.05.16 09.05.16 10.05.16 11.05.16 12.05.16 13.05.16 16.05.16

3,5544 3,5391 3,5290 3,5356 3,5380 3,4766 3,4639 3,4871 3,5035 3,5029

3,5550 3,5397 3,5296 3,5362 3,5387 3,4772 3,4645 3,4877 3,5041 3,5035

3,5031 3,5362 3,5997 3,5413 3,5654 3,5485 3,5798 3,6162 3,5991 3,5945

17.05.16 18.05.16 19.05.16 20.05.16 23.05.16 24.05.16 25.05.16 27.05.L16 30.05.16 31.05.16

VALORES DE DEPÓSITOS RECURSAIS RECURSO

R$

Recurso ordinário

infração, à multa variável de R$ 2.143,04 a

Recurso de revista, embargos, recurso extraordinário e recurso em ação rescisória

– CND da empresa na alienação ou one-

3,5037 3,5368 3,6003 3,5419 3,5660 3,5491 3,5804 3,6168 3,5997 3,5951

Fonte – Banco Central

janeiro de 2016, conforme a gravidade da

é exigida Certidão Negativa de Débito

TAXA REFERENCIAL (TR) DIA TAXA(%) DIA TAXA(%) DIA TAXA(%)

Cotação média em r$ – Variação de 03.05.16 a 31.05.16 DIA

% 1,11 1,11 1,06 1,16 1,06 1,00 1,16 1,06 1,11

Setembro/15 Outubro/15 Novembro/15 Dezembro/15 Janeiro/16 Fevereiro/16 Março/16 Abril/16 Maio/16 Fonte – Secretaria da Receita Federal do Brasil

SALÁRIO-MÍNIMO – 2008/2016

cominada, está sujeito, a partir de 1º de

5. A partir de 1º de janeiro de 2016,

MÊS

Fonte – Secretaria da Receita Federal do Brasil

não haja penalidade expressamente

R$ 214.301,53.

TAXA SELIC

A partir do mês de abril ano-calendário 2015

de sua atividade por conta própria, e no valor por ele declarado, observados os

2. JUROS DE MORA a) taxa Selic

8.183,06 16.366,10

15.04.16 16.04.16 17.04.16 18.04.16 19.04.16 20.04.16 21.04.16 22.04.16 23.04.16 24.04.16 25.04.16 26.04.16 27.04.16 28.04.16 29.04.16 30.04.16

0,1339 0,1022 0,1319 0,1693 0,1909 0,1906 0,1554 0,1600 0,1254 0,1542 0,2266 0,2006 0,1550 0,1603 0,1258 0,0958

01.05.16 01.05.16 02.05.16 03.05.16 04.05.16 05.05.16 06.05.16 07.05.16 08.05.16 09.05.16 10.05.16 11.05.16 12.05.16 13.05.16 14.05.16 15.05.16

0,1245 0,1533 0,2303 0,2025 0,1980 0,1657 0,1327 0,1347 0,1640 0,1846 0,2175 0,2250 0,1656 0,1300 0,1274 0,1563

TAXA BÁSICA FINANCEIRA (TBF) DIA TAXA(%) DIA TAXA(%) DIA TAXA(%) 21.04.16 22.04.16 23.04.16 24.04.16 25.04.16 26.04.16 27.04.16 28.04.16 29.04.16 30.04.16 01.05.16 01.05.16 02.05.16 03.05.16

1,0268 1,0314 0,9765 1,0255 1,0685 1,1024 1,0263 1,0317 0,9769 0,9266 0,9756 1,0246 1,0722 1,0943

1,0998 1,0371 0,9938 0,9858 1,0354 1,0762 1,0593 1,0669 1,0471 0,9911 0,9785 1,0277 1,0630 1,0595

04.05.16 05.05.16 06.05.16 07.05.16 08.05.16 09.05.16 10.05.16 11.05.16 12.05.16 13.05.16 14.05.16 15.05.16 16.05.16 17.05.16

2015 mai

JUN

JUL

AGO

2016 SET

OUT

NOV

DEZ

JAN

FEV

MAR

ACUMULADO mai

no ano

últimos 12 meses

0,57

0,67

4,26

9,44

0,64

0,98

4,60

9,82

0,78

4,05

9,32

ABR

ICV-SP-DIEESE

0,57

0,81

0,95

0,06

0,48

0,78

1,02

0,77

1,80

0,71

0,44

INPC/IBGE

0,99

0,77

0,58

0,25

0,51

0,77

1,11

0,90

1,51

0,95

0,44

IPCA/IBGE

0,74

0,79

0,62

0,22

0,54

0,82

1,01

0,96

1,27

0,90

0,43

0,61

valor inferior a R$ 880,00. Fonte – Portaria Interministerial MTPS/MS nº 1, de 08.01.16 – DOU 11.01.16.

1,0587 1,0295 0,9875 0,9865 1,0361 1,0846 1,0518 1,0780 1,0340 1,0392 1,0252 1,0743 1,1080 1,1255

ÍNDICES DE INFLAÇÃO – VARIAÇÕES PERCENTUAIS MENSAIS ANO

de valor superior a R$ 53.574,85, incorpo6. A partir de 1º de janeiro de 2016,

18.05.16 19.05.16 20.05.16 21.05.16 22.05.16 23.05.16 24.05.16 25.05.16 26.05.16 27.05.16 28.05.16 29.05.16 30.05.16 31.05.16

Fonte – Banco Central

Fonte – TST, Ato nº 397/15, publicado no DJe de 10.07.15.

MESES

os benefícios previdenciários não terão

0,2211 0,2177 0,2169 0,1581 0,1264 0,1254 0,1647 0,1929 0,2100 0,1863 0,1626 0,1677 0,1539 0,1827 0,2558 0,2136

Fonte – Banco Central

ração, a qualquer título, de bem móvel rado ao seu ativo permanente.

16.05.16 17.05.16 18.05.16 19.05.16 20.05.16 21.05.16 22.05.16 23.05.16 24.05.16 25.05.16 26.05.16 27.05.16 28.05.16 29.05.16 30.05.16 31.05.16

IGP/M/FGV

0,41

0,67

0,69

0,28

0,95

1,89

1,52

0,49

1,14

1,29

0,51

0,33

0,82

4,15

11,09

IGP-DI/FGV

0,40

0,68

0,58

0,40

1,42

1,76

1,19

0,44

1,53

0,79

0,43

0,36

1,13

4,32

11,26

INCC-DI/FGV

0,95

1,84

0,55

0,59

0,22

0,36

0,34

0,10

0,39

0,54

0,64

0,55

0,08

2,22

6,36

IPC-DI/FGV

0,72

0,82

0,53

0,22

0,42

0,76

1,00

0,88

1,78

0,76

0,50

0,49

0,64

4,23

9,15

IPC-SP/FIPE

0,62

0,47

0,85

0,56

0,66

0,88

1,06

0,82

1,37

0,89

0,97

0,46

0,57

4,33

9,98

IPCA-E/IBGE

0,60

0,99

0,59

0,43

0,39

0,66

0,85

1,18

0,92

1,42

0,43

-

-

2,79

9,95

IPA-AGRO/FGV

-1,15

0,15

1,02

0,58

3,40

0,66

2.49

1,51

2,58

2,02

1,28

1,14

3,31

10,75

24,55

Fontes – FGV, IBGE, DIEESE, Fipe.

A mais completa fonte

de atualização trabalhista

AGORA É DIGITAL Matéria de Capa

ANO XXII – Nº 2 – FEVEREIRO DE 2016

EXEMPLAR

ISSN 1519-8057

2

EDITORA CONSULEX

Gustavo Filipe Barbosa Garcia

REPOSITÓRIO AUTORIZADO DE JURISPRUDÊNCIA DO TST (REGISTRO Nº 13/97)

DE

Matéria de Capa

RETROSPECTIVA 2015

DIREITO DO TRABALHO E PREVIDENCIÁRIO

ASSINANTE V E N DA P R O I B I DA

CONTROVÉRSIAS SOBRE O ÍNDICE DE REAJUSTE DOS CRÉDITOS TRABALHISTAS E INSEGURANÇA JURÍDICA 42$4 sDEDEZEMBRODE Gustavo Filipe Barbosa Garcia

DEDEZEMBRODEs2$4 5

FATORES PSICOSSOCIAIS DE RISCO NO MEIO AMBIENTE DO TRABALHO Carla Maria Santos Carneiro

ANO XXII – Nº 1 – JANEIRO DE 2016 EXEMPLAR DE EDITORA CONSULEX

A DESONERAÇÃO DA FOLHA DE SALÁRIOS E A CONSTRUÇÃO CIVIL REFLEXOS NA RETENÇÃO DE 11%

ASSINANTE

REPOSITÓRIO AUTORIZADO DE JURISPRUDÊNCIA DO TST (REGISTRO Nº 13/97) ISSN 1519-8057

1

VE N DA P ROI B I DA

ÔNUS DE SUCUMBÊNCIA A NOVA LEI PROCESSUAL Sérgio Edézio Moreira

TERCEIRIZAÇÃO E DIREITO DO TRABALHO

Rúbia Zanotelli de Alvarenga

AVALIAÇÃO DOS DIREITOS TRABALHISTAS CONSTITUCIONALIZADOS

consulexdigital.com

DIGITAL

 POR JOSÉ PAULO GRACIOTTI

U

arquivo pessoal

m artigo publicado no Legal Tech News destaca a importância da gestão do conhecimento em todas as áreas e, por isso, transcrevo parte do artigo de Zach Warren sobre a participação de Roy Zur, (CEO da companhia Israelense Cybint) na Association of Certified E-Discovery Specialists (ACEDS)2016, E-Discovery Conference and Exhibition. Segundo Zur, o problema está na quantidade cada vez maior de informação, mas sem o devido acesso a elas. Por acesso entende-se conseguir tratar as informações coletadas (por todos os meios) e transformá-las em conhecimento e ideias utilizáveis.  Zur cita os cinco principais passos para conseguir acesso às informações coletadas: 1. Dados: geralmente, a maior parte do que é coletado contém “ruído branco” (tradução livre para whitenoise) que embaça ou esconde aquilo que é realmente importante. Um especialista na área deve ser capaz de “limpar” o ruído e colocar os dados de maneira estruturada e passível de indexação. 2. Informação: para transformar dados em informação “você deve ser capaz de identificar as diferentes partes e entender ao que se relacionam exatamente”. 3. Conhecimento: “O próximo passo é, de fato, conectar os pontos”, diz Zur. Identificando e entendendo as relações entre os dados, os pesquisadores podem desenhar soluções ou conclusões. 4. Indicadores: especialistas e pesquisadores devem identificar padrões para utilização em eventos futuros nesta etapa. Mesmo não sendo capaz de identificar tais padrões, o simples estudo desse conhecimento torna o processo futuro ainda mais rápido.

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5. Decisão: finalmente, Zur diz: “este é o passo final de nossa participação como gestores da inteligência (tradução livre para as intelligenceofficers), pois em seguida o resultado caminha para a área de operações”. A tomada de decisão pode e leva em consideração outras coisas que não fazem parte da gestão de inteligência. Apesar de o texto estar voltado à “ciber-segurança”, especificamente a respeito de prevenção de atos terroristas demonstra perfeitamente a importância da gestão do conhecimento. Trazendo a discussão para o universo dos escritórios de advocacia, a adoção de uma cultura de gestão do conhecimento tem como elementos principais: a) captação de dados (representados por toda a estrutura de gestão financeira); de informações explicitas não estruturadas (representadas pelos documentos contidos em GED´s, e-mails, cadastros e CRM´s) e, por fim, as informações tácitas (captadas em fóruns de discussão, wikis, perfis pessois e treinamentos) e; b) a utilização de um motor de busca inteligente, amigável ao usuário e configurável às necessidades especificas de cada escritório. A gestão do conhecimento representa um fator decisivo para o posicionamento competitivo dos escritórios no momento e para a sobrevivência num futuro cada vez mais tecnológico, digital e robotizado. A ajuda de uma consultoria externa, experiente e isenta das interações políticas internas pode acelerar, e muito, o processo de adoção e implantação da “filosofia” de gestão do conhecimento. 

José Paulo Graciotti é consultor e sócio da GRACIOTTI Assessoria Empresarial, engenheiro formado pela Escola Politécnica com especialização Financeira pela FGV e especialização em Gestão do Conhecimento pela FGV. Membro da ILTA– International Legal Technology Association.

revista JURÍDICA consulex - ano xX - nº 465 - 1º DE JUNHO/2016

DIVULGAÇÃO

gestão de escritório

“Cyber Intelligence” e Gestão do Conhecimento

“No momento, o que importa é garantir a solvência do setor público, e um tributo nos moldes arrecadatórios de um imposto geral sobre movimentação financeira é a opção menos ruim.”  POR MARCOS CINTRA

A

arquivo pessoal

umentar impostos é o pior instrumento para realizar o ajuste fiscal. Mas é a única alternativa disponível. Explico. O governo Temer não assumiu em condições normais. Tanto as expectativas quanto os ressentimentos achamse exacerbados, e qualquer hesitação ou equívoco implicará frustração e desarranjos institucionais profundos. Neste ambiente, imaginar que o ajuste fiscal poderá ser feito em tempo hábil mediante cortes imediatos de gastos e desvinculação de receitas é pura ingenuidade. Em geral, a sociedade brasileira gosta e defende a presença do governo e resiste ao desatrelamento parasitário entre os setores público e privado. O “contrato social” inscrito na Constituição busca implantar um estado de bem -estar social sem respaldo econômico para financiá-lo. Ademais, grupos corporativos de todos os setores estão eficientemente organizados para deter qualquer redução de privilégios que afetem seus interesses específicos. Todos apoiam cortes de gastos, dos outros. Nestas condições, o futuro governo Temer não disporá de tempo para fazer valer sua capacidade negociadora e convencer a sociedade acerca dos méritos das reformas estruturais necessárias para colocar o país de volta em trajetória de crescimento sustentado. Há que se evitar a infausta experiência do ex-ministro Joaquim Levy que, ao invés de adotar de imediato medidas draconianas e incisivas de ajuste orçamentário, enquanto ainda dispunha de capital político para tanto, acabou se perdendo em medidas tópicas, de curto alcance, e que multiplicaram os focos de oposição às suas propostas. Está certo o ministro Henrique Meirelles quando diz que poderá ser necessário aumentar impostos para reequilibrar o orçamento, abrindo-se, assim, espaço e am-

biente mais propícios às discussões de fundo acerca das reformas estruturantes. Mas se há que aumentar impostos, quais seriam os alvos preferenciais? E neste ponto faço a defesa da tributação sobre a movimentação financeira, no estilo CPMF, mas diferente dela, uma vez que além de sua característica arrecadatória o tributo seria um substituto de contribuições atuais, conforme explicitei em artigo publicado no Correio Braziliense, em 2 de março último. A CPMF virou palavrão no léxico economês nacional. Contudo, se implantada juntamente com a simplificação, racionalização e redução de outros tributos pode tornarse plenamente aceitável. Comparativamente ao aumento de tributos existentes, como o IR sobre distribuição de lucros e dividendos, a Cide ou ganhos de capital, um imposto sobre a movimentação financeira arrecada mais e causa menor impacto sobre a economia e sobre as famílias. Seu efeito é difuso, universal, e não elege setores específicos para suportarem o peso do ajuste. É o caminho que minimiza resistências. E se vier acompanhado de medidas simplificadoras e substitutivas de outros tributos poderá angariar apoios significativos para sua implantação. No momento, o que importa é garantir a solvência do setor público, e um tributo nos moldes arrecadatórios de um imposto geral sobre movimentação financeira é a opção menos ruim. Há como provar que essa forma de tributação não é regressiva e nem ineficiente como se alardeia. O pior que se poderia fazer é excluir esta alternativa do rol de medidas a serem consideradas pelo futuro governo por mero preconceito, modismo político ou desconhecimento.

Marcos Cintra é doutor em Economia pela Universidade Harvard (EUA) e professor titular de Economia na FGV (Fundação Getulio Vargas). Foi deputado federal (1999-2003) e autor do projeto do Imposto Único.

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painel econômico

A inevitável CPMF

DIVULGAÇÃO

direito e bioética

Você e sua medula óssea “Foi sancionada a Lei n° 13.289, de 20 de maio de 2016, que cria o Selo Empresa Solidária com a Vida, destinado às empresas que desenvolvem programa de esclarecimento e incentivo aos seus funcionários para que sejam doadores de sangue e medula óssea.”

„„ por

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EUDES QUINTINO DE OLIVEIRA JÚNIOR

revista JURÍDICA consulex - ano xX - nº 465 - 1º DE JUNHO/2016

M

achado de Assis, com sua sensibilidade descritiva aguçada, mestre da observação psicológica, romântico e parnasiano-realista, querendo satisfazer uma curiosidade a respeito da influência do sangue no ser humano, fez uma incursão na área do xenotransplante. Pela experiência narrada, Stroibus e Pítias, dois amigos filósofos e cientistas descobriram que se a pessoa ingerir o sangue do rato irá tornar-se ratoneiro; da coruja, sábia; da aranha, arquiteta; da cegonha e da andorinha, viajante; da rola, trará fidelidade conjugal; do pavão, vaidade. Tomaram o sangue de rato. Foram presos na corte de Ptolomeu e condenados à morte por seguidos furtos de raras obras literárias da biblioteca de Alexandria.1 É certo que a ficção científica nunca foi o campo preferido do Bruxo do Cosme Velho, mas faz ver que o homem sempre se interessou por aventuras biológicas relacionadas com o sangue. Tamanha verdade, que a própria ciência médica entabulou os procedimentos envolvendo transplantes sanguíneos com inquestionáveis sucessos para a saúde humana. E assim é possível caracterizar o homem como proprietário de um imenso latifúndio, chamado corpo humano e, ao mesmo tempo em que representa um patrimônio individualizado, carrega a semente universal, que irá proporcionar a continuidade da humanidade. A doação de órgãos e tecidos no Brasil é feita inter vivos, modalidade em que qualquer pessoa capaz poderá consentir e, na impossibilidade, seu representante legal, desde que se trate de órgãos duplos (rins, por exemplo) ou partes renováveis do corpo humano, para fins terapêuticos ou para transplantes em cônjuge, parentes consanguíneos até o quarto grau, ou qualquer outra pessoa, mediante autorização judicial, dispensada esta em relação à medula óssea. Sempre e sempre a título gratuito, em razão do disposto no artigo 199 § 4º da Constituição Federal e da Lei nº 9.434/1997, em seu art. 1º. Percebe-se, pelo relato legislativo, que a pessoa não divide com o Estado a legitimidade de doar sua medula óssea e pode fazê-lo a quem lhe aprouver, prevalecendo sua autonomia. Foi sancionada a Lei n° 13.289, de 20 de maio de 2016, que cria o Selo Empresa Solidária com a Vida, destinado às empresas que desenvolvem programa de esclarecimento e incentivo aos seus funcionários para que sejam doadores de sangue e medula óssea.2 Na realidade, a doação deveria ser ato de comunhão, de alteridade, levando-se em consideração que a natureza humana tem como sus-

tentáculo o altruísmo. O sangue que circula no corpo ou se aloja na medula óssea de uma pessoa tem compatibilidade para se transferir para outro corpo e restaurar uma vida atingida por doenças que afetam as células, como as leucemias. É, por um lado, uma doação representando um gesto de extrema solidariedade, com rápida reconstituição do material doado e, por outro, a única chance de vida para o doente receptor. Para ser doador de sangue basta ter boas condições de saúde e ter entre 16 e 69 anos, desde que a primeira doação tenha sido feita até os 60 anos e pesar no mínimo 60 kg. A lei permite a doação feita por adolescente, mas exige o termo de autorização assinado por um dos pais ou pelo responsável legal. A doação de medula óssea, por sua vez, pode ser feita por qualquer pessoa entre 18 a 55 anos de idade, no gozo de boas condições de saúde. O procedimento é invasivo e se resume na retirada do sangue do interior dos ossos da bacia, mediante punções. O material coletado irá determinar as características genéticas que são exigidas para a compatibilidade entre doador e paciente, por meio de um sistema que realiza o cruzamento de informações entre ambos, visando à realização do transplante. Em caso de compatibilidade, o doador será comunicado e nasce daí a necessidade de se fazer a atualização constante do cadastro, quando se submeterá a exames complementares. Tamanha é a importância do procedimento que o transplante também pode ser realizado com a utilização de células-tronco de cordão umbilical de recém-nascidos, preservadas e doadas voluntariamente pelas mães. Geralmente, o doador é procurado na família. Se a busca não der resultado positivo faz-se a consulta ao Registro Nacional de Doadores Voluntários de Medula Óssea (REDOME) que, por sua vez, age articulado com o cadastro mundial, sendo as buscas realizadas simultaneamente no Brasil e nos bancos internacionais. Assim, quanto maior o número de pessoas inscritas, maior a possibilidade de se encontrar doador compatível. Respeitadas as condições exigidas, qualquer um pode ser doador. Basta procurar pelo hemocentro mais próximo e manifestar o interesse. É, sem dúvida, um ato de estremada solidariedade, revelador de um sentimento humanitário digno de todo respeito e admiração, demonstrando que a natureza humana proporciona o bem estar àquele que é saudável e acode o vulnerável com os recursos do corpo humano alheio.

arquivo pessoal

NOTAS 1 ASSIS, Machado de. Volume de contos. Rio de Janeiro: Garnier, 1884. Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro http://www.bibvirt. futuro.usp.br. 2 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2016/Lei/L13289.htm

Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de justiça aposentado/SP, mestre em direito público, pós-doutorado em ciências da saúde, advogado, reitor da Unorp, membro da CONEP/CNS/MS.

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propostas e projetos

Endurecer pena para o estupro é demagogia  POR EURO BENTO MACIEL FILHO

O

Senado Federal aprovou proposta que tem por escopo incluir na nossa legislação a figura do “estupro coletivo”, além de um novo delito, relacionado à divulgação das imagens de um estupro. De acordo com o projeto (PLS nº 618/2015), a nova figura seria incluída no Código Penal como uma causa de aumento de pena, que poderia aumentar a punição do(s) agente(s) de 1/3 a 2/3, nos casos em que o crime

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revista JURÍDICA consulex - ano xX - nº 465 - 1º DE JUNHO/2016

fosse cometido “em concurso de duas ou mais pessoas”, a qual recairia sobre os crimes hoje previstos nos arts. 213 a 217-A, do nosso Código Penal. Além disso, o referido projeto também cria um novo tipo penal, que criminaliza a conduta daquele que “oferece, troca, disponibiliza, transmite, distribui, publica ou divulga, por qualquer meio, inclusive por meio de sistema de informática ou telemático, fotografia, vídeo ou outro registro que contenha cena de

DIVULGAÇÃO

“É bom dizer que esse tipo de proposta, tão equivocada quanto inoportuna, é, em verdade, um enorme “tiro no pé”, afinal, levando-se em conta os altos índices de reincidência existentes no nosso sistema prisional é forçoso concluir que nossas cadeias mais aviltam o cidadão do que o recuperam para retornar ao convívio social.”

arquivo pessoal

estupro”, sendo certo que, para tal delito, prevê- se a pena de reclusão de dois a cinco anos. É evidente que o mencionado projeto ganhou destaque nos últimos dias em virtude do fato lamentável ocorrido no Rio de Janeiro/RJ, quando uma menor teria sido estuprada por diversos marginais. Porém, antes de qualquer discussão a respeito daquela barbárie, faz-se necessário indagar: o endurecimento das penas e a criminalização de novas condutas são, de fato, soluções adequadas para acabar ou diminuir os nossos índices de criminalidade? Positivamente, já está mais do que demonstrado que o recrudescimento das penas não resolverá o problema. Sem dúvida alguma, partindo do princípio que o relatório do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (INFOPEN) revelou que 75% da nossa população carcerária é formada por presos analfabetos ou com baixa escolaridade, fica claro que a saída mais coerente e eficaz está na educação do povo, não no mero confinamento do criminoso. Lamentavelmente, sai Governo, entra Governo, e o discurso parece ser sempre o mesmo. Basta a prática de um crime bárbaro, que provoque comoção social, para que o surrado “marketing criminal”, ou seja, a velha solução do ‘endurecimento das penas’ , com a punição desenfreada de tudo e todos, ressurja com força. Agora, ao que parece, a bola da vez é o ‘estupro’. Ocorre, porém, que, desta vez, aquele velho discurso foi além, já que, não bastasse a previsão de novos crimes e o aumento das penas de delitos já existentes, também foi colocada a ideia de se propor alterações no benefício da progressão de regimes, o qual, certamente, é uma das mais importantes ferramentas de que dispõe o Estado para buscar a tão almejada ressocialização do criminoso. De acordo com a legislação atual, o autor de um crime comum tem direito de progredir de regime após o cumprimento de 1/6 do total da pena, desde que possua bom comportamento carcerário. Já para os autores dos crimes considerados hediondos (como é o caso do estupro), a progressão se dá com 2/5

da pena (se o agente for primário) ou 3/5 (se reincidente). Em meu modesto sentir, ao menos nesse particular, a lei atual é boa e se mostra compatível com a nossa realidade. Mas, infelizmente, em recentes manifestações na mídia, o ministro de Justiça tem defendido o endurecimento no sistema de progressão de penas. Segundo ele, o sistema atual não se mostra ‘razoável’. Em que pese o entendimento defendido pelo ministro, acredito que nada precisa ser alterado. O nosso atual regramento é absolutamente ‘razoável’, sobretudo se considerarmos que o nosso sistema penitenciário não consegue promover a devida ressocialização dos detentos, já que está totalmente falido. Nesse contexto, qualquer comparação que se queira fazer com os “países desenvolvidos” não pode ser aplicada à nossa realidade, uma vez que, ao menos no que toca ao estado atual do nosso sistema prisional, nossas condições são quase medievais. O curioso nisso tudo é que, nem bem estão identificados os autores do crime e, mais do que depressa, o ministro da Justiça e alguns parlamentares vieram a público para postular pelo endurecimento das penas e do tratamento penal dado aos autores não só de estupro, como também de todo e qualquer delito considerado hediondo. Mas, é bom dizer que esse tipo de proposta, tão equivocada quanto inoportuna, é, em verdade, um enorme “tiro no pé”, afinal, levando-se em conta os altos índices de reincidência existentes no nosso sistema prisional é forçoso concluir que nossas cadeias mais aviltam o cidadão do que o recuperam para retornar ao convívio social. O aprisionamento longo e duradouro de quem quer que seja, independente do crime cometido, não resolverá, por si só, o problema da criminalidade. É preciso investir na recuperação do preso – a fim de torná-lo um “cidadão” – e, claro, na formação do jovem, por meio da educação. Discutir o aumento das penas ou a severidade da execução penal, da forma como está o nosso sistema prisional atualmente, é pura perda de tempo, verdadeira demagogia.

Euro Bento Maciel Filho é advogado criminalista, mestre em Direto Penal pela PUC-SP, vice-presidente da Comissão de Direitos e Prerrogativas da seccional paulista da Ordem dos Advogados do Brasil e sócio do escritório Euro Filho Advogados Associados.

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painel do leitor

As rachaduras da democracia „„ por

MARCELO RIBEIRO CORREIA DE SOUZA

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evolução dos dogmas balizadores da democracia e a utilização de mecanismo jurídico pelo Poder Judiciário para resolver demandas pertinentes aos Poderes Executivo e Legislativo criam rachaduras substanciais nos pilares do alicerce dos Poderes Democráticos. Em uma democracia a sociedade anseia por decisões que contemplem o equilíbrio e a segurança jurídica, para que no futuro as pessoas vivam em grupo de forma socialmente organizada. Com a organização dos povos no mundo nasceram os sistemas de governo, foram criadas as formas de repúblicas, monarquias e outros modelos de governança. Aristóteles, Locke e Montesquieu, entre outros pensadores, não foram os criadores das formas de governo, mas sim os que, com grande brilhantismo e sabedoria, as sistematizaram em contornos específicos, baseando-se em teorias já existentes, como podemos verificar em relatos antigos deixados em obras clássicas de célebres autores, por exemplo, Plantão, que em sua obra “A República” demonstra pontos que deixam clara a concepção de uma teoria que consistia em subdividir as funções do Estado de forma que o poder não se concentrasse nas mãos de apenas uma pessoa. Caso contrário, seria possível ensejar um trágico fim, uma vez que, como todos sabem, o homem se desvirtua ante a concentração e a não limitação de poder a ele outorgado. Com a criação do regime democrático pelo Estado organizado, também foi criado um processo evolutivo de seus poderes, a fim de nos permitir viver em uma sociedade mais organizada e segura, com bom senso, serena em suas decisões e buscando sempre atuar em prol de um objetivo comum do povo. Contudo, em algumas das democracias existentes esses processos evolutivos dos poderes acontecem de forma irregular, sendo que alguns evoluem mais do que outros, criando falhas no próprio sistema republicano. Nos últimos 15 anos no Brasil, o Poder Judiciário foi levado a julgar questões pertinentes a outros poderes da República. Nota-se, que o avanço dos poderes republicanos no Brasil está cada vez mais atrasado com relação a outras repúblicas. Os Poderes Legislativo e Executivo estão com suas bases entrelaçadas e afundadas no mar da corrupção, e tais evoluções se tornam necessárias para sedimentar a democracia no sistema republicano, ainda muito jovem no Brasil. A República precisa amadurecer para que os seus cidadãos possam viver em harmonia e evoluir de modo seguro e estável. Em breve análise, podemos considerar que a democracia brasileira é uma adolescente ainda em formação, a qual ao longo do tempo se tornará uma linda jovem, com as ideologias, crenças e costumes mais arrojados para galgar seu futuro promissor. Por um lado, comparando o regime democrático com a rocha de cristal, verifica-

se que, para ser firme e resistente, é necessário que seja íntegra na sua materialidade, não podendo ter nenhuma rachadura. Para verificar se a democracia de um país esta com a sua base firme e concreta em seus ideais, deverá ser observada a evolução dos seus poderes no decorrer da sua instituição governamental. No Brasil, desde a promulgação da Constituição de 1988, os poderes estão em evolução, mas de forma desproporcional um com o outro.  As decisões realizadas pelo Poder Judiciário em questões legislativas dão aos cidadãos um ar de esperança em ações de matérias pré-constitucionais, já que trazem de volta o poder-dever de cuidado do Estado com o seu povo. Cria a esperança de resolução de conflitos que, por falta de normas em matérias especificas, o Poder Legislativo se nega a legislar. Já no âmbito do Executivo a inércia nas execuções administrativas inerentes ao poder traz ao Estado Democrático de Direito a paralisação das suas funções básicas. É como se a engrenagem do Estado ficasse sem a lubrificação necessária para que o poder operacional em suas diretrizes organizacionais pudesse prestar serviços básicos à população. Nota-se que o Poder Executivo não evolui justamente por deter todos os poderes econômico e financeiro do país, abrindo caminho para a improbidade administrativa. A corrupção, por exemplo, pode ser considerada a ferrugem na engrenagem da máquina do Estado Democrático, que não permite a ele funcionar nem ao Poder Executivo evoluir. A evolução se faz necessária para que os dogmas criacionistas impostos pelo poder constituinte na promulgação da Constituição Federal em 1988 possam fazer o Poder Executivo evoluir nas suas eficiências plenas, econômica, sistemática, organizacional e ambiental em face dos outros poderes da República. Com relação ao Poder Judiciário, que a cada dia evolui com seus operadores, este busca sempre praticar de forma justa e com bom senso o direito que lhe tenha sido provocado. Podemos dizer que o direito é a base do Poder Judiciário Brasileiro e que está em evolução diariamente, juntamente com as premissas do mundo moderno globalizado. Mas, não podemos nos esquecer de que, para ser concretizada a evolução de um poder em um sistema de governo republicano, é necessário que a sociedade também evolua. Como são os poderes harmônicos que evolutivamente dão sustentabilidade aos pilares da República, tornando-a sólida e resistente à maresia do tempo, trazendo ao povo segurança jurídica e estabilidade econômica, viver em uma República nos moldes expostos é viver em uma utopia pragmática de conceitos superficiais que não fazem parte das características humanas.

MARCELO RIBEIRO CORREIA DE SOUZA é advogado no Escritório Soncini Advogados.

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destaque

ARQUIVO PESSOAL

Mozart Neves Ramos Jovens merecem uma boa educação

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pesar de ter opinião formada, não usarei esse espaço para opinar se o governo atual é golpista ou não, se o processo de impeachment é legítimo ou não, se a proposta do ministro Henrique Meirelles é um retrocesso, ou não, ao propor o término da vinculação dos recursos à educação. O fato é que o país está diante de uma situação econômica dramática, com um rombo de R$ 170 bilhões, e se não colocar a casa em ordem e resgatar a confiança dos investidores, o país afunda de vez. Fazer o país voltar a crescer de forma sustentável deve ser a maior das prioridades, que exigirá um pacto de nação, no qual todos deveriam dar sua contribuição nessa hora. É preciso, apesar de muito difícil – e não sou ingênuo –, deixar a crise política separada da crise econômica. Maus brasileiros usurparam e lesaram o país em níveis elevados de corrupção e de roubo jamais vistos na história deste país. E nesse mar de lama, que precisa ser rigorosamente apurado pelo Judiciário, para salvaguardar o futuro do Brasil, estão as nossas crianças e os nossos jovens, com quem realmente me preocupo. A melhor maneira de ajudá-los é não deixando de lhes oferecer boa educação. Esse é o caminho mais seguro para proteger o futuro do Brasil. Por isso, vou me dedicar, neste artigo, a propor ideias ao ministro da Educação Mendonça Filho, que acredito possam ser efetivadas, ainda que num cenário muito adverso. Tive o privilégio de atuar como secretário de Educação e Cultura no governo Jarbas Vasconcelos e Mendonça Filho (2003-2006), na considerada cota técnica. Conheci assim a grande capacidade de trabalho de Mendonça Filho, que, se tiver condições de formar boa equipe, poderá fazer algo pelo país no campo da educação. Os primeiros nomes apontam nessa direção, como Maria Helena Castro, na Secretaria Executiva; Maurício Romão, na Secretaria de Normatização; Maria Inês Fini, no Inep; e Rossieli Soares, na Secretaria de Educação Básica. Costumo dizer que o MEC virou um cargueiro com programas e atribuições de grande robustez, como o Enem, o Prouni, o Fies e o Pronatec, entre outros, tomando praticamente a agenda do ministério. No curto prazo, precisamos colocar em prática novas estratégias para dar

mais foco à questão da qualidade e da gestão da educação, aproveitando o que de positivo foi criado nos últimos 15 anos. Não vamos aqui nos enganar pensando que tudo o que foi realizado anteriormente foi errado e malfeito, até porque foram criados bons programas, como os citados acima, que precisam de aperfeiçoamento, e cujo real impacto precisa ser mais bem avaliado. Não podemos também perder de vista o cumprimento das metas do Plano Nacional de Educação (PNE). Não se trata de um plano de governo, mas de sociedade. Assim, precisamos efetivá-lo, e podemos fazer isso incorporando estratégias inovadoras para alcançar algumas de suas metas. O PNE não é só financiamento, mas pode ser uma oportunidade para gastar melhor o dinheiro público, com maior eficiência, eficácia e efetividade. A Base Nacional Comum Curricular (BNCC), prevista no próprio PNE, é uma dessas oportunidades, na qual o país definirá o que precisa ser aprendido por nossas crianças e nossos jovens em cada etapa da educação básica, da educação infantil ao ensino médio, impactando diretamente os processos de formação de professor e de avaliação da aprendizagem. A BNCC ainda está em processo de aperfeiçoamento e vem mobilizando o Brasil. Um fato que o MEC não pode ignorar, talvez por ser um cargueiro, é que muito do que hoje está acontecendo no campo da inovação e da criação na educação ocorre no ambiente da sociedade civil organizada, em parceria com as redes de ensino e as secretarias de Educação, sem que o MEC esteja efetivamente contribuindo para alavancar tais iniciativas e compartilhá-las com um número maior de secretarias e redes. O MEC poderia criar pontes estratégicas com a sociedade civil para melhorar os indicadores da educação no país, de forma organizada e transparente. Esse mar de lama pode ser uma oportunidade para o país se reerguer por um caminho mais sólido, no qual a educação pode ser a melhor das apostas. Por uma educação em que crianças e jovens de fato aprendam não só aquilo que é importante para a vida atual, mas para a futura, tornando-se pessoas críticas e éticas, que saibam fazer as escolhas certas e justas para o desenvolvimento do Brasil.

Mozart Neves Ramos é graduado em Engenharia Química pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), doutorado em Química pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pós-doutorado em Química pela Politécnica de Milão - Itália. É professor da UFPE desde 1977, diretor de Articulação e Inovação do Instituto Ayrton Senna.

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MATÉRIA DE CAPA

IMPEACHMENT E A POSSI CONTROLE JU “O instituto do impeachment, por não se confundir com o recall ou o Abberufungsrecht, não possui natureza exclusivamente política. Logo, há necessidade de demonstração de ter ocorrido crime. O exame da justa causa, da presença da tipicidade, pode ser realizado pelo Supremo Tribunal Federal, controlando, assim, a decisão do Poder Legislativo quando atuar como órgão julgador no processo de impedimento do Presidente da República. Negar isso seria aceitar uma natureza exclusivamente política do processo de impeachment.”

 POR MARCELO LABANCA e FLAVIO JOSÉ ROMAN

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DIVULGAÇÃO

POSSIBILIDADE DE SEU URISDICIONAL

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uito se tem discutido sobre o instituto do Impeachment e ainda se a sua natureza seria política ou jurídica. A questão que se pretende abordar neste breve espaço é se o julgamento de um Presidente da República pelo Senado Federal comportará, ou não, revisão judicial por parte do Supremo Tribunal Federal. Para tanto, é indispensável avaliar qual é a natureza jurídica do processo de impedimento por crime de responsabilidade. Caso se acolha a tese de que se trata de um processo exclusivamente político, resumido, portanto, necessariamente à avaliação de conveniência e oportunidade segundo o juízo subjetivo dos parlamentares, não haveria sequer sentido na discussão da legitimidade do procedimento sob o ponto de vista jurídico. Enfim, o juízo dos parlamentares, sob perspectiva jurídica, não seria censurável pelo Poder Judiciário e a discussão perderia sentido. Sobre o ponto, convém reconhecer, que muitas linhas já foram escritas sobre o tema de modo a permitir a conclusão de que se trata de um procedimento que, embora admita o juízo final de mérito político, é, seguramente, um procedimento jurídico. Assim, trata-se de um procedimento jurídico para o exercício de um juízo político, tal qual se apura no exercício de competências discricionárias pela Administração Pública. Nesse sentido, a doutrina assegura que não se trata, portanto, de um procedimento integralmente político: Influenciada pela sistemática norte-americana, parte da doutrina militou na crença, hoje vencida, de que o processo por crime de responsabilidade teria natureza integralmente política. Como consequência de tal ponto de vista, sustentou-se faltar jurisdição ao Poder Judiciário para conhecer de quaisquer questões afetas ao tema. É inegável que o proces-

so de impeachment tem uma dimensão política, tanto pela natureza dos interesses em jogo e das pessoas envolvidas, como, notadamente, por duas circunstâncias: a) não podem os órgãos do Poder Judiciário rever o mérito da decisão proferida pela Casa Legislativa; b) a decisão não deve reverência aos rigores de objetividade e motivação que se impõem aos pronunciamentos judiciais (CF, art. 93, IX). Nada obstante, a despeito de posições minoritárias dissonantes, afirmou-se, com a chancela da jurisprudência reiterada do Supremo Tribunal Federal, a tese de cabimento de controle judicial dos atos praticados no processo por crime de responsabilidade perante órgão legislativo.1

A doutrina, desde pelo menos meados do século passado, já estabelecera a natureza dúplice do processo de impedimento por crime de responsabilidade. Não se deve, contudo, a partir da ideia da presença de um crime, reconhecer ao procedimento a natureza própria e específica de processo penal, com todas as garantias e direitos ao acusado, inerentes aos procedimentos dessa natureza. Nesse sentido, a doutrina de Miguel Reale já esclarece o erro de conceber o processo de impedimento como um processo criminal comum: 3. A natureza mista do instituto é efetivamente a que melhor corresponde aos seus objetivos e às normas disciplinadoras de seu processamento, pois se é ele judicial quanto à intencionalidade de obedecer-se a critérios de certeza e de garantia no procedimento e na decisão, nunca deixa de ser um ato político pela fonte de que promana o julgamento, pois, consoante justa ponderação de Tocqueville, ‘constitui um julgamento político a decisão proferida por um corpo político momentaneamente revestido do direito de julgar’ (‘De la Democratié en Amerique’, I, pág. 171). (...)

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MATÉRIA DE CAPA Contra esta tese, no entanto, poder-se-á retrucar, e a meu ver com toda a procedência, com as seguintes ponderações de Themístocles Cavalcanti, ao encaminhar ao Supremo Tribunal Federal a já referida representação n. 96: “Mesmo quando político o crime, mesmo quando a infração transcende dos limites dos chamados crimes comuns, seria inadmissível a aplicação da lei penal comum por outros tribunais que não aqueles que integram o Poder Judiciário. Importaria o procedimento em contrário em infração de garantia constitucional (art. 141. § 26) que proíbe a criação de tribunais de exceção e que, portanto, assegura a todos o julgamento pelos tribunais ordinários”. (“Rev. Forense”, vol. 125/116). Assim sendo, se o “impeachment” se enquadrasse no campo do Direito e do processo penais não poderia jamais o legislador ordinário conferir às Assembleias Legislativas ou às Câmaras Municipais competência para decidir sobre a matéria.2

Essa forma de compreensão sobre a natureza jurídica do impedimento por crime de responsabilidade foi reafirmada pelo Supremo Tribunal Federal no já referido julgamento no qual se discutiu a recepção da Lei nº 1.079, de 1950. A ementa do julgado, a propósito, é suficientemente clara nesse sentido. 1. O impeachment integra, à luz da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e da Lei 1.079/1950, o rol de procedimentos presentes no Estado Democrático de Direito, configurando-se em processo de índole dúplice, de natureza jurídico-política para o fim de examinar a imputação e definir a ocorrência ou não de crime de responsabilidade por parte de Presidente da República, devendo o Supremo Tribunal Federal assegurar a realização plena do procedimento nos estritos termos da lei e da Constituição.3 Neste mesmo precedente, a presença do componente político, a propósito, importou no afastamento de uma das garantias mais caras ao processo criminal ordinário: a imparcialidade das autoridades que apreciam o pedido. Assim, o Supremo Tribunal Federal, reafirmando a natureza dúplice do instituto do impedimento definiu que não poderiam ser arguidas alegações de suspeição ou impedimento: Diante disso, exigir aplicação fria das regras de julgamento significaria, em verdade, converter o julgamento jurídico-político em exclusivamente jurídico, o que não se coaduna com a intenção constitucional. A Constituição pretendeu que o julgador estivesse sujeito à lei e a interesses políticos, de modo que a subtração dessa perspectiva implicaria violação ao Princípio Democrático. [...] Portanto, as causas de impedimento e suspeição não se compatibilizam com o processo jurídico-político, bem como não há subsidiariedade na produção de provas propostas por parlamentares.4

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Assim, deixe-se claro, não procede dizer que o processo de impeachment é estritamente político. Caso fosse, não seria passível de controle jurisdicional. Mas, como possui também natureza jurídica, pode-se falar em controle jurisdicional, inclusive da tipicidade, como adiante será demonstrado. Uma das provas de que não se trata de um procedimento meramente político é o fato de o Supremo Tribunal Federal, pós 1988, ter retirado do constituinte estadual o poder de definir regras e de ser órgão julgador do impeachment de governadores, haja visto que várias Constituições estaduais definiram como sendo a Assembleia Legislativa o órgão competente para julgar o Governador em crimes de responsabilidade. Todavia, o Supremo Tribunal Federal julgou-as inconstitucionais, afirmando que falece competência aos Estados-membros para definir regras de julgamento em crimes de responsabilidade. Isso está consignado na súmula 722 do STF, verbis: “Competência legislativa. União. Crime de responsabilidade. Definição e normas de processo e julgamento. CF/88, arts. 22, I e 85, parágrafo único.”. Ou seja, se o processo fosse meramente político, e a natureza da infração fosse apenas político-administrativa, a autonomia estadual poderia disciplinar regras de processamento e julgamento. Mas não é esse o entendimento do Supremo Tribunal Federal. Segundo a Corte, aplica-se, no plano estadual, a Lei nº 1.079, de 1950, que define o Tribunal Especial como órgão julgador, composto por desembargadores e deputados estaduais, como sendo o foro competente para julgamento de Governador pela prática de crime de responsabilidade. Com isso, considera-se a natureza jurídica “quase-penal” do crime. Ora, se há uma natureza parcialmente jurídico-penal na definição do crime de responsabilidade, há outro dado a ser considerado: o Senado Federal, órgão julgador do Presidente da República nos crimes de responsabilidade, não pode retirar o mandato do Chefe do Executivo federal alegando qualquer motivo. Ou seja, não pode dizer que há crime sem demonstrar a sua existência. Assim, não há uma discricionariedade política ampla. Deve haver a chamada “justa causa” para o processamento. Caso houvesse uma ampla discricionariedade do Senado Federal para dizer o que é e o que não é crime de responsabilidade, haveria uma carta em branco dada pela Constituição Federal à Casa Alta para que, ao seu talante, pudessem, então, os senadores retirar o mandato do Presidente da República. E isso se assemelharia quase a um recall parlamentar. Tecnicamente, o recall é o instituto de revogação de mandato pelo próprio povo. Não se confunde com o Abberufungsrecht do direito suíço, pois este último seria de caráter geral de todos os políticos mandatários. Já no recall político, haveria uma revogação apenas de um mandato específico. Nem o recall e nem o Abberufungsrecht foram previstos na Constituição brasileira. Mas o impeachment está previsto no art. 85. Todavia, diferente dos outros dois institutos, o impeachment

exige a demonstração de um crime de responsabilidade. Assim, conceder ao Senado Federal o poder de dizer o que é e o que não é crime de responsabilidade, sem se sujeitar a um controle jurisdicional, equivaleria a transformar o impeachment em um instituto de recall legislativo (uma inovação do Direito Constitucional brasileiro) ou mesmo na introjeção do voto de desconfiança do parlamentarismo para o nosso presidencialismo, o que não é possível. Nesse sentido, Bahia, Cattoni e Vecchiatti5 lembram bem o posicionamento do Ministro Barroso no julgamento da ADPF 378, vebis:

do Poder Legislativo, é certo também que a perda do apoio desse Poder da República não possui o condão de retirar o mandato presidencial. Caso isso fosse possível, estaríamos diante de um sistema parlamentarista, e não presidencialista, já que este último – o presidencialismo – possui como característica a garantia de mandato fixo para o Chefe do Executivo, ao contrário do parlamentarismo, no qual o Primeiro Ministro depende do apoio parlamentar para continuar no exercício da função. Em vista de todo o exposto, o instituto do impeachment, por não se confundir com o recall ou o Abberufungsrecht, não possui natureza exclusivamente política. Logo, há necessidade de demonstração de ter ocorrido crime. O exame da justa causa, da presença da tipicidade, pode ser realizado pelo Supremo Tribunal Federal, controlando, assim, a decisão do Poder Legislativo quando atuar como órgão julgador no processo de impedimento do Presidente da República. Negar isso seria aceitar uma natureza exclusivamente política do processo de impeachment. O controle jurisdicional, portanto, pode ser feito não apenas em relação às regras procedimentais, como prazos e defesa, devendo ser realizado para que se garanta um due process àquele mandatário que, eleito pelo povo, apenas deve perder o seu mandato diante da plena e irrefutável configuração de um crime de responsabilidade. A questão da definição do crime de responsabilidade, desta forma, não pode passar por um simples argumento de autoridade, do tipo: “cabe ao Senado dizer o que é e o que não é crime, não havendo possibilidade de intromissão judicial no tema”, sob pena de, em assim procedendo, desvirtuar-se o instituto do impeachment, o sistema presidencialista e a própria democracia brasileira. Conclui-se, assim, que eventual controle jurisdicional da tipicidade do crime de responsabilidade é cabível no sistema de freios e contrapesos do constitucionalismo brasileiro e não viola, por certo, a separação dos poderes. Antes disso, concretiza o princípio da inafastabilidade da jurisdição, notadamente considerando que o processo de impeachment não é de jaez exclusivamente política.

A indicação da tipicidade é pressuposto da autorização de processamento, na medida em que não haveria justa causa na tentativa de responsabilização do Presidente da República fora das hipóteses prévia e taxativamente estabelecidas. Se assim não fosse, o processamento e o julgamento teriam contornos exclusivamente políticos e, do ponto de vista prático, equivaleria à moção de desconfiança que, embora tenha sua relevância própria no seio parlamentarista, não se conforma com o modelo presidencialista (...)

Por isso, tratando-se da caracterização do tipo, o exame da justa causa perfaz o conceito do due process e não pode ser desprezado pelo Judiciário no exercício do controle jurisdicional, à luz do art. 5º, XXXV (inafastabilidade da jurisdição). Assim, o Supremo Tribunal Federal pode sim exercer o controle jurisdicional sobre a decisão do Senado Federal, já que não se trata de decisão exclusivamente política e, portanto, deve, à luz do direito, demonstrar a existência da tipicidade do crime de responsabilidade. A necessidade da configuração da tipicidade para que seja o impeachment julgado procedente afasta a possibilidade de um Presidente da República, no Brasil, vir a perder o seu mandato pelo motivo simples da retirada de apoio parlamentar ao seu governo. Se é certo que em um presidencialismo de coalisão, como o brasileiro, apenas é possível governar com o apoio

MARCELO LABANCA é Mestre e Doutor em Direito pela UFPE, com Pós-Doutorado na Universidade de Pisa, Itália. Professor de Direito Constitucional da Universidade Católica de Pernambuco.

arquivo pessoal

arquivo pessoal

NOTAS 1 BARROSO, Luís Roberto. “Crime de responsabilidade e processo de impeachment: descabimento contra secretário de Estado que deixou o cargo”. Revista de Processo. São Paulo, v. 95, pp. 85 - 96, jul.-set., 1999. 2 REALE, Miguel. Impeachment – conceito jurídico. Revista dos Tribunais, v. 355, p. 67. São Paulo, mai., 1965,. Republicado em: Doutrinas Essenciais de Direito Constitucional, v. 4, pp. 541 – 560. São Paulo, mai., 2011. 3 BRASIL, Supremo Tribunal Federal. ADPF nº 378/DF. Tribunal Pleno, j. em: 17 dez. 2015, DJe de 8 mar. 2016. Trecho da ementa, p. 3. 4 BRASIL, Supremo Tribunal Federal. ADPF nº 378/DF. Tribunal Pleno, j. em: 17 dez. 2015, DJe de 8 mar. 2016. Trecho do voto do Min. Edson Fachin, p. 86. Convém explicitar que o Min. Edson Fachin, relator originário do processo, embora componha a corrente vencida, em parte, no julgamento, no ponto indicado, como em vários outros, compôs parte do voto vencedor. 5 Disponível em: http://emporiododireito.com.br/supremo-tribunal-federal-deve-barrar/. Acesso em: 20 abr. 2016.

FLAVIO JOSÉ ROMAN é Mestre e Doutor em Direito do Estado pela PUC-SP. Professor convidado dos cursos de Pós-Graduação Lato Sensu do UniCEUB.

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MATÉRIA DE CAPA

Aspectos Criminais do processo de impeachment “Destaca-se a necessidade premente de apreciar o processo de impeachment e a apuração de eventual “crime” de responsabilidade sob a ótica dos princípios da legalidade, da razoabilidade e do devido processo legal, prestigiando-se, por consequência, o Estado Democrático de Direito e rechaçando-se a condução de processos (políticos ou judiciais) a partir da construção de um clamor público ou de interesses que escapam aos interesses democráticos.”  POR CRISTIANY PEGORARI CONTE

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grande tema da atualidade brasileira é o processo de impeachment da presidenta Dilma Roussef, com fundamento na prática de crime de responsabilidade. Crimes de responsabilidade, na realidade, não constituem, de fato, ilícitos penais, mas sim infrações políticas-administrativas cometidas no desempenho da função presidencial e estabelecidas conforme a Lei nº 1.079/1950 e consoante o art. 85 da CF/88. É neste caminho que aponta o art. 3 da legislação mencionada, ao determinar que “a imposição de pena referida no artigo anterior (perda do cargo com inabilitação para o exercício da função pública por determinado período) não exclui o processo e o julgamento do acusado por crime comum, na justiça ordinária, nos termos das leis de processo penal». Por se tratarem de infrações político-administrativas são processadas perante o Poder Legislativo, constituindo, portanto, julgamento político cujo processamento exige autorização de 2/3 (dois terços) dos membros da Câmara dos Deputados, conforme o art. 51, inciso I da CF/88. José Afonso da Silva, ao tratar dos crimes de responsabilidade cometidos pelo presidente da República, divide as condutas que podem ser perpetradas em: a) infrações políticas (aquelas que atentem contra a Constituição Federal, contra a existência da União, o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público, e dos poderes constitucionais das unidades da federação, o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais, a segurança interna do país (art. 85, I a IV, da CF/88); b) infrações funcionais (aquelas que atentam contra probidade da administração, a lei orçamentária, o cumprimento das leis e das decisões judiciais (art. 85, V a VII, da CF/88). No caso do impeachment contra a presidenta Dilma Roussef, os argumentos apontados como ensejadores do processo foram, notadamente: as transferências orçamentárias promovidas pelo governo federal para pagar programas sociais e compensar subsídios dados a indústrias, e as denominadas “pedaladas fiscais”, consistentes no atraso dos repasses de dinheiro, pelo Tesouro Nacional, para bancos (públicos e privados) e autarquias, com o objetivo de melhorar artificialmente as contas federais e dar uma aparência de superávit primário (receita maior). A dúvida que surge diz respeito ao enquadramento dessas situações na Lei nº 1.079/1950 como “crimes” de responsabilidade por violação à lei orçamentária. Nesse

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sentido, o art. 10 da legislação mencionada prevê as condutas que configuram “crimes” de responsabilidade contra a lei orçamentária. Seria a “pedalada fiscal” uma operação de crédito a ser enquadrada no item 9 do aludido dispositivo (“ordenar ou autorizar, em desacordo com a lei, a realização da operação de crédito com qualquer um dos demais entes da federação, inclusive suas entidades da administração indireta, ainda que na forma de novação, refinanciamento ou postergação de dívida contraída anteriormente”)? O art. 29, III, c/c parágrafo primeiro do mesmo artigo, da Lei de Responsabilidade Fiscal (LC nº 101/2000), define operação de crédito como “todo compromisso financeiro assumido em razão de mútuo, abertura de crédito, emissão e aceite de título, aquisição financiada de bens, recebimento antecipado de valores provenientes da venda a termo de bens e serviços, arrendamento mercantil e outras operações assemelhadas, inclusive com o uso de derivativos financeiros, bem como a assunção, o reconhecimento ou a confissão de dívidas pelo ente da Federação, sem prejuízo do cumprimento das exigências dos arts. 15 e 16”. A Ordem dos Advogados do Brasil, em denúncia apresentada à Câmara dos Deputados, para apuração por “crime” de responsabilidade da presidenta, afirmou às páginas 14, que “o fundamento do pedido do impeachment não é a reprovação das contas em si, mas sim a deliberada inobservância dos postulados concernentes à responsabilidade fiscal, à lei orçamentária e à higidez das finanças públicas, o que acarretaria na prática de crime de responsabilidade prescrito pela Constituição Federal”. Ademais, se considerarmos a tipificação no dispositivo em tela, respeitando-se, portanto, o princípio da legalidade, ainda assim, seria possível a aplicação de exculpante e responsabilidade, tendo como justificativa a promoção de objetivos maiores expressos na Constituição, tais como o desenvolvimento social (art. 3, da CF/88) ou o atendimento aos direitos mínimos estabelecidos no art. 6 da Carta Constitucional, ou, ainda, a dignidade da pessoa humana (art. 1, CF/88) em virtude do prestígio dos programas sociais em detrimento das operações de crédito? Ainda, houve comportamento doloso por parte da chefe do Poder Executivo nacional em se locupletar nessas operações? O segundo ponto de discussão diz respeito ao período de ocorrência dessas condutas ensejadoras do processo

de impeachment, que, segundo a AGU (Advocacia Geral da União), vinham acontecendo desde mandatos presidenciais anteriores ao atual, fator colocado em xeque no mencionado processo. Vale lembrar que o exercício do cargo de presidente da República tem como pressuposto um mandato, cujos desempenho e compromisso de responsabilidade são conquistados por meio de eleições e seguidos de diplomação e posse, que legitimam a escolha da maioria dos cidadãos. E que, embora, haja reeleição, cada mandato representa uma renovação do escrutínio eleitoral e da fidelidade governamental à Constituição e à democracia. Assim, conforme sinaliza Carlos Ayres Brito, em artigo intitulado “Definições de crimes de responsabilidade do presidente da República”: [...] o mandato presidencial vencido sem abertura e julgamento do crime de responsabilidade constitui página virada, por outro lado, infrações de outra natureza jurídica ainda não prescritas, em especial infrações penais comuns, as de caráter eleitoral, as situadas no âmbito do dever constitucional da prestação de contas e da lei de improbidade administrativa devem ser apuradas e punidas, cada qual, sob o formato jurídico que demandar seu processo e julgamento, que não se confunde com o concebido pela Constituição para os crimes de responsabilidade do presidente da República.

A última indagação que se apresenta diz respeito ao TCU (Tribunal de Contas da União) e a força vinculante das suas deliberações, tendo em vista o caráter meramente opinativo, a teor do art. 71, I, da CF/88, como base para um processo tão grave cuja consequência é o impedimento do exercício do mandato presidencial. Algumas considerações sobre o processo e julgamento por crimes de responsabilidade estabelecidos na Lei nº 1.079/1950 A lei que trata dos “crimes” de responsabilidade prevê, a partir do art. 14, o procedimento para processo e julgamento do presidente da República e ministros de Estado. Exatamente por se tratarem de infrações político-administrativas, a denúncia por “crime” de responsabilidade poderá ocorrer por qualquer cidadão, perante a Câmara dos Deputados (art. 14) e deve ser acompanhada dos documentos que a comprovem, bem como devem ser arroladas testemunhas (até o número máximo de cinco), que poderão, inclusive, ser conduzidas coercitivamente (art.18). Por isso, em 28 de março de 2016, a Ordem dos ADvogados do Brasil, representada pelo presidente do Conselho Federal Claudio Pacheco Prates Lamachia, apresentou denúncia por crime de responsabilidade ao presiden-

te da Câmara dos Deputados do período, o deputado federal Eduardo Cunha. Recebida a denúncia, que não se confunde, frisa-se, com aquela que configura petição inicial de uma ação penal de iniciativa pública apresentada pelo Ministério Público, esta será lida no expediente da sessão seguinte e despachada a uma comissão especialmente eleita, cujo papel é deliberar sobre o recebimento, bem como sobre a realização de eventuais diligências. Decretada a acusação do presidente da República, haverá a suspensão imediata do exercício das funções do acusado e da metade do subsídio ou vencimento, até a sentença final. Se a acusação também tratar de crime comum ou de responsabilidade, o processo será enviado ao Supremo Tribunal Federal ou ao Senado Federal. Os arts. 24 e seguintes da Lei nº 1.079/1950 tratam do julgamento, prevendo que, recebido, no Senado, o decreto de acusação com o processo enviado pela Câmara dos Deputados, o chefe do Poder Executivo nacional será notificado a comparecer perante o Senado em data a ser designada. Ao presidente do STF será enviado o processo original com a comunicação do dia designado para julgamento. Na data aprazada para julgamento será realizada a instrução, com a oitiva das testemunhas arroladas, debates orais entre a comissão acusadora e o acusado, com seus advogados, pelo prazo a ser fixado pelo presidente do STF, não podendo exceder a duas horas. Findo os debates, o presidente do STF fará um relatório sobre a denúncia e provas produzidas e submeterá o julgamento à votação nominal dos senadores. Se a sentença for condenatória o acusado estará imediatamente destituído do cargo, se, no entanto, for absolutória, o acusado será restituído ao cargo. O art. 38 da legislação em epígrafe prevê, ainda, a aplicação subsidiária, ao procedimento, dos regimentos internos da Câmara dos Deputados, do Senado Federal, bem como o Código de Processo Penal. Considerações finais O presente artigo tem por escopo jogar algumas luzes sobre as questões jurídicas que envolvem o processo de impeachment da chefe do Poder Executivo nacional, Dilma Roussef, ressaltando os aspectos penais e processuais penais aplicáveis a temática. Destaca-se a necessidade premente de apreciar o processo de impeachment e a apuração de eventual “crime” de responsabilidade sob a ótica dos princípios da legalidade, da razoabilidade e do devido processo legal, prestigiando-se, por consequência, o Estado Democrático de Direito e rechaçando-se a condução de processos (políticos ou judiciais) a partir da construção de um clamor público ou de interesses que escapam aos interesses democráticos.

arquivo pessoal

REFERÊNCIAS BRITTO, Carlos Ayres. Definições de crimes de responsabilidade do presidente da República. Disponível em: http://www.conjur.com. br/2015-set-01/ayres-britto-crimes-responsabilidade-presidente.shtml. Acesso em: 07 jun. 2016. SILVA, José Afonso. Comentário contextual à Constituição. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2006., p. 490-493.

Cristiany Pegorari Conte é advogada. Professora de Direito Penal e Processual Penal da PUC-Campinas e da USF/BP. Membro do IBCCrim.

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MATÉRIA DE CAPA

Pedaladas fiscais e impeachment “As chamadas “pedaladas fiscais”, quando utilizadas para atrasar o repasse de verbas aos Poderes Legislativo e Judiciário, por exemplo, implicam crime de responsabilidade, pois violam o livre exercício dos demais poderes, servindo como embasamento para pedido de impeachment. Já quando utilizadas para os demais casos, não caracterizam crime de responsabilidade. Por sua vez, crimes de responsabilidade em nada se confundem, a não ser pela nomenclatura similar, com crimes decorrentes de violação à Lei de Responsabilidade Fiscal, pois, enquanto os primeiros encontram-se no âmbito dos Direitos Constitucional, Financeiro e Administrativo, os segundos estão no âmbito do Direito Penal, ou seja, são crimes comuns.”  POR FÁBIO TOMKOWSKI

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expressão “pedalada fiscal” ganhou extrema popularidade em decorrência dos eventos ocorridos no cenário político nos últimos tempos. No entanto, poucos compreendem sua significação e qual sua relação com o impeachment, que é o que se busca demonstrar, de maneira sucinta, no presente artigo. Chamou-se de “pedalada fiscal” o não repasse de recursos financeiros por parte do Tesouro às instituições financeiras, para que elas pudessem efetuar o pagamento das despesas ocasionadas pela implementação de programas sociais fixados na Lei Orçamentária Anual. Em outras palavras, o Tesouro Nacional, que é administrado pelo Governo, possui a responsabilidade de repassar os recursos financeiros referentes às verbas fixadas aos órgãos e entidades previstos na Lei Orçamentária Anual. No caso das verbas consignadas aos Poderes Legislativo e Judiciário, bem como ao Ministério Público e Defensoria Pública, não há possibilidade de pedaladas, pois há expressa determinação constitucional a respeito da quantidade e do tempo em que os repasses deverão ser feitos, nos termos do art. 168 da Constituição Federal. Já com relação aos demais órgãos e entidades públicas não há a mesma determinação constitucional, de modo que se presume que tais verbas devem ser repassadas na medida de suas necessidades, observados os limites e prazos estabelecidos para o vencimento das obrigações de despesas vinculadas, fixadas no orçamento. Deve-se frisar, no entanto, que, diferente do que muitos possam pensar, prima facie, as “pedaladas fiscais” nada têm a ver com o impeachment. Nesse sentido, o que deve ficar claro é que somente omissões dolosas que sejam consideradas desvios de recursos é que podem implicar violação de normas orçamentárias. O que acaba servindo como um complicador para o caso é que não

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há na lei orçamentária norma expressa que determine que os repasses sejam realizados em momentos certos e determinados. O que se tem, como foi exposto anteriormente, é uma presunção de que os recursos concentrados no Tesouro devem ser repassados aos órgãos e entidades conforme a programação específica das unidades orçamentárias. Desse modo, somente as verbas destinadas ao Legislativo, Judiciário, Ministério Público e Defensoria Pública é que devem ser disponibilizadas efetivamente, com a consequência de, nos dois primeiros casos, na hipótese de que não sejam realizados os repasses conforme a lei determina, poder acarretar em crime de responsabilidade, pois, neste caso, estaria-se diante de atentado à Constituição, em decorrência de violação ao livre exercício dos demais poderes. Ou seja, para os demais repasses, o Poder Legislativo autoriza as despesas, mas não há obice de que elas sejam remanejadas para unidades ou programas diversos, visto que nosso sistema financeiro é autorizativo, não impositivo. Outro esclarecimento que merece ser feito em razão da grande confusão que ocorre com os nomes similares de ambos é sobre a diferenciação entre Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) e crime de responsabilidade. A Lei Complementar nº 101/00, conhecida como a Lei de Responsabilidade Fiscal, por meio do equilíbrio das contas públicas buscou organizar as finanças do Estado, estabelecendo normas visando à contenção dos gastos públicos sempre que os instrumentos de controle e fiscalização da execução orçamentária indicarem que as metas fiscais estabelecidas na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) serão descumpridas, podendo, nesses casos, acarretar em crimes contra as finanças públicas, os quais estão previstos nos arts. 359-A a 359-H, do Código Penal, introduzidos pela Lei nº 10.028/2000, na mesma data da aprovação da LRF, justamente com o intuito de protegê-la de violações.

DIVULGAÇÃO arquivo pessoal

Já o crime de responsabilidade, apesar do nome, não se encontra no âmbito do Direito Penal, mas sim no dos Direitos Constitucional, Financeiro e Administrativo. Assim, quando estivermos diante de suposto crime por violação às normas de lei orçamentária, deve-se analisá-lo não sob o ponto do Direito Penal, mas das áreas do Direito citadas. Ainda, conforme exposto, para que haja crime de responsabilidade deve haver atentado à Constituição, ao livre exercício dos demais poderes, às probidades na administração e à lei orçamentária, assim como ao cumprimento de ordem judicial. A Lei de Responsabilidade Fiscal foi insituida para proteger a lei orçamentária, no entanto, ela não é uma lei orçamentária e o seu descumprimento pode acarretar somente crime comum. O art. 36 da LRF prevê que “é proibida a operação de crédito entre uma instituição financeira estatal e o ente da Federação que a controle, na qualidade de beneficiário do empréstimo”. Com base nesse dispositivo, alguns renomados juristas alegam que houve violação à referida lei, pois consideraram que reter recursos destinados a bancos oficiais seria o mesmo que realizar operação de crédito (empréstimo) dessas instituições financeiras. Todavia, ao que parece, nesse caso, seriam coisas distintas. Não se nega que os efeitos de realizar uma operação de crédito com uma instituição financeira no valor X ou reter recursos que deveriam ser repassados a essa mesma instituição financeira também no valor X sejam os mesmos, matematicamente. Todavia, parece-nos temeroso definir categorias jurídicas com base nos seus efeitos e não no que está expresso em lei, pois ocasionaria insegu-

rança jurídica e abriria margem para futuros abusos por parte do próprio Estado. Se as categorias jurídicas fossem definidas por seus efeitos, suicídio e homicídio seriam a mesma coisa, como muito bem ilustra o brilhante jurista Kiyoshi Harada. Além do mais, violar normas da LRF, conforme exposto, não implica crime de responsabilidade, mas sim crimes contra as finanças públicas, os quais estão previstos no Código Penal, devendo haver responsabilização por esses crimes, se for o caso. Assim, conclui-se que as chamadas “pedaladas fiscais”, quando utilizadas para atrasar o repasse de verbas aos Poderes Legislativo e Judiciário, por exemplo, implicam crime de responsabilidade, pois violam o livre exercício dos demais poderes, servindo como embasamento para pedido de impeachment. Já quando utilizadas para os demais casos, não caracterizam crime de responsabilidade. Por sua vez, crimes de responsabilidade em nada se confundem, a não ser pela nomenclatura similar, com crimes decorrentes de violação à Lei de Responsabilidade Fiscal, pois, enquanto os primeiros encontram-se no âmbito dos Direitos Constitucional, Financeiro e Administrativo, os segundos estão no âmbito do Direito Penal, ou seja, são crimes comuns. Desse modo, no caso de violação à Lei de Responsabilidade Fiscal, o que pode ocorrer é a responsabilização criminal, nos termos do art. 359-A a 359-H, do Código Penal. Não obstante, todavia, que ocorram crimes de responsabilidade por outros atos, como o que parece que ocorreria no caso de decretos de créditos suplementares sem autorização do Congresso, mas isso já é tema para outro artigo.

Fábio Tomkowski é doutorando em Direito Econômico, Financeiro e Tributário (USP), mestre em Direito Público (PUCRS), pesquisador visitante na Harvard Law School (EUA) e no Max Planck Institut für Steuerrecht und Öffentliche Finanzen (Alemanha).

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MATÉRIA DE CAPA

Impeachment. Por quê? “As questões jurídicas que envolvem as acusações de impeachment são imensas e as respostas podem se revelar inúteis em virtude da fúria do Parlamento com uma presidenta sem carisma,  aparentemente pouco adepta a negociações, enfraquecida dentro de seu próprio partido e representante de um partido que encarna uma desiludida utopia e apoiado por uma população em parte cansada das políticas inclusivas do governo, em parte drasticamente incomodada pelas investigações de corrupção e em busca de um culpado para queimar na fogueira das bruxas. Sobretudo, essa população, indignada com a crise econômica iniciada com a desaceleração da China e incendiada por um cenário interno de instabilidade política,  com seus milhões de desempregados brasileiros,  após os anos de euforia do governo Lula, clama por uma cabeça a ser cortada.”

 POR PILAR COUTINHO

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or que a presidenta Dilma está sofrendo o processo de impeachment?  O conjunto de motivos fáticos para tal é de uma ordem de complexidade que excede em muito o Direito. Seus defensores dirão que é um golpe, uma tomada de poder indevida, por meios escusos e ilícitos, enquanto seus acusadores dirão que sua reeleição foi feita à custa de manobras de Direito Financeiro, que estas foram usadas com fins populistas, e que a lama da corrupção investigada pela Lava Jato se não é a causa própria do impeachment  irá necessariamente respingará na presidenta. Iniciado o processo de impeachment, por alguns, através de uma manobra arquitetada de retirada de uma presidenta eleita pelo voto popular, haja vista a mudança social implementada pelo governo PT (e popular no sentido não apenas de majoritário, mas no sentido de ter respaldo das classes sociais mais simples, menos privilegiadas);  para outros, com o objetivo de finalmente expurgar da sociedade um partido com uma visão totalitária, legitimado por uma ideologia messiânica, feita através de um programa econômico desastrada, outras perguntas se revelam necessárias.  Não certamente para conter o trem (sempre desenfreado) da história, mas, quiçá, para compreendê-la. O acolhimento ou não da denúncia de crime de responsabilidade está longe de ser uma circunstância apenas jurídica, mas o resultado de uma soma de fatos políticos (insatisfação pela ausência de atuação da Dilma contra a Lava Jato? Contra a investigação do deputado Eduardo Cunha e tantos outros?), sociais (uma insatisfação significativa de setores da sociedade com as políticas públicas? com a condução do cenário econômico? com a própria redução da desigualdade?) e econômicos (uma crise econômica que se não foi causada pelo Governo não encontrou soluções/paliativos na política econômica deste?). Não custa, no entanto, tentar compreender os supostos “crimes de responsabilidade” imputados à presidenta. O termo “crime”, aqui, serve para marcar o caráter dras-

ticamente forte do ilícito, mas, para a maioria dos autores, a presidenta não cometeu crime propriamente dito, ou seja, não infringiu a lei penal. Crime, aqui, é usado em sentido cotidiano, não no seu sentido próprio jurídico. Mas, há tantas controvérsias sobre tal tema que renderiam outro artigo. As acusações formais à presidenta Dilma são de duas espécies, ambas estritamente vinculadas ao Direito Financeiro: (a) abertura de créditos suplementares por Decreto Presidencial, sem autorização do Congresso Nacional; (b) contratação ilegal de operações de crédito. Para usar expressão de Paulo Rabelo1, os governos brasileiros, como tantos outros ao redor do mundo, sempre estiveram comprometidos com o chamado “mito do governo grátis” através do qual é possível conceder benefícios e/ou privilégios a determinados grupos sociais sem que se pague a conta para tal (ex. altas pensões e aposentadorias para dados servidores públicos, isenções fiscais para certos setores da economia, políticas públicas de inclusão). O resultado da gestão destrambelhada das contas públicas foi e é um processo de endividamento significativo em que as gerações/governos vindouros devem pagar a conta legada pelo governo anterior. O mecanismo tradicional para se evitar tal endividamento é a garantia de que os gastos realizados pelo Poder Executivo (principal gastador) sejam previamente autorizados pelo Poder Legislativo. Esse é o caríssimo princípio da legalidade manifesto no Direito Financeiro, em decorrência expressa do princípio da separação de poderes, segundo o qual para que sejam autorizadas despesas (tradicionalmente chamadas de créditos) é necessário que o Poder Legislativo dê o seu aval. Criou-se ainda no texto constitucional uma rede de leis orçamentárias: Plano Plurianual – PPA, Lei de Diretrizes Orçamentárias – LDO e Lei Orçamentária Anual – LOA, com funções diversas, mas com análise necessariamente integrada. Tais leis orçamentárias são necessariamente

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MATÉRIA DE CAPA um pacto do Poder Executivo (responsável por sua proposição) e o Poder Legislativo (responsável por sua aprovação), em torno de um programa de governo. Nestas leis, estabelecem-se as despesas de capital, ou seja, despesas relativas a investimentos, tais como infraestrutura (PPA), as metas fiscais, a economia,  a serem cumpridas pelo governo (LDO) e a definição, a partir de uma previsão de receitas – que pode ou não se realizar – de despesas autorizadas (LOA). A referida autorização são os chamados créditos orçamentários. Ou seja, o Governo prevê quanto de dinheiro arrecadará e, com isso, autoriza créditos para despesas no ano seguinte. Ainda, na lei orçamentária poderá incluir a autorização para que, caso seja necessário realizar gastos a mais, o próprio Poder Executivo o faça – facilitando, assim, a gestão cotidiana dos gastos públicos, Ou seja, créditos são permissões para gastos públicos, podem já constar na lei orçamentária de forma expressa, ou é cabível que seja prevista nesta uma autorização genérica de forma que o Poder Executivo, no cotidiano dos gastos públicos, possa se adequar às situações concretas (ex.: aumento dos alunos matriculados em escolas públicas tendo em vista o aumento do desemprego). Além dessas leis, a Lei de Responsabilidade Fiscal – LC no 101/2000 – tem por objeto estabelecer normas gerais sobre responsabilidade fiscal. É uma lei completamente contrafática, na medida em que visa conter práticas históricas da administração pública de gastos significativos acima da arrecadação, de empréstimos irresponsáveis etc. Seu objetivo é garantir equilíbrio orçamentário intertemporal (afinal, como nossas mães viviam choramingando – dinheiro não nasce em árvores). Dentro desse contexto, a LRF previu a necessidade de o Governo cumprir metas fiscais anuais, fixadas por meio da LDO, na qual se compromete a economizar para pagar sua dívida e (quiçá) diminuí-la. Como se vê, essa meta de economia não é feita de forma independente pelo Poder Executivo ou pelo Poder Legislativo – é parte de um pacto entre tais poderes, considerando uma previsão de receitas (que poderá ou não se concretizar) e de uma autorização de despesas (sendo que várias delas, são, sem dúvida, obrigatórias). Dentro desse contexto, fica mais fácil compreender as acusações (formais) que recaem sobre a presidenta. A primeira delas se refere à abertura de créditos suplementares por Decreto Presidencial, sem autorização do Congresso Nacional. Como visto acima, a CRFB/88 reconhece a viabilidade de um decreto abrir créditos suplementares, desde que haja autorização prévia do Congresso. As LOAs de 2014/2015 concederam tal autorização, desde que respeitadas as metas fiscais e observada a LRF. É fato incontroverso: a presidenta abriu créditos suplementares quando as metas fiscais estavam sendo descumpridas (auto-hetero-imposta).  Tal situação seria abusiva aos olhos dos acusadores, porque a LRF impõe que, diante do risco de descumprimento da meta fiscal, o Governo deve limitar o empenho (o comprometimento com o pagamento de despesas) e a

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movimentação financeiro. Tais limitações seriam chamadas de contingenciamentos e deveriam ocorrer ao longo do ano sempre que a meta bimestral (parte da anual) estivesse sendo descumprida. A defesa afirmou que não poderia ser imputada à presidenta a drástica sanção do impeachment já que: (1) a abertura dos créditos se embasou em pareceres técnicos; (2) os créditos foram destinados a estados, municípios e ao próprio Judiciário; (3) não seria cabível outra conduta cabível diante de gastos públicos obrigatórios e necessários; (4) o descumprimento da meta ocorreu em virtude da crise econômica. É quase inviável negar que houve descumprimento, ainda que temporário, à LRF e à LOA, no que toca a esse ponto. Esse descumprimento pode, de fato, ser legitimado de um lado pela imensa dificuldade de cumprir a meta fiscal em tempos de crise. De fato, o orçamento público é feito em um exercício de “futurologia” e o futuro, de fato, a Deus pertence.  Crises (ainda que previsíveis) como a vivida pelo Brasil importam justamente em um cenário em que, a partir do presente, se torna inviável prever o futuro.  E o cumprimento da meta fiscal depende da receita arrecadada (o que depende em grande parte de um cenário econômico específico) diante de um vasto rol de despesas obrigatórias  – ou em que o corte não pode ser feito de uma hora para a outra. Mas, de fato, a presidenta poderia – haja vista a situação – ter solicitado primeiro a revisão da meta fiscal. Não adotada tal conduta, é também fato incontroverso que o mesmo Congresso que agora poderá afastar a presidenta por ter descumprido tal meta alterou a meta inicialmente proposta para se adequar aos créditos suplementares já abertos (como acabou de fazer, novamente, no governo Temer). Seriam então, cúmplices, ao darem aparência de legalidade a uma conduta que consideram ilícita? Um Parlamento que altera a meta fiscal para que a esta passe a ser cumprida não é tão agente de crime de responsabilidade quanto quem solicita, por meio de projeto de lei, tal revisão? As urgências do cotidiano administrativo permitiriam ao Governo, diante de um cenário imprevisível, de crise econômica aguardar o demorado processo legislativo? Tal teria sido feito da mesma maneira se o governo tivesse mais legitimidade popular/ base no Congresso? A outra acusação que pende sobre a presidenta Dilma é, talvez, a mais controversa, mesmo a partir de uma perspectiva jurídica. A CRFB/88 tem uma especial preocupação com operações de créditos, temerosa de que um Governo deixe ao subsequente o receoso legado de dívidas que impediriam a própria administração pública cotidiana.  Sim, o cenário de endividamento público excessivo é complicadíssimo, como as situações atuais do Estado do Rio Grande do Sul e a do Rio de Janeiro manifestam. Ou deixa-se de cumprir devidamente com obrigações constitucionais / legais para com os cidadãos (ex.: saúde, educação, saneamento básico) ou com os servidores públicos (ex.: parcelamento dos rendimentos). Ou se descredita os títulos públicos, tão importante forma de capitalização, pelo seu não pagamento a tempo e modo.

Dentro desse cenário, operações de crédito recebem vários limites, como as despesas de capital e limites globais definidos pelo Congresso. Mas, caso ultrapassados tais limites, deve haver a recondução através de medidas como a proibição de outras operações de crédito e a limitação do empenho. O grande questionamento é: podem as famosas “pedaladas fiscais” se encaixar como operações de crédito? Quase tão famoso quanto a expressão “pedalada fiscal” é a ausência de compreensão sobre do que se tratam. Mas, deveras, trata-se de manobra (?), de medida (?), das mais simples. Mensalmente, vários bancos (ex.: BNDES/ Caixa Econômica) são intermediários entre pagamentos que o Governo faz à população. Quando o mecanismo está funcionando de maneira adequada, o Governo repassa aos bancos os valores e os bancos fazem os pagamentos/empréstimos à população com dinheiro público ( ex.: programas sociais, empréstimos a empresários ou a produtores rurais). Pois bem. Chama-se de “pedalada fiscal” o atraso por parte do Governo desse repasse, o que para alguns é considerado uma operação de crédito “enrustida” e ilícita na medida em que os bancos envolvidos fazem o pagamento com recursos próprios, no lugar do Governo, e apenas posteriormente este repassa os recursos às instituições bancárias. De fato, esse tipo de manobra não é a mais transparente. Afinal, permanecem em conta pública valores que já deveriam ter sido entregues a terceiros, o que dá uma aparência de saneamento às contas públicas. É argumento cotidiano de defesa da presidenta o caráter comum dessa prática, o que a tornaria lícita – como se o sujo não pudesse apontar o mal-lavado. Tal não só é um argumento que ignora o caráter contrafático da LRF, que pretende incutir na mentalidade dos administradores públicas condutas com as quais estes não estão acostumados, assim como apequena o caráter do próprio Direito de mudança social, de “dever ser”. A polêmica fundamental, aqui, está na interpretação do conceito de operação de crédito e em sua revisão pelo Tribunal de Contas. Não tenho dúvida de que há espaço interpretativo para dizer que as “pedaladas fiscais” se encaixam no conceito de “operação de crédito” assim como um cheque especial que o Governo tomaria forçadamente dos bancos. Uma análise mais aprofundada de tal poderia partir do art. 29, inc. III, LRF,  que dá vários exemplos do que considera operações de crédito, contudo, utiliza uma fórmula aberta como “outras operações assemelhadas” o que oferta, de fato, vasta possibilidade de interpretação. Durante muito tempo, o TCU não desaprovou as pedaladas, não considerando, portanto, que se tratava de operação de crédito. Mudou de ideia – indicando que o

montante dos “atrasos”, “os volumes exorbitantes envolvidos”, a reiteração das condutas, a coincidência com anos eleitorais, importaria mudança da interpretação jurídica de um mesmo fato/ de uma mesma conduta. Afinal, pode alguém ser condenado, retroativamente, por agir de acordo com algo que havia, reiteradamente, sido considerado lícito?  Pode haver uma punição drástica como o impeachment partindo de uma interpretação tão aberta quanto a que se deu ao conceito de operação de crédito? As intenções por trás de tais acusações (re/tomada de poder) devem ser levadas em consideração para o julgamento do caráter lícito ou ilícito de tais contas? As intenções por trás de tal manobra (cumprimento dos programas sociais? dar aparência de regularidade das contas públicas?) devem ser levadas em consideração para o julgamento do caráter lícito ou ilícito de tais contas? O montante de tais atrasos deve influir em sua interpretação jurídica? As questões jurídicas que envolvem as acusações de impeachment são imensas e as respostas podem se revelar inúteis em virtude da fúria do Parlamento com uma presidenta sem carisma,  aparentemente pouco adepta a negociações, enfraquecida dentro de seu próprio partido e representante de um partido que encarna uma desiludida utopia e apoiado por uma população em parte cansada das políticas inclusivas do governo, em parte drasticamente incomodada pelas investigações de corrupção e em busca de um culpado para queimar na fogueira das bruxas. Sobretudo, essa população, indignada com a crise econômica iniciada com a desaceleração da China e incendiada por um cenário interno de instabilidade política,  com seus milhões de desempregados brasileiros,  após os anos de euforia do governo Lula, clama por uma cabeça a ser cortada. Oposição e posição em grande medida parecem aguardar que a imolação pública da presidenta, como na política de pão e circo, acalme o clamor de justiça e de fim da corrupção para que continuem agindo como sempre agiram quando estávamos ocupados demais com o nosso cotidiano ou felizes demais por morarmos em um país “bonito por natureza”.  E, assim, nesse cenário, as perguntas vão muito além do Direito, afinal em que medida o processo de impeachment não escancara e finaliza o mito de que os brasileiros são cordiais, na medida em que a sociedade se divide e se acusa de “petralha” e de “coxinha”?  Há, de fato, relevância no debate jurídico, haja vista a abertura das normas jurídicas que tratam dos crimes de responsabilidade?  Em que medida a interpretação dos institutos jurídicos – para qualquer dos sentidos – não está contaminada por visões de mundo e, ainda, por um jogo de interesses, que obscurece a sua relevância e cega os seus intérpretes?

arquivo pessoal

NOTA 1 CASTRO, Paulo Rabelo de. O mito do governo grátis, Rio de Janeiro: Edições Rio de Janeiro, 2014.

Pilar Coutinho é doutoranda em Direito Público (PUC Minas). Mestre em Direito Público em 2014 (PUC Minas).  Coordenadora da Pós Graduação Lato Sensu em Direito Tributário do IEC/PUC Minas. Professora na Graduação e na Pós Graduação presencial e virtual de Direito Tributário e Financeiro da PUC Minas. Advogada.

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MATÉRIA DE CAPA

( I ) legitimidade do impeachment da presidente Dilma Rousseff “Ainda há tempo para que as instituições republicanas, seja o Senado Federal ou o Supremo Tribunal Federal, restabeleçam a normalidade democrática, vivenciada por nós desde 1988. Do contrário, restará a pergunta: sabendo que a democracia e a Constituição são sempre um projeto aberto ao futuro, nunca se fechando a um ato instituinte/constituinte, como iremos explicar às futuras gerações que foi destituída, em pleno regime presidencialista de governo, uma presidente eleita democraticamente, sem o cometimento de qualquer crime, seja de responsabilidade ou comum, e o Poder Judiciário quedou-se inerte diante da flagrante inconstitucionalidade dessa prática e, ao mesmo tempo, acreditamos que estávamos em uma democracia?”

 POR ALEXANDRE GUSTAVO MELO FRANCO DE MORAES BAHIA, DIOGO BACHA E SILVA e

MARCELO ANDRADE CATTONI DE OLIVEIRA

N

ossa inspiração para a instituição do impeachment é originária do constitucionalismo norte-americano. Os revolucionários norteamericanos bem sabiam que recepcionavam um instituto monárquico (da história constitucional inglesa) para um sistema republicano e presidencialista de governo. Assim, seria preciso prever constitucionalmente que tal medida extraordinária seria apenas passível de ser adotada diante de situação em que se demonstrasse

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a existência de “graves crimes”1 (art. II, seção 4 da Constituição norte-americana). Já no caso brasileiro, uma vez tendo sido recepcionado o instituto com a adoção do sistema republicano-presidencialista de governo, passa-se a adotar uma necessária tipificação dos atos que pudessem levar ao impedimento do presidente da República, como chefe de Estado e de Governo, com o intuito de conferir segurança ao sistema de governo2. Daí que a necessária tipificação dos atos criminalizáveis é elemento essencial ao

DIVULGAÇÃO

impedimento, conforme bem determina a Constituição da República, no artigo 85, parágrafo único, já que não se pode equiparar o impeachment à moção de desconfiança, própria dos sistemas parlamentaristas de governo, ou ao recall, naqueles sistemas políticos que o adotam. A Constituição da República trata, no artigo 85, dos atos, entre outros, que serão passíveis de tipificação taxativa por lei específica, assim como os bens que serão protegidos. A tipificação taxativa e o procedimento do Impeachment são regulamentados pela Lei nº 1.079/1950, recepcionada em parte pela Constituição de 1988, segundo a jurisprudência do STF que se formou a partir do Caso Collor e do julgamento da ADPF 378, cabendo relembrar o texto da Súmula Vinculante nº 46 do Supremo Tribunal Federal, que dispõe: “A definição dos crimes de responsabilidade e o estabelecimento das respectivas normas de processo e julgamento são de competência legislativa

privativa da União” – o que impede não apenas que estados e municípios inovem sobre o tema (seja quanto à tipificação, seja quanto ao procedimento). Não por outra razão o STF entendeu como nulas disposições do então presidente da Câmara ao “inovar” no procedimento. Após o processo de impedimento de Collor de Mello, que teve início em setembro de 1992, pouco tempo depois da redemocratização, nosso constitucionalismo conviveu com uma normalidade constitucional até a abertura de processo de impeachment contra a presidente Dilma Rousseff, expressando certo desgaste no nosso sistema de separação de poderes e até, no limite, colocando em risco a continuidade da construção de Estado Democrático de Direito entre nós. No dia 3 de dezembro de 2015, o presidente – agora afastado – da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha recebeu denúncia popular formulada por três cidadãos

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MATÉRIA DE CAPA imputando à presidente Dilma Rousseff a prática de supostos crimes de responsabilidade. O ato de recebimento da denúncia realizado pelo então presidente da Câmara deixou bem explícito que a justa causa para o recebimento do pedido de impedimento residia em dois fatos concretos: (1) eventual descumprimento da Lei de Diretrizes Orçamentárias com a abertura de crédito suplementar por meio de decreto não numerado quando a situação econômica não era superavitária; (2) a práticas das chamadas “pedaladas fiscais”, isto é, os repasses (atrasados) às instituições financeiras públicas para o pagamento de programas sociais. Vale mencionar, ainda, que a abertura do processo de impeachment pelo presidente ora afastado da Câmara dos Deputados foi determinada logo após o Partido dos Trabalhadores (PT) se negar a votar favoravelmente ao mesmo em procedimento aberto junto à Comissão de Ética da Câmara dos Deputados que visava investigar e punir o envolvimento daquele em atos de corrupção. Não à toa, pois, que o ato de recebimento da denúncia pelo presidente da Câmara não enquadrou de forma adequada as referidas condutas em qualquer tipificação da Lei nº 1.079/1950. Com a abertura do processo de impeachment, o Partido Comunista do Brasil (PC do B) ajuizou ADPF perante o Supremo Tribunal Federal buscando realizar uma filtragem constitucional na Lei nº 1.079/1950. A ADPF 378 definiu os contornos do processo de impedimento à luz da Constituição de 19883. No entanto, é preciso repisar, a intervenção do Supremo Tribunal Federal não torna automática/ definitivamente o processo legítimo. Em verdade, o STF estabeleceu as balizas constitucionais do rito do impeachment e não o juízo de tipicidade ou de culpabilidade do crime de responsabilidade: o Tribunal não se manifestou nem sobre a existência de justa causa, nem sobre o mérito do caso (a ocorrência ou não de crime de responsabilidade), mas somente sobre questões procedimentais. Aliás, a depender da própria atuação no caso concreto, por parte do Supremo Tribunal Federal, o atual processo de impeachment se terá tornado ilegítimo. É que, como sabemos, cabe a ele exercer a guarda e a defesa da Constituição, isto é, defender a integridade de nosso projeto constitucional, em especial, do devido processo legislativo4. Após o processamento pela Comissão Especial do art. 19 e ss. da Lei nº 1.079/1950, o pedido foi votado pela Câmara dos Deputados que, conforme o art. 51, I da Constituição. Nos dias 14 e 15 de abril de 2016, trezentos e sessenta e sete deputados consideraram ter havido a prática, em tese, de crime de responsabilidade. Por óbvio, tais votos foram exclusivamente motivados politicamente e mesmo manifestamente a partir de questões privadas e nada “republicanas”, sem maiores considerações jurídicas. No entanto, ao contrário do que resulta da votação, é preciso dizer claramente: os fatos atribuídos à presidente Dilma Rousseff na denúncia apresentada perante a Câmara dos Deputados são atípicos, isto é, não configuram crimes de responsabilidade. Como muito bem delimitou Ricardo Lodi Ribeiro5 e nós mesmos em outra

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oportunidade6, a tipificação em que se tenta enquadrar as “pedaladas fiscais” (art. 10, 9, da Lei nº 1.079/1950) refere-se à realização de operação de crédito com outro ente da Federação ou de qualquer de seus entes da Administração Indireta destes e não com instituições financeiras controladas pela própria União7. Ademais, as chamadas pedaladas fiscais sequer são operações de crédito, valendo aduzir que o TCU afirmou que são apenas assemelhadas a tais, daí que impossível também o enquadramento no art. 11, 3, da Lei nº 1.079/1950. Inclusive, é preciso assentar que a posição contrária do TCU em emitir parecer contrário à aprovação das contas da presidente da República se deu a partir de uma mudança de entendimento: até um certo momento ele considerava os atos acima elencados como atos legais e não passíveis de reprovação. Ora, um princípio básico de coerência e integridade no ordenamento (Dworkin) é que mudanças de entendimento devem vir acompanhadas do enfrentamento da posição anterior, de forma que o órgão mostra que havia um entendimento, que este estava incorreto e se apresentam razões para isso; de igual modo, coerência e integridade exigem que o órgão não viole a segurança jurídica (traduzível também como vedação à surpresa) gerada pela expectativa de comportamento anterior: se agora a compreensão é outra, esta apenas deve se aplicar ao futuro, devendo o órgão apenas “sinalizar” no sentido de que, pro futuro, aqueles atos não seriam mais considerados válidos8. Ainda, a própria fala dos parlamentares que votaram a favor da autorização do impeachment bem denuncia que eles sequer se preocuparam em apresentar os fundamentos pelos quais consideravam a conduta imputada à presidente como crime de responsabilidade. À continuação, como interpretado pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF 378, à luz do art. 52, I da CF/88 e do art. 45, da Lei nº 1.079/1950, o processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff teve sua admissibilidade analisada pelo Senado Federal, por meio da maioria simples dos membros daquela Casa. Deste modo, o Senado Federal, após o Relatório favorável de Comissão Especial, admitiu o processamento com o voto favorável de 55 senadores, no dia 12 de Maio de 2016, afastando a presidente eleita pelo prazo de até 180 dias ou a conclusão do julgamento, nos termos do art. 86, §§ 1º e 2º da Constituição. Muito embora o julgamento ainda não tenha sido realizado pelo Senado Federal é preciso repetir que a existência de crime de responsabilidade depende de tipificação legal, sem o que o impedimento se transformaria em uma mera moção de desconfiança, própria dos regimes parlamentaristas. As instituições republicanas precisam agir dentro da conformidade do projeto constitucional, sob pena de vivenciarmos um “estado de exceção”. Neste caso, a atuação depende do respeito ao regime presidencialista de governo, tal como estruturado pela Constituição de 1988, e pertencente à nossa identidade constitucional desde 1891: em um sistema presidencialista o chefe de Governo não é retirado pelo Parlamento por haver perdido a maioria neste, ou por baixa popularidade,

ou por problemas na economia. Apenas nas excepcionais hipóteses de crime de responsabilidade podem os membros do Congresso Nacional deliberar sobre a perda do cargo do presidente. Sabendo que, conforme a jurisprudência do STF, o impeachment é instituto de natureza jurídico-política, o julgamento do impedimento, sem a caracterização de crime de responsabilidade, possibilita a atuação da jurisdição constitucional com o intuito de nulificar todo o processo, por expressa ausência de justa causa, sem que se adentre ao mérito político da imputação. Ora, a omissão do STF nesse caso seria uma atitude que se coadunaria com a corrosão de nosso Estado Democrático de Direito, tornando legítimo algo, desde o princípio, ilegítimo. Ou temos um Estado Democrático de Direito, isto é, um regime no qual as decisões são tomadas por meio do código do Direito (Habermas), ou estamos jogados a uma espécie de estado de natureza em que vale apenas a “lei do mais forte”. Discordâncias políticas com a presidente ou seu partido, assim como insatisfações com questões econômicas, não justificam o abuso das disposições constitucionais que autorizem a perda do mandato por crime de responsabilidade. O aparecimento de áudios envolvendo ministros do ora presidente em exercício e a parlamentares tanto da Câmara quanto do Senado, têm mostrado, ademais, que há outras razões não ditas para todo esse processo e que

têm a ver com o desejo puro e simples de tomada de poder, inclusive para se conseguir paralisar investigações em curso. Aliás, a mudança radical de projeto que vem sendo promovida pelo presidente em exercício, inclusive com a chamada de partidos que perderam as eleições para que componham o governo, mostra não só que todo o processo apenas está ocorrendo por uma perda de maioria no Congresso, como também possui um componente igualmente preocupante: é que tanto o “novo” projeto, como parte dos partidos que agora compõem o governo interino foram derrotados nas urnas; é dizer, tem-se uma plataforma rejeitada pela maioria do eleitorado sendo imposta contra a vontade deste. Ainda há tempo para que as instituições republicanas, seja o Senado Federal ou o Supremo Tribunal Federal, restabeleçam a normalidade democrática, vivenciada por nós desde 1988. Do contrário, restará a pergunta: sabendo que a democracia e a Constituição são sempre um projeto aberto ao futuro, nunca se fechando a um ato instituinte/constituinte, como iremos explicar às futuras gerações que foi destituída, em pleno regime presidencialista de governo, uma presidente eleita democraticamente, sem o cometimento de qualquer crime, seja de responsabilidade ou comum, e o Poder Judiciário quedou-se inerte diante da flagrante inconstitucionalidade dessa prática e, ao mesmo tempo, acreditamos que estávamos em uma democracia? 

Diogo Bacha e Silva é mestre em Direito pela FDSM e professor da Faculdade de São Lourenço.

arquivo pessoal

Alexandre Gustavo Melo Franco de Moraes Bahia é mestre e doutor em Direito pela UFMG. Professor adjunto da UFOP e IBMEC. Bolsista de produtividade do CNPq.

arquivo pessoal

arquivo pessoal

NOTAs 1 “The President, Vice President and all Civil Officers of the United States, shall be removed from Office on Impeachment for, and Conviction of, Treason, Bribery, or other high Crimes and Misdemeanors.” [Tradução livre: “O Presidente, o Vice-Presidente, e todos os funcionários civis dos Estados Unidos serão afastados de suas funções quando indiciados e condenados por traição, suborno, ou outros delitos ou crimes graves”]. Disponível em http://www.senate.gov/civics/constitution_item/ constitution.htm. 2 BAHIA, Alexandre; BACHA E SILVA, Diogo, CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo. O Impeachment e o Supremo Tribunal Federal: história e teoria constitucional brasileira. Florianópolis: Editora Empório do Direito, 2016, p. 14-15. 3 Sobre a decisão ver: BAHIA, Alexandre; BACHA E SILVA, Diogo, CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo. O Impeachment e o Supremo Tribunal Federal: história e teoria constitucional brasileira. Florianópolis: Editora Empório do Direito, 2016. p. 73 e seguintes. 4 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo. Devido processo legislativo: uma justificação democrática do controle jurisdicional de constitucionalidade das leis e do processo legislativo. 3. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2016. 5 RIBEIRO, Ricardo Lodi. Pedaladas hermenêuticas no pedido de impeachment de Dilma Roussef. In: Revista Consultor Jurídico, 04 de dezembro de 2015. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2015-dez-04/ricardo-lodi-pedaladas-hermeneuticas -pedido-impeachment. Acesso em: 14 jun. 2016. 6 BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco de Moraes; MEYER, Emílio Peluso Neder; BACHA E SILVA, Diogo; FERNANDES, Bernardo; CATTONI, Marcelo; VECCHIATI, Paulo. Para defender a Constituição e a lei, por vezes cabe dizer o óbvio: crimes de responsabilidade são crimes. E não há crimes. Em resposta a Pedro Canário. Disponível em http://emporiododireito.com.br/ crimes-de-responsabilidade-sao-crimes-em-resposta-a-pedro-canario/. Acesso em: 14 jun. 2016. 7 “9) ordenar ou autorizar, em desacordo com a lei, a realização de operação de crédito com qualquer um dos demais entes da Federação, inclusive suas entidades da administração indireta, ainda que na forma de novação, refinanciamento ou postergação de dívida contraída anteriormente” (inciso incluído pela Lei nº 10.028, de 2000; sem grifos no original). 8 Sobre a discussão acerca das exigências quanto à mudança de precedentes e ao contraditório como vedação à surpresa, cf.: THEODORO JR., Humberto; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre; PEDRON, Flávio. Novo CPC: fundamentos e sistematização. 3. ed. RJ: Forense, 2016.

Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira é mestre e doutor em Direito pela UFMG. Pós-doutorado pela Universidade de Roma III. Professor associado IV e subcoordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito da UFMG. Bolsista de produtividade do CNPq.

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Um impeachment que não passa de um golpe parlamentar “O impeachment não será solução alguma para a situação de crise em que vivemos. Somente agravará uma antiga tradição de golpes e rupturas institucionais do país. O Brasil ainda tem dificuldade de dar o nome merecido e devido para suas violências, mas já está claro que é de um golpe que se trata.”  POR RENAN QUINALHA

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DIVULGAÇÃO

MATÉRIA DE CAPA

U

ma presidenta eleita com os votos de mais de 54 milhões de brasileiros, e sobre a qual não recai nenhuma acusação formal de corrupção, torna-se alvo de um procedimento de impeachment com base em decretos suplementares de orçamento e atrasos no repasse de recursos da União para os bancos públicos para manutenção dos programas sociais, procedimento este que ficou conhecido como pedaladas fiscais. Esse processo de impeachment é conduzido por Eduardo Cunha, presidente afastado da Câmara que, por sua vez, é acusado, com abundância de provas, por crimes de corrupção e de lavagem de dinheiro, totalizando um pedido de pena de prisão de mais de 180 anos. Ele foi afastado do seu cargo por decisão do STF somente depois de cinco meses do requerimento feito e teve sua prisão preventiva pedida pelo procurador-geral da República no início do mês de junho deste ano. Na condição de presidente da Câmara que ostentava, ele vinha usando seu poder para obstruir as investigações contra si e para chantagear o governo, que não apoiou sua defesa no Conselho de Ética da instituição. Simultaneamente, o vice-presidente Michel Temer, pertencente ao mesmo partido de Cunha, veio organizando abertamente um novo governo antes mesmo do afastamento da presidenta, articulando setores oposicionistas para destituir sua companheira de chapa. Já vinha divulgando nomes de prováveis ministros e uma agenda para seu governo interino com participação dos grupos derrotados na eleição de 2014. Temer conseguiu, no começo de maio, uma maioria de senadores para aprovar o afastamento provisória da presidenta Dilma. Ao invés de concretizar os projetos registrados juntos com a chapa na Justiça Eleitoral e que foram debatidos nas eleições, em respeito ao resultado das urnas e ao caráter provisório de um governo ainda interino, Temer começa a implementar um programa de governo com uma série de medidas reivindicadas pelos setores mais conservadores diante da crise: desvinculação do mínimo constitucional para seguridade social e educação, maior restrição das políticas assistenciais, uso das forças armadas em conflitos rurais, Estatuto do Desarmamento, Estatuto da Família, entre outros projetos até então engavetados e que começam a ser discutidos abertamente. Vale lembrar que, no Brasil, vice-presidente é eleito junto com o presidente com o programa apresentado por este; vice-presidente, portanto, não tem programa próprio, ainda mais quando as propostas de Temer colidem com o programa de governo apresentado por Dilma nas eleições. Organizações empresariais patrocinam atos públicos de protesto contra o governo, contando com generoso apoio dos maiores veículos de comunicação do país, aprofundando a crise política e encaminhando como fato consumado a alternativa do impeachment.

Esse é um breve resumo do cenário atual do Brasil, que pode ser definido como um golpe parlamentar contra um governo que perdeu sua maioria e vive um momento adverso de crise econômica e pouca popularidade. O segundo mandato do governo Dilma, que mal havia começado, já terminou. Infelizmente, o que menos importa na discussão do impeachment, hoje, é o direito. Impeachment é um julgamento político, sem dúvidas, mas há todo um regramento legal sobre o tema que já está posto no segundo plano. Isso ficou claro no parecer do relator na Câmara e nas justificativas lamentáveis de votos dadas pelos deputados. Sem falar nas gravações realizadas por Sérgio Machado com Romero Jucá, Renan Calheiros e José Sarney, demonstrando como o PMDB articulou esse golpe para obstruir as investigações criminais contra suas lideranças. Portanto, não vou aqui discutir se pedaladas fiscais configuram ou não um crime de responsabilidade conforme as exigências de nossa legislação. Esse aspecto, que ainda poderá ser discutido junto ao STF, mas já não é o fundamental na análise da conjuntura política atual. Antes, o que gostaria de compreender é como a presidenta que atingiu um nível de popularidade no seu primeiro mandato de 59% de aprovação, o maior índice de um presidente naquela fase do mandato, inclusive considerando Lula, em tão pouco tempo perdeu todo esse capital político e está sendo retirada da Presidência em um julgamento político conduzido mais pelos seus próprios aliados mais do que por seus opositores. A exaustão do modelo de presidencialismo de coalizão Quero, então, apontar alguns momentos que me parecem importantes. No modelo brasileiro de presidencialismo de coalizão, o partido que elege o presidente não consegue eleger uma maioria parlamentar para seu governo, necessitando de um amplo acordo com outros partidos políticos. O PT não escapou dessa regra. Em 2003, a agremiação chegou ao poder negociando o apoio de diversos pequenos partidos no varejo. No entanto, a denúncia do mensalão, em 2005, fez com que a negociação política em varejo desse lugar a uma aliança mais permanente com o PMDB a ponto deste partido indicar o vice-presidente na chapa de 2010. Mas esse modelo não vai ser bem assimilado por Dilma como o era por Lula. Dilma iniciou seu primeiro mandato com uma “faxina” nos primeiros escalões do governo federal em 2011. Nessa oportunidade, ela destituiu a diretoria corrupta da empresa Furnas e desmontou uma máfia instalada no Ministério dos Transportes. Em poucos meses, sete ministros foram exonerados por denúncias de corrupção. Além disso, ainda no começo do governo Dilma, o PT começa a incentivar a criação de novos pequenos partidos e a investir na divisão interna do PMDB, para preservar sua hegemonia no bloco de governo. Nessa linha, aju-

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MATÉRIA DE CAPA da a na criação do PSD de Gilberto Kassab, em 2011, e do PROS de Cid Gomes, em 2013. Ele retira Romero Jucá em 2012, aposta em Eduardo Braga contra Renan Calheiros na disputa da presidência do Senado e sofre uma derrota com a eleição de Eduardo Cunha para a Presidência da Câmara, sempre tentando jogar com as divergências internas do PMDB. Estilo difícil, pouco diálogo, governo por decretos, não receber parlamentares para reuniões exclusivas são fatores que elevaram o descontentamento do membros do congresso com Dilma. Cada vez eles pediam mais espaço, cargos e orçamentos para manter a fidelidade ao governo nas votações no Congresso. O vice Michel Temer chegou a ser o responsável pela articulação política do governo. A voracidade dos parlamentares, formando agora um “baixo clero” maior e pulverizado em um enorme número de partidos, foi uma dificuldade adicional encontrada por Dilma. Cláudio Couto assim apontou essas mudanças que afetaram mais a Dilma que seu antecessores: “enquanto Fernando Henrique Cardoso conseguia montar tal base parlamentar com algo entre três e cinco partidos na Câmara dos Deputados, Lula passou a operar com um número entre cinco e sete, ao passo que Dilma precisou de ainda mais. Ou seja, para atingir os mesmos patamares de apoio legislativo cada novo presidente precisava contar com um número maior de aliados, coordenando-lhes e, claro, recompensando-lhes pelo apoio emprestado. A proliferação de ministérios foi o reflexo mais visível dessa necessidade de se recompensar um número cada vez maior de parceiros para poder obter proporções similares de sustentação legislativa”1. Mas não são apenas esses fatores institucionais que explicam o desgaste progressivo do governo Dilma. Manifestações de junho de 2013: uma oportunidade perdida de mudança A meu ver, o ponto de inflexão fundamental que divide o auge e a decadência de Dilma não são as eleições de 2014, mas as mobilizações de junho de 2013. Iniciadas com a pauta de um transporte público de qualidade e com tarifas mais baixas, as mobilizações foram traduzidas por reivindicações de mais direitos sociais, menos corrupção e por mais participação. Nesse momento, mais do que insatisfação exclusiva com o governo ou o PT, a insatisfação se dirigia contra o sistema político e a falta de representatividade sentida por diferentes setores da sociedade brasileira. O governo não soube dar respostas adequadas, deixando de aproveitar esse momento para começar a alterar os mecanismos de funcionamento do sistema político. Após ensaiar algumas respostas, o governo acabou retrocedendo e se rendendo cada vez mais a pressões do PMDB e do establishment político, ignorando as demandas das ruas e classificando como “conservador” esse complexo episódio de junho de 2013. Nas eleições de 2014, novamente esses anseios apareceram. A campanha de Dilma tentou responder a essas

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cobranças e conseguiu uma apertada vitória justamente tentando incorporar essas demandas. Mas, após a vitória, seu segundo governo começa muito diferente do que fora prometido, ignorando as promessas eleitorais e com ainda menos diálogo com a sociedade civil organizada. A oposição questionou o resultado das urnas e chegou a pedir recontagem de votos. Logo em seguida, a queda expressiva do preço das commodities no final de 2014 e a elevação do preço da energia elétrica e da gasolina no começo de 2015 agravam o descontentamento popular com o governo. A crise econômica piora, com impacto na retração do PIB e da renda, além de aumento da inflação e do nível de desemprego. O ajuste fiscal conservador piora o cenário. As investigações de corrupção de quatro doleiros em Curitiba expõem um grave sistema de corrupção para financiamento de campanhas eleitorais na Petrobrás. Essa operação, apesar de sua importância para desnudar os esquemas de corrupção, chegou em determinados momentos a assumir um caráter nitidamente contra o governo a partir do começo de 2015, com uma série de excessos e arbitrariedades que comprometeram a realização da justiça nos marcos do Estado de Direito. No dia 8 de março daquele ano, começa um panelaço quando Dilma vai se pronunciar em rede nacional. No dia 18 do mesmo mês, ocorre a primeira grande mobilização massiva contra o governo nas ruas. A reprovação do governo Dilma chegou a 62% em 2015. Desde então, panelaços e manifestações se repetem. A opinião pública, estimulada pela mídia, por setores do empresariado e pelos vazamentos seletivos do Judiciário das investigações de corrupção, embarca no discurso do impeachment como a grande alternativa para a crise. Sem mencionar o ressentimento de classe presente em muitas das críticas e oposições ao governo. Fragilizada e sob pressão conservadora, Dilma foi cedendo cada vez mais espaço ao PMDB em sucessivas reformas ministeriais até acabar sem capacidade de dirigir mais o seu próprio governo, assistindo à queima total de sua popularidade. O efeito colateral desse rearranjo que, à primeira vista, parecia afastar a ameaça do impeachment, é evidente: um governo mais desfigurado, mais rendido às forças conservadoras, menos capaz de dialogar e mobilizar as bases sociais que o elegeram e sem condições de entregar o que prometeu em campanha. Tudo isso, o que é mais grave, sem garantias efetivas de durabilidade de tal compromisso pela manutenção das regras do jogo como os acontecimentos recentes demonstraram. Impeachment como golpe e não como solução da crise A atual crise, assim, expõe não apenas uma crise do governo Dilma e de suas incapacidades de diálogo e de barganha, algo aliás que poderia ser elogiado caso se convertesse em uma mudança das práticas fisiológicas de governo. Nota-se uma exaustão do “lulismo”, conceito cunhado por André Singer, enquanto projeto de “reformismo fraco” que conseguiu, em conjuntura internacional favo-

rável dos preços das commodities, alcançar um patamar mais elevado de justiça redistributiva por meio de um amplo pacto de acomodação dos mais diferentes interesses. Essa política avançada do ponto de vista social foi viabilizada, no entanto, com as práticas mais atrasadas e clientelistas do establishment político, com o qual Lula neutralizava qualquer tipo de embate. Quando, em junho de 2013, as mobilizações desafiaram o sistema político, o governo optou por preservar-se junto com este mesmo sistema. A crise do governo Dilma, assim, é a manifestação de uma crise mais ampla de representatividade do sistema político, incapaz de responder às demandas da sociedade por mais democracia e direitos ao preservar regras de governabilidade conservadoras e de supermaiorias. Não à toa, está claro um cansaço da população em relação aos demais políticos e a falta de confiança nas instituições. As pesquisas indicam uma alta reprovação não apenas de Dilma, mas também de Temer. A mesma desconfiança quanto ao Congresso está presente na visão da população brasileira. Desse modo, resta claro que o impeachment não será solução alguma para a situação de crise em que vivemos. Somente agravará uma antiga tradição de golpes e rupturas institucionais do país. O Brasil ainda tem dificuldade de dar o nome merecido e devido para suas violências, mas já está claro que é de um golpe que se trata. Nesse sentido, pode-se afirmar que esse golpe apresenta, ao menos, três facetas distintas e complementares de um mesmo projeto que foi negociado entre essas forças políticas conservadoras, com o apoio decisivo de parcela da sociedade que foi às ruas e com o suporte determinante dos maiores veículos da mídia. A primeira delas – e mais visível – é o impulso de autopreservação do establishment político que busca, a qualquer custo, escapar das investigações criminais. A segunda, por sua vez, é o desmonte da precária proteção social que esse governo interino pretende. Por fim, a terceira dimensão desse golpe é a restrição de direitos civis e políticos dos setores mais vulneráveis da sociedade, minando os poucos mecanismos de proteção dos direitos humanos e aumentando o poder de agenda e de veto dos setores religiosos fundamentalistas no novo governo. “Em nome de Deus e da família” é o lema que indica o tamanho do buraco em que estamos entrando, sobretudo comunidades vulneráveis como mulheres, negros e LGBTs (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e travestis). A autopreservação do establishment político é a dimensão mais nitidamente visível da operação de afastamento

da presidenta eleita. Gravações feitas por Sérgio Machado, o ex-presidente da Transpetro que teria repassado mais de 70 milhões de reais para membros da direção do PMDB, indicam os maiores líderes desse partido, que integrava a base do governo, organizaram o impeachment de Dilma, principalmente, como uma estratégia de barrar as investigações criminais contra si próprios. Os áudios vazados para a imprensa são a prova cabal de que o então vice-presidente Michel Temer, junto com o presidente da Câmara Eduardo Cunha e o presidente do Senado Renan Calheiros, todos eles membros da direção do PMDB, uniram-se para fazer avançar o impeachment para preservar a classe política corrupta brasileira e não para acabar com a corrupção, conforme alegado insistentemente por eles na imprensa. A gravação revela o momento preciso em que o PMDB conseguiu colocar de lado as diferenças internas e buscar um consenso pelo impeachment, que apareceu como a melhor solução para salvar a pele de todos os políticos que seriam cada vez mais atingidos pelas delações premiadas e decisões judiciais no âmbito da Lava Jato. Além disso, vieram à tona fatos extremamente graves como monitoramento de movimentos sociais contrários ao impeachment por parte das Forças Armadas e também a participação de ministros do Supremo Tribunal Federal nesse amplo “pacto” nacional com objetivo de garantir a impunidade aos políticos corruptos. Logo em seguida, vieram a público outras gravações de Sérgio Machado, primeiro com o presidente do Senado Renan Calheiros e, depois, com José Sarney, ex -presidente da República e dirigente do PMDB. Nesses diálogos, ambos prometeram a Machado ajuda para que este, que era parte dos esquemas de corrupção do PMDB, não fosse preso pela Operação Lava Jato. As tentativas de manipular o Judiciário e obstruir as investigações ficam evidentes. Pelas gravações reveladas, Dilma sofre esse impeachment porque era a única sem disposição para negociar um pacto capaz de travar a operação Lava Jato, como a classe política esperava e exigia de uma presidenta. Todos os alegados motivos para o impeachment, como as pedaladas fiscais, a liberação de créditos suplementares, a crise econômica, a corrupção e até mesmo o “conjunto da obra” já podem ser descartados depois desses áudios. Essas foram apenas as causas aparentes instrumentalizadas para levar a cabo aquela motivação escusa de salvação do establishment político. Isso é tudo de que não precisamos neste momento.

NOTA 1 Disponível em: http://noticias.uol.com.br/opiniao/coluna/mobile/2016/06/10/essencia-da-politica-brasileira-governar-por-coalizao-ja-da-sinais-de-fadiga-com-temer.htm. Acesso em: 14 jun. 2016.

Renan Quinalha é advogado e ativista de direitos humanos. Graduado e mestre na Faculdade de Direito da USP, onde cursa o doutorado em Relações Internacionais. Atualmente, é Visiting Research Fellow da Brown University (EUA). É autor do livro “Justiça de Transição: contornos do conceito” (2013) e co-organizador da obra “Ditadura e Homossexualidades: repressão, resistência e busca da verdade” (2014).

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MATÉRIA DE CAPA

O IMPEACHMENT À LUZ DO SISTEMA INTERAMERICANO “Há totalmente exigência que manifestações jurisdicionais do Parlamento brasileiro observem o dever de convencionalidade dos seus atos, sob pena de responsabilização internacional do Estado e, consequentemente, invalidação da própria decisão de impeachment, se vier a ocorrer, pela Corte IDH.”  POR THIAGO OLIVEIRA MOREIRA

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validade do ainda não findo procedimento de impeachment da presidenta afastada Dilma Rousseff encontra-se no centro das discussões travadas entre os juristas. Especialistas em diversas áreas da ciência jurídica debatem acerca da constitucionalidade/legalidade da abertura do procedimento, da manifestação da Câmara dos Deputados, do afastamento determinado pelo Senado, bem como do próprio mérito do impeachment. Para além de ser uma discussão baseada no direito estatal, há que se destacar a necessária observância no direito internacional, notadamente das normas protetivas de direitos humanos, quando da análise da validade dos atos que permeiam o caso em tela. O Senado brasileiro, no exercício de atividade jurisdicional, terá que obedecer ao dever de convencionalidade de seus atos, ou seja, de respeitar as normas emanadas do sistema interamericano de proteção aos direitos humanos, uma vez a própria ideia de democracia possui relação direta com os direitos humanos. Diante dessa necessária observância da normatividade internacional, necessário se faz que algumas questões pontuais no que toca a uma possível atuação da Organização dos Estados Americanos (OAE) e da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) sejam, ainda que em apertada síntese, trazidas à reflexão. A OEA, dentre outras competências, é incumbida de zelar pela preservação no regime democrático entre os

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Estados-partes, conforme determina os termos do art. 2ª, da Carta de Bogotá. Nesse contexto, é possível que, conforme os termos da cláusula democrática prevista no art. 9º da citada Carta e do art. 20 da Carta Democrática Interamericana, qualquer Estado-membro da OEA, cujo governo democraticamente constituído seja destituído pela força ou em virtude de alteração da ordem constitucional que afete gravemente sua ordem democrática, poderá ser suspenso do exercício do direito de participação nas sessões dos órgãos da dita organização internacional. Nesse caso, as implicações são de ordem política e colocariam o Brasil numa grave crise em suas relações internacionais. No exercício da competência acima descrita, em 30 de maio de 2016, o secretário geral da OEA solicitou ao presidente do Conselho Permanente da OEA que o dito Conselho se reúna para apreciar a situação atual da Venezuela, uma vez que há graves denúncias de violação ao regime democrático1. Deixando um pouco de lado as competências da OEA, uma questão merece atenção. Conforme já foi bastante noticiado na imprensa, nacional e estrangeira, Luis Almagro, atual secretário-geral da OEA, vislumbra a hipótese de formular uma Consulta perante a Corte IDH, com a intenção de obter uma opinião jurídica acerca da validade do processo político de “impedimento” que se desenvolve no Brasil. A Corte IDH, órgão jurisdicional do sistema interamericano, tem competência para decidir sobre casos de

violações aos direitos humanos praticadas pelos Estados-membros da OEA, que tenha ratificado a Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH) e, ainda, que estejam submetidos a sua jurisdição. O Brasil tanto incorporou a dita convenção ao seu direito interno, quanto se submeteu a jurisdição do mencionado tribunal regional, tendo sido, inclusive, condenado em alguns casos e processado em outros. Para além da competência contenciosa, a Corte detém uma competência consultiva. Com efeito, nos termos do art. 64 da CADH, os Estados-membros da OEA e alguns dos órgãos dessa organização internacional, poderão formular consultas (opiniões consultivas ou pareceres consultivos) a Corte IDH acerca da interpretação das disposições dos tratados de direitos humanos pertencentes ao sistema interamericano ou mesmo sobre a compatibilidade entre quaisquer das leis estatais e os ditos tratados internacionais. É com base nesse mecanismo que a OEA pode questionar se as normas brasileiras que regulam o procedimento político-jurídico do impeachment violam o Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos. Em aceitando os termos de um eventual parecer consultivo, o Brasil evitaria violar direitos humanos, bem como de ser, mais uma vez, condenado no âmbito internacional. Voltando o olhar para uma possível atuação no âmbito da competência contenciosa, é possível que o próprio Estado brasileiro (na hipótese de cessar o afastamento da presidenta Dilma Rousseff), qualquer outro Estado-membro da OEA e que também tenha se submetido à jurisdição da Corte IDH ou mesmo à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) poderão apresentar o caso à Corte IDH. É importante destacar que não se trata de recurso de uma eventual e possível decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) à Corte IDH, pois os tribunais internacionais não atuam como instâncias recursais. Submetido o caso a apreciação da Corte IDH, verificado o adimplemento dos requisitos processuais e após o regular processo interamericano, é possível que algumas normas que regulam o impeachment, a própria decisão do Senado ou uma eventual manifestação do STF sejam consideradas inconvencionais e, portanto, violadoras do Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos. Quais seriam os possíveis fundamentos jurídicos para invalidação do impeachment pela Corte IDH? Ainda que sem conhecer os detalhes dos autos, seria possível alegar violação a alguns dispositivos da CADH. Em tese, pode-se citar o art. 8, que trata das garantias judiciais e o art. 25, que prevê a proteção judicial.

No que pertine às ditas garantias, importa ressaltar o direito de toda pessoa de ser ouvida por um tribunal independente e imparcial. Nesse caso, discute-se a independência dos parlamentares brasileiros, uma vez que muitos são investigados, acusados e/ou processados pela prática de diversos delitos, entre eles o de corrupção, bem como por improbidade administrativa. Além disso, coloca-se em dúvida a imparcialidade dos parlamentares, pois muitos anteciparam os seus votos ou foram compelidos pelas agremiações políticas a votar de certo modo, ainda que sem ouvir a defesa ou examinar de forma mais atenta às provas previstas nos autos. Tais condutas podem, em tese, eivar de vício de inconvencionalidade o julgamento por violação às garantias judiciais. Ainda no que se refere às ditas garantias, cabe mencionar que o item 2 do art. 8 da CADH preceitua que “toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa”. Com relação à proteção judicial, conforme noticiado largamente pela imprensa, alega-se cerceamento de defesa pelo fato de o relator no Senado indeferir a juntada de gravações que contém, em tese, indícios de que o impeachment tem por única finalidade “barrar” as investigações da conhecida “operação lava-jato”. Tal ato poderia configurar uma violação ao dever de proteção judicial contra atos que violem direitos fundamentais reconhecidos pela Constituição, pela lei ou pela CADH. Chamada a decidir sobre casos em que democracia, direitos civis e políticos foram objetos de violação, a Corte IDH manifestou-se pela anulação de processo político-administrativo que destituiu três magistrados da Suprema Corte peruana, justamente por ofensa às garantias judiciais e a proteção judicial, conforme consta da decisão proferida no Caso do Tribunal Constitucional contra o Peru, julgado em 20012. Além de uma possível atuação da Corte IDH com relação ao exame de possível violação aos tratados do Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos, mister se faz mencionar a possibilidade do deferimento de tutela de urgência por parte da CIDH, em que o dito órgão poderá, v.g. determinar a suspensão do afastamento da presidenta Dilma Rousseff. Diante de tudo que foi exposto, observa-se que há totalmente exigência que manifestações jurisdicionais do Parlamento brasileiro observem o dever de convencionalidade dos seus atos, sob pena de responsabilização internacional do Estado e, consequentemente, invalidação da própria decisão de impeachment, se vier a ocorrer, pela Corte IDH.

arquivo pessoal

NOTAS 1 Disponível em: http://www.oas.org/documents/por/press/OSG-243.pt.pdf. Acesso em: 14 jun. 2016. 2 Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/Seriec_71_esp.pdf

Thiago Oliveira Moreira é professor assistente da UFRN. Mestre em Direito (UFRN e Universidade do País Basco). Doutorando em Direito pela Universidade de Coimbra. Membro do Conselho Nacional da Academia Brasileira de Direito Internacional

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DIVULGAÇÃO

MATÉRIA DE CAPA

UMA LEITURA DO PROCESSO DE IMPEACHMENT DE DILMA ROUSSEF A PARTIR DA PARTICIPAÇÃO DAS MULHERES BRASILEIRAS NA POLÍTICA: QUESTÕES DE GÊNERO NO ANTES, NO DURANTE E NO DEPOIS “Na hipótese de Dilma ser condenada, as questões passam a ter um substrato mais mediato, que convocam um debate de base bem maior, sobretudo nas questões de gênero. Por exemplo: em tal caso, conseguiremos eleger novamente uma mulher para o cargo máximo da República? Ainda que não se queira traçar uma análise derrotista e sombria, penso que já perdemos muito com todo esse processo, e que possivelmente levemos algum tempo para recuperar protagonismo das mulheres nesta seara. Falo de mulheres comprometidas com as pautas humanistas, com a fidelidade constitucional intransigente, com o enfrentamento das questões de gênero.”  POR GISELA MARIA BESTER

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rata-se, neste breve artigo, de explanar uma visão bem específica sobre o processo interdisciplinar de impedimento da presidente da República Dilma Rousseff, regido pela Lei nº 1.079/1950 e subsidiado, entre outras normas, pelo Código Penal, o Código de Processo Penal, o novo Código de Processo Civil e a Lei Orçamentária. O recorte que se faz é destinado a desvelar os machismos e as misoginias verificados em seu decorrer, identificados a partir de análise embasada em estudos de gênero. O processo, em curso, com denúncia subscrita pelos juristas Miguel Reale Junior, Hélio Bicudo e Janaína Paschoal, foi autorizado pela Câmara dos Deputados versando sobre as ditas “pedaladas fiscais” e decretos autorizadores de créditos suplementares (com alteração da meta primária), os quais teriam simulado um superávit orçamentário, sem prévia autorização congressual, porém em contexto de regência do orçamento pelo princípio da anualidade, pelo que ainda estaria em tempo de ter tal requisito sanado (art. 4 da Lei Orçamentária Anual). Assim, a denúncia não versou sobre nenhum ato de corrupção eventualmente praticado pela presidente da República, nem sobre qualquer fato investigado pela Operação Lava Jato, nem mesmo sobre conteúdos de gravações telefônicas, vazados ilegalmente por aqueles dias. O pedido teve como suposto fundamento jurídico a alegada violação à Lei Orçamentária, uma das hipóteses previstas pela Lei do Impeachment, pela via, no caso, de lesão ao art. 36 da Lei de Responsabilidade Fiscal, o que teria se dado por pedaladas fiscais. Porém, os denunciantes cometeram o equívoco básico de equiparar lei orçamentária e lei de responsabilidade fiscal, que não tratam dos mesmos objetos, não podendo, obviamente, ser tratadas como normas idênticas. Assim, não estaria configurada qualquer hipótese de crime de responsabilidade. A própria Ordem dos Advogados do Brasil, depois também ingressada como denunciante, esclareceu que não o fez com embasamento em condutas criminais de responsabilidade, mas “pelo conjunto da obra”, é dizer, sem um fundamento jurídico específico. Tempos mais tarde, já estando o processo no Senado Federal, uma perícia de seus técnicos, entregue à Comissão do Impeachment, confirmou que a presidente não praticou as pedaladas fiscais (PARA PERÍCIA..., 2016, online). Essas e outras fragilidades da tese segundo a qual a presidente teria cometido crime de responsabilidade, e, portanto, a impossibilidade do impeachment, foram bem analisadas por inúmeros juristas, a exemplo de Liana Cirne Lins (2016, online). Deste modo, o que houve no caso, segundo ainda outras leituras, como as de Ricardo Lodi Ribeiro (2016), foram “pedaladas hermenêuticas”, adredemente construídas para fundamentar a referida denúncia. Dito isto, é importante reafirmar ser claro que impeachment em si não é golpe, não é um instituto golpista, eis que previsto formalmente na atual Constituição (art. 85), que recepcionou a lei infraconstitucional que o rege. Golpe é autorizar e prosseguir com um processo desse tipo, político, sim, porém sem as necessárias balizas jurídicas (UEMA, 2016, p. 181 e ss.). Nas palavras bem narradas de

Gisele Cittadino, a decisão tomada pelo plenário da Câmara dos Deputados, naquele dia de abril, de aceitar a abertura do processo contra a presidente da República, “foi uma violência em si, mas também representou a vitória da ignomínia, da corrupção, do populismo”, dizendo não ter sido fácil “ver uma parte da sociedade brasileira expressando de forma tão pública o ressentimento, o preconceito, o ódio de classe, o machismo e a misoginia” (PRONER; CITTADINO; TENENBAUM et al., 2016, p. 5). Assim postas as coisas, frisamos que aqui não se irão aprofundar as questões normativas ou os fundamentos processuais, mas sim abordar o tema sob o prisma das teorias de gênero, com o escopo especial de demonstrar o quanto já se perde, nos meandros desse processo, em termos de conquistas das mulheres brasileiras, tanto no âmbito dos direitos de participação política, quanto no orbe mais amplo das políticas públicas inclusivas e protetivas de minorias em geral, em clara configuração de retrocessos, não só nos direitos das mulheres, mas de toda a coletividade. Assim, o golpe não seria apenas contra a presidente Dilma, mas sobretudo contra os direitos fundamentais previstos e as políticas sociais executadas por um Estado Social de Direito que, desde a entrada em vigor da Constituição de 1988, mal vimos começar a andar. O antes – leis de cotas eleitorais e permanência do déficit de participação das mulheres brasileiras na política No Brasil, há ainda uma grave desproporcionalidade entre os gêneros humanos nas esferas políticas, eis que a igualdade de direitos não garantiu a igualdade real entre homens e mulheres em vários setores, como o do proporcional acesso ao poder. Por inúmeras razões, já tanto estudadas, o exercício da soberania popular por meio do sufrágio universal não garantiu o acesso paritário de mulheres aos cargos eletivos de poder, seja no Executivo ou no Legislativo, por mais que o maior número do colégio eleitoral nacional seja de eleitoras (BESTER, 1996; BIROLI; MIGUEL, 2014). Isto também não se deu em cargos públicos de gestão nos escalões superiores, de evidência, de poder, de comando e de importância decisória. Neste contexto, gênero é uma categoria central para analisar-se e pensar-se criticamente o universo da política. Pelos seus estudos, vislumbram-se as posições das mulheres nas sociedades contemporâneas, abrindo-se portas para questionamentos e lutas por mudanças. Como as relações de gênero atravessam toda a sociedade – sendo o tema, por isso mesmo, transversal, multi, inter e transdisciplinar –, acabam também gerando efeitos que se espraiam por todos os âmbitos e abrangem a totalidade humana, envolvendo e vinculando, mais fortemente, aspectos de sexualidade, de religiosidade, de raça, de classe social e ainda o econômico. A luta sufrágica no Brasil começou ainda no século XIX, foi dura e legou às mulheres a conquista do voto em 1932, muito antes do que em várias pátrias tidas como as das liberdades públicas, v.g., na França (BESTER, 1997). A passos muito lentos andamos, e política, no entanto, seguiu sendo coisa de homem, sendo preciso, em 1995, a criação

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MATÉRIA DE CAPA das cotas eleitorais, pela Lei nº 9.100, fixando-se a pioneira ação afirmativa nesta seara, com a reserva de 20% de mulheres nas nominatas/candidaturas para as eleições municipais de 1996. Em 1997, a Lei Geral das Eleições (nº 9.504, art. 10, § 3º) alterou o quadro normativo, de modo a fixar tal reserva como cota de gênero, em no mínimo 30% e no máximo 70%, para cada um dos sexos, no número de candidaturas a que os partidos políticos e coligações tivessem direito. Desde 2009, pela Lei nº 12.034, isto passou a ser obrigatório (“deverá reservar” deu lugar a “preencherá”). Contudo, sempre pontuei e vim repetindo ao longo desses anos que nunca se viu essa lógica funcionar como autorizada pela norma: não há partidos políticos ou coligações partidárias apresentando 70% de candidaturas de mulheres e 30% de homens. Isto está previsto e liberado pela lei, mas não está na cultura e nas cabeças dos caciques partidários no Brasil. De lá para cá, pequenos avanços oscilaram com a manutenção do atraso discriminatório e da desigualdade, permanecendo o déficit histórico de participação política das mulheres brasileiras. E por que é tão importante haver mulheres compondo os parlamentos, integrando as legislaturas? Porque historicamente esse poder, que cria as leis, como sua função típica, construiu um Direito para homens, escrito por homens. Não necessariamente precisamos de 50% de mulheres para 50% de homens na composição do Poder Legislativo, mas é preciso melhorar, significativamente e sob o signo da equidade, essa relação. Pesquisas mostram (BESTER, 1996) que a participação de mulheres, regra geral, leva à ampliação da cidadania como um todo, com a inclusão de outras e diversas pautas humanistas, não só do gênero feminino em si, mas de crianças, de idosos, de negros, de analfabetos, de indígenas, de pessoas homoafetivas, transgêneras, o combate à corrupção, a defesa do meio ambiente etc. A pauta da diversidade, do pluralismo, da igualdade material, que honra a existência e a luta das minorias, geralmente é defendida por mulheres que tenham consciência das questões de gênero e da comum opressão que o patriarcalismo hetero e branco lhes impõem como padrão histórico. Neste contexto de lutas por um melhor equacionamento da relação homens-mulheres na política, em 2010 a eleição de uma mulher para, pela primeira vez na história, comandar o Poder Executivo do País, teve um poder simbólico imenso, logo traduzido em ações concretas, com a assunção de mulheres de perfil ativista e humanista em postos de gestão em primeiro escalão, como ministérios ou secretarias nacionais com status de Ministério. Sua reeleição, em 2014, como presidente da República, com mais de 54 milhões de votos legítimos e diretos, reforçou uma caminhada histórica que tinha, na América Latina, mais três similares postos ocupados por mulheres em paralelo: Cristina Kirchner, na Argentina; Laura Chinchilla, na Costa Rica; Michelle Bachelet, no Chile. Veja-se, atualmente, a dificuldade que enfrenta Hillary Clinton na tentativa de chegar à Presidência dos Estados Unidos da América. No contexto latino-americano, até hoje apenas seis mulheres ocuparam o cargo executivo máximo por conquistas em eleições diretas e livres (AMÉRICA..., 2014, online). Há re-

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cente inversão neste quadro. No próximo item, olhemos alguns detalhes de como isso se deu no contexto direto do processo de impeachment da presidente Dilma. O durante – misoginia sofrida por mulheres antípodas: o que Dilma Rousseff e Janaína Paschoal tiveram em comum no início do processo? Na votação que na Câmara dos Deputados, em 17 de abril, aprovou a abertura do processo de impeachment de Dilma Rousseff, em meio a tantas atitudes antidemocráticas, televisionadas, não faltou também aquela da já tradicional afronta ao gênero feminino, traduzida pelo sexismo na política partidária. Com a clássica baixa representatividade das mulheres eleitas no Brasil, no caso de menos de 10% de deputadas federais, vimos nas placas fartamente exibidas pró-impeachment a mensagem “Tchau, querida” – um adeus debochado não só a uma mulher presidente, mas à própria democracia, em alusão agressiva e de triste escárnio aos largos interregnos de espaço político ocupado por uma mulher eleita em nossas representatividades – ouvimos as vaias à deputada que não foi à votação por estar de licença-maternidade, além, é claro, da chocante e anticonstitucional fala do deputado reverenciando monstruoso torturador, o qual, conforme uma de suas vítimas mulher relatou, fez questão de mostrar os atos de torturas que lhe eram acometidos aos seus pequenos filhos, de 4 e de 6 anos (BRANDÃO, 2016). Outra de suas vítimas foi torturada mesmo estando grávida (LEITÃO, 2016), havendo relatos de várias outras horrendas histórias semelhantes. Ali, viu-se como se comporta a nossa democracia representativa, de maioria branca e masculina, (pre)ocupada em justificar seus valiosos votos não com fundamentos jurídicos de um suposto crime de responsabilidade da mandatária máxima da República, mas sim em enaltecer a família tradicional, mantida, não raras vezes, na hipócrita base das promíscuas relações paralelas, votando ainda pelo desrespeito à laicidade estatal e pela discriminação aberta a pessoas e famílias que não se enquadrem na heteronorma. No dia seguinte ao da votação, uma revista semanal eletrônica dedicou manchete de “bela, recatada e ‘do lar’” a Marcela Temer, esposa de Michel Temer e então aspirante ao posto de primeira-dama da nossa República (LINHARES, 2016, online). O contraste do seu com os perfis das duas mulheres protagonistas dos primórdios do processo em tela – Dilma Rousseff e Janaína Paschoal – é gritante. Dilma, segundo matéria de capa de outra revista publicada naqueles dias, foi descrita como mandona, agressiva, propensa a “sucessivas explosões nervosas” e a “surtos de descontrole”, recebendo a manchete “fora de si” (PARDELLAS; BERGAMASCO, 2016, online). A revista, em postura visivelmente misógina, invocou e reforçou o estereótipo machista de que uma mulher não teria condições emocionais para dirigir uma nação, por ser descontrolada psicologicamente, irracional, não sendo talhada para exercer o poder político. Janaína Paschoal, então ardorosa opositora de Dilma, também não escapou: foi descrita como louca, histérica, desequilibrada, flagra-

da em imagens pelas quais fora descrita como “raivosa”, “cheia de ódio”, “fora de si”, “assustadora” (AUTORA..., 2016, online). Dois pesos e duas medidas, dentro de um jogo político complexo, cuja arquitetura se fez e ainda se faz notar. Curioso é que, mesmo dentro do triângulo bela, recatada e do lar, dias depois o próprio esposo, então já presidente interino da República, quis atribuir à sua esposa a profissão de advogada, mesmo sem ela constar nos registros oficiais dos regularmente inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil (COUTINHO, 2016, online). A comunidade de leitores não entendeu muito bem porque isto lhe faria falta, já que a tríade de atributos tão elogiosamente a si alardeada dias antes lhe bastaria a tudo. É que seria preciso justificar a pretensa assunção da senhora a um cargo público, comissionado, sem concurso, na área social do governo. Um olhar feminista orienta-nos a dizer que mulheres devam ser criticadas por suas ações equivocadas da mesma forma que os homens o sejam. É evidente que mulheres também oprimem, igualmente podem ser autoritárias, cometer deslizes de toda ordem; por isso mesmo, não devem estar ao abrigo de críticas (BEAUVOIR, 1967). No entanto, Janaína e Dilma – “acusadora” e “acusada” – foram chamadas de desequilibradas e de outros tantos termos deletérios, ofensas que não vimos sendo dirigidas aos parlamentares ou a integrantes homens do Poder Executivo, por mais destemperos que pudessem ter demostrado em público e no trato dos temas públicos. Defender um reconhecido torturador, contra todos os valores constitucionais previstos no texto de 1988, não seria um ato insano, desequilibrado, autoritário? Críticas machistas, em uma ordem constitucional fundada no princípio da igualdade, são inaceitáveis, independentemente a quem se dirijam e de quem provenham. Por isso, não se pode ter seletividade quando o assunto é o combate ao machismo, de igual modo que também é certo que o feminismo não autoriza a reprodução do machismo na lógica inversa. O próprio machismo não diferencia ideologias. Com efeito, não há nada mais parecido com um “machista de direita” do que um machista “de esquerda”. Isto foi facilmente verificado em muitas reações a um vídeo viral de Janaína Paschoal, professora universitária que ficou mais conhecida como a “advogada do impeachment”. Mas, dito isto, afinal, o que essas duas protagonistas, aparentemente antagônicas, tiveram em comum naqueles dias? O trato a elas dispensado revelou uma violência psicológica a que ainda são submetidas imensas levas de mulheres, em pleno século XXI, independente de serem elas chefes do Poder Executivo do País, lavadeiras, “do lar”, ou advogadas. São ainda tidas como sujeitas passivas de uma sociedade patriarcal que secularmente tenta ratificar a hegemonia masculina por meio da submissão e da estereotipação da mulher. Trata-se de uma forma de violência de gênero, reforçada por estigmas vários (GOFFMAN, 1988; BACILLA, 2010). Há, sim, ainda uma histórica expectativa de que a mulher ocupe espaços coadjuvantes ou secundários, nas esferas privadas da vida; já dos homens, espera-se a ocupa-

ção do espaço e do poder públicos. A figura “do lar”, de preferência materna, é necessária inclusive para legitimar todo um discurso crítico de alijamento das que dele saem para ocupar espaços públicos de luta política, de trabalho externo e, por conseguinte, de evidência. Na maior parte das vezes, as mulheres que se enquadram nesse perfil não o sabem, mas é assim que a engrenagem funciona. E isto não significa que não devam existir as dedicadas preponderantemente, ou exclusivamente, ao lar, aos assuntos domésticos, à maternidade, à família. O importante é que se assumam e se aceitem – ou não! – nesses papéis todos com consciência dos seus destinos e dos substratos ideológicos que estão implicados nisso. É preciso, sim, haver direito de escolha quanto a isso, escolha lúcida, consciente, esclarecida. No entanto, essas atribuições sociais tradicionalmente destinadas como se fossem naturais a homens e mulheres fundamentam-se em conservadores valores socioculturais dominantes, ainda hoje, na sociedade brasileira, por mais que a Constituição Federal diga o contrário e que as políticas públicas procurem densificar e concretizar outros princípios, postulados e direitos fundamentais em combate a este estado de coisas. Em tal quadro, a mulher que seja advogada ou que presida a Republica estaria ocupando um lugar que não é seu. Estaria desfocada e deslocada, sendo uma invasora, devendo ser dali expulsa, retirada de um cargo ou de um espaço que não lhe pertença. Se isso não for possível, merece então ser silenciada ou ridicularizada, para que perca a credibilidade e a força, algumas vezes de forma parcial e momentaneamente, outras, totalmente e para sempre. É preciso calar-lhe, tirar-lhe de cena, subtrair-lhe a evidência. Dilma, desde o início de seu primeiro governo e de forma acentuada, veio e vem sofrendo inúmeras violências, que expressam de forma contundente a misoginia e deixam clara a vulnerabilidade a que as mulheres brasileiras estão expostas. Foram e são ataques de toda ordem, sobretudo pessoais e morais, provindos de uma concepção de mundo pautada pelo ódio puro e simples à mulher – isto é misoginia! – e, portando, também, aversão ao que ela representa, ao que ela faz. Em orbe misógino, o discurso do ódio assume variadas formas, mas não esconde seus reais intuitos e dimensões: tipificar a mulher de incapaz e inviabilizar suas ações. São práticas que visam a fomentar a hegemonia masculina, perpetuando a ideia de que o feminino deva ser e estar subordinado na sociedade. Quando a presidenta foi intitulada de doente, anormal e desarrazoada, buscava-se, por tal via, atacar o seu espaço institucional, camuflando as reais intenções no jogo da disputa política e econômica. O mesmo tipo de ataque ocorreu à professora Janaína, uma das pessoas titulares do discurso mais inflamado contra Dilma. Os tons elevados das falas daqueles dias tensos podem ser considerados, mas o que se observou foi a redução de ambas a um único e sonoro enunciado: mulher louca, desiquilibrada. Teria isso tudo sido mera coincidência? Certamente que não! Muito provavelmente, gaslighting! Este fenômeno é uma das formas de abuso psicológico, caracterizan-

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MATÉRIA DE CAPA do-se por distorções de informações, suas omissões seletivas de modo a favorecer o abusador, ou simplesmente a sua invenção, com a intenção de fazer a vítima duvidar de si mesma quanto a suas memória, percepção e sanidade. A origem da nomenclatura é o filme dramático “À meia-luz” (GASLIGHT, 1944), no qual um homem, com intuito de apossar-se da fortuna de sua esposa, fez-lhe torturas psicológicas progressivas, para que ela fosse tida como louca e, consequentemente, internada em um sanatório. Em cenário de um casamento por interesse, vê-se arrastar-se uma profunda opressão psicológica à personagem feminina (SANTIAGO, 2010). A partir daí, o termo gaslighting passou a, basicamente, significar o processo de desestabilização de uma mulher, em qualquer nível ou circunstância, taxando-a de louca, exagerada, nervosa, dramática, emocionalmente frágil, histérica. Por outro lado, ainda que modestas, já se mencionou acima que houve conquistas nos últimos anos, com relação à ampliação dos direitos das mulheres brasileiras e à ocupação de espaços, porém, também é certo que a violência contra elas cresceu drasticamente, permanecendo como fruto do legado patriarcal. O mapa da violência, de 2015, focado na violência de gênero, especificamente quanto aos homicídios de mulheres no Brasil, demostra que houve um aumento de 252% nos anos de 1980 a 2013, sendo que a taxa, que em 1980 era de 2,3 vítimas por 100 mil habitantes, passou para 4,8 em 2013, significando um crescimento de 111,1%, dando ao País o 5º lugar no ranking mundial de mortes de mulheres (WAISELFISZ, 2016). Um recorte nos estudos, especificadamente às mulheres negras e pobres, revela uma situação ainda mais grave. Em tal quadro, mulheres em geral, se não são vítimas do feminicídio o são do aniquilamento de suas identidades e de constantes desqualificações, mediante a violência psíquica, perpetrada em distintos ambientes, como o laboral e o político. São diversas as formas de se dirigirem tais ofensas às mulheres, passando elas, muitas vezes, a convencerem-se de que não possuem equilíbrio emocional para comandar seu negócio, sua vida privada, seu labor, e que suas opiniões não merecem qualquer atenção, uma vez que seu choro, seu riso, sua aparência física, sua fala, suas vestimentas, tudo, enfim, tudo, é inapropriado e, portanto, desqualificador de si mesma. A violência, em geral, está, também, em fazer a vítima acreditar que ela mesma gerou todos os seus infortúnios, ou seja, transforma-se a vítima em vítima de si mesma, nas tentativas reiteradas de culpar a vítima, não os seus agressores. Os estudos vitimológicos explicam muito bem toda essa circularidade viciosa e danosa (HIRIGOYEN, 2001). Mais perverso do que esse processo em si é pensar que estas mesmas mulheres possam reproduzir em relação a outras as agressões que outrora sofreram, esquecendo-se de que eventuais diferenças sociais, políticas ou ideológicas não afastam o gênero que as unem. É o não perceber que ao desqualificar sua “adversária” atingem todo o gênero, e que o resultado dessa ação, em contexto dominantemente machista, não traz nenhuma vencedora, apenas vencidas.

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O que se defende aqui não é nenhuma posição política, pois os estudos de gênero e o feminismo são suprapartidários. Defende-se a tolerância e o respeito pautados no pensamento crítico-humanista e no diálogo, com vistas a um futuro conscientemente direcionado à melhoria da condição de vida de todas as mulheres, pois isto, certamente, resulta na ampliação da cidadania a toda a coletividade. Em comum, Dilma e Janaína tiveram, sobretudo, a misoginia. Que não era delas, mas que as afetou indistintamente. Que não é nossa, mas que afeta a muitas mulheres, vitimizando até mesmo aquelas que ainda não a percebam. Portanto, estamos diante da misoginia nossa de cada dia, que nos chama a criticamente refletir a respeito, sendo desejável que a reflexão sempre nos leve à ação, à recusa veemente de reproduzir discursos e práticas patriarcais misóginas, algumas vezes abertos, outras veladas. O gênero nos une umbilicalmente, apesar das diferenças que comungamos na espécie humana. Neste contexto, não permitamos espaços para ódios, sobretudo em uma ordem constitucional que elegeu a cultura da paz para aplacar quaisquer conflitos (institucionais, nacionais, internacionais, interpessoais). E o depois? Ainda não há depois, mas já temos retrocessos sociais Quanto ao processo de impedimento da presidente da República, com efeito, ainda não há um depois. Ainda não se finalizou. É preciso aguardar. No entanto, tantas efemérides já aconteceram que vale a pena mencionar algumas, sobretudo porque chocam o País quanto a involuções e retrocessos na história de conquista e de afirmação de direitos fundamentais. Antes de elencarmos brevemente alguns dos já sentidos retrocessos sociais, convém lembrar que até o conceito gramsciano de crise encontra-se solapado na conjuntura brasileira presente. A partir de Antonio Gramsci (1975, p. 311), um conceito clássico de crise (orgânica) pode ser entendido como aquela situação em que o “velho” já morreu, mas na qual o “novo” ainda não nasceu. Ora, no contexto brasileiro atual, é certo que o velho ainda não morreu – eis que ainda está em curso o processo de impeachment –, mas um “novo” já nasceu. Todo esfolado, todo eivado dos vícios que argumentou contrariamente a outrem e os quais prometeu combater. Governo provisório não é governo permanente. Essa sinonímia no Brasil já fez história, em que tudo o que nasce para ser provisório vira permanente, como a CPMF, como as medidas provisórias (BESTER, 2002). Porém, mesmo sendo provisório, substituição que a Constituição Federal prevê e autoriza, estaria tal governante autorizado a trocar praticamente todo o Ministério, como se permanente fosse? O professor Ricardo Lodi, nesta mesma edição periódica, em artigo lúcido e pungente, explica que não, ou, pelo menos, o quanto isso seja duvidoso e temerário. De nossa parte, queremos chamar a atenção para alguns dos tantos retrocessos já anunciados nessa curta gestão, altamente prejudiciais ao elenco de direitos fundamentais das pessoas humanas.

Esquizofrênicas e confusas composições ministeriais anunciando retrocessos e prejuízos aos direitos humanos fundamentais No mesmo marco da questionada legitimidade, sobretudo em relação ao principal argumento da onda ofensiva à retirada do poder de uma governante acusada – mas sobre a qual nunca se provou, nem no contexto da Operação Lava Jato, nem no processo em si do impeachment, que tenha sido corrupta, que tenha recebido alguma propina, que tenha tido alguma conta bancária espúria no exterior, enfim, que não tenha sido proba ao administrar –, uma dança das cadeiras de ministros do governo provisório já se verificou, havendo três baixas até agora, estando mais dois na berlinda (Mendonça Filho e Fábio Osório). A queda dos três ministros foi em função de ligações com os andamentos da Operação Lava Jato (TEMER DECIDE..., 2016, online). Assistimos também aos atos esquizofrênicos de extinção e de recriação do Ministério da Cultura (inicialmente transformado em uma Secretaria do Ministério da Educação), ao sabor do clamor de uma emissora de televisão. Vimos a confusa fusão dos Ministérios da Ciência, Tecnologia e Inovação com o da Comunicação, fartamente criticada como medida artificial e prejudicial ao desenvolvimento científico, tecnológico e de inovação no País, pela Academia Brasileira de Ciência, pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, entre outras instituições científicas de peso (INSTITUIÇÕES..., 2016, online). O desmonte das estruturas de programas sociais evidenciou-se com a incorporação do Ministério do Desenvolvimento Social a um superministério, que há de esvaziar os seus financiamentos. A liquidação dos sistemas protetivos de saúde pública e de previdência social foram anunciados nos primeiros momentos do novo governo, vindo aí diminuição do tamanho do Sistema Público de Saúde, aumento do tempo de contribuição para a Previdência e antecipação do tempo de seu início, o que, como venda casada, tira da gaveta Proposta de Emenda à Constituição que visa a diminuir a idade para o ingresso formal no mercado de trabalho (PEC nº 18/2011). A fala inaugural do novo ministro da Saúde deixou claro que será preciso repactuar as obrigações do Estado, pois não vão conseguir “sustentar o nível de direitos que a Constituição determina”, a exemplo da Grécia, que cortou aposentadorias. (COLLUCCI, 2016, online). Viu-se, ademais, a entrada de uma mulher em um dos poucos postos de algum destaque (Secretaria Nacional de Direitos Humanos), eis que já sem status de ministério, possivelmente também suscitada pelo clamor dos movimentos feministas e sociais, que bradaram fortes críticas contra a ausência de mulheres nos primeiros escalões do governo interino. No entanto, a jurista Flávia Piovesan, mesmo assim e talvez exatamente por isso, teve lamentada sua decisão de aceitar o posto, com duras críticas provindas de alguns setores da academia e de colegas juristas (JURISTAS..., 2016, online), que não viram com bons olhos ou ficaram até mesmo preocupados com o fato de uma humanista competente, de largo e denso currículo, somar-se a um governo provisório anunciando retroces-

sos em vários nichos justamente de direitos humanos fundamentais, sobretudo os de cunho social. Talvez ela consiga, com todo seu cabedal de conhecimento acumulado em direitos humanos, fazer algo. No entanto, parece ser difícil seu quadro de atuação, pois, em contrapartida, foi nomeada para ser a titular da Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres uma evangélica – não por isso, a Constituição garante e protege a sua crença –, que é contrária, por exemplo, ao aborto, em qualquer tipo de caso, mesmo naqueles de estupros (ÉBOLI, 2016, online) – nisso a Constituição, que recepcionou o Código Penal, não a ampara –, eis que sua crença não permite isso. Está na lei, mas não está na Bíblia! Note-se o quanto isto é grave e paradoxal em tempos de acirramento da violência de gênero em nosso País, sobretudo os casos de estupros praticados em ações coletivas, evidenciando a cultura do estupro de modo ascendente, quadro em que, de vítimas as mulheres passam a ser culpadas pelas violências sexuais que sofrem, em moto contínuo de vitimizações. Religiosa e conservadora, a ex-deputada empossada em tal pasta é ainda apontada em investigação do Ministério Público Federal como integrante de esquema para desviar dinheiro público (SECRETÁRIA..., 2016, online). O fato é que, historicamente, essas secretarias de Estado necessariamente trabalham dialogicamente. Porém, com o perfil de entendimento tão antagônico das duas mulheres nos seus postos máximos, fica-se a imaginar o diálogo possível. Para piorar, o líder do governo Temer na Câmara dos Deputados é um dos coautores de projeto de lei, em tramitação, que dificulta em muito o acesso ao aborto autorizado por lei às vítimas de abusos sexuais, sendo o típico caso de proposição legislativa para criar norma a decidir os destinos e a saúde de mulheres, mas pensada e escrita exclusivamente por homens (FERNANDES, 2016, online). Portanto, a entrada das referidas secretárias no governo federal inicialmente pareceu um avanço, depois da grita pela falta de mulheres nos primeiros e nos segundos escalões da gestão. No entanto, a aparência parece ficar evidente, sobretudo diante das intenções concretas de inversões no campo das políticas públicas efetivadoras de direitos, notadamente na pasta das mulheres. Tudo isso aconteceu e vem acontecendo no ano nacional do empoderamento das mulheres na política. Também no âmbito da OAB Nacional, 2016 foi proclamado o Ano da Mulher Advogada, focando no protagonismo feminino profissional e na valorização da mulher como um todo. Eis os paradoxos. Em contrapartida, no início de junho de 2016 houve autorizações, com o aval e inicialmente sem vetos do presidente interino da República, de reajustes salariais para servidores do Poder Judiciário, com impactos bilionários nos cofres públicos, notadamente àqueles que já recebem muito a mais do que a média da classe trabalhadora nacional, bem como a criação de mais de 14 mil novos cargos públicos federais, tudo isso em momento de escassez, de crise e de austeridade, significando quase quatro vezes mais do que Temer prometeu cortar em cargos comissionados somente neste ano (SEM ALARDE..., 2016, online).

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MATÉRIA DE CAPA Possivelmente constrangido com os estragos em sua imagem de operador do ajuste fiscal que jurou realizar, dias depois Temer anunciou que desistiria da criação dos tantos novos cargos. (TEMER DESISTE..., 2016, online). Ora, um dos principais discursos que antecedeu e preparou essa troca de governantes foi gerar economia pelos cortes de despesas no enfrentamento da crise econômica, bem como pelo enxugamento do poder público e das contas públicas. No entanto, continua-se gastando e planejando gastar, e muito, trocando-se apenas as prioridades escolhidas. Conclusão crítica: o depois do depois Sobre o que poderá vir após do que será “o depois”, isto é, quando efetivamente o processo de impeachment estiver finalizado, o que existem são conjeturas. Há um caminho constitucional trilhado, mas a julgar o quanto se tem desrespeitado a Constituição, é melhor já irmos conjeturando. Novas indagações, em moto contínuo de teses, sínteses e antíteses, são desejáveis em análises dialéticas, propícias a temas vivos, que ainda estejam se movendo, como é o caso. Assim sendo, passo a externar algumas questões, neste amplo quadro, ainda em aberto. O que nos aguarda ao final dos cento e oitenta dias contados da instauração do processo, pelo Senado Federal, a partir de quando a presidente ficou suspensa de suas funções? De imediato, em questões mais práticas, se Dilma for absolvida em seu julgamento, tudo volta ao status quo ante, isto é, dar-se-á formalmente seu pronto regresso à Presidência da República, para lá permanecer até o término de seu mandato. Se for condenada, perderá seus direitos políticos e ficará inelegível por oito anos. Neste caso, novas eleições presidenciais somente serão convocadas se, além da Presidência, vagar também a Vice-Presidência e todas as demais vagas abertas, em 30 dias depois de aberta a última vaga, eis que nos dois últimos anos do período presidencial, cujo pleito seria

convocado pelo Congresso Nacional e os eleitos apenas completariam o período de seus antecessores (CF, arts. 80 e 81, parágrafos 1º e 2º). Se, contudo, o processo não for finalizado no prazo dos 180 dias, cessará o afastamento da presidente, “sem prejuízo do regular prosseguimento do processo” (CF, art. 86, § 2º). Na hipótese de Dilma ser condenada, as questões passam a ter um substrato mais mediato, que convocam um debate de base bem maior, sobretudo nas questões de gênero. Por exemplo: em tal caso, conseguiremos eleger novamente uma mulher para o cargo máximo da República? Ainda que não se queira traçar uma análise derrotista e sombria, penso que já perdemos muito com todo esse processo, e que possivelmente levemos algum tempo para recuperar protagonismo das mulheres nesta seara. Falo de mulheres comprometidas com as pautas humanistas, com a fidelidade constitucional intransigente, com o enfrentamento das questões de gênero. Existe ainda o risco de termos instalada uma Constituinte exclusiva em todo este contexto. É de perguntar-se: com este Congresso Nacional que (não) nos “representa”? Isto nos faz concluir que realmente a crise existe, está aí, mas é bem maior, ultrapassando em muito a suposta crise encapsulada no processo de impeachment de Dilma Rousseff. A crise é mais ampla, anterior, profunda, urgente e emergente, configurando o que Bauman e Bordoni (2016), em obra recente, chamaram de “estado de crise”, sobretudo de viés ético e político, com fortes respingos no econômico, em que a tendência do mercado dirige-se fortemente para a flexibilização das relações laborais, para a livre passagem das terceirizações e de outras tantas formas de se fazer precarizações no mundo do trabalho. Realmente, vivemos tempos incertos e difíceis. Difíceis, sobretudo. Incertos já não parecem mais, pois as ações governamentais acima listadas já indicam certeiramente o caminho pelo qual o governo provisório segue, com as opções que faz, gerando mais crise sob o argumento de combater a crise.

REFERÊNCIAS AMÉRICA LATINA E MULHERES: 6 presidentes e nenhuma ditadora. Exame, 10 mar. 2014. Disponível em: . Acesso em: 6 dez. 2014. AUTORA DO PEDIDO DE IMPEACHMENT DE DILMA PROTAGONIZA CENAS INACREDITÁVEIS. Disponível em: . Acesso em: 7 abr. 2016. BACILA, Carlos Roberto. Estigmas – Um estudo sobre os preconceitos. 2. ed. ampl. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. BAUMAN, Zygmunt; BORDONI, Carlo. Estado de crise. Trad. Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar, 2016. BESTER, Gisela Maria. Direitos políticos das mulheres brasileiras: aspectos históricos da luta sufrágica e algumas conquistas políticas posteriores. Dissertação. 183f. (Mestrado em Direito). Universidade Federal de Santa Catarina, 1996. BESTER, Gisela Maria. Aspectos históricos da luta sufrágica feminina no Brasil. Revista de Ciências Humanas, UFSC, Florianópolis, v. 15, n. 21, p. 11-22, 1997. BESTER, Gisela Maria. O uso das medidas provisórias no Estado Democrático de Direito brasileiro: análise crítica à luz do Direito Constitucional contemporâneo. Tese. 513f. (Doutorado em Direito). Universidade Federal de Santa Catarina, 2002. BESTER, Gisela Maria; BITTENCOURT, Letícia. Dilma e Janaina: o que as une? Ou, a misoginia nossa de cada dia. Coluna Levando a Constituição a sério. Florianópolis, 4 maio 2016. Disponível em: . Acesso em: 6 maio 2016. BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. V. 2. A experiência vivida. 2. ed. Trad. Sérgio Milliet. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1967. BIROLI, Flávia; MIGUEL, Luis Felipe. Feminismo e política: uma introdução. São Paulo: Boitempo, 2014.

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arquivo pessoal

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Gisela Maria Bester preside a Comissão de Estudos Constitucionais, da Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional do Tocantins (OAB TO). Graduada em Direito. Advogada. Mestra, Doutora e Pós-Doutora em Direito Constitucional. Diretora-Geral da Escola Superior de Advocacia do Tocantins (ESA TO). Professora do Mestrado acadêmico em Direitos Fundamentais, da Universidade do Oeste de Santa Catarina (UNOESC). Integrante do Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos, da Universidade Federal do Tocantins (UFT). Professora colaboradora do Mestrado acadêmico em Direito Empresarial e Cidadania, do Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA). Integrante das Comissões da Mulher Advogada, de Ensino Jurídico, e de Combate à Corrupção e pela Defesa do Patrimônio Público, da OAB-TO. Autora da Coluna Levando a Constituição a Sério, no Portal jurídico Empório do Direito.

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Os poderes constitucionais do vice - presidente em caso de substituição do presidente da República “Uma vez afastada definitivamente a presidenta da República em razão de condenação em processo de impedimento, somente aí o vice-presidente a sucede em caráter definitivo, uma vez que o cargo presidencial ficará vago. Apenas com a condenação da presidenta da República e, portanto, com a vacância do cargo, é que o vice-presidente passa a ocupar definitivamente a Presidência da República, com as atribuições inerentes ao cargo constantes do artigo 84 do Texto Constitucional. Ainda assim, é discutível se ele poderia afastar-se tão drasticamente do proposto nas eleições sem passar por um escrutínio popular referendando essa eventual mudança política e governamental. Menos ainda se se der de modo precário, como nas atuais circunstâncias.”  POR BRUNO GALINDO e JOSÉ EMÍLIO MEDAUAR OMMATI

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DIVULGAÇÃO

MATÉRIA DE CAPA

E

ste breve texto pretende discutir questão complexa envolvendo os poderes constitucionais do vice-presidente da República em nosso país nos casos envolvendo substituição e sucessão do presidente da República. A questão pode parecer banal, contudo envolve algumas controvérsias interessantes, já que o Texto Constitucional brasileiro aparentemente silenciou sobre o ponto, podendo gerar discussões sobre o papel constitucional do vice-presidente em nosso ordenamento jurídico. Para o correto desenvolvimento da questão a que nos propomos, inicialmente discorreremos, mesmo que brevemente, sobre o sistema presidencialista adotado entre nós, para, a seguir, compreendermos as funções do vice -presidente da República em nosso ordenamento jurídico-constitucional. O que pretendemos responder é a seguinte questão: em caso de afastamento temporário do presidente da República, por ter sido autorizado a continuidade de pro-

cesso de impeachment no Senado Federal, poderia o vice -presidente da República no exercício temporário da Presidência promover profundas reformas administrativas e políticas na condução da Administração Pública federal e do Governo? Pois bem. Desde a Constituição de 1891, o Brasil adotou o modelo presidencialista de governo, a partir do modelo criado pela Constituição dos Estados Unidos da América. Contudo, ao contrário dos norte-americanos, o presidencialismo brasileiro desenvolveu-se, especificamente após a Constituição de 1988, em uma linha bastante peculiar, que nossa Ciência Política passou a designar de presidencialismo de coalizão.1 Não é nosso intuito desenvolver os problemas e virtudes do presidencialismo de coalizão. Não teríamos tempo e espaço para isso. O que convém ressaltar é que em nosso modelo presidencial, como em qualquer regime presidencial existente no mundo, o presidente da República, eleito democraticamente pelo povo, exerce as funções de chefia de Estado e de chefia de Governo ao mesmo tempo.2 Significa dizer que o presidente da República, ao mesmo tempo em que representa a República Federativa do Brasil nas relações internacionais e funciona como catalisador de sua unidade interna (chefia de Estado), é também o chefe de Governo e da Administração Pública federal, gerindo a máquina pública e empreendendo o seu programa político governamental escolhido no pleito eleitoral pela própria população. Para haver clareza quanto à correção de tudo o que foi dito até agora, basta visualizar o teor do art. 84 do texto constitucional de 1988, que estabelece as competências do presidente da República englobando tanto competências relacionadas à chefia de Estado quanto à de chefia de Governo. O vice-presidente é pensado inicialmente na história do presidencialismo como um substituto natural do presidente nos casos de impedimento e sucessor no caso do cargo ficar vago. Muitos chegaram a menosprezar o referido cargo como inútil, pois basicamente ficaria em estado de inércia aguardando a ocasião de ser aproveitado ou ainda, como assevera Bryce, “este homem de segunda ordem (o vice-presidente) sobre a alta posição para a qual nunca se tinha pensado nele”.3 Em repúblicas parlamentaristas ou de sistema parlamentar-presidencial, sequer existe o cargo de vice-presidente, dado o fato de o presidente exercer somente a chefia de Estado, ficando a chefia de governo com o primeiro-ministro, tal como ocorre em países como Portugal e Alemanha.4 Contudo, desde Hamilton na clássica obra “O Federalista”, os norte-americanos pensaram no vice-presidente como um cargo conveniente para efeitos da rapidez na substituição e/ou sucessão do presidente, além do fato de que nos EUA, o vice-presidente também exerce a Presidência do Senado Federal, de acordo com a Constituição daquele país em seu art. I, Seção 3, 4.5 Na maioria dos sistemas presidencialistas de governo, presidente e vice-presidente são eleitos simultaneamente

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MATÉRIA DE CAPA e pertencem a uma mesma chapa. Também é assim no Brasil, desde a Emenda Constitucional n° 9 à Constituição de 1946, não sendo mais possível a eleição de um presidente da República de uma linha política e de um vice -presidente de outra linha, como ocorria até então, com eleições separadas para presidente e vice-presidente, sem que os candidatos fizessem parte da mesma chapa, podendo até mesmo serem de tendências político-ideológicas diametralmente opostas. Em verdade, a eleição simultânea de presidente e vice de uma mesma chapa tem sua razão de ser, no sentido de se evitar que o presidente da República seja surpreendido por um substituto ou sucessor de outra linha político-ideológica, podendo, em tal caso, até mesmo fazer oposição política visando aceder ao cargo de chefe do Executivo. Tanto é assim que a Constituição de 1988 deixa claro em seus arts. 77 e 78 que presidente da República e vice devem pertencer a um mesmo espectro político, podendo ser do mesmo partido ou da mesma coligação. Apresentam-se como candidatos conjuntamente durante o período das eleições, e o voto é conferido à chapa e não isoladamente a cada um dos candidatos. Precisam apresentar um programa de governo e uma plataforma de atuação e diretrizes políticas à população que, ciente delas, confere seu voto e, respeitadas as regras eleitorais presentes na Constituição e na legislação, os candidatos a presidente e a vice-presidente são eleitos com o compromisso de cumpri-los ou, pelo menos, de adotarem posições políticas consentâneas com o conteúdo de seus programas propostos nas eleições. Contudo, a Constituição de 1988 também deixa claro que quem exerce a função executiva é o presidente da República, auxiliado pelos ministros de Estado, como esclarece o art. 76 do Texto Constitucional. Mas, para que serve o vice-presidente da República? De acordo com o texto constitucional, basicamente para substituir o presidente, no caso de impedimento, e sucedê-lo, em caso de vaga, como expressamente referido pelo art. 79 da Constituição de 1988. Essas são as funções típicas do vice-presidente da República. Além dessas funções típicas, poderá também o vice-presidente exercer outras atribuições sempre que convocado pelo presidente da República para tal mister. É dizer: o vice-presidente somente pode exercitar outras funções quando assim designado pelo presidente da República. Este é o preciso teor do parágrafo único do art. 79 da Constituição de 1988. Diversamente do que ocorre nos EUA, sequer possui o vice-presidente atuação junto aos outros poderes, a não ser se convocado para tal pelo presidente. Em razão de tudo o quanto foi dito, conclui-se sem grande esforço que o vice-presidente está em tudo e por tudo subordinado ao presidente da República, somente podendo atuar em casos especificados pela Constituição de 1988 (substituição e sucessão do presidente da República) ou naquelas situações em que o presidente da República convocá-lo para missões especiais. Nesses casos, o vice-presidente da República realiza funções atípicas.

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E quais seriam as diferenças entre substituição e sucessão, casos de funções típicas do vice-presidente da República? A substituição ocorre quando o presidente da República tem que se ausentar de sua função temporariamente. Assim ocorre nas situações de viagens internacionais, e, para o que nos interessa no presente ensaio, quando o Senado Federal resolve instaurar o processo de impedimento do presidente da República, de acordo com o art. 86, § 1º, II, do Texto Constitucional, com o ato de recebimento da denúncia após a autorização dada pela Câmara dos Deputados. Tal ato ocasiona, no Brasil, o afastamento temporário do presidente da República, que não pode ser superior a 180 dias, em caso de não conclusão do julgamento até esse prazo, como claramente estabelecido no § 2º do art. 86 da Constituição de 1988. Para não restarem dúvidas, de acordo com o nosso texto constitucional, se o Senado Federal resolver prosseguir com um processo de impedimento por verificar em tese indícios de materialidade e autoria de crime de responsabilidade cometido pelo presidente da República, ao receber a denúncia, e uma vez comunicada tal decisão, o presidente ficará afastado de suas funções por prazo de até 180 dias. Caso o processo de impedimento não seja finalizado antes desse prazo, o chefe do Executivo retorna às suas funções sem prejuízo do regular seguimento do feito. Pois bem. A questão fica mais interessante e complexa quando se coloca a seguinte questão: tendo sido o presidente da República afastado de suas funções para responder ao processo de impedimento, pode o vice-presidente, substituindo interinamente o presidente da República, realizar reformas administrativas de grande impacto, tais como a extinção e a fusão de ministérios? Pode o vice-presidente, ao substituir o presidente da República afastado para responder a processo de impedimento, modificar quase que completamente as políticas públicas traçadas pelo titular da função e, em tese, de acordo com o programa político e governamental escolhido no pleito eleitoral pela população, adotando, por exemplo, o ideário político da oposição derrotada e nomeando ministros e auxiliares dentre os quadros desta? São essas as questões que pretendemos responder a partir de agora, tendo em vista a situação atual do Brasil. A presidenta da República Dilma Roussef foi afastada no dia 12 de maio de 2016, por decisão do Senado Federal no recebimento da denúncia contra ela, após autorização concedida pela Câmara dos Deputados. A partir desse momento, passou a substitui-la por um período de até 180 dias o vice-presidente Michel Temer. No entanto, o vice-presidente em substituição à presidenta, não apenas promoveu ampla reforma ministerial, através da edição da Medida Provisória nº 726/2016, como também modificou substancialmente o plano de governo da presidenta democraticamente eleita, através do conhecido documento por ele lançado denominado de “Ponte para o Futuro”. O referido plano de governo do vice-presidente em substituição à presidenta da República representa uma

mudança drástica na condução do país, algo que não foi discutido durante a campanha eleitoral de 2014 que, por decisão soberana e legítima do povo brasileiro, resolveu eleger a chapa presidencial Dilma Roussef e Michel Temer para assumir os cargos de presidente e de vice-presidente da República, respectivamente. É preciso lembrar que um processo de impeachment tem contornos político-criminais, como já destacado pelo primeiro autor deste trabalho em obra recentemente lançada. Embora seu processamento se dê em casas parlamentares e sempre exista a possibilidade destas não levarem adiante um processo de tal natureza por razões de conveniência política, por outro lado, há a necessidade de constatação objetiva de fatos que constituam os crimes de responsabilidade, sendo necessário à pretensão punitiva o fundamento jurídico, não podendo ser mero juízo discricionário sem justa causa e exclusivamente político por parte das referidas casas.6 É dizer que, embora o presidente possa eventualmente ter cometido crimes, é justamente esse o motivo de seu afastamento temporário em caráter cautelar. Não se trata, em princípio, diante do que estabelece a Constituição, de um voto de desconfiança (tal como existe no parlamentarismo) em relação ao programa político e governamental do presidente. A reprovação deste se dá nas eleições periódicas para o cargo, como ocorre no sistema presidencialista em geral, salvo nos casos de constituições como as da Colômbia e da Bolívia quando preveem a existência de um referendo revogatório de mandato que, ainda assim, não se confunde com o instituto do impeachment.7 Sendo assim, não se pode cogitar de um desvio significativo do vice-presidente em relação à linha política escolhida pela população nas eleições, ainda mais em uma situação de precariedade, quando o mesmo assume interinamente, ainda sem qualquer certeza de que possa se tornar presidente em definitivo, pois enquanto não concluído o processo, o afastamento se dá em caráter provisório, podendo, em caso de absolvição, o presidente afastado retornar ao seu cargo, o que ocasionaria o retorno do presidente interino à sua condição de substituto eventual. Aliás, uma das razões para que nos EUA não se dê o afastamento cautelar do presidente de seu cargo é precisamente o fato de que, ainda que o governante supremo esteja pessoalmente envolvido em crimes, o seu programa de governo e sua linha política só devem ser substituídas nas eleições seguintes, caso assim entenda a própria população. A ideia é de continuidade, o presidente só será afastado do cargo em caso de condenação definitiva, o que, diga-se de passagem, jamais aconteceu nos 229 anos de história constitucional norte-americana.8 O que ocorre no Brasil atualmente é algo aparentemente sem precedentes, tanto política como juridicamente. Praticamente, desde a aceitação da denúncia pelo presidente da Câmara dos Deputados em dezembro de 2015, o vice-presidente Michel Temer já se reunia com políticos da oposição e líderes partidários na busca de nomes para um eventual ministério, em um sinal de clara ruptura po-

lítica com a presidente, talvez mesmo precipitada. Basta dizer que em apenas cinco dias após a referida aceitação, o vice-presidente divulga na imprensa uma carta à presidenta Dilma Rousseff, enumerando os momentos em que se sentiu desprestigiado e apontando episódios em que teria restado clara a desconfiança dela em relação ao PMDB, tornando público o distanciamento. Do mesmo modo, apenas seis dias antes da votação da admissibilidade do pedido de impeachment pela Câmara dos Deputados, Temer enviou a aliados uma gravação de 14 minutos (supostamente “vazada” na grande imprensa) em que fala dos rumos do país, antecipando que a votação da Câmara seria pela admissibilidade do pedido, em discurso que seria feito caso essa situação se concretizasse. Neste, o vice-presidente já apresentou uma prévia de um programa de governo próprio caso chegasse à Presidência, mencionando tópicos como reforma tributária, revisão do pacto federativo, mudança nas leis trabalhistas e reforma previdenciária.9 Embora, em princípio, não se tenha uma vedação jurídica expressa a esse tipo de comportamento, é estranho ao aspecto teleológico constitucional, pois a Lei Maior do país cerca a chapa presidencial de mecanismos protetivos para que esta esteja em harmonia na condução do governo. Do ponto de vista do comportamento político, há uma diferença significativa em relação ao vice-presidente Itamar Franco, quando do processo de impeachment contra o então presidente Fernando Collor. Itamar foi bastante discreto e praticamente não se pronunciou até assumir o cargo, quando, respeitando sua condição de interino, fez poucas alterações estruturais no governo enquanto a reversibilidade do processo contra o presidente Collor ainda era em tese possível. Aliás, não são poucos os que opinam que o presidente Itamar Franco seria um grande exemplo a ser seguido, como destaca, por exemplo, o ex-ministro da Fazenda, Rubens Ricúpero, quando destaca que Itamar conseguiu equacionar as forças sociais do país e construir um grande entendimento nacional. Segundo Ricúpero, “Ele sabia que não poderia fazer um governo somente para agradar as bolsas e os mercados. Tinha sensibilidade social e política. Chamou a UNE e até o PT, que era oposição. Ele sempre quis construir pontes, e foi muito bem sucedido nisso. É sem dúvida uma grande lição.”10 Embora sejam considerações metajurídicas, cremos serem relevantes à compreensão do problema. Como destacado, durante o afastamento do presidente, o vice-presidente assume precariamente, com o fim de substituição, somente podendo tomar medidas de urgência, sem alterações na ordem vigente e no programa de governo do presidente eleito. Como asseveram Ribeiro e Pencak, entender que o vice-presidente, em exercício precário e interino da Presidência, possui competência para colocar em prática profundas reformas institucionais, econômicas e sociais e/ou romper com os programas instaurados pelo presidente afastado, é assumir que o constituinte permitiu a ocorrência de gravíssimo periculum in mora in reverso.

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MATÉRIA DE CAPA Nas palavras dos autores referidos [...] o constituinte definiu que o melhor cenário seria aquele em que, durante o julgamento, o presidente permanecesse afastado, tendo em vista que se encontra impossibilitado de exercer plenamente as atribuições constitucionais descritas no art. 84, vez que se tornou réu e precisa produzir os elementos necessários à sua defesa. Afirmar que a previsão de afastamento implica em presunção de culpa pelo constituinte é admitir que há contradição na Constituição de 1988, que confere status de direito fundamental à presunção de inocência, no art. 5º, LVII. Portanto, deve-se reconhecer que o constituinte não conferiu plenos poderes presidenciais ao vice durante o período de afastamento, pelo seguinte: i) o vice-presidente não foi eleito para ocupar a função do presidente da República; ii) seria, no mínimo, leviano por parte do constituinte assumir periculum in mora in reverso de tamanha monta, aos custos da sociedade brasileira, já que a previsão constitucional é clara no sentido de afastamento temporário; iii) não menos importante, o constituinte não previu que o vice presidente não estaria alinhado com o presidente, de modo a não dar continuidade ao programa de governo até então praticado e iniciar seu próprio mandato, como ocorre atualmente.11 É fundamental relembrar que, enquanto o presidente em exercício não assume em caráter definitivo, sua investidura nas chefias de Estado e de governo é precária, não conferindo a ele poderes amplos, mas somente a restrita condição de tomar medidas imprescindíveis ao funcionamento da máquina pública, bem como decisões urgentes e inadiáveis, além de seguir em linhas gerais o programa de governo do presidente afastado. Ele é um mero substituto, não um sucessor, de modo que políticas que impliquem drástica alteração da linha política do mandatário afastado podem padecer do vício da inconstitucionalidade e, no limite, até configurarem verdadeira fraude eleitoral, dado o fato de que a opção do eleitorado nas urnas possa ter sido substituída pelo programa governamental derrotado e rechaçado nas eleições, o que de certo modo é o que começa a ocorrer com o governo interino do presidente em exercício Michel Temer, quando anuncia e implementa medidas como: redução no número de ministérios, com extinção de pastas de relevância ímpar para as políticas públicas consagradas no pleito eleitoral, como Cultura, Ciência e Tecnologia, Desenvolvimento Agrário, Direitos Humanos e Previdência Social; redução da autonomia da Controladoria-Geral da União com sua transformação em um Ministério da Transparência; implementação de reformas tributárias e previdenciárias aparentemente sem conexão ou continuidade com a linha da presidenta afastada; venda de participação da União nos Correios e na Casa da Moeda; flexibilização nas regras sobre privatizações; redução de direitos trabalhistas, distribuição de cargos para partidos de oposição ao da presidenta afastada; alteração de programas sociais; anulação de atos praticados pela presi-

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dente durante o regular exercício mandato, no período entre a autorização da Câmara e antes da abertura do processo pelo Senado.12 E nem se diga que tais mudanças drásticas seriam legítimas, já que o eleitor, ao votar na candidata Dilma Roussef estaria automaticamente votando também em Michel Temer. Definitivamente, não, porque o plano de governo foi da chapa Dilma Roussef e Michel Temer, não havendo, aliás, qualquer possibilidade do eleitorado votar neles separadamente. Votar em um necessariamente implica votar no outro, já que são companheiros de chapa. Não é por outro motivo que a Constituição de 1988 afirma em seu art. 76 que o Poder Executivo é exercido pelo presidente da República, auxiliado pelos Ministros de Estado. O vice-presidente é mero substituto eventual e só sucede o presidente quando este deixa o cargo de modo definitivo. Não foi por outro motivo que o Partido Democrático Trabalhista (PDT) protocolou, em 20 de maio último, uma arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) que recebeu no STF o número de 409, contra a MP do presidente em exercício Michel Temer. O autor da ADPF argumenta que o vice-presidente não poderia promover tamanha mudança na linha da gestão anterior, uma vez que estaria apenas substituindo a presidenta da República. Ora, diante da ausência, por ora, de julgamento e condenação da presidenta da República no processo de impedimento, a gestão do vice-presidente ainda não é autônoma, de modo que ele deve apenas cumprir o papel de substituto e aguardar o desenlace do processo que tramita perante o Senado Federal. Isso porque há uma diferença crucial entre substituição e sucessão do presidente da República, palavras utilizadas pelo art. 79 da Constituição de 1988. Explicamos. A Constituição de 1988 parece deixar claro que a substituição do presidente da República pelo vice ocorre em situações essencialmente reversíveis e temporárias. É dizer, naquelas situações em que o presidente da República não pode momentaneamente exercer as funções presidenciais, seja em virtude de viagem ao exterior, de uma doença ou de um afastamento temporário para responder a um processo por crime comum ou de responsabilidade. Nesses casos, o vice-presidente não deixa de ser vice-presidente; apenas exerce interinamente a função da Presidência, não podendo usurpar as funções do presidente da República. Nessas situações, o vice-presidente ainda se encontra ligado ao que tenha sido estabelecido e decidido pelo presidente da República, devendo, inclusive, manter a linha de governo e as políticas públicas construídas pelo presidente da República que se encontra temporariamente impedido de exercitar as funções governamentais da República. Situação completamente diversa ocorre no caso de sucessão do presidente da República pelo vice. A sucessão ocorre sempre em situações de vaga do cargo de presidente da República, como deixa claro o art. 79 da Constituição de 1988. Assim, a sucessão ocorre sempre que o presidente da República não possa retornar definitivamente à sua

Mais uma vez destacando a lição de Ribeiro e Pencak, para quem:

função, seja em razão de morte ou no caso de condenação em processo de impedimento. No caso atual, a presidenta da República foi afastada temporariamente de suas funções, tanto para impedir que haja qualquer interferência indevida no desenvolvimento válido e regular do procedimento de impedimento, quanto para garantir sua plenitude de defesa. Assim, assume interinamente o vice-presidente da República, que não pode promover alterações nas linhas política e administrativa do Governo. Afinal, ainda se está sob o Governo democraticamente eleito da presidenta Dilma Roussef. O vice-presidente da República, na dicção do art. 79 da Constituição de 1988, está apenas a substituir o presidente da República, dando cumprimento também ao que disposto no art. 86, §§ 1º e 2º, do texto constitucional. Uma vez afastada definitivamente a presidenta da República em razão de condenação em processo de impedimento, somente aí o vice-presidente a sucede em caráter definitivo, uma vez que o cargo presidencial ficará vago. Apenas com a condenação da presidenta da República e, portanto, com a vacância do cargo, é que o vice-presidente passa a ocupar definitivamente a Presidência da República, com as atribuições inerentes ao cargo constantes do art. 84 do Texto Constitucional. Ainda assim, é discutível se ele poderia afastar-se tão drasticamente do proposto nas eleições sem passar por um escrutínio popular referendando essa eventual mudança política e governamental. Menos ainda se se der de modo precário, como nas atuais circunstâncias.

[...] desde o primeiro dia no exercício da Presidência, Michel Temer se comporta não só como presidente efetivo, mas como líder de um movimento que subverte todas as políticas públicas que avalizou nas eleições. Trata-se de rompimento com o programa de governo em andamento para a adoção de ideias que fragilizam o Estado Social e que, por isso, nunca foram levadas aos eleitores pelos principais candidatos ao pleito de 2014. Essas modificações bruscas na formulação de políticas públicas em nosso país criam um cenário político, social e econômico irreversível, contribuindo para que a presidente afastada não retorne para o seu cargo e, caso retorne, encontre um país impossível de se governar.

De tal modo, as profundas alterações administrativas e políticas promovidas pelo vice-Presidente em substituição à presidenta da República constantes da Medida Provisória nº 726/2016 padecem do vício da inconstitucionalidade por configurarem essencialmente uma fraude ao programa político e governamental pelo qual o próprio vice-presidente foi eleito na mesma chapa da presidenta ora afastada, pois que viola os princípios democrático e da soberania popular (“o poder emana do povo”), visto que tais opções políticas não foram chanceladas pela população em sua manifestação eleitoral.

Bruno Galindo é Doutor em Direito pela UFPE/Universidade de Coimbra-Portugal (PDEE); Professor Associado da Faculdade de Direito do Recife/UFPE (Direito Constitucional); Autor das obras: “Direitos fundamentais” e “Impeachment – à luz do constitucionalismo contemporâneo”, publicadas pela Editora Juruá; e“Teoria intercultural da constituição”, publicada pela Editora Livraria do Advogado.

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NOTAS 1 Dentre tantas obras sobre o tema, vide a recente e excelente obra de Leonardo Avritzer: AVRITZER, Leonardo. Impasses da Democracia no Brasil. 1. ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016. 2 FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 7. ed., Salvador: JusPodium, 2015; CANOTILHO, J.J. Gomes; MENDES, Gilmar F.; SARLET, Ingo W.; STRECK, Lênio L.(Coords.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013. 3 FERREIRA, Pinto. Curso de Direito Constitucional. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 358-359. 4 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 6. ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 615ss.; VAZ, Manuel Afonso; CARVALHO, Raquel; BOTELHO, Catarina Santos; FOLHADELA, Inês & RIBEIRO, Ana Teresa. Direito Constitucional – O Sistema Constitucional Português. Coimbra: Coimbra Editora, 2012, p. 41ss.; HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1998, p. 479ss. 5 HAMILTON, Alexander; MADISON, James & JAY, John. O Federalista. Lisboa: Colibri, 2003, p. 421-422. 6 GALINDO, Bruno. Impeachment à luz do constitucionalismo contemporâneo. Curitiba: Juruá, 2016, p. 62-63. 7 GALINDO, Bruno. Idem, p. 38ss. 8 GALINDO, Bruno. Impeachment à luz do constitucionalismo contemporâneo. Curitiba: Juruá, 2016, p. 25-33; TRIBE, Laurence. American Constitutional Law. 3. ed. New York: New York Foundation Press, 2000, vol. I, p. 153-188. 9 RIBEIRO, Ricardo Lodi & PENCAK, Nina. O papel do vice-presidente durante o processo de impeachment. Disponível em: http:// www.conjur.com.br/2016-mai-19/papel-vice-presidente-durante-processo-impeachment, acesso em: 03 jun. 2016. 10 In: http://www.bbc.com/portuguese/brasil/2016/05/160501_licoes_itamar_temer_jp_rm, acesso em: 03 jun. 2016. 11 RIBEIRO, Ricardo Lodi & PENCAK, Nina. Op. cit., acesso em: 03.06.16. 12 RIBEIRO, Ricardo Lodi & PENCAK, Nina. Op. cit. Acesso em: 03.06.16.

José Emílio Medauar Ommati é Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da UFMG; Professor de Teoria da Constituição, Direito Constitucional e Hermenêutica do Curso de Direito da PUC Minas – Serro; Autor das obras: Teoria da Constituição; Liberdade de Expressão e Discurso de Ódio na Constituição de 1988; Uma Teoria dos Direitos Fundamentais; todas publicadas pela Livraria e Editora Lumen Juris; Coordenador-Geral e um dos Coordenadores do primeiro volume da Coleção Teoria Crítica do Direito, publicada pela Lumen Juris.

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IN VOGA

A reforma e o suposto déficit da Previdência “A reforma da Previdência conforme vem sendo anunciada não atende às necessidades sociais e econômicas brasileiras. Pelo contrário, poderá ser um grande golpe nos trabalhadores e também na sustentabilidade dos sistemas de políticas social e previdenciária do país.”  POR MURILO AITH

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de soluções. Tanto é que, quando o governo quer injetar renda na economia, basta usar o sistema de proteção social. O gasto com a seguridade social tornou-se impulsionador da demanda agregada, ao ativar diretamente o consumo das famílias. Por ser uma renda que atende a uma população com elevada propensão a consumir, o valor provisionado pelos esquemas de proteção social para pessoas doentes, desempregadas, acidentadas do trabalho, idosos, aposentados e de baixa renda, invariavelmente, será gasta de forma integral. Essa renda é transformada em aquisição de medicamentos, alimentos, vestuário e outros bens de primeira necessidade que dinamizam a economia. Reformar e desestimular esse sistema de forma abrupta pode ser ainda mais perigoso para a economia no futuro. Além do gasto com seguridade social, há a necessidade de ampliação da infraestrutura social, nas áreas de saúde e de assistência social. O Estado intervém em construção de prédios, compra de equipamento e de insumos de trabalho e, simultaneamente, na contratação direta de mão de obra para operar nesses setores. Tratase, portanto, do gasto social influenciando também pelo lado da oferta, num mercado em que o principal agente produtor é o Estado. Tudo isso converge para a inclusão produtiva da população. Assim, a política social pode se tornar um elemento importante para o aumento da produtividade do trabalho, fator decisivo para a melhoria da renda do trabalhador e o consequente crescimento econômico. No processo de ativação da economia passam também as discussões da reforma previdenciária. Nesse sentido, a idade e o valor das aposentadorias estão longe de serem os únicos determinantes da carga previdenciária, como parece ser o entendimento das propostas existentes para assegurar a sustentabilidade de longo prazo do sistema. Há alternativas que podem ser utilizadas para qualquer dado nível de aposentadoria média. Quanto maior o crescimento da renda por pessoa, quanto maior a taxa de emprego e de produtividade, mais leve será a carga das aposentadorias. Essa construção é fundamental para desmitificar o falso alarde feito sobre o possível rombo que a desaposentação causaria. Ao contrário, ela pode e deve ser a solução imediata para impulsionar a economia. Esses foram os pontos de discussão do programa JC Debate, do qual participei na TV Cultura. Portanto, a reforma da Previdência conforme vem sendo anunciada não atende às necessidades sociais e econômicas brasileiras. Pelo contrário, poderá ser um grande golpe nos trabalhadores e também na sustentabilidade dos sistemas de políticas social e previdenciária do país.

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os últimos dias, a possível reforma da Previdência Social brasileira ganhou os holofotes da mídia e do Palácio do Planalto, principalmente por conta da possibilidade da fixação de uma idade mínima para concessão da aposentadoria. A equipe econômica do governo interino Michel Temer insiste em dizer que se faz necessária uma mudança radical no sistema previdenciário brasileiro para que ele seja superavitário. Porém, no intuito de ajustar as contas do Governo Federal, a atual equipe econômica, capitaneada pelo ministro da Fazenda Henrique Meirelles corre o risco de provocar uma grande injustiça aos trabalhadores que estão prestes a se aposentar, além das mulheres e dos trabalhadores rurais. Obviamente, a reforma da Previdência neste momento constitui mais uma questão política do que realmente uma questão social. Não é aceitável ser realizada uma reforma drástica no sistema previdenciário sem um estudo mais aprofundado dos reais números e efeitos. Um dos principais pontos de confronto está na estimativa do Tribunal de Contas da União (TCU) de que a Previdência Social no Brasil deve encerrar o ano com déficit de R$ 124 bilhões, números desmentidos pela Associação Nacional dos Auditores Ficais da Receita Federal (Anfip). Vale destacar a tese defendida pela nobre economista e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Denise Gentil, ao defender ser falso o discurso que diz que a Previdência no Brasil é deficitária. A docente aponta que a justificativa oficial do governo é a de que temos um aumento da taxa de mortalidade da população brasileira contra uma baixa taxa de natalidade. Ela calcula também um suposto déficit de R$ 85 bilhões em 2015, enfatizando que o ajuste fiscal, através de uma reforma, diante desse cenário é a receita. Ela defende que não é o modelo atual da Previdência que está errado, já que mesmo apesar da política fiscal caótica do governo continua a gerar superávit. Denise Gentil demonstra, ao lado da Anfip, que as receitas da Previdência Social superam os gastos desde 2007. A economista aponta, por exemplo, que esse superávit em 2013 foi de R$ 67,6 bilhões. Já em 2014, segundo a professora, esses números tiveram uma queda, apesar de ainda positivos, para R$ 35,5 bilhões. E a estimativa da acadêmica é de que 2015, segundo dados preliminares, seja de superávit de R$ 20 bilhões. Esses dados estão calcados no crescimento econômico registrado nos últimos dez anos, em razão da redução da informalidade e o aumento do número de empregos formais, fatores que alavancaram a arrecadação previdenciária. Atualmente, a Previdência Social não tem problemas. Na verdade, ela pode ser tida como um grande ponto

Murilo Aith é advogado de Direito Previdenciário e sócio do escritório Aith, Badari e Luchin Sociedade de Advogados.

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TENDÊNCIAS

O impacto do novo CPC nas empresas “O novo código propugna uma relevante mudança de cultura do profissional do Direito. Estamos saindo de gerações de advogados construídos na litigiosidade e caminhando para uma nova geração de advogados cooperativos e negociais.”  POR MAURÍCIO DANTAS GÓES E GÓES

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m 16 de março de 2016, entrou em vigor a Lei nº 13.105/2015, o Novo Código de Processo Civil (CPC). Trata-se  do diploma legislativo que regulamenta o andamento de todos os processos judiciais de Direito Público (Direito Constitucional, Administrativo, Ambiental, etc.) e de Direito Privado (Direito Civil, Empresarial, Consumidor, etc.), com exceção das causas de Direito Criminal, em relação às quais se aplica o Código de Processo Penal (CPP) e, parcialmente, em relação ao Direito Trabalho, que possui regras próprias na CLT, mas, nas omissões da CLT, o Processo do Trabalho se socorre do CPC, que se aplica supletiva e subsidiariamente. O CPC 2015 (art. 15), na ausência de normas específicas, também se aplica supletiva e subsidiariamente aos processos eleitorais (Justiça Eleitoral) e administrativos (no âmbito dos Poderes Executivo e Legislativo). A abrangência de aplicação do novo CPC demonstra o seu impacto na vida jurídica e isso tem impacto direto na atividade empresária. Os principais pontos de impacto na atividade empresária são: questões principiológicas com potencial de mudança de cultura; impacto do sistema de precedentes na gestão de processos e nas atividades de consultoria aos empresários; normas processuais específicas com impacto na gestão do contencioso da empresa; impacto no contencioso trabalhista e preocupações para os gestores de recursos humanos e; possíveis reflexos no fluxo financeiro da empresa, preocupações para os gestores financeiros. O novo código propugna uma relevante mudança de cultura do profissional do Direito. Estamos saindo de gerações de advogados construídos na litigiosidade e caminhando para uma nova geração de advogados cooperativos e negociais. Os arts. 5º e 6º do CPC 2015 estabelecem que todo aquele que, de qualquer forma, participar do processo deve comportar-se de acordo com a boa-fé e que os todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva. Há uma intenção geral para cobrar das partes uma atuação consentânea com tais princípios e não são poucas as sanções processuais para o descumprimento desses deveres de tratamento recíproco, elevando substancialmente os custos do processo para o litigante de má-fé

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ou para aquele que simplesmente procrastina o processo. A possibilidade de ver o custo de uma condenação dobrar por aplicação de sanções processuais e despesas decorrentes da sucumbência não pode ser desconsiderada pelo gestor jurídico. O novo CPC também incentiva e reforça os meios de solução consensual dos conflitos, ao reconhecer e reafirmar, no art. 3º, o compromisso com a arbitragem, com a mediação, com a conciliação e com a abertura para outros métodos de solução consensual de conflitos, os quais deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial. A busca de soluções consensuais dos conflitos de interesses é tão importante no panorama processual moderno que o primeiro ato de praticamente todos os procedimentos judiciais é a audiência de conciliação. Já era assim no processo do trabalho e nos Juizados Especiais. O CPC 2015, em seu art. 334, determina que os réus sejam citados para comparecer a uma audiência de conciliação ou mediação e, somente se infrutífero o acordo, se inicia o prazo de contestação. De todas as novidades relacionadas ao diálogo negocial das partes, a instituição de uma cláusula geral negocial, pelo bloco normativo dos arts. 190 e 200 do CPC, talvez seja a mais inovadora mudança. Doravante, versando o processo sobre direitos que admitam autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo, cabendo ressaltar que tais atos das partes, consistentes em declarações unilaterais ou bilaterais de vontade, produzem imediatamente a constituição, modificação ou extinção de direitos processuais. Evidente que, de ofício ou a requerimento, o juiz controlará a validade das convenções das partes, recusando-lhes aplicação somente nos casos de nulidade ou de inserção abusiva em contrato de adesão ou em que alguma parte se encontre em manifesta situação de vulnerabilidade. As partes podem (art. 191) até, de comum acordo com o juiz, fixar calendário para a prática dos atos processuais, deixando de logo fixados as datas dos atos processuais até

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a sentença, sendo que o calendário vincula as partes e o juiz, dispensando-se as intimações. O departamento jurídico das empresas precisa estar cada vez mais perto do setor de gestão de contratos, pois, agora, poderá prever em contrato não apenas cláusulas compromissórias arbitrais, como cláusula de submissão prévia à mediação, inversão de ônus da prova, estipulação de prova obrigatória – por exemplo, a realização de perícia – estipulação prévia de bem penhorável em caso de execução, vedação de protesto das decisões judiciais, supressão de recursos, etc. O espectro dos negócios processuais e da busca de soluções autocompositivas ganha relevo sem igual no CPC 2015. O art. 926 do novo CPC positiva o que muitos já defendiam em sede doutrinária, a existência de um sistema de precedentes e a instituição para os tribunais do dever de uniformizar sua jurisprudência e de mantê-la estável, íntegra e coerente. Noutro giro, o art. 927 impõe aos juízes e tribunais a observância das decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade, os enunciados de súmula vinculante, os acórdãos em incidente de assunção de competência ou incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR) e, em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos, os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional e a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados. Com os recursos especiais e extraordinários repetitivos, ao lado da edição de enunciados da súmula da jurisprudência do STJ e do STF nós temos a palavra final

nas teses jurídicas, respectivamente, infraconstitucionais e constitucionais. O IRDR e a assunção de competência garantem também aos tribunais estaduais e aos tribunais regionais federais contribuir na fixação das teses jurídicas tanto em processo com possibilidade de repetição das demandas, como em processos que, a despeito da inexistência do risco imediato de repetição de demandas, possuem questões jurídicas, econômicas ou sociais relevantes. Fechando o sistema, a reclamação passa a ser instrumento para que todos os tribunais possam garantir o respeito à sua jurisprudência. Essa mudança de sistema traz os seguintes impactos diretos na atividade empresária: • maior previsibilidade no aconselhamento jurídico dos gestores, já que em grande medida a jurisprudência passa a ser vinculante e os juízes e tribunais não podem mais dar uma decisão pela manhã e outra oposta pela tarde; • parâmetros mais seguros para o contingenciamento; • redução do prazo de duração dos processos com teses firmadas, inclusive com a possibilidade de julgamento liminar de improcedência; • o fim do contencioso de volume de tese, não mais havendo sentido na existência de milhares, quando não milhões de ações discutindo a validade da cobrança de uma taxa pelas prestadoras de serviço público, ou o índice legal de correção da poupança ou dos depósitos do FGTS, etc. Tudo indica que caminhamos para um sistema jurídico mais isonômico e para um ambiente de maior segurança jurídica, o que certamente constitui elemento relevante para os investimentos empresariais.

Maurício Dantas Góes e Góes é sócio fundador do Lapa Góes e Góes Advogados, professor da Faculdade de Direito da UFBA e mestre em Direito Público pela UFBA.

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DIVULGAÇÃO

CONJUNTURA

Aumentar a tributação não é a melhor opção para gerar receitas “Em momentos turbulentos como este, em que a população está nas ruas exigindo mudanças, qualquer aumento da tributação, como o debate sobre a volta da CPMF, poderia acentuar os enfrentamentos, até porque os impostos elevados são citados em pesquisa da CNI, em parceria com o IBOPE, como o 7° pior problema hoje existente no Brasil, ao revelar que a redução dos impostos é a 8ª prioridade elencada.”  POR ALLAN TITONELLI NUNES

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partir da necessidade de arrecadação de recursos para financiar as atividades do Estado começa a história da tributação. É bem verdade que nos primórdios do surgimento do Estado, principalmente na época da sociedade feudal, grande parte da receita advinha da produção de bens, desde a cobrança de aluguel da terra, participação nas colheitas, até o comércio de metais e minerais, o que a doutrina moderna classifica como receita originária. Embora haja registro de cobranças de tributos aduaneiros e sobre a venda de produtos já na Roma antiga, estes não constituíam ainda a base maior da receita do Estado. Até porque, de início, a tributação oriunda do Poder Impositivo do Estado, conhecido como receita derivada, era exercida preferencialmente sobre os povos conquistados, conforme leciona Ives Gandra da Silva Martins, ao afirmar que “Os egípcios, assírios, fenícios, dentre outros povos da Antiguidade, já usavam o tributo como instrumento de servidão, através da sua imposição sobre os povos conquistados”1. A mesma conduta também acontecia na Grécia e Roma antigas, onde “o tributo era uma imposição dos vencedores sobre os vencidos. As guerras de conquistas visavam a arrecadar, para a nação vencedora, recursos que eram retirados dos vencidos”2. Essa sistemática ajudava a pacificar o povo do Estado conquistador, já que sempre haveria alguém para pagar a conta das necessidades gerais, principalmente do nume-

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roso exército. Porém, esse modelo não perdurou eternamente, chegando ao seu esgotamento com o fim do Império Romano. O surgimento do Estado Absolutista, representado pelas monarquias europeias, impôs maiores gastos com a realeza e sua corte, passando a exigir cada vez mais esforços da sociedade, que a partir de então arcavam compulsoriamente e diretamente com tributos para sustentação do regime. Em pouco tempo, a situação se tornou insustentável na Inglaterra em razão de o rei João Sem Terra ter aumentado a tributação, sem antes comunicar aos senhores feudais (barões ingleses), simultaneamente a um processo de perda de terras anteriormente conquistadas (notadamente o norte da França), instaurando uma rebelião comandada por aqueles. Eles invadiram Londres e forçaram o rei a assinar a Magna Carta (1215), um documento precursor das constituições contemporâneas que determinou limitações às arbitrariedades da monarquia, trazendo conceitos importantes de defesa dos direitos individuais em detrimento do poder estatal. Entre suas disposições havia exigências de que os novos tributos fossem antes aprovados por um conselho de barões. Entretanto, esse não é o único exemplo da história em que uma revolução tenha se iniciado por causa da tributação. A Revolução Francesa (1789) começou (é óbvio que houve influência de outros fatores, mas esse foi o fato político determinante) após o rei Luis XVI ter tentado cobrar tributo da Igreja e da nobreza, que se recusaram a

aceitar, provocando uma cobrança maior sobre os burgueses, fator que fez eclodir o movimento capitaneado por estes últimos. Na história do Brasil, de igual modo, há registros de revoluções que eclodiram em virtude do abuso do poder de tributar, entre elas a Inconfidência Mineira (1789), que defendia a separação da Coroa portuguesa, tendo em vista o aumento exorbitante da derrama pela metrópole. A história comprova que a tributação demanda limitações, sob pena de se tornar injustificável e gerar um processo de revolta dos cidadãos, cujo ideal foi incorporado com o advento do Estado fiscal, em que a tributação assume uma nova roupagem. De outro giro, segundo Hugo de Brito Machado, sem ela não restaria outra saída que não fosse a estatização da economia, o que seria muito prejudicial para o desenvolvimento econômico3, conforme se depreende do trecho a seguir: A tributação é, sem sombra de dúvida, o instrumento de que se tem valido a economia capitalista para sobreviver. Sem ele não poderia o Estado realizar os seus fins sociais, a não ser que monopolizasse toda a atividade econômica. O tributo é inegavelmente a grande e talvez única arma contra a estatização.

Considerando as atribuições inerentes ao Estado, precipuamente as atividades destinadas a satisfazer o interesse coletivo, constata-se que não basta haver recursos para execução das suas competências. É fundamental legitimar a atividade fiscal do Estado, afinal ela se destina a atender ao bem comum e preservar a paz, as quais são necessidades públicas, devendo seus gastos serem suportados por todos, conforme leciona Aliomar Baleeiro4: Mas há certas necessidades humanas que, em geral, não podem ser satisfeitas cabalmente pelo esforço do indivíduo. A necessidade de segurança contra o inimigo externo ou contra os malfeitores internos exige uma ação coletiva e disciplinar, assim como a de fazer justiça, fabricar dinheiro, combater as endemias, rasgar estradas, iluminar as ruas, realizar obras de interesse do grupo social, etc. O emprego dos meios coativos é essencial para reduzir ou combater os recalcitrantes, quer quanto à obtenção de atos antissociais, quer quanto às prestações positivas ou sacrifícios no interesse de todos.

Inobstante ao disposto, essas necessidades públicas parecem ser inesgotáveis, razão pela qual é fundamental haver um equilíbrio entre as vontades, a captação de recursos e a sua destinação, fatores que exigem uma boa gestão. O resultado dessa soma de interesses contribuiu para que a atividade financeira do Estado moderno estivesse atrelada à necessidade de captar, gerir e executar os recursos públicos, objetivando concretizar os interesses da sociedade. Na efetivação dessa atribuição há que se constituir um sistema tributário, o qual disciplinará as competências tributárias, os princípios específicos da ordem tributária, as limitações ao poder de tributar e as garantias do contribuinte, para, assim, viabilizar a tributação. A arrecadação de recursos por parte do Estado não se esgota em si, sendo um instrumento para a concretização de suas finalidades. Ao mesmo tempo, a tarefa de arrecadação não é sempre bem vista pela sociedade, pois os indivíduos preocupam-se primeiramente com a riqueza própria, o patrimonialismo, para, somente depois, contribuírem para a construção do interesse coletivo, almejando uma sociedade mais justa. É natural, então, que o cidadão exija que sua contribuição resulte em melhorias sociais, fazendo relação direta entre o seu pagamento e a contraprestação de serviços ofertada pelo Estado. Muito embora essa lógica não possa ser transposta para as necessidades de um sistema tributário justo, o qual deve ter como parâmetro a solidariedade e a capacidade contributiva do cidadão. Assim, em momentos turbulentos como este, em que a população está nas ruas exigindo mudanças, qualquer aumento da tributação, como o debate sobre a volta da CPMF, poderia acentuar os enfrentamentos, até porque os impostos elevados são citados em pesquisa da CNI, em parceria com o IBOPE, como o 7° pior problema hoje existente no Brasil, ao revelar que a redução dos impostos é a 8ª prioridade elencada.5 Portanto, se o Governo quiser obter mais recursos para fazer frente a suas despesas é necessário um grande programa de combate à sonegação, em que estudos do Sinprofaz calculam que perdemos 10,1% do PIB anualmente com a sonegação, o que corresponderia a R$ 518,2 bilhões, levando em conta o PIB de 2014.6

arquivo pessoal

NOTAS 1 MARTINS, Ives Gandra da Silva (coord.). O Tributo Reflexão Multidisciplinar sobre a sua Natureza. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 131. 2 NICACIO, Antônio. Primórdios do Direito Tributário Brasileiro. São Paulo: LTr, 1999, p. 95. 3 MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 28. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 56. 4 BALEEIRO. Aliomar. Cinco Aulas de Finanças e Política Fiscal. 2. ed. São Paulo: Ver, 1975, p. 23-24. 5 CONFEDERAÇÃO NACIONAL DA INDÚSTRIA (CNI). Retratos da Sociedade Brasileira. Problemas e prioridades. Ano 5. Número 22. Janeiro de 2015. 6 SINDICATO NACIONAL DOS PROCURADORES DA FAZENDA NACIONAL (SINPROFAZ). Sonegação no Brasil – Uma Estimativa do Desvio da Arrecadação do Exercício de 2014. Disponível em: Acesso em: 08/06/2015.

Allan Titonelli Nunes é Procurador da Fazenda Nacional, Especialista em Administração Pública pela FGV, Especialista em Direito Tributário pela Unisul, Ex-Presidente do Forvm Nacional da Advocacia Pública Federal e do Sinprofaz.

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DIVULGAÇÃO

ENFOQUE

Empoderamento feminino: o que os indicadores não dizem “Apresentar a lucratividade das empresas como função direta da participação feminina é questionável. O que ocorre é que empresas com maior número de mulheres em cargos executivos são organizações de maior porte, com práticas de gestão mais modernas e profissionais qualificadas para as diferentes funções, portanto, mais resilientes e lucrativas.     POR RENÊ SANDA e DULCEJANE VAZ

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egundo os Princípios de Empoderamento das Mulheres publicados conjuntamente pela ONU Mulheres Brasil e a Rede Brasileira do Pacto Global, empoderar o contingente feminino para que participe integralmente de todos os setores da economia é essencial para estabelecer sociedades mais estáveis e justas; atingir os objetivos de desenvolvimento, sustentabilidade e direitos humanos internacionalmente reconhecidos; melhorar a qualidade de vida para as mulheres, homens, famílias e comunidades e ainda impulsionar as operações e as metas dos negócios.  

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As mulheres são uma grande força para a economia mundial, representam mais de 40% da mão de obra global, 43% da força de trabalho atuante e mais da metade dos estudantes universitários do mundo, de acordo com relatório do Banco Mundial (2012)1. Pesquisas de campo demonstram que países com melhor igualdade de gênero tendem a ter menores taxas de pobreza e que uma das mais eficazes formas de acelerar o desenvolvimento econômico de um país é criar mecanismos de geração de renda para um número maior de mulheres, pois elas reinvestem mais seus rendimentos na

família e na comunidade, gerando melhores oportunidades futuras. Não é o nosso objetivo, com este artigo, analisar os esforços, ações afirmativas e políticas públicas, mas sim trazer para o debate outra questão: a de que os indicadores aplicados para justificar o empoderamento feminino estão sendo mal interpretados. Isso acontece porque estamos vivendo numa era de muita informação, porém de pouca análise. O bombardeio de textos curtos e pouco profundos nas redes sociais induz à formação de opiniões instantâneas sobre qualquer assunto. Se esses textos vierem acompanhados de um gráfico, então não há como duvidar. A relação causa-efeito está lá, nítida e, por isso, é impossível discordar. Os norte-americanos, acostumados com abundância de estatísticas, têm uma expressão bem pouco familiar para nós brasileiros: “Correlation does not imply causation”. É mais fácil explicar essa frase com um exemplo. O gráfico abaixo, extraído do artigo “Beware Spurious Correlations” mostra uma estranha relação entre vendas de iPhone e mortes causadas por quedas de escadas.

Por favor, não tentem achar uma explicação do tipo “provavelmente caíram da escada enquanto teclavam no iPhone”. Não existe nenhuma relação de causa e efeito entre essas duas variáveis. A única coisa que as une é a variável tempo. Mais celulares têm sido vendidos a cada ano e mais pessoas têm morrido por quedas de escadas a cada ano simplesmente porque a população america-

na está ficando mais idosa e, portanto, mais sujeita a esse tipo de acidente. A famosa frase norte-americana nos ensina que o fato de duas variáveis serem correlacionadas (terem comportamento gráfico semelhante) não significa que haja uma relação de causalidade entre elas. Apenas para inspiração, tivemos um caso em que uma ex-presidente inflou a sua plateia quando sugeriu uma relação entre o número de operações da Polícia Federal e as perdas na economia. Para os que desejarem devolver na mesma moeda, sugerimos divulgar um gráfico comparando a taxa de rejeição da ex-“presidenta” e o nível de água nos reservatórios durante o ano de 2015.  Nem sempre é fácil identificar essas relações espúrias. Um estudo científico publicado na revista Nature, em 1999, demonstrava a relação entre miopia e o fato de se dormir com a luz acesa nos dois primeiros anos de vida. A verdadeira explicação publicada na mesma revista pouco tempo depois estava no fato de que pais míopes tinham maior propensão a deixar a luz acesa no quartos de seus filhos. Ou seja, a causa era genética. Recentemente, a mídia deu excessiva atenção a um determinado estudo que afirmou que a lucratividade das empresas poderia estar relacionada com uma maior participação de mulheres em cargos de diretoria.  Apresentar a lucratividade das empresas como função direta da participação feminina é questionável. O que ocorre é que empresas com maior número de mulheres em cargos executivos são organizações de maior porte, com práticas de gestão mais modernas e profissionais qualificadas para as diferentes funções, portanto, mais resilientes e lucrativas.    É possível ilustrar tal argumento da seguinte forma: existem diversos estudos demonstrando que empresas mais lucrativas têm um turnover baixo, quando comparados à média das organizações de seu setor. Tal afirmativa poderia levar o administrador de uma empresa deficitária a buscar reduzir a zero o turnover na esperança de tornar a companhia lucrativa, o que levaria a resultados desastrosos. Obviamente, o turnover baixo é consequência de diversas práticas de boa gestão, e não causa para uma maior lucratividade. Isto é, não é correto afirmar que o estilo feminino de liderança visto de forma isolada gera melhores resultados financeiros para a companhia. É certo que o crescimento sustentável da empresa passa, necessariamente, pela oferta igualitária de oportunidades entre homens e mulheres, mas valer-se do argumento de elevar o número de mulheres em cargos executivos como solução para aumentar a lucratividade da empresa, quando desprovido de outras iniciativas conjugadas, parece ser uma medida semelhante à de apagar a luz do quarto dos nossos filhos para que eles não fiquem míopes. É raso demais!

NOTA 1 Disponível em: http://siteresources.worldbank.org/INTWDR2012/Resources/7778105-1299699968583/7786210-1315936231 894/Overview-Portuguese.pdf. Acesso em: 28 jun. 2016. Renê Sanda é mestre em Estatística pela USP e, atualmente, conselheiro de administração do Fundo Garantidor de Crédito (FGC) e da Fundição Tupy. Dulcejane Vaz é economista, funcionária de carreira de um banco público e ativista social em prol da equidade de gênero. 

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CONTEXTO

A QUITAÇÃO DE DÉBITOS TRIBUTÁRIOS DA UNIÃO COM A DAÇÃO EM PAGAMENTO EM BENS IMÓVEIS “Com a nova redação do artigo 4º da Lei nº 13.259/2016, determinada pela Medida Provisória nº 719/2016, houve restrição prejudicial na possibilidade de quitação de débitos tributários com a dação em pagamento em bens imóveis, pois apenas poderão fazer uso de tal expediente para quitação dos débitos os inscritos em dívida ativa da União Federal.”  POR LEONARDO DIAS DA CUNHA

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esde o advento da Lei Complementar nº 104 de 2001, está previsto no art. 156, inciso XI do Código Tributário Nacional (CTN – Lei nº 5.172/1966) que o crédito tributário é extinto pela “dação em pagamento em bens imóveis, na forma e condições estabelecidas em lei.” Nesse passo, em 16 de março de 2016 foi editada a Lei nº 13.259, que além de dar outras providências, em seu art. 4º regulamentou o inciso XI do art. 156 do CTN, que já autorizava a extinção do crédito tributário para com a União, estados, municípios e o Distrito Federal por meio da dação em pagamento em bens imóveis. Em conformidade com a redação originalmente dada, o integral teor do art. 4º da Lei nª 13.259/2016 previa: Art. 4º A extinção do crédito tributário pela dação em pagamento em imóveis, na forma do inciso XI do art. 156 da Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966 - Código Tributário Nacional, atenderá às seguintes condições:   I - será precedida de avaliação judicial do bem ou bens ofertados, segundo critérios de mercado; II - deverá abranger a totalidade do débito ou débitos que se pretende liquidar com atualização, juros, multa e encargos, sem desconto de qualquer natureza, assegurando-se ao devedor a possibilidade de complementação em dinheiro de eventual diferença entre os valores da dívida e o valor do bem ou bens ofertados em dação.

Dessa maneira, com a regulamentação da dação em pagamento em bens imóveis houve a fixação da necessidade de avaliação judicial do bem imóvel dado em pagamento, devendo ser utilizados critérios de mercado para se chegar ao valor mais justo, já que pela sis-

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temática anteriormente praticada o imóvel ofertado ou penhorado acabava indo para hasta pública, sendo vendido por um valor muito abaixo do de seu real valor, gerando prejuízo tanto para o contribuinte quanto para a Fazenda Pública credora. A regulamentação previu também que a dação em pagamento em bens imóveis deveria abranger a totalidade dos débitos, incluindo multas, juros e encargos, tendo sido assegurado ao contribuinte poder complementar a diferença com pagamento em dinheiro, no caso de o valor do bem ou bens ser inferior ao débito em aberto. No entanto, em menos de duas semanas da homologação da regulamentação mencionada, a Medida Provisória nº 719/2016 alterou o teor da redação do art. 4º da Lei nº 13.259/2016. Com a alteração implementada, apenas os débitos da União Federal, inscritos em dívida ativa, passaram a poder ser extintos com a dação de bens imóveis em pagamento, tendo os débitos tributários com os estados, municípios e o Distrito Federal ficado de fora da nova redação da norma em questão. Soma-se a isso que a aceitação do bem indicado agora depende da liberalidade do Fisco Federal (critério que também deverá ser regulamentado), cuja apuração de valor deverá ser feita previamente à dação, em que os bens indicados deverão estar livres e desimpedidos de embaraços, nos termos de ato a ser expedido pelo Ministério da Fazenda. No caso, foi mantida a necessidade de a dação em questão ter que abranger a totalidade dos débitos, incluindo multas, juros e encargos, com a possibilidade de o contribuinte complementar a diferença do valor do débito com pagamento em dinheiro na hipótese de o bem indicado ser inferior ao valor do débito inscrito em dívida ativa

Outro ponto relevante da alteração é que, para a utilização da dação em pagamento de bens imóveis, nas hipóteses em que o débito esteja sendo discutido judicialmente o contribuinte ou responsável tributário terá que desistir da ação judicial em curso e renunciar ao direito que possua na eventual discussão judicial considerada. Uma novidade não muito bem quista trazida pela alteração ocorreu com o impedimento de aplicação da dação em pagamento em bens imóveis para contribuintes que se encontrem no Simples Nacional - Regime Especial Unificado de Arrecadação de Tributos e Contribuições devidos pelas Microempresas e Empresas de Pequeno Porte. A redação alterada do art. 4º da Lei nº 13.259/2016, com a redação dada pela Medida Provisória nº 719, de 2016 passou a ser assim:

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Art. 4º O crédito tributário inscrito em dívida ativa da União poderá ser extinto, nos termos do inciso XI do caput do art. 156 da Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966 - Código Tributário Nacional, mediante dação em pagamento de bens imóveis, a critério do credor, na forma desta Lei, desde que atendidas as seguintes condições:I - a dação seja precedida de avaliação do bem ou dos bens ofertados, que devem estar livres e desembaraçados de quaisquer ônus, nos termos de ato do Ministério da Fazenda; eII - a dação abranja a totalidade do crédito ou créditos que se pretende liquidar com atualização, juros, multa e encargos legais, sem desconto de qualquer natureza, assegurando-se ao devedor a possibilidade de complementação em dinheiro de eventual diferença entre os valores da totalidade da dívida e o valor do bem ou dos bens ofertados em dação. § 1º O disposto no caput não se aplica aos créditos tributários referentes ao Regime Especial Unificado de Arrecadação de Tributos e Contribuições devidos pelas Microempresas e Empresas de Pequeno Porte - Simples Nacional. § 2º Caso o crédito que se pretenda extinguir seja objeto de discussão judicial, a dação em pagamento somente produzirá efeitos após a desistência da referida ação pelo devedor ou corresponsável e a renúncia do direito sobre o qual se funda a ação, devendo o devedor ou o corresponsável arcar com o pagamento das custas judiciais e honorários advocatícios.§ 3º A União observará a destinação específica dos créditos extintos por dação em pagamento, nos termos de ato do Ministério da Fazenda.Dessa maneira, com as alterações sofridas pela Lei 13.259/2016, pode-se sintetizar da seguinte forma a regulamentação da dação em pagamento de bens imóveis para quitação de débitos tributários para com a união: 1) a dação em pagamento em bens imóvel apenas poderá ser utilizada para o pagamento de débito tributário existente para com a União, devendo tais débitos estar inscritos na dívida ativa, mesmo que não exista Execução Fiscal ajuizada; 2) a indicação do bem imóvel deverá ser feita com apresentação da certidão de matrícula atualizada, demons-

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trando a inexistência de qualquer embaraço, ônus ou impedimento no imóvel; quanto à previa avaliação do imóvel a ser ofertado, ficou em aberto a discussão sobre a possibilidade de como se dará a avaliação, pois não está definido se deverá ou não ser apresentado algum laudo de avaliação do bem e se apenas um laudo seria o suficiente. Além disso, pela redação do art. 4º, I, parte final, fica evidenciado que o Ministério da Fazenda ainda deverá editar ato que esclareça como se dará a avaliação do bem imóvel que for ofertado, bem como sua aceitação por parte do Fisco; é de se destacar que a ausência de expedição de ato pelo Ministério da Fazenda não poderá ser fundamento a obstar a utilização de quitação de débitos tributários da União por meio da dação em pagamento em bens imóveis; a dação em pagamento deverá abranger a totalidade do crédito ou créditos que se pretende liquidar (podendo ser uma inscrição em dívida ativa que se deseja quitar ou várias), incluindo a atualização, juros, multa e encargos legais, sem desconto de qualquer natureza; na eventualidade de o valor do bem imóvel dado em pagamento ser inferior ao valor do débito inscrito é assegurado ao contribuinte a possibilidade de complementar a diferença do débito com pagamento em dinheiro; a dação em pagamento de bens imóveis para os casos em que o débito esteja sendo discutido judicialmente, o contribuinte ou responsável tributário deverá desistir da ação judicial em curso e renunciar ao direito que possua na hipotética discussão; há o expresso impedimento da utilização da dação em pagamento para quitação de débitos tributários da União por contribuintes que se enquadrarem no Simples Nacional – Regime Especial Unificado de Arrecadação de Tributos e Contribuições devidos pelas Microempresas e Empresas de Pequeno Porte.

Diante do exposto, pode-se afirmar que com a nova redação do art. 4º da Lei nº 13.259/2016, determinada pela Medida Provisória nº 719/2016, houve restrição prejudicial na possibilidade de quitação de débitos tributários com a dação em pagamento em bens imóveis, pois apenas poderão fazer uso de tal expediente para quitação dos débitos os inscritos em dívida ativa da União Federal. Além do mais, a restrição realizada pela MP nº 719/2016 prejudica os contribuintes do Simples Nacional, já que estes não poderão fazer uso do expediente da dação em pagamento de bens imóveis, dependendo, ainda, o aceite pelo Fisco Federal do bem imóvel a ser ofertado, bem como a fixação dos critérios de avaliação de seu justo valor, de ato do Ministério da Fazenda. De qualquer forma, a existência atual da regulamentação do inciso XI do art. 156 do Código Tributário Nacional vem, em alguma medida, facilitar para muitos contribuintes que estejam com ativos com baixa liquidez a quitação de débitos tributários federais.

Leonardo Dias da Cunha é advogado coordenador do consultivo e contencioso tributário do Escritório Visão Empresarial Advogados e Consultores; mestrando em Direito Tributário pela PUCMINAS, especialista em Direito Ambiental, especialista em Direito Tributário pela Fundação Getúlio Vargas.

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DOUTRINA

CONDUÇÃO COERCITIVA COMO MEDIDA CAUTELAR AUTÔNOMA: ISSO EXISTE MESMO NO BRASIL?  POR RÔMULO DE ANDRADE MOREIRA

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uito já se escreveu acerca da possibilidade da condução coercitiva no Processo Penal brasileiro, razão pela qual temos muito pouco a acrescentar àqueles que defenderam a sua ilegalidade, ressalvando as hipóteses dos arts. 201, parágrafo primeiro (em relação às vítimas recalcitrantes nos crimes de ação penal pública), 218 e 278 (relativamente às testemunhas faltosas e aos peritos), todos do Código de Processo Penal. Além destas três hipóteses, restaria o art. 260 a autorizar a condução coercitiva do acusado (não do investigado ou do indiciado, atenção!). Em relação a este dispositivo, é óbvio que a sua validade constitucional é questionável, pois em um País em que constitucionalmente assegurase o direito ao silêncio e no qual o ordenamento jurídico abarcou as disposições da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, firmado em Nova York, parece-nos absolutamente inconstitucional e violador das cláusulas convencionais admitir a condução coercitiva do investigado ou mesmo do réu. Aqui, pouco importa, para nós, ter havido notificação prévia ou não, desatendimento ou não, tratar-se de João ou de Maria. A questão é outra: proíbe-se no Brasil a autoincriminação. Ponto. Isso basta. Se deixo de comparecer a um ato investigatório (interrogatório, acareação, reconhecimento de pessoa, reprodução simulada do fato, etc.) ou a um ato processual é porque não quero, pois, certamente, não é, do ponto de vista de minha defesa, favorável. Esta estratégia é absolutamente legítima e encontra respaldo constitucional e convencional. Goste-se ou não! É a regra do devido processo legal imposta a todos que estão submetidos a uma investigação criminal ou a um processo. Um dia, dela podemos ser beneficiários, afinal de contas todos podemos também um dia ser acusados de cometer um crime. Nestes termos, qual o sentido da condução coercitiva? Dir-se-á: colher a qualificação do conduzido. Ora, nada mais falacioso. Primeiro que, havendo processo, já há denúncia (ou queixa) e, obviamente, o réu já está qualificado suficientemente. Se não houver, portanto, em razão de o processo ainda estiver na fase investigatória, deve o Estado cuidar de qualificá-lo pelos (vários) meios disponíveis

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(como a Justiça Eleitoral, por exemplo). É um ônus a cargo do Estado que não pode ser imposto ao réu, já que tem, repita-se, o direito de não autoincriminar-se e o direito ao silêncio. No Processo Penal, o ônus é sempre do Estado/acusador/investigador, inclusive o de provar. Afinal de contas, de quem se presume a inocência nada se pode exigir. Repita-se: goste-se ou não é a regra do devido processo legal, imposta a todos que estão submetidos a uma investigação criminal ou a um processo. Restaria, então, uma última possibilidade: trabalhar com a tese de que a condução coercitiva poderia ser utilizada como medida cautelar autônoma. Nada mais inapropriado no Processo Penal do que falar de tal coisa, com todo respeito aos que assim pensam. É um erro dogmático sério e que põe em risco os direitos e garantias fundamentais, além de demonstrar desconhecimento da própria natureza das medidas cautelares. É de um eficientismo perigosíssimo. Abre-se um precedente sem igual. Aliás, esta distorção vem de outro equívoco que, vez por outra, se repete, isto é, uma tentativa nociva (sob todos os aspectos) de importar determinadas categorias do Direito Processual Civil para o Processo Penal, como se existisse uma Teoria Geral do Processo, quando se sabe ser algo impossível, pois o Direito Processual Civil possui conteúdo próprio, que o difere substancialmente do conteúdo do Direito Processual Penal, motivo pelo qual não é possível aplicar princípios e regras do Processo Civil ao Processo Penal, sob pena de se fazer uma verdadeira e odiosa “processualização civil” do Processo Penal. Sempre é importante a lição de Jacinto Nelson de Miranda Coutinho1, que transcrevemos: Não é despiciendo, ademais, retomar, ainda que brevemente, o argumento referente à qualidade das reformas globais ou parciais, mesmo porque traz à baila a questão principiológica. Com efeito, em favor da parcialidade fala uma desconfiança – não de todo improcedente – na direção do Parlamento, principalmente em se tratando do nosso. De qualquer sorte, as reformas parciais não têm sentido quando em jogo está uma alteração que diga respeito à estrutura como um todo, justo porque se haveria de ter um patamar epistêmico do qual não se poderia ter muita dúvida. Isso, todavia, não é o que se passa com o sistema processual pe-

nal onde, antes de tudo, não se consegue sequer delimitar corretamente o conceito de sistema que, a toda evidência, deveria, no nosso campo, partir da noção kantiana, ou seja, fundada na noção de princípio unificador, por sinal protocelular. Assim, princípio, sistema, conteúdo do processo (qualquer um mais perquiridor sabe não existir lide no processo penal)2, são conceitos/matérias que não encontram a necessária paz suficiente na teoria do direito processual penal, antes de tudo por falta de fundamentos extradogmáticos, a começar pelo mau vezo de se querer impor uma teoria geral do direito processual que, para nós – há de se insistir –, nada mais é que a teoria geral do direito processual civil aplicada, desmesuradamente, aos outros ramos e com maior vigor ao direito processual penal e ao direito processual do trabalho. Por primário, não se há de construir uma teoria, muito menos geral, quando os referenciais semânticos são diferentes e, de consequência, não comportam um denominador comum. Pense-se só nos casos citados, ou seja, entre Direito Processual Penal e Direito Processual Civil o princípio unificador, o sistema e o conteúdo do processo são distintos, resultando daí uma Teoria Geral do Processo plena de furos e equívocos, alguns instransponíveis, no Direito Processual Penal naturalmente. Urge, portanto, uma teoria geral do direito processual penal arredia à falta de ensancha da teoria geral do direito processual civil, pelo menos para poder-se ter uma base mais coerente no momento de uma reforma que pretenda não ser só de verniz. Ademais, a Constituição da República de 88 traçou, como se sabe, uma base capaz de, sem muito boa vontade, enterrar grande parte do atual CPP, marcado pela concepção fascista do processo penal e ancorado na tradição inquisitória, inclusive da fase processual da persecução, só não percebida por todos em razão da pouca perquirição que se faz das suas matrizes ideológicas e teóricas, a começar pelo velho código de processo penal italiano e seu inescrupuloso difusor e defensor, camìcia nera de todos os instantes, Vincenzo Manzini. Que ele foi um vigoroso articulador teórico do processo penal italiano não se pode negar; mas que era um terrível fascista – e expressa isso em sua obra – também não. Pior, porém, é o que se passa com a doutrina nacional, alienada em relação a problema do gênero, como sucedeu, por infelicidade – não se pode crer em outro fundamento – com José Frederico Marques, o primeiro grande escritor, no Brasil, de um direito processual penal que queria superar a base praxista da ritualística de antes da polêmica Windscheid versus Muther e, por isso, ajudou a formar toda uma geração de processualistas que, não se dando conta das raízes espúrias do ramo, não poucas vezes prega uma democracia processual com um discurso fundamentalmente antidemocrático. Assim, não é fácil evoluir; não é fácil avançar na direção da concreção da democracia processual; não é possível proceder ao necessário corte epistemológico; e as mudanças – qualquer uma – tendem a manter, como sugeriu Lampedusa, tudo como sempre esteve.

Eugenio Florian3, já em 1927, teve a lucidez de estabelecer a contradição de uma Teoria Geral do Processo. Para ele, era inadmissível a tese da identidade dos dois processos:

A nosso juízo, o processo penal e o civil são duas instituições distintas. O objeto essência do processo penal é, como vimos, uma relação de direito público, porque nele se desenvolve outra relação de direito penal. Já no processo civil o objeto é sempre ou quase sempre uma relação de direito privado, seja civil ou mercantil. (...) O processo penal é o instrumento normalmente indispensável para a aplicação da lei penal em cada caso; o civil, ao contrário, não é sempre necessário para atuar as relações de direito privado. (...) No processo civil o juízo está regido exclusivamente por critérios jurídicos puros (...), ao contrário do processo penal em que se julga um homem e, por isso mesmo, o juiz deve inspirar-se em critérios ético sociais. (...) O processo civil tem caráter estritamente jurídico, e o penal, no qual se trata de julgar um homem, tem também caráter ético. (...) Leva-se em consideração, equivocadamente, algumas formas comuns entre o processo civil e o processo penal de mínima importância, descuidando-se de elementos diferentes, que são decisivos. (...) O triunfo da tese unitária conduziria a absorção da ciência do processo penal pela ciência do processo civil, perdendo o primeiro a sua autonomia, resultando profundamente alterado em sua concepção e estrutura. (tradução livre).

Interessante que Ovídio Baptista da Silva4, consagrado processualista civil, ao escrever a sua Teoria Geral do Processo Civil (em coautoria com Fábio Gomes), posiciona-se terminantemente contrário à Teoria Unitária do Processo. Após alinhar alguns argumentos de outros autores a favor da tese, afirma: Não convencem, entretanto, as razões alinhadas em prol da construção de um conceito unitário, bem como da elaboração de uma teoria geral adequada tanto ao processo civil como ao processo penal. Muitos doutrinadores que defendem tal unidade se contradizem logo de início. (...) Os próprios doutrinadores que defendem a unidade fundamental do processo ressalvam a identidade própria dos respectivos ramos, o que, a rigor, encerra uma contradição; a não ser que entendamos esta unidade em termos extremamente finalísticos, mas, então, cair-se-ia no plano da teoria geral do direito. (...) O direito processual civil, como o direito processual penal, juntamente como todos os demais ramos da ciência jurídica, constituem uma vasta unidade, um conjunto harmônico de normas coordenadas, cuja independência, entretanto, deve ser respeitada.

Em definitivo, há “coisas” completamente diferentes entre o Processo Penal e o Processo Civil e não somente meras peculiaridades, como costumam afirmar os adeptos da Teoria Unitária. Tais “peculiaridades” do Processo Penal são tão evidentes e tão diversas que devemos, no seu estudo, esquecer os princípios e regras orientadoras do Processo Civil. Aliás, não se pode falar, sequer, em ação penal cautelar. A propósito, o que Frederico Marques5 chamava de ações penais cautelares nada mais são que meros provimentos cautelares que podem ser requeridos ao Juiz, sejam antes do processo, durante e até na fase de execução penal (monitoramento eletrônico, por exemplo – arts. 146-B a 146-D

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DOUTRINA

da Lei nº 7.210/1984). Neste mesmo sentido é a lição de Rogério Lauria Tucci, para quem no Processo Penal: Só há lugar para a efetivação de medidas cautelares, desenroladas no curso da persecução ou da execução penal, e não para ação ou processo cautelar, que exigem , para sua realização, a concretização de procedimento formalmente estabelecido em lei.

Para Vicente Greco Filho6: Também inexiste ação ou processo cautelar. Há decisões ou medidas cautelares, como a prisão preventiva, o sequestro, e outras, mas sem que se promova uma ação ou se instaure um processo cautelar diferente da ação ou do processo de conhecimento. As providências cautelares são determinadas como incidentes do processo de conhecimento.

Estas medidas cautelares no Processo Penal somente podem ser aceitas quando tipificadas em lei. Nada de aplicar o chamado Poder Geral de Cautela (Piero Calamandrei), outra invencionice importada do Processo Civil para o Processo Penal. A expressão “medida cautelar autônoma” no Processo Penal é uma contradição em si mesma. Medida cautelar de natureza penal exige tipicidade processual. Exatamente para isso foi promulgada a Lei nº 12.403/2011, ou não foi? Se medida cautelar autônoma fosse possível em matéria penal, qual o sentido daquela alteração legislativa? Ficava como estava, óbvio: ou prende ou fica solto, ou se inventa medida cautelar autônoma em nome da eficiência do Processo Penal. Lembremos que Hitler foi, em certo aspecto e para os seus propósitos, de todo eficiente, pois: [...] los profesores de derecho desempeñaron un papel importante en el declive del derecho durante el tercer Reich. Brindaron un ropaje filosófico a los actos arbitrarios y los crímenes de los nazis, que sin esse disfraz se habrían reconocido claramente como actuaciones ilegítimas. Prácticamente no hubo desafuero alguno perpetrado por los nazis que no hubiese sido reconocido durante el régimen como ´supremamente justo` y que no hubiese sido defendido después de la

guerra por los mismos académicos, valiéndose de los mismos dudosos argumentos en cuanto a su ´justificación` o incluso su ´conveniencia` desde un punto de vista jurídico.7

Será que não vamos aprender com a História? Por outro lado, defender a condução coercitiva como medida cautelar substitutiva da prisão provisória chega a ser um escárnio, um desrespeito à inteligência de quem estuda seriamente o Direito Processual Penal. Ora, se estão presentes os pressuspostos e os requisitos de uma prisão provisória (e, no Brasil quase sempre não estão) que se prenda. Tenha-se a coragem e fundamente-se a decisão, sem subterfúgios e sem interesses escusos e ilegais (para se conseguir a delação premiada, por exemplo). Tampouco se admite a condução coercitiva como medida cautelar probatória. Como? Óbvio que é possível haver medidas cautelares probatórias. Não desconhecemos esta possibilidade. Há, inclusive, previsão legal (art. 155, parte final do Código de Processo Penal). Mas, condução coercitiva para servir como “cautela de prova” em um sistema processual penal que não admite a produção de prova contra si mesmo? É ou não uma contradição técnica imperdoável? Impor cautelarmente uma medida judicial das mais graves para assegurar a prova, quando o sujeito tem o direito de não autoincriminar-se? Então, que sejam rasgados solenemente os Pactos Internacionais. Chegamos, definitivamente, ao fundo do poço. Tudo é possível. Infelizmente, a razão está com Giorgio Agamben8, ao lecionar que: O totalitarismo moderno pode ser definido, nesse sentido, como a instauração, por meio do estado de exceção, de uma guerra civil legal que permite a eliminação física não só dos adversários políticos, mas também de categorias inteiras de cidadãos que, por qualquer razão, pareçam não integráveis ao sistema político. Desde então, a criação voluntária de um estado de emergência permanente (ainda que, eventualmente, não declarado no sentido técnico) tornou-se uma das práticas essenciais dos Estados contemporâneos, inclusive dos chamados democráticos. (...) O estado de exceção apresenta-se, nessa perspectiva, como um patamar de indeterminação entre democracia e absolutismo.

arquivo pessoal

NOTAS 1 MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de. Efetividade do Processo Penal e Golpe de Cena: um problema às reformas processuais, Disponível em: http://emporiododireito.com.br/efetividade-do-processo-penal-e-golpe-de-cena-um-problema-as-reformas-processuais-por-jacinto-nelson-de-miranda-coutinho/. Acesso em 23 abr. 2015. 2 MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de. A lide e o conteúdo do Processo Penal. Curitiba: Juruá, 1998. 3 FLORIAN, Eugenio. Elementos de Derecho Procesal Penal, Barcelona, Bosch Editorial, 1933, pp. 20 - 23. 4 SILVA, Ovidio Batista da; GOMES, Fábio. Teoria Geral do Processo Civil, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, pp. 38-40. 5 MARQUES, José Frederico. Teoria do Direito Processual Penal, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 107. 6 GRECO FILHO, Vicente. Manual de Processo Penal, São Paulo: Saraiva, 2ª. ed., 1993, p. 102. 7 MÜLLER, Ingo, Los Juristas del Horror, Bogotá: Inversiones Rosa Mística Ltda., 2009, p. 101. 8 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção, São Paulo: Boitempo Editorial, 2004, p. 13.

Rômulo de Andrade Moreira é Procurador de Justiça do Estado da Bahia e Professor de Direito Processual Penal na Universidade Salvador - UNIFACS

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ARQUIVO PESSOAL

ponto de vista

Amadeu Garrido

E

A coisa julgada e a abrangência de terceiros beneficiados

ntre as mudanças introduzidas pelo Novo Código de Processo Civil, inserindo o Brasil, enquanto Estado Democrático de Direito, no rol das melhores organizações processuais do mundo, figura a abrangência de terceiros sob a autoridade da coisa julgada, secundum eventum litis, algo sempre repudiado pela maioria da doutrina tradicional, tanto em nosso país como do orbe. Por óbvio, in utilibus, mantendo-se a blindagem de terceiros em face de sentenças desfavoráveis, de modo a não restarem destroçados os princípios constitucionais do devido processo legal. Dispõe o art. 506 do CPC que “A sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não prejudicando terceiros”. Correspondeu ao art. 472 do revogado Código, cuja redação era a seguinte: “A sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não beneficiando nem prejudicando terceiros”. Como se observa na redação do novo CPC, a partir de agora a autoridade da coisa julgada beneficia terceiros. A imunização de terceiros sempre foi aceita pela doutrina e pela jurisprudência, quando a sentença lhes era prejudicial. Nada mais justo. Não se pode submeter alguém a um comando resultante de demanda processada inter alios, prejudicando sua órbita jurídica, sem garantia ao contraditório e à ampla defesa. Considerando-se que a maioria dos códigos tinha a redação de nosso anterior, entretanto, para estender-se a coisa julgada in utilibus a terceiros, pois face ao óbice do texto legal a doutrina e a jurisprudência se viam na contingência de recorrer a olímpicas ginásticas intelectuais (Chiovenda, Carnelutti, Hellwig, Merkl, Bachhmann, Alfredo Rocco, Redendi, Betti e tantos outros). Observe-se o desforço de Liebman em sua clássica monografia denominada “Eficácia e Autoridade da Sentença”, a nós apresentada por Cândido Rangel Dinamarco e comentada por Ada Pellegrini Grinover. O jurista italiano teve de recorrer a uma ficção científica – de um lado, a autoridade da sentença e, de outro, sua eficácia. A autoridade recaía sobre as partes e a eficácia poderia ser expandida. Longo e penoso debate que agitou as Academias, porquanto o direito positivo era unanimemente avesso à redação hoje acolhida pelo Novíssimo Código de Processo Civil Brasileiro. Nada de errado entre os juristas, apenas sinalização dos tempos. Cresceu a necessidade de um único procedimento judicial reger direitos, interesses e vidas múltiplas. Nossos exemplos, não exaustivos, estão nos processos coletivos de defesa de interesses interindivuais homogêneos, coletivos e difusos, ações civis públicas, ações populares etc. O bem à coletividade e ao Estado é óbvio, com a superação do conceito de uma demanda para cada um, causa de pronunciamentos estatais divergentes – o que provoca perplexidade e descrédito da população no direito, de um lado, e, de outro, o assoberbamento da Justiça em processos repetitivos. Nossa orientação predominante, depois de justificadas reações daqueles que prezavam exageradamente pelo princípio da

livre convicção dos magistrados – imagine-se o mesmo ocorrendo no campo da medicina – convergiu no sentido de reduzir o altíssimo volume de processos, mediante as súmulas vinculantes, o sistema de julgamento dos recursos repetitivos, o poder monocrático, justificado na seara das instituições colegiadas e ainda o instituto da repercussão geral para que determinado tema seja examinado pelo Excelso Supremo Tribunal Federal. Porém, precipitações não são convenientes. Ao terceiro, para beneficiar-se da coisa julgada firmada em processo do qual não participou, não basta alegar que as situações são idênticas (não meramente semelhantes ou vinculadas por analogia). Deve demonstrar, sob todos os aspectos, preliminares e de mérito, que merece ter seu conflito de interesses resolvido por osmose jurisdicional. Se o vencido ou seu adverso sustentar que o temário é outro, não há como obrigá-lo; é necessário que o terceiro recorra ao Judiciário, reclamando pela aplicação do disposto no art. 506 do CPC. O caminho recebeu um excelente atalho, útil aos viajantes e à estrada congestionada.  Mas, é necessário o percurso. Isso porque o terceiro deve demonstrar, e o juiz responder afirmativamente, que se trata de processo válido, sob o ângulo dos pressupostos processuais, e prosperável sob a ótica das condições da ação, preliminarmente. No mérito, as nuances dos processos não poderão ser diferentes. A vantagem, de valor incomensurável e compatível com as necessidades contemporâneas, reside no fato de o terceiro, expostos os fatos, não estar obrigado a demonstrar o direito. Basta-lhe invocar o precedente que considerar aplicável. E o magistrado idem, já que é dispensado da fundamentação aberta, podendo restringir-se à verificação da identidade dos casos. Basta-lhe, feitas as precitadas certificações, materializar a energia da coisa julgada. É certa a presença inegável do risco de uma primeira sentença transitada em julgado não revelar todas as virtudes que se espera de um abalizado pronunciamento judicial. O réu pode ter se conformado com a sentença de primeira instância. Também pode não ter oferecido embargos de declaração, que ganharam um enorme elastério no novo Código, para complementação do julgado e torná-lo o mais exauriente possível.  Não ter esgotado todas as teses jurídicas e todos os fundamentos que o juiz, agora, é obrigado a enfrentar. Nessa hipótese, arcará com as consequências de sua incúria processual. O fenômeno já faz parte dos processos coletivos. Em última análise, são as duas faces da mesma moeda: aperfeiçoa-se a prestação jurisdicional e admite-se que envolva terceiros não partícipes do processo, nas condições mencionadas. A mudança é compatível com a evolução do processo civilizatório dos povos. A massificação dos interesses é uma realidade inegável. Outro imperativo, a necessidade de se imprimir higidez às instituições, já que quanto menos burocráticas e lentas forem, melhor. Quanto menor e mais ágil o Estado, mais as respostas aos imperativos da sociedade contemporânea serão fornecidas.

Amadeu Garrido é advogado e poeta. autor do livro Universo Invisível, membro da Academia Latino-Americana de Ciências Humanas. 

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