Consumindo quadrinhos: a história do mercado de quadrinhos de Fortaleza

May 24, 2017 | Autor: Felipe Barbosa | Categoria: Journalism, Comics and Graphic Novels
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Descrição do Produto

UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ
INSTITUTO DE CULTURA E ARTE
CURSO DE JORNALISMO





FELIPE AUTRAN NUNES BARBOSA





CONSUMINDO QUADRINHOS: A HISTÓRIA DO MERCADO DE QUADRINHOS DE FORTALEZA













FORTALEZA
2016
Capítulo 1 – Vou ao cinema comprar quadrinhos
A capital do Ceará tinha pouco mais de meio milhão de habitantes. O crescimento desordenado iniciado nessa década era um reflexo triste do forte movimento de migração causado pela seca. Moradores do interior do estado se amontoavam nas periferias da cidade em uma tentativa desesperada de sobrevivência. Na orla, pescadores eram expulsos para dar lugar a uma nova avenida responsável por ligar a Praia de Iracema ao Mucuripe. Toda a cidade parecia convergir para o Centro. A região concentrava as principais fontes de cultura, lazer e comércio. Era um tempo em que a televisão ainda não havia se popularizado nas residências e a própria programação dos canais brasileiros mostrava limitações.
Quem dominava a atenção da população mais jovem e com poder aquisitivo era o cinema. Os luxuosos Cine Diogo e Cine São Luiz podem ser os exemplos mais conhecidos, mas não eram os únicos. Uma dezena de outras salas de rua espalhadas pela cidade exibiam os adorados faroestes americanos, sucesso entre o público infantil. Eram os Cines Nazaré, Familiar, Popular, Christo Rei, Rex, Independente e Messejana.
Havia, no entanto, um empecilho sério impedindo o cinema de se tornar a única alternativa de entretenimento da infância. A alarmante desigualdade social do estado criou uma capital na qual não havia meio-termo para a renda da população. Nesse cenário, aparece uma alternativa interessante para quem não podia pagar um ingresso: as histórias em quadrinhos eram um entretenimento barato e recheado de aventuras tão divertidas quanto as que poderiam ser encontradas nos filmes. Com um punhado de moedas era possível acompanhar guerras espaciais, a investigação de um crime ou a luta de um herói com força sobre-humana contra o vilão eternamente destinado ao fracasso. De fato, o preço era um fator essencial para quem lia esses quadrinhos.
"Dinheiro não era fácil. Eu não cresci com dinheiro fácil. Não conheço muita gente naquele tempo que [tivesse]. Existia? Existia, mas estava fora do meu universo. Nesse tempo não tinha essa mistura. Não tinha shopping para juntar quem tem muita grana e quem tem pouca grana". Quem fala é o professor Geraldo Jesuíno da Costa. Quando lecionava no curso de Comunicação Social da Universidade Federal do Ceará, Jesuíno ministrava a cadeira de Histórias em Quadrinhos. Foi por essa época, mais precisamente em 1985, que o jornalista fundou a Oficina de Quadrinhos. Na época, os locais em Fortaleza para se reunir e falar sobre a nona arte eram escassos. A ideia nunca foi criar um clube acadêmico, mas sim um local aberto e próximo das comunidades da cidade. Geraldo virou nome respeitadíssimo no meio. Difícil encontrar algum grande quadrinista cearense que não tenha passado pelas mãos do professor. Impossível querer falar de quadrinhos em Fortaleza sem ouvir o que ele tem a dizer.
"Então, onde você ia se quisesse comprar quadrinhos em Fortaleza nos anos 1960?"
"O maior câmbio de revistas em quadrinhos que você podia encontrar era na frente do cinema" – explica Geraldo. O cenário era comum em qualquer grande cidade brasileira e Fortaleza não ficou para trás. Os cinemas ficavam na rua e as praças em frente às entradas eram um espaço de convivência frequentado entre uma sessão e outra. Não demorou para que alguns vendedores informais percebessem o potencial do local. Bastava chegar, estender uma lona no chão e distribuir as revistas em quadrinhos por cima. Estava montada a loja que concorreria com as bancas pelo dinheiro das crianças.
"Isso criava um mercado em paralelo que preocupava a indústria da distribuição. E eu só fui perceber isso depois, macaco velho, quando fui pesquisar as raízes e ver como é que a coisa funcionava. Eu passei por isso tudo e nem percebi." O negócio era, de fato, vantajoso para todas as partes: as revistas eram mais velhas e, muitas vezes, de segunda mão, compradas pelo vendedor a custo bem abaixo do praticado pelas distribuidoras. O baixo poder aquisitivo da maioria da população refletia na quantidade de dinheiro que as crianças tinham para o lazer. Não dava para ser seletivo demais, já que o mais importante era voltar para casa com alguma história debaixo do braço. Os cinemas também compactuavam com aquela feira à céu aberto, já que o fluxo constante era interessante para as salas.
Entre os quadrinhos mais lidos nessa época estava Durango Kid. O personagem, criado por Paul Franklin, era um caubói justiceiro que se vestia de preto e atuava à la Robin Hood, roubando dos ricos e distribuindo o que encontrava com a população da cidade. Ele foi apresentado ao público no filme O Cavaleiro de Durango, lançado em 1940. A produção deu início a uma franquia que se estendeu para os quadrinhos dez anos depois, publicados nos Estados Unidos pela Magazine Enterprises. No Brasil, Durango Kid encontrou uma casa na editora Brasil-América Limitada, popularmente conhecida pelo acrônimo de Ebal. É curioso perceber como o personagem era explorado comercialmente de forma bem semelhante ao que é feito com os quadrinhos americanos atuais. O produto Durango Kid estava disponível nas salas de cinema, na televisão – com uma série exibida no Brasil durante os anos 1960 – e nas revistas em quadrinhos consumidas pelas crianças que saíam dos filmes.
Mas o herói do gênero faroeste era apenas mais um dos presentes naquela montanha de revistas espalhadas pela calçada. "Foi nessa época que eu comecei a pegar as revistas mais de baixo das pilhas, as mais judiadas, como Príncipe Valente, Dick Tracy, as coisas do Harold Foster, aquelas que a moçada não gostava muito", diz Jesuíno. O Príncipe Valente de Hal Foster era uma tira de jornal publicada pela primeira vez em 1937. O autor canadense se destacou por não utilizar balões e propor uma narrativa mais sofisticada que os quadrinhos da mesma época. Segundo Jesuíno, a quantidade de texto das histórias acabava afastando as crianças que procuravam um roteiro mais leve.
Esse câmbio acontecia simultaneamente à venda de quadrinhos nas bancas de jornais. Existiam, em Fortaleza, dois espaços onde os quadrinhos poderiam ser comprados: primeiro na banca, onde o material desembarcava vindo diretamente das distribuidoras e, em seguida, nesses pontos de venda de quadrinhos de segunda mão. A dinâmica incomodava as distribuidoras e, de acordo com Jesuíno, não demorou para que a fiscalização e a concorrência com vendedores de outros produtos acabassem pondo um ponto final nesse mercado paralelo. A partir dos anos 1970, passou a ser difícil encontrar quadrinhos fora das bancas.
As décadas de 1970 e 1980 não foram fáceis para os fortalezenses consumidores de quadrinhos. Nessa época, a produção mundial estava a todo vapor e o quadrinho se firmava não só como arte, mas como elemento relevante dentro da indústria cultural. Nos Estados Unidos, enquanto Marvel e DC dominavam o mercado com suas respectivas linhas de montagem de super-heróis, movimentos de contracultura o adotavam como uma forma barata de espalhar suas ideias. A produção japonesa se espalhava pelo mundo, mostrando que os mangás seriam mesmo os únicos a conseguir competir em igualdade com as grandes editoras americanas. Já a produção brasileira, baseava seu mercado no público infantil, principalmente com os personagens de Maurício de Souza e as histórias da Disney, através da Editora Abril.
Mas quanto dessa produção chegava para as pessoas que moravam em Fortaleza? "Eu percebi que, aqui no Ceará, quem gostava de quadrinhos tinha dificuldade de comunicação. O Ceará estava ilhado! Não tinha porto e não tinha estrada". Quem afirma é Gabriel da Costa, dono da Livraria Gabriel, localizada na Universidade de Fortaleza, onde atende principalmente os alunos do curso de Direito da instituição. Gabriel é pernambucano, de Recife, mas mudou-se para Fortaleza no início dos anos 1970, após ter sido preso pelos militares por ser membro do Partido Comunista Brasileiro.
É através da comparação de Gabriel que podemos ter uma ideia mais clara da carência do mercado de quadrinhos em Fortaleza, mesmo em comparação com outra capital nordestina. "Nós tínhamos um porto, então todas as novidades da Europa e dos Estados Unidos chegavam em Recife". Gabriel cita os quadrinhos do Asterix como exemplo. O herói, criado em 1959 na França, por Albert Uderzo e René Goscinny, chegou ao Brasil em 1967, através das edições portuguesas importadas pela editora Cedibra. É assim que os quadrinhos chegavam, direto da Europa, para as mãos dos recifenses.
Gabriel conta que um dos nomes importantes para possibilitar a chegada dos quadrinhos produzidos nos Estados Unidos e na Europa foi o de Jacob Berenstein, dono da Livraria Imperatriz, hoje parte da maior rede de livrarias de Pernambuco. Sabendo da demanda que existia por quadrinhos de outros países, Berenstein aproveitava a importação de livros acadêmicos – livros de exatas vinham dos Estados Unidos e de ciências humanas saíam da França – e incluía quadrinhos nos pedidos de compra. Entre eles o suplemento literário do The New York Times, um prato cheio para os fluentes em inglês, como Gabriel, que preferiam o material original às traduções feitas pelas editoras em São Paulo e no Rio de Janeiro. Isso acabou quando ele mudou de cidade.
"Onde você ia atrás de comprar quadrinhos aqui em Fortaleza, logo depois de chegar?"
"Não adiantava eu procurar porque não tinha. Não tinha mesmo. Único local em que você poderia procurar e conversar sobre quadrinhos era com o Jesuíno". Fanático por quadrinhos, Gabriel tratou logo de procurar quem eram as outras pessoas interessadas pelo assunto na cidade. Teve dificuldades, conta, mas acabou conhecendo Jesuíno, na época já jornalista formado e professor da cadeira de Histórias em Quadrinhos no curso de Comunicação Social da Universidade Federal do Ceará, além de diretor da Imprensa Universitária.
A amizade dura até hoje, mas o problema continuava. Fortaleza não tinha mercado e quem gostava de quadrinhos precisava se virar para encontrar o material que não era oferecido pelas bancas. Para ler o que era publicado nos Estados Unidos, uma das soluções era o aeroporto. "Enquanto o avião estava sendo varrido e colocavam as cadeiras no lugar certo, eles, por praxe, deixavam os jornais e as revistas em um local, porque eles pegavam jornais daqui para que você fosse em um voo lendo o jornal de Fortaleza. Não interessa ler o jornal dos Estados Unidos, então esse material ficava na agência e nós pegávamos, já que eles não queriam". Era assim que Gabriel se mantinha atualizado com os quadrinhos publicados nas edições dominicais dos jornais americanos.
Jesuíno também lembra das bancas do aeroporto, que conseguiam importar um ou outro material com mais facilidade. Isso já era no começo dos anos 1980 e, por muito tempo, Jesuíno atribuiu o encontro com esses quadrinhos estrangeiros com o poder aquisitivo maior que tinha na época, já com um emprego. "A abertura – de cabeça, de pensamento e de mercado – já começavam a trazer para os aeroportos, para algumas bancas das cidades grandes... No meu tempo de Rio de Janeiro eu já percebia que existiam algumas bancas especializadas que vendiam material – caríssimo, os olhos da cara – mas tinha. Quem podia, tinha acesso àquele treco lá".
Como exemplo, ele cita os álbuns da Heavy Metal, revista lançada nos Estados Unidos em 1977, pelo editor Leonard Mogel, e sua versão original francesa, Métal Hurlant, criada dois anos antes pelos quadrinistas Jean Giraud, mais conhecido pelo pseudônimo de Moebius, e Philippe Druillet. Ambas eram coletâneas de histórias normalmente explorando os gêneros da ficção científica e do horror. "Era bem mais difícil encontrar coisa francesa, dos europeus. Eles também começaram a aparecer por aqui (no Brasil) pelos anos 1980, mas muito mais raros (do que os americanos). E coisa de quadrinho autoral, nem pensar. Não existia suporte".
Então como trazer para Fortaleza esses quadrinhos que eram publicados no mundo todo, mas não encontravam aqui demanda para serem distribuídos? O problema passava também pela inexistência de uma cultura de consumo de quadrinhos na cidade. Para resolver isso, Jesuíno teve uma ideia.


Capítulo 2 – Uma oficina de quadrinhos
"Na primeira fase, antes de ter inscrição e essa coisa toda, a Oficina era um grupo. A gente chegava lá e ia conversar sobre quadrinhos. 'Ah, tu viu aquela revista?' Botava papel em cima da mesa e começava a riscar."
É a definição que Geraldo Jesuíno faz de sua própria criação: a Oficina de Quadrinhos. Quando a oficina começou a funcionar, em 1985, Jesuíno trabalhava na Imprensa Universitária, ligada à Universidade Federal do Ceará. Conseguiu colocar o projeto para a frente com sede no Centro de Humanidades da instituição, no Benfica, próximo a reitoria da UFC.
"Nos primeiros dias, eu era o dono da oficina. Eu era o dono porque não tinha ninguém mais para assumir." – ri. O grupo de interessados se reunia todas as semanas para ouvir as palavras do professor e conversar sobre o que liam. Embora tivesse sua sala na universidade, Jesuíno é muito claro ao dizer que o objetivo nunca foi o de criar um projeto voltado para os estudantes. A oficina existia, de acordo com seu próprio criador, para formar a plateia que os quadrinhos precisavam para prosperar na cidade.
Mais do que responsável por formar o público consumidor de quadrinhos, a oficina tornou-se quase rito de passagem para os quadrinistas fortalezenses. Como dito anteriormente, é difícil entrar em contato com alguém que tenha produzido quadrinhos em Fortaleza durante as décadas de 1980 ou 1990 sem ter alguma espécie de contato com o trabalho de Jesuíno.
Durante as reuniões, o professor levava exemplos do que era publicado pelo mundo e incentivava as discussões teóricas sobre as histórias em quadrinhos, embora ele admita que, principalmente durante os primeiros anos de funcionamento da oficina, o trabalho prático recebeu mais destaque. Era um ótimo local para sentar, desenhar, mostrar para os outros e ouvir críticas sobre o próprio trabalho.
Dali foi dado o primeiro passo natural para todos aqueles jovens aspirantes a artistas: publicar uma revista em quadrinhos. Colocar todas as ideias no papel não foi um processo fácil, mas o trabalho de Jesuíno na Imprensa Universitária definitivamente ajudou nessa caminhada.
Desde de sua primeira edição, a Pium – Jornal da Oficina de Quadrinhos e Cartum do Curso de Comunicação Social da UFC, como está na capa, tinha objetivos e linha editorial já bem definidas. Nunca houve a vontade de competir com os quadrinhos das bancas. Vender a revista nem era possível, já que, por ser impressa com dinheiro da universidade, ela só poderia ser distribuída gratuitamente.
A linha editorial estabelecida por Jesuíno valorizava histórias de caráter regional, com histórias que não pudessem ser feitas em outro local além do Ceará. Não era para ser uma política restritiva ou de censura, como ele relata. De forma alguma. O estilo da Pium mostrava como a revista – e a oficina, por consequência – estava ligada com a situação do mercado, inundado pelos super-heróis. "Ter quem fizesse quadrinho americano, de super-herói, esse tipo de coisa, esse tinha aos baldes. Nós jamais concorreremos com os americanos. [...] Esse não era o objetivo da oficina. O objetivo dela estava lá: 'tentar criar uma linha de produção cultural na área de quadrinhos, de preferência tentando explorar valores regionais.' Nunca consegui isso muito não. Consegui meio devagar."
Se não optasse por esse caminho a primeira edição corria o risco de ser completamente tomada por versões genéricas dos Batmans e Homens-Aranha que proliferavam nas bancas. O primeiro quadrinho publicado na revista passa longe disso. Em uma página, acompanhamos o diálogo de um homem que bebe em um bar no Centro de Fortaleza e um amigo que se encaminha ao estádio de futebol para assistir um jogo do Ferroviário.
Como um todo, essa primeira edição mostra bem o objetivo da publicação de expor o trabalho dos alunos. Além das histórias de caráter experimental e alguns cartuns, a edição traz uma entrevista com o cartunista Mino e resenhas críticas de dois quadrinhos publicados na época: a primeira edição de As Aventuras de Beto Carrero, criticada por Jesuíno por tentar emular os faroestes americanos, embora o professor reconheça o valor de ver três brasileiros sendo pagos mensalmente para produzir a revista; e a primeira edição de Jadhy – A Caçadora, gibi nacional de ficção científica criado pelo quadrinista Gilberto Camargo.
E foi que, em janeiro de 1985, Geraldo Jesuíno e os então alunos Flávio d'Independência, Jane Malaquias, Ana Rita, Luis Carlos de Carvalho, Ana Lúcia e Aloísio Gurgel marcavam a história do quadrinho cearense.
"Jesuíno, o que era publicado de quadrinhos feitos aqui em Fortaleza?"
"Nada! Não tinha nada, cara."
"A Pium é a primeira revista em quadrinhos cearense?"
"Não. Não é a primeira. Aconteceram algumas coisas esporádicas, mas eram coisas pontuais que apareciam e – pshium! – sumiam. Geralmente eram coisas comerciais ou alguns que a moçada conseguia uma brecha ou institucional, como quadrinhos do Corpo de Bombeiros ou um outro sobre Padre Cícero que fizeram..."
"Mas não eram publicações fixas."
"Não. Eram números isolados. Saía um e acabou, saía outro e acabou. E o Mino que fazia alguma coisa na Rivista. Isso ele fazia há algum tempo."
Mas a Rivista nunca foi uma publicação dedicada exclusivamente aos quadrinhos, que dividem espaço com artigos de opinião, poesias e crônicas, entre outras coisas publicadas pela Editora Riso. Revista em quadrinhos de fato, como as que eram vendidas nas bancas da cidade, totalmente feita em Fortaleza, era novidade.
"Oh, coisa boa. Eu não tinha pensado nisso." – confirma Jesuíno com um sorriso.
Quanto a distribuição do material, era toda feita na base do mão-a-mão. As tiragens, que podiam variar entre 500 e mil exemplares, eram divididas entre os frequentadores da oficina, que ficavam responsáveis por passar o material para frente da forma que bem entendessem.
Também houve, durante o período de Jesuíno a frente da Oficina, uma tentativa de lançar outra revista periódica, esta dedicada a quadrinhos com teor mais experimental. A Carbono 14 teve apenas duas edições, que nunca fizeram o mesmo sucesso da Pium e, por isso, foram logo encerradas.
Além das publicações próprias, outros quadrinhos se destacaram nesse período da Oficina. Através de um contrato com o Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), os alunos produziram uma revista contando a história do Theatro José de Alencar. Foi uma alegria saber que seriam pagos para fazer quadrinhos.
Mas é ao falar de Moreira Campos em Quadrinhos que Jesuíno muda o tom de voz. É perceptível a importância do trabalho na história da Oficina e na carreira do professor. Lançado em 1995, quando a Oficina celebrava dez anos de sua criação, o livro nasceu a partir de uma provocação de Jesuíno enquanto conversava sobre quadrinhos com alguns alunos da oficina: "Precisamos fazer uma coisa maior, mais ousada, com mais coragem."
Como conta no próprio texto que encerra a edição, o professor estava, na época, fascinado com os estudos de tradução semiológica e logo propôs a criação de um quadrinho feito a partir de releituras de obras literárias. Discussão vai, discussão vem, decidiram basear-se nos contos de Moreira Campos.
Escritor cearense, nascido no município de Senador Pompeu, Moreira Campos foi um dos contistas brasileiros mais importantes para a literatura nacional, com nove livros publicados e uma cadeira na Academia Cearense de Letras. O autor participou do processo de produção do livro, até mesmo lendo alguns dos quadrinhos finalizados, mas infelizmente faleceu meses antes do trabalho ser lançado.
A obra reuniu Fernando Lima, Paulo Henrique Gifoni, Silas Rodrigues, Walber Feijó, Weaver Lima e Paulo César Amoreira, divididos para adaptar oito contos do escritor. Jesuíno toma cuidado ao escolher as palavras necessárias para descrever o material. Policia-se para não dizer a palavra 'infelizmente' ao falar sobre o fato do quadrinho ter sido produzido em Fortaleza. Não é difícil entender seu comentário, principalmente após ler o livro.
Moreira Campos em Quadrinhos estava muito à frente da incipiente produção de quadrinhos no Ceará, até então ainda limitada à algumas tirinhas nos jornais e aos fanzines que começavam a tomar forma e ganhar alcance. Aquela insistência em evitar as influências do mercado americano parece ter surtido o efeito desejado, pois Moreira Campos é definitivamente um quadrinho que só poderia ser realizado no Ceará. Desde a capa feita em xilogravura, passando pelos diversos estilos únicos de desenho retratando a paisagem local, até a linguagem familiar. Todos os elementos fazem do livro um marco na produção cearense de quadrinhos.
Em apenas dez anos, a oficina dava passos largos rumo ao objetivo de Jesuíno de criar uma plateia para o quadrinho. Provas disso estão presentes no depoimento de quem passou por lá, como foi o caso de Paulo Amoreira, um dos integrantes da equipe do Moreira Campos em Quadrinhos. Quando conheceu a oficina, Paulo não era leitor de quadrinhos. Ele diz que não teve contato com a arte além da cultura de massa vista na Turma da Mônica e nos super-heróis. Paulo era um ilustrador, ainda no colégio ele fazia cartazes de bandas rock e vendia para os colegas. Foi através de Fernando Lima, aluno da oficina e colega de Paulo, que viu os desenhos e o convidou para frequentar as aulas.
"A gente conversava sobre algumas e coisas e o Jesuíno trazia o quê? Hugo Pratt. E aí você – uau! – existe coisa assim no mundo?" – conta Paulo sobre as primeiras aulas na oficina. O maior trabalho do italiano Hugo Pratt foi a criação da personagem Corto Maltese, um marinheiro que em seus álbuns vive aventuras pelo mundo durante o início do século 20, tendo sua primeira história publicada no Brasil em 1987.
"Como eu gostava muito do underground, então eu me identifiquei muito mais com essa pegada do quadrinho adulto, porque o quadrinho comercial que circulava no Brasil, que eram os super-heróis, e o quadrinho voltado para o público infantil, que era o Maurício de Souza, não faziam muita parte do meu universo simbólico. [...] Eu me identifiquei muito mais com essa possibilidade dos quadrinhos adultos."
Paulo ressalta o fato de Jesuíno apresentar aos alunos o trabalho dos quadrinistas cearenses, além do incentivo em produzir conteúdo regional. Era mais uma das características da oficina que a encantavam. Com apenas 15 anos, quando começou a frequentar as reuniões do grupo, Paulo sentia que Jesuíno tratava a todos como artistas, sempre provocando para extrair o que de mais interessantes tivessem a oferecer.
Nesse contexto, participar do Moreira Campos foi, para Paulo, uma grande oportunidade de discutir tradução. "A gente queria usar coisas que só o quadrinho pode fazer, próprias da linguagem, então a gente passava muitas horas pensando em como fazer uma página, às vezes pensando em um único quadrinho. Eu lembro que um dia o Jesuíno ficou discutindo com o Weaver por dias sobre um único quadrinho."
A adaptação dele de Dizem que os cães veem coisas quase ficou de fora do álbum. Paulo conta ter começado e desistido da história várias vezes. Chegou ao ponto de todos os outros entregarem seus trabalhos finalizados enquanto a sua ainda não havia nem começado. Foi aí que Jesuíno deu um ultimato de dois meses para que Paulo entregasse 15 páginas. Era suficiente para que o jovem pedisse demissão do emprego de office boy e passasse a se dedicar exclusivamente ao quadrinho. Trabalhando com modelos vivos, Paulo entregou só para dar início à outra preocupação: Moreira Campos em pessoa iria ler sua história antes do lançamento.
"Eu estava particularmente preocupado com isso, que eu tivesse ido longe demais, porque eu fui muito longe na minha tradução. Eu incorporei vários ícones de história da arte e particularmente preocupado com uma sequência em que [...] ele diz que mãe olhou para o peito do atleta de vôlei que saiu da piscina e ficou contrariada, aí ele não diz porquê. Na minha história eu coloquei um tufo de pelos no peito do atleta que parecia um púbis feminino, aí no zoom dos quadrinhos eu tornei possível esse desconforto. Expliquei ao modo o que tinha acontecido."
Embora o erotismo não fosse novidade nos contos de Moreira Campos, a preocupação com a leitura que o autor original faria da cena permaneceu até o dia em que Jesuíno levou o trabalho para ele. Paulo não estava presente quando Campos leu o seu quadrinho, mas soube de todos os detalhes da reação do autor através de Jesuíno. "Quando virou essa página, disse que ele ficou uns dois ou três minutos olhando para a página. Aí eu 'Ai, meu Deus. Ele vai me esculachar.' Depois de uns três minutos em silêncio, olhando para a página, o Moreira diz: 'Interessante, eu não havia pensado assim. Mas ficou ótimo, não foi?' Eu respirei aliviado com a intenção de que o trabalho foi cumprido." – conta rindo.
Mais do que boas histórias, as produções da Oficina de Quadrinhos são um retrato histórico do quadrinho cearense. Uma das iniciativas elogiadas, a de incluir sempre entrevistas com quadrinistas cearenses, também é um retrato do cenário da época: a primeira e a segunda tiveram entrevistas com Mino e Sinfrônio, respectivamente, ambos cartunistas dos jornais locais, mas não demora para que os alunos comecem a entrevistar os próprios integrantes ou ex-integrantes da oficina.
Na quarta edição, o publicitário Paulo Cardoso Filho, o Carfil, conta estar desiludido com a possibilidade de viver com o trabalho em quadrinhos no Ceará. No número seguinte, lançado já em 1990, o paraibano radicado em fortaleza Kazane também fala das condições para o quadrinista cearense: "Primeiro, quadrinho de qualidade era o estrangeiro. Você só conseguia curtir mesmo se fosse um desenhista estrangeiro, onde vinha tudo em inglês. Depois veio Pato Donald. Ninguém consegue ganhar essa concorrência. O quadrinho brasileiro só vai até o primeiro, segundo número, principalmente aqui no Ceará. É uma coisa assim, um diletantismo."
Competir com os quadrinhos infantis vendidos nas bancas pelas grandes distribuidoras era realmente difícil. O próprio Jesuíno relata dificuldades ao tentar levar para a banca as revistas produzidas na oficina. Como os donos dos pontos de venda tinham acordos fechados com as distribuidoras, não poderiam aceitar qualquer material independente. Era uma situação complicada, já que as bancas mantinham o monopólio da venda de quadrinhos na cidade.
Mas os momentos de esperança existiam. Conta Jesuíno que certo dia andava apressado pela rua quando recebeu um panfleto e o colocou debaixo do braço sem prestar muita atenção. Apenas mais tarde parou para ler e percebeu que era uma revista em quadrinhos produzida em Fortaleza mesmo. O mais curioso é que nenhum dos nomes era familiar ao professor, provando que alguma coisa começava a mudar desde que a oficina foi criada. Surgia a plateia.
Com o tempo, o professor ia deixando o tal cargo de dono da oficina. As obrigações como professor no curso de Comunicação e o trabalho na Imprensa Universitária sobrecarregavam Jesuíno, que passou a dividir com os ex-alunos a responsabilidade que foi só dele durante anos. "Mas eu continuava lá. Não com aquela frequência de chegar às 7h da manhã para abrir a sala. Isso eu não fazia mais. Me afastei um pouco, aí de repente aparece uma coisa chamada Metrofor. O Metrofor se manifestou aqui, andou dando dor de cabeça para um bocado de gente. Um dia ele resolveu passar por cima do prédio da oficina. E passou."
A sala da oficina, localizada no Centro de Humanidades, foi derrubada em 1999 durante a construção da Linha Sul do Metrô de Fortaleza. Quase tudo foi perdido, segundo Jesuíno. Pranchetas foram tiradas na última hora, mas várias revistas e quadrinhos raros que estavam na sala foram perdidos na demolição.
A paixão de Jesuíno pelo Curso de Jornalismo e pela UFC transbordam em quase todos os momentos nos quais ambos são citados. Por isso, é até surpreendente ouvi-lo no único momento em que critica a instituição. Depois de ter a sala da oficina demolida, os responsáveis pela oficina não receberam nenhuma ajuda da UFC para conseguir outra sala. O desânimo com a situação acabou colocando o projeto em hiato.
A oficina retornou apenas em 2004, agora sob orientação do professor Ricardo Jorge. Jesuíno não está mais diretamente ligado ao projeto e nem mesmo é funcionário da UFC, trabalhando apenas com a editoração de livros no seu escritório no Bairro de Fátima, onde me recebeu para esta entrevista.
"Chega um tempo em que você precisa ceder espaço para o pessoal. Quando eu sou convidado para ir para algum lugar os meninos me recebem muito bem, mas é outro espaço, é outra mentalidade, outra direção. [...] Não desisto nunca de quadrinho. Não vou desistir e não tenho a menor intenção de fazer isso, mas já não é como antigamente."
E realmente não é, nem a era quando do fim da primeira fase da oficina. Questionado sobre ter conquistado os objetivos que tinha quando criou o projeto, Jesuíno responde com um 'sim' enfático. A oficina poderia parar de funcionar por alguns anos, mas o efeito dela naqueles jovens já tinha surtido efeito. Surgia ali toda uma geração de quadrinistas cearenses.


Capítulo 3 - Rapadura
Fora da oficina, o quadrinho fortalezense existia na forma descrita por Jesuíno anteriormente: publicações esporádicas utilizavam do meio para promover alguma ideia ou servir de panfleto educativo, mas estávamos longe de ter uma produção constante e profissional, suficiente para movimentar um mercado.
Os próprios jornais da cidade publicavam apenas tirinhas importadas dos Estados Unidos ou de outros estados do Brasil. Mas isso começou a mudar no final da década de 1970, quando o jornal O Povo cedeu espaço para o cartunista Hermínio Castelo Branco, o Mino.
Fã de quadrinhos desde criança, Mino teve contato com suas maiores influências ainda durante os primeiros anos de vida. Filho mais novo da família, ele ganhava revistas em quadrinhos de presente da irmã mais velha, que sempre trazia edições de personagens da Disney, como Mickey e Pateta, ou dos super-heróis Superman e Capitão Marvel (este último, renomeado como Shazam em 2011).
"As histórias eram mais ingênuas, mas elas também eram mais interessantes. [...] O preto e branco dava um toque diferente nas histórias." Mino cresceu e o interesse pelas artes foi junto. Começou a desenhar e a trabalhar com ilustrações, época em que passou a receber recomendações de bons quadrinhos dos colegas que viam seu interesse nos desenhos, entre eles os quadrinhos de Jaguar no Pasquim, os trabalhos underground de Robert Crumb, que chegava ao Brasil em 1972, e a Valentina de Guido Crepax.
No jornal O Povo, Mino trabalhava ilustrando notícias e fazendo charges para a editoria de humor esportivo. O primeiro quadrinho feito por ele foi uma tirinha encomendada pela Cervejaria Astra e publicada no próprio jornal. "Foi a melhor aula que eu tive, quando me encomendaram aquilo. Eu não sabia fazer, aí fiz do meu jeito e foi muito interessante, aprendi muita coisa."
A partir daí os quadrinhos foram ganhando mais espaço nas atividades de Mino. O artista começou a fazer cartuns e, em seguida, tirinhas. Em 1973, nascia sua maior criação: o Capitão Rapadura. "Foi um processo difícil de fazer esse personagem. Eu nunca tava satisfeito. Tinha hora que ele tinha uma cara que eu gostava porque ele parecia um personagem adulto, com as coisas de adulto e tudo, daqui a pouco ele virava um personagem infantil. Eu nunca sabia em qual deles eu tinha que investir, qual deles era o traço."
Inspirado em parte pelas histórias de Billy Batson, que grita a palavra Shazam para transformar-se em Capitão Marvel, com elementos dos poderes do Superman, dependente da luz solar para manter a força, Mino criou um super-herói cearense cujos poderes dependiam da rapadura. O criador traça um paralelo para citar o doce como 'a força que move o nordestino'.
Mino se empolga a falar sobre todos os personagens criados para habitar o universo do Capitão Rapadura. Dois nomes são citados pelo cartunista como grandes influências no seu trabalho: Maurício de Souza e Walt Disney. Um olhar rápido pela produção basta para perceber o quanto dos dois está presente no seu trabalho, do estilo de desenho ao caráter educativo das histórias.
Em sua primeira aparição, no Almanaque do Mino, um precursor da atual Rivista, Capitão Rapadura faz piada com os buracos nas ruas da cidade na história Capitão Rapadura Contra a Peba da Aldeota. As tirinhas seguiram sendo publicadas de forma meio desordenada durante os primeiros anos. O próprio criador admite que sua atenção nunca foi totalmente dedicada ao personagem, sempre dividido com o trabalho como ilustrador e artista plástico.
O conhecimento da popularidade do personagem chegou a Mino quase que por acaso. Por causa de uma gincana no colégio da filha, ele foi à escola fazer um desenho. Chegando lá armou uma madeira branca que fez de quadro e desenhou um homem dentro de um disco voador. Meio que inconscientemente, ele diz, fez o personagem com os traços do Capitão Rapadura, embora já não desenhasse o herói há algum tempo. "Aí eu ouvi uma meninazinha assim: 'Rapadura! Rapadura! Rapadura!' Aí eles começaram: Rapadura! Rapadura!' Eu me emocionei." Mino acredita que as crianças conheceram o personagem através do Almanaque do Mino que era distribuído em alguns colégios.
Nos últimos anos, Mino vem tentando seguir os passos do maior caso de sucesso dos quadrinhos nacionais. Ele diz ter incluído a obrigação de trabalhar com quadrinhos na rotina, junto com as pinturas que também faz diariamente. Ao ser questionado, não esconde a pretensão de trilhar o caminho de quem lhe inspirou. "O Maurício de Souza tornou-se para mim uma figura inspiradora. A figura dele mais do que os personagens. Ele foi administrando os personagenzinhos dele e construiu o que falta para todos nós [quadrinistas], que ele ser empresário. Ele soube dirigir o negócio, contratar desenhistas, e lançou a Mônica e funcionou. Isso é inspirador!"
É essa a leitura de Mino da situação do quadrinho no Ceará. Não faltam desenhistas e roteiristas, mas sim gente que saiba lidar com o lado comercial da coisa e tornar o quadrinho uma atividade produtiva. Foi seguindo essa linha que, em 1997, o Capitão Rapadura foi licenciado e ganhou revista própria nas mãos de outros quadrinistas, em moldes parecidos com o feito por Maurício na Turma da Mônica, mas diferenciando-se ao dar aos artistas mais liberdade na hora de desenhar o personagem.
Nas mãos de Daniel Brandão, JJ Marreiro e Geraldo Borges a revista durou 15 edições. Na época, os três amigos estavam ganhando fama no cenário de quadrinhos cearenses com uma publicação própria. Mas o início dessa história acontece só em 1996, na Oficina de Quadrinhos.


Capítulo 4 - Zines
"Eu gostava de desenhar. Minha avó pintava quadros, então tinha alguma coisa artística na família em relação a isso". O interesse por quadrinhos de Daniel Brandão veio da infância, das histórias infanto-juvenis já tanto citadas e que serviram como ponto de entrada desse universo para tantas pessoas.
Durante a adolescência, nos anos 1980, as histórias de Daniel ilustram bem como os quadrinhos ainda não eram bem aceitos. O quadrinista não é o primeiro a relatar sentir um pouco de vergonha do fato de ler quadrinhos. Conta ele, rindo, que chegou a comprar revistas Superinteressante só para colocar um quadrinho no meio e ler sem possivelmente chamar a atenção de outras pessoas.
O sonho de ser desenhista existia, mas foi sendo deixado de lado com o passar do tempo. Aos 20 anos, já um pouco afastado dos quadrinhos e cursando a faculdade de Direito na qual não se adequava, a namorada o falou sobre uma reportagem que tinha visto na televisão sobre uma oficina de quadrinhos na UFC. Brandão deu uma chance e foi para um encontro que mudaria sua carreira.
"Isso mudou minha vida completamente. Lá eu me reencontrei, voltei a fazer quadrinhos, descobri a possibilidade de viver de quadrinhos e aí eu fiz minhas primeiras amizades sólidas nesse universo de quadrinhos, de pessoas que pensavam como eu e que tinham os mesmos sonhos que eu".
Naquele espaço ele conheceu dois amigos que o acompanhariam em uma empreitada ao fazer quadrinhos em uma mídia que ganhava força em Fortaleza. Era o ano de 1996 quando os amigos Daniel Brandão, JJ Marreiro e Geraldo Borges criavam o fanzine Manicomics.
A linha editorial da Pium, grande orgulho de Jesuíno, acabou por ser uma das catalisadoras do projeto. Daniel acredita em uma possível falta de maturidade dos três para não perceberem como seria bacana tentar trabalhar na linha da Pium, mas o fato é que isso acabou os incentivando a criar a própria plataforma onde criariam seus quadrinhos com a temática que bem entendessem.
Logo percebe-se que os super-heróis eram parte desse plano. Por muitos anos Jesuíno insistiu em não colocar histórias com os justiceiros encapuzados e dotados de força sobre-humana na revista da oficina, embora os alunos sempre insistissem no contrário. Ele acabou cedendo em 1998, quando a Pium lançou uma edição especial de super-heróis. De acordo com Jesuíno, foi o maior fracasso da revista, que até hoje tem cópias engavetadas.
Com o Manicomics seria possível experimentar em gêneros de histórias mais próximos aos três, mas ao mesmo tempo sumia o apoio da universidade que a Pium tinha. Na prática, isso implicava em pagar a impressão dos fanzine e ser responsáveis pela distribuição e venda do material. "A periodicidade do Manicomics a gente sonhou em ser mensal, depois bimestral, mas passou logo a ser 'granal'. Quando a gente tinha grana, a gente fazia. Teve ano que a gente conseguiu lançar seis edições, teve ano que a gente conseguiu lançar duas, três edições", explica Daniel. Uma das formas de contornar essa falta de periodicidade foi fazer com que todas as histórias de uma edição fossem autocontidas. Embora os mesmos personagens pudessem aparecer diversas vezes, não era necessário ler uma história anterior para acompanhar a próxima.
Houve também uma opção consciente dos três em tentar se distanciar dos elementos normalmente associados ao fanzine, procurando utilizar sempre um papel de maior qualidade e uma estética mais próxima dos outros quadrinhos vendidos nas bancas. Mas nem isso aliviou o grande gargalo encontrado por quem queria lançar quadrinhos: a distribuição.
"Deste que eu me entendo por envolvido no mundo dos quadrinhos que o problema maior dos quadrinhos, principalmente dos independentes, reside na questão da distribuição. No Manicomics, durante muito tempo, eu era o departamento de atendimento e distribuição", afirma JJ Marreiro. Ele explica que, logo na ocasião do lançamento do fanzine, era preciso divulga-lo para o público possivelmente interessado. Para isso, a equipe ia às bancas, anotava os endereços de várias editoras de todo o Brasil e enviava cópias do fanzine junto com uma carta de apresentação e o pedido para que, caso não houvesse interesse no material, repassasse para outra pessoa.
A estratégia rendeu duas resenhas positivas publicadas na revista Wizard, publicação originalmente americana que no Brasil era de responsabilidade da Editora Globo e cobria o mercado de quadrinhos. Outro meio de distribuição era colocando os zines direto nas prateleiras das bancas, mas segundo Daniel, eram raras as ocasiões em que os donos de bancas aceitavam esse acordo. Mesmo quando aceitavam, os garotos não costumavam se preocupar em voltar no local para fazer o balanço de quantas edições foram vendidas.
Uma das receitas do sucesso foi mesmo a diferenciação que a revista buscou fazer dos outros fanzines. Como explica Marreiro, a produção da época já tinha uma estética bem estabelecida e mais ligada ao movimento punk. O Manicomics sempre procurou fazer um desenho "mais limpo", sempre com o cuidado de tornar o material adequado para pessoas de qualquer idade.
Mas isso não significa que o objetivo do projeto fosse lucrar com as histórias em quadrinhos. De acordo com Marreiro, mesmo as maiores tiragens do Manicomics não foram suficientes para dar um retorno financeiro significativo à equipe, chegando, no máximo, a pagar os custos de produção e distribuição da revista.
"O nosso objetivo não era financeiro. Nunca foi. Nosso objetivo era mostrar nossas histórias para as pessoas, sabe? Tanto que o grande êxito do Manicomics reside justamente nisso. No tanto de artistas e histórias que a gente conseguiu botar no mundo, quanta gente a gente arranjou espaço para o cara publicar pela primeira vez e quantas amizades a gente fez ao longo de toda essa produção. Dinheiro nenhum no mundo paga um amigo que você faz ou uma emoção que você causa em alguém".
Com a ajuda de amigos e artistas convidados, os três editores mantiveram a publicação, apesar das dificuldades. O trabalho foi recompensado três vezes com o prêmio HQ Mix, maior premiação da indústria brasileira de quadrinhos, vencendo nos anos de 2002, 2005 e 2006. O ano do último prêmio foi também o último ano de publicação fanzine. A essa altura os três já seguiam carreira no mercado de quadrinhos e ilustração e, de acordo com o relato de Marreiro, era necessário saber a hora de parar.
Após 10 anos o Manicomics chegava ao fim vendo seus idealizadores catapultados para a profissão que era apenas um sonho em 1996. Daniel Brandão montou em Fortaleza o estúdio onde dá aulas de desenho e continua publicando quadrinhos; JJ Marreiro também alia o trabalho de ilustrador com os quadrinhos que continua a produzir, seja em edições impressas ou na internet; Geraldo Borges também tem seu próprio estúdio, este em Natal, e foi dos três o que mais trabalhou no mercado americano, desenhando histórias de diversos personagens da DC Comics, como Mulher-Maravilha, Batman, Superman e Lanterna Verde.
Com 34 edições e 43 mil exemplares distribuídos o Manicomics encerrou as atividades, mas deixou sua marca no mercado cearense de quadrinhos. Na ocasião do aniversário de 20 anos da publicação, os editores originais se preocuparam em restaurar edições clássicas do fanzine e documentar parte do processo criativo de criação das revistas.
O Manicomics estava, no entanto, longe de ser o único. Durante a os anos 1990, outro grupo também chamou atenção com seu fanzine, este muito mais próximo da estética punk citada por Marreiro. Criado em 1991, o coletivo Seres Urbanos foi outro resultado das aulas da oficina de quadrinhos. Foi em um dos encontros que Weaver Lima e Marcílio Nascimento se conheceram e começaram uma amizade. A vontade de fazer quadrinhos era grande e se materializou no fanzine Paranoide, onde tinham liberdade para experimentar com seus desenhos.
Weaver conheceu a oficina em 1988 após ver uma matéria no jornal sobre a publicação da Pium. Na prática, ele já fazia fanzines desde os 10 anos, embora não soubesse que o material tinha esse termo. "Mas eu já fazia quadrinhos. De bem maneira bem independente e autodidata, mas fazia". Uma das vantagens que Weaver teve foi o acesso a tudo que era publicado em São Paulo. Ele morou lá durante a adolescência onde frequentou as bancas para comprar edições da Chiclete com Banana, revista publicada pela Circo Editora que contava com nomes que se tornariam sinônimo de quadrinho nacional, como Angeli, Laerte, Glauco e Luiz Gê. Além de personagens como a Rê Bordosa e os Piratas do Tietê , a revista chegou a trazer histórias de quadrinistas do cenário underground americano, como Robert Crumb.
"Quando eu cheguei aqui em Fortaleza, o primeiro baque foi esse". A dificuldade em encontrar quadrinhos que não fossem infantis ou de super-heróis surgiu de repente. Ele também relata ter ido ao aeroporto atrás de quadrinhos estrangeiros, mas falou serem raros os casos em que encontrou algo realmente interessantes e, mesmo assim, as opções continuavam limitadas.
Ele já foi na oficina com o interesse de conhecer outras pessoas que gostassem das mesmas coisas, mas acabou percebendo que os quadrinhos europeus que gostava não gozavam da mesma popularidade com os outros. "O pessoal da oficina curtia mais uns quadrinhos meio caretão, assim. Caretão que eu digo, mais comerciais, de super-heróis e tal. Era o tipo de coisa que eu não curtia tanto, mesmo. O Jesuíno era legal porque vez por outra mostrava material europeu e tal, tentava mostrar para o pessoal".
Embora os acontecimentos não sejam muito diferentes daqueles que deram origem ao Manicomics, é interessante traçar esse paralelo entre dois fanzines com histórias de criação semelhantes, mas propostas diferentes para o conteúdo. É um sinal claro de fortalecimento do mercado local, que já começava a ter uma produção mais variada.
Quando chegou na oficina, os quadrinhos de Weaver já tinham uma estética própria e bem dissociada do que era publicado na Pium. Ao invés de mudar o estilo para se encaixar com mais facilidade na linha editorial da revista, Weaver preferiu criar seu próprio fanzine, trilhando o caminho que seria seguido pelos editores do Manicomics alguns anos depois.
A primeira edição foi feita de forma bastante despretensiosa. "A gente combinou em um sábado e no outro sábado estava tudo montado. Foi bem 'pega umas coisas que tão na gaveta, pega uns textos que a gente acha legal e um desenho para a capa'". Depois de montado e xerocado, o material foi distribuído entre os colegas da oficina e colocado em lojas de discos da Galeria Pedro Jorge, no Centro. O sucesso dessa primeira edição foi uma surpresa para os criadores.
"O Jackson Araújo trabalhava como jornalista especial do jornal O Povo, fazendo um caderno especial de domingo. Quando viu o fanzine ele curtiu, curtiu mesmo, ficou empolgado. Aí ele fez uma matéria de capa e acabou que o zine ganhou um certo destaque, mas da nossa parte foi meio inesperado". Com a divulgação, os dois acabaram ficando conhecidos e outras pessoas foram entrando em contato com objetivo de também fazer parte do grupo. Outros ainda conheceram os dois nas gráficas onde iam fazer as cópias do fanzine.
Pouco tempo depois estava formado o grupo composto por Weaver, Marcílio, Lupin, Michel, Galba, Elvis e Kaos. Juntos eles eram os Seres Urbanos e produziam quadrinhos embebidos de influências vindas do rock e dos quadrinhos underground. O sucesso com o público que frequentava a chamada galeria do rock se refletia na reposição constante das edições deixadas por lá. Além das lojas de discos, Weaver diz ter deixado algumas edições em bancas de conhecidos, mas nunca houve muito interesse em profissionalizar esse processo. O objetivo era se expressar.
A partir do zine, chegaram convites para outros trabalhos, como ilustrações para bandas de rock que distribuíam o material nos shows. O grupo também quadrinizava letras de músicas de bandas locais. Com esses outros trabalhos era possível ter um retorno financeiro mínimo, mas suficiente para a maioria, que ainda morava com os pais. "Qualquer R$ 200 era grana, né? Porra, estamos ricos", ri Weaver.
O trabalho para o qual receberam o melhor pagamento até então foi na barraca de praia Biruta, em uma série de shows com Pato Fu, Planet Hemp e Raimundos, bandas da geração do rock nacional dos anos 1990. "Eles viram esses fanzines que a gente fazia com o pessoal das bandas daqui e aí eles falaram: 'Pô, cara. A gente queria que vocês fizessem a mesma história, adaptar as letras dessas bandas, para a gente distribuir lá'". A tiragem ficava entre 500 e 1,5 mil exemplares e era mais uma forma de conhecer o grupo. Weaver diz que muitas pessoas compraram outros fanzines do Seres Urbanos após terem conhecido o grupo em um desses shows.
Weaver acredita que o público do Seres Urbanos nunca foi, em sua maioria, formado pelas pessoas que consumiam quadrinhos, mas sim por aqueles ligados ao cenário musical da cidade, em especial às bandas de rock e ao skate. Apesar disso, ele chamava a atenção dos leitores de quadrinhos e seguiu lançando material inédito até 1998, quase sempre utilizando o espaço que tinham na Copiadora Hoje. Eram clientes tão frequentes que ganharam uma sala em troca de trabalhos gráficos para o dono do estabelecimento. Batizada de Estação Gráfica Seres Urbanos, a perda do local com o fechamento da Copiadora Hoje acabou fazendo cada um seguir seu caminho e o grupo encerrou definitivamente as atividades.
A volta veio apenas em 2015, com a publicação da coletânea Antologia do quadrinho underground cearense, onde os amigos se reuniram para selecionar algumas histórias que representassem o trabalho realizado nos anos 1990. A chance de relançar o material veio em um edital da Secretaria de Cultura do Governo do Estado do Ceará, mas sendo mais problemática do que eles pensaram inicialmente.
"Teve tanto problema para publicar esse livro, por ele ser de quadrinhos e um cara de dentro da secretaria achar que só podia ser para criança. [...] A gente fez uma seleção e não somos malucos de colocar coisa que a gente sabe que poderia criar problema junto a secretaria. A gente sabe que quem vai julgar esses projetos não são pessoas ligadas aos quadrinhos e até uma coisa ali pode soar estranho para [quem não conhece]. A gente escreveu um livro que não tinha porque ter acontecido isso.
Uma das histórias de Weaver era baseada em um fato real ocorrido na Alemanha, na qual uma mulher contratava um garoto de programa para assassiná-la. "Eu fiz uma versão livre dessa história e isso chocou de alguma maneira. O livro foi aprovado no jurídico e no técnico. Já estava publicado no Diário Oficial como aprovado. Depois disso um cara abriu lá e 'ah, o que é isso', aí embaçou tudo".
Foram três anos tentando negociar para que o livro fosse publicado. Ofereceram a possibilidade de tirar a história, mas não conseguiram acordo. No edital seguinte, o livro foi inscrito sem essa história, aprovado e finalmente publicado. Weaver promete que em um próximo volume o grupo vai dar todos os detalhes do complicado processo de publicação.
Outro espaço onde o Seres Urbanos já pôde ser encontrado, este menos familiarizado ainda com as histórias em quadrinhos, foi em uma exposição no Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará. Foi na ocasião de uma mostra que o grupo chamou a atenção de Fernanda Meireles, que na época já demonstrava interesse na produção de zines, mas não tinha muita proximidade com os quadrinhos.
Fernanda começou a fazer fanzines em 1996, mas foi em 2000 que ela começou a dar oficinas sobre o assunto. A primeira turma surgiu após ela aceitar o convite de um amigo para fazer a oficina em um evento da Universidade Estadual do Ceará (Uece). "Só que saiu tudo errado. Deu certo, no fim, mas foi completamente diferente do que eu imaginava. A coisa começou a fazer mais sentido quando eu comecei a pesquisar profundamente sobre fanzines, mídia alternativa, o ato da escrita manuscrita, redes de comunicação e aí ao longo da minha vida essas coisas foram se entrelaçando".
Conta ela que muitas pessoas chegavam nas oficinas pensando que seriam exclusivamente para a produção de quadrinhos, mas Fernanda deixava claro que, embora as aulas não fossem voltadas para uma forma de expressão específica, os quadrinhos eram perfeitamente aceitos no zines coletivos produzidos pelas turmas.
O que ainda estava longe de ser resolvido era o problema da distribuição. Os zines ainda ficavam limitados à distribuição para os amigos e conhecidos. Nem todo mundo tinha a sorte de Seres Urbanos em aparecer no jornal. "As pessoas iam nessa coisa do boca-a-boca, né? 'Olha, fulano faz também'". Nesse contexto, ela organizou o Zine-se, um evento onde todos os produtores de quadrinhos da cidade poderiam se reunir para trocar ideias, formar colaborações e ver o que estava sendo produzido pelos outros.
Em 2000, Fernanda fez uma série de sete oficinas no Theatro José de Alencar. Lá, todas as turmas produziam uma edição do fanzine Ioiô ao final das aulas, sempre falando sobre o centro de Fortaleza e a relação das pessoas com a região. "Ia gente de todo jeito, de toda área de interesse, de toda idade, de toda classe social, de todo local da cidade. As pessoas iam para o Centro para ter essa oficina. Imagina, uma oficina que dura mais de uma semana a cada dois meses, durante um ano? Quando chegou na segunda oficina já tinha gente da primeira para entregar o primeiro ou ver o que estava sendo feito. Imagina esse ciclo de oficinas se repetir sete vezes. Criou-se uma galera, produzindo, querendo ver, querendo ler, querendo comprar, além de um ciclo de afinidades".
Na última oficina, surgiu a ideia de criar um evento periódico para que todos continuassem se encontrando e trocando ideias. O Zine-se acontecia sempre em um espaço público diferente da cidade. Como forma de registrar a produção da época, Fernanda mantinha o Esputinique, um catálogo com os fanzines da cidade. Em sua última edição, lançada em 2003, a contagem indicava 136 zines sendo publicados em Fortaleza, todos resenhados por ela na publicação. Foi quando percebeu que não era mais possível dar conta de tudo o que era lançado.

Capítulo 5 – Uma loja de quadrinhos
Foram várias as formas encontradas para se consumir quadrinhos em Fortaleza desde os tempos das vendas em frente aos cinemas. Durante a maior parte desses anos todos, as bancas mantiveram a posição de local mais acessível para quem queria encontrar quadrinhos, mas elas sempre pecaram pela falta de material com menor apelo comercial.
Alguns tiveram a sorte de Jesuíno, que ao viver por alguns anos no Rio de Janeiro conseguiu acesso mais fácil a quadrinhos europeus e produções do underground americano. Também era possível encontrar alguma coisa nas livrarias do aeroporto, mas nem lá havia garantia de material diferente do já encontrado aqui.
Outras tantas pessoas podem ter tido a sorte de Mino, que afirma ter conhecido os quadrinhos do italiano Guido Crepax através de presentes de amigos, embora ele não tenha sabido explicar se os quadrinhos que ganhava eram comprados aqui ou fruto de viagens para outras capitais brasileiras.
O fato é que para ilustradores profissionais ou frequentadores da Oficina de Quadrinhos, esse tipo de publicação poderia ser encontrado, nem que fosse apenas para leitura no acervo que Jesuíno mantinha em um canto da sala da oficina. Mas Fortaleza precisou esperar até 1993 para ganhar sua primeira loja de quadrinhos.
Silvyo Roberto Amarante conta como aprendeu a gostar de colecionar quadrinhos ao comprar revistas na entrada do Cine Majestic, durante a infância na década de 1960. Todos os domingos, Silvyo ia ao local procurar completar as coleções que fazia, passando a tarde a base de refresco e pipoca enquanto vasculhava o material exposto pelos vendedores. Começava ali uma vida de colecionismo.
"Desde garoto, eu nunca pensei em ter uma banca de revista. Não é um demérito, mas é porque eu, já garoto, tinha muitas revistas". Com 17 anos, Silvyo montou sua primeira loja, em uma garagem na rua São Paulo, no Centro. Era uma banca, mas com espaço físico para armazenar a coleção do dono. O jovem empresário oferecia um serviço de assinatura para os moradores da cidade, entregando as revistas em casa assim que eram lançadas, um serviço não muito comum na época.
"Era um adolescente, deslumbrado e irresponsável. Eu passei dois anos lá e a dona do imóvel não quis renovar o contrato por causa de umas festinhas que estavam acontecendo por lá". O negócio parou de funcionar e Silvyo deu uma pausa na faceta empreendedora para cumprir o tempo de serviço militar obrigatório. Após esse período, chegou a cursar duas faculdades: Economia e Administração, mas desistiu das duas sempre próximo da conclusão do curso, por não acreditar que se daria bem nas respectivas profissões.
Quando contou para o pai que tinha abandonado a faculdade, Silvyo ouviu a recomendação que definiria suas duas próximas empreitadas: "Você só dá para duas coisas, Silvyo. Ter uma livraria ou uma casa de jogo". Sempre fascinado por qualquer espécie de jogo, ele abriu uma agência lotérica na Av. Pontes Vieira, no bairro Dionísio Torres.
Mas os quadrinhos nunca se afastaram de Silvyo. Mesmo trabalhando na agência, ele mantinha a coleção cada vez maior de revistas, constantemente comprando e vendendo edições raras que via em catálogos ou entrando com outros colecionadores do Brasil através de anúncios. Ele começou a fazer o próprio catálogo da coleção e enviar para possíveis interessados, através dos endereços que via nas sessões de cartas das revistas. No seu auge, o catálogo chegou a ser distribuído para mais de mil colecionadores de todo o Brasil, de acordo com ele. Não por acaso, a casa lotérica se chamava Quadrinhos Lotéricas.
O nome Silvyo Amarante já estava ficando conhecido entre os círculos de colecionadores. Logo surgiram as entrevistas para os jornais, sempre falando sobre algum personagem que comemorava aniversário ou estava sendo adaptado para o cinema.
Em 1989, ainda antes de criar a loja, uma negociação marcaria sua vida. Um amigo iria se mudar da casa para um apartamento e não teria mais espaço para guardar a coleção. Coube a Silvyo comprar todas as edições da coleção, vendida a um valor bem abaixo do preço de mercado, segundo ele. "Eu não sei qual era a moeda da época, eu sei que eram 60 milhões ou 60 mil, uma coisa assim. Eu sei que ele disse que as revistas eram minhas por 60 milhões. Tudo o que eu tinha juntado na vida eram os 10 milhões que eu tinha na poupança. Por coincidência, meu pai tinha nos dado um terreno. [...] O terreno foi vendido e a parte que me coube foi 50 milhões. Eu praticamente nem peguei no dinheiro. Eu juntei com os 10 milhões que tinha e fui lá".
É difícil estimar qual o valor real da transação ou a moeda utilizada, já que entre janeiro de 1989 e fevereiro de 1990 o Brasil teve três moedas diferentes e convivia com uma inflação de 1700%. Silvyo diz lembrar bem de a transação ter acontecido nos últimos meses de 1989, o que colocaria o valor da coleção em 60 milhões de cruzados novos.
Mas ao chegar em casa, a reação da família não foi das melhores ao descobrir que ele tinha vendido um terreno para comprar uma coleção de revistas. Sua esposa foi a única que não fez nenhum comentário, coisa que ele atribuiu a uma possível decepção com sua atitude. Triste com o ocorrido, Silvyo sentou com a coleção de revistas recém-compradas e começou a catalogar tudo. "Peguei um caderno desses pautados e escrevi: 'revistas à venda por lote mediante melhor oferta'. Aí saí numerando: 'Superman do 1 ao 33, editora Ebal, 1947...' Fui até onde deu para acabar a pauta do caderno, tirei xerox e mandei para os 20 maiores colecionadores que eu tinha contato". Três meses depois, ele tinha vendido cerca de 500 revistas das mais de 4 mil compradas e arrecadado 169 milhões de cruzados novos.
Chegou um momento em que a coleção de Silvyo se tornou um verdadeiro diferencial de mercado frente ao que era encontrado nas bancas. Foi ali, em 1993, que ele criou a Revistas & Cia., em um espaço alugado próximo a agência lotérica, e se tornou responsável pela primeira loja de quadrinhos da cidade.
Quem passar pela Avenida Pontes Vieira, apenas um quarteirão depois da Assembleia Legislativa do Ceará, certamente terá a atenção tomada pelos muros pintados da loja. A fachada é tomada por super-heróis que interagem com o ambiente do local. O Homem-Aranha solta suas teias, que na verdade são os fios de eletricidade vindos do poste na calçada, enquanto os raios do Ciclope atravessam canos de água e sobem a vidraça da entrada.
A arte original é obra do desenhista Al Rio. Hoje famoso pelos trabalhos no mercado americano, desenhando revistas para Marvel, DC Comics e Image, entre outras editoras, o quadrinista estava no começo da carreira, trabalhando na série em quadrinhos da Xuxa. O desenho foi posteriormente restaurado e sofreu algumas mudanças nos últimos anos, mas inspiração do trabalho original se mantém.
Nos primeiros anos, embora se declarasse uma loja de quadrinhos e eles, de fato, recebessem maior atenção por parte do proprietário, a Revistas e Cia. vendia revistas de todos os tipos, incluindo semanais jornalísticas. Com o tempo os quadrinhos foram ganhando importância e ficando com todo o espaço. Eram exatamente os colecionadores e leitores de quadrinhos que passaram a frequentar o local.
Mas o que é um grande diferencial da loja, o fato do proprietário entender do assunto e do mercado que envolve os quadrinhos, também pode ser negativo para o consumidor. O próprio Silvyo reconhece isso ao afirmar que ele cobra valores altos para revistas mais raras pois sabe o quanto elas valem, não importa o quanto digam que encontraram por um valor mais baixo em outro local.
Entrar na Revistas & Cia. é uma experiência difícil de ser reproduzida em qualquer outro local. Para um leitor de quadrinhos, a visita é obrigatória, nem que se limite a olhar com espanto o preço de edições mais antigas ou admirar o estado de conservação impecável do acervo. Uma parede de autógrafos revela nomes como Neil Gaiman, Alan Moore e Robert Crumb.
As pilhas de revistas parecem não ter fim. Nos fundos da loja, Silvyo abre as portas de todos os cômodos da antiga casa para mostrar a um grupo de clientes as centenas de pilhas de caixas, todas etiquetadas com as edições que guardam. No último espaço do terreno, já em um quarto atravessando o quintal, não é mais possível evitar as teias de aranha e o forte cheiro de mofo. Ele entra para procurar uma das revistas pedida por um cliente, mas alerta que o espaço não é apropriado para quem tiver alergia.
Estar nesse espaço causam um misto de admiração com o trabalho do colecionador por conseguir reunir todo aquele material com preocupação pelas condições de armazenamento dos quadrinhos. Embora organizadas em relação ao conteúdo, não consigo parar de pensar no estrago que uma pequena chama causaria naquela coleção de valor histórico incalculável. Silvyo diz já ter perdido muitas revistas em um alagamento anos atrás e hoje em dia guarda parte do material em outros três depósitos em outros locais da cidade.
"Você pode falar tudo da loja. Pode falar que está caindo aos pedaços, tudo. Mas você não tem o que falar de nenhuma revista daqui. 'Essa revista está mal acondicionada, essa revista está mal não sei o quê'. Eu priorizei isso aqui porque eu sou colecionador também e quando eu comprava as revistas em bancas eu queria que fosse desse jeito aqui". Ele é enfático ao dizer que ignora as críticas que recebe. Admite que muitas vezes pode ser grosseiro, mas acredita ter a razão ao se irritar com um cliente que manuseia os produtos de forma descuidada ou reclama dos preços de forma desrespeitosa.
Ao comentar sobre as mudanças do público durante as mais de duas décadas da loja, sua principal constatação é o aumento no público feminino. Se anteriormente, os homens eram maioria dos compradores, hoje ele acredita que as mulheres já correspondem a metade das clientes da loja. Foi uma mudança recente, percebida apenas nos últimos 10 anos, que chama a atenção de quem acompanha esse mercado desde os anos 1960.
Se há dificuldades em trabalhar com quadrinhos em Fortaleza. "Olha, infelizmente Fortaleza, e o Ceará como um todo, são um lugar muito difícil para se trabalhar com cultura ou arte". Silvyo diz ter nascido no local errado, embora nunca tenha deixado Fortaleza além dos anos que passou servindo o Exército. Mais do que leitor ou fã de quadrinhos, ele é um colecionador. E se alguém perguntar, dirá que valeu a pena. "Foi a minha vida e eu gosto".

Capítulo 6 -
Apenas um ano depois da inauguração da Revistas & Cia., outra loja de quadrinhos era inaugurada na cidade. A Fanzine começou a funcionar em 1990, como uma banca no Centro da cidade, mas foi apenas quatro anos depois que mudou para um espaço físico alugado e tomou o formato de loja.
"Começou como uma pequena banca bem próxima a praça do BNB", explica o responsável pelo negócio, José Alzir Fernandes. "Eu comecei a acumular quadrinhos já com esse intuito [de abrir a banca]. A Abril lançava os quadrinhos de super-heróis e depois juntava tudo em um combo, um pacote completo, com o preço bem baixo. Eu garimpava as bancas de revistas usadas e ia juntando".
O destaque dos quadrinhos na banca foi crescendo de forma gradativa e o interesse dos colecionadores também. Alzir diz que a maior parte do público era mesmo de pessoas que já compravam quadrinhos nas bancas e agora buscavam frequentar um espaço mais dedicado ao meio.
A loja foi citada por Fernanda Meireles como um dos principais pontos dos produtores de fanzines da cidade, que costumavam deixar seu material para ser vendido no local. Alzir explica que sempre teve uma relação aberta com os produtores locais, aceitando expor os zines. "A pessoa deixava consignado. Eu anotava nome, telefone e quantidade. Muita gente deixava consignado e nunca mais voltava. Quando voltavam, a gente tinha tudo anotado e acertava, mas muitos não voltavam". Muitos de fato estavam mais interessados em ter um local para deixar os zines à venda do que realmente interessados no retorno financeiro.
O público da época também era diferente. Era comum ver clientes pedindo indicações ou comprando quadrinhos sem saber muito bem qual seria o conteúdo da história. "O público hoje está mais seletivo, ele colhe mais opiniões, compra já sabendo o que é aquela publicação. Não tinha também uma qualidade tão boa e variada quanto hoje".
Assim como Silvyo, é possível perceber que Alzir está em um negócio que entende bem. O dono da Fanzine conversa animado sobre os valores de edições raras das primeiras edições das revistas Heróis da TV e Capitão América. Diz ele ter visto um colecionador cobrando R$150 por uma primeira edição da Heróis da TV com metade da capa rasgada, mas garante que nunca teria coragem de vender um produto naquele estado de conservação.
Por ficar localizada no Centro, a Fanzine tem peculiaridades exclusivas de comércios da região. O espaço é dividido com uma banquinha que vende porcas e parafusos, por exemplo, e as prateleiras chegam a ficar próximas da calçada da rua. Ao mesmo tempo, ficar no Centro significa garantir uma clientela fixa das pessoas que passam diariamente pela região.
Mais do que uma das primeiras lojas de quadrinhos da cidade, a Fanzine representa uma consolidação desse mercado em Fortaleza. Em 1994 a cidade contava com duas lojas especializadas em pontos distintos. Pela primeira vez, encontrar quadrinhos importados e ficar em dia com os mesmos lançamentos que aconteciam em São Paulo não era mais tão difícil. Foi um caminho longo para chegar até ali, mas agora as coisas finalmente tendiam a melhorar.
Também localizada no Centro, a revistaria Ravena se somou às outras duas no mercado de lojas de quadrinhos. Durante as décadas de 1990 e 2000 as três foram os principais pontos para se comprar quadrinhos na cidade.
Após o estabelecimento de lojas especializadas em quadrinhos, o próximo passo, dado com extrema naturalidade, seria a criação de um espaço público dedicado aos quadrinhos. O projeto para uma gibiteca pública surgiu das mãos de Paulo Amoreira, ex-aluno da Oficina de Quadrinhos da UFC.
Ainda na oficina, Paulo conta que os colegas conversavam sobre a vontade de ter um espaço onde tivessem acesso aos quadrinhos que tanto queriam ler. A ideia permaneceu na memória de Paulo até 2005, quando foi convidado para ser coordenador de fotografia e mídias digitais da Fundação de Arte, Cultura e Esporte de Fortaleza, ligada à Prefeitura de Fortaleza. "Foi a primeira vez, que eu saiba, que alguém de fato engajado na produção de quadrinhos da cidade assumia um cargo na gestão pública e eu vi aí uma oportunidade de utilizar a minha posição para poder contribuir com a cena local".
As discussões sobre o projeto com a comunidade de quadrinhos da cidade começaram em 2007. Ainda nessa época, existia a preocupação em montar a gibiteca em um local onde já funcionasse uma biblioteca pública, com o objetivo de transferir um pouco da credibilidade da literatura para os quadrinhos. A Biblioteca Pública Municipal Dolor Barreira, próxima ao Centro de Humanidades da UFC, já era indicada como local ideal.
O projeto entrou na dotação orçamentária de 2009, quando Paulo começou a planejar uma programação para manter o local movimentado. "Tudo foi estrategicamente pensado. Eu precisava assumir a coordenação dessas atividades, fundar um hábito, uma programação, e depois sair, para que os grupos da cidade assumissem a programação". A gibiteca foi criada e mostrava como o processo de consolidação dos quadrinhos em Fortaleza tinha acelerado.


Capítulo 7 – Feira Livre de Quadrinhos

Havia a possibilidade de chuva, tornada ainda mais provável pelo tempo nublado e os respingos que caíram durante toda a madrugada, mas ao amanhecer todas as nuvens haviam desaparecido e o clima foi se aproximando do calor insuportável conhecido do fortalezense. Às 14 horas os termômetros marcavam 30ºC. Quem chegava de carro era recebido por um rapaz de flanela na mão que indicava os locais onde era possível estacionar na sombra.
Já havia público na Praça Luiza Távora para a Feira Livre de Quadrinhos. No dia 10 de abril de 2016 foi realizada a sétima edição do evento, que começou em 2015 como uma forma de tentar oferecer quadrinhos a um preço mais baixo do que o praticado por livrarias e lojas especializadas. Nenhum dos vendedores com quem conversei tratava a venda dos produtos como parte essencial da renda, seguindo a ideia promovida pelo evento de se diferenciar dos espaços tradicionais.
Os quadrinhos estavam, em sua maioria, no chão, espalhados por cima de toalhas de mesa estendidas no gramado da praça, mas também poderiam ser encontrados dentro de mochilas abarrotadas ou empilhados em recipientes de plástico. O calor não desanimava os vendedores que anunciavam os preços e garantiam aos passantes que era impossível encontrar quadrinho por preço melhor que aquele.
No meio da feira, é possível ver um rapaz de óculos escuros e fala apressada. Douglas Rodrigues é o organizador do evento e passa por vários dos estandes improvisados, conversando com as pessoas no local. O estudante de 24 anos se tornou responsável pelo evento quase que por acaso. De acordo com Douglas, houveram duas edições organizadas por outras pessoas, mas elas não demonstraram interesse em continuar fazendo a feira. Quando ficou claro que alguém precisava tomar a frente da organização se quisessem continuar com o evento, foi ele quem ocupou esse espaço. "No dia seguinte [à segunda edição da feira] chegou o meu amigo para mim, 'Ah, Douglas, você tem uns amigos, conhece uma galera, um bom pessoal, por que você não faz isso?' E a galera me cobrava, sendo que eu não tinha nada a ver com a feira."
As cinco primeiras edições aconteceram na Praça da Gentilândia, no bairro do Benfica, próximo ao campus do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE) e à Reitoria da Universidade Federal do Ceará. A falta de segurança da região foi responsável pela mudança de local. "Como o público estava aumentando, a praça era pequena, e vinham outras pessoas, como mães com crianças, a gente precisava de mais segurança".
Houve a mudança para o local atual, na Praça Luíza Távora. O público não parava de crescer entre um evento e outro. Foi tanto que, na sexta edição, a feira recebeu a visita de um fiscal do Governo do Estado. A Feira já chamava a atenção de qualquer um que frequentasse a praça e seria necessário pedir autorização ao Governo para continuar funcionando. Douglas afirma que já entrou com a documentação necessária para que o evento possa continuar acontecendo e tenha uma frequência bimestral. Quando todos os trâmites legais estiverem finalizados, ele pretende melhorar a organização do evento, oferecendo mesas e cadeiras para os vendedores e criando material de divulgação.
A comunicação, aliás, é um trabalho feito todo no boca-a-boca e através do Facebook, com uma página e a divulgação das datas em grupos relacionados a quadrinhos. "Eu vou também em eventos para divulgar a feira. Fui em eventos na Livraria Cultura, no Mercado dos Pinhões..., mas é mais na internet, né? A internet ajudou demais nessa divulgação". Conversando com as pessoas que passeavam pelo local, era fácil perceber a importância da rede social na divulgação de eventos como esse. Todos afirmavam ter visto a data do evento no Facebook.

Naquela tarde a praça estava mais cheia do que de costume. A feira dividia o espaço onde costuma se instalar com duas turmas de cursos técnicos que faziam ensaios fotográficos de formatura no local. Os quadrinhos foram obrigados a dividir o gramado com os adereços coloridos que os estudantes vestiam ao posar para os fotógrafos, mas ainda havia espaço suficiente para todos e o grande volume de transeuntes não chegou a ser um problema para quem se instalava por ali.
De longe, era fácil perceber o produto que domina as vendas da feira. Os quadrinhos americanos, com destaque para as personagens de DC Comics, Marvel e Image, são maioria absoluta, seguidos pelos mangás. É possível encontrar algums exemplares de quadrinhos europeus mais populares, como Asterix ou Tintim, mas uma rápida olhada é o suficiente para ver que os super-heróis dominam quase todos os espaços.
Não é difícil encontrar explicação para esse fato. Os super-heróis são, há décadas, os carros-chefes das grandes editoras que apostam no mercado de quadrinhos do Brasil. Como o material vendido na feira costuma ter sido acumulado pelos colecionadores ao longo da vida é de se imaginar que os quadrinhos de ação vão ser maioria. E quem leva essas coleções para a feira tem os mais diversos motivos, embora um seja menção constante: falta espaço na casa para tanto quadrinho, ainda mais quando os filhos chegam e a família começa a crescer.
É o caso de Adriana Barros, 40 anos, que sentava em frente a uma toalha coberta por HQs do Wolverine e dos X-Men. A designer vendia os quadrinhos da coleção particular que começou a montar aos 18 anos. O motivo da venda ecoava por várias daquelas pessoas que levavam suas caixas de gibis antigos para a praça: falta de espaço físico.
"Quando a estante está cheia, a gente compra outra estante, que também começa a encher. Mas aí vem aquela história: vem os filhos e acaba o espaço. Como os meus filhos são adolescentes e estão na fase dos mangás, então essas HQs não são mais tão atrativas. Como mãe, eu libero espaço nas estantes para os mangás deles".
Para Adriana, o objetivo com a venda daqueles quadrinhos não é financeiro, mas sim o de passar para outras pessoas as histórias que a divertiram durante a juventude. "Quem vai pegar, vai gostar e guardar, vai ter aquele mesmo zelo que eu tive. Melhor do que deixar as revistas guardadas em uma caixa".
É uma posição parecida com a do funcionário público André Almeida, 36 anos, que também vendia quadrinhos no local. Ele ainda acrescenta: "Às vezes a gente compra uma HQ e não se familiariza muito com a história, aí passa para frente, encontra outra pessoa que gosta da história. Às vezes a gente troca também. Uma pessoa traz (uma HQ) e outra se interessa, aí gente faz uma troca. E também tem essa questão de guardar muita coisa em casa, que acaba atrapalhando".
O professor Stênio Lopes, 37 anos, é mais levando os quadrinhos colecionados ao longo da vida para a feira. "Quando eu falei que ia vender, minha mãe e minha esposa deram graças a Deus", ri. A quantidade de quadrinhos é tão grande que ele dá o número do celular para possíveis compradores enquanto procura em casa por alguma edição específica.
Mas nenhum desses vendedores estaria ali se não houvesse público para isso. Se o objetivo era unir novos e velhos leitores de quadrinhos no mesmo lugar, a ideia parece ter dado certo. Naquele mesmo dia, Stênio tinha recebido a visita de alguém pedindo dicas para começar a ler. "Eu só disse assim: 'Olha aí uma que tu gosta e começa'. Comigo foi desse jeito, porque se você for procurar o número um não vai dar certo. Pega e vai lendo". Além desses ele citou as crianças que, ao passear pelo local, demonstram curiosidade e acabam pedindo alguma coisa para a mãe ou o pai.
Esses novos leitores passeiam ao lado dos que Adriana cita serem a maioria dos seus clientes, pessoas de aproximadamente 40 anos que procuram um número especifico de alguma série para completar a coleção ou querem relembrar histórias que leram quando eram crianças. Vários também levam suas próprias coleções para a feira e usam o dinheiro da venda para comprar quadrinhos de outro.
Essa variedade de público beneficia até quem não está lá especificamente com quadrinhos. SVM* vendia romances de fantasia e ficção científica. Não haviam personagens ou escritores das HQs, mas ela vê uma relação entre as obras. "Quando fala em quadrinhos, a gente associa a geek. Geek gosta de outros assuntos também, então as vezes tem livros, como esse aqui do Diablo, que é baseado em um jogo. Ele acaba complementando. Geralmente quem compra quadrinhos também quer jogar. Está tudo relacionado, por ser o mesmo público alvo".
Agora já são 17h e o movimento começa a diminuir. Os vendedores vão baixando os preços e tentando levar de volta para casa o menor número possível de revistas. Muitas pessoas ainda passam pela praça, mas essa é a hora de começar a contar o dinheiro e guardar a mercadoria. Os vendedores de pipoca e algodão doce se aproximam do local onde um rapaz empolgado explica para outro as diferenças entre os vilões Thanos e Darkseid.
Começo a sentir certa frustração em não ter encontrado nenhum dos míticos novos leitores, tão citados por quase todos os frequentadores. São pessoas que supostamente não leem quadrinhos e enxergam na feira uma oportunidade de receber dicas de leituras.
Já quase desistindo, acompanho a compra de uma garota. Alana Barros tem 15 anos e folheava algumas edições de revistas mensais da Marvel. Conclui a transação levando as três primeiras edições de Guerra Civil, minissérie em sete partes com roteiro de Mark Millar, desenhos de Steve McNiven e cores de Morry Hollowell. É o primeiro quadrinho comprado por Alana. "Eu sempre gostei muito de super-heróis, de filmes da Marvel e da DC, e eu queria muito começar a ler quadrinhos, aí eu soube (pelo Facebook) que ia ter a feira e me interessei em começar a ler".
A escolha de Guerra Civil como primeiro quadrinho não foi à toa, já que faltava menos de um mês para a estreia de Capitão América: Guerra Civil, o 13º filme produzido pelo Marvel Studios. Embora os filmes da Marvel tomem muitas liberdades criativas em relação ao material original, a recomendação de arcos de história conhecidos para quem já gosta dos filmes é frequente. "O pessoal aqui é super legal. Eles indicam. Eu pretendo vir de novo".
O evento se encerra de fato, os quadrinhos ganharam mais uma leitora, e o objetivo parece ter sido alcançado.


Capítulo 8
Nos anos 2010 percebemos Fortaleza como uma cidade bem diferente daquela na qual as pessoas compravam quadrinhos na porta do cinema. Algumas mudanças ocorridas nos últimos anos são específicas da cidade, como o surgimento de mais lojas especializadas, como a Revistaria Art Cult e a MMG Comics, além da ampla seção dedicada aos quadrinhos na Livraria Cultura.
Outras dizem mais respeito aos avanços tecnológicos e ao espaço que o quadrinho atualmente ocupa. Com a profissionalização dos produtores, o nível de exigência cresceu consideravelmente se comparado com o material que víamos publicado nos anos 1990. Fanzines dificilmente podem se dar ao luxo de serem vendidos no mesmo formato de cópias baratas que foi sucesso há algumas décadas e livros pagos através de campanhas de financiamento coletivo recebem uma expectativa tão alta quanto lançamentos de editoras estabelecidas no mercado.
O acesso aos quadrinhos e à tecnologia necessária para fazê-los mudou, mas surgem outros problemas específicos da época. Sirlanney começou a se interessar e produzir quadrinhos em 2008. Cearense de Morada Nova, ela conta que não se interessou muito por quadrinhos enquanto morava em Fortaleza, por só ter contato com as revistas de super-heróis. Ao trabalhar em uma livraria no Rio de Janeiro foi que ela conheceu quadrinistas como o brasileiro Allan Sieber e a iraniana Marjane Satrapi.
"No Rio, eu sentia uma proximidade de ter uma cena lá. [...]. Tinha uma palestra com o André Dahmer, aí eu ia e conhecia outros quadrinistas. Essa coisa de conhecer os quadrinistas do Rio me colocou dentro do pensamento, da produção, a gente começou a fazer coisas juntos. Por isso esse momento de ir para o Rio foi importante e agora, quando voltei para o Ceará, eu vi que aqui tem algo semelhante".
Sirlanney é parte de uma nova geração de quadrinistas para os quais a publicação na internet faz muito mais sentido do que a distribuição de quadrinhos impressos. Como ela já escrevia em um blog pessoal, a publicação de quadrinhos em um ambiente parecido não foi difícil. Logo surgiram as parcerias, tanto no ambiente digital como nos fanzines impressos, que acabaram aumentando a audiência da Magra de Ruim, apelido que Sirlanney utilizou para batizar seu trabalho com quadrinhos.
É esse também o nome do primeiro livro publicado por ela, feito através de uma campanha de financiamento coletivo no Catarse. Inspirada pelas campanhas de outros quadrinistas, ela esperou até ter uma quantidade suficiente de quadrinhos feitos que rendessem uma coletânea. O público investiu na ideia e o livro foi impresso e distribuído.
"Quando você é impressa parece que você muda de patamar. Quadrinho na internet tem muita gente fazendo, mas quando você vai para o físico parece que ganha uma.... Eu cheguei em outros lugares que eu não chegava antes só com a internet. Por exemplo, fui indicada para o prêmio HQ Mix de melhor livro, sou convidada para vários lugares muito pela página, mas muito por eu ter feito um livro também. O impresso ainda tem um peso muito grande, um dia talvez não tenha mais, mas hoje acho que é importante".
Mas para a distribuição, a internet continua sendo o método mais barato e que menos exige do artista. Quando perguntada sobre tentar colocar o livro à venda em lojas ou livrarias da cidade, Sirlanney admite que essa parte do trabalho a cansa. "O que eu estou fazendo e gostando muito é quando alguma editora cuida de mim", conta rindo. "Tem duas editoras que estão cuidando de mim agora, então elas cuidam desses problemas porque, para mim, eu gosto de ficar na posição de artista".
Essa facilidade em conseguir dinheiro para financiar o trabalho de forma independente costuma vir atrelada ao lado negativo de ter que lidar com a burocracia e a logística de fabricar e centenas ou milhares de livros por todo o País. "Eu senti muito isso quando fiz o livro Magra de Ruim. Fiquei meses parada porque fiquei envolvida com a burocracia de ajeitar planilha, ajeitar endereço, falar com os Correios..."
É um relato semelhante ao de Talles Rodrigues, autor de Cortabundas – Pânico no José Walter, reportagem em quadrinhos que investiga uma série de crimes cometidos contra mulheres durante os anos 1980 no bairro José Walter, em Fortaleza. Lançada originalmente também no Catarse, o livro é atualmente parte do catálogo da Draco Editora, que também publica Mayara e Anabelle, outro trabalho de Talles.
"Hoje graças a Deus eu não preciso mais lidar com a distribuição do Cortabundas". O problema foi resolvido com um, mas as novas publicações continuam e com elas toda a logística de entrar em contato com pontos de venda para tentar colocar o livro à venda. "A gente chega lá e pergunta se eles querem, acerta uma porcentagem e aí assina".


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