Contaminações entre improvisação de dança e poesia

May 23, 2017 | Autor: Raquel Gouvêa | Categoria: Improvisation, Poesía, Poesia, Dança
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Contaminações entre improvisação de dança e poesia.

Raquel Valente de Gouvêa Doutorado em Educação – Laborarte Universidade Estadual de Campinas.

Resumo: Neste artigo expomos as contaminações entre devires-improvisadores e poéticos, entre criação de dança e criação de palavras e sentidos. Athikté, a musa-bailarina de Valéry, dialoga com a autora por meio da improvisação de dança, e deste encontro saltam afetos que co-movem o poeta Luis Serguilha. Todos são então transformados pelos poderes virtuais que circulam entre planos de composição distintos. A dança modifica a palavra e esta lhe reenvia novos sentidos. Metamorfose. Olhares atmosféricos se enamoram e se conectam pela potência dos afetos invisíveis tornados visíveis nos movimentos da dançarina, que se insinuam entre as palavras descodificadas do poeta. Improvisação. Não são mais os desenhos do corpo no espaço-tempo, nem a linearidade do discurso organizado, mas forças intensivas que circulam na imanência deste encontro, mudando a percepção da improvisadora e do poeta. Palavras-chave: Improvisação. Dança. Poesia.

A dança que nasce livre no corpo, que surge do encontro entre a música, o ambiente, as pessoas, ritmos, afetos...; dança não codificada, experimentada no calor da hora, vivida sem embaraço aqui e agora. Improvisação de dança. Uma dança que de alguma maneira se impõe como expressão singular daquele momento único, em que se faz ver por e nos movimentos dos dançarinos; momento de um agenciamento entre diferentes elementos que cria a atmosfera para a composição de muitos devires-bailarinos, que se entrecruzam e se inseminam, trocando suas singularidades dançando. Falo da improvisação, território de experimentações abertas, efêmero por natureza, que exige um estado especial de atenção do dançarino, uma entrega total de mente, corpo e espírito. E para com ela dialogar convido Athikté, a dançarina de Paul Valèry que, diante de Sócrates, Fedro e Erixímaco, dança o movimento, deixando-se impregnar de tal forma por ele, que leva sua seleta plateia a um quase arrebatamento. Exclama a dançarina, ao regressar de sua experiência extática: “Não sinto nada. Não estou morta. E contudo, não estou viva! (...) Eu estava em ti, ó movimento, e fora de todas as coisas” (Valéry, 1996, p.67). Estar no movimento e fora das coisas, experimentar o fluxo intensivo, compondo na imanência da dança, na instantaneidade do gesto impregnado pelos poderes da dança, ALEGRAR - nº16 - Dez/2015 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br

assim se expressa o devir-bailarina que leva Athikté a um estado de quase transe. José Gil, desvendando sentidos da dança que parece sair do corpo da musa grega como uma chama, escreve: Entrar no movimento dançado, entrar na roda, é deixar-se impregnar pelo movimento da atmosfera que transporta os corpos. O bailarino começa aí um primeiro devir, extrai-se ou arranca-se ao movimento comum e desposa o plano do movimento. (...) Mas o segundo devir da dança convoca poderes de metamorfose do corpo. Já não se trata de entrar na dança, mas de se constituir o seu próprio plano de imanência (só ou em grupo). (GIL, 2004, p. 196-197).

Mas como isto acontece? Como o dançarino, afetado intensivamente pelo movimento, constitui o plano de imanência da dança? Como penetrar no plano virtual dos movimentos e perceber forças que são imperceptíveis do ponto de vista da percepção comum, mas perceptíveis a partir de uma diferenciação na consciência que passa a capturar vibrações sutilíssimas, microscópicas? Uma consciência afetada pelas forças que se movem na atmosfera da dança está deslocada em seu campo de atenção, aberta aos poderes virtuais que mudam a percepção. Poderes virtuais que provocam a mudança na forma de perceber do dançarino no momento em que a dança se torna potente o bastante para criar as suas próprias linhas de composição e, a partir delas, segregar seu plano de imanência, como nos indica José Gil. A dança afirma a diferença como acontecimento de arte e o dançarino-improvisador, afetado em seu corpo pelas intensidades que engendram o plano de composição, dá-lhes forma, atualizando-as. Entrar no fluxo do movimento é, então, deixar-se penetrar pelas forças do plano de imanência da dança. Poderes moleculares, forças imperceptíveis, que não estão acessíveis à consciência que intencionalmente se dirige a um objeto, mas que se deixam ver quando a consciência perde seus contornos e limites, transbordando a si mesma impregnada pelas potências não-conscientes, intensidades virtualmente presentes na experiência da criação imediata da dança. Forças que co-movem e que afetam a percepção daqueles que se colocam em experimentação, em um devir-improvisador, aberto a diferentes contaminações. Como expressa o poeta português Luis Serguilha1, ao deixar-se afetar criativamente pelo devir-dança que perpassa minha pesquisa da improvisação:

1

Poema de Luis Serguilha criado a partir de sua leitura-inspiração da tese de doutorado da autora.

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Haja fluxos, paradoxalidades, roubos perceptivos que reinventem mundos em inúmeras possibiliddes (afecções corporais para além dos limites); cartografar vestígios das línguas-ATHIKTÉ, desmontar brinquedos com a veemência da primeira vez, cartografar as magicaturas com a epiderme intersticial da potência afectiva, com o inconsciente, sentir o vazamento do mundo das línguas dançantes não mensuráveis onde ninguém domina, nem pertence, porque somos atravessados por milhares de falas iniciantes sem dono, por desdobramentos atmosféricos invisíveis: somos lugares contaminados pelos olhares-olhantes, pela rotação institual da orfandade, pela transmutação da alegria desejante, por isso tentamos romper realidades instauradas, procurando incessantemente palavras descodificadas, os ecos das palavras sem habitações fixas, as forças caóticas-mutantes que nos fazem jogar com a fascinação do acaso, com as linhas compositivas que se abrem ao corpo-olhar: é neste nomadismo aberto ao desconhecido que a poesia-emdança jamais suportará a racionalização do entendimento, será sempre trangressiva e resistente a qualquer tipo de poder ou a qualquer justaposição____haja RAIAS da dança____!

O poeta penetra o plano de composição criado pelas palavras-moventes que lhes tocam, sensibilizado que é pelas forças virtuais da dança. As palavras improvisam sentidos, transgredindo e rompendo barreiras de significados petrificados, para fluírem por territórios que se deslocam continuamente entre uma ideia e outra, entre um gesto escrito no corpo e um sem sentido que o trespassa. As palavras contaminadas pelo devir-dança do poeta metamorfoseiam-se em palavras-movimento, palavras-corpo, então, e mais uma vez, é preciso desaprender os sentidos calcificados para assim capturar as intensidades poéticas que eclodem dos espaços infinitesimais entre a dança-palavra e o poeta-dançarino. Desapegar-se do vivido construído pela repetição mimética e apreender um plano composto de misturas e contágios, como afirma o filósofo: “Desaprender o visível para aprender um novo invisível: entre os dois, corte e descontinuidade. O instante em que a cisão faz nascer a forma inédita, instante de recusa e de invenção, é um momento de caos” (GIL, 2005, p. 137). Há o estranhamento, a incompreensão que provoca a mudança na percepção do improvisador e do poeta, assim como na do espectador e do leitor. Deste desconforto surge a mirada estética da improvisação: olhar somente o movimento que brota do corpo do dançarino e das palavras do poeta, olhar o fluxo nos entrelugares, aprender a ver o movimento e os sentidos-moventes, olhando-os diretamente em sua imanência. O movimento e os sentidos-outros-tornados-palavras são imperceptíveis por natureza, eles, assim como o devir – “(...) as puras relações de velocidade e lentidão, os puros afetos (...)”2- estão abaixo ou acima, aquém ou além do limiar da percepção comum. Entretanto, o movimento é imperceptível 2

DELEUZE, GUATTARI, 1997, p. 74.

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apenas em relação a este limiar, pois ele é algo que deve ser percebido, como afirmam Deleuze e Guattari: “(...) o imperceptível é também percipiendum”, aquilo que tem a potência de ser percebido, atualizado (1997, p. 75). A nova experiência transmuta a visão objetiva em olhar atmosférico. Este olhar não apenas vê figuras em movimento no espaço-tempo (e palavras coladas a significados), mas também não as percebe desconectadas de um fundo contínuo e dilatado, no qual deslizam os gestos virtuais (e os sentidos que emergem dos entrelugares do discurso poético) que comporão a dança-poema do improvisador. O olhar, espécie de linguagem não-verbal que surge no interior da visão (GIL, 2005, p.51), capta a forma intensiva, portanto, não se trata de dar forma a uma figura esculpida no corpo dançarino, mas de manifestar a forma de uma força, ou ainda, de um feixe de forças, desvelando o invisível no visível.

Referências Bibliográficas

VALERY, Paul. A alma e a dança e outros diálogos. Tradução Marcelo Coelho. Rio de Janeiro: Imago, 1996. 115p. GIL, José. Movimento total: o corpo e a dança. São Paulo: Iluminuras, 2004. 223p. ______. A imagem-nua e as pequenas percepções: Estética e Fenomenologia. Tradução Miguel Serras Pereira. Portugal, Lisboa: Relógio d’Água, 2ª Edição, 2005. 330p.

GOUVEA, Raquel. A improvisação de dança na (trans)formação do artista-aprendiz: uma reflexão nos entrelugares das Artes Cênicas, Filosofia e Educação. Tese (Doutorado). Universidade Estadual de Campinas, SP, Faculdade de Educação, 2012. 160p. SERGILHA, Luis. Poema sem título enviado à autora em 19 de maio de 2015. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Tradução Suely Rolnik. Volume 4. São Paulo: Editora 34, 1997. 170p.

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