CONTAR HISTÓRIAS, REFLECTIR SOBRE A LÍNGUA E CULTURA …

June 19, 2017 | Autor: Nelma Patela | Categoria: Creative Writing, Ontology, Holistic Education, Ontologia, Escritura
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Contar histórias, refleCtir sobre a língua e cultura …
à distância de um clique
Nelma Cristina Mesquita Gomes Patela
Universidade de Santiago de Compostela
[email protected]
Resumo: Neste artigo, propomos uma outra forma de recorrer às TIC, tendo em vista melhorar e agilizar o processo de ensino-aprendizagem. Não apostamos em promover o uso de materiais construídos pelos professores, mas antes em criar condições para que as TIC possam ser diretamente manejadas pelos alunos, estimulando-os a serem autores e actores de todo o processo, reforçando a sua centralidade. Nesse sentido, a nossa intenção é criar condições para a produção de materiais PELO aluno, considerando as TIC o meio para atingir o alvo perseguido: uma aprendizagem motivada e significativa. Acreditamos que as potencialidade das TIC e a sua popularidade entre os jovens constituem uma oportunidade a não perder. Procuramos desse modo despertar a curiosidade e a reflexão para os conteúdos programáticos, apostando na oportunidade de um envolvimento ao gosto do aluno, esperando que o conflito cognitivo surja e, consequentemente, a construção do conhecimento aconteça com maior pertinência, habilitando-o a formular um conceito, a explicar um processo. Eis, pois, a razão pela qual propomos a narração de histórias em ambiente digital como estratégia para implicar os alunos, partindo de situações que lhes são familiares, levando-os a fazer uso das potencialidades tecnológicas para o aprimoramento de competências linguísticas, nomeadamente na escrita. É nosso intento responder à questão que se nos coloca neste momento: Em que medida é que o aluno trabalha a escrita?
Introdução
Para quem nasceu no séc. XX, o novo milénio parece corresponder às prefigurações dos filmes de ficção científica: as mudanças são imensas, não apenas graças às novas tecnologias, que implicam novos saberes (e novos modos de saber), mas a toda uma conjuntura de novos conceitos e de novos paradigmas educacionais. As muralhas do mundo têm vindo a ruir e viver no século XXI implica adaptarmo-nos a uma sociedade cada vez mais abrangente, mais europeia e mundial, implica assumirmo-nos como cidadãos do mundo. Já no final do século passado, abrindo vias para o novo século, Delors afirmava que «Hoje em dia, grande parte do destino de cada um de nós, quer o queiramos quer não, joga-se num cenário em escala mundial.» (1998: 35). Os edifícios são, em muitos casos, os mesmos, mas os materiais, os alunos e o seu contexto são muito diferentes. Deparamo-nos com uma conjuntura que reúne, num mesmo tempo, tempos diversos e, em muitos aspectos, contraditórios; daí que se mantenha o insucesso escolar. Na verdade, a escola do século XXI segue modelos do século XIX, tem alunos do século XXI, consequentemente, nativos digitais, mas os seus docentes são do século XX. Se as viagens no tempo fossem permitidas, um jovem do século XIX teria certamente dificuldade em entender os automóveis, os telefones, os aviões, todo o mundo informático, as relações humanas e até mesmo a nova arquitectura. Contudo, estamos certas de que, entrando numa sala de aula, apesar de poder estranhar muitos objectos, não teria dificuldade em reconhecer o espaço.
Mudando de paradigma
O conceito de educação de massas fez surgir a necessidade de definir objectivos comuns para todos os aprendentes, criando então um paradigma educacional baseado num modelo em que o professor era o detentor do conhecimento e o aluno o seu reprodutor, independentemente de se seguir a perspectiva construtivista ou não: o saber partia unilateralmente do professor para o aluno, e o sucesso deste dependia da sua capacidade de reproduzir/debitar o «aprendido» (não forçosamente «apreendido»).

Figura I – Ensino tradicional: transmissão de conhecimentos

Uma revolução tecnológica crescente, a Terceira Vaga (Tofller, 1995), em que o conhecimento se torna valor, mais parece um maremoto que nos avassala. Existem, portanto, muitas razões para se repensar o que e o como ensinar, numa época em a informação se encontra à distância de um clique, em que parece, por vezes, que pouco poderá restar ao professor para ensinar. Importa, então, que o profissional do ensino redefina o seu papel e se assuma antes como orientador, guia, facilitador, como que retomando as funções inerentes à condução da criança – educere – e ao estímulo das suas capacidade inatas – educare (Lamas, 2009).
A aquisição da informação, dos dados, dependerá cada vez menos do professor. As tecnologias podem trazer hoje dados, imagens, resumos de forma rápida e atraente. O papel do professor – o papel principal – é ajudar o aluno a interpretar esses dados, a relacioná-los, a contextualizá-los. Aprender depende também do aluno, de que ele esteja pronto, maduro, para incorporar a real significação que essa informação tem para ele, para incorporá-la vivencialmente, emocionalmente. Enquanto a informação não fizer parte do contexto pessoal – intelectual e emocional – não se tornará verdadeiramente significativa, não será aprendida verdadeiramente. (Moran, 2007)
Assim sendo, acreditamos na necessidade de transformação do papel do professor; na nova era, cabe-lhe ajudar o aluno a interpretar esses dados, a relacioná-los, a (re)contextualizá-los, para por si o aluno construir o conhecimento em função das suas vivências, das suas necessidades. Na verdade, a aprendizagem depende do aluno, da sua preparação para incorporar a real significação que essa informação tem para ele, para incorporá-la cognitiva, vivencial e emocionalmente. Enquanto a informação não fizer parte do contexto pessoal, intelectual e emocional, não se tornará verdadeiramente significativa, não será verdadeiramente apre(e)ndida. A própria compreensão pessoal do mundo constrói-se cada vez mais, pela e na mediatização, através de recursos adequados. Por conseguinte, pensamos que cabe à escola fazer a ligação com as novas linguagens, em suas múltiplas configurações sígnicas, propiciando ao aluno o desenvolvimento do espírito crítico, com o objectivo de o levar a aprender a aprender, e a trabalhar o conhecimento como construção pessoal e social permanente. Estão pois aqui presentes os quatro eixos da educação: o saber, o saber fazer, o saber ser e o saber estar, prefigurando-se assim a educação como um tesouro a conquistar (Delors, 1998).
Eis, então, os novos papéis que o professor é desafiado a assumir: orientador, guia e facilitador. Sugerimos, pois, lógicas de ensino-aprendizagem inovadoras, para que o aluno, liberto de amarras, autónomo, mas sempre numa postura crítica e seleccionadora possa aceder a tudo o que qualquer pessoa queira disponibilizar, com ou sem critério de qualidade / seriedade. Logo, subscrevemos a necessidade de leitura crítica dos meios ou educação para os meios, defendida por Moran (2001), a necessidade de formação dos educadores, no sentido de melhor compreenderem o processo de troca, de informação-ocultamento-sedução, de dominarem os códigos polivalentes e suas mensagens.
Reconfigurando o uso das TIC – o aluno como protagonista do processo
O professor de hoje tem, de uma forma geral, plena consciência destas mudanças e, por esse motivo, usa as TIC na sua rotina diária. Contudo, é questionável até que ponto as coloca ao serviço da aprendizagem da leitura/escrita, da revisão, do aperfeiçoamento, da i(re)novação, da criação. De novo nos questionamos:
Terá o plano tecnológico resolvido o problema da falta de motivação dos alunos?
O domínio da expressão escrita, competência transversal e interdisciplinar, também terá de se adaptar, não se limitando o recurso às TIC a disponibilizar meros processadores textuais, com maiores ou menores variantes/apetrechos. A alvorada do século XXI já lá vai; estamos em plena luz do dia do novo milénio e as TIC deixaram há muito de ser, per se, inovadoras, motivadoras de novas aprendizagens. Powerpoints, webquests, cd roms, escolas virtuais, plataformas, quadros interactivos, webinars, entre outras ferramentas, fazem parte do quotidiano de grande parte das salas de aula, continuando todavia a serem usadas numa perspectiva de material produzido PARA o aluno e não POR ele produzido.
A nossa proposta é, então, procurar incentivar a uma possível forma de inverter o processo, colocando as TIC ao serviço da expressão escrita nas aulas de língua e, por que não, nas aulas de qualquer outra disciplina, favorecendo o desenvolvimento de competências sistémicas. Entendemos, então, no caso específico da língua materna ser fundamental implementar um ensino que não volte costas à era digital, antes encarando-a de frente e colocando as suas potencialidades ao serviço da aprendizagem, num contexto de verdadeira aldeia global. Uma escola para todos, na qual, todos sendo diferentes, cada um exige de cada professor a capacidade e a flexibilidade para inovar na linha de um paradigma que se quer e deseja possa proporcionar o êxito e a mudança, sem despersonalizar e sem aculturar (Leite, 2003).
Uso das TIC e melhoria dos resultados: uma realidade?
Como referimos, as TIC têm sido, pelo menos na Língua Portuguesa /Português, usadas como editores de texto e como nova ferramenta de exposição de conteúdos, receitas de escrita. Funcionam como um upgrade do lápis e do papel. É quase sempre algo de que o aluno dispõe, facultado pelo docente, que a elas recorre nas suas aulas ou para trabalhos que lhe propõe realizar. Usa-as como forma mais rápida e simples de (re)escrever, mas sempre ciente de que está a escrever um texto. Há um desenvolvimento exponencial da cultura digital, porém a tónica é colocada no texto e na instrução realizada pelo professor e o produto final será sempre um texto para ser lido, corrigido e avaliado pelo professor. E aí reside quase sempre o problema, isto é, no facto de se manter a estratégia da reprodução. Importa, por oposição, diremos, por inovação, apostar na iniciativa do aluno e na sua criatividade, estimulando-o para a inovação e criatividade, partindo das suas motivações, dos seus interesses, dos seus saberes, isto é, tirando partido das suas ideias, dos seus conhecimentos, das suas emoções. Importa, pois, jogar com a subjectividade, potenciando-a.
Ao professor compete encontrar a forma de envolver o aluno e de o conduzir à descoberta das suas capacidades inatas, dos seus dons, tantas vezes adormecidos, esquecidos. Por isso defendemos que o professor faça uso de uma pedagogia que inverta os papéis, isto é, que ele aceite os alunos já não como receptáculos (já deixaram de ser assim encarados, pelo menos em teoria, há algumas décadas), mas como seres verdadeiramente activos na sua aprendizagem, inspirados e envolvidos para fazer germinar ideias, métodos e técnicas, desenvolver as suas competências, construir conhecimentos primeiro pelo prazer de os construir, depois pela necessidade de dar resposta aos reptos que o desempenho escolar e/ou profissional lhes lança. Na verdade, «Liderança é a capacidade de levar os outros a fazer com gosto aquilo que não querem» (Harry Truman, 33º Presidente dos EUA). E uma das formas de o conseguir poderá ser levar os alunos a serem eles próprios autores e atores dos materiais digitais – deixá-los a eles criá-los e deles tirarem partido para as suas aprendizagens.
O recurso às Histórias Digitais
Ao apresentarmos exemplos reais de utilização da metodologia conhecida por Digital Stories (Histórias Digitais, adiante HD) nas aulas de Português – língua materna, esperamos motivar educadores e professores de diversas áreas disciplinares a experimentar esta metodologia. No manejar das tecnologias; na implicação no processo por parte do aluno; na interacção com os demais intervenientes e com os contextos em que se situam; numa caminhada que implica uma educação holística, aprendendo a aprender, experiencialmente e autonomamente, o desenvolvimento de competências acontece, cremos, de forma natural.
Pela nossa experiência, consideramos que a metodologia das HD pode ser utilizada desde a mais tenra idade. Acreditamos que a narração de histórias de vida em suporte digital, como tarefa a desenvolver pelos alunos, pode ser o estímulo à criatividade, uma via para o sucesso, integrando as potencialidades tecnológicas ao serviço da escrita.

Figura II – Alunas do 10º estimulam crianças a criar uma história


Uma metodologia inovadora
Por que recorrer às histórias em suporte digital? Nas palavras de Porter (2004: Introduction), "Digital Storytelling takes the ancient art of oral storytelling and engages a palette of technical tools to weave personal tales using images, graphics, music, and sound mixed together with the author's own story voice."
O nome desta metodologia é assaz elucidativo: contar histórias em suporte digital, mais concretamente sob o formato de pequeno filme. Trata-se de fazer florescer a aprendizagem e o desenvolvimento da competência da escrita, a partir da comunhão entre o ancestral hábito de contar histórias e a era digital. Ancestral e, aparentemente, gravado no nosso ADN: todos, mas principalmente as crianças e os jovens, gostam de ouvir histórias e desde sempre houve quem as contasse, por puro deleite, como entretenimento, e com uma função educativa. As parábolas bíblicas são disso um bom exemplo e também os primeiros filósofos recorriam à técnica narrativa como forma de incentivar à problematização. Aplicando este princípio à educação, comungamos da opinião de Kieran Egan, que apresenta uma estratégia alternativa de "planificar o ensino que nos encoraja a perspectivar as aulas mais como boas histórias para serem contadas do que como conjuntos de objectivos a atingir" (Egan, 1994: 14). De acordo com o autor, uma história
(...) é um 'universal cultural'; toda a gente, em todos os tempos e lugares, gosta de histórias. A história não é, então, apenas uma vulgar forma de distracção; ela reflecte uma estrutura essencial e poderosa através da qual atribuímos sentido ao mundo e à experiência. (Egan, 1994: 15)
A estratégia que propõe baseia-se em princípios que estimulam a imaginação do aluno, que o envolvem em realidades enriquecedoras e significativas. Aliás, as histórias ajudam a compreender a vida actual, a vida das sociedades em que as crianças se integram, mas também a de povos de outros lugares e tempos.
Mas o professor de hoje, e se calhar o de há muito tempo, sabe que mandar escrever um texto vai contra tudo o que grande parte dos alunos gosta de fazer, mesmo que em suporte informático. Sabe também que realizar uma actividade contrariado de pouco serve. Portanto, mais do que mandar escrever em suporte de papel ou digital, propomos as histórias digitais como apelo ao imaginário, como desafio à criatividade.

Figura III – Alunas do 7º dão azo à criatividade "Cá se fazem, cá se pagam" é o nome desta HD


Para além de também servir para dar voz àqueles que muitas vezes não participam e assim torná-los conscientes do seu contributo, da sua importância para o trabalho, acreditamos que esta metodologia contribui para a redução do abandono e da fraca assiduidade, já que um projecto que envolva dois ou três alunos torna cada um deles mais responsável e estimula a colaboração entre pares.
É na medida em que contribui largamente para desenvolver a competência da escrita que aqui recorremos a esta estratégia, que não serve apenas como forma de motivação; é o isco para desencadear o processo de escrita, revisão e divulgação. Tendo em atenção as palavras de Pablo Neruda: «Escrever é fácil. Começa-se com maiúscula e termina-se com ponto. No meio, coloca-se as ideias.», implicamo-nos em criar condições que suscitem as ideias a colocar no 'meio'.
A título exemplificativo, imaginemos estes cenários:
O professor pede aos alunos para, individualmente ou em pares, escreverem uma história, um texto narrativo baseado, por exemplo, num provérbio; diz-lhes que podem usar imagens e recorrer ao computador e à internet, como bem entenderem.
O professor solicita, em pares ou pequenos grupos, uma história digital.
Relativamente ao caso apresentado na alínea i), as reacções prováveis são interjeições e manifestações de desagrado por parte dos alunos. E, depois de realizar a tarefa, há geralmente resistência à revisão do texto. Já pelo que se refere à proposta apresentada na alínea ii), o aluno sabe que o produto do seu trabalho será um pequeno filme (até cerca de cinco minutos) com música, imagens, processos editoriais como zoom e efeitos vários, bem como a sua própria voz e a do seu parceiro. Leia-se, no termo voz, não apenas a voz física mas também a voz como metáfora da expressão de vivências pessoais – dar voz à vivência do 'eu'. Para além disso, o aluno sabe que poderá partilhar o seu trabalho no mundo virtual, através do Youtube, Facebook, blogues, etc. Partilhar um pouco, como o faziam os seus antepassados, ao atirar garrafas com mensagens ao mar, mas com a certeza de poderem ter uma audiência mais alargada; o desejo de partilhar, de comunicar com o outro, é profundamente humano. O aluno sabe, ainda, que a sua audiência será tanto maior, em princípio, quanto mais interessante for a sua história. É certo que ao longo do processo o professor também tece considerações e sugere correcções ao nível da coerência, da coesão, da especificidade do saber, do saber fazer; estimula o saber ser e o saber estar; reforça o saber (con)viver. Passamos, então da subjectividade à intersubjectividade, potenciando a objectividade, isto é, a construção do conhecimento, na e pela partilha, no confronto de ideias, na troca de opiniões que se vão transformando e abrindo vias à construção de conhecimentos, ao desenvolvimento de competências, ao reforço do relacionamento, à aprendizagem da convivência, no e pelo respeito das ideias do outro. Com efeito, a construção do saber recorre à correcção, agora simplificada pelas facilidades de edição que a ferramenta proporciona, atenuando a noção de erro: o aluno não se sente incapaz face às sugestões do(s) parceiro(s), sugestões que aceita naturalmente como processo de aperfeiçoamento; o feedback e o feedforward surgem naturalmente, na e pela interacção.
Esta metodologia foi, no ano lectivo 2012-2013, implementada em duas turmas de 7º ano (7ºA e 7ºB) e numa turma de ensino secundário profissional (10º ano 11ª turma). No terceiro ciclo, esta actividade incluímo-la no conteúdo «Texto narrativo», e foi levada a cabo no primeiro e no segundo período. Já no 10º ano, organizado por módulos, a metodologia foi aplicada
no módulo I – Texto autobiográfico;
no módulo III – Textos dos media I, tendo havido entrevistas imaginárias a Camões e a Vasco da Gama, e ainda HD sobre a própria metodologia, num processo de metacognição;
no módulo V – Textos dos media II, recorrendo à metodologia e apelando ao sentido crítico, focando, entre outras temáticas, o bullying e as barreiras para pessoas com deficiência.
Operacionalização
Inicialmente, da interacção professora-alunos-professora e alunos-alunos surgiram dúvidas que se consubstanciaram nas seguintes questões:
i) Como narrar de forma a cativar?
ii) Qual o melhor tipo de história para o meu projecto?
iii) Como o organizar – Em analepse e/ou em prolepse? Seguindo uma ordem cronológica?
iv) De que forma poderei prender a atenção da audiência desde o início? Começando com uma questão dramática? Algo chocante?
v) Qual é o meu/nosso ponto de vista?
Foi ainda sublinhada a necessidade de recorrer a uma linguagem viva, coloquial, de juntar as emoções não apenas na voz e no texto, mas também na música e até nas imagens. Estas deveriam ser criteriosamente escolhidas, não se limitando a ilustrar o texto, mas antes a comentá-lo, fugindo aos sentidos conotativos.
Um bom exemplo projectado foi True America – http://www.youtube.com/watch?v=gRR0-7EFhlc), no qual se destaca a metáfora, bem como um ritmo equilibrado, nem demasiado lento nem demasiado rápido, e enriquecido com efeitos como o silêncio, o zoom a mudança (ou não) de som. O referido vídeo começa apenas com voz: uma reflexão e uma analepse. Vêm depois imagens, fala e música: o hino dos EUA é usado numa versão menos alegre, diríamos quase dramática, assim conferindo este pendor à história narrada. As cores da bandeira confundem-se com as do céu, mas também com as da bebida mais associada a esse país, a Coca-cola, e o cliché da tão apregoada liberdade desse país dos sonhos é desmontado através de imagens daqueles que são considerados ilegais. O efeito pretendido é conseguido:
Figura IV – imagem retirada do vídeo True America
Sabendo da natural resistência dos alunos a actividades de escrita e, sobretudo, à planificação da mesma, apenas lhes foi pedido que gravassem os vídeos, sendo-lhes garantido que não seria observado nenhum documento de suporte. Numa primeira fase, não houve qualquer tipo de guião nem mesmo de grelha: as avaliações foram apenas feitas oralmente, discutidas em sala de aula, com comentários sobre a pragmática, a estrutura, entre outros aspectos. Tratou-se de uma estratégia repetido ao longo do ano. Foram depois os alunos que começaram a elaborar os seus próprios storyboard (re)fazendo, (re)vendo, (re)criando, aperfeiçoando. Na verdade, estes funcionaram como verdadeiros guiões. Apercebemo-nos que os alunos começaram a construí-los naturalmente, pois, para eles, faziam todo o sentido.
Figuras V, VI, VII, VIII e IX – Alunos planificam / constroem guião da HD
Na verdade, estes funcionaram como verdadeiros guiões. Apercebemo-nos que os alunos começaram a construí-los naturalmente, pois, para eles, faziam todo o sentido.
Reflexões
Parece-nos pertinente aferir até que ponto esta é uma actividade oral, escrita, ou que combina estas duas competências.
- Em que medida o aluno trabalha a escrita?
Esta não será antes uma actividade oral?
Oralidade e escrita são práticas e usos da língua com características próprias, mas não suficientemente opostas para caracterizar dois sistemas linguísticos nem uma dicotomia. Ambas permitem a construção de textos coesos e coerentes, ambas permitem a elaboração de raciocínios abstratos e exposições formais e informais, variações estilísticas, sociais, dialéticas e assim por diante, (Marcuschi, 2001: 17)
Com as histórias digitais, a dimensão sensorial e autoral – o dar voz à vivência do 'eu' – sobre a narrativa produzida é maior, permitindo uma relação individualizada sobre recursos como imagens, sons, legendas e textos, possibilitado maior fidelidade às intenções comunicativas pretendidas e elevando qualquer amador ao estatuto de «produtor de vídeos», «cineasta iniciante», ou mais precisamente, «escritor produtor» de narrativas digitais.
Mais do que permitir aprender fazendo, aprender fazendo em conjunto (na medida em que um guião a dois implica conciliar dois pontos de vista diferentes) a gerir conflitos, este processo leva o aluno a investir na sua aprendizagem, a questioná-la, a adequá-la ao seu perfil. Tudo isto os incita a descobrir de que forma aprendem (melhor); assim, estaremos também a propiciar o aprender a aprender, isto, é a desencadear o processo da metacognição. A publicação do trabalho motiva-os a implicar-se, a querer usar as palavras certas, a rever a sua força ilocutória, a reformular, portanto, o texto as vezes que forem necessárias. Usando a diversidade dos recursos mediáticos e das novas tecnologias de informação com a finalidade de despertar a curiosidade e a reflexão, possibilitando, através do contacto com o novo, o aparecimento do conflito cognitivo a partir do qual o aluno pode desenvolver saberes que o habilitem a explicar um processo e a formular um conceito (Van Dick, 1992). Em vez de ter um professor a convidá-lo a aperfeiçoar o texto, é o aluno quem vai à procura do aprimoramento, da singularidade, da criatividade e, assim, quando sente necessidade, solicita a sua ajuda, levando à prática a máxima contida no provérbio chinês: Diz-me e eu esquecerei, ensina-me e eu lembrar-me-ei, envolve-me e eu aprenderei, onde a importância da envolvência para/na aprendizagem, assume destaque.
A elaboração de histórias digitais convoca várias habilidades e competências, bem como as inteligências múltiplas (Gardner, 1993):
propicia o trabalho colaborativo, durante todo o processo, suscitando o envolvimento, a nível das inteligências intra e interpessoal;
enfatiza a inteligência linguística, ao elaborar o roteiro da história;
envolve a inteligência corporal, com a possibilidade de gravar em vídeo trechos da história;
convoca a inteligência musical, devido à necessidade de reflectir sobre os sons adequados, ao criar o guião;
apela à inteligência espacial, para elaborar o cenário e, ao trabalhar em grupos, os alunos aprenderão também uns com os outros, podendo partir das habilidades que já possuem e ao mesmo tempo despertarem o interesse por outras áreas.
Conclusão
Finalizando, diremos que metodologia Digital Storytelling – criação de HD – possibilita a qualquer jovem contar histórias num processo lúdico, criativo e interactivo, sem as barreiras e limitações habitualmente associadas à produção de narrativas. O professor proporciona, pois, pela estratégia eleita, condições que induzem ao dar voz à vivência do 'eu'; a(s) diferente(s) subjectividade(s) consolidam-se pelo autoconhecimento e pela interacção gerada entre os diferentes sujeitos – o saber ser e o saber estar aprimora-se, dando azo a que a intersubjectividade cada vez mais impere, isto é, que o saber (con)viver se reforce.
Passando das ideias, do pensamento organizado, para as palavras escritas, reflectidas, comentadas e enriquecidas com som e imagem, estas não se evaporam; são partilhadas, perduram mesmo que em suporte oral; vislumbra-se uma caminhada hesitante de início, que suavemente se vai tornando mais firme, cruzando outros caminhos. «Desvendadas a noite e a cerração, / (…) ergue-se a encosta / Em arvores onde o Longe nada tinha; / Mais perto, abre-se a terra em sons e cores: / (…) Onde era só, de longe a abstracta linha.» (Pessoa, 1986, p. 121).
Em síntese, verificou-se com este trabalho, uma melhoria de competências
na capacidade de pesquisa – nas entrevistas às personagens históricas: não foi "pedido" aos alunos que pesquisassem, foram eles que sentiram essa necessidade;
na escrita – formulando um ponto de vista e desenvolvendo um guião, sempre ao serviço da pragmática comunicativa;
na organização e gestão do projecto, na resolução de problemas, na tomada de decisões para ultrapassar obstáculos em qualquer fase do projecto e, consequentemente, das capacidades interpessoais, ao trabalhar em grupo e determinando papéis para os membros do grupo;
no modo de apresentação – decisão do tipo de apresentação a realizar ao público;
na técnica de entrevista – os alunos aprofundaram conhecimentos sobre a técnica da entrevista e sobre os "entrevistados" bem como nas técnicas narrativas;
na capacidade de avaliação – ganhar experiência a criticar o seu próprio ou o trabalho de outrem.
Importa destacar que não se trata de uma metodologia destinada apenas a casos específicos: pode ser aplicada em qualquer nível do ensino, fazendo articular a educação formal e a não formal, nas línguas estrangeiras, para apresentar um pensador, um escritor, um artista, um acontecimento histórico; na História, nas Ciências, enfim, em qualquer disciplina. Oferece todo um manancial de possibilidades conducentes às aprendizagens significativas.
As crianças, os jovens e os adultos adoram ouvir histórias, mas também gostam de contar histórias (reais ou fictícias). Contudo, numa sala de aula de Língua Portuguesa, nem sempre vemos professores e alunos a criar histórias, nem mesmo as puramente textuais. Estuda-se ainda, sobretudo, gramática, regras, incide-se nos conteúdos programáticos, em vez de procurarmos vias sedutoras que nos levem a eles de forma natural, pela descoberta e pelo gozo de dominar a língua de ser competente na comunicação. Esse estudo reduz os conteúdos apenas a objecto – um fim em si – e esquece a dimensão que podem ter de recurso – o meio para atingir um fim, e o carácter transversal que a língua assume e a sua importância para outras aprendizagens. Reconhecemos ser necessário não esquecer os conteúdos programáticos, mas importa que procuremos que resultem da interacção meio/fim, potenciando a aprendizagem, fazendo que não apenas o saber esteja em causa, mas também o saber fazer, o saber ser e o saber estar. Invertendo a situação e tomando por objecto o que as crianças e/ou jovens querem contar, focando a realidade que a elas/eles interessa, podemos partir da transdisciplinaridade, que os envolve, recorrer à interdisciplinaridade, que implica as diferentes disciplinas do seu currículo, não ignorando a disciplina em causa – a Língua portuguesa –, conhecendo as suas características, a sua virtuosidade, a cultura que nela vive e por ela se propaga, o(s) sujeito(s) que nela e por ela se exprime(m).
Concluímos dizendo que, hoje em dia, a tecnologia digital pode ser aproveitada de forma criativa e inovadora. Toda a gente tem histórias para contar, sobre si, sobre os seus parentes e amigos, a sua família, os seus animais favoritos, o seu espaço próprio – o quarto –, a sua comunidade, a sua cidade, o seu país. A aprendizagem de temas relacionados com a Linguagem, a Geografia, a História, as Ciências, entre outras disciplinas, pode assumir uma nova dimensão, tornando-se contextualizada e contextualizadora na/da experiência de vida e nos/dos interesses dos alunos, fazendo realmente sentido. Não devemos esquecer que «Ser bom professor consiste em adivinhar a maneira de levar todos os alunos a estar interessados; a não se lembrarem de que lá fora é melhor» (Gama, 1986: 14)
Com Gabriel Garcia Márquez terminamos a nossa exposição, recorrendo à explicação que apresenta para o título da sua autobiografia Vivir para Contarla dizendo: «A nossa vida não é aquela que vivemos, mas, sim, aquela que recordamos, e como a recordamos, para poder contar sua história».

Figuras X – Alunas do 7º ano recomendam o recurso às HD

Referências bibliográficas
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