CONTEÚDO E QUALIDADE DO LIVRO DIDÁTICO DE HISTÓRIA: BRASIL E ÁFRICA DO SUL EM PERSPECTIVA COMPARADA (1985-2007)

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CONTEÚDO E QUALIDADE DO LIVRO DIDÁTICO DE HISTÓRIA: BRASÍL E ÁFRICA DO SUL EM PERSPECTIVA COMPARADA (1985-2007) Itamar Freitas [email protected]

Quem acompanhou os meus textos postados em dezembro conhece a minha posição sobre a Base Nacional Curricular Comum (BNCC): sou favorável à instituição da BNCC e, consequentemente, à prescrição de conteúdos mínimos obrigatórios de história para todos os alunos da escolarização básica. Sabe também que sou inimigo número dois da enciclopédica matriz do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). Neste fim de semana, foi estimulado a falar sobre a qualidade do livro didático na África do Sul e aproveitei para estabelecer algumas comparações com o Brasil. Uma delas incide sobre a reconfiguração do livro didático de história, ação operada a partir da (hoje) improvável instituição, em 2017, da referida BNCC. Mas o que tem a ver a qualidade do livro didático com a BNCC? O que tem a ver a África do Sul com o Brasil? Os países de política educacional centralizada e de Estado forte, como a África do Sul, e outros designados como “emergentes”, geralmente, constroem currículos obrigatórios de circulação nacional. E tais currículos, de diferentes formas, evidentemente, orientam a estrutura e fornecem critérios de qualidade para o livro didático. A lástima é que a discussão sobre a qualidade – grau positivo ou negativo de excelência (Dourado, 2007) –, apesar de considerar a arquitetura da informação, a natureza material da obra, o potencial em termos de formação continuada, os aspectos estéticos etc., hipervaloriza as questões de conteúdo. Dizendo de outro modo – e abonado por diferentes pesquisas sobre o tema, envolvendo a experiência da Espanha, dos Estados Unidos e da França, por exemplo –, “o que ensinar” é considerado o principal balizador do bom ou do mal livro didático. Assim, livro é adequado ou “presta um desserviço à nação” – segundo jornalistas, parlamentares, autoridades religiosas e até mesmo professores – quando reproduz ou omite acontecimentos que podem persuadir os leitores sobre essa ou aquela ideologia, crença ou teoria explicativa.

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Por isso, cedamos à tradição (à realidade) e discutamos a questão da qualidade a partir do conteúdo acontecimental veiculado nos livros didáticos do Brasil e da África do Sul. Mas, discutamos tal relação a partir da hipotética adoção brasileira de uma BNCC. Na África do Sul, a qualidade do livro didático modifica-se com a instauração de um novo regime de historicidade: a eleição de Mandela e o fim do Apartheid (1994). Fundados sobre uma Constituição que prega o respeito a “unidade no diverso” e à “democracia” (South Afrique, 2015), os livros didáticos de história refazem a narrativa racista (evolucionista/hierarquizada) e excepcionalista dos afrikaners, mediante dois esquemas (Capentier, 2000). O primeiro, universalista, tenta convencer os alunos sobre a unicidade humana (todos somos homo sapiens). A estratégia é não tocar nas diferenças étnicas e sim conceder o papel de protagonista a indivíduos marcantes na recente história do país – negros, brancos, índios, mestiços, entre outros. Ações atribuídas aos brancos do século XX, como a mineração, estão situadas na longa e contínua duração da história do continente africano, corrigindo, assim, a suposta originalidade dos povos brancos que estiveram no poder até 1994. O segundo tipo renova a proposta afrikaner que submete as classificações étnicas às tipologias do modo de produção. Ao contar a experiência do reino de Zimbabwe, por exemplo, os autores referem-se “às populações da idade do ferro e não de uma entidade étnica particular” (Carpentier, 2000, p. 297). Para Claude Carpentier, que analisa, manuais destinados os alunos dos anos iniciais da escolarização básica, a qualidade do livro didático de história mudou para melhor. (Veja no QUIZ como o tema “Dinâmica do poder nos anos 1990 do século passado na África do Sul” é abordado no caderno de atividades do livro didático Turning Points in History, produzido pelo Institute for Justice and Reconciliation e destinado à aprendizagem histórica nos anos finais). http://www.youtube.com/watch?v=cPqJtzbCvCI Tal mudança, entretanto, ainda está distante de cumprir a constituição. Se há manuais que formam crianças dentro da unidade do diverso, a corrida ao liberalismo econômico por parte do Estado, governo e povo impede que a primeira proposta, fruto do novo regime de historicidade – a igualdade social – seja cumprida. Isso ocorre porque os livros, também instrumentos de consciência histórica e de orientação para a vida prática – como bem explicita, entre outros, Jörn Rüsen (2012),

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não estimulam o diálogo e a cooperação entre os diferentes. Além disso, poderia complementar, a “curvatura da vara” que enverga em benefício das representações de negros no livro didático, já dá sinais de que a literatura escolar estimula a formação de estereótipos negativos em relação aos “brancos” (Engelbrecht, 2008). No Brasil – escrevi recentemente (Freitas, 2014) –, o período de 1985-1988 não é baliza consensual, mas pode, hipoteticamente, ser considerado o marco de um novo presente. Aqui também os currículos de história foram entendidos como instrumentos privilegiados no trabalho de soerguimento da sociedade democrática, sobretudo após a promulgação da Constituição Cidadã. Contudo, as fraturas sociais brasileiras não ocorreram em graus idênticos aos da África do Sul, pós 1984. Da mesma forma, as vozes historiadoras contrárias aos governos militares não estavam tão cerceadas no ambiente universitário, nem a história escolar transformou-se em matéria das ciências ou dos estudos sociais (ao contrário, autonomizou-se como gênero de livro didático em 1997). Consideradas algumas versões marxistas sobre o processo histórico brasileiro, podemos afirmar que, nesse mesmo período, muitos “ismos” de esquerda ocuparam significativos espaços nas salas de aula, nos ambientes de pesquisa acadêmica e nos impressos escolares. A solução final, em termos de formatação de novos currículos para a educação básica e dos respectivos livros didáticos de história não foi a construção de um documento nacional. No Brasil, ganhou força a elaboração de documentos estaduais que refletiram disputas coetâneas (e, até, anteriores) à Abertura, entre os vários agentes que expressavam a renovação política, no Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, por exemplo. Dizendo de outro modo, os governos militares, na política educacional brasileira, não instituíram um Apartheid e a ideia de documento curricular nacional, no Brasil, pode ter sido entendida à época (e hoje, mais ainda), como um (anacrônico) ranço autoritário. Em suma, currículo nacional, na África do Sul, fornece um sopro de vida para grupos sociais altamente segregados. No Brasil, segundo alguns intelectuais, currículo nacional representa o suspiro de morte da experiência de grupos sociais classificados como já unificados (pela cordialidade, pelo “jeitinho”, pelo amor ao verde e amarelo de Getúlio Vargas, pelo futebol etc. etc.). O que a comparação Brasil-África do Sul nos oferece como conclusões provisórias é a ideia de que a responsabilidade imputada aos autores/editores pela má qualidade (em

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termos de conteúdo) do livro didático de história pode e deve ser ponderada. Autores/editores não possuem as asas de Gabriel, é verdade. Mas eles escrevem para professores e professores da educação básica não são, no Brasil, poços de erudição com os quais sonham a maioria dos orientadores da pós-graduação em história. Outra conclusão: o governo que assume várias das tarefas do Estado brasileiro – presidencialista de coalisão –, refém de uma mídia aberta que forma a opinião da maior parte da população, refém de grande parte do legislativo que se arma para enfrentar o fim de uma suposta era petista, parece ser incapaz de apontar uma diretriz e de fazê-la aplicar, por exemplo, sobre São Paulo, quanto mais concretizar uma BNCC que reconfigure os livros didáticos de história. Por fim, os pouco mais de 2000 professores universitários de história, que atuam em instituições públicas e formam parte dos futuros docentes da escolarização básica, não demonstram apetite para discutir questões desse tipo no interior dos seus colegiados ou associações de classe. E ficamos assim, jogando pedras uns aos outros, esperando que a melhoria da qualidade do livro didático caia dos céus ou se imponha “historicamente”, quem sabe, pela "colorida" sabedoria das ruas. Para citar este texto: FREITAS, Itamar. Conteúdo e qualidade do livro didático de história: Brasil e África do Sul em perspectiva comparada (1985-2007). Brasília, 26 abr. 2015. Disponível em: http://didaticadahistoria.com/2015/04/26/conteudo-e-qualidade-do-livro-didatico-dehistoria-brasil-e-africa-do-sul-em-perspectiva-comparada-1985-2007/

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Referências DOURADO, Luiz Fernando (Coord.), OLIVEIRA, João Ferreira de, SANTOS, Catarina de Almeida. A qualidade da educação: conceitos e definições. Brasília: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, 2007. ENGELBRECHT, Aalta. The impacto of role reversal in representational practices in history textbooks after Apartheid. Sout African Journal of Education, v. 28, p. 519-541, 2008. CARPENTIER, Claude. Rupture politique et enseignement d l’histoire em Afrique du Sud: les manuels de l’enseignement primaire. Revue Internationale de l’Education. V. 46, n. 3-4, p. 283-303, jul. 2000. RÜSEN, Jörn. Jörn Rüsen e o ensino de história. Curitiba: Editora da UFPR, 2010. (Organização de Maria Auxiliadora Smith, Isabel Barca e Estevão de Rezende Martins). SOUTH AFRICA, REPUBLIQUE. Taking Democracy to the Classroom: 2015 Schools Democracy Week begins, 20 April 2015. Department Basic Education. Disponível em: http://www.education.gov.za/Newsroom/MediaReleases/tabid/347/ctl/Details/mid/1 814/ItemID/3260/Default.aspx. SIEBÖRGER, Rob Siebörger; BERENS, Penny Berens. The Turning Points in History.Institute for Justice and Reconciliation, 2012. Disponível em: http://www.ijr.org.za/publications/pdfs/Turning%20Points%20in%20History.pdf. Capturado em 19 abr. 2015. A textbook series commissioned by the Department of Education, produced by the Institute for Justice and Reconciliation and STE Publishers, and simultaneously published on the SA History Online website. INSTITUTE FOR JUSTICE AND RECONCILIATION. Turning points in history (Book 6). [s.d.t.]. Department of Education (South Africa). Disponível em: http://www.sahistory.org.za/archive/turning-points-books-1-6. Capturado em 19 abr. 2015.

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