CONTINGÊNCIA E LEGITIMIDADE NO ESPAÇO CLÍNICO

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CONTINGÊNCIA E LEGITIMIDADE NO ESPAÇO CLÍNICO1

Fernanda Alt Paris 1-Panthéon-Sorbonne UERJ (bolsista CAPES)

O essencial é a contingência. Quero dizer que, por definição, a existência não é necessária. Existir é simplesmente estar aí [...] Acredito que há pessoas que compreenderam isso. Só que elas tentaram superar essa contingência inventando um ser necessário e causa de si. Ora, nenhum ser necessário pode explicar a existência: a contingência não é uma falsa aparência, uma aparência que se pode dissipar, é o absoluto, consequentemente, a gratuidade perfeita. Tudo é gratuito, este jardim, esta cidade, eu mesmo. Quando acontece da gente se dar conta disso, ficamos atordoados e tudo começa a flutuar [...] eis a Náusea. Eis o que os Canalhas (Salauds) [...] tentam mascarar com sua ideia de direito. (Sartre, La Nausée)2

Cada época histórica produz, através de processos de institucionalização, normas e valores que orientam o nossa forma de vida e legitimam nosso direito de existir. Esta organização social constitui o lado fático da situação em que cada pessoa se encontra em seu cotidiano como ponto de referência das identidades legitimadas pelos grupos onde estamos inseridos. As linhas que configuram as identidades sociais, demarcam, portanto, modelos a serem seguidos para que o reconhecimento social se apresente como absolvição de uma vida inútil ou sem razão em direção à legitimação de uma vida justificada e reconhecida como digna. A motivação da busca desta espécie de justificação moral da existência se encontra justamente na contingência, que é o fato da não-necessidade ou gratuidade do existir. Se partirmos da filosofia de Sartre, a contingência se torna ponto central, como condição ontológica, para se pensar o modo de ser do homem, visto que este será descrito como um projeto de busca de auto-fundação de si, motivado pela fuga da contingên-

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Trabalho apresentado no II Congresso Luso-Brasileiro de Psicologia Existencial:Casos Clínicos e Aplicabilidade em Contextos Profissionais - Lisboa- 2014. 2 Todas as traduções do francês para o português são minhas.

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cia. Sendo assim, se nosso modo de ser é fuga da contingência e busca de fundamento, esta base ontológica nos coloca então um problema, que é o de pensar na inevitável prisão à modelos socialmente legitimados, proveniente da necessidade de reconhecimento de si no intuito de aplacar essa gratuidade primeira, com a consequente exclusão das experiências que de algum modo não se encaixam nestes modelos. Dito de outro modo, se é próprio do modo de ser do homem a necessidade de busca de legitimidade, e se esta se dá através de normas e modelos que acabam por excluir a singularidade, como é possível pensar alternativas à prisão dos modelos? E mais: como é possível pensar o papel da clínica neste contexto? Diante destas questões, penso que é preciso recolocar a questão da legitimidade e a importância da clínica como um espaço de acolhimento daquilo que é, diante de tais modelos, excluído. Neste intuito, podemos de início pensar que, tradicionalmente, ao longo da história da filosofia, aquilo que é legítimo é sinônimo de “bem-fundado”. Uma tradição que, segundo Deleuze (2012), remonta a Platão e sua teoria das Idéias, onde se estabeleceu uma divisão a partir de modelos - entre o que seria da ordem do falso e do verdadeiro, do bem-fundado e mal-fundado ou não fundado. Através da lógica platônica há, portanto, o modelo, e o critério da legitimidade se aplica aos pretendentes que mais se aproximarem e se assemelharem à este3, o que neste contexto, está representado pelas cópiasîcones ou boas cópias. A questão do fundamento é também a função do mito, continua Deleuze: Com sua estrutura sempre circular, [o mito] é então a narrativa de uma fundação. É ele que permite erigir um modelo segundo o qual os diferentes pretendentes poderão ser julgados. Aquilo que deve ser fundado, de fato, é sempre uma pretensão. É o pretendente que evoca seu fundamento, e cuja pretensão se encontra bem fundada ou mal fundada, não-fundada. (Deleuze, 2012, p.294)

Neste sistema de divisões, as cópias das cópias, os mal-fundados, são os simulacros; o simulacro é “[...] uma imagem sem semelhança [...] é construído sobre uma disparidade, sobre uma diferença, [...] ele interioriza uma dissimilitude” (Deleuze, 2012, p. 3

Podemos pensar, por exemplo, o homem como semelhança de Deus e pelo pecado ele se afasta da perfeição da semelhança.

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297). A dinâmica do platonismo consiste então em selecionar, eleger, entre os pretendentes ao modelo, os legítimos e os ilegítimos: Podemos definir melhor então o conjunto da motivação platônica: trata-se de selecionar os pretendentes, distinguindo as boas das más cópias, ou ainda, as cópias sempre bem fundadas e os simulacros, mantê-los acorrentados lá no fundo, impedi-los de subir à superfície e de se insinuar “por todos os lados”. (Deleuze, 2012, p.297)

Deste modo, estabelece-se um modelo da mesmidade e da semelhança enquanto características da legitimidade, ao mesmo tempo em que desloca-se para o domínio do falso e ilegítimo, a alteridade e a diferença própria dos simulacros. A partir de então, a questão do fundamento permanece sendo critério de legitimidade através, principalmente, do que se chama em filosofia de “principio de razão suficiente” que, segundo Heidegger (1983), possui duas formulações clássicas: uma negativa: “Nada é sem razão” e uma positiva “Todo ente tem uma razão”. Ora, é justamente este aspecto que é subvertido pela concepção da existência como contingência, já que não existe nenhuma razão para o existir, conforme exclama Antoine Roquentin em A Náusea: É o que penso [...] eis que todos nós na medida em que existimos, comemos e bebemos para conservar nossa preciosa existência e não há nada, nada, nenhuma razão para existir. (Sartre, 2012b, p.161)

A condição de ser contingente é, portanto, a base para se pensar o modo de ser do homem em Sartre, já que este modo de ser não adquire mais o modelo identitário da cópia bem-fundada, mas sim a característica da falta de fundamento, o que relegaria o para-si (modo de ser do homem) para o âmbito do simulacro. Neste contexto, o para-si como projeto de busca auto-fundação, é ontologicamente ilegítimo, gratuito - o que Sartre expressa como ser de trop (de mais, sobrando) – ser em busca de direitos que seriam os fins que o justificariam. Inspirado na divisão kantiana entre o direito e o fato, Sartre nos diz: Esta existência legitimada por seu fim seria existência de direito, não de fato. E é verdade que, entre as mil maneiras que o para-si tem de

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tentar se livrar de sua contingência original, há uma que consiste em tentar se fazer reconhecer pelo outro como existência de direito. Nós só nos apegamos aos nossos direitos individuais no âmbito de um vasto projeto que tenderia a nos conferir a existência a partir da função que cumprimos. Esta é a razão pela qual o homem tenta frequentemente se identificar à sua função [...] [e cada função] tem sua existência justificada por seu fim, com efeito. Ser identificado a uma delas é tomar sua própria existência como a salvo da contingencia. (Sartre, 2012a, p.530)

Em outras palavras, a existência é um fato, sem razões ou explicações, mas, para fugir à contingência, condição nauseante, o homem busca através do olhar do outro o reconhecimento de sua existência de direito. É inclusive em termos jurídicos que Sartre fala desta busca da legitimação de si no futuro, como se pudéssemos alcançar uma “homologação” lá na frente que justificasse nosso passado que está sempre “em sursis”. É daí que vem o caráter “processual” da existência, sempre em espera, com os sentidos vacilantes, como bem mostrou Kafka. O reconhecimento adquire assim um papel fundamental na busca de legitimação e justificação de si e o espaço clínico pode, neste contexto, ser desejado por uma pessoa como um lugar onde, através da relação com o outro/analista, seja possível afirmar a legitimidade da existência de direito. Vale ressaltar que nasce nesta busca pela clínica a tentação de encontrar uma forma de “teoria de si mesmo” que justifique o próprio passado como prova de uma identidade, afim de aplacar o caráter “processual” da existência como temporalidade. Daí nos perguntarmos como este risco de justificativa de si na clínica pode se conectar com a prisão dos papéis sociais que mencionamos no início? E qual seria então o papel da clínica no interior desta espécie de paradoxo: necessidade de legitimidade e aprisionamento nas identidades? Voltemos à citação de agora pouco onde Sartre falava da necessidade de reconhecimento pelo outro como existência de direito e do fato de ser esta “a razão pela qual o homem tenta frequentemente se identificar à sua função”. É constantemente ressaltada a importância da teoria do olhar em sua filosofia, principalmente pelo fato da relação

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com o outro não ser uma relação de conhecimento, de imagem que alguém faz de alguém, mas uma relação de ser, ou seja, constitutiva do próprio modo de ser do para-si. Para si mesmo o homem não aparece como objeto, mas sim para-outro, podendo ser julgado e qualificado como tal. Isto significa que, não sendo o para-si uma identidade, as identificações com aquilo que ele busca ser se dão através da trama das suas relações, onde uma espécie de script social, que Sartre chama de comédia, fornece as indicações das funções identitárias como o papel de um personagem4. Aos nos encaixarmos em nossas “funções”, de profissionais, mãe, pai, etc, possuímos direitos legítimos, como mostra Roquentin sobre um “homem importante” da cidade: Durante sessenta anos, sem fraqueza, ele tinha feito uso do direito de viver [...] Ele sempre tinha feito o seu dever, todo seu dever, seu dever de filho, de marido, de pai, de chefe. Ele também tinha reivindicado seus direitos sem fraqueza: criança, o direito de ser bem educado, em uma família unida, o de herdar um nome sem mancha, um negócio prospero; marido, o direito de ser cuidado, rodeado de terna afeição; pai, o de ser venerado; chefe, o de ser obedecido sem murmúrio. Pois o direito é sempre o outro aspecto de um dever. (Sartre, 2012b, p.125) A identificação à função caracteriza o que Sartre chama de “espírito de seriedade”, um modo de má-fé que visa a justamente escamotear a comédia das relações sociais enquanto relações construídas historicamente. Isto é, a seriedade naturaliza, e assim os direitos se tornam “naturais”, a constituição histórica dos modelos sociais de uma época. Por outro lado, é constitutivo da situação do para-si pertencer ao script social já que, ao ser constituído pela época - “eu sou eu mesmo aquilo que me cerca” (Sartre, 2013,p.46) - encontra-se imediatamente engajado nela. É este o aspecto necessário da contingência: Não é necessário que o para-si exista em tal época em tal posição, mas é necessário que ele exista como não sendo necessário existir nessas circunstâncias5. Isto significa que não sendo necessário que ele exista é necessário que ele assuma esta existência gratuita engajada numa época que estabelece os modelos dos quais não se pode se esquivar. Este aspecto objetivo do para-si de sua posição em sua época é o que Sartre denominou de “irrealizáveis”, um ponto estrutural de nossa situa4

Vale observar o sentido da palavra em inglês character que une “caráter” à “personagem”. Outra maneira de dizer: “ il n’est pas nécessaire qu’elle ait ce point de vue mais il est nécessaire qu’elle ait un point de vue et que ce point de vue ne soit pas nécessaire. (Sartre 2012a,p.508) 5

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ção no mundo que consiste em, segundo Vincent de Coorebyter, « um destino que me é imposto por outrem e que eu não posso nem recusar [...] nem realizar […]” (2005, p. 50), e nas palavras de Sartre um “limite invariável da minha situação. Do mesmo modo, aquilo que chamamos de temperamento ou caráter de uma pessoa, e que não é outra coisa senão seu livre projeto enquanto ele é-para-outro, aparece também para o para-si, como um irrealizável invariante” (2012a,p.596) . Ou seja, aquilo que identificamos como permanência no modo de ser de uma pessoa corresponde ao seu aspecto para-outro em meio às identidades sociais, que reforçam a mesmidade do modelo em oposição à temporalidade do projeto de ser. Disto decorre que o homem, ao tomar consciência da contingência de sua existência pela náusea, e da liberdade como indeterminação, pela angústia, busca aplacar tais experiências pela identificação com os personagens, ou, como diz Vladimir Safatle “sentimo-nos seguros ao reencontrar a imagem identitária do homem […]” (2012, p. 222). Deste modo, a busca pela identidade dos modelos, relega ao plano do ilegítimo tudo aquilo que se apresenta como simulacro, tudo aquilo que não está bem fundado. Fomentar uma imagem do homem, do mesmo modo que priorizar a legitimidade dos modelos, acaba por produzir o que Safatle (2012) caracterizou como uma “vida mutilada”, onde ocorre uma impossibilidade de integrar experiências que neste contexto aparecem como inumanas. Este é o aspecto mais importante que nos leva à reflexão da prática clínica enquanto esta deve se posicionar com relação à legitimidade. Já que vivemos nesta trama de relações onde as identificações estão em jogo, pode haver um sufocamento em meio à comédia quando não há a possibilidade de viver experiências que escapem aos modelos de legitimidade. Neste sentido, a clínica aparece enquanto espaço de quebra, de estranheza, de surgimento dos simulacros, visto que deve levar em conta ainda a necessidade de legitimação, mas pela via inversa, daquilo que não é bem-fundado, ou dito de outro modo, daquilo que não se encontra explicado por causas e razões. Isto significa neste contexto que o espaço clínico não se revela como um lugar de busca de fundamento ou explicações últimas, mas justamente o inverso, como um lugar onde possa existir a possibilidade de legitimar aquilo que não é bem-fundado, lugar de ausência de busca por causas, de questionamento dos papéis e acolhimento da

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não-identidade do modo de ser temporal. Não significa dizer com isso que seja possível por esta via um escape aos modelos, já que os irrealizáveis são parte integrante de nossa situação, mas trata-se, sobretudo, do movimento que Deleuze caracteriza como “inversão do platonismo” que consiste em: “fazer emergir os simulacros, afirmar seus direitos entre os ícones ou as cópias” (2012, p.302): [...] o simulacro inclui em si o ponto de vista diferencial ; o observador faz parte do simulacro mesmo, que se transforma e se deforma juntamente com seu ponto de vista. Em suma, há no simulacro um devir-louco (devenir-fou), [...] um devir sempre outro, um devir subversivo das profundezas, hábil em esquivar o igual, o limite, o Mesmo ou o Semelhante: sempre mais e menos ao mesmo tempo, mas nunca igual. Impor um limite a este devir, ordená-lo ao mesmo. Torná-lo semelhante – e, recalcar o mais profundamente possível a parte que permaneceria rebelde, enclausurá-lo em uma caverna no fundo do oceano: tal é o objetivo do platonismo na sua vontade de fazer os ícones triunfarem sobre os simulacros. (Deleuze, 2012, p.298)

Diante da inversão do platonismo a clínica aparece, portanto, como espaço de acolhimento do devir-outro, da possibilidade da experiência de quebra das formas de vida exigidas pela nossa época enquanto meios de nos tornarmos ícones. O fracasso da auto-fundação, longe de ser um pessimismo sartriano, abre os caminhos para a experiência do simulacro e a clínica mostra-se como o lugar de revelação da existência enquanto contingência. Se a esta é a condição do modo de ser do homem, não existe “homologação” das experiências pela razão, mas sim legitimação do acontecimento, possibilidade de acaso transformador. Pois, como conclui Sartre [...] precisamente porque sou gratuito, posso me assumir, isto é, não fundar esta gratuidade que continuará a ser sempre o que é, mas retomá-la por minha própria conta. Ou seja, me considerar perpetuamente para mim mesmo como uma “chance” 6.

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Cahiers pour une morale, p. 508; (No sentido em francês de chance, que significa ao mesmo tempo oportunidade e sorte)

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Coorebyter, V. de. Sartre avant la phénoménologie : Autour de « La Nausée » et de la Légende de la vérité. Bruxelles: Ousia, 2005. Deleuze, G. Simulacre et philosophie antique. In: Logique du Sens. Paris: Les éditions de minuit, 2012. Heidegger, M. Le principe de raison, Paris: Gallimard,1983. Safatle,V. Grande hotel abismo: por uma reconstrução da teoria do reconhecimento. São Paulo: Martins Fontes, 2012. Sartre, J-P. Cahiers pour une morale. Paris: Gallimard, 1983 ______ . L'être et le néant. Paris: Gallimard, 2012a ______ . La Nausée. Paris: Gallimard, 2012b ______ . Qu’est-ce que la subjectivité ? Paris: Les prairies ordinaires, 2013

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