Contornos doutrinários e jurisprudenciais da boa-fé objetiva

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Contornos doutrinários e jurisprudenciais da boa-fé objetiva

CONTORNOS DOUTRINÁRIOS E JURISPRUDENCIAIS DA BOA-FÉ OBJETIVA RT-Juristendência | num. 1 | p. 1 | DTR\2014\461 Venceslau Tavares Costa Filho Doutor, Mestre e Especialista em Direito Civil pela UFPE. Membro efetivo da Associação Norte-Nordeste de Professores de Processo - ANNEP, e do Instituto Brasileiro de História do Direito IBHD. Advogado. Secretário-Geral da Escola Superior de Advocacia Professor Ruy Antunes, da OAB/PE. Área do Direito: Civil Resumo: O artigo visa demonstrar a problemática em torno das cláusulas gerais e do controle de assimetria negocial, baseando-se na vontade dos contratantes e a boa-fé objetiva que decorre da lei para a elaboração de um contrato. Palavras-chave: Boa-fé objetiva - Assimetria negocial - Cláusula geral. Abstract: Article reclaim demonstrate the problems surrounding the general clauses and the control of asymmetric bargaining, based on the will of the parties and the objective good faith that the law due to the drafting of a contract. Keywords: Boa-fé objetiva - Asymmetry negotiating - General clause. Sumário: 1.A problemática das cláusulas gerais e do controle das assimetrias negociais - 2.Pontes de Miranda e a boa-fé enquanto cânone hermenêutico-integrativo. Dever de indenizar pelo descumprimento do dever de boa-fé, ainda que ausente a culpa - 3.A boa-fé objetiva decorre da lei ou da vontade dos contratantes? - 4.Função de controle da boa-fé objetiva 1. A problemática das cláusulas gerais e do controle das assimetrias negociais Existe como que um Zeitgeist jusprivatista que opta pelo retorno aos códigos civis, mas não para aqueles mesmos códigos oitocentistas e supostamente “plenos”; mas sim para códigos amplamente aparelhados por cláusulas gerais. A boa-fé objetiva contratual, indubitavelmente, é uma das mais notáveis cláusulas gerais postas hoje à disposição do jurista. As cláusulas gerais, já presentes nas codificações do século XIX, têm a função de preservar o sistema e compensar a rigidez das regras excessivamente abstratas, técnicas e especializadas; bem como de oferecer um contraponto ao conceitualismo. As cláusulas gerais, então, atuam como espécies de “válvulas de segurança” em prol da flexibilização de certas regras, adaptando-as para a obtenção de soluções mais eficientes diante dos casos concretos.1 No mesmo sentido, pode-se dizer ainda que cláusulas gerais (tais como a da boa-fé objetiva) realizam funções supostamente “assistêmicas”, porquanto permitam construções jurídicas não previstas pelo legislador. É por isto que a boa-fé (assim como as demais cláusulas gerais) funciona como uma regra de “calibração”, pois ela – assim como se dá com o “termostato da geladeira” – permite a adaptação das situações jurídicas às circunstâncias, evitando que o sistema incorra em disfunção.2 Ademais, a agilidade das trocas realizadas no ambiente do mercado demanda expedientes tais como as cláusulas gerais, porquanto permitam que os particulares “atuem sem a necessidade de a toda hora submeter-se ou aguardar a criação de lei específica regulando o ato”.3 Esta valorização das cláusulas gerais resulta, também, em uma valorização de doutrina de direito civil. Nos sistemas romano-germânicos, a doutrina sempre desempenhou uma função fundamental: a de intérprete “natural” da lei, a atuar sobre o conjunto da comunidade jurídica com um magistério que assume uma posição privilegiada nos momentos que precedem as codificações.4 Contudo, os juristas sempre encararam as cláusulas gerais com reserva, devido à “inevitável indeterminação do conteúdo” e ao receio de uma indevida intervenção do Estado-juiz nas relações privadas; receio este que já foi mais exacerbado em épocas pretéritas de predomínio do individualismo liberal. Entretanto, o estado de permanente mudança social, a imperativa realização da função social dos institutos jurídicos e a necessidade de um tratamento adequado para o Página 1

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fenômeno da massificação contratual e das assimetrias negociais; fazem com que as cláusulas gerais apresentem-se como “ferramentas hermenêuticas indispensáveis e imprescindíveis”.5 A ascensão das cláusulas gerais como um expediente jurídico desejável nos códigos fez surgir um acalorado debate sobre os limites no uso destes instrumentos, especialmente quando permitem o controle do conteúdo dos contratos. Até mesmo porque um das questões cruciais do direito obrigacional contemporâneo reside, exatamente, no tratamento que será dispensado à liberdade contratual, tida como “peça-chave” em uma economia de livre mercado. O problema está na legitimação desta liberdade, porquanto se saiba que os contratantes não negociam necessariamente em condições de igualdade. Assim, recorre-se a cláusulas gerais (como a da boa-fé, por exemplo) para restringir a liberdade de contratar, em face da assimetria de informação.6 Ora, pode-se afirmar que o direito dos contratos está assentado basicamente sob dois pilares fundamentais: a autonomia privada e a confiança. O ordenamento jurídico conferiu aos particulares a prerrogativa de proceder a modelagem de certas relações jurídicas, em um dado âmbito restrito. A autonomia privada consistirá justamente no direito conferido aos particulares de participar diretamente da formação de suas obrigações e direitos, que serão geralmente impostos em razão da celebração de contratos, mas também pela celebração de negócios jurídicos unilaterais.7 A tutela da autonomia privada assegura, portanto, que o contrato vincule as partes apenas naquilo que foi efetivamente querido pelos contratantes.8 Ao lado do respeito a autonomia privada como espaço de modelagem das relações jurídicas dos cidadãos, deve caminhar a tutela da confiança. A confiança na palavra dada é um princípio fundamental do direito dos contratos.9 A fidelidade (ou respeito) à palavra dada integrará o fundamento da regra dos “pacta sunt servanda”, ao qual se soma a veracidade, que exclui o engodo da vida contratual. Tais elementos fundamentam a confiança no comportamento do outro e na fé em relação ao que se prometeu; de modo que são essenciais ao desenvolvimento pleno do tráfico negocial.10 A doutrina nacional fundamentará a boa-fé contratual na confiança. No caso da boa-fé subjetiva, diz respeito à situação daquele que acredita ser titular de determinado direito, quando na verdade não o possui de fato, mas apóia sua crença em uma situação de aparência. Tal aparência justificará a instauração de um estado de confiança subjetiva, no que respeita à situação jurídica, alimentando no suposto titular do direito uma série de expectativas vistas como legítimas por ele. Já na boa-fé objetiva também será possível identificar uma situação de confiança a ser protegida, mas que não se baseia em uma crença errônea na titularidade de um direito, mas à ausência de vícios e à necessidade do cumprimento integral do contrato, porquanto o contratante tenha a expectativa de que a outra parte se comportou e continuará a se comportar corretamente e de maneira leal.11 2. Pontes de Miranda e a boa-fé enquanto cânone hermenêutico-integrativo. Dever de indenizar pelo descumprimento do dever de boa-fé, ainda que ausente a culpa É inegável a influência da doutrina germânica, elaborada a partir e para além do texto do Código Civil (LGL\2002\400) alemão, em relação às construções teóricas nacionais sobre a boa-fé objetiva. Pontes de Miranda alude expressamente à presença do Treu und Glauben nos §§ 157 e 242 do Código Civil (LGL\2002\400) alemão (BGB). O § 242 do Código Civil (LGL\2002\400) alemão estatui que: “o devedor obriga-se a cumprir a prestação de acordo com as exigências da boa-fé, tendo em vista os usos do tráfico”. Para Pontes de Miranda, a boa-fé integra as regras dos usos do tráfico, de modo que se presta ao preenchimento de lacunas legislativas, além de servir como regra interpretativa.12 Esta visão de Pontes de Miranda não diverge fundamentalmente em relação à doutrina alemã da época. Enneccerus e Nipperdey, v.g., advogavam que a boa-fé exige que os juízes se comportem de modo a resolver a questão como o faria uma pessoa honrada e ciente de suas obrigações; e que levem em consideração os usos do tráfico.13 Ora, tal função interpretativa dirige-se à busca do significado mais razoável a ser indicado pela boa-fé objetiva contratual. Destarte, caso uma determinada cláusula admita diversos sentidos possíveis, a interpretação deve acontecer em prol da compreensão que efetivamente garanta a preservação do contrato. Trata-se do princípio da conservação do contrato, ou princípio do favor actus.14 Página 2

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É o que verifica em sede de Recurso Especial qualificado como recurso representativo de controvérsia, nos termos do art. 543-C do CPC (LGL\1973\5), quanto à validade de cláusula de comissão de permanência encartada em contratos bancários sujeitos às regras do Código de Proteção e Defesa do Consumidor (LGL\1990\40). Segundo o relator, o princípio da conservação do contrato – que compreende a teoria da conversão do negócio jurídico (art. 170, do CC/2002 (LGL\2002\400)) – , exige que deve se proceder com o aproveitamento do ato, sempre que possível, desde que isto não contrarie a vontade das partes, apesar da aparente nulidade.15 A invocação da boa-fé, contudo, também poderia assumir a eficácia de exceção dilatória no sistema erigido por Pontes de Miranda. Trata-se de situação gerada em virtude da alteração das circunstâncias, a tornar a prestação contratual insuportável, mas não impossível. Inexistindo impossibilidade superveniente - mas uma dificuldade excessiva gerada pela alteração das circunstâncias –, não haveria que se falar em resolução da obrigação, ou extinção, e sim em exceção de boa-fé.16 Esta exceção de boa-fé corresponderia a uma espécie de exceção dilatória em razão da exorbitância temporária. Assim, haveria uma espécie de paralisação da pretensão do credor ao cumprimento da obrigação enquanto se mantivessem as circunstâncias que ensejaram a dificuldade; ou seja, a inexigibilidade da prestação neste caso seria apenas momentânea. Apesar de não haver sistematizado uma teoria da boa-fé objetiva, Pontes de Miranda já fazia menção a deveres compreendidos atualmente na cláusula de boa-fé objetiva, tais como os de cooperação, previsão e proteção nas relações contratuais. Em sua análise sobre o contrato de empreitada, considerou que o dever de cooperação exsurge deste tipo contratual, e se impõe durante todo o período de execução do contrato. Caso o empreitante deixe de cumprir tal dever, porque deixou de fornecer equipamentos necessários à realização da obra, ou não providenciou local para a hospedagem dos operários; surge para o empreiteiro o direito de obter indenização quando aos gastos que necessitou fazer em excesso, ou ainda pelo tempo desperdiçado com a paralisação da obra, “mesmo se não houve culpa do empreitante”.17 Acresce, ainda, que o dever de cooperação acarreta a imposição dos deveres de previsão e cooperação, de modo que o empreitante que descumpre tais deveres ao rescindir o contrato de empreitada imotivadamente poderá ser compelido a indenizar o empreiteiro quanto às despesas e ao trabalho realizado, bem como em relação aos lucros que poderia perceber caso concluísse a obra.18 Tal entendimento, no sentido de impor o dever de indenizar pelo descumprimento da boa-fé objetiva, sem demonstração da culpa, guarda relação com os atuais contornos da boa-fé objetiva na jurisprudência do STJ. Tome-se, por exemplo, demanda que versa sobre as conseqüências jurídicas de um protesto levado a efeito pela parte demandada (uma instituição financeira) em face do autor da ação. Alega a instituição financeira que procedeu com o protesto devido ao fato de consumidor haver procedido a pagamento de maneira diversa da pactuada. Em vez de proceder ao pagamento mediante a apresentação de boleto fornecido pelo credor, o autor procedeu com o depósito em conta-corrente de titularidade da empresa demandada. O autor alegou que só procedeu com o pagamento de forma distinta porque inviabilizado o pagamento mediante a apresentação do boleto após certo lapso temporal de atraso, pois havia proibição de utilização do boleto após dez dias de vencimento do débito. Assim, o autor da ação se dirigiu até a concessionária de veículos onde adquiriu o bem que o levou a celebrar uma operação de crédito junto à instituição financeira demandada, que informou a ele o número de uma conta-corrente da titularidade do Banco para que realizasse o adimplemento da prestação em atraso. Sob a alegação de que não tinha como realizar o controle efetivo dos depósitos realizados naquela conta-corrente, a instituição financeira tentou se eximir do dever de indenizar ao demandante em face do protesto indevido. De acordo com a Ministra Nancy Andrighi, as circunstâncias do caso não permitem aplicar o adágio popular “quem paga mal, paga duas vezes” ao caso, que deve ceder lugar ao novo perfil do contrato e das exigências da boa-fé. A aplicação da boa-fé aos contratos acarretaria no aparecimento de deveres anexos ao contrato, entre eles o dever de cooperação. A violação de qualquer um dos deveres anexos, ainda que ausente a culpa, constitui espécie de inadimplemento contratual a ensejar o dever de reparar os danos decorrentes.19 A utilização da boa-fé objetiva como expediente para uma interpretação construtiva (praeter legem) – ou até mesmo contra legem – , não deve ser compreendida como evidência de um certo tipo de desprezo pelo exame rigoroso das leis e dos preceitos. Na verdade, impõe uma maior cautela quanto aos aspectos técnicos, o que não se traduz em devoção ao tecnicismo apartado do mundo da vida; ou em uma crença na neutralidade do “jurista lógico, no formalismo conceitual e esquematizante”.20 Página 3

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3. A boa-fé objetiva decorre da lei ou da vontade dos contratantes? As funções interpretativa e integrativa da boa-fé objetiva são complementares. Se a função interpretativa pode “revelar” deveres razoavelmente imputáveis em vista da relação contratual, pode-se dizer que a função integrativa presta-se também a evidenciar os deveres que se consideram integrados à relação contratual em virtude da boa-fé objetiva.21 Graças à influência de Karl Larenz, tornou-se corrente a referência a deveres de prestação primários e secundários. Deve-se muito do impacto da obra de Karl Larenz no Brasil à renomada tradução de seu Tratado de Direito das Obrigações para a língua espanhola, em meados dos anos de 1950. No início dos anos de 1980, a obra de Harm Peter Westermann é vertida para o português. Isto reforçará a divulgação da citada teoria dos deveres secundários, ou acessórios; verbis: “Na ciência, o desenvolvimento de deveres de prestação primários e secundários na relação obrigacional é expresso por uma comparação da relação obrigacional com um processo, uma estrutura ou um organismo. Mais claro torna-se isso quando se tem presente que, em quase toda relação obrigacional, ao lado dos deveres de prestação, podem vir a colocar-se ainda deveres acessórios de diversas espécies. Estes, geralmente não estão convencionados expressamente; resultam, porém; da interpretação do contrato. Critérios para a formação de tais deveres acessórios são, principalmente, o cumprimento do fim contratual e a devida consideração aos interesses do parceiro contratual”.22 As referências a deveres acessórios à boa-fé – ou, ainda a deveres secundários ou anexos -, são cada vez mais abundantes na doutrina e jurisprudência brasileira recentes. Tal denominação, entretanto, parece levar à conclusão apressada de parcela significativa da doutrina e da jurisprudência a considerar que os deveres de proteção, lealdade, informação, equidade, etc., decorreriam da vontade das partes, ainda que presumida. Neste sentido, já decidiu o STJ que a instituição financeira, ao disponibilizar área para guarda de veículos dos seus clientes assume o dever de proteger a pessoa do cliente e o patrimônio dele. Tal dever decorre da cláusula geral de boa-fé objetiva, que vincula a instituição financeira a partir da “relação contratual de fato assim estabelecida, que serve de fundamento à responsabilidade civil pelo dano decorrente do descumprimento do dever”.23 Paulo Lobo, contudo, diverge quanto à suposta acessoriedade de tais deveres. De modo que prefere denominá-los como deveres gerais de conduta, por entender que tais deveres ganharam a dimensão de princípios normativos, sejam constitucionais ou infraconstitucionais; deixando para trás o caráter acessório ou complementar em relação ao dever de prestar adimplemento. Aduz, ainda, que estes deveres não decorrem simplesmente da relação jurídica obrigacional, ou do dever primário de adimplemento; mas “estão acima de ambos”. Isto porque a cláusula geral da boa-fé objetiva restou positivada como norma jurídica no Brasil. Assim, conclui que os deveres extraídos da boa-fé objetiva incidem diretamente nas relações obrigacionais, sem que haja necessidade da declaração de vontade dos participantes (implícita, ou explícita). Até mesmo porque não se pode olvidar que a aplicação da boa-fé objetiva não poderá ser obstada por convenção firmada entre as partes contratantes.24 Neste diapasão, decidiu o STJ sobre a desnecessidade da mediação do acordo de vontades para a incidência dos deveres decorrentes da boa-fé objetiva. O Ministro relator erigiu o seu raciocínio tomando por base a presença da ordem pública e do interesse social nas normas de proteção e defesa do consumidor. Isto faz com que tais normas reputem-se “indisponíveis e inafastáveis, pois resguardam valores básicos e fundamentais da ordem jurídica do Estado Social, daí a impossibilidade de o consumidor delas abrir mão ex ante e no Atacado”. Ora, o direito à informação é uma expressão concreta dos princípios da Transparência, da Boa-fé objetiva e da Confiança nas relações de consumo. O dever de informação que se impõe aos fornecedores, contudo, não deve levar em consideração apenas o homem médio, ou a generalidade dos consumidores. Assim, tal dever se aprofunda em relação aos chamados hipervulneráveis, a exemplo da necessidade de advertir sobre a presença do glúten em determinados produtos e seus efeitos indesejáveis para os portadores de doença celíaca; ainda que tal elemento não seja prejudicial ao grosso da população.25 Parece-nos que tal entendimento se coaduna, também, com o atual estágio de desenvolvimento da ciência jurídica alemã, após a ampla reforma empreendida no âmbito do direito obrigacional.26 Além de alterar as regras sobre a prescrição, a proteção do consumidor, e diversos tipos contratuais; o Código Civil (LGL\2002\400) alemão passou a referir a uma série de situações compreendidas Páginano 4

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que se convencionou chamar de Recht der Leistungsstörungen. Menezes Cordeiro traduziu a expressão por “Direito da perturbação das prestações”.27 Todavia, consideramos atualmente que esta expressão é demasiadamente equívoca, apesar de já havermos referido à ela em outro escrito (mas sem qualquer crítica);28 não obstante o fato da tradução de Menezes Cordeiro ser mais próxima de uma tradução literal , já que leistung pode ser traduzida como prestação, e o verbo stören pode ter o sentido de perturbar, ou interferir. Pensamos ser mais adequado traduzir por “Direito da perturbação no desempenho”. Isto porque a expressão Leistungsstörungen admite duas acepções: I) em acepção restrita, ela compreende a impossibilidade (absoluta ou relativa), a mora e a violação positiva do contrato; e II) em acepção ampliada alcança, além dos três institutos supracitados, a culpa in contrahendo, a alteração das circunstâncias e os contratos com efeito protetor de terceiros.29 Indubitavelmente, uma reforma deste porte indica um esforço de valorização do Código Civil (LGL\2002\400) no contexto alemão. Mas, isto não nos permite concluir necessariamente em prol da tese que considera a citada reforma como o prenúncio de uma nova era para o direito privado: a era da recodificação.30 Um dos conceitos centrais da reforma no tocante ao Direito da perturbação no desempenho é o de violação (ou quebra) de um dever: Pflichtverletzung.31 Este novo conceito (constante do § 280/I) não se encontrava presente no texto do Código Civil (LGL\2002\400) alemão antes da reforma em comento, e parece haver sido copiado da Convenção de Viena sobre venda internacional de mercadorias, de modo a fazer compreender sob a hipótese geral de violação do dever os casos de inexecução e, também, de execução imperfeita ou defeituosa.32 De acordo com a redação atual do § 280/I do Código Civil (LGL\2002\400) alemão, o escopo do contrato deixa de se limitar às prestações que decorrem do pacto, e passa a alcançar qualquer “dever proveniente de uma relação obrigacional”, de modo que a violação de um destes deveres pode ser caracterizada como incumprimento gerador do dever de indenizar a parte prejudicada pela violação do dever. Observe-se, contudo, que o Direito da perturbação no desempenho (Recht der Leistungsstörungen) não fulmina necessariamente o objeto da relação obrigacional, ou seja, a prestação. O instituto da alteração das circunstâncias, por exemplo, que também é compreendido atualmente sob esta égide, não inviabiliza necessariamente a prestação, mas pode indicar a necessidade de realização da mesma prestação por outros meios. Ademais, observe-se a jurisprudência do STJ em matéria de responsabilidade pré-contratual, ou em virtude da culpa in contrahendo. In casu, trata-se de demanda proposta por empresa sediada no Estado do Amazonas em detrimento dos representantes de uma montadora de veículos de fama internacional. No caso em comento, o então presidente da montadora no Brasil contratou a publicação de anúncios na imprensa convocando novos parceiros interessados a apresentarem candidaturas para que passassem a integrar a rede de revendedores autorizados de veículos de determinadas marcas. A empresa demandante respondeu ao anúncio, no que teria sido instada pela representante da montadora a apresentar uma série de documentos necessários à avaliação de sua candidatura. Após isto, o então presidente da montadora no Brasil dirigiu-se até a cidade de Manaus para conhecer os sócios do parceiro local e para comunicar o resultado positivo da avaliação da candidatura, bem como para convidá-los para comparecerem a reuniões em São Paulo a fim de tratar do futuro plano de negócios, no que foi atendido. Após isto, a demandante foi comunicada por determinada empresa de consultoria – supostamente contratada pela requerida para a avaliação da candidatura da requerente – , da aprovação final de sua candidatura, e instada a depositar o valor de R$ 75.000, 00 (setenta e cinco mil Reais) referentes ao processo de contratação. Após isto, a requerente chegou a ser convidada a participar de uma reunião geral dos revendedores da marca no Brasil. Mais adiante, contudo, a requerida informou à requerente o cancelamento do Contrato de Concessão da Revenda. Entretanto, pouco tempo depois, uma revista de circulação nacional noticia que o Presidente da marca no Brasil havia sido afastado da sua função em virtude da prática de fraude na realização de uma campanha de cooptação de novos parceiros, mas – que após a aprovação da candidatura e do pagamento da quantia de R$ 75.000,00 (setenta e cinco mil Reais) -, procedia com a comunicação do cancelamento da contratação, sem qualquer devolução da quantia paga. Ciente disto, a requerente ajuizou ação perquirindo o pagamento de indenização em face dos prejuízos sofridos. Nos autos, a empresa demandada pugnou pela inexistência de nexo de causalidade entre os danos infligidos e a conduta da requerida, ao argumento de que não chegou a existir qualquer tipo de relação obrigacional entre as partes; até mesmo porque não houve a Página 5

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celebração de contrato na forma prescrita pela Lei 6.729/1979. Ademais, a quantia despendida foi depositada em conta bancária de titularidade de empresa de consultoria que não guarda nenhum vínculo com a montadora de veículos no Brasil. Para o Ministro Relator, contudo, a responsabilidade civil neste caso não decorre do fato do rompimento das tratativas, ou da não conclusão do contrato, mas sim da violação da boa-fé objetiva. O dever de indenizar decorre da violação da boa-fé objetiva, em virtude da quebra das expectativas legítimas geradas pela requerida em relação à requerente, bem como em virtude do efetivo prejuízo material.33 4. Função de controle da boa-fé objetiva Além das funções integrativa e interpretativa, a boa-fé objetiva desempenha também uma função de controle. A boa-fé objetiva estabelece limites ao exercício dos direitos subjetivos, das ações, exceções, pretensões, etc. O titular do direito não pode exceder os limites fixados pela boa-fé, sob pena de incorrer na prática de ato ilícito (art. 187 do CC/2002 (LGL\2002\400)).34 Os eventuais direitos e deveres impostos em virtude do contrato podem sofrer limitações quanto ao exercício tendo em vista os lindes da boa-fé objetiva. No sentido de explicitar o alcance da relação jurídica obrigacional, especialmente no tocante aos deveres de lealdade e boa-fé; o legislador alemão promoveu o acréscimo do seguinte dispositivo no § 241 do Código Civil (LGL\2002\400) alemão (BGB): “Pode a relação obrigacional, de acordo com o seu conteúdo, vincular qualquer das partes a ter o especial apreço pelos direitos, bens jurídicos e interesses da outra”. Disto resulta um dever de lealdade, compreendida como “permanente orientação até a alma do outro” (dauernde Hinwendung zur Seele eines andern), a vedar toda astúcia malévola, todo o dolo; e obriga a levar em consideração os interesses do outro pólo da relação jurídica. Decorre daí, portanto, um conjunto de deveres pertinentes à lealdade e boa-fé a incidir sobre as relações jurídicas em geral, a despeito do regramento contratual ou de declarações de vontade em sentido diverso.35 Este dever de considerar os interesses do outro contratante, rompe o antigo paradigma do contrato como uma espécie de relação onde se verifica a presença de interesses antagônicos, ou ainda, como relação na qual os contratantes só se preocupam com os seus próprios interesses. Torquato Castro, antigo Catedrático de Direito Civil da Faculdade de Direito do Recife e membro da comissão responsável pelo anteprojeto que originou o Código Civil (LGL\2002\400) vigente, pode ser considerado um dos primeiros civilistas nacionais a defender a necessidade de superação deste suposto antagonismo. Tal antagonismo deve ceder espaço para o que ele chamava de “visão global da obrigação”, que impunha a necessidade de coordenação dos interesses do credor e do dever para a realização de um só interesse considerado comum a ambos: a realização da prestação.36 Neste sentido, o STJ pacificou a sua jurisprudência tendo em vista a boa-fé objetiva e sua função de controle. Trata-se do Enunciado 308 da Súmula de Jurisprudência dominante do STJ: “A hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro, anterior ou posterior à celebração da promessa de compra e venda, não tem eficácia perante os adquirentes do imóvel”. Sem sombra de dúvida, um dos principais fundamentos doutrinários deste enunciado repousa na teoria das redes contratuais, formulada por Rodrigo Xavier Leonardo. Anos antes da aprovação do mencionado enunciado, o aplaudido civilista paranaense fundamentava a ineficácia da hipoteca na função de controle da boa-fé objetiva contratual. Tendo em vista a conexão sistemática entre o financiamento concedido pela instituição financeira e o contrato de compra e venda firmado entre a construtora e o consumidor, a ineficácia da cláusula que autoriza a construtora a hipotecar o bem objeto do contrato de consumo, em posterior negociação voltada ao financiamento do conjunto da incorporação.37 Esta contagiação da ineficácia (ou invalidade, segundo Rodrigo Xavier Leonardo) dá-se “ante a manifesta necessidade de proteção da operação econômica unitária desenvolvida pelos diversos agentes: fornecer imóveis para consumidores”.38 Em outra oportunidade, o STJ enfrentou a problemática da função de controle da boa-fé objetiva em sede de Recurso Especial no qual se discute a abusividade cláusula inserida em contrato de compra e venda de imóvel sob o regime do Código de Proteção e Defesa do Consumidor (LGL\1990\40), a prever que não cabe o pedido de complementação de área do imóvel ou abatimento no preço caso se verifique diferença inferior a 5% entre a área total mencionada no contrato e a área efetiva do bem imóvel. In casu, concluiu-se que tal cláusula contratual importa na violação dos deveres de confiança e boa-fé objetiva, pois subtrai do consumidor uma parcela do que ele entende haver adquirido legitimamente em virtude do contrato; o que o levaria a pagar por certa quantidade e receber outra, Página 6 inferior ao mencionado no contrato e sem informação adequada em relação a tal questão. Concluiu,

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portanto, pela abusividade da referida cláusula, que termina por violar o dever de equidade contratual, ao colocar o consumidor em desvantagem perante a fornecedora.39 Portanto, cada parte deve levar em conta os interesses da outra, sob certas circunstâncias, por ser esta uma exigência da lealdade na relação jurídica. Assim, a confiança em um comportamento alheio é digna de proteção jurídica. Destarte, toda pessoa que, em razão do seu comportamento, passa a impressão de ocupar certa posição jurídica deve ser tratada enquanto tal. Os atos que induzem ao erro, o dolo e o comportamento arbitrário e contraditório (venire contra factum proprium) constituem infrações ao dever de lealdade.40 No âmbito do STJ, apreciou-se questão relativa à proteção da confiança na contratação de um seguro de vida, que gerou o ajuizamento de uma ação pelos beneficiários de determinada segurada. Na petição inicial, os recorridos alegam que a segurada (esposa de um deles e mãe dos demais) procedeu com a contratação do denominado “super plano de saúde SP-20”, que compreendia seguro de vida automático e facultativo. Diante do óbito da segurada, que se encontrava adimplente no momento do falecimento, os beneficiários dela buscaram obter junto à operadora do plano de saúde o pagamento da quantia contratualmente assegurada. Contudo, a seguradora/recorrente recusou-se a efetuar o pagamento solicitado, ao argumento de que era mera estipulante do contrato de seguro de vida entre a segurada e outra seguradora, a quem cabia a liderança do seguro. Tal fato da operadora do plano de saúde ser apenas estipulante do contrato de seguro, só foi levado ao conhecimento dos recorridos após a realização de reclamação junto à Susep. Aduz a Ministra Relatora que a recorrente gerou uma expectativa legítima – seja em relação à segurada ou aos seus beneficiários –, de que ela arcaria com as obrigações próprias do contrato de seguro de vida. Ademais, a segurada procedia mensalmente com o pagamento das quantias referentes ao prêmio do seguro de vida à empresa recorrente, o que tornaria evidente a responsabilidade da operadora do plano de saúde pelo adimplemento das obrigações do seguro de vida. Some-se a isto que não foi dado conhecimento prévio da condição da recorrente como mera estipulante do seguro de vida à segurada e seus beneficiários, o que não lhe permite se eximir do cumprimento de tais obrigações, em virtude do que prescreve o art. 46 do CDC (LGL\1990\40); bem como da nulidade de cláusula que importe na transferência das responsabilidades do fornecedor a outrem (art. 51, III, do CDC (LGL\1990\40)).41 Acreditamos que a primeira referência doutrinária nacional ao brocardo do venire contra factum proprium deve-se ao Prof. José Soriano de Souza Neto (ou, Soriano Neto), quando da publicação de um profundo estudo sobre a teoria do ato jurídico em sentido estrito,42 e de pareceres por ele emitidos a referir situações práticas de aplicação do brocardo, na mais do que centenária Revista Acadêmica da Faculdade de Direito do Recife. No corpo do mencionado estudo, faz referência à obra de Erwin Riezler – “Venire contra factum proprium – Studien in Römischen, Englischen und Deutschen Civilrecht” –, publicada em Leipzig, no ano de 1912.43 Entretanto, Soriano Neto deixa de desenvolver a temática relativa ao brocardo do venire contra factum proprium neste texto. Mas, vai retomar o argumento da vedação do comportamento contraditório a fim de sustentar posição defendida em judicioso parecer sobre os efeitos do reconhecimento da filiação, verbis: “É, também, ponto pacífico na doutrina que o marido não pode fundar a contestação da paternidade do filho, nascido, anteriormente, de sua atual mulher e legitimado pelo subseqüente casamento, na exceção de diversos coabitadores, isto é, de que, no momento da concepção, outros tiveram igualmente, relações sexuais com ela. Isto, como escreve Crome, se contradiria com a circunstância de que ele mesmo desposou a mãe. Exclue-se, pois, a exceção pela presunção de causalidade das relações sexuais da mãe com o seu posterior marido”.44 Tal supressão da exceção de diversos coabitadores, nos termos formulados por Soriano Neto, decorre do princípio da confiança, de modo a preservar a situação de confiança legitimamente gerada. No venire contra factum proprium está um imperativo de coerência, pois impede “que se aja em determinado momento de uma certa maneira e, ulteriormente, adote-se um comportamento que frustra, vá contra aquela conduta tomada em primeiro lugar”.45 Este comportamento alheio a despertar a confiança pode se traduzir em reiteradas ações ou omissões. Em Portugal, fala-se em supressio e surrectio. Na Alemanha, em Verwirkung e Erwirkung. A supressio, ou preclusão, diz respeito à “supressão de determinadas faculdades jurídicas pelo decurso do tempo”. Já a surrectio alude ao aparecimento “de uma situação de vantagem em virtude de não ter sido feita qualquer oposição à situação fática verificada por um determinado período de Página 7

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tempo”. Está-se diante, portanto, de uma forma de repercussão do tempo nas situações jurídicas.46 Na Alemanha, devido à largueza dos prazos vigentes antes da reforma de 2001/2002, adotou-se a figura da Verwirkung (ou supressio) nos casos em que o detentor de uma pretensão resta impedido de fazer uso dela em face de um retardo de décadas no tocante ao exercício da pretensão, o que faz surgir no devedor a expectativa legítima de que não mais será demandado. O STJ também já se pronunciou sobre o tema da suppressio. Trata-se de Recurso Especial no qual se discute sobre a interpretação de cláusula constante de convenção de condomínio que determina o uso estritamente comercial das unidades condominiais, diante do fato da aceitação da destinação mista pela coletividade dos condôminos e pelo próprio condomínio. Um dos residentes no condomínio, incomodado com os ruídos provenientes da câmara frigorífica de um supermercado que se estabeleceu no Condomínio, ajuizou demanda requerendo a cessação das interferências prejudiciais e a percepção de indenização por danos morais. Contudo, o exercício das posições jurídicas encontra-se limitada pela boa-fé objetiva. Assim, concluiu-se que o condômino não pode exercer suas pretensões de forma desarrazoada ou excessiva, no intuito de prejudicar o vizinho. A cláusula constante de convenção condominial a impor o uso estritamente comercial não pode prevalecer, na medida que nunca foi observada na prática e não guarda relação com a realidade cotidiana do condomínio em questão. Está-se diante justamente da figura da suppressio: “regra que se desdobra do princípio maior da boa-fé objetiva e segundo a qual o não exercício de direito por certo prazo pode retirar-lhe a eficácia”.47 Nem todo comportamento aparentemente contraditório está ao alcance da proibição do venire contra factum proprium. Uma das questões debatidas em sede Recurso Especial, verbi gratia, diz respeito à qualificação do comportamento do acionista controlador de determinada sociedade anônima como violador da boa-fé objetiva, porquanto destitua Conselheiros na Assembléia Geral que foram por ele mesmo aprovados, e indicados pelos sócios minoritários. No caso em tela, entendeu-se que os acordos de acionistas – versados no art. 118 da Lei das Sociedades Anônimas –, tendo em vista a sua relevância e natureza, devem guardar certas formalidades pertinentes, de modo que necessitam do arquivamento na sede da empresa para que possam se tornar obrigatórios em relação a terceiros. Destarte, a troca de correspondência informal (e-mails) fazendo-se alusão a possíveis posições a serem adotadas nas assembléias de acionistas não pode ser tomada como vinculativa das declarações de vontade, tendo em vista a legislação societária pertinente. No intuito de não permitir que acordos informais entre acionistas em temas de relevância societária possa conflitar com interesses maiores da sociedade, o art. 118 da Lei das Sociedades Anônimas “é enfático ao exigir que os acordos envolvendo compra e venda de suas ações, preferência para adquiri-las, exercício do direito a voto, ou do poder de controle, porque são de relevância societária, devem ser arquivados na sede da empresa”.48 A boa-fé objetiva, ao impedir o exercício malévolo, também se desdobra no denominado dever de mitigar as próprias perdas (duty to mitigate the loss). Excede os limites da boa-fé o comportamento por parte do contratante no sentido de agravar os prejuízos sofridos em virtude de ato praticado pelo outro contratante, no intuito de majorar o valor da indenização que será requerida. No âmbito do STJ, tal aplicação da boa-fé objetiva foi discutida no seio de uma controvérsia acerca do ressarcimento dos honorários advocatícios dispendidos em virtude da mora do devedor. Neste caso, o duty to mitigate the loss se constitui em um ônus imputável ao credor quanto à minimização do dano sofrido em face do inadimplemento, a demandar a busca de soluções amigáveis antes da contratação da prestação de serviços advocatícios. Mister se faz, portanto, que a contratação de advogado se evidencie estritamente necessária. Destarte, concluiu-se pela abusividade da cláusula contratual que “previu, de forma ampla e ilimitada, a possibilidade de ressarcimento dos honorários bastando, na hipótese, que o consumidor esteja inadimplente”.49 Um instituto que se aproxima do dever de não agir contra os próprios atos corresponde ao brocardo do Tu quoque. Neste caso, a boa-fé objetiva impede que uma pessoa que violou determinada regra possa exigir de outra o cumprimento dela.50 A jurisprudência do STJ já fez alusão à tal impossibilidade de alegação do vício pelo contratante que deu causa a ele. No caso em concreto, questionava-se a validade da aposição de assinatura escaneada em nota promissória. O STJ considerou que a assinatura de próprio punho pelo emitente da nota promissória constituiria pressuposto de existência e validade deste negócio jurídico. Somente a lei poderia criar outras formas de assinatura. Entretanto, inexiste lei dispondo sobre a validade da assinatura escaneada no Brasil. Contudo, verifica-se que tal assinatura escaneada foi aposta na cártula pelo próprio emitente. Página 8

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O dever de boa-fé objetiva evidenciado no brocardo latino Tu quoque impede que o violador de uma norma invoque a mesma norma outrora violada por ele com o fito de beneficiar-se do descumprimento, ou a fim de exercer a situação jurídica que essa norma lhe tivesse atribuído.51 Por fim, mas não menos importante, é de se considerar que a boa-fé objetiva impõe o dever de cumprir o que foi prometido no contrato. Todavia, os contratos devem ser interpretados e cumpridos conforme a boa-fé.52 Esta noção de boa-fé impõe, por outro lado, a desnecessidade de cumprimento do contrato “quando as circunstâncias de fato que fundamentaram o contrato se alteraram ao ponto do cumprimento da promessa, como tal, não pode ser esperado, em conformidade com o princípio da boa-fé”.53 Na Alemanha – após a revisão do BGB –, esclareceu-se mais quanto às situações que permitem a exclusão do direito à execução da prestação específica. Assim, distinguiu-se entre a impossibilidade em sentido estrito e as situações em que não é razoável esperar que o devedor execute a prestação. Destarte, de acordo com o atual § 275 (II) do BGB, o devedor pode recusar-se a executar a prestação desde que isto demande um esforço do devedor grosseiramente desproporcional ao interesse do credor no cumprimento da obrigação; o que deve levar em consideração o conteúdo da obrigação e as exigências da boa-fé. Ademais, na interpretação do que pode ser razoavelmente exigido do devedor, deve-se levar em consideração se ele foi o responsável pelo óbice ao cumprimento da obrigação ou não.54 Tais ilações guardam relação com a questão dos efeitos da boa-fé objetiva na apreciação de um contrato de longa duração, no seio da jurisprudência do STJ, em sede de controvérsia que versou sobre a contratação de seguro de vida.55 O segurado mantinha contrato de seguro de vida com a seguradora há mais de 30 anos, mediante cláusula de renovação automática. Em 1999, o segurado optou por aderir às condições gerais de uma apólice coletiva oferecida pela mesma seguradora, vigente a partir do ano 2000. Também a apólice coletiva seguiu sendo renovada automaticamente daí por diante. Contudo, ao final do ano de 2006, a seguradora comunicou ao segurado que não desejava mais renovar o seguro nos termos outrora pactuados, ofertando em substituição três alternativas que foram consideradas desvantajosas pelo segurado. Diante disto, o segurado promoveu ação contra a seguradora, alegando em síntese o seguinte: a) em vista do pagamento regular do prêmio do seguro, restava obstado o direito da seguradora de rescindir ou modificar unilateralmente o contrato; b) a Circular 302/2005, da Susep, terminar por violar a ato jurídico perfeito, vez que permite a não renovação de apólices de seguro desde que observado o pressuposta da prévia notificação; c) a boa-fé objetiva impede a alteração repentina das condições de renovação da avença. Em sede de contestação, a seguradora aduziu os seguintes argumentos: a) as diversas transformações econômicas ocorridas no Brasil impedem que mantenha-se os seguros de vida sob o mesmo regime desde os anos de 1970, marco inicial da série de seguros a que aderiu o autor; b) o Código Civil (LGL\2002\400) vigente, em harmonia com tais transformações econômicas, restringiu a renovação automática de contratos de seguro a apenas uma vez (art. 774 do CC/2002 (LGL\2002\400)); c) as perdas econômicas suportadas pela seguradora, em face da permanência do antigo sistema de renovação dos seguros, forçaram a seguradora a reduzir o seu capital social em mais de 200 milhões de reais; d) os contratos de seguro são anuais, e não vitalícios; de modo que o segurado e a seguradora têm o direito de optar por rejeitar a renovação, sem que isto configure rompimento do contrato; e) o aumento do seguro de vida, diante da mudança de faixa etária do segurado, tem por fundamento a Circular 317/06, da Susep; f) o comportamento da seguradora no sentido de promover a rescisão do contrato não resulta em violação às normas de proteção e defesa do consumidor, pois se fundamenta no exercício do direito de liberdade contratual conferido à seguradora; g) ao promover o aumento do prêmio do seguro, a seguradora buscou impedir a transferência de todos os encargos advindos da alteração do cálculo atuarial do seguro, levando em consideração um programa de readequação mais favorável ao autor. O juízo de 1º grau julgou improcedente o pedido formulado pelo autor. Entre outras razões, asseverou que ao consumidor não é assegurado o direito adquirido e perpétuo à renovação automática do contrato, de modo que a seguradora – lastreada no princípio da liberdade contratual -, pode modificar as condições dos contratos ofertados ao mercado de consumo, tendo em vista a preservação do equilíbrio do contrato. Insatisfeito com o deslinde da demanda, o autor atacou a decisão com a interposição de recurso de apelação; mas, o Tribunal de Justiça negou provimento ao recurso, ao argumento de que não houve abusividade na conduta da seguradora, vez que o contrato Página 9

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de seguro assegurava o direito à não renovação da apólice pelas partes, desde que houvesse aviso prévio de 30 dias. Contrariado, o autor interpôs recurso especial. A Min. Nancy Andrighi, relatora designada para a análise do recurso, aduziu que não se pode perder de vista que o contrato em questão possui as características dos chamados contratos relacionais, ou contratos cativos de longa duração. Em tais contratos, deve-se ter em mira não somente os direitos e deveres que constam expressamente no instrumento negocial, mas também os chamados deveres anexos, que também vinculam as partes, ainda que à falta de previsão específica. Impõe-se, portanto, a realização dos deveres de cooperação, solidariedade, boa-fé objetiva e de proteção da confiança; a incidir não apenas durante a conclusão do contrato, mas também na fase pré-contratual e após o desfazimento do acordo de vontades. Para a Min. Nancy Andrighi, traço característico dos contratos relacionais diz respeito ao fato do consumidor, após longos anos de permanência em uma relação jurídica complexa, termina por se expor de tal forma que se torna um cliente “cativo” do fornecedor, pois se reduz a uma situação de dependência quanto a preservação da relação contratual. Assim, o consumidor terminaria por aceitar com mais facilidade quaisquer novas condições impostas pelo fornecedor, no afã de manter o vínculo. O contrato celebrado entre o segurado e a seguradora apresentaria tais traços característicos dos contratos cativos ou relacionais, portanto. Disto resulta que a seguradora não pode ser obrigada a suportar sozinha os prejuízos decorrentes das alterações econômicas e sociais sofridas ao longo de 30 anos. O dever de cooperação impõe ao consumidor o dever de colaborar com a seguradora, com o fito de contribuir para a preservação do vínculo contratual. Contudo, no entender da Min. Nancy Andrighi, “não é razoável imaginar que, de um ano para o outro, a seguradora teve uma ‘súbita’ constatação de que amargava prejuízos em sua carteira de seguros de vida, justificando a completa modificação do sistema anterior de forma abrupta”. In casu, a seguradora deve responder por não haver sido diligente na verificação do desequilíbrio em sua carteira, de modo a estabelecer com o consumidor um programa de escalonamento, a fim de minimizar as disparidades. O dever de boa-fé objetiva impõe, portanto, que se evite mudanças bruscas que impeçam o cumprimento razoável das obrigações. Os aumentos relacionados ao prêmio do seguro, bem como eventuais reduções na cobertura securitária; devem ser informados com bastante antecipação ao consumidor, além de observaram um processo escalonado e lento. Com isto, o consumidor poderia se preparar para as mudanças a serem empreendidas, além de poder colaborar com a seguradora no que toca ao prejuízos sofridos pela empresa, na medida dos seus recursos financeiros. Como não houve a oferta ao consumidor de tal proposta de escalonamento pela seguradora, nos termos do voto da Ministra relatora, interpretou-se que a resilição unilateral não poderia prevalecer porquanto fosse exercida em desconformidade com os limites impostos pela boa-fé objetiva; pelo que determinou o reestabelecimento imediato a apólice de seguro.56

1 Pasa, Barbara. Old terms for new concepts in consumer contracts? Jean Monet Working Paper. n. 09 (2007). New York: NYU School of Law, p. 12-13. 2 Castro Junior, Torquato da Silva. A “regra de calibração” da boa-fé enquanto ruptura sistêmica: crítica à doutrina de Pontes de Miranda. In: Costa Filho, Venceslau Tavares; Castro Junior, Torquato da Silva (coords.). A modernização do direito civil. Recife: Nossa Livraria, 2011. vol. I. p. 97. 3 Costa Filho, Venceslau Tavares. A morte e a morte da concepção sistemática do direito privado. Abertura hermenêutica, tópica e cláusulas gerais. Revista de Informação Legislativa. a. 48. n. 189 (jan.-mar. 2011). Brasília: Senado Federal, p. 151. 4 Zenati-Castaing, Frédéric. La proposition de refonte du livre II du code civil: etude critique. Revue trimestrielle de droit civil, n. 2 (avril-juin 2009). Paris: Dalloz, p. 212. 5 Lôbo, Paulo Luiz Netto. Condições gerais dos contratos e o Código Civil (LGL\2002\400). In: Costa Filho, Venceslau Tavares; Castro Junior, Torquato da Silva (coords.). A modernização do direito civil: volume I. Recife: Nossa Livraria, 2011, p. 145-146. Página 10

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6 Dauner-Lieb, Barbara. Vers un droit européen des obligations? Enseignements tirés de la réforme allemande du droit des obligations. Revue international de droit comparé, a. 56, n. 3 (Juillet-Septembre 2004). Paris: CNRS/Société de législation compare, p. 565. 7 Zippelius, Reinhold. Introdução ao estudo do direito. Trad. Gercélia Batista de Oliveira Mendes. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. p. 71. 8 Barcellona, Pietro; Camardi, Carmelita. Le istituzioni del diritto privato contemporaneo. Napoli: Jovene Editore, 2002. p. 203. 9 Zippelius, Reinhold. Introdução ao estudo do direito. Trad. Gercélia Batista de Oliveira Mendes. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. p. 72. 10 Coing, Helmut. Grundzüge der rechtsphilosophie. Berlin: Walter de Gruyter & Co., 1950. p. 146. 11 Noronha, Fernando. O direito dos contratos e seus princípios fundamentais: autonomia privada, boa-fé, justiça contratual. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 132. 12 Miranda, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de direito privado – Parte Geral. 2. ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954, § 327, vol. III. p. 331-332. 13 Enneccerus, Ludwig; Nipperdey, Hans Carl. Derecho Civil (Parte General). Barcelona: Bosch, 1943. Volumen Primero. p. 216. 14 Noronha, Fernando. Op. cit., p. 155. 15 REsp 1.063.343/RS, j. 12.08.2009, rel. p/ o acórdão Min. João Otávio de Noronha. 16 Miranda, Francisco Cavalcanti Pontes de. Op. cit., p. 53. 17 Idem, t. XLIV, p. 418. 18 Idem, t. XLIV, p. 420. 19 REsp 595.631/SC, j. 08.06.2004, rel. Min. Nancy Andrighi. 20 Martins-Costa, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São Paulo: Ed. RT, 1999. p. 34. 21 Noronha, Fernando. Op. cit. 22 Westermann, Harm Peter. Código Civil (LGL\2002\400) Alemão; direito das obrigações; parte geral. Trad. de Armindo Edgar Laux. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1983. p. 16. 23 AgRg no AgIn 47.901-3/SP, j. 12.09.1997, rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar. 24 Lobo, Paulo. Teoria geral das obrigações. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 77-80. 25 REsp 586.316/MG, j. 17.04.2007, rel. Min. Herman Benjamin. 26 Pedimos vênia para indicar a leitura de alguns dos nossos estudos sobre a mencionada reforma legislativa: a) Costa Filho, Venceslau Tavares. Alguns aspectos da lei para a modernização do direito das obrigações na Alemanha. Revista de Direito Privado. vol. 45. São Paulo: Ed. RT, jan.-mar. 2011; b) Costa Filho, Venceslau Tavares. Sobre a prescrição e a boa-fé no exercício da pretensão executiva: breves reflexões a partir da reforma do direito obrigacional alemão. In: Adonias, Antonio; Didier Jr., Fredie; Cunha, Leonardo Carneiro da (coords.). Execução e Cautelar – Estudos em homenagem a José de Moura Rocha. Salvador: Juspodivm, 2012. 27 Cordeiro, António Menezes. Da modernização do direito civil, I volume (aspectos gerais). Coimbra: Almedina, 2004. p. 100.

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28 Costa Filho, Venceslau Tavares. Alguns aspectos da lei para… cit. 29 Cordeiro, António Menezes. Op. cit., p. 101. 30 Grundmann, Stefan. Leistungsstörungsmodelle im Deutschen und Europäischen Vertragsrecht – insbesondere Zurückweisung der charakteristischen Leistung. In: Heldrich, Andreas; Prölss, Jürgen; Koller, Ingo (hrsg.). Sonderdruck aus Festschrift für Claus-Wilhelm Canaris zum 70. Geburtstag. München: Verlag C.H. Beck, 2007. p. 307. 31 Zimmermann, Reinhard. Breach of contract and remedies under the new german law of obligations. Saggi, conferenze e seminari, n. 48 (2002). Roma: Centro di studi e ricerche di diritto comparato e straniero, p. 08. 32 Lardeux, Gwendoline. Droits civils français et allemand: entre convergence matérielle et opposition intellectuelle. Revue de la recherche juridique – Droit prospectif, n. 113 (2006-2). Marseille: Puam, p. 39-40. 33 REsp 1.051.065/AM, j. 21.02.2012, rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva. 34 Noronha, Fernando. O direito dos contratos e seus princípios fundamentais: autonomia privada, boa-fé, justiça contratual. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 167. 35 Coing, Helmut. Grundzüge der rechtsphilosophie. Berlin: Walter de Gruyter & Co., 1950, p. 146-147. 36 Castro, Torquato. Prefácio. In: Costa Júnior, Olímpio. A relação jurídica obrigacional: situação, relação e obrigações em direito. São Paulo: Saraiva: 1994, p. XVI. 37 Leonardo, Rodrigo Xavier. Redes contratuais no mercado habitacional. São Paulo: Ed. RT, 2003. p. 190-191. 38 Idem, p. 194. 39 REsp 436.853/DF, j. 04.05.2006, rel. Min. Nancy Andrighi. 40 Coing, Helmut. Grundzüge der rechtsphilosophie. Berlin: Walter de Gruyter & Co., 1950. p. 183. 41 REsp 590.336/SC, j. 07.12.2004, rel. Min. Nancy Andrighi. 42 Souza Neto, José Soriano de. A construção científica alemã sobre os atos jurídicos em sentido estrito e a natureza jurídica do reconhecimento da filiação ilegítima. Revista Acadêmica, ano LVIII (1951-1956). Recife: Universidade do Recife. 43 Souza Neto, José Soriano de. A construção científica alemã sobre os atos jurídicos em sentido estrito e a natureza jurídica do reconhecimento da filiação ilegítima. Revista Acadêmica, ano LVIII (1951-1956). Recife: Universidade do Recife, p. 14. 44 Souza Neto, José Soriano de. Eficácia da legitimação por subseqüente matrimônio e ação do filho legitimado para investigar paternidade diferente da resultante da legitimação. Revista Acadêmica, ano LVIII (1951-1956). Recife: Universidade do Recife, p. 301. 45 Duarte, Ronnie Preuss. A cláusula geral da boa-fé no novo código civil brasileiro. In: Delgado, Mário Luiz; Alves, Jones Figueirêdo. Questões controvertidas no novo Código Civil (LGL\2002\400). Série grandes temas de direito privado. São Paulo: Método, 2004. vol. 2. p. 425. 46 Idem, p. 427. 47 REsp 1.096.639/DF, j. 09.12.2008, rel. Min. Nancy Andrighi. Página 12

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48 REsp 1.102.424/SP, j. 18.08.2009, rel. Min. Massami Uyeda. 49 REsp 1.274.629/AP, j. 16.05.2013, rel. Min. Nancy Andrighi. 50 Lobo, Paulo. Teoria geral das obrigações… cit., p. 90. 51 REsp 1.192.678/PR, j. 13.11.2012, rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino. 52 Barcellona, Pietro; Camardi, Carmelita. Le istituzioni del diritto privato contemporaneo. Napoli: Jovene Editore, 2002. p. 232. 53 Zippelius, Reinhold. Introdução ao estudo do direito. Trad. Gercélia Batista de Oliveira Mendes. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. p. 75. 54 Zimmermann, Reinhard. Breach of contract and remedies under the new german law of obligations. Saggi, conferenze e seminari, n. 48 (2002). Roma: Centro di studi e ricerche di diritto comparato e straniero, p. 12. 55 Cf.: RESP 1.073.595-MG. 56 REsp 1.073.595/MG, j. 23.03.2011, rel. Min. Nancy Andrighi.

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