Contos de Natal na Literatura em Língua Portuguesa

June 3, 2017 | Autor: I. Carneiro de Sousa | Categoria: Portuguese and Brazilian Literature, Portuguese Literature, Lusofonia, Christmas, Christmas in Literature
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Seis meses já passados depois do início desta aventura de fazer e distribuir semana após semana estas Lusofonias, chega-se mais realizadamente cansado a este Natal de 2013, mas muito obrigados a agradecer a todos os que se reuniram para fazer este suplemento: director, jornalistas, gráficos e muitos colaboradores espalhados interessadamente pelas diferentes geografias dos Países de Língua Oficial Portuguesa, e mesmo muito mais além. Agora que até o Natal não parece escapar à lucrativa globalização comercial e industrial do calendário – apesar dessas concorrências mais recentes e estranhas, entre São Valentim e Halloween – parece acertado relembrar gestos simples e repetidas palavras em que se valoriza a fraternidade, a solidariedade e a sincera amizade. Aqui servida em sobremesa desse quase lusófono bacalhau, outras iguarias e doçarias muitas em que se foram mesclando e transformando as viagens também dos pluriculturais sabores das lusofonias. Fica esse outro sabor ainda mais sublime, de cultural digestão muito mais gostosa, da leitura de cinco contos de Natal de outros cinco escritores maiores da língua portuguesa: Mário de Andrade (1893-1945), José Saramago (19222010), Lygia Fagundes Telles (n. 1923)

lusofonias nº 24 | 30 de Dezembro de 2013 Este suplemento é parte integrante do Jornal Tribuna de Macau e não pode ser vendido separadamente

COORDENAÇÃO: Ivo Carneiro de Sousa

TEXTOS: • Mário de Andrade: O Perú de Natal • José Saramago: História de um muro branco e de um neve preta • Lygia Fagundes Telles: Natal na barca • José Eduardo Águalusa: A Noite em que prenderam o Pai Natal • João Ubaldo Ribeiro: Jingobel, Jingobel

Dia 06 de Janeiro: Receita de Ano Novo com Poesia em Lusofonias

APOIO:

Contos Natal de

CONTOS DE NATAL:

Mário de Andrade, José Saramago, Lygia Fagundes Telles, José Eduardo Águalusa e João Ubaldo Ribeiro Ivo Carneiro de Sousa

S

eis meses já passados depois do início desta aventura de fazer e distribuir semana após semana estas Lusofonias, chega-se mais realizadamente cansado a este Natal de 2013, mas muito obrigados a agradecer a todos os que se reuniram para fazer este suplemento: director, jornalistas, gráficos e muitos colaboradores espalhados interessadamente pelas diferentes geografias dos Países de Língua Oficial Portuguesa, e mesmo muito mais além. Agora que até o Natal não parece escapar à lucrativa glo-

balização comercial e industrial do calendário – apesar dessas concorrências mais recentes e estranhas, entre São Valentim e Halloween – parece acertado relembrar gestos simples e repetidas palavras em que se valoriza a fraternidade, a solidariedade e a sincera amizade. Aqui servida em sobremesa desse quase lusófono bacalhau, outras iguarias e doçarias muitas em que se foram mesclando e transformando as viagens também dos pluriculturais sabores das lusofonias. Fica esse outro sabor ainda mais su-

blime, de cultural digestão muito mais gostosa, da leitura de cinco contos de Natal de outros cinco escritores maiores da língua portuguesa: Mário de Andrade (1893-1945), José Saramago (1922-2010), Lygia Fagundes Telles (n. 1923), José Eduardo Águalusa (n. 1960) e João Ubaldo Ribeiro (n. 1941). Feliz Natal e Bom Proveito, porque autorizados são todos os excessos, mesmo os de leitura. E, se por acaso, nunca provou, experimente agora. Simplesmente, delicioso!

MÁRIO DE ANDRADE

O Peru de Natal O

nosso primeiro Natal de família, depois da morte de meu pai acontecida cinco meses antes, foi de consequências decisivas para a felicidade familiar. Nós sempre fôramos familiarmente felizes, nesse sentido muito abstrato da felicidade: gente honesta, sem crimes, lar sem brigas internas nem graves dificuldades econômicas. Mas, devido principalmente à natureza cinzenta de meu pai, ser desprovido de qualquer lirismo, de uma exemplaridade incapaz, acolchoado no medíocre, sempre nos faltara aquele aproveitamento da vida, aquele gosto pelas felicidades materiais, um vinho bom, uma estação de águas, aquisição de geladeira, coisas assim. Meu pai fora de um bom errado, quase dramático, o puro-sangue dos desmancha-prazeres. Morreu meu pai, sentimos muito, etc. Quando chegamos nas proximidades do Natal, eu já estava que não podia mais pra afastar aquela memória obstruente do morto, que parecia ter sistematizado pra sempre a obrigação de uma lembrança dolorosa em cada almoço, em cada gesto mínimo da família. Uma vez que eu sugerira à mamãe a idéia dela ir ver uma fita no cinema, o que resultou foram lágrimas. Onde se viu ir ao cinema, de luto pesado! A dor já estava sendo cultivada pelas aparências, e eu, que sempre gostara apenas regularmente de meu pai, mais por instinto de filho que por espontaneidade de amor, me

via a ponto de aborrecer o bom do morto. Foi decerto por isto que me nasceu, esta sim, espontaneamente, a ideia de fazer uma das minhas chamadas “loucuras”. Essa fora aliás, e desde muito cedo, a minha esplêndida conquista contra o ambiente familiar. Desde cedinho, desde os tempos de ginásio, em que arranjava regularmente uma reprovação todos os anos; desde o beijo às escondidas, numa prima, aos dez anos, descoberto por Tia Velha, uma detestável de tia; e principalmente desde as lições que dei ou recebi, não sei, de uma criada de parentes: eu consegui no reformatório do lar e na vasta parentagem, a fama conciliatória de “louco”. “É doido, coitado!” falavam. Meus pais falavam com certa tristeza condescendente, o resto da parentagem buscando exemplo para os filhos e provavelmente com aquele prazer dos que se convencem de alguma superioridade. Não tinham doidos entre os filhos. Pois foi o que me salvou, essa fama. Fiz tudo o que a vida me apresentou e o meu ser exigia para se realizar com integridade. E me deixaram fazer tudo, porque eu era doido, coitado. Resultou disso uma existência sem complexos, de que não posso me queixar um nada. Era costume sempre, na família, a

De escrever para marmanjos já estou enjoado. Bichos sem graça. Mas para crianças um livro é todo um mundo.

ceia de Natal. Ceia reles, já se imagina: ceia tipo meu pai, castanhas, figos, passas, depois da Missa do Galo. Empanturrados de amêndoas e nozes (quanto discutimos os três manos por causa dos quebra-nozes...), empanturrados de castanhas e monotonias, a gente se abraçava e ia pra cama. Foi lembrando isso que arrebentei com uma das minhas “loucuras”: -Bom, no Natal, quero comer peru. Houve um desses espantos que ninguém não imagina. Logo minha tia solteirona e santa, que morava connosco, advertiu que não podíamos convidar ninguém por causa do luto. -Mas quem falou de convidar ninguém! essa mania... Quando é que a gente já comeu peru em nossa vida! Peru aqui em casa é prato de festa, vem toda essa parentada do diabo... -Meu filho, não fale assim... -Pois falo, pronto! Descarreguei minha gelada indiferença pela nossa parentagem infinita, diz que vinda de bandeirantes, que bem me importa! Era mesmo o momento pra desenvolver minha teoria de doido, coitado, não perdi a ocasião. Me deu de sopetão uma ternura imensa por mamãe e titia, minhas duas mães, três com minha irmã, as três mães que sempre me divinizaram a vida. Era sempre aquilo: vinha aniversário de alguém e só então faziam peru naquela casa. Peru era prato de festa: uma imundície de parentes já preparados pela tradição, invadiam a

casa por causa do peru, das empadinhas e dos doces. Minhas três mães, três dias antes já não sabiam da vida senão trabalhar, trabalhar no preparo de doces e frios finíssimos de bem feitos, a parentagem devorava tudo e ainda levava embrulhinhos pros que não tinham podido vir. As minhas três mães mal podiam de exaustas. Do peru, só no enterro dos ossos, no dia seguinte, é que mamãe com titia ainda provavam num naco de perna, vago, escuro, perdido no arroz alvo. E isso mesmo era mamãe quem servia, catava tudo pro velho e pros filhos. Na verdade ninguém sabia de fato o que era peru em nossa casa, peru resto de festa. Não, não se convidava ninguém, era um peru pra nós, cinco pessoas. E havia de ser com duas farofas, a gorda com os miúdos, e a seca, douradinha, com bastante manteiga. Queria o papo recheado só com a farofa gorda, em que havíamos de ajuntar ameixa preta, nozes e um cálice de xerez, como aprendera na casa da Rose, muito minha companheira. Está claro que omiti onde aprendera a receita, mas todos desconfiaram. E ficaram logo naquele ar de incenso assoprado, se não seria tentação do Dianho aproveitar receita tão gostosa. E cerveja bem gelada, eu garantia quase gritando. É certo que com meus “gostos”, já bastante afinados fora do lar, pensei primeiro num vinho bom, completamente francês.

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II

Segunda-feira, 30 de Dezembro de 2013 • LUSOFONIAS

lusofonias

Mas a ternura por mamãe venceu o doido, mamãe adorava cerveja. Quando acabei meus projetos, notei bem, todos estavam felicíssimos, num desejo danado de fazer aquela loucura em que eu estourara. Bem que sabiam, era loucura sim, mas todos se faziam imaginar que eu sozinho é que estava desejando muito aquilo e havia jeito fácil de empurrarem pra cima de mim a... culpa de seus desejos enormes. Sorriam se entreolhando, tímidos como pombas desgarradas, até que minha irmã resolveu o consentimento geral: -É louco mesmo!... Comprou-se o peru, fez-se o peru, etc. E depois de uma Missa do Galo bem mal rezada, se deu o nosso mais maravilhoso Natal. Fora engraçado: assim que me lembrara de que finalmente ia fazer mamãe comer peru, não fizera outra coisa aqueles dias que pensar nela, sentir ternura por ela, amar minha velhinha adorada. E meus manos também, estavam no mesmo ritmo violento de amor, todos dominados pela felicidade nova que o peru vinha imprimindo na família. De modo que, ainda disfarçando as coisas, deixei muito sossegado que mamãe cortasse todo o peito do peru. Um momento aliás, ela parou, feito fatias um dos lados do peito da ave, não resistindo àquelas leis de economia que sempre a tinham entorpecido numa quase pobreza sem razão. -Não senhora, corte inteiro! Só eu como tudo isso! Era mentira. O amor familiar estava por tal forma incandescente em mim, que até era capaz de comer pouco, só pra que os outros quatro comessem demais. E o diapasão dos outros era o mesmo. Aquele peru comido a sós, redescobria em cada um o que a quotidianidade abafara por completo, amor, paixão de mãe, paixão de filhos. Deus me perdoe mas estou pensando em Jesus... Naquela casa de burgueses bem modestos, estava se realizando um milagre digno do Natal de um Deus. O peito do peru ficou inteiramente reduzido a fatias amplas. -Eu que sirvo! “É louco, mesmo” pois por que havia de servir, se sempre mamãe servira naquela casa! Entre risos, os grandes pratos cheios foram passados pra mim e principiei uma distribuição heróica, enquanto mandava meu mano servir a cerveja. Tomei conta logo de um pedaço admirável da “casca”, cheio de gordura e pus no prato. E depois vastas fatias

brancas. A voz severizada de mamãe cortou o espaço angustiado com que todos aspiravam pela sua parte no peru: -Se lembre de seus manos, Juca! Quando que ela havia de imaginar, a pobre! que aquele era o prato dela, da Mãe, da minha amiga maltratada, que sabia da Rose, que sabia meus crimes, a que eu só lembrava de comunicar o que fazia sofrer! O prato ficou sublime. -Mamãe, este é o da senhora! Não! não passe não! Foi quando ela não pode mais com tanta comoção e principiou chorando. Minha tia também, logo percebendo que o novo prato sublime seria o dela, entrou no refrão das lágrimas. E minha irmã, que jamais viu lágrima sem abrir a torneirinha também, se esparramou no choro. Então principiei dizendo muitos desaforos pra não chorar também, tinha dezanove anos... Diabo de família besta que via peru e chorava! coisas assim. Todos se esforçavam por sorrir, mas agora é que a alegria se tornara impossível. É que o pranto evocara por associação a imagem indesejável de meu pai morto. Meu pai, com sua figura cinzenta, vinha pra sempre estragar nosso Natal, fiquei danado. Bom, principiou-se a comer em silêncio, lutuosos, e o peru estava perfeito. A carne mansa, de um tecido muito tênue boiava fagueira entre os sabores das farofas e do presunto, de vez em quando ferida, inquietada e redesejada, pela intervenção mais violenta da ameixa preta e o estorvo petulante dos pedacinhos de noz. Mas papai sentado ali, gigantesco, incompleto, uma censura, uma chaga, uma incapacidade. E o peru, estava tão gostoso, mamãe por fim sabendo que peru era manjar mesmo digno do Jesusinho nascido. Principiou uma luta baixa entre o peru e o vulto de papai. Imaginei que gabar o peru era fortalecê-lo na luta, e, está claro, eu tomara decididamente o partido do peru. Mas os defuntos têm meios visguentos, muito hipócritas de vencer: nem bem gabei o peru que a imagem de papai cresceu vitoriosa, insuportavelmente obstruidora. -Só falta seu pai... Eu nem comia, nem podia mais gostar daquele peru perfeito, tanto que me interessava aquela luta entre os dois mortos. Cheguei a odiar papai. E nem sei que inspiração genial, de repente me tornou hipócrita e político. Naquele instante que hoje me parece decisivo da nossa família, tomei aparentemente o partido de meu pai. Fingi, triste:

-É mesmo... Mas papai, que queria tanto bem a gente, que morreu de tanto trabalhar pra nós, papai lá no céu há de estar contente... (hesitei, mas resolvi não mencionar mais o peru) contente de ver nós todos reunidos em família. E todos principiaram muito calmos, falando de papai. A imagem dele foi diminuindo, diminuindo e virou uma estrelinha brilhante do céu. Agora todos comiam o peru com sensualidade, porque papai fora muito bom, sempre se sacrificara tanto por nós, fora um santo que “vocês, meus filhos, nunca poderão pagar o que devem a seu pai”, um santo. Papai virara santo, uma contemplação agradável, uma inestorvável estrelinha do céu. Não prejudicava mais ninguém, puro objeto de contemplação suave. O único morto ali era o peru, dominador, completamente vitorioso. Minha mãe, minha tia, nós, todos alagados de felicidade. Ia escrever «felicidade gustativa», mas não era só isso não. Era uma felicidade maiúscula, um amor de todos, um esquecimento de outros parentescos distraidores do grande amor familiar. E foi, sei que foi aquele primeiro peru comido no recesso da família, o início de um amor novo, reacomodado, mais completo, mais rico e inventivo, mais complacente e cuidadoso de si. Nasceu de então uma felicidade familiar pra nós que, não sou exclusivista, alguns a terão assim grande, porém mais intensa que a nossa me é impossível conceber. Mamãe comeu tanto peru que um momento imaginei, aquilo podia lhe fazer mal. Mas logo pensei: ah, que faça! mesmo que ela morra, mas pelo menos que uma vez na vida coma peru de verdade! A tamanha falta de egoísmo me transportara o nosso infinito amor... Depois vieram umas uvas leves e uns doces, que lá na minha terra levam o nome de “bem-casados”. Mas nem mesmo este nome perigoso se associou à lembrança de meu pai, que o peru já convertera em dignidade, em coisa certa, em culto puro de contemplação. Levantamos. Eram quase duas horas, todos alegres, bambeados por duas garrafas de cerveja. Todos iam deitar, dormir ou mexer na cama, pouco importa, porque é bom uma insônia feliz. O diabo é que a Rose, católica antes de ser Rose, prometera me esperar com uma champanha. Pra poder sair, menti, falei que ia a uma festa de amigo, beijei mamãe e pisquei pra ela, modo de contar onde é que ia e fazê-la sofrer seu bocado. As outras duas mulheres beijei sem piscar. E agora, Rose!...

JOSÉ SARAMAGO

História de um muro branco *

e de uma neve preta

N

ão haveria nada mais fácil no mundo das histórias que escrever um conto de Natal com Menino Jesus ou sem ele, se não fosse dar-se o caso de que uma criança que nasce está sempre nascendo. O nosso grande erro, esquecidos como em geral andamos das infâncias que vivemos, foi pensar que as crianças nascem uma única vez e que depois de nascidas se limitam a ficar à espera de que o tempo passe e as transforme em adultos, os quais, como deveríamos saber, constituem uma espécie diferente de seres humanos. A crian-

lusofonias

ça começa por nascer uma vez, que é a de vir ao mundo, e depois continua a nascer para compreendê-lo: não tem outro remédio nem há outra maneira. Como se verá pelas duas breves histórias que se seguem, ambas autênticas, ambas verdadeiras. A terra, àquela hora, cobria-se de uma noite tão escura que parecia impossível que dela pudesse nascer o Sol. Não tem chovido, as tempestades andam por longe, o rio descansa da sua primeira cheia de Inverno, os charcos são de mercúrio. O ar está frio, parado, e estala quando respi-

ramos, como se nele se suspendesse uma ténue rede de cristais de gelo. Há uma casa e luz lá dentro. E gente: a Família. Na lareira ardem grossos troncos de lenha de donde se desprendem, lentas, as brasas. Quando à fogueira se lhes juntam gravetos, ramos secos, um punhado de palha, a labareda cresce, divide-se em trémulas línguas, sobe pela chaminé encarvoada de fuligem, ilumina os rostos da família e logo volta a quebrar-se. Ouve-se o ferver das panelas, o frigir do azeite onde bóiam as formas redondas das filhós, entre

o fumo espesso e gorduroso que vai entranhar-se nas traves baixas do telhado e nas roupas húmidas. São talvez nove horas, a modesta mesa está posta, o momento é de paz e de conciliação, e a Família anda pela casa, confusamente ocupada em pequenos trabalhos, como um formigueiro. Não tarda que saiam todos para o quintal. Vai ser lançado ao ar o foguete de três respostas, esse que, cumprindo a tradição, anunciará CONTINUA NA PÁGINA SEGUINTE >

LUSOFONIAS • Segunda-feira, 30 de Dezembro de 2013

III

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aos vizinhos que naquela casa já a última filhó saiu do tacho, a escorrer, e foi cair no alguidar profundo onde aguardará o retoque final da canela e da calda de açúcar. Entre portas, a Criança vê a Família a sorrir fazendo e desfazendo grupos em torno do avô, que sopra um tição trazido da lareira e o aproxima do cartucho de pólvora amarrado ao caniço. Tinha pedido que o deixassem ajudar, mas responderam-lhe como das outras vezes: “Ainda és muito pequeno, para o ano que vem”. A Família tem razão: é preciso ter cuidado com as crianças. A pólvora inflama-se bruscamente, lança um jacto de fagulhas vivíssimas, silva como uma serpente, e logo é um dragão rugindo que sobe para o ar gelado, corta-o como uma espada de fogo, e lá muito no alto, quase tocando as primeiras estrelas, estala, estraleja, cobrindo os ecos de outro foguete distante. O caniço desce com uma luz mortiça que desmaia, e vai cair longe, nos olivais que rodeiam a casa, sobre as ervas cobertas de geada. Com este tempo não há perigo de que pegue fogo às árvores. De súbito, a Família diz que está frio e volta para casa, levando entre os braços, entre os anéis, entre os tentáculos, a Criança a quem não deixaram ajudar a lançar o foguete. Tinham deixado a porta aberta, o interior da cozinha arrefecera. A Avó acode a espalhar na fogueira uma mão-cheia de aparas, desgalha um ramo seco de oliveira, parte-o com as mãos calejadas, mas é com suavidade que depois chega os troços à chama, como se estivesse a alimentá-la. O lume hesita, escolhe o lado mais acessível da lenha, e depois, indiferente, alheado, a pensar noutra coisa, recomeça o seu eterno ofício de fabricante de cinzas. A Família gira em redor da mesa, arruma-se nas poucas cadeiras que há, trazidas algumas de outras casas, uns quantos escabelos pouco firmes, um caixote velho posto em pé. Os rostos estão sorridentes e corados, e têm nomes e apelidos, mas, para a Criança, são, antes de tudo, os Pais, os Avós, os Tios, os Primos, um enorme e complicado corpo de animal que lhe lembra a história da Bicha-de-Sete-Cabeças ou o Dragão-Que-Não-Dorme. Sobre a mesa trava-se uma gesticulação ruidosa de facas e garfos, de mãos, de dentes, uma contínua mastigação que deforma os rostos e engordura as bocas. Contam-se casos, anedotas, todos riem. O frio está lá fora, e a geada, e a noite impenetrável. A Criança anima-se, já esqueceu a decepção, para o ano talvez a deixem lançar o foguete sozinha. Também tem uma história para

IV

contar, só está à espera duma pausa, dum momento mágico em que todos se calem, acaso emudecidos por um anjo que passou deixando apenas a imagem de um dedo imperioso sobre os lábios cerrados. O momento está a chegar por fim, uma a uma calam-se as bocas da Família, é agora ou nunca, a Criança inspira fundo, rompe o silêncio, começa a falar. A Família olha surpreendida, dá alguma atenção, mas não muita nem por muito tempo, não dura, não pode durar, as vozes regressam do silêncio, e é o Pai que lhe corta a narrativa com uma frase que faz rir toda a gente. Uma frase que vai fazer chorar a Criança. Porque o Menino, a Criança é um menino, levanta-se da mesa, abre a porta, separa-se da Família e desce os três degraus de pedra que conduzem ao mundo. Ali adiante há um muro caiado, baixo, com uma varanda dando para terras ignotas. A Criança vai debruçar-se sobre o muro, deixa cair a cabeça sobre os braços cruzados, e o terrível nó das lágrimas desata-se dentro de si. Da casa vêm risos e vozes, alguém fala muito alto, e depois ressoam gargalhadas. Ninguém está pensando na Criança. Faz muito frio. Visto daqui, o céu parece estar feito de veludo negro. E há as estrelas. Duras, nítidas, implacáveis, quase ferozes. A Criança levanta os olhos. Lá estão elas a brilhar. Olhadas através das lágrimas, as estrelas são diferentes. Mundo estranho, estranho mundo, este. Sob os passos da criança, o chão duro e gelado range. E, em frente, as árvores negras, misteriosas, onde à noite os grandes medos se vão esconder, tomam o ar confidencial de quem conhece todos os segredos futuros, a hora e o lugar onde acontecerá o terceiro nascimento e o quarto, e o quinto, todos os aqueles que ainda esperam a esta Criança, até mesmo quando de havê-lo sido já não lhe restar memória. As Crianças estão sempre a nascer. Às vezes nascem de explosivas alegrias, de achados incríveis, de deslumbramentos únicos, mas o mais frequente, uma vez após outra, é nascerem de cada tristeza sofrida em silêncio, de cada desgosto padecido, de cada frustração imerecida. Há que ter muito cuidado com as Crianças, nunca me cansarei de o dizer. Um dia uma Professora teve uma ideia de Professora e mandou os seus alunos que fizessem uma composição plástica sobre o Natal. Claro está que não empregou esta linguagem, o que disse foi: “Façam um desenho sobre o Natal. Usem lápis de cores, ou aguarelas, ou papel de lustro, o que quiserem. E tragam na segunda-feira”. Uns com lápis, outros com aguarelas, outros com papel recortado, alguns pintando com os dedos, todos cumpriram o melhor que

Segunda-feira, 30 de Dezembro de 2013 • LUSOFONIAS

puderam. Apareceu tudo quanto é costume nestes casos: o presépio, os reis magos, os pastores, São José, a Virgem e, inevitavelmente, o Menino Jesus. Bem feitos uns, mal feitos outros, toscos ou esmerados, os desenhos caíram na segunda-feira em cima da secretária da Professora. Ali mesmo ela os viu e lhes pôs nota. Ia marcando “bom”, “mau”, “suficiente”, como se com esses juízos os marcasse para a eternidade. De repente. Ah, quantas vezes ainda teremos de dizer que é preciso muito cuidado com as crianças! A Professora segura um desenho nas mãos, um desenho que não é melhor nem pior que os outros. Mas ela tem os olhos fixos, está confusa, perturbada: o desenho mostra a invariável manjedoura, a vaca e o burrinho, e toda a restante figuração. Sobre esta cena já sem mistério cai a neve, e esta neve é preta. Porquê? “Porquê?”, pergunta a Professora à Menina que fez o desenho. A Menina não responde. Talvez mais nervosa do que quereria mostrar, a Professora insiste. Há na sala os risos cruéis e os murmúrios de troça que sempre aparecem em ocasiões destas. A Menina está de pé, muito séria, um pouco trémula. E responde, por fim: “Pintei a neve preta porque foi nesse Natal que a minha mãe morreu”. Fez-se silêncio e a Professora pensou, assim o veio a contar mais tarde: “À Lua já chegámos, mas quando e como conseguiremos chegar ao espírito duma criança que pintou a neve preta porque a mãe lhe morreu?”. Muitos anos depois destas histórias terem acontecido, contei-as a uma outra Menina, que me perguntou: “E eles ainda estão tristes?”. Nessa altura disse-lhe que sim, que há tristezas que o tempo não consegue apagar, mas hoje conforta-me a ideia de que talvez o Menino do Muro Branco e a Menina da Neve Negra se tenham encontrado na vida, e que talvez por causa deles o mundo já esteja a mudar sem que nós tenhamos dado por isso. *Este conto (se o é) tem a sua origem em duas crónicas, “Um Natal Há Cem Anos” e “A Neve Preta”, publicadas no jornal A Capital no final dos anos 60 e que hoje podem ser lidas mais comodamente no volume Deste Mundo e do Outro. A junção delas (que de certa maneira é também fusão) aconteceu em 1995 e teve como destino uma revista espanhola entretanto desaparecida. Relidas hoje, novamente refeitas, estas velhas crónicas perguntam se o muro branco ainda lá está e se ainda há quem tenha de continuar a pintar a neve com tinta preta. Por mim, acho que sim. Quem dera que sejam muitos os que tenham razões para pensar que não.

N

ão quero nem devo lembrar aqui por qu me encontrava naquela barca. Só sei qu em redor tudo era silêncio e treva. E que m sentia bem naquela solidão. Na embarcaçã desconfortável, tosca, apenas quatro passa geiros. Uma lanterna nos iluminava com su luz vacilante: um velho, uma mulher com uma criança e eu. O velho, um bêbado esfarrapado, deitara-s de comprido no banco, dirigira palavras ame nas a um vizinho invisível e agora dormia. mulher estava sentada entre nós, apertand nos braços a criança enrolada em panos. Er uma mulher jovem e pálida. O longo mant escuro que lhe cobria a cabeça dava-lhe aspecto de uma figura antiga. Pensei em falar-lhe assim que entrei n barca. Mas já devíamos estar quase no fim d viagem e até aquele instante não me ocorre ra dizer-lhe qualquer palavra. Nem combina va mesmo com uma barca tão despojada, tã sem artifícios, a ociosidade de um diálogo Estávamos sós. E o melhor ainda era não fa zer nada, não dizer nada, apenas olhar o su co negro que a embarcação ia fazendo no rio Debrucei-me na grade de madeira carco mida. Acendi um cigarro. Ali estávamos o quatro, silenciosos como mortos num ant go barco de mortos deslizando na escuridão Contudo, estávamos vivos. E era Natal. A caixa de fósforos escapou-me das mãos quase resvalou para o rio. Agachei-me par apanhá-la. Sentindo então alguns respingo no rosto, inclinei-me mais até mergulhar a pontas dos dedos na água. -Tão gelada - estranhei, enxugando a mão -Mas de manhã é quente. Voltei-me para a mulher que embalava criança e me observava com um meio sorriso Sentei-me no banco ao seu lado. Tinha belo olhos claros, extraordinariamente brilhan tes. Reparei que suas roupas (pobres roupa puídas) tinham muito caráter, revestidas d uma certa dignidade. -De manhã esse rio é quente - insistiu ela me encarando. -Quente? -Quente e verde, tão verde que a primeir vez que lavei nele uma peça de roupa pense que a roupa fosse sair esverdeada. É a pr meira vez que vem por estas bandas? Desviei o olhar para o chão de largas tábua gastas. E respondi com uma outra pergunta -Mas a senhora mora aqui perto? -Em Lucena. Já tomei esta barca não se quantas vezes, mas não esperava que justa

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LYGIA FAGUNDES TELLES

Natal na barca

mente hoje... A criança agitou-se, choramingando. A mulher apertou-a mais contra o peito. Cobriu-lhe a cabeça com o xaile e pôs-se a niná-la com um brando movimento de cadeira de balanço. Suas mãos destacavam-se exaltadas sobre o xaile preto, mas o rosto era sereno. -Seu filho? -É. Está doente, vou ao especialista, o farmacêutico de Lucena achou que eu devia ver um médico hoje mesmo. Ainda ontem ele estava bem mas piorou de repente. Uma febre, só febre... Mas Deus não vai me abandonar. -É o caçula? Levantou a cabeça com energia. O queixo agudo era altivo mas o olhar tinha a expressão doce. -É o único. O meu primeiro morreu o ano passado. Subiu no muro, estava brincando de mágico quando de repente avisou, vou voar! E atirou-se. A queda não foi grande, o muro não era alto, mas caiu de tal jeito... Tinha pouco mais de quatro anos. Joguei o cigarro na direcção do rio e o toco bateu na grade, voltou e veio rolando aceso pelo chão. Alcancei-o com a ponta do sapato e fiquei a esfregá-lo devagar. Era preciso desviar o assunto para aquele filho que estava ali, doente, embora. Mas vivo. -E esse? Que idade tem? -Vai completar um ano. - E, noutro tom, inclinando a cabeça para o ombro: - Era um menino tão alegre. Tinha verdadeira mania com mágicas. Claro que não saía nada, mas era muito engraçado... A última mágica que fez foi perfeita, vou voar! disse abrindo os braços. E voou. Levantei-me. Eu queria ficar só naquela noite, sem lembranças, sem piedade. Mas os laços (os tais laços humanos) já ameaçavam me envolver. Conseguira evitá-los até aquele instante. E agora não tinha forças para rompê-los. -Seu marido está à sua espera? -Meu marido me abandonou. Sentei-me e tive vontade de rir. Incrível. Fora uma loucura fazer a primeira pergunta porque agora não podia mais parar, ah! aquele sistema dos vasos comunicantes. -Há muito tempo? Que seu marido... -Faz uns seis meses. Vivíamos tão bem, mas tão bem. Foi quando ele encontrou por acaso essa antiga namorada, me falou nela fazendo uma brincadeira, a Bila enfeiou, sabe que de nós dois fui eu que acabei ficando mais bonito? Não tocou mais no assunto. Uma manhã

onias

ele se levantou como todas as manhãs, tomou café, leu o jornal, brincou com o menino e foi trabalhar. Antes de sair ainda fez assim com a mão, eu estava na cozinha lavando a louça e ele me deu um adeus através da tela de arame da porta, me lembro até que eu quis abrir a porta, não gosto de ver ninguém falar comigo com aquela tela no meio... Mas eu estava com a mão molhada. Recebi a carta de tardinha, ele mandou uma carta. Fui morar com minha mãe numa casa que alugamos perto da minha escolinha. Sou professora. Olhei as nuvens tumultuadas que corriam na mesma direção do rio. Incrível. Ia contando as sucessivas desgraças com tamanha calma, num tom de quem relata fatos sem ter realmente participado deles. Como se não bastasse a pobreza que espiava pelos remendos da sua roupa, perdera o filhinho, o marido, via pairar uma sombra sobre o segundo filho que ninava nos braços. E ali estava sem a menor revolta, confiante. Apatia? Não, não podiam ser de uma apática aqueles olhos vivíssimos, aquelas mãos enérgicas. Inconsciência? Uma certa irritação me fez andar. -A senhora é conformada. -Tenho fé, dona. Deus nunca me abandonou. -Deus - repeti vagamente. -A senhora não acredita em Deus? -Acredito - murmurei. E ao ouvir o som débil da minha afirmativa, sem saber por quê, perturbei-me. Agora entendia. Aí estava o segredo daquela segurança, daquela calma. Era a tal fé que removia montanhas... Ela mudou a posição da criança, passando-a do ombro direito para o esquerdo. E começou com voz quente de paixão: - Foi logo depois da morte do meu menino. Acordei uma noite tão desesperada que saí pela rua afora, enfiei um casaco e saí descalça e chorando feito louca, chamando por ele! Sentei num banco do jardim onde toda tarde ele ia brincar. E fiquei pedindo, pedindo com tamanha força, que ele, que gostava tanto de mágica, fizesse essa mágica de me aparecer só mais uma vez, não precisava ficar, se mostrasse só um instante, ao menos mais uma vez, só mais uma! Quando fiquei sem lágrimas, encostei a cabeça no banco e não sei como dormi. Então sonhei e no sonho Deus me apareceu, quer dizer, senti que ele pegava na minha mão com sua mão de luz. E vi o meu menino brincando com o Menino Jesus no jardim do Paraíso. Assim que ele me viu, parou de brincar e veio rindo ao meu encon-

tro e me beijou tanto, tanto... Era tamanha sua alegria que acordei rindo também, com o sol batendo em mim. Fiquei sem saber o que dizer. Esbocei um gesto e em seguida, apenas para fazer alguma coisa, levantei a ponta do xaile que cobria a cabeça da criança. Deixei cair o xaile novamente e voltei-me para o rio. O menino estava morto. Entrelacei as mãos para dominar o tremor que me sacudiu. Estava morto. A mãe continuava a niná-lo, apertando-o contra o peito. Mas ele estava morto. Debrucei-me na grade da barca e respirei penosamente: era como se estivesse mergulhada até o pescoço naquela água. Senti que a mulher se agitou atrás de mim -Estamos chegando - anunciou. Apanhei depressa minha pasta. O importante agora era sair, fugir antes que ela descobrisse, correr para longe daquele horror. Diminuindo a marcha, a barca fazia uma larga curva antes de atracar. O bilheteiro apareceu e pôs-se a sacudir o velho que dormia: -Chegamos!... Ei! chegamos! Aproximei-me evitando encará-la. -Acho melhor nos despedirmos aqui - disse atropeladamente, estendendo a mão. Ela pareceu não notar meu gesto. Levantou-se e fez um movimento como se fosse apanhar a sacola. Ajudei-a, mas ao invés de apanhar a sacola que lhe estendi, antes mesmo que eu pudesse impedi-lo, afastou o xaile que cobria a cabeça do filho. -Acordou o dorminhoco! E olha aí, deve estar agora sem nenhuma febre. -Acordou?! Ela sorriu: -Veja... Inclinei-me. A criança abrira os olhos aqueles olhos que eu vira cerrados tão definitivamente. E bocejava, esfregando a mãozinha na face corada. Fiquei olhando sem conseguir falar. -Então, bom Natal! - disse ela, enfiando a sacola no braço. Sob o manto preto, de pontas cruzadas e atiradas para trás, seu rosto resplandecia. Apertei-lhe a mão vigorosa e acompanhei-a com o olhar até que ela desapareceu na noite. Conduzido pelo bilheteiro, o velho passou por mim retomando seu afetuoso diálogo com o vizinho invisível. Saí por último da barca. Duas vezes voltei-me ainda para ver o rio. E pude imaginá-lo como seria de manhã cedo: verde e quente. Verde e quente.

LUSOFONIAS • Segunda-feira, 30 de Dezembro de 2013

V

JOSÉ EDUARDO AGUALUSA

A Noite em que prenderam o Pai Natal O

velho Pascoal tinha uma barba comprida, branca, muito branca, que lhe caía em tumulto pelo peito. Estilo? Não: era desleixo, desleixo mesmo, puríssima, genuína miséria. Mas foi por causa daquela barba que ele conseguiu trabalho. Por isso e por ter nascido albino, pele de osga e piscos olhinhos cor de rosa, sempre escondidos por detrás de uns enormes óculos escuros. Naquela época já nem pensava mais em procurar emprego, certo de que morreria em breve numa rua qualquer da cidade, mais de tristeza que de fome, pois para se alimentar bastava-lhe a sopa que todas as noites dava o General, e uma ou outra côdea de pão descoberta nos contentores. À noite dormia na cervejaria, na mesa do bilhar, enrolado num cobertor, outro favor do General, e sonhava com a piscina. Tinha trabalhado quarenta anos na piscina – desde o primeiro dia! – como zelador. Sabia ler, contar, e ainda todas as devoções que aprendera na missão, sem falar na honestidade, higiene, amor ao trabalho. Os brancos gostavam dele, era Pascoal, para aqui, Pascoal para ali, confiavam-lhe as crianças pequenas, alguns até convidavam para jogar futebol (foi um guarda-redes), outros segredavam confidências, pediam o quarto emprestado para fazer namoros. O quarto do Pascoal ficava junto aos vestiários masculinos. Aquela era a sua casa. Os brancos davam-lhe palmadas nas costas: Pascoal o único preto em Angola que tem casa com piscina. Riam-se. Pascoal, o preto mais branco de África. Contavam piadas sobre albinos: conheces aquela do soba, no Dia da Raça, que foi convidado para discursar? O gajo subiu ao palanque, afinou a voz e começou: “Aqui em Angola somos todos portugueses, brancos, pretos, mulatos e albinos, todos portugueses.” Os pretos, pelo contrário, não gostavam do Pascoal. As mulheres muxoxavam, cuspiam quando ele passava, ou pior do que isso, fingiam nem sequer o ver. As crianças saltavam o muro, madrugadinha, e lançavam-se à piscina. Ele tinha de se levantar, em cuecas, para os tirar de lá. Um dia comprou uma espingarda de chumbo, uma pressão de ar em segunda mão, e passou a disparar contra elas, emboscado por detrás das acácias. Quando os Portugueses fugiram, Pascoal compreendeu que os dias felizes haviam chegado ao fim. Assistiu com desgosto à entrada dos guerrilheiros, aos tiros, aos saques das casas. O que

VI

mais lhe custou, nos meses seguintes, foi vê-los entrar na piscina, camarada já para aqui, camarada para ali, como se já ninguém tivesse nome. As crianças, as mesmas que antigamente Pascoal expulsava a tiros de pressão de ar, faziam chichi do alto das pranchas. Até que numa certa tarde faltou a água. Não veio no dia seguinte, nem no outro, nem nunca mais. O cloro acabou pouco depois. A piscina murchou. Ficou amarela de um amarelo baço, ficou ainda mais baça, e subitamente encheu-se de rãs. Ao princípio, Pascoal tentou combater a invasão, indo buscar a espingarda. Não resultou. Quanto mais rãs matava, mais rãs apareciam, rãs felizes enormes, que nas noites de lua cheia cantavam até de madrugada, abafando o eco dos tiros, ao longe, e o latido dos cães. Uma espécie de cansaço desceu por sobre as casas e a cidade começou a morrer. África – vamos chamar-lhe assim – voltou a apoderar-se do que fora seu. Abriram-se cacimbas nos quintais. Acenderam-se figueiras nos jardins. O capim rompeu o asfalto, invadiu os passeios, os muros e os pátios. Mulheres pilavam milho nos salões. Os frigoríficos passaram a servir para guardar sapatos. Pianos deram excelentes coelheiras. Gerações de cabras cresceram a comer bibliotecas, cabras eruditas, especializadas em literatura francesa, umas, outras em finanças ou arquitectura. Pascoal esvaziou a piscina, limpou-a, juntou todo o dinheiro que tinha e comprou galinhas. Pediu desculpa à piscina: –Amiga – disse-lhe –, é só por alguns meses. Vou vender ovos, vendo pintos e compro água boa, compro cloro, vais voltar a ser bonita como antigamente. Os tempos que se seguiram, porém, foram ainda piores. Uma tarde apareceram soldados e levaram as galinhas. Pascoal não disse nada. Devia, talvez, ter dito alguma coisa. Esse albino está armado em arrogante – irritou-se um soldado. – Deve pensar que é branco, vejam só, um branco de imitação. Bateram-lhe. Deixaram-no como morto dentro da piscina. Meses depois, vieram outros. Tinham-lhes dito que ali havia um albino que criava galinha, e como não encontraram nenhuma, é claro, bateram-lhe também. A guerra regressou com muita raiva. Aviões bombardearam a cidade, o que restava dela, durante cinquenta e cinco dias. Ao trigésimo sexto, uma das bombas destruiu a piscina. Durante semanas, andou Pascoal à deriva por entre escombros. Uma vez apareceram três homens de jipe, um branco, um mulato e um

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preto, e todos de casaco e gravata. Meu Deus, meu Deus! – lamentou o mulato, fazendo com a mão um largo gesto de desânimo. – Foi urbicídio isto, um urbicídio. Pascoal não sabia o significado da palavra mas gostou dela. “Foi um urbicídio”, repetiu, e ainda hoje, sempre que se lembra da piscina, fica horas a remoer aquela frase: “foi um urbicídio, aquilo, um urbicídio”. Uma tropa de brancos, muitos estrangeiros, todos com chapeuzinhos azuis, recolheu-o numa madrugada de chuva em Luanda. Ficou dois dias no hospital, onde lhe trataram das feridas e lhe deram de comer. Depois mandaram-no embora. O velho passou a viver na rua. Um dia, era Dezembro e fazia muito calor, o indiano do novo supermercado, na mutamba, veio falar com ele: Precisamos de um Pai Natal – disse-lhe – contigo poupávamos na barba e, além disso, com tens um tipo nórdico, ficava a coisa mais autêntica. Estamos a dar três milhões por dia. Serve? A função dele era ficar em frente ao supermercado, vestido com um pijama vermelho, e de barrete na cabeça. Como estava magrinho, foi necessário amarrarem-lhe duas almofadas na barriga. Pascoal sofria com o calor, suava o dia inteiro debaixo do sol, mas pela primeira vez ao fim de muitos anos sentia-se feliz. Assim vestido, com um saco na mão, ele oferecia prendas às criancinhas (preservativos doados por uma organização não governamental sueca ao Ministério da Saúde) e convidava os pais a entrar na loja. “Sou o Pai Natal cambulador”, explicou ao General. Cambulador foi ofício em Angola até à primeira metade do século XX: gente contratada para aliciar clientes à porta dos estabelecimentos comerciais. Cada dia Pascoal gostava mais daquele trabalho. As crianças corriam para ele de braços abertos. As mulheres riam-se, cúmplices, piscavam-lhe o olho (nunca nenhuma mulher lhe tina sorrido); os homens cumprimentavam-no com deferência: Boa tarde, Pai Natal! Este ano como é que estamos de prendas? O velho apreciava sobretudo o espanto dos meninos da rua. Faziam roda. Pediam muita licença para tocar o saco. Um pequenino, fraquinho, segurou-lhe as calças: Paizinho Natal – implorou –, me dá um balão. Pascoal tinha instruções severas para só oferecer preservativos às crianças acompanhadas, e mesmo assim dependia do aspecto da companhia. O contrato era claro: meninos da rua deviam ser enxotados. Ao fim da segunda semana, quando

a loja fechou, Pascoal decidiu não tirar o disfarce e foi naquele escândalo para a cervejaria. O General viu-o e não disse nada. Serviu-lhe a sopa em silêncio. Faz muita miséria neste país – queixou-se o velho enquanto sorvia a sopa –, o crime recompensa. Nessa noite não sonhou com a piscina. Viu uma senhora muito bonita a descer do céu e pousar na beira da mesa de bilhar. A senhora usava um vestido comprido com pedrinhas brilhantes e uma coroa dourada na cabeça. A luz saltava-lhe da pele como se fosse um candeeiro. Tu és o Pai Natal – disse-lhe a senhora – mandei-te aqui para ajudar os meninos despardalados. Vai à loja, guarda os brinquedos no saco e distribui-os pelas crianças. O velho acordou estremunhado. Na noite densa, em redor da mesa de bilhar, flutuava uma poeira incandescente. Voltou a enrolar-se no cobertor mas não conseguiu adormecer. Levantou-se, vestiu-se de Pai Natal, pegou no saco e saiu para a rua. Em pouco tempo chegou à Mutamba. A loja brilhava, enorme na praça deserta, como um disco voador. As barbies ocupavam a montra principal, cada uma no seu vestido, mas todas com o mesmo sorriso entediado. Na outra montra estavam os monstros mecânicos, as pistolas de plástico, os carrinhos eléctricos. Pascoal sabia que se partisse o vidro dessa montra, conseguiria passar a mão através das grades e abrir a porta. Pegou numa pedra e partiu o vidro. Já estava a sair, com o saco completamente cheio, quando apareceu a polícia. No mesmo instante, atrás dele, acendeu-se uma acácia, na esquina, e Pascoal viu a senhora a sorrir para ele, flutuando sobre o lume das flores. O polícia não pareceu dar por nada. Velho sem vergonha – gritou ele. – Vais dizer-me o que levas no saco? Pascoal sentiu que a sua boca se abria, sem que fosse essa a sua vontade, e ouviu-se dizer: São rosas, senhor. O polícia olhou-o confuso: Rosas? O velho está cacimbado... Deu-lhe uma chapada com as costas da mão. Tirou a pistola do coldre, apontou-a à cabeça dele e gritou: –São rosas? Então mostra-me lá essas rosas! O velho hesitou um momento. Depois voltou a olhar para a acácia em flor e viu outra vez a senhora sorrindo para ele, belíssima, toda ela uma festa de luz. Pegou no saco e despejou-o aos pés do guarda. Eram rosas, realmente de plástico. Mas eram rosas.

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JOÃO UBALDO RIBEIRO

Jingobel, Jingobel R

eferentemente ao Natal, podemos dizer que temos aqui muitos tipos, dependendo. Já tivemos mais, porém o Natal é uma festa que nem todos reúnem condições, aliás, verdade seja dita quase que nenhuns aqui. Diz Jocélio Budião, que o que fala não se escreve, que, na casa que ele trabalha, sempre se bota umas passas, um vinho reconstituinte, se mata um peru e umas avelãs(se bem que aqui nunca se viu um avelão voando, quanto mais uma avelã, sabendo-se que a fêmea do animal voador é mais difícil de voar do que o macho, porque tem mais o que fazer), se pega umas folhas aromadas para pendurar pelas bandeiras das portas, mas isso tudo tem que ser visto com os próprios olhos que esta aqui de baixo há de comer, porque estamos mais do que conhecendo esses chutes de seu Jocélio Budião, que o mínimo que fez foi dizer que o português patrão dele mostrou um retrato de um siri o qual siri era maior do que um prato fundo e ou esse português tem uma codaque muito retada ou então esse siri de Budião tomou demasiadamente muito postafém com ovomaltine em pequeno, ora me deixe. Inclusive, teve outro dia que Peneluque, que é petroleiro e dispõe de recurso para adquirir todas as aves de comer, por mais grã-finas, botou dornas, dornizes, perdizes, fesões, nambus, toufracos, perus, para não falar a popular galinha que todos nós aqui criamos algumas e aqui nunca foi de fato novidade, pato, ganso, o que você pensar de aves ele botou. Porém, naturalmente que não temos nessa grande coleção nenhum avelão ou avelã. Peneluque segue a tradição do petroleiro e é maluco, gosta muito de uma pilhéria, de formas que ele me espalha aquela pratarada toda por baixo dos cajueiros, donde ele mandou fazer uma renca de mesas que vai como daqui aonde você quiser mais ou menos, e estamos sabendo que vão aparecendo a maior parte dos comilões da Ilha que Peneluque convida de propósito, pois é natural do petroleiro não esconder a riqueza e gostar de obsequiar, bem como o próprio Jocélio Budião. Muito bem, Peneluque aceita o feliz aniversário que lhe dá Budião e o sabonete todo enrolado de fitas de presente que a mulher dele, Budião, obrigou ele a levar, isto morto de acanhamento e amassando o embrulho todo, e então Peneluque diz assim, estendendo os braços dos marrecos aos perus, tudo ali na posição: Budião, desses todos aí qual é o avelão? E Budião ficou meio assim, virou e mexeu, e botou o dedo em cima de uma dorniz frita, porém, sem saber responder ao certo, tendo sido fortemente vaiado, isto porque não conheceu o avelão, que aliás não tinha lá, mas cabendo a ele dizer e não botar o dedo numa dorniz. A verdade é que, depois que Peneluque foi transferido para Catu, o pessoal tem tido dificuldade em desfrutar até uma galinha, quanto

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mais aquelas belas aves. E isto mesmo assim não era Natal, era no aniversário dele, que o Natal ele passava na Bahia e depois os meninos dele voltavam cheios de patinetes e brinquedos de corda e era um grande puxa-saquismo em toda a Ilha. Bem pensando assim, descontando esses tais Natais das conversas de seu Jocélio Budião, umas conversas muito mal contadas e esses negócios dos siris portugueses, até que deve se dizer porventura que de fato justamente aqui não se observa muito Natal, hoje em dia. Inclusive, teve muita variação, depois que a televisão chegou. Hoje em dia, o povo fica todo nas janelas dos veranistas, olhando o programa que a televisão bota nessa época, que consta os artistas todos cantando e nisso se declara grande veadagem, até mesmo uns certos que a gente ouve dizer que é macho dando umas atitudes, não estou dizendo nada. A pessoa passa pela rua e o que assiste é uma carreira de rabos empinados, os cotovelos rosqueados nas janelas dos outros e aquela negrinhagem, quando aparece um artista que elas gostam. Homem daqui não presta, o que presta é esses artistas. E, de fato, a pessoa pode não ser adepta da grosseria e da ignorância, mas eu não tiro a razão de Alma de Jegue, que ontem me vai passando pela Rua dos Patos, aproveitando a estiada, e já vai meio calibrado e bastante arreliado, quando exatamente o Cão vem atentar. Alma de Jegue tem uma vida difícil e mora com a sogra, duas irmãs da sogra, a mãe da sogra, a mulher e seis filhas, e a mãe da sogra está caduca e de vez em quando bota Alma de Jegue para fora de casa e não tem santo que convença ela a deixar ele entrar, de forma que eu considero que é por essas e outras que ele costuma sempre estar meio um pouco aperreado e não aprecia muita conversação. Nisso, vem ele puto, pensando que hoje pode ser que a velha dê outro ataque, quando aquela menina de finado Nevílio, uma que vive com o rabo de fora e se esfregando nos brancos, passa toda assim por de junto de Alma de Jegue e sacode assim na frente dele um retrato de uma revísta. Olhe aqui, seu Leonardo, que o nome verdadeiro dele é Leonardo e ele só admite que chamem Alma de Jegue pelas costas, o senhor não acha Tony Ramos uma gracinha? Alma parou assim... ficou assim... e chegou a fazer que ia, mas não foi, parou de novo, bagunhou os balangandãs com a mão cheia na direção dela, balançou bastante e disse: Olhe o seu tonirramo aqui, sinha filha da puta! Só que esse daqui o cabelo não é na cabeça não, é no pé, sua desgraçada! Olhe aqui seu tonirramo, miserável! Desgraçada! Olhe seu tonirramo aqui infeliz! E ele chegou até a pular no compasso das sacudidelas, ficou muito perturbado. Então o Natal aqui é isso mesmo, é a televisão, é Alma de Jegue sacudindo os quibas e por aí vai,

ainda mais quando chove assim, porque quando a gente sai batendo os tamancos pelo meio das poças nessas horas, a gente pensa às vezes que não há nada aqui, só nós mesmos, que estamos ali batendo os tamancos. Vicente Integralista teve uns tempos que dava o Vovô Índio, quer dizer, ele dava uma festa com um velho vestido de índio, quer dizer meio assim com umas penas, que ele dizia que era para ensinar à juventude a não acreditar em Papai Noel, que era coisa estrangeira, mas sim no Vovô Índio. Então ele enchia a casa de jaca, manga, pinha, não admitia nenhuma dessas coisas que antigamente as boas casas tinham no Natal, e botava lá o Vovô Índio, geralmente Raimundo de Lasinha cheio de cana, entregando uns presentes para os meninos. Porém foi uma coisa que durou pouquíssimo, porque inclusive era cada presente marca merda que os meninos jogavam fora e uns livros com bandeiras e recitação de poesias e muita política e ninguém estava ali para comer jaca, tomar garapa e suportar o bafo de gambá de Raimundo com aquelas penas de peru por cima da culhoneira, para ganhar umas miçangas de galalite, até uns apitos que nem apitar apitavam, qualquer um se lembra disso. Quer dizer, bem pensado naquele tempo existia mais fartura, é bem possivelmente que hoje o povo até que fosse lá comer a jaca mole muito satisfeito e agradecido. Bem possivelmente. E, além disso, tinha a festa dos velhos que finado Ioiô Pascoal, que hoje há quem chame de São Pascoal da Ilha - possa bem ser, possa bem ser-, todo ano religiosamente dava no dia 23, isto porque os velhos iam lá, dançavam, bailavam, namoravam, ganhavam presentes e comidas e, no dia 24, podiam passar o Natal com a família, se tivessem, ou os amigos - que Pascoal compreendia que o velho com presentes e comidas sempre arranja ou família ou amigos, ele sempre dizia isso. Ultimamente, ele não estava podendo mais dar a festa, por uma questão de falta de recursos, mas ele sempre conseguia um jeito. O povo dizia antes que era por causa de uma promessa, mas não era, era por causa de grandes ferimentos de amor que Ioiô Pascoal tinha sofrido quando moço. Ele era filho de espanhol, dono de um belo armazém, pessoa respeitada, mas sem qualificação de alta sociedade, de formas que, se apaixonando por uma moça, dizem que na época belíssima, que passava e os bondes paravam para o povo admirar e que a pele chegava a quase brilhar de tanta alvura e que Ioiô Pascoal ficava tão apaixonado quando ela dava o desprezo que chegava em casa e se trancava, urrava, chorava e escrevia quilos e quilos de papel que nunca CONTINUA NA PÁGINA SEGUINTE > LUSOFONIAS • Segunda-feira, 30 de Dezembro de 2013

VII

< CONTINUADO DA PÁGINA ANTERIOR

mostrou a ninguém, dizia eu, enfim - eu acho esta passagem muito triste -, dizia eu que o pai dessa certa moça, tendo Pascoal declarado seu amor e ela, depois de muitos choros e urros, tendo correspondido, mandou a moça numa grande viagem de paquete para a Europa, havendo na Europa ela se casado com um duque ou senão um príncipe e mandado para Pascoal um cartão perfumado com uma frase em francês, cartão esse que dizem que Pascoal leu e se afundou na maior tristeza que se pode imaginar, sendo necessário quase que fosse internado, a família toda temendo por tuberculose ou perda da idéia - que ele sempre teve meio fraca mesmo - e enfim que até a morte nunca mais que ele podia olhar aquele cartão sem passar pelo menos uns três dias sem falar com ninguém e escrevendo quilos e mais quilos de mais papel. Essa paixão ele conservou a vida toda, vivendo ali no sobrado, só saindo de paletó e gravata e lendo e escrevendo o tempo todo e tratando todas as pessoas com gentileza, porém sem admitir intimidade. A festa dos velhos dizem os antigos que começou em razão de um certo caso que teve aqui na Ilha, também de famílias abastadas que deixaram de ser, o qual caso se deu entre Noélio jardineiro do seminário e Dona Cristina Emília. Isto é uma coisa muito complicada, mas é que a família do pai de Noélio, que tinha coisas inclusive da pesca da baleia, no tempo da pesca da baleia, já não estava bem quando Noélio era pequeno e a família de Dona Cristina Emília era inimiga da dele, de forma que, quando Dona Cristina Emília era mocinha, a família de Noélio já tinha perdido tudo e ele acabou por caridade de um padre e porque não tinha estudo, jardineiro do seminário, na Roça dos Padres, antigamente. E, assim, o namoro que teve entre eles houve por força de ser acabado e Dona Cristina Emília ou ia para o convento da Lapa ou casava com um dos muitos rapazes de família boa que o pai botava à disposição dela, de formas que ela casou mas nunca se conformou, nem Noélio se conformou, mas a vida vai passando e, depois, ela já viúva e velha e morando aqui na Ilha e não muito bem de vida porque o marido gastou tudo, todo dia ela passava pelo portão do jardim do seminário fingindo que não estava vendo nada e Noélio, que já sabia a hora da passagem dela, ficava esperando, contudo também sem transparecer, e ali ela demorava um bocadinho olhando as flores, ele fingindo que estava ajeitando as plantas, ela fingindo que estava apreciando as plantas e aí ficavam um tempinho e depois ela ia embora e nunca falavam nada, isso anos e anos, todo santo dia. Quando Ioiô Pascoal - que é que eu estou falando? -, quando São Pascoal da Ilha resolveu de dar essas festas de Natal para os velhos, Dona Cristina Emília e Noélio já estavam bastante entradinhos nos anos embora fortes e - como são as coisas da vida - nessa altura até que Noélio vivia melhor, com a casinha nas beiras do portão do seminário toda arrumadinha com capricho e certo conforto. Ela não, porque a neta e o marido da neta moravam na casa dela e alugaram os quartos todos, de sorte que ela fica nos fundos, num quartinho pequeno, uma caminha patente, um nichozinho e uma parede que todo inverno entrava água. Quer dizer, ela ficava, não fica mais, porque justamente já veio a falecer, inclusive em companhia de Noélio, nisso estando, segundo minha opinião, a beleza da história. A beleza da história é que, se bem que finado Ioiô Pascoal, a essa altura já não tivesse mais bem como nasceu, isto porque passava o tempo todo dentro de casa só escrevendo quilos e mais quilos de papel e quando precisava de dinheiro vendia alguma coisa que tinha herdado da família e todo mundo que pedia dinheiro ele dava, finado Ioiô Pascoal ainda podia bastante, de formas que, numa conversa com Noélio, que foi na casa dele fazer um serviço de uns jasmineiros tor-

VIII

Segunda-feira, 30 de Dezembro de 2013 • LUSOFONIAS

tos e uns lírios vermelhos que estavam morrendo, com certeza que ele tinha acabado de olhar o cartão com a frase francesa, e ficaram os dois dizem que horas e horas, cada qual contando ao outro as dores do amor e cada qual consolando o outro e muitos suspiros e lamentos de cortar o coração, não tendo Noélio feito o serviço nesse dia, mas tendo tomado bastantes cervejas com São Pascoal da Ilha e trocado muitos grandes abraços. Nisso foi que o santo resolveu a idéia da festa, que desse ano em diante era todo dia 23 e os velhos da Ilha se arrumavam todos e dançavam que pareciam uns sagüis, só a pessoa vendo para acreditar. Essas festas tinha velhos aqui que passavam o ano todo falando nela e, se soubessem que não ia ter essa festa, eles morriam logo em janeiro, por falta de ter em que falar que é como acontece com a pessoa velha. Vai ficando com falta de ter em que falar, falta de ter em que falar, e aí seca e morre. Nessa primeira festa, Ioiô Pascoal deu uma roupa nova a Noélio, por sinal a roupa que ele foi enterrado depois, e convidou Dona Cristina Emília, que o orgulho não queria deixar ir à festa, em pessoa, fazendo uma visita à família. Tinha tudo, gambiarras, bandeirolas e um conjunto de orquestra, e o povo ia todo apreciar, porém a festa era dos velhos. Uns velhos davam ataques de safadeza no meio da festa, ficavam beliscando as velhas, havia grande alarido, mas nunca de fato problemas. Nesse dia, depois de muitas idas e vindas, Ioiô Pascoal tira Dona Cristina Emília para dançar e, no meio das valsas e canções, passa ela para Noélio e nenhum dos dois pôde fazer nada, porque Ioiô foi ligeiro. Dança essa, meu amigo, que quem assistiu diz que os dois pareciam dois pássaros, com um rodopio só atravessaram o salão. Que dançaram, dançaram, que passaram para a varanda do fundo que dá para essa coroa aí e que foi beijinhos e amassamentos, uma coisa que não se pode contar, só vendo. E que quando a festa acabou o sorriso de Noélio ia da Matriz à Fonte da Bica, bem como o de Ioiô Pascoal, e Dona Cristina Emília de braços dados com Noélio toda vermelhinha e teve salvas de palmas e tudo mais. Eu sei é que, depois dessa festa, Noélio nunca mais apagou o sorriso e com pouco os dois estavam casados, apadrinhados por Ioiô Pascoal e morando na casinha amarela junto do portão do seminário e namorando o tempo todo e passeando de mãos dadas e todo dia dando um presentinho um ao outro - pudesse ser uma fruta, pudesse ser um santinho - e cuidando das plantas e com tanta felicidade que, quando morreram, morreram de noite de repente e encontraram eles agarradinhos, parecendo misturados, muito bonitinhos e todos dois sorrindo e sorrindo embarcaram deste mundo. Não foi esse o único namoro forte de velhos que se sucedeu nas festas de Ioiô Pascoal, inclusive teve casos de namoros de velhos casados com velhas casadas, teve muitas coisas, porém no outro dia a maior parte dos velhos esquecia e só voltava a ter movimentos e transações na festa do outro ano. Mas foi esse o caso que mais satisfação, naturalmente, dava a Ioiô Pascoal e a última festa que ele deu foi justamente quando fez 25 anos que Noélio e Dona Cristina Emília voltaram ao namoro que o pai dela não tinha deixado na mocidade. Ele já estava velhinho e mal podendo andar e não tinha mais nada para vender, só tinha uns dois aluguéis, que assim mesmo, quando não era época do veraneio e não existia dinheiro na ilha, ele perdoava, mas resolveu que ia dar uma festa grande, porque a data merecia. E, de fato, com um retrato de Noélio e Dona Cristina Emília pendurado em cima da porta do salão, um belo retrato que Almerindo coloriu de aquarela e que era as caras dos dois uma junto da outra e Almerindo ainda pintou umas fitas artísticas na parede em redor, a festa foi das melhores que já se deu aqui,

com os Brasilian Boys Jazze-Band vindo da Bahia e animação muito grande. No outro dia, Ioiô Pascoal não acordou, tinha subido aos céus. Muita gente diz que viu quando ele subiu aos céus, passando como uma fumacinha azul pelo meio das ervas da torre da Matriz e desde essa data, que foi no ano retrasado, ele tem feito milagres e já há muitos devotos nessa ilha. Nesse mesmo dia que ele subiu aos céus para ser santo, o homem dos Brasilians Boys Jazze-Band chegou de manhã e disse que ele não tinha pago pela festa e quase apanha dos devotos e nunca mais os Brasilians Boys pisa aqui. Hoje, aliás, esta chuva aqui bem no dia 23, como no ano passado, quando se sabe que no Natal o sol está forte e não se pode passar descalço meio-dia que o couro dos pés solta, mostra que o povo tem razão e Ioiô Pascoal é de fato hoje santo milagreiro natalense. Não sei se outros dias ele faz milagres, ainda é um santo novo, deve ter ainda muita coisa para aprender nessa questão de santidade. Mas no Natal ele faz, isso ninguém aqui discute. No ano passado, os velhos mandaram rezar uma missa no dia 23, em homenagem a ele, mais ou menos na hora de festa, e estava chovendo igual a hoje. Mais, mais, estava chovendo até mais. Foi uma tristeza grande, aquela chuva forte, ninguém na rua, as goteiras na igreja e os velhos tendo de esperar para ver se melhorava um pouco, para eles poderem sair. E não é assim que, por volta das onze horas da noite, os velhos vão saindo, junto com uns parentes mais moços de uns e mais alguns devotos do santinho, tudo debaixo daquele temporal, quando, chegando bem junto do caminhão da Cobal, que estava ali parado, para, no outro dia, o povo poder fazer compras de mercadinho, que aqui não há e o governo aí manda esse caminhão para roubar a gente mais bem roubado, um raio desce com o maior estrondo, alumia tudo e a chuva pára que não cai mais uma gota. E, todo mundo ainda tonto com aquele estrondo e a claridade, uns querendo correr, outros se benzendo, o que se vê é que, devagar, devagar, as portas detrás do caminhão da Cobal vai se abrindo e balançando no vento. Tem quem diga que, nessa hora, se ouviu uma risada escrita às risadas que Ioiô Pascoal dava na hora da festa, mas a verdade é que nem os velhos nem ninguém precisava de ouvir risada, o milagre já estava feito. No outro dia, quando os homens da Cobal vieram abrir o caminhão, não tinha mais nada dentro e teve festas até depois do Ano-bom nas casas de muitos desses velhos e também dos devotos, quase como se São Pascoal da Ilha ainda estivesse vivo. Por aí está se vendo que a chuva que vem caindo esses dias todos deve ser que o milagre vai se repetir, todo mundo tem certeza disso. A missa de Ioiô Pascoal vai ter muita gente hoje e já está tudo organizado: primeiro quem entra no caminhão são os velhos, cada qual com sua sacolinha. Depois é que os outros entram, que é para respeitar a vontade do santo, porque a festa dele sempre foi para os velhos e os velhos estão em primeiro lugar. Dizem que este ano a Cobal vai tomar providências e vai botar uns dois vigilantes lá para tomar conta do caminhão, porque no outro ano eles ficaram muito aborrecidos com o sucedido. Porém nós já resolvemos tudo e, se alguém quiser empatar o milagre, nós vamos ajudar o santo e muita gente já está preparando uns cacetes e uma coisas assim, que é para o caso do santo precisar de assistência na hora de abrir a porta do caminhão e mandar os velhos entrar. Ainda mais agora, que ele já teve o trabalho de providenciar essa chuva toda numa época que não chove para poder os velhos dele fazerem a festa. Budião vai, Alma de Jegue também vai, diz ele que só para levar o diabo da sogra, mas eu sei que ele também vai levar a sacolinha dele, ele também é filho de Deus. Cada qual tem o Natal que pode e o pobre não vai desprezar um Natal que tem um santo bom trabalhando para ele. E o Natal do ano passado, foi muito bom mesmo, até Budião disse que comeu um pedaço de avelão legítimo e que nem achou essas coisas todas. É pequenininho e, pelo nome assim, eu pensava que era grande, diz Budião.

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