Contra a Democracia? A Teoria da Ação de Hannah Arendt à luz do Pensamento Político Contemporâneo

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Descrição do Produto

UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA INSTITUTO DE CIÊNCIA POLÍTICA

MATEUS BRAGA FERNANDES

CONTRA A DEMOCRACIA? A TEORIA DA AÇÃO DE HANNAH ARENDT À LUZ DO PENSAMENTO POLÍTICO CONTEMPORÂNEO

BRASÍLIA, DF 2016

Universidade de Brasília Instituto de Ciência Política

Mateus Braga Fernandes

Contra a Democracia? A Teoria da Ação de Hannah Arendt à luz do Pensamento Político Contemporâneo

Tese de Doutoramento apresentada ao Programa de PósGraduação em Ciência Política (PPGCP), no Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (IPol/UnB), como requisito parcial à obtenção do título de Doutor em Ciência Política. Linha de Pesquisa: Democracia e Sociedade Orientador: Prof. Dr. Paulo César Nascimento Agência de Fomento: CAPES

BRASÍLIA, DF 2016

Ficha catalográfica elaborada automaticamente pela BCE/UnB Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

FF363c

Fernandes, Mateus Braga Contra a Democracia? A Teoria da Ação de Hannah Arendt à luz do Pensamento Político Contemporâneo / Mateus Braga Fernandes; orientador Paulo César Nascimento. -- Brasília, 2016. 258 p. Tese (Doutorado – Doutorado em Ciência Política) – Universidade de Brasília, 2016. 1. Hannah Arendt. 2. Teoria da Ação. 3. Teorias da Democracia. 4. Teoria do Reconhecimento. 5. Pensamento político contemporâneo. I. Nascimento, Paulo César, orient. II. Título.

Mateus Braga Fernandes Contra a Democracia? A Teoria da Ação de Hannah Arendt à luz do Pensamento Político Contemporâneo Tese de Doutoramento apresentada ao Programa de PósGraduação em Ciência Política (PPGCP), no Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (IPol/UnB), como requisito parcial à obtenção do título de Doutor em Ciência Política. Tese aprovada em: 09 de dezembro de 2016. Banca Avaliadora da Defesa de Tese ______________________________________________________________ Prof. Dr. Paulo César Nascimento – Orientador e Presidente da Banca Instituto de Ciência Política – IPol/UnB http://lattes.cnpq.br/6849990995354185 ______________________________________________________________ Prof. Dr. Adriano Correia Silva – Membro titular não vinculado ao PPGCP e externo à UnB Faculdade de Filosofia – FCHF/UFG http://lattes.cnpq.br/7465568204123045 ______________________________________________________________ Prof. Dr. Miroslav Milovic – Membro titular não vinculado ao PPGCP Faculdade de Direito – FD/UnB http://lattes.cnpq.br/2562680828224438 _______________________________________________________________ Prof. Dr. Wanderson Flor do Nascimento – Membro titular não vinculado ao PPGCP Departamento de Filosofia – FIL/UnB http://lattes.cnpq.br/8919296655781448 ______________________________________________________________ Profª. Drª. Rebecca Neaera Abers – Membro titular vinculado ao PPGCP Instituto de Ciência Política – IPol/UnB http://lattes.cnpq.br/0161487799376958 ______________________________________________________________ Prof. Dr. Gerson Brea – Membro suplente Departamento de Filosofia – FIL/UnB http://lattes.cnpq.br/8154742749875889

Dedicado aos tradutores e às tradutoras, pessoas sem cujo trabalho – de tradução e traição – o pensamento em língua materna teria sido impossível.

AGRADECIMENTOS

O alemão, língua materna de Hannah Arendt, registrou e manteve vivo o que há muito não é usual fazer: a equivalência entre o ato de pensar – denken – e o gesto de agradecer – danken. Por meio dessa origem esquecida da atividade de pensar, cujo resultado final as palavras aqui escritas pretendem registrar, apesar de falharem insistentemente, presto minha homenagem: à autora, que me me manteve ativo, mesmo na quietude do pensamento, ora movendo, ora sendo movido por seus trains of thought, e que de maneira imprevisível, para ambos, mas irreversível, para todos, ampliou minha teia de relações humanas ao longo dos últimos anos; ao orientador, que não só foi um dos fios de prumo nessa teia, mas ousou contribuir decisivamente para os rumos e revisões de meus próprios trains of thought (ainda que, evidentemente, todos os eventuais descarrilhamentos sejam de minha inteira responsabilidade); aos membros das bancas – do passado, que efetivamente qualificaram a tese, e do futuro, reunidos para sua defesa pública –, ao aceitarem dar continuidade a essa iniciativa, ao adentrarem o espaço entre-os-homens e ao exercitarem tenazmente sua faculdade de julgar; à bolsa de pesquisa da CAPES, que ofereceu condições de libertação para o exercício da liberdade de pensamento durante os anos de doutorado, entre 2012 e 2016 (embora tais recursos, escassos, não tenham sido suficientes para ampliar a liberdade de ação ou mesmo o direito ao ócio); aos amores, à família, aos amigos e às amigas, sem os/as quais tanto o passado quanto o futuro seriam, absoluta e simplesmente, diferentes. Ainda bem que tudo foi como foi, e que já podemos contar uma estória sobre isso. Afinal, como nos relembra Arendt, “toda dor pode ser suportada se sobre ela puder ser contada uma estória”.

Assim como a filosofia que diz respeito ao homem no singular só começa a sério depois que o homem compreende que pode dizer sim ou não para a vida, a política que diz respeito aos homens no plural talvez só comece a sério agora que sabemos que podemos dizer sim ou não para a Humanidade. Hannah Arendt, 28 de outubro de 1954.

RESUMO Partindo da definição a contrário de Democracia como o oposto de Autocracia e de uma leitura social dos processos de democratização, essa tese objetiva avaliar criticamente a teoria da ação de Hannah Arendt, reconstruída a partir de um mosaico conceitual envolvendo quatro fontes que inspiraram seu pensamento: Heidegger, Jaspers, Homero e Marx. Mas, diante da escassez de exemplos concretos, propõe-se ampliar a materialidade dessa teoria por meio de três formas de ação: ação-como-Revolução (problematizada, por encontrar-se em certa medida fora do âmbito político arendtiano), ação-como-Resistência (relativizada, enquanto seja uma definição negativa ou extralegal) e ação-como-Fundação (pouco explorada na literatura, mas entendida aqui como a forma autêntica e promissora de ação em uma democracia). Analisa-se, em cada forma de ação, a controversa distinção arendtiana entre a questão política e a questão social à luz de desenvolvimentos contemporâneos nas teorias da democracia, como a readequação da noção de igualdade e a fundamentação moral dos conflitos sociais na teoria do reconhecimento. Finalmente, por meio de três perspectivas de avaliação e crítica – da “sombra totalitária”, da “justiça social” e da “formação identitária”, conclui-se que se deve responder negativamente às duas perguntas orientadoras da tese: Arendt é uma democrata? Arendt é contra a Democracia? Palavras-chave: Hannah Arendt; Teoria da Ação; Teorias da Democracia; Teoria do Reconhecimento; Pensamento político contemporâneo.

ABSTRACT Starting from the a contrario definition of Democracy as the opposite of Autocracy and from a social reading of the processes of democratization, this thesis aims to critically evaluate the theory of action of Hannah Arendt, reconstructed from a conceptual mosaic involving four sources that inspired her thinking: Heidegger, Jaspers, Homer and Marx. However, given the scarcity of concrete examples, it is proposed to extend the materiality of this theory through three forms of action: action-as-Revolution (problematized, because it is, to some extent, outside the Arendtian political realm), action-as-Resistance (relativized, as long as it is a negative or an extralegal definition) and action-as-Foundation (little explored in the literature, but understood here as the authentic and promising form of action in a democracy). The controversial Arendtian distinction between the political question and the social question is then analyzed in each form of action, in the light of some contemporary developments in the theories of democracy, such as the re-adaptation of the notion of equality and the moral foundation of social conflicts in the theory of recognition. Finally, through three perspectives of evaluation and criticism – “totalitarian shadow”, “social justice” and “identity formation” –, we conclude that the two main questions of this thesis must be answered negatively: Is Arendt democratic? Is Arendt against Democracy? Keywords: Hannah Arendt; Theory of Action; Theories of Democracy; Theory of Recognition; Contemporary political thinking.

LISTA DE ABREVIATURAS Para as obras mais recorrentemente citadas, adotamos o padrão usual de abreviaturas: sigla e página citada na edição utilizada, cujas referências completas encontram-se na sessão de referências bibliográficas. CE:

ARENDT, Hannah. Compreender: Formação, Exílio e Totalitarismo, 2008 [orig. 1994].

CH:

ARENDT, Hannah. A Condição Humana, 2001 [orig. 1958].

CR:

ARENDT, Hannah. Crises da República, 1999 [orig. 1972].

DCR: HONNETH, Axel. Democracia como cooperação reflexiva, 2001 [orig. 1998]. DP:

ARENDT, Hannah. A Dignidade da Política: ensaios e conferências, 1993.

EPF: ARENDT, Hannah. Entre o Passado e o Futuro, 2005 [orig. 1961]. HTS: ARENDT, Hannah. Homens em Tempos Sombrios, 2008 [orig. 1968]. LFK: ARENDT, Hannah. Lições sobre a filosofia política de Kant, 1993 [orig. 1982]. LR:

HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais, 2003 [orig. 1992].

OP:

ARENDT, Hannah. O que é política?, 2004 [orig. 1993].

OT:

ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo, 2012 [orig. 1951].

RJ:

ARENDT, Hannah. Responsabilidade e Julgamento, 2004 [orig. 2003].

RR:

FRASER, Nancy; HONNETH, Axel. Redistribution or recognition?: a politicalphilosophical exchange, 2003.

SR:

ARENDT, Hannah. Sobre a Revolução, 2011 [orig. 1963].

SV:

ARENDT, Hannah. Sobre a Violência, 2009 [orig. 1970]

TDR1: SARTORI, Giovanni. A teoria da democracia revisitada, vol. 1, 1994. TDR2: SARTORI, Giovanni. A teoria da democracia revisitada, vol. 2, 1994. TI:

ARENDT, Hannah. Totalitarian Imperialism: Reflections on the Hungarian revolution, 1958.

TOA: ARENDT, Hannah. Trabalho, Obra, Ação, 2005 [orig. 1987]. VE:

ARENDT, Hannah. A Vida do Espírito: o pensar, o querer, o julgar, 2008 [orig. 1978]

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ………………………………………………..…………………

9

1 A INVENÇÃO DA DEMOCRACIA E SUA ATUALIDADE …………………..

17

1.1. Primeiro sintoma: atividade política como administração do Estado …………….

22

1.2. Segundo sintoma: demofobia e bases antidemocráticas nas teorias da democracia

27

2 POLÍTICA E DEMOCRACIA EM HANNAH ARENDT …………………….…

29

2.1. Hannah Arendt e sua compreensão aristotélica da Democracia ………………….

31

2.2. A Democracia na teoria política de Hannah Arendt …………………………...…

34

2.3. Restrições de Hannah Arendt à Democracia …………………………………...…

40

2.4. A política de Hannah Arendt e o modo de vida democrático …………………….

43

3 O MOSAICO DA AÇÃO ……………………………………………………..….

46

3.1. “Um grande pensador pensa apenas um pensamento” ……………………………

49

3.2. O mosaico da ação em resumo ……………………………………………………

53

3.3. Heidegger: grandeza, distinção e liberdade-como-iniciativa ……………………..

56

3.4. Jaspers: comunicação, igualdade e liberdade-como-proteção ……………………. 61 3.5. Homero: da luta agonista à política pluralista …………………………………….

70

3.6. Marx: da fabricação à revolução ………………………………………………….

75

4 AS FORMAS DA AÇÃO ………………………………………………………...

94

4.1. Da Resistência à Reconstrução …………………………………………………...

98

5 AS LUTAS POR IGUALDADE POLÍTICA E SOCIAL ………………………..

106

5.1. O caso em Little Rock: entre a igualdade do pária e do parvenu ………………… 111 REBALANCEAMENTO DAS DESIGUALDADES: DIÁLOGO COM SARTORI …………………………………………………………………….

121

6.1. Da igualdade formal ao rebalanceamento de oportunidades sociais ……………...

124

6.2. Da equalização de circunstâncias à redistribuição de domínios ………………….

130

6.3. Dois modos de aplicação da igualdade: Hobbes e Rousseau ……………………..

136

6.4. A concepção arendtiana de igualdade: autosseleção ……………………………...

138

6

7

ENTRE A IGUALDADE E A AUTORIDADE: ARENDT E O SISTEMA DE CONSELHOS ………………………………………………………………... 142

7.1. A autosseleção da “elite política do povo” ……………………………………….. 146 7.2. A autosseleção do primus inter pares e o problema do carreirismo ……………...

151

7.3. A “questão social”: entre a atividade política e as tarefas administrativas ……….

155

ENTRE A FUNDAÇÃO DA LIBERDADE E O TRABALHO DE LIBERTAÇÃO ……………………………………………………………….

161

9 ARENDT E AS LUTAS POR RECONHECIMENTO …………………………..

171

9.1. A conceitualização do reconhecimento …………………………………………...

176

8

9.2. Honneth: primeira alternativa para o estudo da justiça social ……………………. 182 9.3. A “questão social” e a visibilidade das identidades narrativas ……………...……

187

9.4. Fraser: segunda alternativa para o estudo da justiça social ……………………….

200

10 CONSIDERAÇÕES FINAIS ……………………………………………………..

208

10.1. Perspectiva assombrada, ou da “sombra totalitária” ……………………………..

215

10.2. Perspectiva relacional, ou da “justiça social” …………………………………….

219

10.3. Perspectiva narrativa, ou da “formação identitária” ………………………...…… 225 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ……………………………………………

234

APÊNDICE A …………………………………………………………………….

245

APÊNDICE B …………………………………………………………………….

255

Contra a Democracia? A Teoria da Ação de Hannah Arendt à luz do Pensamento Político Contemporâneo

INTRODUÇÃO

Não se honra um pensador louvando-se ou mesmo interpretando-se seu trabalho, mas sim discutindo-o, mantendo-o portanto vivo e demonstrando, na prática, que ele desafia o tempo e conserva sua pertinência. Cornelius Castoriadis.

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É notável que Hannah Arendt tenha se tornado uma das pensadoras políticas mais lidas, publicadas, comentadas e noticiadas de seu tempo, mesmo tendo escrito grande parte de sua obra na segunda metade do século 20, em idioma estrangeiro, e quase sempre fazendo referência a eventos específicos que marcaram esse período, quando não a acontecimentos potencialmente romantizados da antiguidade clássica ou a temas densos de filosofia moral e política. Hannah Arendt também se consolidou na cultura intelectual e popular de nosso tempo, figurando em peças de teatro e em filmes ficcionais e documentais de sucesso, nomeando ruas na França, Alemanha e Israel, assim como o trem-bala entre Stuttgart e Hamburg, além de ser patrona do prêmio anual sobre “pensamento político” da Fundação Heinrich-Böll e ícone para movimentos por democracias participativas ou radicais 1. Mas é ainda mais surpreendente que, passada a primeira década do século 21, com seus avanços técnicos impensáveis de conexões virtuais globais, com sua relativa paz mundial duradoura, de certo modo distanciada da sombra totalitária, e diante de certa continuidade dos regimes democráticos e representativos – todos aspectos cujo temor e incerteza rondaram seu horizonte intelectual –, Arendt permaneça altiva nos cânones tanto da Filosofia quanto da Ciência Política. Considerando-se que algumas das maiores controvérsias suscitadas por seus escritos dizem respeito a anacrônicas práticas políticas dos antigos gregos e romanos, a “raridades históricas”, como critica Sternberger (1977, p. 143), que poderiam ter pouca relevância para o cotidiano de nosso mundo atual, ou mesmo a temas aparentemente datados – como o julgamento de Eichmann e a “responsabilidade coletiva” de judeus e alemães, os levantes estudantis de 1968 e a desobediência civil contra a participação na guerra do Vietnã –, o que mantém atual o pensamento de uma refugiada alemã que não se curvou nem à tentação de vulgarizar suas eruditas reflexões filosóficas nem ao apelo por enquadrar seus comentários sobre esses temas em quaisquer “correntes ideológicas”? Esta tese tenta oferecer uma explicação para a atualidade e popularidade do pensamento de Hannah Arendt, promovendo um diálogo entre ela e estudiosos contemporâneos da Democracia, como Sartori, Bobbio, Rawls, Dewey, Fraser e Honneth.

1

cf. BERKOWITZ, 2016.

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11

Afinal, acreditando que Arendt realmente desafia o tempo e conserva sua pertinência, deveríamos ter alguma clareza sobre como suas ideias contribuem com ou se contrapõem aos debates de nosso tempo. Nada seria mais adequado a alguém que escolheu, para epígrafe de sua primeira grande obra – Origens do Totalitarismo –, a seguinte frase de seu orientador, Karl Jaspers, em justíssima homenagem: “Não almejar nem os que passaram nem os que virão. Importa ser de seu próprio tempo”2. Para tanto, deveria ser proveitoso colocar sua teoria política em diálogo com outras reconhecidas abordagens para alguns de nossos problemas contemporâneos, como a Teoria do Reconhecimento, tal como apresentada por Nancy Fraser e Axel Honneth; deveria ser usual anotar suas divergências e proximidades com pensadores liberais do quilate de Norberto Bobbio e também com politólogos conservadores, e amplamente reconhecidos como teóricos da democracia, como Giovanni Sartori; deveríamos poder apontar em que medida suas teses desafiam ou corroboram as conclusões sobre a oligarquização dos processos representativos, tal como descritas por Robert Michels; deveríamos poder indicar em que medida seus diagnósticos sobre a modernidade confirmam a descrição schumpeteriana da democracia e o consequente pavor das massas, ou em que igual medida seria nossa própria miopia sobre a política que reduz e limita a democratização; deveríamos, enfim, poder localizar as lacunas existentes no pensamento arendtiano – marcadamente sobre a justiça, sobre o conteúdo da ação política e sobre a institucionalização do espaço público – para, então, saber se é possível preenchê-las com argumentos vindos de pensadores como John Rawls e John Dewey, Chantal Mouffe e Seyla Benhabib. Assim, a pertinência dessa tese pode ser evidenciada pela lacuna existente na literatura – ainda mais na literatura brasileira3 – no que diz respeito a considerar o pensamento de Hannah Arendt diante das propostas de teóricos políticos atuais. Muito já foi e continua sendo escrito sobre Arendt em diálogo com os personagens de seus próprios textos – Platão, Aristóteles, Kant, Marx. Mas o que ainda é possível indagar é se queremos contrastar a noção de política de Arendt com ideias mais contemporâneas sobre a política e a Democracia. Essa 2

Publicado originalmente na Logik, de Jaspers: “Weder dem Vergangenen anheimfallen noch dem Zukünftigen. Es kommt darauf ein ganz gegenwärtig zu sein”.

3

Uma valiosa exceção encontra-se em LAFER, 2007.

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tese pretende abordar justamente essa lacuna da literatura e oferecer, nos limites a que se propõe, isto é, dentro desse conjunto específico de autores e autoras acima mencionados, o resultado desse diálogo de ideias sobre o político em seus desdobramentos nas teorias da democracia. Contudo, o debate das ideias de Hannah Arendt com a teoria política contemporânea sobre a democracia tem de ser precedido por dois temas importantes, que também serão analisados nesta tese: a relação entre política e Democracia em Hannah Arendt e sua teoria da ação. No primeiro caso, a ser detalhado no capítulo 2, um dos desafios a ser enfrentado é que, apesar de figurar nos cânones do pensamento político contemporâneo, Hannah Arendt não se apresenta nem é apresentada por seus comentadores como propriamente uma teórica da democracia4. Seus poucos comentários explícitos sobre a Democracia restringem-se a criticar sua forma representativa, moderna e liberal ou, ainda, a levantar suspeitas sobre a Democracia como uma forma degenerada de “governo da maioria”, quando ela se transforma em “despotismo eletivo”5. Por outro lado, há estudiosos que sustentam a ideia de que Arendt promoveria uma “democracia de base” [grassroots democracy], como faz Jeffrey Isaac (1994, p. 156. trad. minha)6, justificando ainda que “embora ela recuse o rótulo de ‘democrata’ porque corretamente viu que no mundo moderno esse termo admite diferentes, às vezes hostis, interpretações, isso não faz dela uma antidemocrata”. Assim, mesmo que Arendt não se apresente como uma formuladora de teorias que tenham como meta superar o liberalismo ou que se constituam como uma agenda programática para a “nova política”, é inegável que seu pensamento articula aporias que ainda hoje, senão desde sempre, circundam os fenômenos da política e da Democracia; ainda mais se entendermos, com Arendt (SR, p. 278), que “a liberdade política, em termos gerais, significa o direito de ‘ser participante no governo’ – afora isso, não é nada”.

4

Um argumento a esse respeito encontra-se em WOLIN, 1994. Sobre aspectos elitistas e antidemocráticos do pensamento arendtiano, cf. também CANOVAN, 1978.

5

Arendt (SR, pp. 215-216) toma a expressão de Jefferson.

6

Embora concordem com a tese, Lisa Disch, Bonnie Honig e Dana Villa argumentam ainda sobre as características agonísticas e aristocráticas de seu pensamento (cf. LANE, 1997. pp. 141-146; BENHABIB, 1995b. p. 691, n. 8) e John Sitton (1994) vai mencionar a proposta de uma “democracia de conselhos” para dizer o mesmo.

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O segundo tema que antecede a discussão de Arendt com os contemporâneos da teoria da democracia refere-se à reconstrução da teoria da ação da pensadora, o que realizaremos no capítulo 3. Tal empreendimento é necessário por várias razões, sendo a primeira delas o fato de que Arendt nunca definiu de forma satisfatória o que entendia por “ser participante no governo”, nem jamais ofereceu um único exemplo concreto e definitivo para sua peculiar noção de ação. E, enigmaticamente, essa noção situa-se no centro de seu pensamento sobre a política: é a ação, dentre as categorias da vita activa, a atividade humana mais ligada com a politica e a liberdade; é o agir político em conjunto que possibilita aos homens gerarem poder e fundarem corpos políticos; e é a ação que permite aos homens se destacarem no espaço público e, ao serem lembrados por seus feitos, adquirir um modicum de imortalidade. Essa tese propõe-se, dessa forma, a reconstruir a teoria da ação de Hannah Arendt a partir de quatro fontes que inspiraram o pensamento da autora: as filosofias de Martin Heidegger e de Karl Jaspers, a poesia épica de Homero, e o pensamento de Marx sobre o trabalho humano e a Revolução. Esses autores ofereceram conceitos e ideias para o que chamaremos de “o mosaico da ação” de Hannah Arendt e, partindo dele, poderemos formular e propor, já no capítulo 4, três formas básicas que serviriam de eixo orientador para explicitarmos sua noção de ação: a ação-como-Resistência, a ação-como-Revolução e a açãocomo-Fundação. Como tentaremos evidenciar na tese, é essa teoria da ação de Hannah Arendt que oferece a melhor contribuição da autora para a concepção contemporânea de Democracia. Com ela, podemos recompor o nexo entre os acontecimentos políticos que revigoraram os ideais democráticos nas revoluções modernas e as práticas políticas originadas entre os antigos – o que nos permitiria observar com outros olhos e a partir de renovados pressupostos a democracia que temos hoje e que continua reinventando-se. Isso porque, como avaliaremos ao final, as análises e os conceitos propostos por Hannah Arendt lançam nova luz sobre a coisa política e, por consequência, sobre variações muitas vezes ignoradas dos diversos arranjos políticos e sociais na Democracia.

Contra a Democracia? A Teoria da Ação de Hannah Arendt à luz do Pensamento Político Contemporâneo

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Introdução

Nesse sentido, sua teoria coaduna-se com seu esforço de resgatar a dignidade da política, isto é, aquela dignidade inerente à liberdade e à pluralidade humanas em sua autonomia com relação à teoria, associando-a novamente à palavra e à ação, que fundam o espaço público e comum entre os homens, onde se manifesta a presença ou a ausência de liberdade na interação de uns com outros; mas também, e principalmente, com seu esforço por compreender as condições em que essa empreitada se tornaria possível. Sua tarefa, assim, pode ser resumida no que ela mesma descreveu, no prefácio de Origens do Totalitarismo, como “compreensão”: Compreender não significa negar nos fatos o chocante, eliminar deles o inaudito, ou, ao explicar fenômenos, utilizar-se de analogias e generalidades que diminuam o impacto da realidade e o choque da experiência. Significa, antes de mais nada, examinar e suportar conscientemente o fardo que o nosso século colocou sobre nós – sem negar sua existência, nem vergar humildemente ao seu peso. Compreender significa, em suma, encarar a realidade sem preconceitos e com atenção, e resistir a ela – qualquer que seja (Arendt, OT. p. 12).

É dessa maneira que Arendt tanto debruça-se “sobre as catástrofes políticas do século XX”7 – notadamente, o Totalitarismo, que foi “a resposta destrutiva encontrada para todos os impasses”8 de seu próprio tempo – quanto analisa algumas das mais importantes revoluções modernas, além de diagnosticar as mudanças na condição humana diante de aspectos visíveis dessa modernidade: a fragmentação da vida civil e associativa; o crescimento da sociedade de massa, da expropriação e da alienação; o surgimento do Estado-nação e, com seu declínio, o aumento de seres humanos supérfluos, sem raízes, sem-estado ou sem-direitos; o determinismo e a técnica que justificam e fazem alavancar o progresso sem que quaisquer limites lhes possam ser impostos senão os de seus próprios instrumentos. Em suma, Arendt (OT, p. 610) estudou fenômenos que, em seu conjunto, ou enfraquecem ou fortalecem a

7

Cf. CANOVAN (1992, p. 7).

8

Cf. ARENDT (OT, p. 13). Sobre esses “impasses”, Elisabeth Young-Bruehl (1997, p. 195) explica que “Arendt descreve o totalitarismo como uma ‘solução’ ilegítima e horrenda aos problemas da época”, quais sejam: “por trás da decadência do Estado nacional [estava] o problema não resolvido de uma nova organização dos povos; por trás do racismo, o problema não resolvido de um novo conceito de humanidade; por trás da expansão pela expansão [isto é, o imperialismo], o problema não resolvido de organizar um mundo em constante encolhimento”. Interessante notar que, para Arendt, uma outra solução para a “expressão clara dos problemas da época” poderia ser encontrada no sistema de conselhos, tal como ela o viu ressurgir na Revolução Húngara de outubro de 1956. (Citado em “Apresentação”, SR, p. 20).

Contra a Democracia? A Teoria da Ação de Hannah Arendt à luz do Pensamento Político Contemporâneo Introdução

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política e o âmbito público, ora nos aproximando, ora nos afastando do risco e da tentação totalitária, “que surgirá sempre que pareça impossível aliviar a miséria política, social ou econômica de um modo digno do homem”. Essa tese tenta demonstrar, portanto, que Hannah Arendt contribuiu com o alargamento da concepção de política do século XX e procura avaliar, nos capítulos 5 a 9, o quanto seu pensamento ainda pode contribuir, “em nosso próprio tempo”, uma vez que ela ainda seja a teórica política que “mais arduamente tentou renovar nosso acesso à política como uma gratificação positiva, uma ‘felicidade pública’”, tal qual enfatiza Pitkin (1994, p. 261. trad. minha), mesmo quando isso significou ensejar polêmicas e controvérsias irresolvíveis. Em resumo: iremos começar, então, por dar um significado a esse fenômeno que chamamos de Democracia (capítulo 1), para podermos compreender como Arendt o aborda (capítulo 2) e, então, descrever qual é sua concepção sobre a ação política (capítulos 3 e 4). Com isso, poderemos avaliar quais seriam suas visões e sua contribuições para a Democracia em relação aos teóricos contemporâneos (capítulos 5 a 9). Pois mesmo que ela não seja uma teórica da democracia stricto senso, ela parece enxergar a possibilidade para nossa plena realização política somente sobre os auspícios de uma república democrática. Procedendo dessa maneira, poderíamos finalmente nos arriscar a dizer, com Arendt, ou mesmo apesar de Arendt, que atualmente a Democracia não é mais a utopia do político mas que, antes, a política é que parece ser, cada vez mais, a utopia da Democracia.

CAPÍTULO 1

A INVENÇÃO DA DEMOCRACIA E SUA ATUALIDADE

Democracia não é apenas uma forma de vida social dentre outras tantas que funcionam; ela é a precondição para a completa aplicação da inteligência na solução de problemas sociais. Hilary Putnam.

Contra a Democracia? A Teoria da Ação de Hannah Arendt à luz do Pensamento Político Contemporâneo Capítulo 1: A invenção da Democracia e sua atualidade

18

A Democracia é uma invenção. E, sendo uma invenção, pode-se mesmo dizer que a Democracia é artificial, no sentido de que ela é um artifício humano e um artefato político, moldado por palavras e atos que aparecem na interação entre pessoas. Sua particularidade é abrir, volta e meia, uma brecha nos sistemas de práticas autocráticas. Afinal, como indica Mouffe (2005 [1993], p. 98. trad. minha), autores de diversos matizes concordam que Democracia é, fundamentalmente, “a luta contra todas as formas de poder autocrático”; e, na época atual, contra o poder autocrático da tecnocracia de grandes empresas e da burocracia de grandes governos centralizados. Essa luta é empreendida, desde sempre, com vistas à autonomia e à liberdade. Ou, nas palavras de Castoriadis (2002, p. 216), conhecido como o filósofo da autonomia: “A democracia é a auto-instituição da coletividade pela coletividade, e esta auto-instituição como movimento”. Nesse sentido, uma sociedade autônoma é aquela que procede como criadora consciente de sua própria realidade sem imputar esta criação – suas leis, instituições e organização social – a um agente externo a ela mesma. Autonomia, então, difere de autocracia, tal como definida por Sartori (TDR1, p. 279)9, justamente por ser um poder limitado e controlado pelas circunstâncias da decisão das pessoas por ele relacionadas, de modo que possa ser revogável tanto quanto descentrado ou distribuído 10. Assim, uma teoria da democracia que reiteradamente retome a noção de “poder do povo” pode contrapor-se ao poder autocrático e validar um processo que não desconsidere sua etimologia. Mas, como argumenta o próprio Sartori (TDR1, p. 53), as teorias da democracia precisam ir além dessa noção meramente etimológica. Por isso, atualmente, há certo consenso sobre uma definição de Democracia como um valor universal11 que inclui tanto um regime político específico e um 9

Sartori é somente um dos autores que define Democracia, a contrario, como o oposto da autocracia, mas foi aquele que melhor apresentou essa definição ao distinguir a autocracia (e, portanto, a Democracia) de vários outros conceitos, como a ditadura, o totalitarismo e o autoritarismo, oferecendo assim uma definição suficientemente específica e distinta, ainda que somente negativa.

10

Sobre a diferença entre distribuição e descentralização, cf. Paul Baran (1964). Sobre os riscos da concentração de autoridade, mas também sobre a relevância da centralização, na federalização dos Estados, cf. Arretche (2013) e Stepan (1999).

11

A universalização da democracia, ou a compreensão de que a democracia (ou sua democratização) é um valor historicamente universal, é a aposta defendida por autores, pensadores e políticos tão diversos como Enrico Berlinguer (2006 [1989]), ex-secretário-geral do Partido Comunista Italiano, seguido de Carlos Nelson Coutinho (2006), e o ganhador do Prêmio Nobel de Economia em 1998, Amartya Sen (1999).

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mecanismo de regulação de conflitos, como um padrão social de organização da vida comum, aquilo que era chamado de ethos ou modo de vida na Grécia clássica. Entendida como modo de vida político, como enfatiza John Dewey (1998 [1939])12, a Democracia é um dos exercícios da atividade política. E essa atividade, como sabemos desde Aristóteles, trata da “função própria do homem”13, cuja finalidade é sua própria realização, ou seja, é um “execício ativo” para manter sua atualidade e dignidade, e não somente a produção de uma obra ou a fabricação de uma vida reificada; o que significa dizer que a Democracia precisa ser vivida, cotidianamente, para ser efetiva e buscar alguma estabilização, seja sob a forma de acordos e promessas mútuas, seja pela institucionalização de seus mecanismos reguladores – o que veio então a ser reconhecido como sua Constituição. Por outro lado, como invenção advinda da criatividade humana, a Democracia não pode surgir senão das coisas contingentes e, por isso, emerge de questões humanas e comuns. Isso significa que a própria Democracia, como um dos fenômenos do político, é atravessada ora por movimentos de democratização, ora por recuos de desdemocratização, tal qual descreve Charles Tilly (2013). Em outras palavras, a Democracia parece falhar justamente em seus elementos estabilizadores, como as promessas mútuas e os mecanismos institucionais. Afinal, seja em experiências emergentes, seja em regimes democráticos consolidados, todos ainda precisam lidar com a diferença deficitária no balanço entre os ganhos da inclusão, da participação e da redistribuição, por um lado, e a manutenção sistemática das desigualdades e dos problemas institucionais e sociais da representação, por outro. Somando-se a esse balanço aquilo que poderíamos chamar de autoimunidade14 da Democracia – sua incapacidade intrínseca de 12

Em Democracia Cooperativa, Dewey (2008 [1939]. p. 137) argumenta, especificamente, que a democracia deve ser entendida como um “modo pessoal de vida individual [que] significa a posse e o uso contínuos de certas atitudes, formando o caráter pessoal e determinando o desejo e a finalidade em todas as relações da vida”.

13

Aristóteles, em Ética a Nicômaco (1097b22), escreve ergon tou anthropou, o que significa literalmente “a obra do homem” enquanto homem. Do ponto de vista do indivíduo, ela é “a felicidade como uma forma de viver bem e conduzir-se bem” (1098b25). Do ponto de vista da comunidade, vai esclarecer Aristóteles na Política (1253a; 1280b), essa obra é não somente a sociabilidade para manutenção da vida conjunta, mas também o “viver bem” [eu zen], proporcionado pela política baseada na justiça, na lei e no interesse comum. Cf. Aristóteles, 2001 [1985], p. 24-26; 1997, p. 15.

14

Tomo o termo de Derrida (2003), para quem a relação aporética entre igualdade e liberdade expõe a democracia à “lógica da autoimunidade”. Como exemplifica Patton (2007), diante dessa “lógica” a

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impedir, por meios democráticos, os usos que podem ser feitos contra ela própria –, estão listados alguns dos elementos que poderiam colocar em xeque, senão a democracia do ponto de vista institucional, certamente qualquer idealização sobre o cotidiano democrático. A Ciência Política, por sua vez, em seus estudos sobre as Democracias, as classifica a partir de valores e critérios prefixados. São hegemônicas as Teorias da Democracia que a compreendem ou como um sistema de governo (e mensuram a eficiência de suas instituições), ou como uma forma específica de procedimentos, práticas e relações entre cidadãos e seu Estado-nacional, ou ambos15. Com isso esperam avaliar, como aponta Beetham (1993, p. 55)16, somente “quanto de democracia é desejável ou praticável, e como ela pode ser realizada numa forma institucional sustentável”. Para citar o caso mais emblemático, e ainda hegemônico, Joseph Schumpeter (1947 [1942], p. 269. trad. minha) define democracia como “um arranjo institucional para se chegar a decisões políticas nais quais indivíduos adquirem o poder de decidir por meio de uma disputa competitiva pelos votos dos cidadãos”. Nesse sentido, como argumenta Pitkin (1972, pp. 291-292, n. 35. trad. minha), Schumpeter não só assegura que as decisões políticas cotidianas não devem ser tomadas pelas pessoas, mas pelos políticos eleitos, como “compara a competição entre partidos políticos a uma guerra”: as decisões sobre temas políticos são como posições estratégicas; não o fim do embate, mas um meio para se manter o poder conquistado, já que “a essência de ambos os jogos”, nas palavras do próprio Schumpeter, é a “vitória sobre o oponente”. Continuando com a problematização de Pitkin (1972, pp. 231233), pode-se então concluir: se o que constitui a representação é a responsividade ao temas políticos, e se a mera seleção de uma pessoa, por outras pessoas, para a execução de determinado trabalho com vistas ao bem de todos não necessariamente torna o executor um representante daquelas outras, então esses modelos econômicos da democracia relegam a alteração de procedimentos democráticos pode ser utilizada (às vezes de modo não democrático) para proteger a própria democracia; ou, ainda, a suspensão de liberdades civis pode ser usada com vistas a, supostamente, proteger (às vezes de modo não democrático) a liberdade dos cidadãos. 15

Nesse sentido, para um exemplo de comparação qualitativa de desempenho entre governos, cf. LIJPHART, 2003 [1999]; para um método de classificação de modelos, cf. HELD (2007, p. 23-26); para uma abordagem que, além de classificar diferentes definições de democracia, também privilegia relações entre cidadãos e Estado, cf. TILLY, 2013.

16

Citado em MIGUEL (2005a, p. 5).

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responsividade e, com isso, a própria ideia de representação política, a uma posição secundária na constituição da Democracia. Essas avaliações, portanto, sejam institucionais ou procedimentais, se mostram insuficientes quando o que se procura compreender é a Democracia como um fenômeno social. E isso significa dizer que há condicionamentos recíprocos entre padrões sociais de organização e mecanismos políticos de regulação de conflitos; esse é o modo como a Democracia é vivida cotidianamente: afetado pela institucionalização de seus mecanismos, e vice-versa. Assim, em termos gerais, poderíamos constatar como um mecanismo político estruturado verticalmente – cuja forma mais difundida é o modelo da pirâmide – reforça e converge para um padrão social autoritário. Da mesma maneira, quando uns poucos ocupantes do topo da pirâmide social governam os muitos que permanecem em sua base, por meio de uma infindável estrutura de intermediação burocrática, cria-se uma dinâmica social que interfere diretamente em dois aspectos. Por um lado, há alterações nas técnicas de governo: tornam-se mais dependentes de aparatos de disciplina e controle do que de iniciativas de inovação e diálogo. Por outro lado, a capacidade de organização política da sociedade também é modificada: com elementos mais isolados, conectados unicamente por estruturas de intermediação burocrática, reduz-se o grau de confiança mútua e aumenta-se a centralização das mediações no Estado. Nesse sentido, algumas das avaliações correntes nas Teorias da Democracia não somente restringem o locus da política – muitas vezes centrada no topo da pirâmide e nas estruturas institucionais que a configuram – como também limitam a própria atividade política à necessária manutenção dessa estrutura e de sua previsível dinâmica social. Como consequência desse quadro, há dois sintomas que podemos evidenciar. No primeiro deles, a atividade política converge para a administração estatal, de modo que a Democracia é identificada com o sistema eletivo vigente e o poder político torna-se equivalente aos meios de dominação e violência, legitimados por esse mesmo sistema. O segundo sintoma pode ser observado nas barreiras epistemológicas sobre a natureza do político e sobre o sentido da política. Seja a Democracia o governo “dos muitos” ou “das múltiplas minorias”, se temos um sistema fundado no “poder do povo”, mas atestamos que o povo, de fato, não governa, então é possível que essa dinâmica política esteja lastreada em bases antidemocráticas. E se a política deixa de ter em vista a liberdade – o que, na

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Democracia, significa o poder autolimitado da comunidade política para decidir sobre seu destino comum – teria ela ainda algum sentido? A convergência desses aspectos parece restringir, ao fim e ao cabo, a descrição de seus fenômenos políticos aos padrões já conhecidos: governo, poder e política como instrumentos de dominação, controle e disciplina. 1.1. Primeiro sintoma: atividade política como administração do Estado No que diz respeito ao primeiro aspecto, é sintomático que haja certa tendência nos estudos sobre a política e sobre a Democracia em se assumir a ideia de um Estado unificado (mesmo sob um governo federal e descentralizado), cuja imagem da capacidade de agência assemelha-se à autonomia de um ator único e coerente. Para Skocpol (1985, p. 7. trad. minha)17, por exemplo, o Estado é “sistema administrativo, legal, burocrático e coercitivo” único e contínuo, e que estrutura as relações sociais. Assim, mesmo que haja variados graus de mistificação sobre o poder e a autonomia do Estado, e com nuances relevantes sobre seus aspectos de violência e dominação ou de proteção e desenvolvimento, certo é que essa ideia mantém a política centrada na mobilização do poder e da ação estatal, “como alvo de ataque e como posição privilegiada a ser ocupada” (Foucault, 2014. p. 430). Permeados por uma visão restrita da política, somos levados a exclusões sistemáticas, por um lado, de boa parte das interações e associações entre cidadãos que não tenham como foco a relação com o Estado ou mesmo a “tomada do poder estatal”. Por outro, ainda resta uma lacuna sobre as divergências e resistências políticas cotidianas de grupos subalternos, ou mesmo entre agentes que supostamente serviriam ao Estado; lacuna que está sendo parcialmente preenchida por pesquisadores dos chamados “novos movimentos sociais” ou mesmo pelos estudos sobre essas resistências cotidianas. Afinal, como indicam Rebecca Abers e Marisa von Bülow18, “a falta de atenção dada às numerosas formas de interação” é um problema comum para o qual “é a literatura recente sobre redes sociais que oferece pistas analíticas”.

17

Theda Skocpol (1985) foi o principal nome da corrente “estatista” e, em seu artigo Bringing the State Back In, enfatizava a ideia de continuidade e “autonomia” estatal, sustentada pela lógica de burocratização do governo.

18

Cf. ABERS; BÜLOW (2011, p. 52).

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Nesse sentido, a pesquisa de James C. Scott (1976; 1985)19 sobre a importância da resistência cotidiana, informal e tacitamente organizada, nas relações de classe e na mudança social trata das diferentes representações de poder (o que o autor denomina “transcript”) feitas por indivíduos e grupos subalternos em contextos de dominação, especialmente a dominação pessoal em interações entre pessoas que se conhecem. É uma abordagem que complexifica enormemente a quantidade de variáveis envolvidas nos esquemas de dominação, visando aumentar seu grau de realismo, mas que precisa, ao mesmo tempo, simplificar interpretações e efeitos inesperados das formas de resistência, focando em suas estratégias “escondidas”, para garantir algum caráter explicativo e de previsibilidade. Suas maiores críticas, no entanto, vêm de partidários da teoria da escolha racional, também focada nos dilemas da ação estratégica coletiva, como Samuel Popkin (The Rational Peasant, 1979). E embora Scott privilegie relações de dominação entre classes, ainda se vê, em seus exemplos, que a força da resistência cotidiana envolve, sobretudo, resistência contínua ao Estado, mesmo sem organização formal direcionada para isso. Nessa abordagem, portanto, o Estado ainda retém sua força gravitacional tradicional, que o mantém no centro das mediações de conflitos20. De todo modo, e a despeito desses potenciais desvios de trajetória, ainda insuficientes para mudar os rumos da Ciência Política, se seguirmos essa tendência, poderemos constatar que a Democracia seria então um método de unificação – em graus variados de conflituosidade interna – da comunidade política, sob um Estado nacional, territorial e administrativo. Com isso, o sentido da política – e de sua comunidade subjacente – passa a ser a manutenção e a administração do Estado. Em outras palavras, isso significa dizer que a liberdade política seria encontrada somente no Estado, isto é, no campo político delimitado pela estrutura institucional estatal. Vale lembrar, no entanto, que essa configuração foi alcançada, historicamente, com a unificação de comunidades políticas sob a égide do Estado-nação. O que mudou no contexto

19

Para uma boa resenha crítica da obra de Scott, centrada na noção de resistência cotidiana, cf. MONSMA, 2000.

20

Scott (1998) tenta relativizar esse fato somente em sua última obra, curiosamente intitulada Seeing like a State.

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político durante esse período não foi somente a crescente inclusão política da população ou a complexidade e o tempo para a tomada de decisões, mas a criação de uma nova unidade político-administrativa: o indivíduo. Para a organização político-administrativa desse conjunto de indivíduos – isto é, para o que desde o século XVIII chamamos de “governo da população”, como descreve Foucault (2014, p. 426) – inventou-se uma série de táticas e técnicas absolutamente novas, dentre as quais estão a ciência política – a conjunção da economia com a arte de governo –, a estatística – a ciência do Estado para prever e promover regularidades na população – e um modo de regulação de conflitos indireto (ou mediado) – a democracia representativa –, que permitiria, ao mesmo tempo, a ampliação e o controle da participação. Esse conjunto de fatores modificou o estatuto da igualdade democrática, limitando-o ao voto, que então pode ser paulatinamente universalizado. Mas também alterou seu princípio de liberdade, restringindo-o às garantias de proteção individual frente ao Estado, por meio da “possessão” de direitos individuais – o que foi entendido pelos modernos como “liberdades negativas”. E, se essa proteção aos indivíduos é anterior à consolidação do Estado moderno21, é com ele que o paradoxo fica mais evidente: o Estado moderno apresenta-se, ao mesmo tempo, como único garantidor dessa liberdade e como maior ameaça a seus próprios cidadãos. Em resumo, quando coesão social e coerção do Estado passam a ser uma e a mesma coisa, a Democracia limita-se a um método de unificação da comunidade política, constituída por indivíduos, para administração do Estado. Assim, o dilema político de “permitir a livre expressão dos interesses em conflito e ainda assim manter uma unidade mínima, sem a qual nenhuma sociedade pode existir” (Miguel, 2014. p. 13) passa a ser articulado com o viés do controle dos indivíduos e da administração dos conflitos, ambos centrados na capacidade de agência autônoma do Estado.

21

Nesse sentido, o historiador Jacob Burckhardt (2012, p. 14) argumenta que, mesmo “em meio ao mais rico desenvolvimento das individualidades”, não há dúvidas de que “os mecanismos de controle sobre o indivíduo já haviam sido totalmente implantados” nas tiranias italianas do século XIV. O sistema de passaportes, utilizado à época, em Florença, é um vívido exemplo dessa contradição interna, no que diz respeito às liberdades individuais, entre o aumento da proteção estatal e a implementação de mecanismos de controle dos cidadãos pelo Estado.

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O principal problema, contudo, não é tanto a visão unitária ou autônoma do Estado, diversamente problematizada por algumas correntes na Ciência Política22, mas a identificação entre política e Estado, por um lado, e entre Estado e administração, por outro; em suma, o problema está dado quando se traça uma linha que conecta diretamente a atividade política à tarefa administrativa, tornando-as muitas vezes equivalentes e intercambiáveis. É diante dessa convergência problemática que se consolida a ideia de que os atores públicos ou são estatais ou são necessariamente validados pelo Estado, e dela deriva-se a concepção de não haver democracia fora do Estado ou para além da “posse” de direitos individuais, assegurada exclusivamente por ele23. Partindo-se dessa concepção política restrita, a Democracia é identificada ao sistema eletivo vigente, ou seja, é entendida tão somente como um processo eleitoral periódico para indicação de governantes, escolhidos entre as opções apresentadas por grupos organizados e potencialmente elitistas ou oligárquicos, quando não corporativistas e privatistas. Esses governantes eleitos passam a atuar como responsáveis tanto pelas decisões políticas, como também pela tarefa administrativa24 – convertendo o cidadão em eleitor e, não raras vezes, o eleitor em mero consumidor reativo diante de ofertas limitadas pelo mercado eletivo. Consuma-se e naturaliza-se, assim, a problemática separação entre governantes e governados, isto é, entre os administradores da coisa pública e as coisas – sejam pessoas, grupos, interesses ou objetos – a serem por eles administradas.

22

Migdal (2001, pp. 15-16. trad. minha), por exemplo, aborda a “natureza dual do Estado” ao distinguir sua imagem unitária – como “uma coerente, controladora organização em um território” – das práticas reais “de suas múltiplas partes”. Poulantzas (2000, p. 131) acrescenta ainda que, embora as disputas internas sejam parte inerente à organização material do Estado, marcada pela “relação de forças entre classes e frações de classes”, a concretude de sua unidade se dá em sua “ossatura hierárquicoburocrática”. No fim, o que está em jogo é a visão de que há, em sua natureza, certa “autonomia funcional” do Estado.

23

Migdal (2001, p. 17. trad. e ênfase minhas) chega a mencionar que, além da fronteira territorial entre estados, a imagem unitária do Estado depende das “fronteiras sociais entre o Estado – seus atores (públicos) e agências – e aqueles sujeitos a suas regras (atores privados)”.

24

Como explica Miguel (2014, p. 47), há autores que diferenciam os líderes políticos dos burocratas, como Max Weber (1985 [1919]), e há autores, como Robert Michels (1982 [1911]), que indicam que ambos se beneficiam da estrutura hierárquica dos partidos e são, portanto, igualmente oligarcas. Mas, do ponto de vista da separação entre governantes e governados, os dois autores concordariam que ela é inevitável.

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O cenário descortinado por essa lógica apresenta o governo como um modo de administração de recursos escassos e a atividade política como uma luta entre inimigos, quando uma estrita hierarquização é estabelecida conforme o mando-obediência, e é reforçada a separação entre os que ordenam e os que executam as ordens, isto é, entre as decisões tomadas por um grupo e a execução a ser levada a cabo pelos demais, com a imposição de suas consequências a todos, partícipes ou não do processo de decisão. O Estado, enquanto instituição política desenhada para conter essa bellum omnium contra omnes, passa a ser definido a partir do amálgama da dinâmica política com a violência estrutural legitimada 25. Daí o pressuposto de a natureza adversarial e guerreira dos seres humanos não poder ser erradicada, mas tão somente controlada pela violência do Estado, o que atualmente mantém a confusão entre política e violência26. Essa confusão é ampliada tanto mais a dinâmica de administração estatal for adversarial e bélica, e tem como consequência a diminuição do sentido político da esfera pública como o espaço comum entre governantes e governados. Essa concepção faria da própria representação política, moldada dessa maneira, o principal entrave no esquema possível para compatibilização entre a noção corrente de Democracia e seus ideais normativos, baseados na igualdade potencial de influência e na participação nas decisões coletivas. E, embora tal compatibilização pareça distante e utópica, variados mecanismos para aumento e qualificação da participação no debate público sobre e para a diminuição das desigualdades, além da democratização das mídias – para ampliação da presença e para influência na agenda e nas opções de escolha –, são alternativas possíveis e viáveis para se lidar com esse risco constante de elitização da representação, como argumenta Miguel (2002; 2003; 2014).

25

A clássica formulação de Max Weber (1999, p. 529) sobre o Estado aparece como um exemplo bemacabado desse amálgama. O Estado, para ele, é uma “associação de dominação institucional, que dentro de determinado território pretendeu com êxito monopolizar a coação física legítima como meio de dominação e reuniu para este fim, nas mãos de seus dirigentes, os meios materiais de organização”.

26

A distinção entre poder e violência, como argumenta Arendt (SV), foi perdida com o advento do Estado-nação justamente porque essa é uma instituição desenhada para a guerra (e não para a política, portanto), conformada por seus meios coercitivos e seu aparato bélico-policial, além do próprio caráter de exceção de sua soberania. Nesse sentido, cf. também ARENDT (EPF, pp. 212-213).

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1.2. Segundo sintoma: demofobia e bases antidemocráticas nas teorias da democracia Em um segundo plano, pode-se atestar como as bases antidemocráticas desse elitismo pregam a impossibilidade da igualdade social e argumentam em favor da dominação de grupos que seriam naturalmente mais capacitados, mais organizados, ou “especializados”, justificando com isso, “mais do que a simples afirmação da desigualdade […], um ódio contra a ‘plebe ignara’ e um marcado sentimento de distância” (Miguel, 2014. p. 34), ou seja, evidenciando seu traço historicamente demofóbico. Dessa forma, é também sintomático que os estudos sobre a Democracia estejam fundados, epistemologicamente, sobre “bases antidemocráticas”27 ou mesmo a partir da “demofobia”28, isto é, de um medo do povo ou dos efeitos de expansão e aprofundamento da Democracia. Isso significa dizer, como explica Miguel (2014, pp. 30-31), que “os regimes democráticos contemporâneos são entendidos e vividos a partir de pressupostos – sobre a natureza humana e sobre a organização das sociedades – emprestados de uma corrente teórica que nasceu para afirmar a impossibilidade das democracias: a chamada ‘teoria das elites’”. Vê-se, portanto, que o problema não é somente o fato de que a enunciada tese da democracia concorrencial, exemplo mais bem acabado da concepção apresentada por Schumpeter (1947 [1942]) – cuja ressonância é fundamental até hoje para a compreensão dominante, na academia e no senso comum, das teorias da democracia –, elege como seus os pressupostos elitistas. A própria história da política moderna encontra-se marcada pela demofobia, isto é, por “princípios associados ao medo (e seus correlatos) em relação à emergência do dēmos na política” (Aguiar, 2011. p. 610). Assim, ao compreendermos a Democracia como uma forma de governo no mundo atual, é inevitável que tenhamos de lidar com o problema de como fazer a inclusão e a ampliação do conflito latente de interesses do dēmos diante dos desafios da representatividade

27

Tal como exposto em MIGUEL, 2002. Cf. também o capítulo “A democracia elitista” em MIGUEL (2014, pp. 27-61).

28

A noção de demofobia, que utilizaremos aqui, foi proposta e analisada por Thais Aguiar (2013) em sua tese de doutoramento e aborda aspectos tanto de teóricos liberais, como Constant, Tocqueville, Stuart Mill, Spencer, Schumpeter e Pareto, quanto de teóricos socialistas, como Marx, Engels e Lênin, atingindo seu paroxismo nas teorias de psicologia das massas de Le Bon e Sighele.

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política e das desigualdades sociais e, sobretudo, com o fato de que Democracia e Liberalismo fundiram-se a tal ponto que passaram a complementar-se como legitimação um do outro. Afinal, como atesta David Held (2007, pp. 24; 270), inspirado em Macpherson (1978), todos os modelos recentes de Democracia (em suas variantes “elitista competitiva”, “legal”, “deliberativa” e “participativa”) são devedores ou mesmo variantes teóricas diretas do modelo clássico de Democracia liberal representativa. Diante da tentativa de buscar alternativas ao sintoma das “bases antidemocráticas” como fundamento do pensamento contemporâneo sobre a Democracia e ao sintoma de restringi-la a uma forma de administrar o Estado, o argumento que se segue pretende indicar que podemos encontrar, no pensamento político de Hannah Arendt, elementos que nos oferecem amplo campo de estudos, seja pela novidade ao fomentar um olhar renovado sobre o político a partir de suas origens, seja por se propor a questionar as bases do pensamento político ocidental, seja ainda pelas lacunas e aporias que poderiam manter a autora contaminada pelos sintomas que destacamos acima. Hannah Arendt, em síntese, nos ensina sobre a dignidade da política – em sua autonomia e importância própria para reinventar o mundo em que vivemos. Um mundo que é, em qualquer momento, a brecha aberta entre os escombros do passado – o mundo do “não mais” – e as possibilidades inauditas do futuro – o mundo do “não ainda”. Nada mais ajustado, portanto, à tarefa que temos por diante, em nosso mundo considerado – por alguns “não ainda”, por outros “não mais” – democrático.

CAPÍTULO 2

POLÍTICA E DEMOCRACIA EM HANNAH ARENDT

Quando o [bom] caminho prevalece no Estado, fale com coragem e aja com coragem. Quando o Estado houver perdido seu caminho, aja com coragem e fale com suavidade. Confúcio.

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Para o caso de se haver notado, até aqui, alguma confusão entre os termos “política” e “democracia”, faz-se necessário então um esclarecimento. É verdade que há elementos comuns entre ambos, uma vez que se admita que a Democracia é uma forma de expressão política – seja como forma de governo, seja como uma qualificação das atividades políticas. Logo no início, argumentei em favor de nossa capacidade de reinventar a Democracia, pela política – e vice-versa. Isso significa que a Democracia só pode ser reinventada sobre bases democráticas e em condições políticas, isto é, em que o espaço público seja constituído pela pluralidade de pessoas que conformam sua comunidade subjacente. Então, sob o risco de ser mera repetição de histórias passadas – se é que isso realmente ocorre –, uma reinvenção da Democracia não será nem mais outorgada pela benevolência de um autocrata, como na Grécia antiga, nem advirá pelos meios bélicos da violência, como nas revoluções modernas. Nos capítulos que se seguem, como dito, lançarei mão de argumentos, em diálogo com alguns teóricos contemporâneos da democracia, vindos de uma pensadora política cujo vínculo com a tentativa de empreender essa ressignificação da política é, certamente, inegável. No entanto, seria injusto com seu pensamento, e igualmente falacioso diante de seus escritos, se tomássemos como inquestionável a possibilidade de Hannah Arendt haver, com esse intento, prestigiado a democracia tout court. Em que medida, então, poderíamos traçar – se é possível e promissor traçar – esse paralelo entre a política arendtiana e a reinvenção da Democracia? Toma-se como interpretação usual do pensamento de Hannah Arendt sobre “democracia” e “política”, a partir do conjunto de sua obra, a posição de que esses termos não são sinônimos, em princípio. Por um lado, sua acepção de política é ampla e, remontando definições aristotélicas, Arendt (EPF, p. 158) vai dizer: “o caráter da pólis como ‘composta de muitos governantes’ nada tem a ver com as diversas formas de governo que normalmente se opõe ao governo de um só homem, tais como a oligarquia, a aristocracia ou a democracia” 29. 29

Arendt cita, nesse trecho, o que está escrito em Economia [1343a1-4], “um tratado aristotélico apócrifo, mas escrito por um de seus discípulos mais próximos”. A mesma ideia está em Política [1292a13], quando Aristóteles cita Homero, Ilíada, II, 204 – “não é bom o governo de muitos” – para retoricamente afirmar que se trata de um tipo desviado de democracia em que “os muitos são soberanos não como indivíduos, mas coletivamente” e o povo, então, “exerce um governo monárquico, impedindo que a lei governe, e se torna despótico”. A esse respeito, cf. também ARENDT (CH, p. 233, n. 57).

Contra a Democracia? A Teoria da Ação de Hannah Arendt à luz do Pensamento Político Contemporâneo Capítulo 2: Política e Democracia em Hannah Arendt

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Por isso a política, nessa acepção ampla e necessariamente plural, se mostra compatível – em graus variados, é claro – com todas as formas de governo, à exceção da mon-arquia, que em nossos termos é o mesmo que autocracia. Isso significa dizer que a política só perece completamente diante da tirania do governo de um só, florescendo – novamente, em graus variados – em quaisquer outros regimes em que haja tanto o acesso dos cidadãos à esfera pública quanto naqueles em que a condição da pluralidade humana seja minimamente assegurada por essa comunidade política – o que, na verdade, é o mesmo que dizer que participação e pluralidade são uma só e mesma coisa. Por outro lado, e novamente seguindo a tipologia aristotélica que distingue entre o governo de um, dos poucos e dos muitos, não seria exagero dizer que, para Arendt, a questão específica da democracia enquanto governo parece limitar-se ao problema de “quem e quantos” dele devem participar – o que se desdobra, como veremos abaixo, no problema da “questão social” em um regime em que a maioria, constituída pelos pobres, passa a governar orientada por questões econômicas advindas de suas necessidades materiais insatisfeitas. Ainda que Arendt (SR, p. 339; 344) esteja de acordo com o “postulado moderno e revolucionário de que todos os habitantes de um determinado território têm o direito de ser admitidos à esfera pública política”, ela não tem dúvidas de que “o modo de vida político nunca foi e nunca será o modo de vida da maioria”. E, possivelmente, ela concordaria com o argumento aristocrático de Aristóteles30 de que nas democracias em que a lei governa, então os melhores cidadãos têm ali o primeiro lugar. Há, contudo, que se fazer uma pequena digressão para embasar essa suspeita. 2.1. Hannah Arendt e sua compreensão aristotélica da Democracia É sabido que Aristóteles tanto toma como ponto de partida a usual tipologia de Platão, com sete formas ideais de governo, como altera alguns de seus critérios, distinguindo

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Aristóteles, em Política [1292a8], diz que “em cidades governadas democraticamente e sob o império da lei não aparecem demagogos, e as melhores classes de cidadãos ocupam as posições mais proeminentes”.

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no critério de número o aspecto relacionado à riqueza31. Assim, na Política, são três as formas corretas de constituição, isto é, de governo de um Estado: i) Monarquia, Estado em que o governo que visa ao interesse comum pertence a um só; ii) Aristocracia, Estado em que o governo que visa ao interesse comum pertence a mais de um e, especificamente, aos poucos mais honestos ou aos poucos que têm em vista o maior bem do Estado e de seus membros, ou seja, aos aristoi, os melhores; e iii) República, Estado em que a multidão governa para a utilidade pública, embora Aristóteles (Política, 1289a10) ressalte que “república” [politeia] é também o nome comum a todo “governo constitucional”. A esses Estados puros correspondem igualmente três formas degeneradas ou “desviantes” de governo: i) da Monarquia para a Tirania, quando o governo visa ao interesse do governante, ou quando há governo despótico (isto é, a autoridade é exercida como o poder doméstico do senhor sobre seus escravos); ii) da Aristocracia para a Oligarquia, quando o governo visa ao interesse dos ricos; e iii) da República para a Democracia, quando o governo visa ao interesse dos pobres. Portanto, para Aristóteles (Política, 1279a25), o que implica degeneração no governo tem mais a ver com o fato de que nenhuma das formas degeneradas se ocupa do interesse público e comum, isto é, com a formulação e a execução de boas leis. Daí a preferência de Aristóteles (Política, 1294a40) por amalgamar interesses de ricos e pobres para forjar um governo em que a combinação das três qualidades para alcançar a igualdade no governo – a liberdade, a opulência e a virtude – levariam ao melhor governo, isto é, ao mais justo, ao mais “equitativo”, como ele vai dizer em sua Política (1283b50). Assim, mesmo sendo aristocrático em seu princípio, o argumento de Aristóteles, porquanto fundamentado nessa igualdade presente em qualquer bom governo, só pode nos levar em direção a um governo de cidadãos livres e politicamente iguais, uma vez que será seu efeito “desejável”, e não seu ponto de partida, a formação de um corpo político limitado, paradoxalmente, aos melhores dentre os iguais. Em seu caráter marcadamente republicano, Arendt parece seguir de perto as definições de Aristóteles quando ele afirma que a República é o Estado “em que a multidão governa para a utilidade pública”. Dessa forma, a Democracia seria uma forma degenerada de 31

Aristóteles, em Política [1289a20], refere-se a O Político [302a e ss.], de Platão.

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República, uma vez que nesse tipo de Estado “o poder da multidão” está voltado especificamente “para a utilidade dos pobres”. No entanto, no mesmo texto, Aristóteles (Política, 1294a12) vai explicar que as formas que se inclinam para a Democracia são comumente chamadas ‘republicanas’ e que, nelas, seu primeiro objeto é a liberdade (sendo todos os cidadãos iguais a este respeito). Desse modo, Aristóteles (Política, 1291a8) poderá finalmente definir a Democracia como aquela circunstância em que os cidadãos, homens livres e mesmo os pobres, formando a maioria, detém o poder soberano, mas sob o império da lei. Assim, ele concentra sua crítica não na Democracia em si, mas no estágio (denominado “democracia extremada”) em que, sob o risco de serem subjugadas aos decretos da assembleia popular, as leis se tornam impermanentes. Isso porque, no entendimento do filósofo estagirita, onde as leis não têm força, então não pode haver República, pois que aparecem os demagogos e, finalmente, o povo torna-se tirano32 – advertências, aliás, que certamente encontraremos, em outros termos, quando Arendt (SR, p. 348) se refere, por exemplo, a esse mesmo problema da instabilidade política nas democracias de massa como “um dos problemas mais sérios de toda a política moderna, que não é como reconciliar liberdade e igualdade, e sim como reconciliar igualdade e autoridade”. Para ela, a perda da tradição no mundo moderno liga-se a uma crise de autoridade e de fundamento (ou melhor, de fundação) para as instituições políticas (quando se destrói o espaço entre os homens, delimitado pelas leis e vital para a liberdade). E isso aumenta o risco que pode, novamente, nos levar à tirania das massas (quando se confunde poder legítimo com violência) ou ao totalitarismo (quando sua essência – o terror, que é a força do desígnio, da Natureza ou da História, tornada lei – se une à ideologia como “princípio de ação”)33. Vê-se, contudo, também naquele filósofo das classificações, que é a dificuldade de qualificação de um regime em aspectos únicos e pontuais o que torna-se seu indicador de excelência, como ele mesmo ressalta. Dessa maneira, como havíamos anteriormente concluído, a preferência final de Aristóteles (Política, 1294a-b) é a forma mediana – um justo

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Cf. Aristóteles em Política [1292a-b].

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A esse respeito, ver sobretudo “Que é autoridade?” (Arendt, EPF. pp. 127-187) e “Ideologia e Terror” (Arendt, OT. pp. 611-639). Como contrapeso, uma discussão sobre a “desobediência às leis” nas democracias modernas pode ser lida em “Desobediência civil” (Arendt, CR. pp. 49-90).

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equilíbrio – de constituição de Estado mista34, apresentada como uma república virtuosa (isto é, aristocrática no sentido de que as virtudes de um Estado são as virtudes de seus cidadãos, e vice-versa, fazendo-se esse seu mérito), formada pelo amálgama entre as melhores qualidades da democracia (a igual liberdade e alternância para participar do governo e executar bem as leis) e da oligarquia (a opulência, se associada ao tempo livre e ao saber, para propor boas leis) – como também poderia ser o caso da preferência de Arendt, se fosse assim anacronicamente formulada. 2.2. A Democracia na teoria política de Hannah Arendt Não há, nas obras de Arendt, uma tipificação ou distinção das democracias modernas como vemos nos estudos contemporâneos – não se fala em democracias “procedimentais” ou “participativas”35. De modo bastante enfático, Arendt (CE, p. 415) recusa-se inclusive a transformar a Democracia em um “fim político”, quando diz que “converter a democracia numa ‘causa’ no sentido ideológico estrito, contradiz as leis e regras com que vivemos e deixamos viver”. E isso significa, para Arendt (CE, pp. 415-416), que […] esta república, esta democracia em que vivemos, é uma coisa viva que não pode ser contemplada e posta em categorias, como imagem de algo que quero fazer; não pode ser fabricada. Não é e nunca será perfeita, porque aqui não se aplica o critério da perfeição. A discordância faz parte dessa matéria viva, ao mesmo título da concordância. Os limites à discordância estão na Constituição e na Declaração de Direitos, e em nenhum outro lugar. Se vocês tentarem “fazer a América mais americana” ou compor um modelo de democracia segundo alguma ideia preconcebida, só irão destruí-la.

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Vale destacar, no entanto, que esse “equilíbrio aristotélico é social” antes de ser institucional, como argumenta Bobbio (1997, p. 71). Na interpretação do italiano, “a teoria aristotélica da ‘politia’ não é tanto uma teoria do governo misto [como na teoria dos mecanismos constitucionais em Políbio], mas sobretudo a admiração sentida por uma sociedade sem grandes desequilíbrios de riquezas”. Na visão que expomos aqui importa menos se há precedência entre o equilíbrio social ou institucional, já que argumento que existe, de fato, um condicionamento recíproco entre as esferas social e institucional, isto é, entre os padrões de organização social e os mecanismos políticos institucionalizados.

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A exceção pontual talvez se deva ao trecho em que, tratada como “único slogan político positivo” da nova esquerda, a democracia participativa é entendida por Arendt (SV, pp. 38-39) como uma exigência que “provém do melhor na tradição revolucionária – o sistema de conselhos”, mas que, para ela, é invocada “de maneira inarticulada contra a democracia representativa ocidental […] e contra as burocracias de partido único do Leste”.

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Desse modo, quando menciona eventos e regimes atuais, como é o caso por exemplo de seu controverso “Reflexões sobre Little Rock”, de 1959, Arendt (RJ, p. 268) se utiliza de termos como “República” e “governo constitucional moderno” para tratar da “democracia americana”, regime em que “a igualdade como tal tem uma importância na vida política de uma república maior do que em qualquer outra forma de governo”. Além disso, como explica sua biógrafa Young-Bruehl (1997, p. 201), a democracia em que Arendt viveu é mais bem descrita por ela a partir dos “princípios republicanos norte-americanos do século XVIII” – daí a primeira dificuldade em se dizer em que consistiria essa atualidade das “democracias atualmente existentes”. De toda forma, se ela os defendeu ao longo de toda sua vida, o fez somente no mesmo sentido daqueles cidadãos que “têm bom senso suficiente para não se opor a uma forma de governo que sabem que está entre as poucas sobreviventes da verdadeira liberdade política e entre as ainda mais raras que garantem aquele mínimo de justiça social sem o qual a cidadania é impossível”, como conclui Young-Bruehl (ibid.). Mesmo em reflexões posteriores, Arendt (CR, p. 192) vai escrever que “em todas as repúblicas com governos representativos, o poder emana do povo” – sem, contudo, associar explicitamente essa ideia à Democracia. Na mesma entrevista de 1970 em que aparece esse trecho, feita pelo escritor alemão Adelbert Reif, quando instigada a pensar sobre as demandas por democratização nos países socialistas e capitalistas, Arendt (CR, p. 190) indica que “a contenda nunca é simplesmente sobre um sistema econômico”, mas que “refere-se à questão política: refere-se a que tipo de estado se deseja, que tipo de constituição, que tipo de legislação, que espécie de salvaguardas para a liberdade da palavra falada e escrita”, ou seja, “liberdade é liberdade quer seja garantida pelas leis de um governo ‘burguês’ ou por um estado ‘comunista’” – escapando novamente de ter de fazer associações entre política e tipos específicos de democracias, mas abrindo espaço para que questões que, em princípio, seriam entendidas como econômicas sejam “politizadas”, ou seja, trazidas ao campo e sob os termos das discussões políticas. Procurarei justificar, então, os motivos que me levam a crer que esse possível intercâmbio entre termos distintos mas assemelhados – como política, democracia e revolução – será não só promissor para uma abordagem do pensamento arendtiano à luz dos acontecimentos políticos contemporâneos, como também poderá esclarecer algumas das

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questões cujo desfecho, de outro modo, sem esse intercâmbio, permaneceriam fadadas à especulação vazia; por exemplo, como responder à questão “Arendt está contra a Democracia?” sem recorrer a esses paralelos, interpenetrações e possíveis homologias – isto é, a certa equivalência nas origens desses fenômenos, mas cujos desdobramentos levaram ocasionalmente a funções e articulações distintas entre eles? Isso se dá, entre outras razões, porque a indiferenciação em algumas referências arendtianas aos termos política e revolução, por exemplo, poderia ser parte constitutiva de suas estratégias discursivas, ou melhor, de sua sempre presente “ambiguidade em termos políticos”, como fala sua biógrafa Young-Bruehl (1997, p. 94). Nada mais característico em uma figura que “era, e assim permaneceu, tanto conservadora quanto revolucionária” (p. 201) – apesar de seus constantes esforços por realizar distinções entre categorias político-filosóficas. Esse é o caso, para citar um específico, da passagem em que ela afirma, sobre a revolução, o mesmo que poderia ter dito alhures sobre a política ou, ainda, algo muito semelhante ao que algum teórico da democracia poderia ter escrito sobre uma proposta radical de democracia, se estão todas essas ideias articuladas ao redor da origem comum na liberdade e no poder como ação concertada não violenta: No momento está faltando um pré-requisito para a revolução vindoura: um grupo de verdadeiros revolucionários. […] E é precisamente isto o que fazem os revolucionários. Revolucionários não fazem revoluções! Revolucionários são aqueles que sabem quando o poder está caído nas ruas e quando podem pegá-lo. O levante armado por si ainda não levou a nenhuma revolução (Arendt, CR. p. 177).

Do mesmo modo, facilitando o intercâmbio entre aspectos descritivos das revoluções e propostas especulativas para novos arranjos democráticos, Arendt permitiria ensejar interpretações advindas da profunda ligação histórica entre o desenvolvimento das democracias e os desdobramentos das revoluções – ainda que ela diga não ser da opinião “de que se possa aprender muito da história, pois a história constantemente nos confronta com o novo” (Arendt, CR. p. 181). Assim, argumento que seja plausível fazer uma leitura que permita o intercâmbio entre aspectos normativos da política – apresentados por Arendt (EPF, p. 160), em síntese, como “o direito de participar da condução dos negócios públicos” – e aspectos normativos da democracia, propostos por outros teóricos da democracia, que também dizem respeito à participação do dēmos no “governo do povo”. Com isso, pode-se situá-la

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consonante às atuais discussões teóricas sobre a Democracia sem, no entanto, abrir mão de algumas das críticas arendtianas aos sistemas democráticos vigentes. Para evidenciar de modo sucinto – ainda que bastante apologético – o espaço permeável que interconectaria as ideias arendtianas sobre política, democracia e revolução, vale destacar novamente as palavras de Schell que, na apresentação de Sobre a revolução (2011, p. 11), chama de “revoluções arendtianas” o que em outra parte ele descreve como “a onda de revoluções democráticas da segunda metade do século XX”: Em Sobre a revolução, publicado doze anos depois [de Origens do totalitarismo], ela [Hannah Arendt] acenou com esperança a um futuro próximo, mas ainda invisível e desconhecido, a saber, a onda de movimentos não violentos que, desde meados dos anos 1970 até a data de hoje, tem levado ao poder governos democráticos em dezenas de nações de todos os continentes.

Nesse sentido, se tomarmos o empreendimento de Claude Lefort (2011; 1991) como comparativo, vemos que ele pretendeu investigar simultânea e paradoxalmente o político – centrado na vida comum que permite unidade e identidade à experiência coletiva – e o paradigma democrático nas sociedades modernas – caracterizado pelo conflito e pela diversidade –, de modo que o elemento político e a representação política coletiva sejam aspectos inseparáveis – e, por vezes, intercambiáveis. Seu estudo fenomenológico sobre ambos o levou a conceber a Democracia como um poder de centro vazio, um “poder de ninguém”36. Se, em Lefort, o político e a democracia passam a ser aspectos inseparáveis, embora distintos, já no pensamento de Hannah Arendt revolução e Democracia parecem coincidir de maneira semelhante, talvez pela simples atestação de que seguiram-se de ambas as revoluções ressaltadas nas análises de Arendt – a americana e a francesa –, democracias atualmente consolidadas, ainda que em períodos significativamente diferentes. Assim, em que pese o fato de que à revolução francesa se seguiu imediatamente o que Arendt (SR, p. 209) descreve como uma “ditadura revolucionária”, e à sequência da revolução americana teríamos desde

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Para que não pairem mal-entendidos: esse “poder de ninguém” é obviamente distinto do que Arendt (CH, pp. 50-54; SV, p. 55) chama, pejorativamente, de sociedade governada “por ninguém”, ou de governo da burocracia, a “forma mais social de governo”, ao fazer referência tanto à “mão invisível”, que governaria as ficções dos utilitaristas e economistas liberais, quanto à “mera administração”, que tomaria o lugar do governo com a “decadência do Estado”, nas previsões utópicas de Marx.

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sempre uma “república constitucional”, é com o olhar retrospectivo, mas assentado no contexto das “democracias atualmente existentes”, que essa confusão, ou melhor, que esse intercâmbio temporário entre Democracia e revolução poderia ser sustentado: ambas deparam-se com o problema da “proposição de nova forma de governo” sem apelar para uma entidade absoluta e externa àqueles que propõem (Arendt, CH. p. 228); o que, em nossos termos, significaria dizer que a Democracia, enquanto movimento político contra a autocracia, leva sempre e imediatamente ao questionamento do poder absoluto, do governo absoluto, da autoridade absoluta37. De modo muito semelhante, isto é, se a Democracia tanto quanto as revoluções deparam-se com “o problema do absoluto”, Arendt (SR, p. 208 e ss.) argumenta sobre sua inevitabilidade ao se propor uma nova forma de governo, já que “ele [o problema do absoluto] é intrínseco ao próprio acontecimento revolucionário” – fenômeno que, para Arendt, se apresenta na frequente reaparição, em tempos revolucionários, da ideia de democracia participativa presente no sistema de conselhos. Em uma emblemática passagem, em que Arendt (TI, p. 32. trad. minha) está descrevendo uma dessas retomadas do sistema de conselhos – aquele que durante 12 dias esteve a cargo do governo na Revolução Húngara de 1956 –, é a própria autora quem traça uma linha clara conectando esses três termos – política (entendida como liberdade), revolução e democracia: “O ressurgimento dos conselhos, não a restauração dos partidos, foi o sinal claro de uma verdadeira revolta da democracia contra a ditadura, da liberdade contra a tirania”. Vê-se, portanto, que parece ser justamente a correlação entre democracia, revolução e política – como autônoma em relação à esfera econômica e social – o que precisa, com efeito, ser articulado para se propor uma “nova forma de governo”. A esse respeito, vale observar que o desprestígio de Arendt aos movimentos populares em sua tendência a tratar indistintamente questões políticas e econômicas – articulando-as como “questões sociais” – 37

Como argumentam Vernant (2004, pp. 115-125; 129-135) e Castoriadis (1987, pp. 301-313), é um fato histórico que a pólis – isto é, o que entendemos como a primeira invenção da Democracia – tenha surgido da negação da soberania de um único agente, ou seja, a partir da contestação da mon-archia. Por isso a pólis foi vista pelos filósofos antigos como um retorno ao Chaos: os esquemas de pensamento dos filósofos antigos fundamentavam-se na tentativa de dar uma “nova ordenação” ao mundo, de restaurar o Cosmos frente ao Chaos, frente a dinâmica [dynámeis] de reparação [tisis] e justiça [diké] que se impunha diante dos instáveis, e por vezes injustos, negócios humanos.

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não é total nem injustificado, uma vez que ele é mais especificamente direcionado ao “sistema multipartidário continental com sua insistência nos interesses de classe, por um lado, e na ideologia, ou Weltanschauung [visão de mundo], por outro” (Arendt, TI. pp. 29-30. trad. minha). Esse sistema multipartidário continental seria, portanto, somente um dos dois modelos de “representação eleitoral democrática”, sendo o sistema de conselhos o segundo e, efetivamente, conforme argumenta Arendt, o mais promissor nas condições modernas da democracia. Assim, mesmo quando tinturas aristotélicas aproximam seu argumento de certo chauvinismo aristocrático contra a “questão dos pobres”, que traria para o centro do espaço político a demanda por administrar necessidades privadas da maioria, pode-se atestar como o pensamento de Arendt (CH, p. 228, grifo meu) é bastante mais preciso em suas críticas e oportunidades abertas às democracias modernas: […] os sindicatos jamais foram revolucionários no sentido de desejarem a transformação simultânea da sociedade e das instituições políticas que a representam; e os partidos políticos da classe operária têm sido, quase sempre, partidos de interesses, em nada diferentes dos que representam outras classes sociais. Passava a haver certa diferença somente naqueles momentos, raros e decisivos, em que, no decorrer de um processo revolucionário, ficava claro de repente que, se não fossem comandados por programas e ideologias partidárias oficiais, os operários desenvolveriam ideias próprias quanto às possibilidades do governo democrático nas condições modernas.

O caso, no entanto, é que esse mesmo impulso revolucionário-político-democrático pode levar ao questionamento absoluto das formas de autoridade – ainda mais se e quando as fontes da lei e do poder, tanto em uma revolução quanto em uma democracia, assentam-se igualmente no povo, na vontade popular. Para Arendt (SR, p. 210), o perigo dessa “falta elementar de autoridade” é o aprofundamento da instabilidade dos corpos políticos – o que, evidentemente, se observa nas análises de Arendt sobre as revoluções, mas também nas ondas de desdemocratização das quais fala Tilly (2013, p. 72 e ss.). Daí a clara ênfase arendtiana na necessária retomada da dignidade da política e na estabilidade de suas instituições em uma república – e não especificamente na democracia, mesmo se entendida como uma das formas atuais de governo republicano constitucional.

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2.3. Restrições de Hannah Arendt à Democracia Em diversas passagens, Arendt (SR, p. 215, n. 41) demonstra seu profundo ceticismo – para não dizer ojeriza – para com o “tipo de democracia na acepção original de governo da maioria”. Nesses momentos, não é raro que ela faça menção explícita a sua preferência – alinhada a dos fundadores norte-americanos – por “uma república no sentido de ‘um império de leis e não de homens’” (Arendt, SR. p. 214). E, se é fato que a revolução francesa nos legou justamente a preferência por substituir a monarquia absoluta – o governo de um só – pela democracia, Arendt (SR, p. 215) procura explicar então suas preocupações com o impacto dessa substituição, no contraste com o caso norte-americano, para a dignidade da política: Para nós é difícil entender tudo o que estava em jogo nessa passagem inicial da república para a forma democrática de governo, porque geralmente igualamos e confundimos o governo da maioria com a decisão da maioria. […] O princípio da maioria é inerente ao próprio processo de tomada de decisões e, assim, está presente em todas as formas de governo, incluindo o despotismo, com a possível exceção somente da tirania. Apenas quando a maioria, depois de tomada a decisão, passa a liquidar politicamente – e, em casos extremos, fisicamente – a minoria adversária é que o mecanismo técnico de decisão da maioria degenera em governo da maioria [leia-se, em democracia].

Novamente, portanto, podemos dizer: é inegável a ligação do pensamento arendtiano a uma forma constitucional, republicana e federativa de política. Mais explicitamente, Arendt (SR, p. 207, n. 33) argumenta em favor de se traçar “uma distinção clara entre lei e poder”, o que a levaria a entender, fazendo alusão a Benjamin Hitchborn e ecoando as advertências aristotélicas, “que um governo que se baseia exclusivamente no poder do povo não pode mais ser considerado um governo por leis”. E em anuência aos revolucionários norte-americanos, para quem “a sede do poder era o povo, mas a fonte da lei viria a ser a Constituição”, Arendt (SR, p. 207) permanece resoluta nas diferenças de origem entre lei e poder – o que a levará, por diversos outros caminhos, a finalmente questionar a noção de soberania, talvez o último absoluto político irresolvido nas atuais democracias constitucionais38. 38

Essa tarefa é levada a cabo pelo filósofo italiano Giorgio Agamben, em muito devedor do pensamento de Hannah Arendt. Como argumenta Agamben (2004, p 13), “a criação voluntária de um estado de emergência permanente (ainda que, eventualmente, não declarado no sentido técnico) tornou-se uma

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Em outras palavras, apesar de aceitarmos que “o poder emana do povo”, tanto na política arendtiana como nas democracias modernas, isso não pode ser confundido nem identificado com a questão da “soberania popular” que, embora aceita atualmente como democrática, será vista com reticências por Hannah Arendt por representar, em um só slogan, os riscos simultâneos de: i) “reivindicação de um poder ilimitado e irrestrito” (Arendt, SV. p. 20), impedindo a separação entre liberdade e independência nacional; ii) perda da pluralidade política – sob a imagem de um só povo, um coletivo exerceria seu poder, como alertou Aristóteles, de forma tirânica ou, como prefere Arendt (CH, p. 227), de forma “anti-política”; iii) manutenção de um absoluto em um regime que procura questionar todos os absolutos e, finalmente; iv) confusão e identificação da democracia com governo da maioria – ou, mais especificamente, com o sintoma de que as democracias populares podem terminar por “liquidar politicamente – e, em casos extremos, fisicamente – a minoria adversária”. Em síntese, temos novamente o velho sintoma do medo da “tirania da maioria” mas, igualmente, o perigo de não se reservar, nas democracias talvez menos ainda do que em outros regimes políticos, um lugar específico para o dissenso, para a autonomia das minorias e, ainda mais, para a oposição política (que daria demonstrações, ao mesmo tempo, da validade da alternância no poder, da estabilidade das leis e direitos, e da liberdade de expressão e reivindicação). Por isso, como conclui Arendt (CR, pp. 190-191), “liberdade sempre implica em liberdade de divergir [sic] […] e é exatamente em liberdade política e em direitos básicos garantidos que as forças da oposição estão interessadas, e com toda razão”. Em boa medida, no entanto, a incompatibilidade entre o igualitarismo político de fundo e o elitismo prático de Hannah Arendt, ou melhor, entre seu apelo revolucionário e suas restrições conservadoras, parece dever-se a sua tentativa de combinar duas fontes para a noção de liberdade que não convergem totalmente. Em sua visão, a liberdade política diz respeito tanto à capacidade humana de dar início ao novo e à possibilidade de mover-se livremente – essa é sua condição – quanto aos riscos inerentes à liberdade, pois “não existe ameaça mais perigosa e mais aguda contra as próprias realizações da revolução do que o espírito que as empreendeu” (Arendt, SR. p. 294). E esses são, também, os riscos da política, das práticas essenciais dos Estados contemporâneos, inclusive dos chamados democráticos”.

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diante dos quais se ergue a legitimidade de se exigir segurança; por exemplo, por meio da fundação de instituições civis que, ao mesmo tempo, mantenham vivo o poder do povo e a autoridade das leis. Por isso, a liberdade de ação, ao transcender a libertação da tirania e da necessidade, precisa ser identificada em algum momento “ao ato de fundação, isto é, com a montagem de uma Constituição” (Arendt, SR. p. 296). Se é Santo Agostinho quem dá suporte à noção de natalidade 39 – do milagre de que os homens são, em si, um novo início –, são os princípios republicanos que vão indicar os limites dessa inovação, uma autolimitação do corpo político que igualmente liberta e protege. Cada vez mais ciente de que, na modernidade, o problema se localizava na perversão da ação em uma espécie de fabricação – com o consequente aumento do emprego irrefreável da violência e do terror – e na diluição da pluralidade em uma sociedade de massas – com a consequente conversão do desejo de distinção pública em traços de caráter subjetivo e privado, ou em mero conformismo –, Arendt tentava escapar do velho círculo vicioso entre o pouvoir constituant e o pouvoir constitué. Esse conflito se manifestava desde que escrevera Origens do Totalitarismo, como nos relembra Young-Bruehl (1997, p. 206), quando “a aguda antítese entre cidadãos e aqueles sem conceito de verdadeira vida política estava na mente de Arendt”; por isso, foi então “como judia e republicana, não como antiga estudante de Agostinho, [que] ela escreveu sobre glória e ignomínia, heroísmo e baixeza”. Assim, é na experiência relativamente exitosa dos Founding Fathers, republicanos que demonstraram claramente em seus textos uma aversão à democracia40 – ainda que especialmente localizada no risco do governo da maioria –, que Arendt vai buscar compreensão não somente sobre as ações revolucionárias, mas sobre o conceito de poder – limitado pelas leis, embora distinto delas – e sobre a fonte de sua autoridade, a federação. O que não parece preocupar Arendt, nessa retomada das experiências dos federalistas, é que tal experiência estava fundada no medo da “tirania da maioria”, ou seja, na 39

Embora esse seja um tópico bastante conhecido e explorado pelos comentadores de Arendt, um dos poucos (e bons) artigos dedicados exclusivamente ao tema pode ser lido em TSAO, 2010.

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Pode-se tomar, em particular, O Federalista nº 10 (que argumenta sobre os riscos de formação de uma facção majoritária), nº 35 (que trata sobre as vantagens do efeito de sub-representação política e prepara o caminho para a introdução do princípio aristocrático na lógica da representação), nº 57 (onde se vê a formulação do princípio aristocrático) e nº 63 (que conclui sobre a superioridade da representação para proteger o povo de si próprio).

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suposição de que regras democráticas de ampliação da participação no governo teriam como consequência (perigosa, quando não indesejada) o risco de expropriação, ligado ao possível desequilíbrio da ordem social. Então, a “tirania da maioria” equivaleria aos riscos de que, sob o ambiente de sufrágio universal em que a maioria não proprietária tivesse possibilidade de governar, o governo deixasse de ser “justo e livre”, isto é, não mais garantisse a devida proteção aos direitos (naturais) de propriedade da minoria proprietária. Afinal, se a maioria (pobre) governa, então não só a propriedade dos poucos (ricos) fica ameaçada, como também a riqueza do próprio Estado, que precisará ser distribuída para atender às demandas dos novos “governados”, daqueles incluídos com o processo de universalização e democratização. Esses argumentos dos federalistas, no entanto, terminaram por acertar a outra face do problema: contribuíram para consolidar um modelo de representação que se mantém, em certa medida, não responsivo às demandas da maioria, mesmo em ambientes em que os abismos de desigualdades sociais são menores – o que, seguindo esses mesmos argumentos, também diminuiria os riscos de expropriação. Daí autores como Robert Dahl (1989 [1956]) afirmarem que o risco maior, para a democracia, parece ser não tanto o da “tirania da maioria”, mas, por outro lado, o da “tirania da minoria”, quando a regra da maioria se combina de maneira instável com o direito de uma minoria gozar de seus privilégios e, em especial, da liberdade de participação no governo. Assim, na avaliação de Brunkhorst (2006, p. 178), que parece ser compartilhada por diversos outros críticos tanto de Arendt como do liberalismo, esse ideal republicano de liberdade é elitista não somente do ponto de vista histórico, como também em seu conteúdo e em seus pressupostos. Então, o que nos toca por hora é indicar, novamente, que o que está em jogo são os critérios para que as distinções e objeções propostas por Arendt tenham algum efeito positivo: o que deve ser protegido pelos muros da pólis? Quem de fato pode adentrar e aparecer na pólis – usufruindo do único espaço em que a igualdade e a liberdade se tocam? 2.4. A política de Hannah Arendt e o modo de vida democrático Finalmente, vale recordar que, logo de saída, expus que a Democracia pode ser entendida como um modo de vida político, e não somente como uma forma de governo.

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Tomava emprestada a formulação do filósofo contemporâneo norte-americano John Dewey (1998 [1939]), que parece ter simplesmente seguido o pensamento, formulado por Aristóteles, que desde os antigos gregos nos indica que uma forma de governo é a expressão, entre os indivíduos, de certo padrão de organização social. Mas esse padrão, porque é reciprocamente condicionado pelos mecanismos políticos institucionalizados para resolução de conflitos, aparece como o fenômeno político do ethos de uma comunidade, de um modo de vida político; em suma, trata-se do modo de organização do bios politikos aristotélico. Para Arendt, cujos argumentos foram forjados com (e por vezes contra) a tradição aristotélica, o modo de vida democrático certamente não é o único. Contudo, por suas descrições sobre o fenômeno político e, igualmente, por suas análises sobre os eventos contemporâneos, revolucionários ou totalitários, não seria insensato julgar que esse particular modo de vida – que pretende conjugar igualdade e liberdade – parece ser aquele que, efetivamente, permitiria recuperar a dignidade da política, permitiria trazer o discurso e a ação para o centro da vida pública, permitiria revalorizar o juízo dos observadores e a pluralidade na opinião pública; enfim, permitiria realizar a utopia política arendtiana. No mundo atual, de afirmação da democracia como valor historicamente universal e de abertura para novas experiências democráticas, a Democracia não parece ser mais a utopia do político – embora não se possa dizer que ela está “realizada”, certamente ela não se encontra “sem lugar”. Por isso dizíamos que, antes, é a política, cada vez mais, o que parece ser a utopia da Democracia. Nossa pretensão, portanto, será traçar esse caminho entre a política e a Democracia na companhia de Hannah Arendt. E, para isso, o paralelo que torna intercambiáveis Democracia e política estará, sempre, em nosso encalço. Parafraseando o título do livro de Lefort (1991), poderíamos, de fato, dizer que Arendt está “pensando o político” em “ensaios sobre democracia, revolução e política”, de modo que cada termo poderia ser tomado como homólogo da liberdade, isto é, eles têm nela sua origem comum, apesar de suas funções, desenvolvimentos e mecanismos poderem ser distintos. Afinal, como ela mesma atesta, na única passagem em que menciona o termo “democracia” em uma de suas obras mais conhecidas, há uma confusão – por vezes promissora, por vezes injustificada – entre a dignidade da política e o que compreendemos sobre Democracia nas condições modernas; assim, vai dizer Arendt (CH, pp. 232-233): “Essa

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tentativa de substituir a ação pela fabricação era visível em todos os argumentos contra a ‘democracia’, os quais, por mais coerentes e racionais que sejam, sempre se transformaram em argumentos contra os elementos essenciais da política”. Com o benefício da dúvida, espero que, procedendo desse modo, com termos intercambiáveis, possamos ter, paradoxalmente, mais clareza sobre em que aspectos as democracias constitucionais que temos são a base, ao mesmo tempo, para a reinvenção da Democracia e para a retomada da dignidade da política. Nesse sentido, é valioso o argumento de Dewey (1998 [1939], pp. 341-342)41 sobre “a crença no Homem Comum […] [como] um item familiar ao credo democrático”: Essa fé pode ser promulgada em leis, mas ela se encontra apenas no papel a não ser que seja materializada nas atitudes que os seres humanos exibem uns para os outros em todos os incidentes e relações do cotidiano. […] É a crença na capacidade de toda pessoa de conduzir sua própria vida, livre de coerção e imposição pelos demais, desde que as condições certas sejam proporcionadas.

É preciso entendê-las, portanto – tanto a Democracia quanto a dignidade da política –, simultaneamente como um modo de vida do homem comum, mas também como a política dos gestos extraordinários e cotidianos. Essa é a política para a revitalização do espaço público e comum entre as pessoas, na pluralidade constituinte do mundo; é ela que permite a todos e a cada um decidir nosso destino inevitavelmente compartilhado sobre a mesma Terra.

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Há uma edição, em português, do texto mencionado, em DEWEY, 2008. Seguimos, quando não há indicação contrária, essa tradução.

CAPÍTULO 3

O MOSAICO DA AÇÃO

Escrever consiste largamente em citações – a mais louca técnica mosaica imaginável. Walter Benjamin

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“No início dos anos 1950, Hannah Arendt começou a visualizar uma nova ciência da política para um mundo no qual os eventos políticos – guerra mundial, totalitarismo, bombardeios atômicos – exigiam uma seriedade dos filósofos”. É desse modo, solene e grandioso, que Young-Bruehl (1997, pp. 289-290) descreve o impulso que levou Arendt a escrever A Condição Humana (1958). Nesse livro, Arendt toma como pano de fundo o mundo moderno para poder analisar conceitualmente as atividades humanas – o labor, o trabalho e a ação42 – e os espaços em que essas atividades, por sua própria natureza, são realizados – o 42

Há uma extensa discussão sobre as formas mais adequadas para se traduzir cada um desses termos (exceto, é claro, para “ação”, que permanece indiscutível). Não pretendo, nessa nota, resolver todos os insolúveis problemas hermenêuticos, ainda mais porque o que nos interessa investigar nesse tópico é justamente a ação. Para os demais termos, há possibilidades de traduções mais fidedignas à etimologia e à filologia, e há a opção de se tentar ser mais atinente ao espírito das ideias de Arendt. Contudo, me parece relevante justificar a utilização da forma que, até pouco tempo atrás, era mais tradicional e usual, não seguindo a indicação dos últimos editores e tradutores. Arendt escreve A Condição Humana em inglês e, portanto, usa os termos “labor” e “work” (este, com derivações como “to make” e “fabrication”). Em muitos casos, no entanto, esses termos são sinônimos e mantêm sua diferença apenas etimologicamente – o que parece evidenciar o sentido da distinção proposta por Arendt. Considerando ainda que sua língua materna era o alemão, também poderíamos utilizar como referência, respectivamente, as palavras “Arbeit” e “Werk” (esta também substituída por “das Herstellen”), embora a edição alemã do livro tenha sido traduzida posteriormente, pela própria autora, do inglês. No francês, idioma que ela dominava, embora sejam utilizadas as palavras “travail” e “oeuvre”, ela mesma nota que “travailler substituiu a outra palavra mais antiga, labourer”. Assim, por terem a mesma raiz latina “laborare”, dela se aproximam as palavras “labourer” [francês], “lavoro” [italiano] e “labor” [espanhol]. Do mesmo modo, a raiz latina sugerida por Arendt (CH, p. 90, n. 3) para embasar a tradução de “work” é dada pelas palavras “facere” ou “fabricari”; e é precisamente aqui que está a confusão. As traduções utilizadas atualmente para work são “oeuvre” [francês], “opera” [italiano], “trabajo” [espanhol]. Seguindo também as nomenclaturas arendtianas de Animal laborans e Homo faber, teríamos obviamente como palavras mais adequadas a suas atividades respectivas o labor e a fabricação. Embora Correia (2005, p. 196, n. 1), seguindo Calvet de Magalhães (1985), esteja correto ao sugerir “trabalho” e “obra”, respectivamente, como traduções adequadas ao português para os termos “labor” e “work” – principalmente se considerarmos os exemplos concretos de quando falamos, em linguagem corrente, sobre o “trabalho de parto” como algo relacionado à atividade do ciclo biológico e sobre a “obra de arte” como algo relacionado aos objetos artificiais criados pelo artífice e que perduram no mundo –, penso que o caráter etimológico e a autoridade da filologia podem ser mais relevantes se queremos refletir sobre as continuidades e alterações na história dos conceitos, sem perder de vista as raízes vivenciais de tais conceitos. A própria transformação, conceitual e histórica, do trabalhador [worker] em operário [laborer] denota essa confusão e evidencia a dificuldade em se assumir a tradução de “work” por “obra”, já que, etimologicamente, “operário” e “obra” é que compartilham da mesma raiz latina. Essas são as confusões, aliás, que motivam a crítica que Arendt elabora nesses textos à noção de trabalho, convertida em labor (ou em “força de trabalho”), tal como proposta por Marx. Assim, ainda me parece que o termo “labor”, em português, se presta mais claramente a elucidar essas confusões e o problema recai, finalmente, sobre a palavra “trabalho” [work], que poderia ser facilmente substituída por “fabricação” em muitas circunstâncias, como faz Duarte (2000, p. 77), mas não em todas (quando se trata, por exemplo, de um substantivo para o produto da atividade, então essa tradução se mostra ineficiente ou inadequada). O mais imediato, no entanto, seria traduzi-la, nessas obtusas

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espaço privado, o espaço público e a esfera política. E esse exame fenomenológico expôs aquilo que deveria ser o termo mais constante de nossa existência, a despeito de todas as mudanças ocorridas no mundo: as condições da existência humana, isto é, a manutenção do ciclo natural entre nascimento e morte, que é a própria vida; o ritmo artificial da produção de objetos e de criação do mundo, a mundanidade [worldliness]; e o fato de que os seres humanos são, ao mesmo tempo, iguais em sua humanidade e únicos em sua singularidade, que é o fato da pluralidade. No entanto, com a alienação do homem no mundo moderno – isto é, “o seu duplo vôo da Terra para o universo e do mundo para dentro do homem [into the self]” (Arendt, CH. p. 14) –, a própria natureza da sociedade parece ter se modificado. Condições, atividades e espaços articulam-se, então, para fazer um registro histórico e conceitual da vida do homem sobre a Terra, tanto do ponto de vista das realizações humanas, em sua vita activa, quanto para resgatar aquilo que Arendt chama de amor mundi, o amor ao mundo. Com isso, Arendt (CH, p. 311) se ocupou do reino político tendo como ponto de partida a capacidade política mais importante dos homens, que não é simplesmente “permanecer vivo”, “conviver socialmente” ou “fazer a história”, mas agir, ou seja, “começar algo novo cujo resultado é imprevisível”; seu desafio, portanto, era encontrar uma maneira de restaurar “a grandeza do homem, por seus feitos e sofrimentos”. Mas essa empreitada deveria ser levada a cabo sem elevar-se novamente às alturas na quais os filósofos sempre se colocaram para “observar os agentes da história desempenharem seus papéis no drama da necessidade”, como diz Young-Bruehl (1997, p. 289). Afinal, “sempre que a era moderna tinha razão de esperar nova filosofia política, recebia, ao invés, uma filosofia da história” (Arendt, CH. p. 311, n. 62). O duplo risco era perder de vista justamente as condições e os espaços em que tais atividades são realizadas, ou seja, suas raízes vivenciais – passando a conceber essas atividades como meios para a finalidade de mudar os espaços, ou pretendendo utilizar os homens como instrumentos para a realização de tais atividades, seja como povos circunstâncias, por “artefato” ou “feito”, o que ao menos manteria proximidade com sua raiz latina facere e estaria de acordo com a utilização de Arendt tanto da expressão “works and deeds” quanto da palavra erga, que os gregos antigos utilizavam para se referir indistintamente a “obras e feitos”. Com isso, permanece minha preferência pelo usual “Labor, Trabalho e Ação”. De todo modo, estarão em colchetes os termos originais utilizados por Arendt, para sanar eventuais dúvidas de tradução. Cf. outros aspectos da discussão em CORREIA, 2005; ARENDT (CH, pp. 28; 58; 90-93); CALVET DE MAGALHÃES, 1985.

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supérfluos (que seriam aniquilados pelas forças evolutivas da natureza), seja como classes revolucionárias (que seriam convocadas, pelo desígnio da História, a cumprirem seu papel). Uma filosofia da história assim concebida – cujo pressuposto sempre foi o de que o olhar retrospectivo do filósofo iria encontrar algum sentido positivo para o fluxo dos eventos passados, rumo à liberdade – hoje parece ser não somente indesejável, pelos riscos inerentes de manter o filósofo na posição de “sábio” e revelador do espírito absoluto, como tem-se mesmo mostrado impraticável, ao menos depois do surgimento do “mal radical” presente em cada um daqueles mencionados eventos políticos que marcaram a passagem do homem da era moderna para o mundo moderno43. Isso porque, como questiona retoricamente Arendt (CE, p. 460), ainda hoje é válida a dúvida: “quem ousaria se conciliar com a realidade dos campos de extermínio ou brincar com o jogo da tese-antítese-síntese até que sua dialética desvende um ‘sentido’ no trabalho escravo?”. As duas tarefas, portanto, que Arendt se colocou para a formulação dessa nova ciência da política foram assim sintetizadas por Young-Bruehl (1997, p. 290): “considerar o homem como um ser que age e olhar para as condições da ação humana sem negligenciar o mal que pode ser provocado pela perversão do agir em uma espécie de fabricação”. 3.1. “Um grande pensador pensa apenas um pensamento” A própria Arendt, ao escrever a seu amigo Richard Bernstein, em 31 de outubro de 1972, em carta citada por Young-Bruehl (1997, pp. 292-293), diz literalmente: “Às vezes penso que todos temos apenas um pensamento verdadeiro em nossas vidas e tudo o que fazemos são elaborações ou variações de um único tema”. Nessa carta, ela fazia referência a um dos maiores filósofos do século XX, para quem “um grande pensador pensa apenas um 43

Conceitualmente, essa distinção entre “era moderna” e “mundo moderno” é importante para que Arendt possa salientar o aspecto político e, portanto, autolimitado de sua abordagem. Como ela indica logo no prólogo de A Condição Humana (2001, pp. 13-14), a era moderna, do ponto de vista das ciências históricas, “começou no século XVII e terminou no limiar do século XX”. Mas o mundo moderno, uma “era nova e desconhecida” e “o fundo sobre o qual este livro foi escrito”, tem seu início político com a explosão da primeira bomba atômica em Hiroshima. (Passagem semelhante encontra-se em EPF, p. 54). O novo que vemos surgir não é tanto o desenvolvimento técnico e o aperfeiçoamento dos métodos de produção, mas a capacidade irrefreável do homem de desencadear as forças da natureza (ou as Leis da História), as quais poderiam destruir toda a vida e, talvez, a própria Terra.

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pensamento ou formula uma única questão”. Se para Heidegger sua questão foi, sem dúvida, o significado do Ser, podemos atestar como Hannah Arendt, “de um ponto de vista consideravelmente mais mundano, mantinha uma vigilância à ação”. Assim, análoga e indubitavelmente, sua questão foi compreender o significado da ação humana ou, como ela mesma dizia, “refletir sobre o que estamos fazendo”. Embora A Condição Humana seja, em princípio, a obra na qual ela empreende esse esforço, há ali muito pouco que se possa utilizar para compreender, de fato, o que é a ação enquanto fenômeno político, isto é, enquanto atividade que faz emergir aquilo que Platão chamou, pejorativamente, de ta ton anthropon pragmata44, a esfera dos “negócios humanos” [human affairs], o espaço dessa atividade fútil, porque improdutiva ou sem utilidade, e inquietante, porque distinta da quietude contemplativa. Mesmo depois de publicada a obra, Arendt se referia a ela como “uma espécie de prolegomena” para seu plano de lançar os fundamentos de uma nova ciência da política (que ela mesma nunca chegou a completar), pois nesta obra havia realizado somente um exercício preliminar, o qual lhe permitiu “separar conceitualmente a ação de outras atividades humanas com as quais ela é geralmente confundida, tais como labor [labor] e trabalho [work]”45. E, como vimos, Arendt (TOA, pp. 176-178) pretendeu realizar essa tarefa tendo como ponto de vista a própria vita activa, na contramão do que a tradição do pensamento ocidental – de Platão a Marx – havia feito até então, isto é, uma análise da ação política a partir da vita contemplativa e, portanto, admissível somente à medida que pudesse produzir, tal como a fabricação, resultados duradouros e previsíveis, assegurando, por fim, a paz – isto é, a ausência de mudanças e rupturas – necessária à contemplação. No entanto, para além dessa controversa análise histórico-conceitual, o caso que nos toca aqui é que A Condição Humana nos serve não tanto para estabelecer um lugar privilegiado no ramo das atividades humanas para a ação mas, antes, que essa obra foi escrita

44

A esse respeito, cf. ARENDT (CH, p. 28, n. 19; pp. 208-209).

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Citado por Margaret Canovan na “Introdução” (p. IX) da 2a Edição americana de The Human Condition (1998), a partir de proposta submetida por Arendt à Fundação Rockefeller, provavelmente em dezembro de 1959. Cf. Correspondence with the Rockefeller Foundation, Library of Congress, MSS Box 20, p. 013872. Publicado também em ARENDT (OP, pp. 197-199), mas com péssima tradução.

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como alerta aos perigos inerentes à ação humana, ainda mais diante das condições atuais do mundo moderno. Embora, por iniciativa individual, possamos alterar ou, coletivamente, refrear processos imprevistos, por meio da persuasão e de acordos políticos, vivemos com o fardo insustentável de que o poder de produzir está em desequilíbrio com o poder de destruir – o que, na esfera dos negócios humanos, significa que a política, “na medida em que se torna destruidora e causa fins de mundo, ela destrói e se aniquila a si mesma” (Arendt, OP. pp. 108109. ênfase minha). E essa situação vale não somente para a sombra indelével da guerra total, marcada na parede da história recente pela bomba atômica; ela vale igualmente para a condição humana essencialmente política, a pluralidade. No mundo moderno, vivemos assombrados pelas variadas possibilidades e formas do extermínio totalitário, pelo fato inescapável de que uma nova forma de governo emergiu de elementos “subterrâneos” da tradição política ocidental, como diz Arendt, e cujo objetivo final de expansão ilimitada do poder – se é que se pode chamar de objetivo algo que escraviza-se a si mesmo – seria alcançado pelo simples desenvolvimento de um movimento perpétuo. Esse movimento – que Arendt (OT, pp. 617-618) chama de “terror total” – é realização lógica da ideia de que há uma raça, uma classe ou um povo superior destinado a “fazer a história”, o que torna todos os demais povos “supérfluos” ou mesmo empecilhos no desenvolvimento natural do processo da História; afinal, como uma força sobre-humana, ela “só pode ser retardada pelo novo começo e pelo fim individual que é, na verdade, a vida de cada homem”. Por isso, como diz Arendt (OP, p. 108. ênfase minha), “o aniquilamento iguala-se aqui não apenas a uma espécie de fim do mundo, senão que atinge também os aniquiladores”, pois o que se perde com a “superfluidade” é uma parte do mundo comum, “um lado do mundo mostrado antes, mas que jamais poderá mostrar-se de novo”. Assim, de modo nenhum essa tentativa de resgate da diferença entre labor [labor] e trabalho [work] deve ser confundida com algum elogio sobre as condições desumanas em fábricas, que propiciaram a libertação produtiva advinda da Revolução Industrial, mesmo se disfarçado de crítica à técnica. Antes, ela foi entendida por Arendt (CH, pp. 12) como a preocupação pelo destino de “uma sociedade que já não conhece aquelas outras atividades superiores e mais importantes em benefício das quais valeria a pena conquistar essa libertação [freedom]”. A ação, no entanto, continua parcialmente submersa, como mais um daqueles

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tesouros que o espírito da revolução – “um novo espírito e o espírito de iniciar algo novo” – perdeu quando “não conseguiu encontrar a instituição que lhe seria apropriada”, como diagnostica Arendt (SR, p. 349). O pouco que parece ser ainda possível fazer é buscar a identificação das origens em nosso passado e reorientar a confusa situação em que vivemos no tempo presente, ainda que isso apenas aponte, sem contudo determinar, as circunstâncias que poderemos experimentar em nosso futuro, se ele não for, por nós mesmos, alterado. Afinal, como relembra sua biógrafa Young-Bruehl (1997, p. 254), era da convicção de Arendt aceitar a incerteza de que “o que não tem precedentes não pode ser inferido pelo precedente”. É a ação, portanto, como início de um novo mundo e como fundação de uma nova ordem, aquela única atividade em que podemos nos fiar para não levarmos à ruína, juntos, uma sociedade cada vez mais centrada em produção e consumo. Dessa maneira, embora desalentadora, é certeira a conclusão pessimista de Arendt (EPF, p. 264): […] uma sociedade de consumo não pode absolutamente saber como cuidar de um mundo e das coisas que pertencem de modo exclusivo ao espaço das aparências mundanas, visto que sua atitude central ante todos os objetos, a atitude de consumo, condena à ruína tudo em que toca.

Diante disso, e apesar da hipótese de que Hannah Arendt teria escolhido como motor de seus “trens de pensamento” o tema da ação, constatamos que ela não chega a formular um conceito de ação política mais específico do que o descrito no parágrafo anterior: ação como início e como fundação. Assim, não é fácil enumerar exemplos concretos que nos permitiriam compreender do que se trata – e o que não é – uma ação política ou, ainda, não parece haver critérios ou parâmetros para que avaliemos – a partir do quadro conceitual bastante intrincado de suas definições e distinções – nem a forma quanto menos o conteúdo real ou legítimo de uma ação política. Não obstante, pelo mesmo motivo de ter dedicado toda sua obra a pensar “o que estamos fazendo quando agimos”, é claro que há um corrimão que pode nos ajudar a ascender os diversos degraus da escada conceitual arendtiana sobre a ação política.

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3.2. O mosaico da ação em resumo Do mesmo modo como anteriormente havíamos constatado46 que Arendt apresenta duas fontes para a noção de liberdade que não convergem totalmente, agora cada uma dessas fontes – a agostiniana, que sustenta a liberdade-como-iniciativa, e a republicana, que trata da liberdade-como-proteção – mesclam-se e interferem diretamente em sua teoria da ação. Mas se esse intercâmbio fez surgir duas visões que, em princípio, seriam contrapostas, dessa vez a mélange que Arendt oferece pode torná-las, em certa medida, complementares. Refiro-me à maneira como a teoria da ação arendtiana se constrói em diálogo com – assim como em distância progressiva de – dois dos mais importantes personagens tanto de sua biografia quanto de seu pensamento: Heidegger, o mestre-amante de Marburg, e Jaspers, o mestreamigo de Heidelberg. Veremos como a filosofia de Martin Heidegger oferece à teoria política de Hannah Arendt uma proposta para a retomada da grandeza do homem e um modo de compreender o princípio da distinção como reafirmação, na pluralidade, da singularidade de cada ser humano. Mas, não menos importante, veremos como essas características puderam convergir para a convicção, inspirada por Santo Agostinho e guia de toda a trajetória de Arendt, de que o homem foi criado para que houvesse um início47. Assim, é também contra Heidegger – que definiu o homem como “ser-para-morte”, diante da experiência humana de expectativa com a morte vindoura – que Arendt vai se ocupar do nascimento, do início do novo, daquilo que mais tarde ela vai conceituar como “natalidade”. Em seguida, nos deteremos sobre o modo como a filosofia de Karl Jaspers oferece um contraponto necessário para Arendt reafirmar a conexão fundamental entre ação e pensamento, entre o agir, o julgar e o falar. Com esse contraponto, Arendt pode reforçar sua ideia de que a política é necessariamente comunitária – já que a ação é sempre ação in concert – e se apoia sobretudo na capacidade de comunicação entre os seres humanos, isto é, no fato

46

Cf. nossa discussão feita na sessão 2.3.

47

Agostinho (De civitate Dei, livro XII, cap. 20) escreve: “Initium ut esset homo creatus est”– para que houvesse um início o homem foi criado, disse. A frase foi citada em ARENDT (CH, p. 190) e em várias de suas obras.

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que todos possuem, igualmente, a capacidade de raciocinar e comunicar-se. Ficará aparente, então, a importância do princípio da igualdade dentro da noção de pluralidade e, sobretudo, a defesa intransigente do princípio republicano de proteção das liberdades políticas, que fundam e protegem não só a comunidade política como seu espaço de expressão e movimento. No entanto, mesmo juntas, essas duas visões não revelariam completamente o significado que Arendt procura conferir à ação política, pois tratam somente do problema da pluralidade, isto é, da relação paradoxal entre igualdade e distinção. Para complementar aspectos importantes da teoria da ação – a virtude heroica da coragem e o caráter de espontaneidade e iniciativa da ação – teremos de lançar mão das características homéricas que nunca abandonaram o pensamento de Arendt. Marcada pelas experiências e relatos dos gregos antigos, pré-socráticos, o que Arendt aprendeu sobre a ação política é que seu caráter é agonístico, pois a esfera política não pode depender de uma “comunicação ilimitada”, como imaginava Jaspers, nem tampouco daquele diálogo ao “outro eu”, como dizia Aristóteles sobre a amizade [philia]. Por fim, com o intuito de retomar os estudos de Arendt sobre Marx, que a levaram à distinção entre ação e fabricação, agregaremos o último elemento que aparece na teoria arendtiana: o caráter não-violento da ação política. Assim, com esses quatro elementos – isto é, com os aspectos favoráveis e contrários aos escritos de Heidegger, Jaspers, Homero e Marx – poderemos configurar o mosaico a partir do qual a teoria da ação arendtiana poderia ser mais precisamente concebida, exemplificada e delimitada. Antes, porém, cumpre fazer um breve esclarecimento diante da opção por excluir, em parte, a suposta renovação do conceito aristotélico de praxis como um dos elementos influentes na teoria da ação de Arendt48 – esclarecimento que, como o leitor poderá conferir por si mesmo, é de importância somente para aqueles comentadores de Arendt que viram nesse elemento uma síntese suficiente da complexa rede de conceitos e intenções que são 48

Esse aspecto é bastante visível, por exemplo, no argumento de Habermas (1994 [1977], p. 215. trad. minha) sobre o que ele chama de análise arendtiana acerca da “forma de intersubjetividade gerada na ação discursiva [praxis of speech] como característica básica da vida cultural”. Há uma versão desse artigo de Habermas (1980 [1977]) em português, cuja tradução me parece não auxiliar o leitor, utilizando termos pouco usuais em relação a Arendt, o que se pode notar em passagens importantes como essa, em que se lê: “H. Arendt analisa a forma de intersubjetividade gerada na práxis linguística como a característica fundamental da vida culturalmente reproduzida” (p. 104. grifos meus).

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tramadas juntas para configurar a novidade da teoria da ação arendtiana frente a tradição do pensamento político ocidental49. Como vai indicar a própria Arendt (CH, pp. 208-209), “Aristóteles mostra claramente que concebe a ação em termos de fabricação, em termos de ‘obra’ realizada (a despeito de suas enfáticas tentativas de distinguir entre ação e fabricação, praxis e poiesis)”50. Embora Arendt efetivamente se aproveite de vários elementos aristotélicos, como a natureza intersubjetiva da política e seu aspecto social e comunitário – o que levou, por exemplo, a um intenso debate entre liberais e comunitaristas sobre a prioridade entre o “direito” e o “bem comum” [the priority of “the right” over “the good”] –, o sentido dessa influência é muito mais negativo do que positivo. Além disso, se considerarmos que essa influência aristotélica segue ao lado da influência (mais decisiva) de Kant e, como iremos destacar, do pensamento neo-kantiano de Jaspers, veremos que é precisamente contra Aristóteles que se posiciona o argumento de Arendt. Ou seja, a reconceituação da ação, tal como proposta por Arendt, “procede, em parte, por meio de uma crítica e de uma transformação da praxis aristotélica”, e não de uma releitura, como resume acertadamente Dana Villa (1996, p. 4. trad. minha). Isso não significa negar que Aristóteles – como Platão, por conseguinte – tenham influenciado o pensamento de Arendt. Queremos apontar, no entanto, que os aspectos mais radicais e as contribuições mais substantivas para a formulação de sua teoria da ação vieram de pensadores que, como ela, fizeram da crítica à tradição do pensamento ocidental uma tentativa de destacar seus elementos mais perniciosos. Assim, reposicionando sua teoria da ação no centro de seu projeto crítico à modernidade e às categorias da tradição política que contribuíram para efeitos visivelmente trágicos de seu tempo, podemos lançar um novo olhar

49

Vale notar, no entanto, que essa interpretação, ao favorecer uma leitura da renovação da praxis aristotélica por Arendt, teve impacto decisivo em pelo menos três importantes correntes de pensamento político contemporâneo: para a democracia participativa, Arendt teria contribuído com a recuperação da noção de cidadania e participação; para a Teoria Crítica, Arendt poderia oferecer uma alternativa viável para a delimitação da ação comunicativa; para os comunitaristas, Arendt proporia uma releitura de Aristóteles que destaca a importância dos laços comunitários frente aos benefícios do interesse individual mútuo. O detalhamento desses impactos está na “Introdução” de VILLA, 1996.

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A esse respeito, veja também em ARENDT (CH, p. 242): “o fato é que Platão, e em menor medida Aristóteles, […] foram os primeiros a propor o tratamento das questões políticas e o governo dos corpos políticos à maneira da fabricação”. Sobre a tentativa de Aristóteles de distinguir entre praxis e poiesis, cf. Ética a Nicômacos, 1140a e ss.

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para a política – e para “o que estamos fazendo” – que vá mais além do mero truísmo de conceber a teoria da ação como uma renovação da praxis aristotélica. Com isso em mente, podemos, finalmente, destacar como a teoria da ação de Hannah Arendt se forma entre aproximações e afastamentos de Heidegger, Jaspers, Homero e Marx. 3.3. Heidegger: grandeza, distinção e liberdade-como-iniciativa É inegável a importante influência que a filosofia de Martin Heidegger exerceu ao longo de toda a vida de Hannah Arendt. Esse fato não deixou de ser explicitado e examinado por alguns de seus comentadores. Desse modo, por exemplo, Jacques Taminiaux (1992, pp. 26-34; 51-52; 77; 105-134) argumenta que a estrutura e os temas apresentados em A Condição Humana são uma resposta – às vezes positiva, outras tantas vezes negativa – a questões levantadas por Heidegger; e Dana Villa (1996, p. 113 e ss. trad. minha) irá escrever sobre “as raízes heideggerianas da teoria política arendtiana”, sem deixar de notar a parte crítica de Arendt: parte essa que trata do “oblívio da praxis” (p. 224 e ss.) e que chega à conclusão sobre a “não-mundanidade [unworldliness]” do filósofo. De fato, em Ser e Tempo, Heidegger parte de uma avaliação da vida cotidiana para observar seu impacto na existência humana, uma existência que não conhece a solidão pois é vivida sempre na companhia de outros. Para Heidegger, essa existência é o modo de ser do homem – pois que ser é existir e, dessa maneira, a essência do homem seria sua existência. Isso significa dizer, na interpretação de Arendt (CE, p. 206), que “o homem não tem essência; ele consiste no fato de existir. Não podemos indagar o Quê do homem, como indagamos o Quê de uma coisa. Só podemos indagar o Quem do homem”. Diante dessa pergunta sobre o Quem do homem é que aparece o Dasein, o “ser-aí” de Heidegger, um conceito que apresenta fenomenologicamente os vários modos de ser do homem. Arendt (CH, p. 108) toma como princípio ontológico de sua teoria política justamente essa identificação entre o ser e seu “aparecer” no mundo para argumentar que “o nascimento e a morte de seres humanos não são simples ocorrências naturais, mas estão ligados a um mundo no qual aparecem e do qual partem indivíduos únicos, singulares,

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insubstituíveis e irrepetíveis”. Assim, seguindo a descrição de Heidegger no §26 e §27 de Ser e Tempo, vemos que o Dasein não “está-aí” como as coisas do mundo, como tudo o que estáa-mão. A existência cotidiana do Dasein o leva a uma vida em comum entre entes que é inteiramente diferente da vida com os objetos ou com as coisas úteis do mundo. Em sua forma de “estar no mundo”, o Dasein existe em liberdade e essa forma de liberdade está, por si mesma, “no mundo”. Por isso, o fato de que ser-humano signifique “ser-no-mundo” será, para Arendt (CE, p. 448, n. 5), um dos conceitos heideggerianos mais importantes do ponto de vista de sua teoria política. Esquematicamente, podemos notar essa influência – essencialmente negativa, anti-heideggeriana – nos desdobramentos que Arendt vai apresentar sobre a noção de liberdade – experienciada na ação em concerto de agentes não-soberanos – e sobre as consequências políticas da alienação em sua tendência de destruição da esfera público-política, o que iluminará alguns aspectos de sua crítica sobre a modernidade. Um segundo elemento em que a apropriação de Arendt é bastante evidente diz respeito à importância que Heidegger confere à historicidade [Geschichtlichkeit] e à temporalidade, isto é, aos acontecimentos que não mais estão no mundo e aos acontecimentos que ainda não estão no mundo. Se em nosso tempo histórico a vida humana nos lança no mundo, nos abre um caminho no mundo, isso faz desse “ser-no-mundo” do Dasein um acontecimento crucial na história do Ser, pois que é o próprio Ser que se revela na história humana. Para Arendt (CE, p. 449), o aspecto positivo dessa descrição da história ontológica é que nela “não se revela nenhum absoluto e nenhum espírito transcendente” ao modo de Hegel; e isso, diz ela, “significa que o filósofo deixou para trás a pretensão de ser ‘sábio’ e de conhecer os moldes eternos dos assuntos efêmeros da Cidade dos homens”. Em termos políticos, é essa renúncia dos Absolutos que apresenta seu resultado mais importante: o reino da política deverá ser reexaminado à luz das experiências humanas cotidianas e, nesse exame, os juízos e conceitos deverão ser os da própria vida política, não mais os da vida contemplativa dos filósofos. Com isso, Arendt pôde avançar em sua críticas tanto à hostilidade da tradição ocidental diante da contingência da ação quanto à incapacidade dessa tradição em lidar com a pluralidade dos homens. Novamente, é também em seu aspecto negativo que esse elemento se destaca, pois, como afirma Arendt (CE, p. 449), “a despeito de sua evidente proximidade com o âmbito político, [a historicidade] compartilha com o conceito

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anterior de história a mesma incapacidade de atingir o ponto fulcral da política – o homem como ser de ação”, isto é, como ser que experimenta sua liberdade somente na presença e na companhia de outros. Realmente, se tomarmos em consideração o fato de Heidegger dizer que o mundo do Dasein é um mundo-em-comum [Mitwelt], mas que esse “ser-no-mundo” se manifesta de maneira mais imediata como “o impessoal” [das Man], vemos que “ser-no-mundo” quer dizer um problemático co-estar com outros de quem um não se distingue, pois corresponde àqueles entre os quais ele também está como um igual, como um indistinto. Esse princípio de igualdade terá um efeito devastador na filosofia de Heidegger e, contra ele, o argumento será desenvolvido no sentido de assegurar que a existência particular, o modo próprio de ser-nomundo do Dasein, tenha que se constituir como uma modificação existencial do modo impessoal de ser-no-mundo. Esse modo impessoal, que Heidegger vai chamar de “Os outros” ou “Eles” [das Man], aparece então como se fosse uma opinião pública, um mundo de impessoalidade e falatório [Gerede], em oposição ao “eu” e seu ser autêntico. Na busca por sua expressão autêntica, o Dasein precisa constantemente manter certa distancialidade [Abständigkeit] e o cuidado com sua diferença frente aos outros. Dessa forma, e conforme o princípio da distinção formulado por Heidegger, a natureza do Dasein é ser ele mesmo. Assim, esse cuidado com o que lhe é próprio demanda autorreflexão – nos dois sentidos do termo: é um pensar em si e sobre si mesmo, e é um voltar-se exclusivamente para si, para cuidar de sua própria existência (seu ser-no-mundo), que está constantemente ameaçada pelo medo da morte, pela sensação de não-estar-em-casano-mundo em que foi lançado [geworfen]. E, então, isso o leva, egoisticamente, a “sua separação radical de todos os semelhantes” (Arendt, CE. p. 209). Inevitavelmente, para Heidegger, aquilo que aparecia em uma primeira mirada como mutualidade e convivialidade transforma-se agora em questão de sobrevivência; e o que era a tarefa de distinção passa ser identificado, por oposição, à morte, a única experiência autêntica do Eu. Daí se conclui, com Arendt (CE, p. 208), que “o modo básico de ser-no-mundo é a alienação, sentida como ansiedade e estranhamento”. Para explicar sucintamente o duradouro impacto dessa conclusão, advinda da filosofia de Heidegger, para a teoria política de Hannah Arendt, bastaria tomarmos as palavras de Young-Bruehl (1997, p. 209): “quando escreveu ‘O

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que é a filosofia da existência?’ Arendt denominara ‘egoísmo’ o resultado da história; quando escreveu como historiadora, ela o denominou ‘individualismo burguês’; mais tarde, como teórica política, usou o termo ‘alienação do mundo’”. E, diante disso, Arendt (CE, p. 448) vai dizer que “reencontramos a velha hostilidade do filósofo em relação à pólis”. Em estreita ligação com o tema da natalidade, a última noção heideggeriana que terá um decisivo impacto na formulação da teoria da ação de Hannah Arendt, como havíamos mencionado acima, é a temporalidade da existência humana, “cuja presença temporal e transitória é compreendida como o demorar-se entre duas ausências e como uma estrada no reino da errância” (Arendt, VE. p. 461). Na “ânsia de persistir”, de distinguir-se dos demais e de transcender a própria mortalidade pela permanência de seus ditos e feitos, o homem encontra na liberdade-como-iniciativa uma possibilidade real. Mas é essa mesma atitude de insurgir-se contra um mundo que está dado e que irá continuar depois que ele não mais estiver entre os vivos, no qual ele foi lançado e permanece com a sensação de não-estar-em-casa-nomundo, é essa insurgência que “dirige-se contra a ‘ordem’ [diké]; cria ‘desordem’ [adikia], permeando o ‘reino da errância’” (ibid.). Na interpretação de Arendt (VE, p. 462), “o Dasein ‘errante’, enquanto ‘demora-se um pouco’ no reino da errância, pode, através da atividade do pensamento, juntar-se ao que está ausente [o Ser em sua permanente retirada]”. Mas nos escritos tardios de Heidegger, em que Arendt vai buscar essas referências, “pensar e agir não coincidem. Agir é errar, perder-se”. E, para Heidegger, “o pensamento solitário em si constitui a única ação relevante no registro factual da história” (Arendt, VE. p. 449). Assim, novamente, será contra Heidegger que Arendt irá empreender o esforço final de sua teoria da ação: tentar conjugar ação e pensamento, política e filosofia. Ou seja, é contra essa “reformulação do bios theoretikos aristotélico, da vida contemplativa como a mais elevada possibilidade do homem”, que Arendt (CE, p. 207) se insurge. E o faz com Heidegger – insistindo na definição de ser humano como ser-no-mundo – e contra Heidegger – ao dizer que é “na política, mais do que em qualquer outra esfera, [que] não temos como distinguir entre o ser e a aparência” (Arendt, SR. p. 138). Este aparecer, contudo, tem o sentido de “existir”, e não só “no mundo”, mas “para o mundo”. Depende fundamentalmente de uma luta por reconhecimento, portanto. E então algumas das peças que estavam soltas do esquema arendtiano podem ser interligadas.

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Como argumento, aparecer no mundo não é tanto essa “performance estética” de fulgurar no meio dos homens, nem converge somente para a ocasião de sermos reconhecido como uma persona, como personalidade pública, tal qual diríamos hoje, isto é, como uma forma de reconhecimento que “só pode reconhecer-nos como tal e tal, isto é, como algo que fundamentalmente não somos” (Arendt, DP. p. 177). Em casos mais concretos e cotidianos, aparecer no público e ao público significa simplesmente existir como público, como player válido no grande jogo do mundo, como um observador reconhecido que pode transformar-se em ator no instante em que começa algo novo. Sob essa forma, muitas vezes tomada enviesadamente como uma performance estética, o que está em jogo é a qualidade existencial que somente a ação política pode oferecer aos homens: somente com a atividade da ação é que os homens chegam a dar sentido ao mundo – pela criação de sentido que a novidade inspira, ou pela revelação de sentido que a narrativa proporciona – e, ao mesmo tempo, chegam a encontrar sentido na própria existência como “ser-no-mundo”. Daí a “primazia existencial” que a ação teria em relação às demais atividades humanas, como mencionam George Kateb (1983) e Dana Villa (1996). Para esse último, aliás, “Arendt nos provê com nada menos do que uma fenomenologia do sentido: suas fontes, condições, modos de percepção [modes of presencing], e possibilidades para permanência” (p. 11). Assim, para seus próprios fins, Arendt (CH, p. 189) reformula o princípio de distinção heideggeriano para compreendê-lo como singularidade, como uma distinção singular revelada nas atividades que são próprias do reino político, e até mesmo mais no discurso do que na ação: “no homem, a alteridade do ser-outro [otherness], que ele partilha com tudo o que existe, e a diferença do ser-distinto [distinctness], que ele partilha com tudo o que é vivo, tornam-se singularidade [uniqueness], e a pluralidade humana é a paradoxal pluralidade de seres singulares”. Mas essa singularidade não alcança sua estatura necessária, não recoloca o homem em seu lugar grandioso, enquanto se manifesta como um artifício que ainda permite conceber os homens como um produto do mundo, como meros materiais que podem ser moldados, melhorados ou descartados. Afinal, para Arendt (CE, p. 308), “no momento em que o homem deixa de se definir como creatura Dei, fica muito difícil que deixe de se considerar, de modo consciente ou não, um Homo faber”.

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Disso podemos concluir que essas duas noções sustentam a visão sobre o indivíduo que Arendt procura aproximar do reino político: quando Heidegger “converte o homem numa espécie de summum ens, um ‘senhor do Ser’, na medida em que, nele, existência e essência são iguais” (Arendt, CE. p. 207); e quando o mesmo Heidegger define o ser humano como ser-no-mundo. Delas surge, então, uma imagem que poderia ser interpretada como performática e estetizante da ação política, porque está intimamente ligada ao “aparecer” no espaço público, mas que efetivamente almeja recuperar a intocável grandiosidade que a política deve conferir à dignidade humana, pois somente nessa esfera ela pode ser reconhecida pelos atos e palavras de cada indivíduo como um “fim em si mesmo”. Assim, essa é a imagem em que pluralidade aparece sob a forma do princípio da distinção, isto é, aquele princípio que faz as palavras e ações serem ouvidas e reconhecidas como próprias e, portanto, dignas de aparecerem no espaço público do mundo comum. Ao mesmo tempo, surge também uma imagem cujo fundamento – calcado no fato da natalidade antes que no da mortalidade – encontra-se mais próximo da noção agostiniana de liberdade-como-iniciativa, isto é, da capacidade de dar início a ações que, continuadas por outros, geram ao mesmo tempo o poder e o espaço, que são as garantias dessa liberdade. Daí sua definição de ação ter sido registrada assim, como iniciativa e liberdade, no momento em que Arendt (TOA, p. 194) reflete, posteriormente, sobre o que havia escrito em A Condição Humana: A ação, com todas as suas incertezas, é como um lembrete sempre presente de que os homens, embora tenham de morrer, não nasceram para morrer, mas para iniciar algo novo. Initium ut esset homo creatus est – “para que houvesse um início o homem foi criado”, disse Agostinho. Com a criação do homem, o princípio do começo veio ao mundo – o que é naturalmente apenas um outro modo de dizer que com a criação do homem o princípio da liberdade apareceu sobre a Terra.

3.4. Jaspers: comunicação, igualdade e liberdade-como-proteção “A cada falha de Heidegger, Arendt contrapunha uma realização de Jaspers”. É dessa maneira que Young-Bruehl (1997, p. 208) declara a influência da filosofia de Karl Jaspers no pensamento de Hannah Arendt51. E, como vimos, as formulações que colocam Heidegger 51

É curioso notar, no entanto, que apesar da relevante influência de Jaspers no pensamento de Arendt –

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como último representante da tradição do individualismo romântico do século XIX levaram Arendt a reagir contra esse egoísmo – ou alienação do mundo – com um renovado leque de conceitos para a filosofia da existência, encontrando-os na amizade com Jaspers e em entendimentos que ambos partilhavam: comunicabilidade, espontaneidade, limites do pensamento e da ação e um “novo conceito de humanidade”, que envolvesse comunidade, amizade, diálogo e pluralidade, para ressaltar que a dignidade do homem reside no fato de que ele é mais do que tudo o que faz ou cria e que sua humanitas – a personalidade ou o elemento pessoal de um homem – só aparece sob a luz do público. Subjacente a esse conjunto, a noção de ideologia, ou de “visões de mundo” [Weltanschauungen], tal como foi apresentada por Jaspers em seu primeiro livro propriamente filosófico – A Psicologia das Visões de Mundo (1919) –, irá exercer ampla influência sobre Arendt. Com essa noção, Jaspers havia preparado o terreno – sobre o qual Arendt também vai caminhar – para romper com a filosofia tradicional e relativizar todos os sistemas filosóficos que se apresentam como “teorias correntes da Totalidade”. Como Arendt (CE, p. 211) vai anotar, esses sistemas “são meras ‘cascas’ vazias, que interferem na vivência das ‘situaçõeslimite’ e oferecem uma falsa paz de espírito que é intrinsecamente não filosófica”. Jaspers, ao contrário, oferecia a Arendt uma filosofia que voltava a ter como impulso original aquilo que os gregos chamavam de thaumadzein, o espanto diante dos espetáculos do mundo – e, com essa postura, Jaspers transformava a filosofia em um filosofar centrado não nas doutrinas, mas nos modos de pensar e de comunicar os processos de pensamento, tal qual a maiêutica socrática. É isso que Jaspers chama de “apelo”, como explica Arendt (HTS, p. 94): uma comunicação “onde cada conteúdo filosófico específico se torna um meio para o filosofar individual […]; o que quer que eu pense deve se manter em comunicação constante com tudo o que já foi pensado”. Aqui, portanto, o que interessa à teoria da ação que Arendt formula é a conexão entre o agir e o pensar52. comprovada também, mas não só, pela extensa correspondência trocada entre os dois ao longo de mais de 40 anos –, há uma lacuna de estudos que estabeleçam claramente tais paralelos. Em geral, os comentadores se atêm às correspondências, que foram publicadas em ARENDT; JASPERS, 1992. Uma valiosa exceção, que trata das semelhanças e diferenças na noção de responsabilidade coletiva que foi erigida por ambos e que ainda impacta as políticas de transição e reconciliação, encontra-se em SCHAAP, 2001. 52

Essa conexão, entretanto, não foi concluída e, assim, poderíamos dizer que sua teoria da ação (em seu

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Daquele conjunto que expusemos inicialmente, talvez o mais importante conceito, o que irá permear toda a obra de Arendt, desde sua tese de doutoramento até sua última obra, A Vida do Espírito, está relacionado à dimensão mundana da existência, ao fato de que a Terra é habitada por uma pluralidade de seres humanos que dependem da comunicação – uma forma de comunicação que, no âmbito existencial, Jaspers vai chamar de “verdade” – para ajustarem seu senso de realidade, sobre si e sobre o mundo. Já em sua tese sobre Santo Agostinho (sob orientação de Jaspers), quando Arendt tratou do appetitus – um amor orientado para o mundo –, ela usou conceitos que Jaspers havia formulado, para sua Filosofia (1931), sobre uma das dimensões do “filosofar”. Da mesma maneira como nessa dimensão o filosofar serve de “orientação filosófica do mundo”, o amor orientado para o mundo é tal como um desejo antecipativo (em oposição à vontade), aparece sob a forma de comunicação (em oposição às “visões de mundo”) e, como a espontaneidade, leva à criação (em oposição ao Ser-comoresultado)53. Quando, finalmente, Arendt (CE, p. 461) vai escrever sua própria filosofia, igualmente centrada na relação entre pensamento e ação, mas agora como um “pré-requisito para uma nova filosofia política”, passa a ser crucial uma investigação “do significado e das condições do pensar para um ser que nunca existe no singular, e cuja pluralidade de essência está longe de ser esgotada com o simples acréscimo de uma relação Eu-Você à compreensão

sentido amplo e complementar à faculdade do julgar) permaneceu incompleta. Como vai relembrar Young-Bruehl (1997, p. 292), Arendt havia planejado um livro, a ser intitulado “Introdução à política”, que deveria “continuar onde [A Condição Humana] termina”. A primeira parte desse projeto foi parcialmente realizada na coleção de ensaios Entre o passado e o futuro; e há ainda uma série de fragmentos, escritos entre 1950 e 1959 para subsidiar essa obra, que foram compilados por Ursula Ludz e publicados em português sob o título O que é Política?. A segunda parte, no entanto, nunca foi publicada, mas foi pensada para “terminar com uma discussão do relacionamento entre o agir e o pensar ou entre política e filosofia”. De todo modo, algumas de suas discussões sobre esse assunto podem ser lidas em artigos como “Pensamento e considerações morais”, de 1971, cuja conclusão é significativa sobre a importância que Arendt (RJ, p. 257) dava ao tema para a elaboração de uma teoria da ação mais ampla e condizente com o mundo contemporâneo: “A manifestação do vento do pensamento não é o conhecimento; é a capacidade de distinguir o certo do errado, o belo do feio [ou seja, é a faculdade de julgar]. E isso, na verdade, pode impedir catástrofes, pelo menos pra mim, nos raros momentos em que as cartas estão abertas sobre a mesa [when the chips are down]”. 53

Para uma descrição mais detalhada da articulação ente as dimensões do filosofar de Jaspers e os conceitos existenciais do amor, analisados por Arendt, cf. YOUNG-BRUEHL (1997, pp. 74-75; 8283).

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tradicional da natureza humana”. Nesse ponto, Arendt (VE, p. 469) já está ciente das limitações da proposta jasperiana de comunicabilidade em geral, que faz apelo à amizade: Um erro bastante frequente entre filósofos modernos que insistem na importância da comunicação como garantia de verdade – em especial Karl Jaspers e Martin Buber, com sua filosofia do Eu-Tu – é acreditar que a intimidade do diálogo, a “ação interna” na qual “apelo” a mim mesmo ou ao “outro eu”, o amigo em Aristóteles, o amado [Geliebter] em Jaspers, o Tu em Buber, possa estender-se e tornar-se paradigmática para a esfera política.

Em sua interpretação sobre a concepção de Jaspers, Arendt (CE, p. 211) vai dizer: “a comunicação é a forma por excelência da participação filosófica, que é ao mesmo tempo um filosofar em comum, cuja finalidade não é gerar resultados, e sim ‘iluminar a existência’”. O “filosofar”, para Jaspers, tem como meta não tanto o conhecimento ou a instrução, nem se torna a mais elevada atividade humana, mas é uma atividade de preparação para enfrentar a realidade, criando um espaço de ação e liberdade quando apela à própria liberdade do pensamento, que é comum a todos os seres humanos – e é este seu princípio de igualdade. Por definição, portanto, a comunicação estabelece um princípio de igualdade em que cada um pode apelar “à força da vida em si e nos outros” para perceber a realidade, ou seja, é uma igualdade que está associada à “compreensão de que todos os seres humanos são racionais, mas que nenhuma racionalidade de nenhum ser humano é infalível”, como enfatiza Arendt (CE, pp. 241-242). Essa igualdade, no entanto, é postulada por Jaspers como uma igualdade natural, isto é, como um atributo de cada homem, dado seja pela intimidade alcançada em seu diálogo pessoal, seja pela circunstância de seu nascimento como um ser livre e racional. E embora a razão, em Jaspers, possa se tornar “um vínculo universal, porque não se encontra totalmente dentro, nem precisa estar acima dos homens, e sim, pelos menos em sua realidade prática, entre eles”, Arendt (CE, pp. 458-459) não deixa de notar que “as limitações da filosofia de Jaspers em termos políticos se devem […] [à] característica filosófica de lidar com o homem no singular, ao passo que nem seria possível conceber a política se os homens não existissem no plural”. É isso que acaba limitando fundamentalmente a filosofia de Jaspers, ainda que ele tenha procurado incansavelmente rechaçar a solidão – atitude tão típica dos filósofos e

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inerente ao pensamento – colocando todos os temas em exame sob a mesma e simples questão: esses temas favorecem ou impedem a comunicação, voltando-se para a solidão?54 Para Jaspers, por conseguinte, “o elo entre os homens, subjetivamente, é a ‘vontade de comunicação ilimitada’ [Grenzenlose Kommunikation] e, objetivamente, o fato da compreensibilidade universal” (Arendt, HTS. p. 99). Mesmo sem discordar de Jaspers, Arendt relativiza sua posição ao pretender resgatar uma forma de igualdade que seja artificial, que seja um artifício criado pelos homens, um acordo deliberado entre eles para a manutenção de um espaço público-político cuja essência seja a pluralidade. Em outras palavras, a conjugação dessa pluralidade com a noção de igualdade passa pela conjugação de diferentes perspectivas sobre o mundo comum com a distribuição espacial entre as pessoas, que se dá quando elas estão relacionadas umas às outras por uma comunalidade e, ao mesmo tempo, quando distinguem-se umas das outras como indivíduos singulares. Por isso, Arendt (OP, p. 24. grifo da autora) vai anotar, como uma definição de política que realiza tal conjugação, o seguinte: “A política organiza, de antemão, as diversidades absolutas de acordo com uma igualdade relativa e em contrapartida às diferenças relativas”. No entanto, se fica evidente o idealismo na concepção de uma “comunicação ilimitada” que significa, ao mesmo tempo, “a fé na compreensibilidade de todas as verdades e a boa vontade em revelar e ouvir como condição primária de todo intercurso humano”, como interpreta Arendt (HTS, p. 94. grifo da autora), é fácil notar que ela mesma não expurga de sua proposta o principal elemento de fragilidade e utopia em Jaspers: seu voluntarismo. Embora com uma qualidade diferente, Arendt também sujeita seu espaço político à criação em comum de regras para garantir o convívio humano, sem explicitar como se daria esse complicado processo. Na tentativa de sanar esse problema, Ursula Ludz 55 vai dizer que, em seu esforço para negar a “compreensão do direito contratual-teórico para o qual os direitos são ‘naturais’ e onde os homens nada mais precisam fazer do que assegurar esses direitos naturais mutuamente por contrato”, o que vemos surgir em Arendt é a noção de um “direito artificial”,

54

Cf. também ARENDT (CE, pp. 457-458) e ARENDT (HTS, p. 95), em que a autora cita o texto de Jaspers “Über meine Philosophie”, de 1941, publicado em Rechenschaft und Ausblick (Munique, 1951, pp. 350; 352) ao fazer referência à questão recorrente.

55

Cf. ARENDT (OP, p. 170).

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produzido pelos próprios homens, e sob circunstâncias que excluem a dominação precisamente por delimitarem as atividades tanto de governantes quanto dos governados: um princípio de ação que limita a própria espontaneidade mas que não exclui o voluntarismo da “boa vontade”, portanto. Nesse sentido, argumento que há em Arendt uma noção de liberdade-como-proteção, reforçada pelos conceitos extraídos da filosofia de Jaspers, que deve ser compreendida como aquela liberdade republicana que, ao mesmo tempo, protege do ilimitado da ação humana – em seu sentido de liberdade negativa – e mantém um espaço protegido para a ação dos homens – em seu sentido positivo de liberdade. É a filosofia de Jaspers que nos leva à concepção de que, individualmente, o homem é livre porque, embora seja “senhor de seus pensamentos”, sua existência (que é sinônimo de sua realidade) não se reduz ao que pode ser pensado por ele; ele não pode prever a si mesmo nem a seus semelhantes – e, se pudesse, teria se tornado não-livre. Assim, vai dizer Arendt (CE, p. 214), há um ganho de liberdade quando atestamos que, por vezes, o pensamento do homem (e não o próprio homem) fracassa, porque se o pensamento tende a transcender a realidade e a criar possibilidades ilimitadas para a ação, do mesmo modo o “peso da realidade”, quando não é negado ou subtraído do processo de pensamento, “mostra ao homem as limitações de sua existência, cuja extensão ele tenta definir com o filosofar”. Essas são, para Jaspers, as “situações-limite”: acontecimentos da existência humana que limitam o horizonte da própria liberdade humana e servem como base e princípio para as ações dos homens. É a partir desses dois extremos opostos, o limite e o princípio, como diz Arendt (CE, p. 215), que o homem “pode ‘iluminar’ sua existência e definir o que pode e não pode fazer. E, com isso, ele pode passar do mero ‘ser-um-resultado’ para a ‘existência’”, como um ser humano singular e portador de espontaneidade tanto quanto membro de uma coletividade autolimitada: O movimento da transcendência no pensamento, um movimento básico para a natureza do homem, e o fracasso do pensamento intrínseco a esse movimento nos levam, quando menos, a reconhecer que o homem como “senhor de seus pensamentos” não só é mais do que pensa – e é provável que isso, por si só, fornecesse uma base suficiente para uma nova definição da dignidade humana – como também é constitutivamente um ser que é mais do que um Eu e quer mais do que a si mesmo.

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É claro que tanto Heidegger quanto Jaspers ofereceram a Arendt uma base filosófica para compreender que a existência – ou a realidade humana – é “ser-com”, ou seja, é o mesmo que “estar-junto” [togetherness] de outros, tanto por meio da comunicação quanto pela mera consciência da existência de outros. Mas, ao contrário de Heidegger, para quem a existência d’Os outros [das Man] é encarada como um impedimento para a existência autêntica do Eu, Jaspers abre o caminho para que Arendt (CE, p. 215) conceba essa realidade da vida comunitária não somente como um elemento estruturalmente necessário, mas como a convicção de que “no conceito de comunicação [de Jaspers] encontra-se um novo conceito de humanidade, cuja abordagem, mesmo ainda não plenamente desenvolvida, postula a comunicação como a premissa para a existência do homem”. De todo modo, essa comunicação entre amigos da qual fala Jaspers ainda pressupõe uma igualdade impossível para a política, pois a política envolve não somente o governo dos homens – pela capacidade de compreender, de se fazer compreendido e de persuadir – como a autoridade de fundar novos corpos políticos e a necessidade de coexistir com os atuais: todas experiências que estão muito menos presentes no puro diálogo interno da atividade do pensamento do que em quase todos os demais âmbitos da vida cotidiana. Essa amizade, portanto, tal como concebida por Jaspers, só pode ocorrer entre “naturalmente iguais”, e depende da formação de uma unidade entre amigos – isto é, de uma comunidade fundada por critérios “naturais”, como o nascimento ou o território – que é alcançada somente com a dissolução da distância que os separa – distância dada pelo próprio mundo objetivamente comum, mas subjetivamente distinto, que existe entre eles. Ela não pode servir – não sem todas as considerações que Arendt (HTS, pp. 90-104) faz ao perguntar, retoricamente, se Jaspers é um cidadão do mundo – para o governo da humanidade. Assim, do ponto de vista da política, no sentido que Arendt confere a ela, tanto as formas muito fortes de comunidade como as formas muito fracas são vistas como ameaças. Retomando o conceito grego de isonomia, Arendt (SR, p. 59) compreende que a igualdade “era um atributo da pólis e não dos homens, que recebiam sua igualdade em virtude da cidadania e não do nascimento”. As formas “orgânicas” de comunidade interpõem entre os homens não um mundo “comum a todos e diferente do lugar que nos cabe dentro dele” (Arendt, CH, p. 62), mas um vínculo que seja suficientemente forte para substituir o próprio

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mundo: seja a intimidade do diálogo que “apela” ao “outro eu” para conformar a realidade, como em Jaspers, seja o princípio da caridade e do amor ao próximo, como em Agostinho, que propôs edificar sobre esse princípio todas as relações humanas. No extremo oposto, Arendt (CH, p. 62) identifica na sociedade de massas características de que “o mundo entre elas [as pessoas] perdeu a força de mantê-las juntas, de relacioná-las umas às outras e de separá-las”. Por isso, a amizade cívica de Arendt está em oposição tanto à intimidade quanto à privacidade, isto é, aquelas relações familiares asseguradas pelo parentesco, ou mesmo as relações sociais mantidas por interesses privados. Em resumo, a dúvida que Arendt (HTS, pp. 86-87) insere na compreensão jasperiana de comunicação e amizade tem a ver, por um lado, com a necessária superação da ilusão apolítica de que os laços que unem duas pessoas sejam vistos como sua unificação – quando então voltaríamos à naturalização da igualdade que ocorre, por exemplo, no diálogo interno do dois-em-um do pensamento – ou, por outro lado, que aquela compreensão seja vista como uma ingênua (para não dizer perigosa) “confiança secreta no homem, na humanitas da raça humana”. Por isso, Arendt concebe a forma cívica de amizade como algo diferente tanto da ideia de independência, em que cada um possa fazer o que deseja, sem considerar os demais ou sem responsabilizar-se politicamente pelas consequências de suas ações, quanto da noção de unidade, em que se almeja, em alguma medida, a dissolução das partes no todo, ou a superação de si mesmo no ilimitado e no indiviso. Desse modo, mesmo sem descartar completamente o esforço de Jaspers, Arendt (CH, p. 59) vai reafirmar que a substância da amizade é a comunicação, mas somente se a compreendermos como a discussão pública que constitui a realidade daquilo “que é visto e ouvido pelos outros e por nós mesmos”. Assim, o espaço para essa comunicação não pode ser restrito ao espaço íntimo do diálogo entre Eu-Você, cuja referência é à realidade particular dessa relação; enquanto atividade política, ela deve aparecer no espaço público, que é “o local adequado para a excelência humana” (Arendt, CH. p. 59), e deve preservar sua referência ao mundo comum, de modo que essa comunicação seja equivalente ao “conviver no mundo [que] significa essencialmente ter um mundo de coisas interposto entre os que nele habitam em comum” (Arendt, CH. p. 62). Em todo caso, Arendt (HTS, p. 88) vai concluir que o pensamento de Jaspers, por ser “espacial”, ou seja, “porque se mantém sempre em referência

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ao mundo e às pessoas nele presentes”, ainda pode contribuir para criar esse espaço de mútuo respeito e compromisso, pois “está fadado a ser político, mesmo quando trata de coisas que não são minimamente políticas”. Para finalmente resumir a visão aqui apresentada como comunicativa e comunitária, em que a pluralidade aparece sob a forma de princípio da igualdade (isto é, como “filosofia da humanidade”56) e cujo fundamento se encontra mais próximo da noção republicana de liberdade-como-proteção, poderíamos apresentar a breve descrição que Arendt (CE, p. 212) faz sobre a filosofia de Jaspers e, assim, constatar a semelhança evidente entre o que ambos compreenderam sobre a liberdade – e, consequentemente, sobre a política: Para Jaspers, a existência não é uma forma do Ser, mas uma forma da liberdade humana, a forma em que “o homem como espontaneidade potencial rejeita a concepção de si mesmo como mero resultado”. […] A palavra “existência” [Existenz], aqui, significa que o homem alcança a realidade apenas à medida que age a partir de sua liberdade radicada na espontaneidade e “se conecta, por meio da comunicação, com a liberdade dos outros”.

A mélange entre as duas visões que apresentamos até aqui, a de Heidegger e a de Jaspers – a serem posteriormente complementadas pelos escritos de Kant sobre a estética do gosto e sobre o sensus communis – vai ser revelar, ao fim e ao cabo, como uma forma de compatibilização, senão da ação em si mesma com o pensamento, visto que são absolutamente distintos, seguramente da ação com seu mediador fundamental: a faculdade de julgar. Afinal, Arendt (CE, p. 454) não quer “salvar-se do pensamento por meio da ação”, mas espera poder colocar lado a lado, como modos de vida interconectados, embora distintos, ação e pensamento, vita activa e vita contemplativa. No entanto, para dar continuidade a essa empreitada, ela ainda precisará incluir em sua teoria política o elemento agonístico que faltava à noção de “verdade” de Jaspers, isto é, um modo de lidar com a diversidade e a pluralidade de visões, que estão presentes sempre que ressurge o interesse pela política.

56

A esse respeito, Arendt (HTS, p. 100) vai escrever: “uma filosofia da humanidade se distingue de uma filosofia do homem pela sua insistência sobre o fato de que não o Homem falando consigo mesmo no diálogo da solidão, mas os homens falando e comunicando-se entre si habitam a Terra”. Embora essa imagem seja quase uma redenção da filosofia de Jaspers, que ela havia acusado de ainda ser voltada para o homem no singular, o fato problemático é que tal filosofia “não pode prescrever nenhuma ação política como um dos grandes âmbitos humanos da vida”.

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Mas o pano de fundo das realidades políticas do último século nos mostra que as tentativas de unificação da humanidade – sob a sombra totalitária do terror, conjugado à ideologia – e a consequente carga insuportável de um tipo de “solidariedade” humana que impede o dissenso e a coexistência de partes opostas – pelo medo da guerra total e do extermínio da humanidade –, até hoje só estimularam, como Arendt (HTS, p. 92) observa, “a apatia política, o nacionalismo isolacionista ou a rebelião desesperada contra todos os poderes”. É no exame, portanto, das relações entre a guerra e a política que Arendt se volta para as antigas experiências do espírito agonista, tal qual foram registradas nos relatos de Homero. Essas experiências, argumenta a autora, serviram de base para a fundação dos corpos políticos de gregos e romanos, atuando como gérmens em nosso imaginário político até os dias de hoje – o que, dessa forma, indica algumas das boas razões para adicionarmos mais essa peça ao nosso mosaico da ação. 3.5. Homero: da luta agonista à política pluralista No contexto que viemos descrevendo até aqui, Hannah Arendt não só se mostrava desiludida com a proposta de “comunicação ilimitada” de seu mestre-amigo Karl Jaspers como precisava encontrar algum porto seguro para responder se a política teria ainda algum sentido em um mundo que mantivesse qualquer ideal ou princípio para justificar a guerra. Em seu estoque conceitual, ela ainda se valia das visões de Heidegger sobre a grandeza do homem e o princípio da distinção, e não havia abandonado de modo algum a proposta de Jaspers sobre a pluralidade do mundo e o princípio da igualdade e da dignidade de todos os homens. Mas ainda lhe faltavam elementos para que pudesse conciliar, em seu próprio tempo e com tais objetivos, igualdade e distinção, grandeza e dignidade humanas, liberdade-comoiniciativa e liberdade-como-proteção. Assim, para lidar com o caráter “político” do extermínio da guerra de seu tempo, que forçosamente vinculava mesmo os objetivos limitados de algum Estado com a guerra à responsabilidade global pela humanidade57, Arendt (OP, p. 96) voltou57

A questão do extermínio passa a ser “política” quando a condução da “guerra total” ultrapassa as formas de domínio totalitário e alcança todas as outras formas de governo, inclusive as formas republicanas e constitucionais que, em tese, seriam autolimitadas e controladas pela população. Como

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se ao primeiro exemplo da guerra de extermínio do mundo ocidental e às estórias que contribuíram para “adornar” os feitos daqueles homens do mundo antigo, “sobretudo porque nos adornos dessa guerra tanto gregos quanto romanos determinaram […], em certa medida também para nós, o que a política devia significar originalmente e que espaço ela devia ocupar na História”. Com isso, Arendt vai buscar nos “olhos gregos”, isto é, no olhar de Homero, um modo de analisar os fenômenos da era moderna a partir da vita activa. Foi contra esse pano de fundo mais geral que Arendt (EPF, p. 75) encontrou uma maneira de lidar com o paradoxo de “ser a grandeza compreendida em termos de permanência enquanto a grandeza humana era vista precisamente nas mais fúteis e menos duradouras atividades dos homens”, isto é, era vista, viva, nas palavras e feitos de Aquiles e Heitor, embora só pudesse ser encontrada permanentemente na poesia fabricada por Homero ou na História escrita por Heródoto e Tucídides. Foi também contra esse pano de fundo que Arendt procurou alento para os aspectos da modernidade que ela considerava mais perigosos para a dignidade do homem: o caráter de perecibilidade, que se mostrava tanto mais evidente quanto mais o consumo fosse a última esperança para que os homens alcançassem uma “vida boa”; e a superfluidade, cujo ápice foi alcançado nos campos de extermínio e cuja sombra ainda se fazia presente no mundo capitalista pela exploração crescente do trabalho e pela alienação constante dos trabalhadores. O que Arendt encontrou em Homero foi uma configuração que havia excluído a guerra e a força, a violência e a coação, da verdadeira política que os cidadãos – e somente os cidadãos – praticavam, por meio da persuasão, entre si – e somente entre si, não em relação a outros Estados. Mas seu caráter particular, advindo do “verdadeiro homérico na representação da Guerra de Tróia”, como vai observar Arendt (OP, p. 98), consistia na inclusão do “conceito da luta como uma forma de convívio humano não apenas legítimo, mas também o mais elevado, em certo sentido”.

escreve Arendt (OP, p. 92), “foram países de governo totalitário que proclamaram a guerra total, mas com ela impingiram necessariamente a lei de seu agir ao mundo não-totalitário. […] A condução da guerra total era um fato consumado não apenas para os países de governo totalitário e os conflitos por eles causados, mas sim para o mundo todo”.

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A Ilíada de Homero oferecia aos gregos uma estória sobre o espírito agonista, entendido como o duelo de honra entre Heitor e Aquiles, uma competição em que cada lado reforça-se mutuamente e em que a realidade do fenômeno só se revela na ambígua relação de um com o outro: é “essa a maneira homérica de demonstrar que todas as coisas têm dois lados, que só se manifestam na luta” (Arendt, OP. p. 99). Por isso, nessa estória, o princípio formativo que teve efeito para a configuração da coisa política não está localizado, como se poderia supor, na busca individual pela distinção e pela fama imortal, a qual certamente era a meta tanto de Heitor quanto de Aquiles, e era exercitada ao longo de toda a vida pelos aristói, de modo que os gregos, de fato, conceberam o que nenhuma outra língua sentiu necessidade de fazer, um verbo que expressasse a “atividade de ser-o-melhor”, aristeuein58, e outro para o “agir de determinada maneira a fim de ter certeza de escapar à morte”, athanatídzein59. Na interpretação de Arendt (OP, p. 99) sobre o primeiro elemento da imparcialidade homérica, o que o espírito agonista tornava evidente, quando exercitado na ágora homérica por homens livres-e-iguais, era que a luta entre dois opostos, “independente de vitória ou derrota, dá oportunidade a cada um deles de se mostrar como é de verdade – para se por em evidência realmente e com isso tornar-se completo, de fato”. Tanto nas competições olímpicas quanto dentro dos muros da pólis, particularmente na ágora, os gregos antigos haviam criado um ambiente em que era possível experimentar a liberdade de movimento e a grandeza da ação, revivendo o espírito agonista como nãodominação, isto é, a partir de uma relação de igualdade de direitos entre os comparticipantes. Mas somente do último – o espaço público-político da ágora – pretenderam excluir a força individual como elemento distintivo entre os homens. Na ágora, restava-lhes a capacidade de oratória e persuasão, o poder do convencimento e a habilidade em revelar partes específicas ou ocultas de uma dada realidade, ampliando a compreensão de todos sobre os que lhes é comum. E essa conjugação de um ambiente de liberdade e igualdade com a luta agonística,

58

Embora não se possa falar de um “contradição”, a ênfase de Arendt em A Condição Humana é para o princípio individualista da distinção, que permeava o espírito agonista. (Cf. Arendt, CH. p. 51 e n. 33). Já em seus fragmentos posteriores, como estamos apresentando aqui, a ênfase desloca-se para o caráter fenomenológico-existencial da ação de revelar o quem dos atores e os variados aspectos da realidade comum entre eles.

59

Cf. ARENDT (EPF, p. 105, n. 26).

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“fundada em última análise na imparcialidade homérica”, vai dizer Arendt (OP, p. 100), revelou-se como a capacidade “de ver a mesma e única coisa primeiro de lados opostos e depois de todos os lados, […] cuja importância para a libertação do pensamento humano das ligações dogmáticas é subestimada”. Assim, a imparcialidade de Homero, ao relatar a luta agonística entre Aquiles e Heitor, ofereceu ao mundo certo modo de objetividade, de apresentar os objetos tal como eles aparecem no mundo, que ainda hoje é exemplar pois “não apenas deixa para trás o interesse comum no próprio lado e no próprio povo, […] mas descarta também a alternativa de vitória ou derrota, considerada pelos modernos como expressão do julgamento ‘objetivo’ da própria história” (Arendt, EPF. p. 81). O segundo elemento da imparcialidade homérica, a ampliação da compreensão, só é alcançada na superação da “bilateralidade com a qual Homero pôde poetar a Guerra de Tróia como um todo”; só assim, como atesta Arendt (OP, p. 100), chega-se à “infinita variedade dos assuntos discutidos” na pólis, os quais, por serem “discutidos por tantos na presença de muitos outros, são atraídos para a luz da publicidade, onde são forçados, por assim dizer, a revelarem todos os seus lados”. A força que aparece nesse elemento está relacionada ao argumento e à capacidade de persuasão que a retórica prometia ensinar. Com isso, vai concluir Arendt (EPF, p. 82. grifo da autora), “os gregos aprenderam a compreender – não a compreender um ao outro como pessoas individuais, mas a olhar sobre o mesmo mundo do ponto de vista do outro, a ver o mesmo em aspectos bem diferentes e frequentemente opostos”. Assim é que a liberdade e a pluralidade se tornaram evidentes como elementos constitutivos da verdadeira coisa política que se originou na pólis grega a partir de dois princípios práticos legados por Homero em sua maneira imparcial de apresentar os mitos épicos: o espírito agonista – que mostra não somente que a política é ainda, como a guerra, uma luta entre opostos – e a compreensão – o fato de que a “conversa dos cidadãos uns com os outros” (Arendt, EPF. p. 82) não é só habilidade de argumentar, mas a “capacidade de ver, de fato, as coisas de diferentes lados” (Arendt, OP. p. 101), o que oferece aos homens uma espécie de liberdade de movimento e de questionamento de ideias sem a qual a política não pode ser concebida como a atividade de lidar com as coisas singulares e contingentes do mundo dos negócios humanos, para as quais não há regras gerais suficientes.

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Como Péricles já havia dito em sua Oração Fúnebre, a pólis é um “monumento imperecível” para garantir a imortalidade dos homens sem depender do poeta. Para Arendt (OP, p. 103)60, isso quer dizer que a pólis, por estar associada às noções de liberdade e de pluralidade legadas por Homero61, é “um atributo de uma determinada forma de organização de homens entre si, e nada mais”, ou seja, tem a ver especificamente com o condicionamento recíproco entre um padrão de organização social e uma dinâmica de interação entre as pessoas, estabelecido onde quer que elas se encontrem com tal propósito – afinal, “a pólis não era Atenas, e sim os atenienses”, como vai insistir Arendt (CH, p. 207). Daí a “dupla função” da pólis: proporcionar um espaço para a organização da comunidade e da ação políticas, “fazendo do extraordinário uma ocorrência comum e cotidiana” e, igualmente, garantir essa organização pela memória das palavras e atos e pela preservação das leis, como seus limites históricos, “para que as gerações futuras não viessem a desfigurá-las inteiramente”62. Assim, o que Arendt procura nos gregos é uma “solução” para o duplo problema de resgatar um espaço que protegesse tanto a política da guerra quanto a ação da violência, e que, ainda, assegurasse permanentemente a liberdade política de ação e reunião para os agentes como um substituto para a guerra63. Em síntese, ela vê na imparcialidade grego-homérica um modo de promover, lado a lado, a luta agonal e a compreensão da pluralidade, evidenciando que a guerra, embora tenha estado sempre relacionada à política, manteve-se fora da constituição do âmbito propriamente político, definido e protegido pelo nomos, que servia como muro e lei da pólis. Com mais essa peça em seu mosaico da ação – que Arendt reapresentou por meio da separação radical entre política e guerra, isto é, por meio da 60

A esse respeito, veja outros comentário de Arendt em CH, p. 210; EPF, p. 106.

61

Embora Arendt (CH, p. 209) declare sua recusa por uma abordagem histórica dos textos de Homero em relação ao surgimento da pólis, afirmando simplesmente que Homero havia sido o “educador de toda a Hélade”, é preciso ter ciência de que seria um absurdo associar a poesia épica com a ágora grega, sem observar as nuances históricas que evidenciam que era a tragédia, não a épica, a arte correspondente ao período e à dinâmica da pólis no Século de Péricles (sec. V a.C.). Analisei mais detidamente essas questões em NASCIMENTO; FERNANDES, 2015.

62

Cf. ARENDT (CH, pp. 209-210). Seguramente, no entanto, a preocupação de Arendt com a “institucionalização da pólis”, em um contexto de mundialização da política, não se limita, como no caso grego, à legislação e à constituição de cidades, ou, como no caso romano, à fundação e às alianças, mas avalia também a ação concertada entre comunidades políticas, desde conselhos locais e federações de estados ao que chamamos hoje em dia de “cooperação internacional”.

63

A esse respeito, cf. o interessante argumento de David Bates (2010, p. 117 e ss.).

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distinção entre a atividade política da ação, que depende da liberdade e da persuasão, e capacidade guerreira de dominação, vinculada ao mando e à obediência e ao correto manejo de seus instrumentos – ela pôde então, finalmente, encontrar na genialidade política dos gregos homéricos um “solução” para enfrentar o gênio revolucionário de Marx. 3.6. Marx: da fabricação à revolução Chegamos ao último elemento que havíamos proposto para compor este mosaico da ação e, até agora, temos uma sequência de conceitos que, conjugados, revelam o pano de fundo sobre o qual se articula não só a visão de Arendt sobre a coisa política mas, principalmente, sua teoria da ação. Ainda precisamos compreender, no entanto, a centralidade do conceito de pluralidade para a noção de ação in concert, uma vez que Arendt vai insistir que aí se encontra uma das lacunas da tradição do pensamento político, que nunca a incorporou realmente. Seguindo a indicação de Ursula Ludz, então “a pergunta mais importante é: como os homens vivem em conjunto?”64. Heidegger e Jaspers ofereceram a Arendt o terreno conceitual a partir do qual ela poderia buscar respostas a essa questão, interligando o princípio da distinção com a capacidade de revelação de si no mundo comum, a afirmação da igualdade com a liberdade experimentada na ação em concerto, a recuperação da dignidade do homem com o apelo à dignidade da política. Com isso, pudemos ver como o agir e o falar são fundamentais para esse convívio. Contudo, diante do alerta de Ludz, de que “o princípio que determina quase que de maneira exclusiva nossa tradição do pensamento político é o princípio de dominar e ser-dominado (ruling and being ruled)”, foi preciso então acrescentar a esse mosaico alguns dos elementos homéricos, pré-filosóficos, que Arendt projetava sobre a ágora grega dos séculos IV e V a.C., para buscar indicações sobre experiências alternativas ao princípio político da dominação. O espírito agonista, concebido à luz da narrativa imparcial de Homero, nos permitiu observar como a iniciativa e a distinção, tanto quanto a philia e a isonomia, promoveram na pólis uma ampliação da compreensão sobre a política (isto é, sobre o mundo 64

Para essa e a próxima citação, cf. “Segunda parte: comentário da Editora”, em ARENDT (OP, p. 169. grifos meus).

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comum) pela ampliação da pluralidade de vozes e de perspectivas em disputa, mas a partir dos princípios de persuasão e apoio, não de dominação e obediência. Assim, a pólis foi apresentada como essa experiência do passado que ainda poderia lançar luzes para que pudéssemos melhor nos orientar no presente, uma vez que ela evidencia o fato de que o convívio humano com tais características dependia de um espaço duradouro e limitado pela lei, que os gregos chamavam de nomos, para que as relações entre-os-homens pudessem manter alguma realidade tangível. Mesmo assim, a experiência grega se mostrou insuficiente no que diz respeito ao espaço “entre-os-povos”, onde a violência e a dominação eram os guias da ação. No campo do que chamamos atualmente de “política internacional”, portanto, os gregos não poderiam nos servir como exemplares para compreender o gérmen da política, como Arendt pretendeu fazer. E, no entanto, essa mesma Arendt (EPF, p. 202) vai ressaltar que, no mundo moderno, “apenas os negócios estrangeiros, visto os relacionamentos entre nações abrigarem ainda hostilidades e simpatias impossíveis de se reduzirem a fatores puramente econômicos, parecem restar como um âmbito puramente político”. Essa é uma contradição deixada de lado por ela, e só parcialmente resolvida com a noção de autolimitação da coisa política pelo nomos, porque seu outro exemplar – a experiência romana com a lex, isto é, a lei entendida como fundação e ampliação de alianças entre comunidades políticas ou, em termos atuais, para estabelecer relações institucionais e internacionais – ainda se mantém sobre a dúvida perene de que “pelo menos do ponto de vista dos vencidos, poderia parecer muito bem […] que a pax romana, a famosa paz romana, fosse apenas o nome para o deserto que deixavam para trás”, como problematiza a própria Arendt (OP, p. 122). Tudo isso nos obriga a pensar em um caminho alternativo para a formação e delimitação do espaço público-político que ainda tenha por base a lei e a liberdade. Afinal, no entender de Arendt (OP, p. 123), “toda lei cria, antes de mais nada, um espaço no qual ela vale, e esse espaço é o mundo em que podemos mover-nos em liberdade. O que está fora desse espaço, está sem lei e, falando com exatidão, sem mundo; no sentido do convívio humano é um deserto”. Vemos, contudo, que Arendt nunca pôde conciliar seu possível exemplo romano de atividade política “interestatal” com a prática política “doméstica” de

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ação e associação, ainda mais se considerarmos que a violência e a soberania são, até hoje, parte inerente do anárquico sistema internacional. Há, no entanto, outro limite, para além da dúvida sobre as alianças, que envolve a própria noção de lei em sua capacidade de proteger e promover a liberdade. Tendo em vista o que havia ocorrido sob o Estado totalitário, quando as leis positivas foram substituídas por leis da Natureza, no caso do nazismo, e por leis da História, no caso do comunismo soviético, a ideia sobre as leis como protetoras do espaço público precisa ser repensada. Não só as leis deixaram de garantir esse espaço de liberdade, como foram substituídas pelo terror, isto é, “pela lei do deserto que, como um deserto entre homens, desencadeia processos devastadores que trazem em si o mesmo descomedimento inerente ao livre agir causador de relações dos homens”, como vai dizer Arendt (OP, p. 124). De uma só vez, as leis haviam sido suspensas até as alturas em que se converteram em “desígnios superiores”, em leis do movimento histórico ou natural, por um lado, e, por outro, as leis haviam sido rebaixadas a seu grau mais inferior – e tratadas como “mera ideologia”, como uma “superestrutura” supérflua, como uma forma de cristalização do domínio do exploradores sobre os explorados; o que significa que o espaço político continuava sendo determinado pela força, pelos instrumentos de violência e pelo princípio da dominação. A importância das leis, tanto para relacionar quanto para separar os homens, não foi deixada de lado, mas era necessário voltar a questionar “as fontes da autoridade da lei” e “os fins últimos das organizações e das comunidades políticas”; era preciso “criar – e não apenas descobrir – uma nova fundação para a comunidade humana enquanto tal” 65. Assim, quando Arendt volta-se ao pensamento de Karl Marx, o último filósofo que, ainda dentro da tradição do pensamento político ocidental, nos ofereceu tanto uma filosofia da História quanto uma teoria da ação como revolução, e tanto uma análise da política como dominação quanto uma promessa da revolução como libertação, ela o faz para saber se essa fundação poderia realmente ser criada com a teoria marxista da ação como revolução. Afinal, como vai indicar Ludz, se é “a ‘pureza’ da argumentação marxista [que] abre caminho para a revisão crítica da

65

Cf. “Concluding Remarks”, na primeira edição de The Origins of Totalitarianism, 1951. pp. 435-436. Citado em DUARTE (2000. p. 74).

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tradição”66, então era justamente essa revisão que Arendt precisava empreender na tentativa de formular uma “nova ciência da política”. Nesta última sessão do mosaico da ação, portanto, procuraremos explicitar a conhecida relevância do conceito de Marx sobre o trabalho – em sua simbiose com a ação política e com a produção dos meios de subsistência (ou seja, o labor) – e a interpretação que Arendt faz dessa noção. Nosso objetivo é compreender como Arendt tenta escapar tanto do âmbito da violência, inerente à fabricação, quanto da dominação, inerente à necessidade67. Contudo, antes de voltarmos aos assuntos mais espinhosos da teoria da ação de Hannah Arendt, penso que podemos tatear o impacto de Marx no cenário em que ela se descortina, talvez até com mais clareza, se nos dispusermos a considerar uma historieta que delimita e apresenta com suficiente propriedade o problema em questão. Assim, ficará mais fácil para o leitor, presumo, compreender a intransigente separação, que Arendt oferece a nossa consideração, entre as três atividades constantes na experiência humana, aquelas que estão desde sempre ao alcance de todos os seres humanos – labor, trabalho e ação –, para então podermos estabelecer as primeiras distinções entre elas e chegarmos mais perto do que continuamos perseguindo aqui: descobrir o que estamos fazendo quando agimos politicamente. *** Não nos é desconhecido o dito popular, volta e meia utilizado por Arendt: “Não se faz uma omelete sem quebrar ovos”68. Do ponto de vista político, ele é geralmente utilizado 66

Cf. “Segunda parte: comentário da Editora”, em ARENDT (OP, p. 173).

67

Apesar da indubitável relevância que Marx teve para o pensamento de Arendt, e das muitas páginas escritas por ela no âmbito do projeto “Totalitarian Elements of Marxism” (algumas delas publicadas em Entre o passado e o futuro), há pouquíssimo material publicado que nos sirva de referência. Há menções esparsas a Marx em suas obras, mas somente dois textos completos publicados: o capítulo sobre o Labor, em A Condição Humana (2001, pp. 89-187) e, mais recentemente, uma das versões de “Karl Marx and the Tradition of Western Political Thought”, escrita em 1953 (cf. ARENDT, 2002). Mesmo entre seus comentadores, destacam-se apenas os artigos de Wallis Suchting (1962), Bhikhu Parekh (1979) e Jennifer Ring (1989), além do livro de Eugênia Wagner (2002) e, claro, o capítulo 2 da tese publicada de André Duarte (2000). Daí porque essa sessão é mais uma descrição da interpretação de Arendt sobre o que ela mesma denominou como a “filosofia política” de Marx.

68

Em “Os ovos se manifestam” (cf. ARENDT [CE, pp. 294-308]) há não só a descrição mais detalhada

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para reforçar a ideia de que um “mal menor”, às vezes, precisa ser praticado para que se alcance um “bem maior”; ou então, simplesmente, o lugar-comum sobre os fins justificarem ou determinarem os meios; ou, finalmente, o perigoso pressuposto de que o agente, quando age, sabe o que está fazendo e deve cumprir o que precisa ser feito – e, então, ele estará “fazendo a história”. Somente a partir dessa premissa de que é possível “fazer a história” – e, claro, segundo a “argumentação ideológica” (Arendt, OT. p. 628) de que há uma história determinada a ser feita de tal ou qual maneira – é que os homens das revoluções “ficaram capacitados a desempenhar qualquer papel que o grande drama da história lhes atribuísse, e, se não houvesse outro papel disponível a não ser o de vilão, teriam o maior gosto em aceitá-lo para não ficar fora da peça”, como afirma Arendt (SR, p. 91). Isso significa, no entanto, que aprendemos muito sobre a história, mas nada ainda sobre a ação. O que mimeticamente se reproduz, ao repetirmos esse dito popular, é o curso dos acontecimentos passados, e não o exemplo dos homens de ação. Por isso, para Arendt (CE, pp. 411-412), “a ação de quebrar ovos nunca leva a nada mais interessante do que a quebra de ovos. O resultado é igual à atividade em si: é uma quebra, não uma omelete”. Ou, ainda mais grave, vê-se que nesse episódio burlesco e trágico “os ovos não são consultados, e os cozinheiros misturam tudo”; daí a conclusão de Young-Bruehl (1997, p. 290), relembrando as palavras de Randall Jarrell, de que “uma revolução não é uma omelete”. É exatamente essa distinção que Arendt procura, em sua análise conceitual, evidenciar: diante da imprevisibilidade inerente a toda ação, e diante da convicção arendtiana de que a dignidade da política só pode ser resgatada se entende-se que seu sentido é a liberdade e a comparticipação, então a transformação do agir humano em fabricação e, pior, em uma força histórica que arrasta os homens no curso de seus desdobramentos, essa transformação destrói, em um só golpe, ambos os fundamentos, fazendo dos homens meros “ovos” a serem quebrados para a realização inevitável da “omelete” nas forças históricas ou da natureza. Foi essa a transformação que, sob as vestes de uma ideologia, cristalizou-se em elementos que acabaram entrando na composição da forma de governo totalitária: no

dessa historieta como o argumento completo contra a ideia apresentada por ela.

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desenraizamento [rootlessness]69, na falta de um sentimento de pertença e na desintegração das classes sociais ou na uniformização dos corpos políticos. Para compreender a ligação entre aquela transformação e esses elementos totalitários é que Arendt vai apontar seu argumento contra, ao menos, três problemas que ela associa à “filosofia política” de Marx70: i) a confusão entre labor [labor] e trabalho [work] (descartando a liberdade da ação espontânea e concertada); ii) a justificação em favor da fabricação da História (inserindo a violência na política); e iii) a socialização da Humanidade como o objetivo final (apagando a condição da pluralidade humana). Nosso intento aqui, no entanto, não é abordar estritamente as três proposições que Arendt nos oferece – e que são tratadas, em diferentes qualidades, por quase todos os comentadores, como é o caso de Duarte (2000), para citar um exemplo mais bem acabado. Pretendemos, antes, buscar quais argumentos estariam relacionados ao nosso problema principal, ou seja, apontar os comentários de Arendt sobre Marx que, por um lado, contribuíram para a consolidação de sua teoria da ação e que, por outro, poderiam aproximála ou afastá-la da Democracia. Em outras palavras, veremos, com o primeiro ponto, como e por que Arendt critica o fato de Marx ter concebido a ação política e revolucionária a partir de uma mistura entre outras duas atividades, que ela chama de trabalho [work] e de labor [labor], e que seriam distintas tanto em sua realização quanto em sua produção, localização e duração71.

69

O desenraizamento, tema recorrente em Arendt, desdobra-se nas análises sobre a alienação em relação ao mundo, sobre a expropriação e sobre a superfluidade de pessoas e coisas (que ela vai chamar de “economia do desperdício”). Cf. ARENDT (CH, “A alienação do mundo”, cap. VI); para a conexão entre esses elementos e o totalitarismo, cf. ARENDT (OT, “Ideologia e Terror”, cap. 4, parte III).

70

Arendt (EPF, pp. 47-48) explica que a “filosofia política” de Marx está contida em “certas proposições-chave” que “subjazem e transcendem a parte estritamente científica de sua obra (e, como tal, permanecem curiosamente as mesmas durante toda a sua vida, dos primeiros escritos ao último volume de Das Kapital)”.

71

Como já havíamos indicado, em quase todas as traduções brasileiras é mister a confusão com os termos utilizados por Arendt. Assim, nas citações seguintes, quando faço referência ao próprio texto de Arendt (traduzido por Roberto Raposo) ou de Young-Bruehl (traduzido por Antônio Trânsito), apresento algumas traduções modificadas (sempre com o termo original, em inglês, entre colchetes). Esse padrão será seguido nas demais citações que se mostrarem, em contraste com o texto original, dúbias ou imprecisas.

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Sobre o segundo ponto, bastará relembrar que Arendt analisou as implicações da crença de que é possível “fazer a história” [make history] ou construir uma nova sociedade a partir de um “novo homem”, terminando por revelar tanto o vínculo “subterrâneo” que o marxismo ainda mantinha com a velha tradição do pensamento político ocidental – a ação com a finalidade de dominação dos negócios humanos – como seu ponto de ruptura com essa mesma tradição: a concepção da violência como instrumento político. Essa antiga e contínua tradição não somente havia separado a violência e a coação da persuasão, como levou os filósofos, desde Platão, a se distanciarem dos “negócios humanos” quando constataram as diferenças entre verdades e opiniões e quando perceberam os perigos da retórica e da prática política, o que, na visão de Arendt, os manteve distantes e acima de toda consideração concreta sobre a ação humana. Em consequência de tal afastamento do mundo e de tal desconsideração pela ação humana – essa que pode ter início a cada novo nascimento e que depende tanto da igualdade quanto da distinção entre os homens –, Arendt (CH, p. 15) conclui, com o terceiro ponto, que a tradição não recebeu dos filósofos um tratamento adequado da pluralidade humana; isto é, desde Platão e até mesmo em Marx (mas, possivelmente, com a exceção de Spinoza e Kant), nenhum pensador da tradição enfrentou o “fato de que homens, e não o Homem, vivem na Terra e habitam o mundo”. Encarar esse fato da pluralidade significa, para Arendt, compreender que os homens agem no mundo em uma teia de imprevisibilidade e irreversibilidade tão intangível que é preciso um local propício para essa ação aparecer e perdurar, isto é, um local para servir como “memória organizada” dos grandes feitos. As relações estabelecidas nesse local, geralmente intangíveis, não são mais de sobrevivência, e não são ainda de troca de objetos, mas de convivência e diálogo, para o reconhecimento da própria dignidade enquanto um “ser-com” e, finalmente, para decisão sobre o destino intersubjetivamente comum, limitado por um mundo objetivamente partilhado. A isso Arendt (CH, pp. 195-197) denominou “‘teia’ de relações humanas”: […] essa teia é tão vinculada ao mundo objetivo das coisas quanto o discurso é vinculado à existência de um corpo vivo; mas o vínculo não é o de uma fachada ou, na terminologia de Marx, de uma superestrutura essencialmente supérflua afixada à estrutura útil do edifício. […] É em virtude dessa teia preexistente de relações humanas, com suas inúmeras vontades e intenções conflitantes, que a ação quase sempre deixa de atingir seu objetivo; mas é também graças a esse meio, onde

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somente a ação é real, que ela “produz” estórias [stories], intencionalmente ou não, com a mesma naturalidade com que a fabricação produz coisas tangíveis.

No entanto, o que a tradição ofereceu para a teoria política não foi um local para a ação – o espaço público, distinto de todos os demais – mas um coletivo de ação chamado “sociedade humana”: o conjugado único de forças, vontades e aspirações de todos os homens, em todos os espaços que eles habitam, de maneira indistinta e, por vezes, indiscernível em suas particularidades. A sociedade, vai argumentar Arendt, enseja assim a padronização do comportamento e a uniformidade de coletivos, não oferecendo nem o cuidado à pluralidade de comunidades, nem a durabilidade e a objetividade necessárias para que se fale de um “mundo comum”, ou mesmo para que ele suporte a novidade da ação. Daí, como conclui Duarte (2000, p. 82) sobre Marx, “o resultado final seria o de que um pensamento que almejava instaurar o reino da liberdade, teria sido enredado nas malhas da própria necessidade”; ou, nas palavras mais ríspidas e diretas de Arendt (OP, p. 188), “o decisivo é que Marx só queria mudar o mundo para salvar os homens e, na verdade, [salvá-los] do mundo. O homem deve ter tanto tempo quanto possível para si mesmo, para seu eu e o desenvolvimento deste; esse era o conceito de liberdade [em Marx]”. Mais especificamente, Arendt argumenta que, ao utilizar a terminologia do artífice, estratégia usual já em Platão (na mítica figura do tecelão), Marx só poderia compreender a história em termos utilitaristas de processos de produção, em termos econômicos afinal. E ainda, ao compreender o processo de produção como “historicamente determinado”, Marx reafirma o legado hegeliano de “naturalizar” o homem e a sociedade 72, vendo-os como “resultado de um desenvolvimento histórico governado por leis próprias”, como indica Wagner (2002, p. 181), em que as leis da História são análogas às leis da Natureza, em que o espaço de liberdade converge inevitavelmente para o reino da necessidade. Por isso, no limite, Marx é levado à confusão de transformar o próprio artífice em “animal trabalhador” [working animal], descrevendo o que Arendt chama de vitória do animal laborans sobre o homo faber, da “força de trabalho” [labor power] sobre o próprio trabalho [work], do consumismo 72

A tese do jovem Marx (1977, p. 89), de que “o comunismo enquanto um naturalismo completo é um humanismo, e enquanto humanismo completo é um naturalismo”, anuncia seu “projeto de total humanização da natureza e de total naturalização do homem”, como descreve Duarte (2000, p. 100).

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estimulado pelo excedente produtivo sobre o cuidado com o mundo estimulado pela durabilidade da obra, da queda do estatuto criativo do homem – que, no entanto, Marx havia procurado glorificar – para o patamar em ele apenas satisfaz as necessidades de sua própria vida e, com isso, passa a ser instrumento do “processo vital da sociedade”; essencialmente em nada diferindo, portanto, dos animais em seu ciclo natural. De fato, Marx não apresentou a ideia dessa maneira simplista – e disso Arendt (EPF, p. 67) tem total clareza, ao afirmar, por exemplo, que Marx não pretendeu “erigir sistemas ou Weltanschauungen [visões de mundo] com base nesta ou naquela premissa”. Para mencionar somente um trecho específico de A Condição Humana, ali Arendt (CH, p. 99-100) dá os devidos créditos à descoberta original de Marx, e julga a descrição do excedente da força de trabalho como seu elemento “mais revolucionário”73. É ele que permite notar o potencial político da exploração, que aponta para o fato de que “o labor de alguns é bastante para a vida de todos”, mesmo que, para Arendt, esse potencial político só apareça enquanto a exploração permanece como uma questão política, isto é, como uma relação entre pessoas com perspectivas plurais expostas à luz do público. E é precisamente por isso, por acrescentar “vida” ao sistema social (pela exploração de alguns), e não necessariamente objetos ao mundo, que o labor difere da fabricação (essa distinção, é claro, só é válida se aceitamos a premissa de que uma vida não é, nem deve ser, o mesmo que um objeto fabricado). Desse modo, Arendt (CH, p. 105) vai insistir em favor da distinção, não estritamente das atividades em si, senão que do “caráter da coisa produzida – sua localização, sua função e a duração de sua permanência no mundo”. No entanto, ela também explicita que foi logicidade da ideologia baseada em algumas das premissas marxistas – isto é, a continuação lógica e ilimitada de uma ideia, pelo próprio processo ilimitado do pensamento74 – o que a fez voltar sua atenção para o marxismo

73

Em Sobre a Revolução, Arendt (SR, p. 98) vai reafirmar esse crédito: “de início ele [Marx] vira a violência humana e a opressão do homem pelo homem onde outros haviam enxergado alguma necessidade inerente à condição humana”.

74

A esse respeito, Arendt (CE, p. 340) explica que “a logicidade não equivale ao raciocínio ideológico, mas indica uma mudança totalitária das respectivas ideologias. […] A peculiaridade dessa sua mudança totalitária consiste em deturpar e converter a ‘ideia’ numa premissa no sentido lógico, isto é, em algum postulado evidente do qual seria possível deduzir todo o resto seguindo uma rigorosa coerência lógica”.

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e para o estudo dos elementos totalitários contidos nele, quais sejam: a pretensão de explicação total do movimento histórico; a insistência em uma realidade “mais verdadeira” que só pode ser apreendida a partir da aceitação da premissa contida na ideologia; e o desdobramento da argumentação lógica, que pode ser feita divorciada da experiência humana com a realidade, sempre parcial e, por isso mesmo, sempre dependente da pluralidade de visões e experiências. Quando Marx pretendeu encontrar um padrão científico para a ação, que estaria oculto no palco da História e que poderia explicar seus fenômenos, ele concebeu a luta de classes como o verdadeiro, único e antagônico conflito entre as atividades humanas, o qual precisava ser superado – e poderia ser superado – pelo movimento dialético (que dava suporte, como a determinação de uma lei histórica, para suas observações). A História, assim, não somente poderia ser feita, como de fato seria feita, inescapavelmente, mais cedo ou mais tarde – e para isso a revolução, como efetivação dessa luta de classes (tendo como consequência sua abolição), serviria como aquela catalisadora “locomotiva da história”. Em outras palavras, a Revolução é compreendida como a síntese de ações antagônicas entre classes e um passo decisivo para a realização da História, porque, como Marx havia prescrito em sua “filosofia política”, não se pode abolir [aufheben], seja a Filosofia, seja a luta de classes explicada pela Filosofia (da História), sem realizá-la. Daí porque, como vai dizer Wagner (2002, p. 118), um tanto secamente, “a ‘ação’, em Marx, está fundada na violência e na fabricação”. Com isso, também podemos retomar o que havíamos dito anteriormente: é nesse ponto – pela fabricação – que Marx se liga com a tradição que ele havia buscado criticar; mas ele igualmente rompe com essa tradição ao incorporar a violência como elemento da ação política. Diante dessa lógica, a investigação e a denúncia de Arendt (EPF, p. 114) se mostram evidentes: […] sempre que ouvimos grandiosos desígnios em política, tais como o estabelecimento de uma nova sociedade na qual a justiça será garantida para sempre, ou uma guerra para […] salvar o mundo inteiro para a democracia, estamos nos movendo no domínio desse tipo de pensamento.

Mesmo descartando esse “tipo de pensamento” e concluindo que a locomotiva da história “corre para um abismo e que as revoluções – longe de poderem pôr termo à calamidade – apenas aceleram tremendamente a velocidade de seu desenvolvimento”, como argumenta Arendt (OP, p. 125), ela tem clareza de que foi Marx quem desmascarou “a

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necessidade como violência perpetrada pelos homens” e quem, portanto, “invocou um espírito de rebeldia que só pode brotar quando se sofre uma violação, e não quando se está sob o domínio da necessidade” (Arendt, SR. pp. 96; 99). Há que se fazer, então, uma ponderação importante, como escreve Arendt (EPF, p. 57): O socialismo, da mesma forma [que o racismo ou o antissemitismo], não é uma ideologia em acepção estrita enquanto discorre sobre luta de classes, prega a justiça para os desprivilegiados e luta por uma melhoria ou uma mudança revolucionária da sociedade. O socialismo – ou o comunismo – se torna uma ideologia apenas quando pretende que toda a história é uma luta de classes, que o proletariado está destinado por leis eternas a vencer essa luta, que então surgirá uma sociedade sem classes e, por fim, o Estado irá desaparecer.

Dessa forma, é preciso fazer justiça a Marx e, com isso, ser mais “preciso” com a expressão de seu pensamento. O que Marx pretendia, de fato, com a inserção da violência na política era evidenciar o que, para ele, sempre estivera oculto, mas presente: a violência, perpetrada pelo Estado, contra a classe trabalhadora e em favor da classe burguesa. Os proprietários dos meios de produção seriam, ao mesmo tempo, aqueles que exploram a força de trabalho do homem de maneira opressiva e alienadora, além de formarem a classe dominante do Estado, detendo indireta, mas exclusivamente, os meios de violência para reproduzir e garantir seus próprios interesses. A história, contada dessa maneira, no sentido contrário aos interesses ideológicos das classes burguesas, favorecia não só a tomada de consciência de classe dos trabalhadores, mas também a conscientização sobre seu papel na fabricação de outra história, não mais ao modo das ideologias burguesas ou da falsa consciência. Estamos tratando, então, de uma violência que, inicialmente, diz respeito aos meios de violência do Estado e a seus ecos ideológicos no processo produtivo da sociedade, dominada por uma classe em detrimento da outra. Assim, diante da premissa filosófica antitradicional de Marx de que “a violência é a parteira de toda velha sociedade prenhe de uma nova”75, é exatamente essa “localização” e limitação conceitual que Arendt (EPF, p. 49) reconhece ao escrever que, […] para Marx, pelo contrário [da tradição], a violência, ou antes a posse de meios de violência, é o elemento constituinte de todas as formas de governo; o Estado é o instrumento da classe dominante por meio da qual ela oprime e explora, e toda a esfera da ação política é caracterizada pelo uso da violência. 75

MARX, Karl. Capital. Modern Library Edition, p. 824. Citado em ARENDT (EPF, p. 48).

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O problema que Marx coloca é que, sob as modernas condições do trabalho e diante do caráter ideológico e opressivo do Estado, os valores absolutos da liberdade e da igualdade tinham que deixar seus postos de “ideias transcendentes” para materializarem-se em condições efetivas nas relações de produção. Os valores precisavam “funcionar”, isto é, precisavam ser objetificados nas relações sociais. Daí a necessidade histórica de socialização dos meios de produção e a consequente abolição do Estado – esse era seu “custo” histórico. Mesmo assim, a associação inequívoca entre violência e revolução, na perspectiva arendtiana, só pode ter o sentido de autodestruição, ainda mais se nos lembrarmos – e voltaremos a tratar disso nos capítulos seguintes – de que a revolução seria uma forma de ação para instaurar uma “nova ordem do mundo”, isto é, um novo governo, cuja essência é o poder, não a violência. Quando a violência se diz legítima, ou se projeta no longo prazo, ela é ainda mais perigosa (e autodestrutiva), do ponto de vista político de Arendt, do que aquela violência imediata, frente a eventos que ameaçam a vida e a dignidade humanas, diante de “condições ultrajantes”; essa é uma violência que não pode ser “deliberada” e cujo “caráter antipolítico” é evidente, pois aparece, simplesmente, como “o único modo de reequilibrar as balanças da justiça”, quando “os homens tomam a lei em suas próprias mãos para o bem da justiça” (Arendt, SV. p. 82. ênfases minhas). Daí então, no momento em que se delibera sobre outros modos possíveis de re-ação, ou sobre sua legitimidade, a política pode ressurgir. Mas, daí também, ao servir somente para “dramatizar queixas e trazê-las à atenção pública” no curto prazo, isto é, no único período em que ela pode manter sua racionalidade aparente, “a violência é mais a arma da reforma do que da revolução” (Arendt, SV. p. 99). O ponto crucial, ao que nos parece, encontra-se então no modo – científico – como Marx teve que definir a ação política em relação ao palco em que ela aparece, em relação à História. Por isso, tanto em Arendt como em Marx, a definição de ação política é relevante para que se compreenda – como é nosso objetivo nessa pesquisa – o que cada pensador entende por política e, claro, por Democracia. ***

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Pode-se dizer que, no mundo do trabalho, tal como descrito por Marx, foi a “fidelidade de suas descrições à realidade fenomenológica” (Arendt, CH. p. 118) da degeneração do trabalho em labor, da atividade especializada do artífice em atividade repetitiva e não-especializada do operário, que o levou a compreender o trabalho como “força de trabalho” [labor power], isto é, como uma atividade reprodutiva vital que, na modernidade, passava a determinar relações sociais de produção e consumo e, portanto, o curso da História. Como argumenta Wagner (2002, p. 148), “Arendt está de acordo com Marx quanto ao fato de ser a sociedade moderna um espaço fundamentalmente voltado para as necessidades do homem”, mas essa analogia, ao adentrar o mundo da política (que, para Arendt, é uma esfera distinta), levou à perversão da praxis em poiesis, da ação em fabricação. E isso serviu para recuperar aquela possibilidade, desejada desde Platão, de empreender uma ação previsível com fins determináveis. Em Marx, isso significava que a ação deveria ser informada e moldada pelas relações de dominação e exploração no mundo do trabalho, com a finalidade de transformá-las – abolindo o próprio trabalho – e, portanto, de efetivamente realizar as contradições históricas que, como havia previsto Hegel, iriam levar a humanidade a alcançar seu futuro na produção do reino da liberdade. Assim, uniam-se o lado político do trabalho e o lado espiritual da história – justamente o que, na visão de Arendt, impediu Marx de realizar sua intenção de afastar-se da contemplação, que havia sido sempre a atitude dos filósofos, e de aproximar-se da praxis. De fato, depois de Marx, não era preciso mais interpretar o mundo, uma vez que se podia, com as ações necessárias e antevistas, transformá-lo. A ação, desse modo, seria apenas um meio para se alcançar o fim, mais elevado, de se contemplar a realização da história a ser feita pela própria espécie humana – ou, ao menos, pelos membros de sua classe mais “progressista”. Dito isso, a tríade labor-trabalho-ação apresentada em A Condição Humana pode ser interpretada como a tentativa de resgate analítico (no mundo moderno) da antiga oposição fenomenológica (perdida na era moderna) entre labor [labor] e trabalho [work]. Assim foi que, ao analisar a teoria do labor [theory of labor] e considerá-la filosoficamente, Arendt notou que ela sempre se mostrou distinta do trabalho [work], como explica Young-Bruehl (1997. p. 254). Diante de tal análise, surgiram duas consternações simultâneas, que

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justificavam aquela tentativa de resgate. Por um lado, Arendt (CH, pp. 12-13) vê que “a era moderna trouxe consigo a glorificação teórica do labor [labor], o que resultou na transformação efetiva de toda a sociedade em uma sociedade de labor [laboring society]”. Por outro lado, com o advento da automação e seu consequente excedente produtivo (que nos libertaria, na medida do possível, do fardo do labor e da sujeição à necessidade), somos confrontados com a possibilidade, igualmente perturbadora, “de uma sociedade de empregados [society of laborers] sem emprego [labor], isto é, sem a única atividade que lhes resta”. É diante dessas duas evidências que Arendt vai concluir, assombrada: “certamente nada poderia ser pior”. Assim, embora sejam geralmente colocados em lados opostos, é possível encontrar similaridades importantes nos diagnósticos de Arendt e de Marx sobre o mundo do trabalho na era moderna. Esse foi o esforço de Eugênia Wagner (2002, p. 13) e suas conclusões são as mesmas que seguimos aqui: A primeira [conclusão] diz respeito ao debate atual sobre o desemprego, […] já que ele é, em grande medida, fruto da aplicação generalizada e em proporções inusitadas de novas tecnologias nos diversos setores econômicos. Outra preocupação se refere ao enaltecimento da ampliação do tempo livre que o homem deverá conquistar, […] ao que fazer quando a conquista do tempo livre vier desacompanhada dos meios de sobrevivência que permitiriam usufrui-lo.

A Condição Humana é, portanto, a narrativa histórica dessa oposição fenomenológica entre labor, trabalho e ação, emoldurada, como ocorre com quase todos os outros conceitos arendtianos (o privado, o social e o político; o julgar, o querer e o pensar), pela tríade passado-presente-futuro; é, assim, a apresentação de conceitos com “sua origem histórica e um significado passado, seus significados presentes e o possível significado futuro” (Young-Bruehl, 1997. pp. 256-257). O problema imediato, é claro, encontra-se quando constatamos, junto com Wagner (2002, pp. 15; 148-150) e com diversos outros críticos de Arendt76, “que cada um desses dois pensadores buscou em um lugar diferente o referencial para compreender a realidade: a polis pré-filosófica e a sociedade capitalista”. De modo esquemático, poderíamos dizer que ambos, Marx e Arendt, procuraram criticar a tradição do pensamento político ocidental, mas Arendt voltara-se para o tempo

76

Críticas semelhantes sobre o caráter nostálgico da proposta arendtiana ou sobre sua “relutância” frente à modernidade podem ser encontradas em BENHABIB, 1996; O’SULLIVAN, 1979; PAREKH, 1979.

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“anterior” a essa tradição, isto é, ela procurava em suas origens uma maneira de fazer o passado lançar nova luz sobre o presente, enquanto que Marx, utilizando-se da compreensão do presente para lançar luz sobre o passado, e permitindo-se “penetrar na articulação e nas relações de produção de todas as formas de sociedades desaparecidas” 77 para observar o processo de individualização do homem, só poderia ancorar suas esperanças no futuro, na passagem do mundo capitalista para uma sociedade igualitária. Nostalgia e utopia, assim, poderiam ser somente dois lados da mesma moeda a serem usados – como efetivamente foram – para questionar a abordagem de cada um dos autores. Nesses termos, e do ponto de vista de Hannah Arendt, a ação preenche a função de um tertium comparationis, ou seja, foi em oposição às experiências fenomênicas do labor, por um lado, e do trabalho, por outro, que Arendt pôde se aproximar do significado da ação dentro da vita activa, sem apelar para algo que lhe fosse exterior ou superior. Por isso, é em contraste com o labor que podemos compreender que a ação, e nisso ela é semelhante ao trabalho, tem um início e um fim; a ação começa em um dado ponto da história e segue em linha reta – escapando, por assim dizer, do ciclo natural e repetitivo – até seu relativo desaparecimento – quando então só pode ser lembrada, por sua importância – ou até que outros deem a ela uma espécie de continuidade imprevisível, que não estava necessariamente à vista de quem a iniciou. Nesse contraste, vai dizer Arendt (CH, pp. 117-118), o labor “é interminável, visto como acompanha automaticamente a própria vida, indiferente a decisões voluntárias ou finalidades humanamente importantes”. Por outro lado, apesar de seu caráter interminável, penoso e fatigante, o labor, ao contrário da ação e do trabalho, propicia um tipo de recompensa que “é até mais real, menos fútil que qualquer outra forma de felicidade” (Arendt, TOA. p. 182). Essa felicidade, advinda da “dolorosa exaustão e prazerosa regeneração” que o ciclo natural de produção e consumo do labor oferece, não encontra paralelos em nenhuma outra parte e, por isso, empresta tanto ao trabalho quanto à ação um elemento fundamental de rotina e contentamento – de continuidade da vida, afinal – sem o qual a inutilidade e a fugacidade dessas atividades se tornariam insuportáveis. Do mesmo modo, a criação de um mundo objetivo, com objetos fabricados e duráveis que servem de referência e de

77

Cf. MARX (1985, pp. 104; 120). Citado em WAGNER (2002, p. 149).

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intermediadores entre os homens, oferece à instabilidade dos negócios humanos e à variabilidade de identidades e relações pessoais um mundo partilhável e contínuo. Por isso, não há nenhum exagero quando Arendt (CH, p. 15) escreve que “todos os aspectos da condição humana têm alguma relação com a política”. E, quando algum desses aspectos encontra-se em desequilíbrio, quando a natureza de qualquer uma dessas atividades é alterada, há impactos diretos não só nos espaços específicos em que elas são realizadas, mas também no espaço comum de convivência, decisão e ação. Assim é que o trabalho, em face da imprevisibilidade da ação e da perecibilidade inerente ao labor, propicia certa durabilidade às coisas mundanas, aos artifícios fabricados pelo homem. Se podemos dizer que o produto do labor acaba no momento em que ele é consumido, e que o produto da ação deixa de existir no momento em que “passa” seu tempo e ele passa à história, o produto do trabalho – a obra – mantém sua durabilidade enquanto ele é “usado” e porquanto tenha “utilidade”. Mas, nesse modo particular de “uso”, em que o produto “adquire presença tangível para fulgurar e ser visto, soar e ser escutado, escrever e ser lido” (Arendt, CH. p. 181), ou seja, para dar vasão à capacidade humana de fazer trocas e comércio, a obra ou se imortaliza ou se desgasta. Ela, então, empresta à condição humana sua mundanidade [worldliness], a característica de que há um mundo comum que sobrevive e transcende todas as vidas individuais; uma estabilidade que transparece na permanência da obra, não por força do ciclo natural eterno, mas por seu caráter artificial de imortalidade ou por seu caráter objetivo de utilidade e durabilidade, ou seja, pelo fato de ser criada pelas mãos do homem mortal em uma operação sobre a natureza, e não misturado com ela78. O que Arendt (CH, p. 42) tem em vista é que, por meio dessas distinções, haja um meio de se resistir à funcionalização da política, isto é, à transformação da política em mero instrumento para proteger a sociedade. Se fosse possível tal resistência, isso poderia impedir a continuidade do fato de que, na modernidade, “a política é apenas uma função da sociedade – de que a ação, o discurso e o pensamento são, fundamentalmente, superestruturas assentadas no interesse social”, tal como Marx pressupôs sem mais questionamentos. Isso porque, para 78

Em relação à a durabilidade do mundo, Arendt (CH, p. 149) argumenta sobre “o homo faber que ‘faz’ e literalmente ‘trabalha sobre’ os materiais, em oposição ao animal laborans que labora e se ‘mistura com’ eles”. E é nessa mesma passagem (cf. idem, n. 1), que ela assume a sugestão de Leclercq de que “foi Bergson quem ‘lançou o conceito de homo faber na circulação das ideias’”.

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Marx, não só essa distinção entre o político e o social inexistia concretamente no mundo, como ele enxergava a esfera social “como uma forma natural de organização dos homens” (Wagner, 2002, p. 146), de modo que estaria aí a liberdade humana. Para Arendt (CH, pp. 49; 55-56), ao contrário, o conformismo e seu caráter monolítico e homogeneizante é algo “inerente a toda sociedade”, pois leva os homens a se concentrarem “na única atividade necessária para manter a vida – o labor”, gerando uma “dependência mútua em prol da subsistência, e de nada mais”. Ao insistir na ideia – “eivada de preconceito” – de que o labor é o mesmo que “trabalho improdutivo”, Arendt (CH, p. 98) posiciona-se, portanto, contrariamente tanto à funcionalização da política quanto à ideia de que a política seja uma necessidade para o sustento da vida. E ela o faz de duas maneiras. Por um lado, ela não descarta a ideia de que o trabalho “produtivo” poderia contribuir para a dignidade do homem, mas contribui de fato somente na medida em que ele amplia a autonomia (aspecto partilhado com o labor) 79, qualifica as capacidades pessoais (aspecto partilhado com a ação)80 e, ao ser organizado politicamente, produz um mundo comum81. De outro lado, ela procura restringir a ligação entre aquilo que diz respeito à vida humana (e ao labor) e todo o resto que envolve a “produção”, a instrumentalização e a dominação sobre a natureza, isto é, o processo de 79

Todos os comentadores evidenciam a ligação, proposta por Arendt, entre o labor, a necessidade e a servidão. Mas quase ninguém dá a devida atenção à longa nota de rodapé em que Arendt (CH, p. 93, n. 7) escreve, sobre o labor: “No mundo de Homero, Páris e Ulisses ajudam na construção de suas casas, a própria Nausicaa [na Odisseia] lava as roupas dos irmãos etc. Tudo isso faz parte da autosuficiência do herói homérico, de sua independência e supremacia autônoma de sua pessoa. Nenhum trabalho [work] é sórdido quando significa maior independência […]”. Note-se, contudo, que mesmo Arendt utiliza o termo “work” ao referir-se a atividades que seriam relacionadas ao labor, e deixa o leitor sem poder desfazer-se da confusão – que ela mesma denuncia e procura evitar – entre labor e trabalho, labor e work.

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Isso explicaria a idiossincrática opção de Arendt (CH, p. 57, n. 37) por utilizar a usual expressão “divisão do trabalho” [division of labor] somente no sentido que ela diz ser especificamente moderno, isto é, como “uma atividade [que] é dividida e atomizada em um sem número de pequenas manipulações”, e não como “especialização profissional”, que só poderia ser classificada como divisão de trabalho “sob a premissa de que a sociedade deve ser concebida como um sujeito único; a satisfação das necessidades desse sujeito único é então subdividida entre os seus membros por ‘uma mão invisível’”; premissa, aliás, que ela rejeita categoricamente.

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O “princípio geral da organização”, que é originado pela capacidade humana de agir, na esfera política, “na companhia e em acordo com os outros”, seria como uma ponte – talvez a única – a conectar as três atividades humanas, isto é, a organização política (da ação), a distinção de talentos e a especialização (do trabalho) e a equitativa distribuição e divisão de tarefas (do labor). A esse respeito, cf. ARENDT (CH, p. 135 e ss).

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fabricação e utilização de objetos e coisas do mundo. E é só com tal restrição – que, perdoemme a ênfase, deve ser realmente restrita – que aquela outra face humana, muito mais frágil do que a vida da espécie, mas igualmente viva, tem um lugar seguro para aparecer. Em outras palavras, só assim a análise da ação, liberada de qualquer equivalência com o labor ou com a fabricação, mas sempre em relação a ambas, pode evidenciar outros aspectos sobre o modo como nós, seres humanos, vivemos – ou podemos viver – juntos e em liberdade, ao criarmos um espaço específico para isso, “nem movidos por nós mesmos nem dependentes do material dado”, como assume Arendt (OP, 2004, p. 24)82. Mas agora que finalmente chegamos mais próximos – por contraste com o labor e com o trabalho – do que seria a ação política, ainda nos faltam termos mais concretos do que “iniciativa”, “irreversibilidade” e “imprevisibilidade”. Vimos que a ação é diferente do labor porque não é imposta pela necessidade – não é necessário agir para manter-se vivo. A ação depende então da iniciativa do agente. E ela é diferente da fabricação, porque não é regida pela utilidade – ou seja, como não se pode determinar o alcance de uma ação, embora o agente possa ter objetivos claros em sua iniciativa, não se pode avaliar a priori a finalidade de um feito; o que significa que os objetivos, na verdade, são sempre e somente “metas”, medidas da capacidade de consecução da ação, e não critérios para avaliação de seus resultados (sempre imprevisíveis). A ação, assim, não somente não tem um fim previsível, como se torna irreversível uma vez que é iniciada – daí seu inerente perigo 83. Por conta dos inúmeros interesses e intenções na esfera dos negócios humanos com os quais e contra os quais a ação entra em contato, ela quase sempre deixa de alcançar (ou mesmo transcende) seu objetivo inicial. Seu

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É emblemático observar que, na continuação desse fragmento, Arendt (OP, p. 24) conclui: “nós nos salvamos dessa liberdade justo na ‘necessidade’ da História. Um absurdo abominável”.

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Apesar desse perigo advindo de sua imprevisibilidade e irreversibilidade, a ação é a única atividade que pode redimir-se a si própria, pois contém em suas próprias potencialidades seus mecanismos de controle, isto é, a capacidade inerente ao agente de proferir promessas (e permitir sua continuidade) e a de outorgar o perdão (assegurando seu término). Por isso, vai escrever Arendt (TOA, p. 193), “a redenção possível da infortuna da irreversibilidade é a faculdade de perdoar e o remédio para a imprevisibilidade está contido na faculdade de fazer e de cumprir promessas. Os dois remédios formam um par: o perdão diz respeito ao passado e serve para desfazer o que foi feito, enquanto que o compromisso através de promessas serve para estabelecer ilhas de segurança no oceano de incerteza futura”.

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“produto”, no entanto, não é menos real do que a própria realidade por ela revelada e modificada – isto é, a ação é a única atividade cuja essência é revelar quem é seu agente e cujo propósito é modificar a realidade por meio dessa revelação, quando o agente diz a que veio. Como já havíamos comentado acima, o que a ação “produz” são estórias [stories] (Arendt, CH. p. 197). E são essa estórias, conectadas naquela “teia de relações humanas”, que criam os sujeitos da história – na dupla acepção do termo: aqueles que estão sujeitos a ela e aqueles atuam em seu curso –, e não o contrário. Com isso, Arendt tenta colocar um ponto final para impedir que se erga ainda algum sujeito a ser “autor da História”, reificador único, visível ou invisível, das ações humanas. Mas o modo engenhoso como ela procura fazer isso é – analogamente ao que ela sugere que seja feito com o poder político84 – por meio da multiplicação e distribuição da responsabilidade pela criação e revelação da realidade multifacetada do mundo entre todas e cada uma das pessoas que, em sua capacidade de agir, detêm esse poder. A ação, sem a pluralidade, ainda é só “iniciativa” e “imprevisibilidade”. E é somente com o reequilíbrio entre as três atividades humanas – a de manter a vida e atender às necessidades da espécie, a de garantir a permanência do mundo comum, e a de organizar e mudar a história desse mundo – que a política terá ainda algum sentido. Assim, podemos concluir essa parte da discussão com a sucinta explicação de Arendt (CH, p. 187) sobre o que poderia ser uma “medida da ação” consonante à dignidade da política: […] se o animal laborans precisa do auxílio do homo faber para atenuar seu labor e minorar seu sofrimento, e se os mortais precisam do seu auxílio [do homo faber] para construir um lar na Terra, os homens que agem e falam precisam da ajuda do homo faber em sua mais alta capacidade, isto é, da ajuda dos artistas, dos poetas e historiadores, de escritores e construtores de monumentos, pois, sem eles, o único produto de sua atividade, a estória que vivem e contam, não poderia sobreviver. Para que venha a ser aquilo que o mundo sempre se destinou a ser – uma morada para os homens durante sua vida na Terra – o artifício humano tem de ser um lugar adequado à ação e ao discurso […]; o que é certo é que a medida não precisa ser nem a compulsiva atividade da vida biológica e do labor, nem o “instrumentalismo” utilitário da fabricação e do uso.

84

A referência aqui é ao “sistema distrital” e às “república elementares” que Arendt (SR, pp. 313-320) vai resgatar de Jefferson. A esse respeito, cf. a discussão feita no capítulo 7 sobre o sistema de conselho.

CAPÍTULO 4

AS FORMAS DA AÇÃO

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No capítulo anterior, procurei apresentar um conjunto de autores e conceitos que exerceram duradoura e profunda influência no pensamento de Hannah Arendt. Contudo, escrevi cada sessão como um pano de fundo, como na imagem de um palco delimitado por eles, em que estaria em atividade o pensamento de Arendt. Com isso, espero ter mostrado, com a necessária clareza, como a teoria da ação de Arendt foi elaborada e se projetou no mundo a partir de pelo menos quatro anteparos distintos e interligados, e por isso denominamos esse conjunto como “o mosaico da ação”. Argumento, com isso, que é na combinação desses quatro panos de fundo – seja quando Arendt reafirma a importância do autor que o ergueu, seja quando ela luta contra ele e contra os conceitos que o sustentam – que poderemos melhor nos orientar no palco onde é descortinada a noção arendtiana, ainda implícita, de atividade política. No entanto, a mera confluência de conceitos não deve ser suficiente para sustentar uma teoria da ação e, mesmo assim, havíamos concluído que Arendt não nos deixa com muito mais do que uma imagem imprecisa – ainda que enraizada em conceitos pertinentes ao mundo político atual – para entendermos “o que estamos fazendo” quando fazemos política, quando participamos da política, quando agimos politicamente; o que é um outro modo de querer saber se a teoria da ação de Arendt ainda pode nos ajudar a observar e a reinventar a Democracia. Embora essa pergunta tenha sido feita outras vezes, por ela mesma e por outros – de diversas maneiras, mas com a mesma intenção de testar a pertinência atual do ambivalente pensamento de Hannah Arendt –, ainda precisamos de respostas mais explícitas e elucidativas. Para Arendt, todavia, a resposta parecia já bastante evidente, ainda que não fosse óbvia: “a ação não é como ler um livro; você não pode realizá-la sozinho, mas quando age, você age com outros, e isso significa que deixa de lado toda essa teorização e mantém os olhos abertos”85. No entanto, diante dessa ilustração negativa da ação, persiste o problema de indefinição da atividade política e, mais ainda, da carência de exemplos concretos e contemporâneos, como atesta a estória que nos conta Dana Villa (1996, p. 40. trad. minha):

85

Young-Bruehl (1997, p. 373) cita o trecho, mas não inclui as referências; possivelmente ela estaria citando de memória as estórias contadas pela própria Arendt e os diálogos de Arendt com seus alunos.

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Quando pressionada por seus críticos sobre sua definição excessivamente estreita para “o político”, Arendt indicou (afora restrições formais) que sua concepção era “aberta” de duas maneiras. Primeiro, ela admitia que o conteúdo da ação política – sobre o quê os cidadãos falam – varia histórica e culturalmente. O diálogo político é sobre o mundo. Contudo, Arendt (HC, p. 182) usa o termo “mundo” em um sentido muito particular: o mundo é essa “mediação” [in-between] que “relaciona e separa os homens ao mesmo tempo”86. Ele é coextensivo com “o público” no sentido mais amplo desse termo: “aquilo que é comum a todos nós” (HC, p. 50). O conteúdo desse mundo ou dessa “mediação” [in-between]” necessariamente varia em cada grupo de pessoas”.

Há, ainda, a famosa pergunta que sua amiga e colaboradora Mary McCarthy, depois de muito se debruçar sobre o conceito de ação e de buscar alguma maneira de compreendê-lo em aspectos tangíveis da realidade que ambas partilhavam, lança a Hannah Arendt: “O que é, afinal, a ação?”. Eis o que ela recebe como resposta, como citado em The Recovery of the Public World87: A vida muda constantemente, e as coisas estão constantemente aí para que se fale sobre elas. Em todos os tempos, pessoas vivendo juntas terão negócios que pertencem ao reino do público – “são dignos de ser falado em público”. O que essas questões são em um momento histórico qualquer é [algo] provavelmente muito diferente. Por exemplo, as grandes catedrais foram o espaço público da Idade Média. As municipalidades [town halls] vieram mais tarde. E lá, talvez, elas [as pessoas] tiveram que falar sobre um assunto que não é tanto sem interesse: a questão de Deus. Então o que vem a ser público em cada dado período parece ser totalmente diferente.

Em sua resposta, Arendt relativiza o conteúdo da ação no espaço público mas não descarta o fato, apresentado por Dana Villa, de que ela tem a ver com um interesse comum, com a realidade “objetiva” e historicamente “intersubjetiva” de um mundo partilhado e, ao mesmo tempo, em constante disputa, isto é, em constante diálogo. Daí a insistência de Arendt (CH, p. 51), ao olhar para o “espírito agonista” do passado grego, tentando iluminar os

86

Embora não altere substancialmente o argumento de Dana Villa, na verdade Arendt (CH, p. 195. trad. mod.) descreve o “interesse”, e não o mundo, como “aquilo que está entre as pessoas e portanto pode relacioná-las e mantê-las juntas”. Em suas próprias palavras (HC, p. 182): “These interests constitute, in the word's most literal significance, something which inter-est, which lies between people and therefore can relate and bind them together. Most action and speech is concerned with this inbetween, which varies with each group of people, so that most words and deeds are about some worldly objective reality in addition to being a disclosure of the acting and speaking agent”. Embora tenha modificado parte da tradução, mantive a sugestão do tradutor pela palavra “mediação”.

87

Cf. HILL, Melvyn [Ed]. Hannah Arendt: The Recovery of the Public World. New York: St. Martin’s Press, 1979. p. 318. Citado em VILLA (1996, p. 40. trad. minha).

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problemas com o igualitarismo moderno das sociedades de massas, em dizer que, na Antiguidade, “a esfera pública era reservada à individualidade; era o único lugar em que os homens podiam mostrar quem realmente e inconfundivelmente eram”. Para Arendt (CH, p. 189), essa individualidade é a do homem de ação, aquela “paradoxal pluralidade de seres singulares”. Mas, do ponto de vista da Democracia, a mera postulação de que toda ação é, por princípio, uma ação concertada não resolve os problemas que poderiam advir dessa interpretação individualista do homem, que mescla paradoxalmente, como já vimos no capítulo 3, os princípios de distinção e igualdade. Será preciso confrontar o pensamento de Arendt, como faremos nos próximos capítulos88, com os dilemas entre o particularismo e o universalismo, isto é, sobre o papel do universal (como nos direitos do homem) oposto ao particular (como nos direitos políticos do cidadão), e vice-versa; ou, ainda, tentar estabelecer ligações com a noção de Direitos Democráticos, tal como apresentada por Chantal Mouffe (2005 [1993]). Para isso, precisaremos definir quais são os possíveis contornos da teoria da ação de Arendt, de modo a termos mais clareza sobre o que poderia se configurar como uma iniciativa, como um agir em concerto, como uma fundação, como uma revolução. Só assim – e diante da hipótese de que as “revoluções democráticas do século XX” foram mesmo “revoluções arendtianas”, como dizia Jonathan Schell –, poderíamos apontar com mais segurança, e com alguma esperança, que também as “revoluções democráticas do século XXI” poderão continuar a servir-se da teoria política de Hannah Arendt; só assim poderíamos imaginar, novamente, uma onda de “revoluções arendtianas”. Em outras palavras, precisamos investigar se a teoria política de Hannah Arendt ainda pode oferecer uma base que seja consistente com os movimentos de democratização ou se, por outro lado, ao voltar-se contra a Democracia, como fez algumas vezes, Arendt terminaria por nos deixar no mesmo patamar que tantos outros teóricos políticos, liberais ou elitistas – entre a demofobia e a demolatria. Ainda precisamos, portanto, traçar uma delimitação para sua teoria que nos ofereça formas concretas de agir politicamente. Para isso, 88

A esse respeito, veja nossa discussão sobre “Direitos políticos e Direitos civis” no capítulo 5, e sobre “Direitos democráticos” no capítulo 6.

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iremos nos valer de seus poucos – embora específicos – exemplos de ações e de questões que Arendt diz serem “essencialmente políticas”. Como essa última parte terá de lidar com temas que aparecem dispersos na obra de Arendt, ou mesmo que simplesmente não aparecem em uma primeira leitura, e como nosso intento é colocar o pensamento de Arendt em diálogo com autores contemporâneos da ciência política, apresento abaixo uma leitura sintética do fio argumentativo, para que o leitor possa saber, de antemão, aonde pretendemos chegar e por onde iremos passar. 4.1. Da Resistência à Reconstrução Lembrando-nos de que Arendt descreveu A Condição Humana como seu exercício de pensamento sobre “o que estamos fazendo”, é emblemático notar que, na interpretação de Paul Ricœur, esse seja “o livro da resistência e da reconstrução” 89. Essa chave de leitura, aliás, poderia ser utilizada, sem qualquer exagero, para fazermos uma avaliação de toda a obra arendtiana: quais são os exemplos de resistência – frente à realidade ou por amor ao mundo – que Arendt nos oferece?; quais são os modos de reconstrução – da dignidade da política não menos que da dignidade humana – para os quais Arendt aponta? Afinal, como ela mesma vai anotar em seus fragmentos póstumos, “a política visa mudança, ou conservação ou fundação de mundo” (Arendt, OP. p. 188). Inclusive Habermas (1994 [1977], p. 214)90, ao escrever sua controversa interpretação do conceito de poder em Hannah Arendt, vai caminhar no mesmo sentido: “o [conceito arendtiano de] poder manifesta-se (a) em ordenamentos que protegem a liberdade, (b) na resistência contra forças que ameaçam a liberdade política, e (c) naquelas ações revolucionárias que fundam novas instituições de liberdade”. Habermas está correto em afirmar o caráter protetivo, para a liberdade, da ação em concerto (isto é, do poder político dela derivado), e em destacar a capacidade de resistir, gerada por esse poder. No entanto, sua interpretação apresenta dois problemas ao leitor de 89

Prefácio de Paul Ricœur à segunda edição francesa (Condition de l’homme moderne. [Trad. George Fradier]. 2a Ed. Paris: Calmann-Lévy, 1983 [orig. 1961]), pp. X-XI. O texto também foi publicado em RICOEUR, 1991.

90

Para a versão em português, cuja tradução é ligeiramente diferente da nossa, cf. HABERMAS (1980, p. 103).

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Arendt. Ao parecer identificar o poder comunicativo com os “ordenamentos”, Habermas associaria a ação manifestada sob a forma de poder comunicativo ao poder instituído, sem fazer qualquer qualificação para essa associação. Assim, sem mais, poderíamos voltar à velha distinção, que Arendt procura superar, entre a atividade do pouvoir constituant e a legitimidade do pouvoir constitué. Curioso é que, logo em seguida, ele vai citar justamente o trecho em que Arendt (SV, p. 57. grifo meu) qualifica a possibilidade dessa associação: “todas as instituições políticas são manifestações e materializações do poder; elas se petrificam e decaem tão logo o poder vivo do povo deixa de sustentá-las”. Além disso, Habermas não chega a fazer qualquer distinção entre duas possibilidades de “novas instituições de liberdade” (que parecem, então, dizer respeito ao mesmo poder, mas de outro “tipo”, o poder instituinte): a disruptiva fundação de uma nova forma de governo, que emerge da revolução, e a renovadora (ou conservadora) atividade de institucionalização de liberdade. Enquanto o primeiro exemplo é inescapavelmente revolucionário, porque disruptivo, há que se levar em conta também o aspecto limitado e reduzido, mas constante, do segundo exemplo de ação política, isto é, de ações que fundam tanto uma nova comunidade política (como um espaço garantidor de liberdades) como a demanda por uma nova legislação, a partir das opiniões comuns partilhadas e, então, publicizadas entre comunidades de interesses diversos – aspecto esse geralmente obscurecido pelos comentadores de Arendt ao insistirem somente em seu viés revolucionário, somente na política “ilimitada”. Na tentativa de corrigir essa confusão, Margaret Canovan (1997, pp. 14-15. trad. minha) vai mostrar que os aspectos radicais mais salientes do pensamento de Arendt nos distraem de perceber que ela está, na verdade, “preocupada com uma política de limites [a politics of limits], e que essa preocupação a aproxima de um conservadorismo de um tipo mais cético”, que pode dar conta de oferecer “limites aos processos naturais e à húbris humana”. Acertadamente, Canovan (1997, p. 26) relembra que “a mensagem de Arendt é de que, não importa se queremos conservar ou reconstruir, não podemos deixar a responsabilidade pelo mundo ou o dever de agir juntos como cidadãos”. Nesse sentido específico, continua ela, em que “conservação e ação são inseparáveis”, o problema da fundação diz respeito ao modo como a liberdade das pessoas se conjuga com a renovação da autoridade das instituições.

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Partindo, então, daquela dupla chave de leitura proposta por Ricœur, a da Resistência e da Reconstrução, e daquilo que temos explorado na obra arendtiana, isto é, sua teoria da ação e sua proposta para uma “nova ciência da política”, nos parece possível configurar um conjunto formado por três exemplos claros e tangíveis de formas de ações: no campo da Reconstrução, somos confrontados com dois modos possíveis e, em certa medida, sucessivos e complementares91, i) o modo de ação-como-Revolução; e ii) o modo de ação-comoFundação; iii) no campo da Resistência, o exemplo claro diz respeito às ações políticas de Desobediência Civil. Seguindo a indicação de Arendt (SR, p. 35) de que guerras e revoluções não só “têm determinado até hoje a fisionomia do século XX”, como “ainda constituem as duas questões centrais do século”, então das três formas de ação propostas parece ser inescapável começarmos pela ação-como-Revolução. Essa forma de ação emerge daqueles momentos de ruptura ou de retomada política em que é preciso decidir sobre uma nova forma de governo, ou seja, sobre como, por quem e de que maneira governaremos e seremos governados. Mais ainda, em que é preciso – com o perdão da justificável redundância – constituir esse novo governo a partir de uma Constituição, pois, como relembra Arendt (SR, p. 193) as claras palavras de Thomas Paine, expressas em Rights of man (1791), “uma Constituição não é o ato de um governo, e sim de um povo constituindo um governo”. A primeira e mais explícita proposta de Arendt para essa forma da ação política vem de seu famoso – ou infame, como querem alguns – sistema de conselhos, e seu conteúdo está lastreado no que a autora mesma chama de Novus ordo saeclorum, uma nova ordem para o mundo. Discutiremos essa forma de ação nos capítulos 5 a 7 e, como veremos, essa forma de ação está intrinsecamente ligada ao problema de “como reconciliar igualdade e autoridade” 91

Seguimos aqui a pista deixada por Arendt (SR, p. 366) ao comentar, na primeira nota de rodapé do capítulo 4 de Sobre a Revolução, intitulado não por acaso de “Fundação I: Constitutio Libertatis”, que “a coisa talvez mais prejudicial a uma compreensão da revolução é o pressuposto usual de que o processo revolucionário finda quando se alcança a libertação, […] [e] não existe nada mais comum do que confundir o trabalho de libertação com a fundação da liberdade”. Desse modo, o processo revolucionário envolveria tanto a libertação prévia quanto a fundação da liberdade, ao passo que a ação-como-Fundação (tal como estamos propondo aqui) seria, na continuação desse processo revolucionário, a tarefa de preocupar-se continuamente com a liberdade, com aquilo que a garante e a limita, mas não menos do que com aquilo que a impede e a bloqueia, ou seja, não menos do que com a libertação a ser continuamente conferida e reafirmada.

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(Arendt, SR. p. 348). Para isso, e para entremear a proposta de Arendt nas discussões contemporâneas no âmbito da ciência política, nos apoiaremos na descrição históricoconceitual que Giovanni Sartori (TDR2, p. 131. grifo do autor) faz sobre a readequação pela qual passou a noção de Igualdade, com vistas a “obter um sistema eficiente de compensações recíprocas entre desigualdades”. De todo modo, como nosso interesse central é saber em que medida essa teoria da ação nos oferece amparo para analisar a política contemporânea – e isso significa saber se a “nova ciência da política” que Arendt tinha em vista contempla a Democracia e, mais ainda, se nos permite inseri-la dentro das discussões atuais sobre uma teoria da justiça, sem a qual não teríamos suporte para analisar os processos de democratização, nem para observar uma possível terceira invenção da Democracia –, então é valioso relembrar que, para Arendt (OP, p. 125), “guerras e revoluções, não o funcionar de governos parlamentares e sistemas democráticos fundamentados em partidos políticos, formam as experiências políticas básicas de nosso século”. No entanto, ainda que seja uma realidade da qual não se pode escapar – sob o risco de nos perdermos em especulações desconectadas com o mundo tal como ele é –, não se pode dizer que guerras ou revoluções sejam os únicos exemplos – nem, talvez, os melhores – para a compreensão da ação política arendtiana em sua relação com a Democracia. Afinal, como ela mesma vai afirmar em carta ao editor Klaus Piper, datada de 7 de abril de 1959: “a meu ver, guerras e revoluções estão fora do âmbito político no verdadeiro sentido. Elas estão sob o signo da força e não, como a política, sob o signo do poder”92. A ação-como-Fundação, por sua vez, se desdobra nas ações de implementação da Constituição, ou seja, na criação, discussão e ampliação da legislação – o que leva à fundação de novas comunidades políticas ao redor dessa discussão sobre seu mundo comum, isto é, sobre os interesses partilhados que “são dignos de ser falado em público” em tempo histórico específico e em dado espaço cultural. Como irei argumentar, esse modo de ação trava-se, portanto, no interior das lutas por reconhecimento de direitos (e de suas comunidades subjacentes) e por redistribuição de domínios. Essa forma de ação estará presente nas discussões apresentadas nos capítulos 8 e 9 e, como veremos, há um promissor espaço para 92

Cf. ARENDT (OP, p. 195). Esse trecho da referida carta é muito semelhante, embora mais sintético, ao que ela escreveu no Fragmento 3d, publicado na mesma obra.

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desenvolver e ampliar a teoria da ação de Arendt a partir das formulações apresentadas pela teoria do reconhecimento. Isso porque, segundo a visão da própria Arendt (CR, p. 89, grifos meus), o problema básico envolvido nesse modo de agir, ao procurar institucionalizar tanto as formas de Reconstrução como de Resistência, é […] obter o mesmo reconhecimento que é dado a inúmeros grupos de interesses especiais (grupos minoritários por definição) do país para as minorias contestadoras, e tratar os grupos de contestadores civis do mesmo modo que os grupos de pressão, os quais através de seus representantes, os olheiros registrados, podem influenciar e “auxiliar” o Congresso por meio de persuasão, opinião qualificada e pelo número de seus constituintes. Estas minorias de opinião poderiam desta forma estabelecer-se como um poder que não fosse somente “visto de longe” durante passeatas e outras dramatizações de seus pontos de vista, mas que estivesse sempre presente e fosse considerado nos negócios diários do governo.

Esse segundo modo de agir politicamente, no entanto, trata da “fundação” a partir de aspectos que Arendt havia notado na fundação da República Romana – sua capacidade de fazer alianças com diferentes corpos políticos, abarcar novas institucionalidades e expandir seu domínio – e no conceito de “autoridade” dela derivado. Por isso, está envolto em uma densa e anacrônica atmosfera conceitual que parece tornar relevante, como dissemos, em acordo com Canovan (1997), somente seu caráter ilimitado. Importa acrescentar, portanto, que o ponto principal, ainda invisibilizado, diz respeito à maneira como a ação-comoFundação rege-se por disputas entre limites e por acordos de autolimitação – o que fica bastante evidente quando Arendt, em carta endereçada a um ex-estudante93, explica: A política é sempre, entre outras coisas, a arte do possível, e as possibilidades dos homens e dos povos são sempre limitadas. Não reconhecer esses limites é um delírio de grandeza, por mais que este se oculte por trás de sentimentos sublimes. […] Não há como determinar teoricamente os limites, que entretanto facilmente se mostram em termos práticos. Quando se trata de política, é preciso aprender a pensar em termos limitados.

A terceira e última forma de ação política que Arendt chega a analisar não necessariamente nos oferece um modo positivo de ação, senão uma capacidade de associação pela opinião94 – e é, assim, o lado oposto e suplementar às ações de Reconstrução, se ele for 93

Para minha versão, revista e com notas, cf. Apêndice A.

94

Em seu artigo sobre a relação entre proposta arendtiana para a desobediência civil e a Democracia, Helton Adverse (2012) oferece alguns argumentos semelhantes aos que apresentamos aqui, embora

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entendido no mesmo sentido que Arendt (OT, p. 12) dá à tarefa de compreensão: “encarar a realidade sem preconceitos e com atenção, e resistir a ela – qualquer que seja”. Essa forma trata, portanto, da capacidade de resistência individual e tem início naqueles movimentos morais de “objeção da consciência” ou de não-cooperação, quando o indivíduo diz, nos momentos em que se confronta com as crises e exceções do mundo: “Não posso”. Com isso, sua desvantagem para o âmbito que estudamos aqui, como vai observar Arendt (RJ, p. 143), “é que ela deve permanecer inteiramente negativa. Não tem absolutamente nada a ver com a ação”, isto é, não oferece um princípio para a ação, mas somente uma base moral, autoevidente por si mesma, que orienta o indivíduo. Em termos políticos, contudo, o campo da Resistência também diz respeito aos movimentos coletivos de desobediência civil, em seu direito de questionar a validade constitucional ou mesmo de desobedecer a leis injustas ou ilegítimas e de, no limite, resistir ao consentimento tácito a partir da capacidade de associar-se para desconstituir dinâmicas autocráticas. Nesse sentido, Arendt (CR, p. 53) propõe que a discussão sobre a noção de desobediência civil seja sobre os diversos dilemas em se identificar a contestação “com a violação da lei com o fim de testar sua constitucionalidade”. Assim, ao questionar a validade legal e moral de determinadas leis e costumes, mesmo aqueles prescritos pela Constituição, o que é relevante politicamente é ver surgirem associações entre “contestadores civis […], delimitadas mais pela opinião comum do que por interesses comuns, e pela decisão de tomar posição contra a política do governo mesmo tendo razão para supor que ela é apoiada pela maioria” (idem, p. 55. grifo meu). A ação concertada desses grupos, agora debatendo publicamente sua causa no campo da moral do cidadão, e não somente da consciência individual, pode assim revelar a base moral dos conflitos sociais e, porventura, cristalizar-se no que chamamos de políticas afirmativas. Como uma lei elaborada para equalizar diferenças específicas de tais grupos politicamente minoritários, seu fim é restabelecer as garantias de igualdade, um dos pilares de ele considere somente duas formas para ação política – a revolução e a desobediência civil. Com isso, o autor mantém a mesma confusão de outros comentadores ao não distinguir a atividade de fundação como complementar, mas também distinta, tanto da ação revolucionária quanto da capacidade, que é própria da desobediência civil, de associação pela opinião (e não pelo interesse partilhado, que leva à fundação de corpos políticos).

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qualquer Constituição democrática hodierna. Desse modo, o que tais políticas afirmativas poderiam contestar – ou renovar – são precisamente os acordos sociais inter pares, e, não por acaso, Arendt (CR, p. 77) chama esse tipo de acordo de “versão horizontal do contrato social”. Com isso, seriam restabelecidas as bases dos critérios intra-políticos de autosseleção para participação na comunidade – que asseguram, ao fim e ao cabo, a autoridade de suas instituições. Mas, como conclui Arendt (CR, p. 73), “a lei realmente pode estabilizar e legalizar uma mudança já ocorrida, mas a mudança em si é sempre resultado de ação extralegal”. Novamente, portanto, para garantir a diferenciação necessária entre políticas contestatórias e violações clandestinas às leis, parece ser crucial efetivar não somente a “representação de seus interesses”, com também a presença efetiva desses grupos à luz do público – argumento com o qual Hannah Arendt certamente estaria de acordo. Mas, no que tange ao fato de que as políticas afirmativas possam ser incluídas na teoria política de Arendt – em uma conclusão lógica do argumento anterior – como um dos mecanismos que criam tais condições de participação e influência, qualquer conjectura mais séria sobre a opinião favorável de Arendt a esse respeito poderia ser temerária95. Finalmente, para arrematar esse conjunto, proponho ainda balizá-lo a partir de três enfoques sobre a “questão social”, que nos auxiliarão a compreender – por contraste – o que seria, então, uma “questão política” a dar sentido a cada uma dessas formas do agir em concerto. No primeiro enfoque, a ser explorado nos capítulos 5 e 6, a distinção entre a questão social e a questão política nos abre caminho para compreender a distinção entre “igualdade social” e “igualdade política” e entre “direitos civis (do homem)” e “direitos

95

Considerando alguns dos “argumentos” dos críticos a políticas afirmativas (como a das cotas raciais), e valendo-se das críticas arendtianas a ações motivadas por “culpa coletiva” ou “sentimentalismos”, algum comentador mais enviesado poderia ser tentado a estabelecer paralelos entre eles; e mesmo que não esteja pessoalmente de acordo com essa linha de pensamento, não posso desconsiderar sua possibilidade. De todo modo, vale mencionar que Arendt (CR, pp. 81-82) afirma ser uma “falha” o fato de o Congresso norte-americano nunca ter proposto uma emenda constitucional para dar as “boas vindas” à população negra, “tendo em vista a esmagadora votação por uma emenda constitucional para sanar práticas discriminatórias infinitamente mais moderadas contra mulheres”. Para as críticas de Arendt diante de algumas estratégias contestatórias adotadas por partes do movimento negro norteamericano, cf. Sobre a Violência (2009); “Responsabilidade pessoal sob a ditadura”, “Responsabilidade coletiva” e “Reflexões sobre Little Rock”, respectivamente, em ARENDT (RJ, pp. 79-111; 213-225; 261-281). Sobre a “Desobediência civil”, cf. ARENDT (CR, pp. 49-90). Cf. também a discussão apresentada no capítulo 7 sobre a “política de presença”, em especial, nota 126.

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políticos (do cidadão)”. Com isso, já nos capítulos 7 e 8, desembocaremos no segundo enfoque, que apresenta a questão social por meio da confusão entre libertação (freedom) e liberdade (liberty). Finalmente, aceitando que o sentido da política seja a liberdade, utilizaremos um terceiro enfoque sobre a questão social para saber se a teoria política de Arendt, mesmo sem contar especificamente com uma teoria da justiça, pode lidar com os problemas colocados atualmente pela teoria do reconhecimento. Nesse terceiro enfoque, apresentado no capítulo 9, a questão social será reapresentada tanto em seu viés de (falta de) visibilidade quanto de (bloqueios para) construção de narrativas alternativas sobre nosso destino comum. Procedendo dessa maneira, pretendemos ter alcançado o cerne da questão política no pensamento de Hannah Arendt. Isso porque teremos localizado não somente aquilo que distingue a ação de todas as demais atividades recorrentes da existência humana, desde o ponto de vista histórico-conceitual proposto pela autora – o que procuramos fazer no capítulo anterior –, como também teremos balizado o desenvolvimento dessa atividade em três modalidades diferentes. Todas elas têm como sentido a liberdade, mas cada uma apresenta seu próprio “princípio” para a ação e, portanto, oferece um principium distinto, um novo início: reconstruir uma novus ordo saeclorum, por meio da ação-como-Revolução; refundar uma constitutio libertatis, por meio da ação-como-Fundação; e resistir à auctoritas por meio do potestas, ou seja, resistir ao absoluto e ao ilimitado, desconstituindo a autocracia, por meio tanto da desobediência civil em associações civis quanto de políticas autolimitadas. Assim, se aceitamos o antigo provérbio que nos garante que “o início [ou princípio] é mais do que a metade do todo”96, então cada forma de ação, ao variar ao redor do mesmo tema – a questão social –, nos permite elencar alguns critérios para analisarmos seu transcurso, se é disruptivo ou fundacional, de resistência ou de reconstrução. Com isso, também poderemos compreender que seu conteúdo essencialmente político é encontrado, finalmente, na forma de ação-como-Fundação: a discussão e institucionalização de direitos coletivos, a publicização de temas relevantes, e a visibilização de novos corpos políticos para influenciar nas questões de governo. 96

Aristóteles, Ética a Nicômacos, 1098b. Citado por Arendt (SR, p. 272) a partir de Políbio.

CAPÍTULO 5

AS LUTAS POR IGUALDADE POLÍTICA E SOCIAL

A emancipação é uma maneira de viver como iguais no mundo da desigualdade. E essa maneira de viver bem pode ser autossuficiente. Quer dizer que, talvez, aqueles e aquelas que viveram esses momentos de igualdade não desejem mais nada. Jacques Rancière.

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Hannah Arendt acreditava que “a igualdade política sempre se traduziu em discriminação social, enquanto o reconhecimento social sempre foi pago com desigualdade política”97. Mas com essa distinção estrita entre igualdade política e igualdade social – distinção, aliás, que é parte de nossa tradição política, que fala de direitos políticos e civis, de direitos do cidadão e do Homem; enfim, de direitos nacionais e de direitos humanos –, o que parece atravancar o caminho de Arendt frente os argumentos dos liberais democratas é que a consolidação do Estado-nação igualitário precisou considerar não somente a emancipação legal e política de seus cidadãos, mas também a igualdade de nascimento e de condições como um de seus pilares, mesmo sem efetivá-la realmente. Na luta contra a nobreza, o que a burguesia buscava era justamente a derrocada de quaisquer distinções sociais que fossem devidas ao nascimento, à família ou à linhagem, e não à condição e aos méritos individuais. Tentando derrubar esses privilégios sociais, os democratas argumentavam em favor da diminuição das desigualdades sociais – talvez até mais fortemente antes do que hoje. E, tentando acertar o alvo dos privilégios sociais de grupos específicos, acabaram por reforçar o culto da personalidade, isto é, o culto das características entendidas como inatas ou desenvolvidas por mérito particular e individual – não por acaso, como vimos no capítulo 1, a Democracia incorporou sem grandes problemas os aspectos elitistas de teorias que visavam justamente questionar o igualitarismo democrático. Para Arendt (EPF, p. 229), no entanto, esse tipo de particularismo decerto não deveria efetivar-se politicamente, uma vez que ela mesma afirmava que “a meritocracia contradiz, tanto quanto qualquer outra oligarquia, o princípio da igualdade que rege uma democracia igualitária”. E é nesse sentido que a noção liberal de Indivíduo autônomo é radicalmente particularista: enquanto geradora de um sujeito atomizado, livre em seu elemento mais individual – sua privacidade. Por isso, esse indivíduo demanda dupla proteção para sua autonomia: proteção contra a nova soberania do Estado e contra a nova arbitrariedade coletiva da Sociedade, como diz Arendt (OT, p. 395). E, para consolidar essa autonomia e garantir essa proteção, o liberalismo vai empreender três movimentos diferentes e correlacionados: a separação entre a esfera pública e o espaço privado, a defesa da liberdade individual na esfera 97

Young-Bruehl (1997, p. 473, n. 99) cita esse trecho de uma carta de Arendt a Matthew Lipman, de 30 de março de 1959.

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privada e a formalização da igualdade no espaço público. Assim, enquanto pressupõe um sujeito racional e abstratamente igual no espaço público, tal noção de indivíduo é, ao mesmo tempo, mas em uma esfera totalmente distinta, pretensamente universalizante. Com a consolidação do indivíduo como sujeito político, aliada à primazia dada à liberdade negativa – ou seja, a inviolabilidade do espaço privado, que garante a integridade do indivíduo e mantém sua liberdade, uma vez que presume a “ausência de coerção” –, o liberalismo separou de tal modo o espaço privado da esfera pública que fez surgir na modernidade uma nova cisão entre o cidadão (público) e o homem (privado). E, desse modo, tornou necessária a mediação da representação política. De um lado, no entanto, a universalidade, neutralidade e abstração desse indivíduo já foram desmascaradas desde pelo menos O Contrato Sexual, de Carole Pateman (1993 [1988]), denunciadas em seu caráter absolutamente enviesado, porquanto fazem referência, de fato, a um grupo específico de pessoas – e por vezes até mesmo aritmeticamente minoritário. Do outro lado, é também a prática das relações entre pessoas que nos apresenta fortes evidências de que aquele indivíduo atomizado não existe, e talvez nem mesmo devesse existir, ainda que no plano jurídico-formal. E essa dúvida, por vezes, se instala no pensamento liberal. Afinal, […] como atribuir os direitos ao indivíduo enquanto tal, uma vez que o direito rege as relações entre diversos indivíduos, uma vez que a própria idéia do direito pressupõe uma comunidade ou uma sociedade já instituída? Como fundamentar a legitimidade política nos direitos do indivíduo, se este nunca existe como tal, se em sua existência social e política está ele sempre necessariamente ligado a outros indivíduos, a uma família, uma classe, uma profissão, uma nação? (Manent, 1990. p. 9).

Historicamente, no entanto, uma clara vantagem dessa noção foi a possibilidade de correlação dos direitos civis dos homens com os direitos políticos do cidadão, contribuindo para uma reaproximação entre a vida social dos indivíduos e a instância política coletiva. O jusnaturalismo, desde Locke, apresentou-se como motor ideológico para advogar por essa autonomia ao indivíduo – conferindo-a igualmente a todos eles – por meio de uma série de direitos “naturais”: à vida, à liberdade, à propriedade, à felicidade, à segurança98. Se tais 98

Uma referência bastante explícita encontra-se no texto estadunidense da Declaração dos Direitos, de 1776, onde se lê: “que todos os homens são por natureza igualmente livres e independentes e têm

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direitos são naturais (e, portanto, anteriores ao direito positivo do Estado), seu peso seria o contraponto equivalente e necessário ao peso da concentração de poder de um agente político que requer exclusividade para julgar e legislar. A autonomia do indivíduo aparece, assim, como uma tripla vantagem: limita o poder do Estado, impede invasões arbitrárias de qualquer outro corpo da Sociedade e garante a liberdade de todos. Além disso, segundo previam alguns liberais, essa mesma liberdade natural garantida igualmente a todos permitiria, no decurso da história e com o suposto desenvolvimento das sociedades humanas, a redução das desigualdades naturais. Naquela correlação dos direitos civis do Homem com os direitos políticos do cidadão, portanto, a cidadania universal seria o contraponto que garantiria ao homem particular e privado, submetido à influência da filiação, da riqueza ou das competências socialmente enaltecidas, uma lei para lutar contra as desigualdades; e a imagem desse mesmo “homem”, quando abstratamente universal e, assim, igualmente livre e capaz, é a imagem a que se poderia apelar frente aos particularismos da cidadania, como diz Rancière (2014, pp. 77-78): quando tais particularismos levam à privatizações do poder, às “que excluem da cidadania tal ou tal parte da população, ou [às] que excluem tal ou tal domínio da vida coletiva do reino da igualdade cidadã”. Por isso, cada um desses termos – homem e cidadão – pode transformar-se em um dispositivo para polemizar o papel do universal, oposto ao particular, e vice-versa. Em outras palavras, quando a lei nega a uma pessoa ou a um grupo a cidadania garantida a outros indivíduos, é o estatuto de cidadania universal ou de humanidade igual que se pode reivindicar; e quando é essa humanidade comum que lhe é negada, então a igualdade particularmente assegurada pela cidadania entra no jogo político, […] pondo em cena a dupla relação de exclusão e inclusão inscrita na dualidade do ser humano e do cidadão. É isso que implica o processo democrático: a ação de sujeitos que, trabalhando no intervalo de identidades, reconfiguram as distribuições do privado e do público, do universal e do particular. A democracia não pode jamais se identificar com a simples dominação do universal sobre o particular […] [mas] deve constantemente trazer de volta ao jogo o universal em uma forma polêmica. (Rancière, 2014. pp. 80-81).

certos direitos inerentes […] quais sejam, o usufruto da vida e da liberdade, com os meios de adquirir e possuir propriedade e de buscar e obter felicidade e segurança”.

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Embora tenha em vista um problema relativamente diferente – Arendt (OT, p. 408) preocupava-se, então, com “os sobreviventes dos campos de extermínio, os internados nos campos de concentração e de refugiados, e até os relativamente afortunados apátridas” – seus argumentos problematizam, justamente, essa capacidade de “trazer de volta ao jogo o universal”. Na esteira da contraposição que Edmund Burke fez à Declaração dos Direitos do Homem, proposta durante a Revolução Francesa, Arendt (OT, p. 396) percebe “o paradoxo contido na declaração dos direitos humanos inalienáveis: ela se referia a um ser humano ‘abstrato’, que não existia em parte alguma”, por um lado, e, por outro, que a perda desses direitos humanos “coincide com o instante em que a pessoa se torna um ser humano em geral […] e diferente em geral, representando nada além da sua individualidade absoluta e singular, que, privada da expressão e da ação sobre um mundo comum, perde todo o seu significado” (p. 412). Por isso, Arendt (OT, p. 403) insiste no necessário pertencimento a uma comunidade política e no “direito de ter direitos (e isto significa viver numa estrutura onde se é julgado pelas ações e opiniões)”, uma vez que “a privação fundamental dos direitos humanos manifesta-se, primeiro e acima de tudo, na privação de um lugar no mundo que torne a opinião significativa e a ação eficaz”. Ainda sim, Arendt (OT, p. 398) não deixa de notar que que essa “forma polêmica” de reconfigurar as distribuições do universal e do particular, que Rancière argumenta ser parte inerente à Democracia, poderia ser efetivamente utilizada como “um direito de exceção para quem não dispunha de direitos usuais”. Desse modo, se a Democracia procura, assim como o liberalismo, tornar equivalentes o estatuto de cidadão e os direitos dos homens, ela o faz em favor de “estender a igualdade do homem público a outros domínios da vida comum” e, ao mesmo tempo, “para reafirmar o pertencimento dessa esfera pública incessantemente privatizada a todos e qualquer um”, como vai insistir Rancière (2014, p. 75). No entanto, o que todos os democratas, sejam de esquerda ou de direita, sabiam – e que Arendt de forma nenhuma negaria – é que a igualdade política, alcançada por meio de direitos iguais e da consequente emancipação legal e política, não só se mostra ineficiente no que diz respeito a equalizar as condições de vida das pessoas – sejam condições materiais ou o reconhecimento social de grupos oprimidos –, como em geral apenas confirmam o status quo daqueles que, antes, por meio de privilégios ou de condições sociais especiais, já gozavam dos principais benefícios que a igualdade pretende distribuir a todos. A

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autonomia individual, embora relativamente eficaz em parte de suas funções nesse sentido, ainda não apresentou respostas satisfatórias à questão da redução das desigualdades – talvez porque, fundamentalmente, esse seja um problema que demande também a consolidação da noção coletiva de autonomia, uma que permita aos homens recolocarem as fronteiras entre o público e o privado, entre o político e o social, continuamente, por meio daquela “tremenda equalização de diferenças que advém do fato de serem cidadãos de alguma comunidade” (Arendt, OT. pp. 411-412. grifo meu). Por esse motivo, aliás, investigaremos, no próximo capítulo, uma proposta para explicitar essa relação das demandas por igualdade com um sistema de equalização de diferenças. Assim, o que Arendt argumenta, amparada justamente pela separação entre a esfera política e o reino do social, e também pela experiência vivida, é que os laços econômicos e os aspectos de sociabilidade – isto é, os padrões de gosto, de atitudes, comportamentos e estilos de vida –, ainda que pareçam mais sólidos porque mais difundidos e “consolidados” na sociedade, eles não têm o caráter fundacional e duradouro – isto é, institucionalizado – que somente a esfera política, ao garantir a igualdade legal, pode proporcionar. Daí sua declaração taxativa: Toda essa esfera do que é meramente dado, relegada à vida privada na sociedade civilizada, é uma permanente ameaça à esfera pública, porque a esfera pública é tão consistentemente baseada na lei da igualdade como a esfera privada é baseada na lei da distinção e da diferenciação universal. A igualdade, em contraste com tudo o que se relaciona com a mera existência, não nos é dada, mas resulta da organização humana, porquanto é orientada pelo princípio da justiça. Não nascemos iguais; tornamo-nos iguais como membros de um grupo por força da nossa decisão de nos garantirmos direitos reciprocamente iguais. (Arendt, OT. p. 410).

5.1. O caso em Little Rock: entre a igualdade do pária e do parvenu Foi somente no final da década de 1950 – mais precisamente, quando da publicação, em 1959, do controverso artigo “Reflexões sobre Little Rock” – que Arendt deparou-se com o problema de ver refletidas em sua teoria política as dificuldades concretas que essa estrita separação entre o espaço público – onde vale a igualdade política – e o espaço social – onde se instala naturalmente a desigualdade social – lhe relegava. Então, quando o movimento

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pelos direitos civis dos negros norte-americanos decidiu que a integração racial deveria ter como foco as escolas públicas federais, Arendt tratou de denunciar a inadequação dessa estratégia por entender que o espaço das escolas conjugava de maneira indistinta tanto o mundo privado – o direito de cada pessoa educar seus filhos como lhe convém – quanto o mundo político – o dever governamental de assegurar a devida preparação para a vida pública de seus cidadãos. A escola, que no entendimento de Arendt era um espaço público permeado por interesses privados, estava marcada, desse modo, por todas as características que ela considerava próprias do reino do social. E assim ela se pôs a analisar o movimento que ocorreu em Little Rock – equivocadamente, como depois admitiu. Ao considerar que o movimento parecia colocar a responsabilidade pela integração racial nas costas das crianças, ela não só julgou a atitude equivocada do ponto de vista político, mas também a definiu como uma tentativa típica dos parvenus, que ambicionavam a assimilação ou a integração sociais mudando o foco da desigualdade política para a questão da desigualdade social. No entanto, o que ela julgava ter sido sempre correto, a partir de sua própria experiência como judia, apátrida e depois refugiada do nazismo alemão – isto é, que os esteios da integração social são muito mais frouxos que a igualdade de direitos, pois somente a legislação obriga a concordância entre os cidadãos e, portanto, torna o assunto da opressão social uma questão verdadeiramente política –, mostrava-se, nessa situação, sob novos ângulos. E essa mudança de perspectiva, que parecia exigir tanto uma mentalidade ainda mais alargada quanto certa readequação conceitual sobre o espaço do “verdadeiramente político”, não poderia ser captada “por aqueles que podem considerar assegurado o seu próprio lugar na sociedade”99, como disse sem qualquer ironia Ralph Elisson, o único crítico a quem ela realmente deu ouvidos na circunstância. Hannah Arendt percebeu, posteriormente, o quanto essa estrita divisão entre aspectos sociais e políticos de qualquer situação de opressão pode ser, senão problemática, profundamente controversa e, portanto, sujeita à persuasão e ao convencimento, sujeita àquele tipo de verdade que só aparece na troca de opiniões diversas; sujeita, enfim, à historicidade 99

A citação de Elisson está em Young-Bruehl (1997, pp. 284-285) e foi extraída de uma entrevista concedida por ele a Robert Penn Warren, publicada em 1965 no volume intitulado Quem fala pelo negro?. Voltaremos a essa discussão no capítulo 9, em especial, nota 160.

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que torna os negócios humanos essencialmente mutáveis. Como escreveu Elisson, esse evento em Little Rock era nada mais e nada menos do que um “rito de iniciação” sobre as diversas circunstâncias pelas quais passa, cotidianamente, cada negro norte-americano, mesmo que involuntariamente, “precisamente por ser um negro americano”; e, quando há feridas nesse processo iniciático, como ele diz, “isso será mais um sacrifício. É uma dura exigência, mas se a criança falhar nesse teste básico sua vida será ainda mais dura”. Assim, em resposta às críticas de Elisson, Arendt escreve que não havia compreendido “precisamente esse ideal de sacrifício” e, como relata Young-Bruehl (1997, p. 285), “abandonou o julgamento de que um comportamento de parvenu social estava sendo exigido das crianças negras por seus pais quando ‘apreendeu o elemento da violência pura, do medo elementar, físico, na situação’”. Para avaliar o intrincado esquema em que Arendt conjuga igualdade política e distinção, precisaremos compreender o que significa, então, seu conceito de pária em contraste com o de parvenu. A partir do primeiro, pode-se elencar a conjugação de uma série de elementos: as qualidades heroicas da pessoa de ação e iniciativa; o aspecto inegavelmente homérico – e, portanto, agonístico – que permeia “a grandeza” de suas ações; e sua disposição para manter intacto um tipo de inocência que a habilita a encarar com franqueza o mundo que a cerca. Além disso, Arendt estava certa de que essas capacidades podem ser encontradas mesmo no ser humano mais comum, e no cotidiano de todos “que sabem que a luta pela liberdade não será liderada nem por ‘notáveis’ nem por revolucionários do mundo, mas apenas por aqueles que querem realizá-la por seu próprio povo; e aos que estão realmente preparados para responder pelo que consideram justo”100. Quando Arendt retoma – de Kurt Blumenfeld101 – a noção de “párias” como aquelas pessoas “politicamente conscientes”, o faz menos para ressaltar seu aspecto marginal, como um outsider, e mais para estabelecer uma distinção com o que ela chama de “parvenus socialmente ambiciosos”. Contrariamente ao pária, que é consciente de sua situação política, o 100

Young-Bruehl (1997, p. 175), citando documentos preparados por Hannah Arendt, ainda em 1942, para a formação de um grupo político, junto com Joseph Maier, chamado Die jungjüdische Gruppe (Grupo Judaico Jovem). No que diz respeito à ambivalência com que Arendt trata os aspectos bélicos e épicos de Homero, é valioso e desconcertante observar que o objetivo do grupo era a formação de um exército judaico, para fazer frente ao massacre de judeus europeus pelos alemães.

101

Cf. YOUNG-BRUEHL (1997, p. 132). Na verdade, a noção de “pária consciente” foi proposta inicialmente por Bernard Lazare.

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parvenu procura reconciliar-se com o mundo a todo custo, mesmo tendo que “deixar a casa para trás”. Abandonando sua comunidade, desconsiderando sua própria “situação política” e ambicionando uma forma de ascensão social que lhe assegure algum outro lugar na sociedade, ele procura habituar-se de todo modo àquele mundo que inicialmente o repeliu, fazendo dele o espaço em que finalmente possa sentir-se em casa102. Nesse sentido, a sociedade ainda é o melhor lugar para que o parvenu se utilize de certas distinções – aquelas advindas do cultivo da educação ou da riqueza conquistada – como meios de reconhecimento e avanço social. Por isso, seu habitat natural é o reino do social, o único espaço em que sua liberdade individual é protegida sem que ele tenha de se preocupar com o mundo e se responsabilizar pela “situação política” que o circunda. O pária, por sua vez, torna-se consciente de sua condição de homelessness – consciente de que não há lugar para ele na sociedade – habitando o reino político, isto é, partilhando de um mundo que, no entanto, é comum a todas as pessoas; por isso, embora não esteja no conforto de um lar, não se torna um worldlessness, alguém que precisaria encontrar um papel social para, simultaneamente, realizar sua assimilação e demonstrar sua distinção. Nesse sentido, sua posição é quase sempre ambígua e essa é, portanto, sua marca política: é por sua conexão a certa tradição e a certa diferença – seja por seu nascimento, seja pela cor de sua pele103 – que o pária é tornado exceção, mas é também por seu encontro constante com o “não-familiar” que o pária percebe a pluralidade do mundo e a importância e a especificidade da igualdade política, artificialmente mantida entre aqueles que o habitam. Em uma luta frequente entre a rebeldia e o desajuste social, por um lado, e a demanda por igualdade política e o reconhecimento de direitos, por outro, desse “pária consciente” parece ser esperada aquela virtude essencialmente política da coragem de agir e, não poucas vezes, até certo heroísmo.

102

Cf. DISCH (1994, pp. 172-192).

103

De maneira muito controversa, como enfatiza Young-Bruehl (1997, p. 281), “Arendt via nas lutas do povo negro pela integração todos os dilemas da assimilação judaica”. Embora, do ponto de vista conceitual, algumas das análises se mostrassem válidas, já vimos como foram constrangedoramente trágicas algumas outras avaliações sobre as estratégicas políticas e as trajetórias históricas ao se manter essa suposta analogia entre ambos os movimentos.

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Por isso, essa figura do pária, como mostra Benhabib (1995, pp. 16-17. trad. minha), “insiste no fato da diferença e da distinção, mas o faz de uma maneira que não é totalmente individualista, […] [o faz] de maneira a estabelecer sua diferença ‘sob os olhos’ da sociedade”; o que leva o pária a sustentar uma atitude paradoxal entre a rebeldia contra a sociedade, rejeitando-a, e a dependência de um espaço público em que suas questões “particulares” possam ser vistas por todos, numa clara afirmação da importância – talvez prépolítica – da esfera do social. Mas esse modo de distinção do pária só poderia advir de um acordo entre pares – de uma “community of like-minded friends”, como diz Benhabib (ibid.), de uma comunidade de amigos que partilhem da igualdade “de espírito”. Daí porque esse princípio de distinção, imbricado em uma comunidade de iguais, confere ao pária um tipo de autoridade que ou exige dele certa responsabilidade pelo mundo – presumindo seu assentimento – ou lhe demanda confiá-la a alguém, mesmo que temporariamente. *** Em resumo, como vimos, dois temas frequentes e polêmicos na teoria política de Hannah Arendt podem ser apresentados por meio daquela distinção entre o pária consciente e o parvenu ambicioso, entre o rebelde político e o carreirista social: a questão da igualdade, em seu sentido político e em seu sentido social, e a constante crítica ao “reino do social”, ao fato de que a assimilação e o conformismo social têm consequências políticas que ficam encobertas sob o nebuloso espaço que é, ao mesmo tempo, público e privado, que é partilhado por muitos, mas determinado por interesses particulares e por regras que, muitas vezes, só podem ser perscrutadas na intimidade da consciência ou das amizades pessoais, e não à luz do público. Com certeza, o gosto pelos clássicos épicos e sua condição de judia, apátrida e refugiada, além da própria circunstância de um mundo em guerra e de uma guerra em que apareceu um “mal radical”, tudo isso poderia ter favorecido o apelo de Arendt a esse heroísmo e “rebeldia radical” inerentes ao pária; como se diante da radicalidade dos problemas fossem necessárias intervenções radicais. No entanto, Arendt também havia investigado a fundo as doutrinas e ideologias que, embasando o racismo e o expansionismo

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imperialista, cristalizaram-se na forma totalitária de dominação. Por isso, Arendt afastava-se claramente de todas essas visões de heróis criados por eugenia, ou da busca por um “exemplar seleto, a personificação da raça”, como afirmou certa vez – provavelmente sobre si mesmo – o ex-primeiro-ministro britânico Benjamin Disraeli. Não há dúvidas de que Hannah Arendt (OT, p. 116) refutava esses ideais e esses ideólogos – de Herbert Spencer a Thomas Carlyle, autor “que interpretava a história do mundo segundo um ideal de herói do século XIX” – por não ter dúvidas de que “o aspecto mais perigoso dessas doutrinas evolucionistas estava no fato de aliarem o conceito de hereditariedade à insistência nas realizações pessoais e nos traços de caráter individuais, tão importantes para o amor-próprio da classe média do século XIX” (p. 261). Embora argumentemos aqui que Arendt nunca deixou de sustentar uma posição aristocrática sobre a política, é preciso enfatizar o quanto essas ideologias apresentavam o contrário do que ela entendia ser um aristói, ao afirmarem, por exemplo, “que a aristocracia era o produto natural não da política, mas da seleção natural de raças puras” (idem, p. 260), e que então poderiam substituir “as antigas classes governantes por uma nova ‘elite’ através de meios não políticos” (idem, p. 261). Como se vê, qualquer possibilidade de que o heroísmo desse animal político fosse forjado por meios sociais ou biológicos, de que sua “virtude” fosse reforçada não pelo reconhecimento de seus pares, mas por determinismos históricos (como no marxismo) ou pseudocientíficos (como nas correntes reacionárias de evolucionismo social), estava fora de questão para Arendt104. Objetivando retirar o caráter imprevisível da ação humana, o que essas correntes e ideologias lograram foi estabelecer que, do ponto do vista dos meios-e-fins, “tudo se torna arbitrário, desde que prometa uma transformação revolucionária” (Arendt, CE. p. 455). Por isso, ela concentrava sua atenção em conceber a questão do pária como uma questão essencialmente política105, que envolve considerações morais e responsabilidade pelo mundo. 104

Além das críticas já citadas às correntes evolucionistas, cf. também O interesse atual do pensamento filosófico europeu pela política, em especial ARENDT (CE, pp. 452-456), para as críticas aos existencialistas franceses, que “sobrepuseram, por assim dizer, o marxismo como quadro de referência para a ação” (p. 455).

105

A esse respeito, justamente no tópico intitulado “Entre o pária e o novo-rico”, Arendt (OT, p. 96) vai dizer: “[…] as condições dos judeus, elaboradas por seus defensores, judeus ou não, eram analisadas apenas sob o aspecto social. E um dos fatores mais infelizes da história do povo judeu tem sido exatamente este: somente seus inimigos, e quase nunca seus amigos, compreenderam que a questão judaica era antes de tudo uma questão política”.

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Assim é que, por oposição, a questão da distinção do parvenu era sempre vista como uma questão de ambição social, como uma forma específica de ascensão que produzia “a longo prazo um tipo específico de conformismo, no lugar de uma tradição efetiva de rebelião” (Arendt, OT. p. 107). O que aquela “rebeldia” dos negros norte-americanos contra determinados interesses privados – que invadiam espaços públicos e que, portanto, deveriam ser combatidos exatamente nesses espaços, sejam eles ônibus públicos ou escolas públicas – devem ter revelado a Arendt, no caso de Little Rock, além da atitude típica do pária autoconsciente que posteriormente ela reconheceu, foi também certa transgressão dos limites, estabelecidos conceitualmente e reproduzidos socialmente, entre o público e o privado. Por isso, Benhabib (1995, p. 20. trad. minha) vai concluir, condescendentemente: “Arendt desenvolveu sua filosofia política para repelir tais transgressões, mas como uma democrata radical ela não poderia deixar de acolher tais transgressões se elas resultassem em autêntica ação política, em uma comunidade ‘de fala e ação’”. Não poderíamos deixar de concordar que o radicalismo político de Arendt possivelmente a levaria a “conceder” aos partícipes o poder de decisão sobre os limites tênues entre os aspectos privados e públicos de determinados temas trazidos ao reino político pelos heroicos rebeldes que “estão realmente preparados para responder pelo que consideram justo”. Mas a questão que ainda cabe investigar – e esse é leitmotiv desta tese – é o quanto desse insuspeito radicalismo adviria de suas ainda suspeitas convicções democráticas, e o quanto de seu compromisso com a ação política se sujeitaria às necessárias condições de igualdade – e, em particular, à igualdade de condições necessariamente demandada pela Democracia. Ao que tudo indica, até agora, o aspecto aristocrático que aparece no apelo de Arendt à distinção política é mais evidente e importante do que o elemento igualitário embutido no fato de ela ser outorgada por seu pares, mesmo que tal distinção seja valorizada contra os perigos do conformismo, engendrado por um igualitarismo homogeneizante. É o que se poderá atestar claramente nas duas longas – mas cruciais – passagens que destacamos em sequência. Na primeira delas, vemos a maneira polêmica como Arendt – por se declarar crítica ao que se faz “em nome da democracia” e, ao mesmo tempo, pró-“aristocratas” e

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saudosa da república, que também estaria “em desintegração”, como ela diz – encerra o capítulo “A busca da felicidade”, em Sobre a Revolução (2011, p. 187. grifos meus): Concluindo, é difícil negar que Crèvecoeur estava certo ao prever que ‘o homem se imporá sobre o cidadão, [que] suas máximas políticas desaparecerão’, que os que afirmam com toda a seriedade que ‘a felicidade de minha família é o único objeto de meus desejos’ serão aplaudidos praticamente por todos ao dar vazão, em nome da democracia, à sua raiva contra os ‘grandes personagens que estão tão acima do comum dos homens’ que suas aspirações ultrapassam sua felicidade privada, ou quando, em nome do ‘homem comum’ e de alguma confusa noção de liberalismo, denunciam como ambição a virtude pública, que certamente não é a virtude do agricultor, e como ‘aristocratas’ aqueles aos quais devem sua liberdade, considerando-os possuídos (como no caso do pobre John Adams) de uma ‘vaidade colossal’. […] Num nível mais elaborado, podemos considerar esse desaparecimento do ‘gosto pela liberdade política’ como o retraimento do indivíduo para um ‘domínio interior da consciência’, em que ele encontra a única ‘região apropriada da liberdade humana’; dessa região, como que numa fortaleza em desintegração, o indivíduo, tendo se imposto ao cidadão, agora irá se defender contra uma sociedade que, por sua vez, ‘se impõe à individualidade’.

Antes, porém, de chegar a essas conclusões perturbadoras – que nos chocam não só pelo “brilhante conteúdo de verdade” que sua crítica revela –, Arendt já havia investigado, do ponto de vista histórico e narrativo adotado em Origens do Totalitarismo, as relações sociais entre judeus e não-judeus, entre a demanda por emancipação e seu inesperado efeito de aumentar a discriminação social. No segundo excerto, poderemos constatar, novamente, como sua crítica parece ir de encontro, precisamente, àquilo que a Democracia tenta, ainda que de modo paradoxal, cumprir, ou seja, emancipar pela igualdade política e, ao mesmo tempo, diminuir a discriminação pela igualdade social: A igualdade de condições embora constitua o requisito básico da justiça, é uma das mais incertas especulações da humanidade moderna. Quanto mais tendem as condições para a igualdade, mais difícil se torna explicar as diferenças que realmente existem entre as pessoas; assim, fugindo da aceitação racional dessa tendência, os indivíduos que se julgam de fato iguais entre si formam grupos que se tornam mais fechados com relação a outros e, com isto, diferentes. Essa desconcertante consequência foi percebida quando a igualdade deixou de ser aceita em termos de dogmatização ou de inevitabilidade. Sempre que a igualdade se torna um fato social, sem nenhum padrão de sua mensuração ou análise explicativa, há pouquíssima chance de que se torne princípio regulador de organização política, na qual pessoas têm direitos iguais, mesmo que difiram entre si em outros aspectos; há muitas chances, porém, de ela ser aceita como qualidade inata de todo indivíduo, que é ‘normal’ se for como todos os outros, e ‘anormal’ se for diferente. Essa alteração do sentido da igualdade, que do conceito político passou ao conceito social, é ainda mais perigosa quando uma sociedade deixa pouca margem de

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atuação para grupos e indivíduos especiais, pois então suas diferenças com relação à maioria se tornam ainda mais conspícuas. (Arendt, OT. pp. 93-94).

Surpreendentemente, mas não sem alguma razão, Arendt (OT, p. 95 e n. 1) vai referir-se, alguns parágrafos adiante dessa segunda citação, à democracia norte-americana com um misto de otimismo e receio: “Um dos mais promissores e perigosos paradoxos dos Estados Unidos está na ousadia da prática de igualdade em meio à população mais desigual do mundo, física e historicamente”. Mas o fato é a convicção democrática na igualdade de condições como a base para a igualdade social foi justamente o que permitiu que os norteamericanos acreditassem que, “por capacidade ou sorte, [qualquer um] podia tornar-se herói de uma história de conquistas” – crença que foi transformada e reproduzida socialmente como um modo de vida específico, o american way of life, e como uma visão de destino, o american dream, ambos descritos pela primeira vez justamente pelo escritor franco-americano Crèvecoeur, citado por Arendt. Vemos, por outro lado, que a crença na possibilidade de igualdade social foi um dos motivos que levou à cristalização da discriminação social em um movimento político – como ocorreu diversas vezes na história e cujo ápice foi o movimento totalitário. No entanto, o que foi específico – e importante – no caso totalitário é que não havia, do ponto de vista social ou político, instrumentos que permitissem o reconhecimento das diferenças absolutas, isto é, que as organizassem diante da relativa igualdade política e “em contrapartida às diferenças relativas”, como diz Arendt (OP, p. 24). Na ausência desses instrumentos públicos e mecanismos políticos de regulação de conflitos, tal movimento justificava seu ódio como uma forma de oposição a tudo que lhe parecesse ser um “princípio separatista”, ou uma força de tensão e ruptura social. Para Arendt, contudo, tais instrumentos são garantidos somente por meios políticos, isto é, pela ação concertada de grupos em base legal e visando a mudanças institucionais. Fora disso, isto é, fora do âmbito político específico, o que se encontra são associações civis e clubes sociais. Daí porque, para ela, mudanças legais ainda são quase sempre precedidas por algum tipo de movimento extralegal, que Arendt chama de desobediência civil e, ao mesmo tempo, conclama para que esse tipo de movimento seja incorporado, de algum modo, enquanto movimento legítimo que reconhece a autoridade das leis, às próprias Constituições – a única base que lhe parece garantir solo fértil para a

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igualdade. E, então, vai dizer Arendt (CR, p. 75), “seria um evento do maior significado encontrar um nicho constitucional para a desobediência civil – tão importante, talvez, quanto a descoberta, há quase duzentos anos, da constitutio libertatis”.

CAPÍTULO 6

REBALANCEAMENTO DAS DESIGUALDADES: DIÁLOGO COM SARTORI

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Para avançarmos na compreensão da complexa relação entre igualdade política e igualdade social, proponho tratarmos da readequação da noção de Igualdade, que foi realizada historicamente no contexto de abolição da soberania absoluta do príncipe e de incorporação da noção de soberania popular ao vocabulário político. Essas duas circunstâncias associaram-se em um novo pacto social que, ao possibilitar a ampliação da participação popular, o fez por meio da reinserção da desigualdade política em novos termos – nos quais a representação política até hoje se sustenta. Essa desigualdade não se dava mais somente na rígida separação e hierarquização entre o governante absoluto e o conjunto de súditos governados, mas agora como uma distinção no interior mesmo do conjunto de governados. Com essa situação, em que Indivíduo e Estado, e Indivíduo e Sociedade firmam um contrato vertical, a igualdade convertia-se em “igualdade formal-procedimental”, isto é, davase sob uma forma jurídico-política limitada – como “igualdade perante a lei”, para ser julgado, punido e protegido sob a mesma lei – e por meio de procedimentos específicos – na outorga de cada vez mais “direitos iguais” a cada vez mais pessoas diferentes. Essa parece ter sido, então, a principal contribuição tanto dos igualitaristas ingleses do século XVII quanto dos revolucionários franceses do século XVIII, como diz Sartori (TDR2, pp. 114-115). Mas o próprio Sartori (TDR2, p. 115) vai admitir que, já no contexto da democracia liberal, “a exigência democrática de igualdade passou gradualmente a envolver três reivindicações específicas […] que são mais características de seu componente democrático do que de seu componente liberal”, quais sejam: sufrágio universal igual, igualdade social, e igualdade de oportunidade. O que está implicado nesse conjunto é o sentido social, ou relacional, que a Democracia passou a incluir na noção de igualdade, transformando-a em “um ethos igualitário que se baseia e se resolve num valor igual”, de modo que as pessoas “se concebam como seres socialmente iguais” (Sartori, TDR1. p. 25)106.

106

Como afirma Sartori (TDR2, p. 115, em especial, n. 17), essa igualdade de status e de consideração é ainda negativa em sua formulação mais geral, pois trata somente da ideia de que “as distinções de riqueza e classe não trazem nem envolvem distinção”. Mas Rawls, a quem incluiremos no diálogo em seguida, “reformula a negação numa afirmação: a moralidade de ‘igual respeito e consideração’”, como relembra o autor.

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Capítulo 6: Rebalanceamento das desigualdades

Por isso, a discussão contemporânea sobre a igualdade é atualmente feita dentro dos marcos de uma teoria da justiça, na qual se destacam dois pensadores: John Rawls, com a noção de “reciprocidade compensatória”, e Michael Walzer, com a proposta de “igualdade complexa”. Se aceitarmos o argumento de Chantal Mouffe (2005 [1993], p. 54. trad. minha), que também explora essa questão ao traçar paralelos e distinções entre as concepções de justiça desses dois autores, veremos como a contribuição do último é “mais adequada à defesa de um ideal igualitário hoje em dia e mais sensível aos conflitos políticos atuais”. Tomaremos, no entanto, a tipologia da igualdade apresentada por Giovanni Sartori (TDR2), que além de ser clara e simples, como me parece necessário, é também ampla, profunda e se aproxima suficientemente da “igualdade complexa” de Walzer, sendo adequada como esquematização dos debates contemporâneos e, portanto, suficiente para nossos propósitos. Em sua própria justificativa, Sartori (TDR2, p. 131, n. 42) vai reforçar os critérios para nossa escolha: […] minha fórmula, ‘rebalanceamento das desigualdades’, é descritiva. Portanto, difere da ‘reciprocidade compensatória’ de Rawls, que é uma fórmula normativa. Mas é claro que as duas são complementares. Também acho que meu argumento corre paralelo ao de Walzer em Spheres of Justice.

Sartori (TDR2, pp. 117-133) faz uma “progressão histórica da igualdade”, que pode ser apresentada sob a forma de cinco classes. As três primeiras são “a sucessão histórica em que as igualdades em pauta foram afirmadas” como sucessivas e cumulativas; a terceira e quarta constituem-se como uma subdivisão da mesma igualdade de oportunidade; e a quinta, como uma radicalização da igualdade de circunstâncias. Desse modo, as três últimas, como um conjunto de “equalizações de circunstâncias”, não são aditivas às três primeiras e, às vezes,

podem

ser

“complementares

(compatíveis)

ou

mutuamente

exclusivas

(incompatíveis)”. O que pode parecer, inicialmente, um problema, é visto por Sartori (TDR2, p. 131. grifo do autor) como um aspecto positivo e salutar, já que “o problema da igualdade sempre é obter um sistema eficiente de compensações recíprocas entre desigualdades, isto é, um sistema de forças compensadoras, onde toda desigualdade tenda a contrabalançar uma outra”.

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6.1. Da igualdade formal ao rebalanceamento de oportunidades sociais Como vimos anteriormente, o primeiro tipo de igualdade, historicamente mais antigo e formulado como base para o restante do esquema, é a igualdade jurídico-política. Ela é articulada por Sartori (TDR2, p. 117) como a outorga dos “mesmos direitos legais e políticos para todos, isto é, o poder legalizado de resistir ao poder político”. Esse tipo de igualdade conforma-se como um aparato constitucional protetivo-punitivo, e é materializado por meio de leis gerais e iguais. Como também já descrevemos, seu horizonte limita-se a assumir e a oferecer uma mesma e igual liberdade mínima para todos aqueles que fazem parte do corpo político de cidadãos devidamente reconhecidos. O critério 1, que baliza a aplicação e a efetividade do tipo 1 de igualdade, a partir de um tratamento igual, é apresentado por Sartori (TDR2, p. 122 e n. 32. grifo do autor) como: “o mesmo para todos, isto é, partes iguais (benefícios ou ônus) para todos”. Portanto, não é uma regra que diga respeito a “pessoas” específicas, mas somente aos benefícios e ônus do cidadão, ou seja, ela implica que “cada beneficiário tem direito exatamente às mesmas coisas nas mesmas quantidades”; ela aplica ou distribui partes iguais a todos. Ao mesmo tempo em que o contrato, em seu sentido jurídico-institucional, possibilitou a readequação da igualdade a seu sentido “formal-procedimental”, pode-se notar como ele também se desdobrou em uma situação idealizada próxima daquilo que Marx & Engels107 denominavam “igualdade mercantil”. O problema a ser objetado, a partir da crítica marxista é que com esse contrato seria “possível transformar o reino da exploração em reino da igualdade e identificar sem nenhuma cerimônia a igualdade democrática com a ‘troca igual’ da prestação mercantil” (Rancière, 2014. p. 31). Ou seja, esse contrato está, desde seu princípio, assentado sobre uma desigualdade que é tão ocultada quanto mais for fundante, que é tão insuperável quanto maior for sua verticalidade. Com essa avaliação, não só a assimetria avassaladora da posição dos contratantes é denunciada, mas também se problematiza a diferença crescente entre os valores possíveis de serem negociados e, mais ainda, entre o poder de barganha e as condições efetivas entre as partes para que negociem como iguais.

107

Cf. MARX; ENGELS (1998, p. 42). Citado em RANCIÈRE (2014, p. 30).

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Mas uma avaliação sobre a situação do contrato não é simples, e a condição de sua aceitação quase nunca é evidente, ocultando ainda mais a desigualdade que ele visa superar. Assim é que Marx vai tomar como defensor de uma liberalização mercantil até mesmo Tocqueville, alegando que ele fora favorável às condições de igualdade para a realização da liberdade na democracia nascente da América. É possível argumentar, no entanto, que Tocqueville “entendia por ‘igualdade de condições’ o fim das antigas sociedades divididas em ordens, e não o reino de um indivíduo ávido por consumir cada vez mais”, como explica Rancière (2014, p. 31). Ainda sim, a crítica marxiana, quando não se esgota na mera afirmação da ilusória igualdade em seu sentido formal, pode ser utilizada para partir justamente do que é alegado pelas letras da lei, ou mesmo daquilo que falta a esse contrato, para assegurar seu balanço e seu cumprimento. Afinal, foi essa a crítica que articulou, a partir do risco e das lacunas de se associar o poder político ao potencial de consumo, argumentos contra essa suposta igualdade do mercado de barganhas políticas, onde se confiou estar a democracia, mas onde, de fato, não a encontraremos enquanto ela não estiver assentada na equivalência entre igualdade formal e o exercício da igualdade política. É nesse sentido que Rancière (2014, p. 34) menciona a sintética conclusão de Baudrillard, que “via nas promessas do consumo a falsa igualdade que mascara ‘a democracia ausente e a igualdade inencontrável’”, e nos convida a alargar o tema da igualdade para além do campo alienante da igualdade mercantil, mesmo ainda no ambiente atual das sociedades capitalistas de massa. Embora seja evidente que “o igualitarismo não pode ser satisfeito nem buscado apenas com o critério 1”, com diz Sartori (TDR2, p. 123. grifo do autor), seu valor para o sistema se traduz no fato de que “esse critério elimina uma classe potencial muito grande de leis danosas, isto é, de leis que gostaríamos de ver aplicadas a outros, mas não a nós” – daí seu valor protetivo à igualdade como princípio e restritivo aos perigos da igualdade como finalidade. Esse primeiro tipo de igualdade, no entanto, indica que é preciso complementar a noção de Direitos Individuais com outras noções, como a de Direitos Democráticos, apresentada por Chantal Mouffe (2005 [1993]), ou como a de um Manual de Direito Constitucional Pactício, como propõe Norberto Bobbio (1986). No primeiro caso, esses direitos são necessária e simultaneamente individuais e coletivos, mas não universalmente coletivizáveis ou passíveis de universalização abstrata e

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essencialista, justamente porque “os novos direitos demandados atualmente são a expressão de diferenças [como o particular, o múltiplo, o heterogêneo] cuja importância somente agora está sendo reconhecida […] [pois] o que é necessário é um novo tipo de articulação entre o universal e o particular” (Mouffe, 2005 [1993]. p. 13. trad. minha). Além disso, são direitos democráticos (e não exclusivamente individuais ou coletivos) porque buscam atender ao princípio da equivalência democrática, de modo que “a defesa dos interesses dos trabalhadores não seja feita às custas dos direitos das mulheres, imigrantes, consumidores” (idem, p. 19). E isso seria possível justamente porque há certa equivalência, democraticamente construída e mantida, entre diferentes constrangimentos e opressões intra e intergrupos, isto é, há equivalência entre diferentes lutas (sempre coletivas) contra o poder autocrático e, advindos daí, são demandados diferentes direitos. Uma vez assegurados aos indivíduos, esses direitos não se convertem em uma “identidade de possessões” (idem, p. 34), porque são demandados por meio de uma estratégia política de democracia radical, que “requer que abandonemos o universalismo abstrato do Iluminismo, a concepção essencialista de uma totalidade social, e o mito de um sujeito (ou subjetividade) unitário”; essa estratégia constituiria, assim, uma “nova forma de individualidade que possa ser verdadeiramente plural e democrática” (idem, p. 21. grifo meu), como o serão também os direitos garantidos a esses indivíduos. Para Bobbio (1986, pp. 129-149), no entanto, essa crítica ao particularismo com apelos aos interesses coletivos/nacionais não acaba com a questão. O dilema que os contratualistas ainda precisam resolver está, antes, na dissociação entre os princípios constitucionais (atos unilaterais de domínio, regulados pelo direito público e, no caso, democrático) e a realidade política dos acordos (tratada como relações entre forças, reguladas pelo direito privado e pelo princípio da reciprocidade), que faz que as atuais demandas políticas sejam não só por proteção legal do Estado, mas por novos pactos sociais e políticos de redistribuição de riquezas. Daí sua proposta de um “manual de direito constitucional pactício”, que nos permitiria ver como análogos os pactos políticos e o modo como o código civil se ocupa da formação, regulação e dissolução de acordos (como contratos bilaterais ou plurilaterais). Assim, se o liberalismo efetivamente contribuiu para a criação do Estado de Direito, resta saber se é verdadeiro que ele ainda pode seguir contribuindo para a consolidação

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do Estado Democrático de Direito, uma vez que o diagnóstico de Bobbio (1986, pp. 126-127) seja plausível: Para os neoliberais a democracia é ingovernável não só da parte dos governados, responsáveis pela sobrecarga das demandas, mas também da parte dos governantes, pois estes não podem deixar de satisfazer o maior número para fazerem prosperar sua empresa (o partido) [… e por isso] agora é atacada a democracia. A insídia é grave. […] O pensamento liberal continua a renascer, inclusive sob formas capazes de chocar pelo seu caráter regressivo, e de muitos pontos de vista ostensivamente reacionário (não se pode negar a intenção punitiva que assume a luta pelo desmantelamento do estado assistencial, dirigida contra os que quiseram alçar demais a cabeça) […].

*** A segunda classe de igualdade, chamada de igualdade social, diz respeito à demanda por atribuir “a mesma importância social para todos, isto é, o poder de resistir à discriminação social” (Sartori, TDR2. p. 118). Embora essa classe seja um pouco mais específica e restrita do que a desigualdade social discutida por Arendt, e apresentada no capítulo anterior, vale dizer ainda que ambos os autores parecem fazer sua avaliação a partir do mesmo critério, que Sartori (TDR2, p. 118. grifo do autor) vai definir como seu critério 2: “o mesmo para os iguais, isto é, partes iguais (benefícios ou ônus) para os iguais e, por conseguinte, partes diferentes para os que não são iguais”. Ao enfocar a igualdade a partir de “grupos diferentes” de iguais, tanto Arendt quanto Sartori abrem o campo para a definição de unidades tão variáveis quanto problemáticas: grupos políticos em oposição a grupos sociais, espaços políticos distintos de espaços sociais, igualdade política convivendo com desigualdade social. Ainda assim, as reivindicações igualitárias para que indivíduos possam resistir à discriminação social podem tratar, finalmente, não só de indivíduos discriminados, que parecem ter seus caminhos bloqueados por circunstâncias específicas e casuais (embora, muitas vezes, sistemáticas e estruturais). Temos um critério para avaliar a igualdade social direcionado “a segmentos (quando a igualdade é buscada dentro de subclasses) e também a blocos (onde a igualdade buscada é entre subclasses)”. E é isso que me parece ser um avanço de Sartori (TDR2, p. 121, n. 28) em relação à proposta de Arendt, a ser apresentada em

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definitivo na sessão 6.4. A limitação de Arendt, inicialmente, estaria no fato de que, para ela, a igualdade só é operada, como um princípio e como uma forma de compromisso mútuo, “no âmbito da prática política”, como avalia Jeremy Waldron (2010, p. 19. trad. minha)108, mas veremos que isso significa também que Arendt concebe a prática da igualdade sempre e somente dentro dos limites específicos de uma comunidade política e de suas próprias regras de participação. Embora possa parecer razoável aceitar as limitações territoriais e institucionais descritas por Arendt, a proposta de Sartori pode, com efeito, tanto permitir o acesso à justiça a subgrupos discriminados institucional ou estruturalmente quanto pode possibilitar o alcance de resultados socialmente iguais para grupos que estejam em desvantagem social na relação com outros grupos. De todo modo, para dar conta da multiplicação desses segmentos ou blocos e da variação das desigualdades que lhes afetam, Sartori (TDR2, p. 129) precisa incluir outros dois subcritérios, logicamente incompatíveis entre si, mas que contribuiriam reciprocamente para o funcionamento concreto desse sistema de compensações entre desigualdades: 2.1) a igualdade proporcional, que distribui “partes proporcionais em proporção a diferenças relevantes”, isto é, em proporção ao grau de desigualdade que ainda existe; 2.2) a igualdade equalizadora, que distribui “partes desproporcionais para compensar diferenças relevantes” com vistas a proporcionar benefícios ou meios desiguais para o alcance de situações finais iguais. Além da óbvia e complicada questão sobre quais diferenças são relevantes em dado momento de uma sociedade ou de um grupo específico, nos deparamos também com as contradições e complementações internas que havíamos mencionado. Uma longa e detalhada exposição sobre isso é feita pelo próprio Sartori (TDR2, pp. 127-133), mas ela pode ser sintetizada na ideia de um sistema dinâmico, que é histórica e socialmente reorganizado por meio de compensações recíprocas. Desse modo, tomarei como dados os argumentos do

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Em nota, na mesma página, Waldron vai ainda mais longe e afirma que “Ela [Arendt] estava muito menos interessada em – e na verdade temia a aplicação de – princípios de igualdade social e econômica”. Embora o alerta seja válido, veremos que Arendt oferece, de certo modo, não só brechas para ampliarmos a interpretação de seu conceito de igualdade política (que seria, seguramente, condicionado pela igualdade social de condições e, portanto, só em um sentido muito fraco independente dela), como também propostas bastante mais radicais para intervenções políticas na economia, no direito de propriedade e na redistribuição de domínios.

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teórico para poder avançar, sem mais detalhamentos, em nosso objetivo de expor sua sistematização e colocá-la em diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. Assim, constatamos que a igualdade social, o tipo 2, pode requerer, por vezes, oportunidades desiguais para equalizar diferenças e impedir discriminações, o que a mera postulação do critério 1 de tratamento igual não logrou fazer. Por isso, Sartori inclui em sua sistematização outros dois tipos de igualdade, focados especificamente nas oportunidades e, ao mesmo tempo, fazendo clara distinção entre três demandas específicas: a busca por acesso e reconhecimento igual, por pontos de partida iguais e por pontos de chegada iguais. *** O tipo 3 de igualdade apresenta, então, a igualdade de oportunidade como acesso igual, uma vez que seja justo corresponder reconhecimento igual a desempenho real igual e, portanto, como diz Sartori (TDR2, p. 118), garantir “as mesmas oportunidades de ascensão para todos, isto é, o poder de fazer valerem os próprios méritos”. Assim, é evidente que o critério que vai balizar esse tipo de igualdade é somente garantir a cada pessoa o reconhecimento por seu mérito, talento ou capacidade individuais. Embora para Sartori (TDR2, p. 119) esse tipo de igualdade esteja baseado na redistribuição de reconhecimento social e no reposicionamento da hierarquização do status social, ele a restringe novamente “à ausência de discriminação na entrada ou na promoção” em carreira profissional, de modo que o acesso igual esteja restrito àquelas capacidades que se mostram, desde já, iguais, ou seja, só se considera o momento do pleito ao acesso. Isso significa que as garantias de acesso igual ainda não permitem superar desigualdades que sejam produto de diferenças deficitárias e cumulativas em educação e saúde, por exemplo, que mantêm estruturalmente desigual o desenvolvimento de capacidades e potencialidades de indivíduos ao longo de suas trajetórias. Além disso, garantias de acesso igual fazem que esse tipo de igualdade aumente fortemente a competição real e efetiva pelas poucas oportunidades existentes – o que, embora seja, de fato, um benefício substantivo para quem não tinha acesso a essas oportunidades antes, transforma-se rapidamente em mais um obstáculo social, e agora tanto para o grupo anterior de privilegiados quanto para o novo e crescente grupo de “incluídos”. Por isso,

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Sartori (TDR2, pp. 119-120. grifos do autor) vai admitir que “essa versão de igualdade de oportunidade não equaliza de fato as circunstâncias”, uma vez que notemos que “os meios para o acesso igual são infinitamente menos difíceis e menos dispendiosos que os meios para equalizar as condições iniciais. A franquia do acesso não requer distribuições; os pontos de partida iguais requerem”. Quando o foco está sobre resultados democraticamente iguais, essa limitação fica bastante visível tanto na ampliação igualitária do acesso quanto na oferta de pontos de partida iguais, sobre as quais ainda incidirão diversos outros constrangimentos “remediáveis”. Como admite Sartori (TDR2, p. 126. grifo do autor), “resultados iguais requerem oportunidades desiguais e com certeza é uma falácia usar os resultados para avaliar a igualdade de oportunidades. Pontos de partida iguais não são pontos de chegada iguais, assim como não se oferece oportunidade alguma se o resultado for predeterminado”. E esse resultado é potencialmente predeterminado sempre e enquanto persistem aqueles constrangimentos “remediáveis” que mantém resultados desiguais em circunstâncias que poderiam ser tornadas mais iguais. Até esse terceiro tipo de igualdade, estávamos tratando simplesmente de reconhecer variações e readequações à noção de igualdade que foram complementando-se historicamente sob a ideia mais geral de “oportunidades iguais”. No entanto, um novo leque de oportunidades iguais só surge no horizonte de grupos discriminados ou em desvantagem social se considerarmos ainda outros tipos de igualdade: aquelas que tratam efetivamente da equalização das circunstâncias, ou seja, de se criar condições para que a igualdade também se manifeste em “circunstâncias iguais”. E isso vai exigir políticas de redistribuição tanto de recursos quanto de domínios de recursos (o que é, em linguagem mais clara e corrente, o mesmo que expropriação). 6.2. Da equalização de circunstâncias à redistribuição de domínios Passemos, então, ao tipo 4 de igualdade, que diz respeito à segunda igualdade de oportunidade. Agora poderemos enfocar, de fato, os pontos de partida iguais ou as mesmas condições iniciais, de modo que seja distribuído “um poder inicial adequado (condições

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materiais) para todos adquirirem a mesma qualificação e posição social dos demais”, como diz Sartori (TDR2, p. 118). O critério desse tipo de igualdade pode ser descrito como aquele antigo princípio marxiano: a cada qual segundo sua necessidade (básica ou não)109 e de cada um segundo sua capacidade (ou propriedade). Por isso, esse tipo de igualdade está baseado em redistribuições concretas e que podem depender, mais ainda, de intervenções incessantes do poder político, por vezes, tão temerárias quanto cruciais. Como explica Miguel (2016, p. 7), se “qualquer política redistributiva torna-se dependente da aceitação voluntária por parte dos controladores da riqueza, já que uma transferência compulsória para os mais pobres implica coerção externa”, então vê-se claramente como a demanda por esse tipo de igualdade pode ser um problema tanto para liberais, enquanto defensores intransigentes da não-coerção, como para democratas, enquanto defensores de mecanismos políticos de regulação que aceitam trocar “mais igualdade, ou maior igualdade, por menos liberdade – desde que não custe liberdade demais” 110. Mais especificamente, Sartori fala de mecanismos para redistribuir condições e recursos materiais – o que, é claro, pode e deve ser expandido para outros campos de recursos simbólicos, se estamos falando de igualdade social e política como distinta da igualdade econômica (embora possam ser complementares). Trata-se, portanto, de uma modalidade de busca da igualdade pela imposição temporária de uma “desigualdade compensatória”, isto é, de valer-se de “tratamentos desiguais corretivos” para diferenças que são percebidas, “em determinados momentos da história, como relevantes, ostensivamente injustas e, implicitamente, remediáveis”, como explica Sartori (TDR2, p. 121). A questão que Arendt (SR, p. 185) formula, no entanto, é prévia. Para ela, antes que se possa impor o que quer que seja ao âmbito político – ainda mais um tipo de “desigualdade compensatória”, como diz Sartori, em um espaço fundado justamente na prática da igualdade

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A esse respeito, cf. discussão que Sartori (TDR2, p. 125, n. 38) faz sobre a inviável elasticidade da noção rawlsiana de “bens primários definidos como direitos e recursos ‘que se pode presumir que os indivíduos de uma sociedade bem organizada precisem, sejam quais forem suas metas finais’”.

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Cf. SARTORI (TDR2, p. 116). A esse respeito, na sequência do mesmo trecho, ele vai dizer ainda que “[…] as igualdades do liberalismo terminam, falando em termos ideais, onde termina o objetivo de salvaguarda e fortalecimento da liberdade individual. […] A democracia moderna busca, portanto, um conjunto de ‘igualdades justas’ que não aparecem espontaneamente na esteira da liberdade. […] Quando damos esse último passo, vamos além da democracia liberal”.

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– é preciso saber se a própria estrutura do corpo político “tem uma base sólida capaz de resistir às palhaçadas frívolas de uma sociedade interessada no enriquecimento e no consumo, ou se cederá sob a pressão da riqueza”. Nesse sentido, vai complementar Arendt (SR, p. 186), “a riqueza e a pobreza são apenas duas faces da mesma moeda; as cadeias da necessidade não precisam ser de ferro: podem ser feitas de seda”. Em outras palavras, precisamos recolocar o problema de saber o quanto de liberdade a Democracia pode prescindir para que se alcance um patamar de “mais igualdade, ou maior igualdade”. Com seu polêmico elitismo demofóbico ressaltado, e ignorando que a proposta de desigualdade compensatória pode não ser uma questão de “desejo individual” ou de “miragens no deserto da miséria”, mas de simples “acordo mútuo”, tanto quanto sua proposta para a igualdade política precisa ser artificialmente pactuada e praticada, Arendt (ibid.) tem a resposta na ponta da língua: O desejo oculto dos pobres não é “A cada um de acordo com suas necessidades”, e sim “A cada um de acordo com seus desejos”. E, ainda que seja verdade que a liberdade chega apenas para aqueles cujas necessidades foram atendidas, também é verdade que ela foge daqueles que se dedicaram a viver para seus desejos”.

Assim, o que falta à noção de igualdade na teoria política arendtiana é compreender que esse tipo 4 de igualdade é postulado para corrigir a inadequação temporal que vimos surgir com a igualdade de acesso, limitada à oferta de oportunidades iguais para grupos que estejam, em dado momento, em condições iguais, mas que, por diversas razões – muitas delas arbitrariamente construídas e mantidas socialmente como privilégios para grupos específicos –, não podem valer-se de suas capacidades (presumidas iguais, nesse momento) da mesma maneira. Ambas oferecem especificamente “oportunidades iguais”, mas em momentos diferentes tanto das trajetórias individuais e quanto da institucionalização de um corpo político. Por isso, elas são classificadas como subdivisões do mesmo princípio. Mesmo assim, Sartori (TDR2, p. 120) afirma também que “sua conexão lógica requer que a igualdade das condições iniciais venha antes e a igualdade de acesso, depois”, ainda que vejamos, no cotidiano, que essa ordem aparece quase sempre invertida – isso porque, como já dissemos, “os meios para o acesso igual são infinitamente menos difíceis e menos dispendiosos”. Finalmente, vale pontuar ainda que, ao traçar limites entre a igualdade de reconhecimento (no acesso a determinadas oportunidades) e a igualdade de condições materiais (para os pontos de partida serem iguais), Sartori separa-se de abordagens como a rawlsiana que, de modo

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eufemístico, simplesmente embaçam as fronteiras entre essas alternativas, deixando de perceber que as alternativas nem sempre são complementares111. *** O quinto e último tipo de reivindicação igualitária faz referência à igualdade econômica, e é diferente do tipo 4 justamente porque trata de pontos de chegada iguais ou, antes, de condições finais iguais, isto é, das mesmas condições de domínio de recursos necessários não somente no início, mas também ao longo da trajetória individual, o que requer novamente um tratamento desigual (e, portanto, diferente do que se garante com o critério 1, mas ainda sim balizado por ele). Daí que o critério de equalização do tipo 4 de igualdade – a cada qual segundo sua necessidade e de cada um segundo sua capacidade ou propriedade – continua válido e deve ser, então, “estendido no tempo” para abarcar outras circunstâncias que não somente as “iniciais”. A esse respeito, e no sentido que mais especificamente abre caminho para um diálogo com o pensamento de Arendt, Sartori (TDR2, p. 126) vai dizer: […] existe uma extensa área de compensação entre o tratamento igual e os resultados iguais. Um tratamento igual pode se tornar ‘menos igual’ para favorecer um resultado ‘mais igual’; inversamente, podemos recorrer a resultados ‘imperfeitamente iguais’ para assegurar tratamentos ‘minimamente iguais’. Mas, se isso não for compreendido, e se a igualdade de resultados se tornar a única preocupação importante, então os fins igualitários destruirão o tratamento igualitário.

Embora haja distintas formas de se alcançar esse patamar, e algumas delas sejam perigosamente ameaçadoras à liberdade individual de alguns, é preciso dizer que, dentro do contexto democrático112, ela funciona como um tipo específico de equalização das 111

Em uma nota de rodapé, Sartori (TDR2, p. 120, n. 25) faz referência à “igualdade de oportunidade equitativa” de Rawls, que promoveria, de modo semelhante, “uma certa equalização dos pontos de partida”. No entanto, a explícita distinção que Sartori apresenta entre acesso e ponto de partida nos parece não só didaticamente mais clara, como politicamente mais útil.

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Reconhecendo ao mesmo tempo que esse tipo de igualdade está longe de ser alcançado por meios democráticos, e que é somente por meios democráticos que ele pode ser alcançado sem chocar-se frontalmente com a liberdade e com a pluralidade, Sartori (TDR2, pp. 118-119) apresenta dois argumentos para rebater possíveis críticas: “Em primeiro lugar, depois que a democracia estabelece-se como forma de governo, o conteúdo de suas políticas pode perfeitamente ter muito a ver com uma

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circunstâncias. Essas circunstâncias iguais só serão alcançadas por criteriosa expropriação ou, melhor, com a “redistribuição de domínios” específicos, de modo que haja correspondência entre aquilo que deve ser dividido para se alcançar circunstâncias iguais (por exemplo, a terra para produção e subsistência de todos) e o que precisará estar disponível para essa divisão (por exemplo, disponibilizar terras por meio da expropriação ou da “redistribuição do domínio da alocação” de terras privadas ou não disponíveis, pelo critério de “cumprir a função social em terra improdutiva”, ou algum outro equivalente). Mesmo essa tentativa, de redistribuição de riquezas ou de desenvolvimento da produtividade social, vai ser objeto de questionamento por Hannah Arendt (CH, pp. 68-78) na seção intitulada “A esfera privada: a propriedade”. Na verdade, ela também associa a propriedade à proteção das liberdades individuais, isto é, a “certas qualificações que, embora situadas na esfera privada, sempre foram tidas como absolutamente importantes para o corpo político” (CH, p. 70). Ao recuperar a distinção entre propriedade e riqueza, ela vai dizer que o acúmulo de riqueza, que antes significava somente a garantia dos meios de subsistência, na modernidade “teve início com a expropriação”, primeiro da propriedade privada dos pobres, depois dos meios de produção dos trabalhadores. Por isso, a distribuição de riqueza “não tratará com maior respeito a propriedade privada que a socialização do processo de acumulação” (CH, pp. 76-77). A conclusão, diz Arendt (CR, p. 183), é que “só instituições legais e políticas independentes das forças econômicas e seu automatismo podem controlar e equilibrar as monstruosas potencialidades inerentes a este processo” de expropriação. Será preciso, assim, fazer uma pequena digressão para nos lembrarmos como a propriedade se converteu, mesmo antes do capitalismo, na única força capaz de aparentemente criar as condições para a libertação, isto é, para a liberdade pessoal. Nesse sentido, Arendt (SR, p. 234) relembra que, até o século XX, “o que garantia a liberdade não era a lei enquanto tal, e sim a propriedade”. Mas, por um lado, não se pode ignorar que, no contexto atual de capitalismo transnacional e de migrações forçadas por guerras e perseguições políticas, é imprescindível que as leis existam para garantir a proteção das equalização econômica. Em segundo lugar, sabemos que a igualdade política pode existir separadamente da igualdade econômica; mas como saber que o inverso também é verdadeiro, isto é, que a conquista da igualdade na propriedade (ou na falta de propriedade) não tem relação com a igualdade política?”.

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pessoas, muito mais diretamente expostas às pressões do Estado ou da sociedade do que está a propriedade. Por outro lado, isso significaria satisfazer-se com a visão tenebrosa de “um povo livre sem propriedade”, ainda que parcialmente protegido pelas leis. Por isso, para Arendt (CR, p. 182, a questão não é tanto a abolição da propriedade privada – pelo contrário, nem ela acredita na “posse coletiva”, o que seria uma “contradição em termos”, nem ela defende qualquer tipo de “expropriação total”, quando “todas as salvaguardas políticas e legais da propriedade privada desaparecem”, que foi o que precisamente ocorreu no socialismo de Estado, e que ocorreria no capitalismo de Estado sem seu atual estado de Direito. Assim, a proposta de Arendt, bastante alinhada com a descrição de Sartori, não é restringir o direito e a liberdade de propriedade, senão que, ao contrário, garantir que todos possam, de fato, possuí-la – não é somente expropriação, mas equalização na distribuição de domínios. Em suas palavras: “nosso problema hoje não é como expropriar os expropriadores, mas antes, como arrumar as coisas de modo que as massas, despojadas pela sociedade industrial nos sistemas capitalista e socialista, possam recuperar a propriedade” (Arendt, CR, p. 184). E, para isso, seria necessário redefinir o conceito e o direito à propriedade, para saber “quanta propriedade e quantos direitos se pode permitir a uma pessoa possuir” (ibid.), para só então poder separar o poder econômico do poder político; o que é um modo de dizer que a Constituição do Estado (regulando o direito à propriedade) é, para Arendt, e em contraposição a Marx, a superestrutura que protege a liberdade. O tipo 5 de igualdade pretende, portanto e tão somente, garantir o controle do poder econômico pelo poder político, frente às demandas advindas dos outros vários tipos de igualdades. E pretende alcançar esse controle tanto por meio da distribuição do poder econômico quanto, em última medida, pela “dissolução” do poder econômico na esfera pública e política dos negócios comuns – o mesmo que Arendt faz ao distinguir a economia da política, e que Sartori faz ao requerer, como critério específico para avaliar esse tipo de igualdade, a ausência de (influência do) poder econômico como recurso, do ponto de vista político. No entanto, vale mencionar, ainda que brevemente, que ampliar a oferta de recursos, tornando-os públicos, para buscar compensações recíprocas entre desigualdades e para distribuir igualmente o poder econômico (visando anular sua capacidade coercitiva), não é o mesmo que estatizá-los: o público e comum não é, nem deve ser, sinônimo unívoco de estatal.

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A radicalização da igualdade que se ocupa eficazmente com a liberdade depende do modo de sua aplicação – e isso significa dizer que “depende, sobretudo, do tipo de senhor que nos tornou iguais”, como alerta Sartori (TDR2, p. 138). Nesse sentido, se tomadas essas palavras de Sartori (TDR2, p. 131) como uma advertência válida, podemos concluir que “se direitos iguais não nos concedem poder igual, dar ao Estado o poder de equalizar todo o poder pode resultar em aniquilação, não em aumento, de qualquer poder que possuíamos antes”. 6.3. Dois modos de aplicação da igualdade: Hobbes e Rousseau Como argumentam os jusnaturalistas, desde Locke, o direito natural de liberdade individual não depende de ser positivado para tornar inviolável o espaço privado. A igualdade, ao contrário, demanda a instituição de um estatuto jurídico-formal para garantir a autonomia individual. Isso fica mais claro se notarmos que “enquanto o princípio da liberdade não pode ser transformado – quando realmente operante – em seu oposto, o princípio da igualdade pode”, como afirma Sartori (TDR2, p. 139). A igualdade, como uma “condição facilitadora” da liberdade, pode servir precisamente para acabar com ambas, como havíamos dito, dependendo do modo de sua aplicação – ou do regente de seu contrato. Dois modos distintos, com regentes diferentes, foram oferecidos aos liberais modernos. Pela via hobbesiana, o contrato entre os indivíduos, a ser regido pelo Estado, asseguraria a igualdade (de proteção) mediante certa privação de liberdades, pois entendia-se que a situação de igualdade (diante do medo de morte) antes do contrato colocava a liberdade individual (isto é, a segurança) sob ameaça permanente. Pela via rousseauniana, o contrato reestabeleceria aquela igualdade natural (de decidir sobre si) que a sociedade foi paulatinamente corrompendo, e o faria pela ampliação da autonomia, que é a liberdade de obedecer somente a si próprio (e, é claro, à expressão da autonomia popular manifestada e regida somente pela via da vontade geral113). Para Rousseau, os maiores benefícios do

113

A esse respeito, Rousseau (Contrat, I, 6) vai dizer mais especificamente que é preciso “encontrar uma forma de associação que defenda e proteja todo membro seu, e onde o indivíduo, embora em uníssono com todos os outros, obedeça somente a si mesmo e continue livre como antes”. Citado em SARTORI (TDR2, p. 250).

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contrato, e que devem ser objeto de toda legislação, portanto, são justamente seus “dois objetivos principais, liberdade e igualdade”; ao que ele complementa afirmando que a igualdade deve ser o antecedente, e a liberdade, o consequente, uma vez que “a liberdade não pode existir sem ela [a igualdade]”114. De maneira semelhante a Rousseau115, Hannah Arendt (OP, p. 49) aponta para o fato de que o contrato, uma promessa política, é a afirmação de uma igualdade exterior aos homens, artificial portanto, e que é necessária para que se reduzam justamente as diferenças relativas, ou as desigualdades que surgem entre eles, promovendo uma pluralidade de “iguais em liberdade”: “isso é difícil nós compreendermos porque vinculamos à igualdade o conceito de justiça e não o de liberdade”. E nisso Tocqueville já havia acertado, quando falava à Assembleia Constituinte de 1848: “a democracia deseja igualdade na liberdade”116. Ao contrário do que se poderia esperar, é com essa exterioridade que Arendt se volta contra a visão limitada de uma democracia de expressão liberal (questionavelmente igualitária), em que todos partilhariam, como iguais, somente de uma justiça legal. Isso porque ela entende “iguais em liberdade” nos dois sentidos do termo: são iguais porque partilham da mesma liberdade (de conviver publicamente) e só convivem publicamente em igualdade porque são igualmente livres (no sentido de terem meios de libertação) para tanto. Tocqueville, por sua vez, com a expressão “igualdade na liberdade”, também contribui para assentar duplamente a igualdade, de modo explícito e acertado: tanto como terreno comum daqueles que agem quando agem com vistas à liberdade, quanto como princípio e base concreta necessária para que se possa agir livremente. Assim, se a igualdade certamente condiciona o horizonte da liberdade, não deveria determiná-lo previamente, pois a liberdade é o fim, e um “fim-em-si-mesmo”. Ao contrário, diria Tocqueville, a liberdade sem essa igualdade não é o que a democracia deseja – mas pode ser aquilo com que alguns liberais se satisfazem.

114

Rousseau. Contrat, II, 11. Citado em SARTORI (TDR2, p. 250).

115

O excelente artigo de Margaret Canovan (1983) oferece outras várias semelhanças entre Arendt e Rousseau, embora conclua que “os dois oferecem soluções fundamentalmente diferentes para o problema da pluralidade humana na política”.

116

Apud SARTORI (TDR2, p. 152).

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O problema, quando se pretende saber se essas visões de Arendt seriam efetivamente compatíveis com a Democracia, está presente no fato de que ela mesma exclui a justiça das considerações sobre a igualdade. Como vimos, Arendt trata da igualdade política (pela via da participação), mas não da igualdade social (ou do problema das desigualdades). Ainda assim, se aceitamos o enunciado de Bobbio (1986, pp. 159-160), para quem “a demonstração do nexo entre lei e liberdade positiva exige o apelo à doutrina democrática do estado, e a do nexo entre lei e liberdade negativa pode ser fundada apenas sobre os pressupostos da doutrina liberal”, temos de conceder a possibilidade de que Arendt extrapola os limites liberais e efetivamente se encontra ao lado da Democracia. Entretanto, no mesmo trecho em que Arendt (OP, p. 49) vai mirar-se no exemplo da isonomia grega para advogar que “todos têm o mesmo direito à atividade política”, ela vai ponderar: […] para a liberdade não se precisava de uma democracia igualitária no sentido moderno, mas sim de uma esfera limitada de maneira estreitamente oligárquica ou aristocrática, na qual pelo menos os poucos ou os melhores se relacionassem entre si como iguais entre iguais. Claro que essa igualdade não tem a mínima coisa a ver com justiça.

6.4. A concepção arendtiana de igualdade: autosseleção Assim, podemos considerar esses dois aspectos promovidos pela readequação da noção de Igualdade: o da ampliação da participação popular e o da luta contra as desigualdades. Ou, para continuar com os termos arendtianos: o aspecto da igualdade que promove o convívio público dos relativamente iguais, ampliando e aproximando suas liberdades; e o aspecto da igualdade que trata de assegurar os meios de libertação para reduzir as diferenças relativas e dar materialidade à noção de igualdade, sem a qual se reduz a própria liberdade política, essa que é de todos e de cada um. Com isso em mente, ficará mais fácil compreender a concepção arendtiana de igualdade, que finalmente podemos enunciar por completo, tomando a interpretação que Jeremy Waldron (2010, pp. 30-31) nos oferece: A igualdade opera no pensamento de Arendt como um princípio sobre participação política. Ele incorpora duas posições: i) A posição de que qualquer um pode participar das ações e discussões de uma república livre;

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ii) A posição de que as ações e discussões de uma república livre são possíveis somente entre iguais. Essas posições caminham juntas no pensamento de Arendt e elas devem ser entendidas à luz uma da outra. […] A posição i) é rigorosamente democrática em seu caráter. […] A posição ii) é mais republicana do que democrática em seu espírito. […] Aqueles que pensam em Arendt como uma elitista geralmente procuram dizer que ela nega a posição i). Mas não: a posição i) era uma parte integral de sua visão sobre a igualdade.

De todo modo, no que diz respeito tanto à via da participação quanto ao problema das desigualdades, o primeiro lugar-comum é taxar as propostas mais concretas de Hannah Arendt de “utópicas e nostálgicas”. Assim fazem Sheldon Wolin (1994 [1983]), Maurizio Passerin d’Entrèves (1994)117, Noel O’Sullivan (1979)118 e Magaret Canovan (1978), com a decepção frente ao que a última chama de “sonho de uma utopia elitista” (p. 23), que oscilaria até alcançar os extremos da “irresponsabilidade utópica” (p. 8). Outras críticas, até mesmo mais elogiosas, como as de John Sitton (1994, p. 307), chegam a afirmar que “Arendt, ela mesma, refere-se a suas propostas, com qualificações, como uma ‘utopia do povo’”. O descabido de afirmações desse tipo diz respeito menos à validade de sua interpretação e mais ao fato, acadêmica e intelectualmente relevante, de que a ideia faz referência, na verdade, a uma passagem em que Arendt (CR, p. 199) diz, literalmente: “se esse sistema [de conselhos] é uma pura utopia – de qualquer modo seria uma utopia do povo, não a utopia de teóricos ou ideólogos – eu não posso dizer”. 117

Em um sentido muito peculiar, d’Entrèves (1994, p. 28 e nota 17. trad. minha) argumenta em sua tese de doutoramento que, se “do ponto de vista do pensamento orientado-para-o-passado de Arendt, a modernidade aparece como um projeto deficiente para o qual é necessário redenção”, então esse tipo de pensamento, como indica o autor, deveria ser localizado naquilo que Seyla Benhabib (1986. pp. 327 e ss.) definiu como o polo da utopia, em que se busca uma transfiguração da herança cultural por meio de uma “reapropriação crítica do passado” (em oposição ao polo da norma, em que se busca a realização [fulfillment] do projeto da modernidade, ainda inacabado). Nesse sentido de Benhabib, é certo que o pensamento de Arendt, mesmo sem indicar explicitamente uma “ruptura radical com a constelação presente de valores”, não pretende dar continuidade ao projeto atual de modernidade, que não lhe aparece apenas como incompleto, mas em certa medida equivocado. Daí seu caráter utópico: por sua constante tentativa de “recuperar os tesouros perdidos do passado”, como indica corretamente d’Entrèves.

118

Contrariamente a O’Sullivan (1979), mas ainda de modo ambíguo, Seyla Benhabib (1990, pp. 170171; 190-191) argumenta que as considerações historiográficas de Arendt não podem ser vistas como uma nostálgica Verfallsgeschichte [história do declínio], mas como uma Begriffsgeschichte, uma história dos conceitos, embora tais considerações não estejam livres de aspectos de uma Ursprungsphilosophie [filosofia da origem], que “postula um estado ou tempo originais como privilegiados”.

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Ainda que voltemos à mesma dúvida sobre seu caráter utópico – isto é, de que não haveria lugar para sua perspectiva ou de que a visão de Arendt não encontraria terreno político assentado histórica e factualmente –, será sempre mais adequado manter-nos fiel a seu próprio pensamento, geralmente situado entre a desilusão crítica e a crença, diversas vezes reiterada, de que “a história constantemente nos confronta com o novo” (Arendt, CR. p. 181). Assim, o que provavelmente Arendt (CR, p. 201) responderia, uma vez mais, diante dessas críticas, aparece claramente em suas últimas palavras, bastante citadas, ao escritor alemão Adelbert Reif: “se você me perguntar que probabilidade existe de ele [um estado-conselho] ser realizado, então devo dizer: muito pouca, se tanto. E ainda, quem sabe, apesar de tudo – no encalço da próxima revolução”. Ao fim e ao cabo, o fato é que Arendt oferece, em diversas passagens, mas dentro dos limites e ambiguidades que ela mesma se impõe, alguns exemplos – às vezes romantizados, outras vezes apenas parcialmente positivos – do que seriam “experimentações” de seus princípios no que ela chama de “repúblicas elementares”: desde a Comuna de Paris, de 1871, dos conselhos de trabalhadores na Rússia de 1905 e 1917 e também na Hungria de 1956, das resistências francesa e dinamarquesa ao nazismo durante a Segunda Guerra Mundial, ao “sistema de autogerência” nas fábricas da Iugoslávia de 1970; da ambivalência pressentida no surgimento de “uma nova aristocracia” nos kibbutzim israelenses aos movimentos de Direitos Civis estadunidenses e aos protestos antiguerra, durante a guerra no Vietnã, terminada em 1975, passando pelos movimentos estudantis (como o Students for a Democratic Society, apesar de suas severas críticas aos desfechos violentos) e alcançando a oposição Tcheca ancorada no movimento Charter 77119. Em resumo, como explica YoungBruehl (1997, p. 216), Arendt via em cada uma e em todas essas experiências políticas “respostas aos problemas de uma sociedade de massas e à deterioração da nação-estado”, pois nessas experiências ela “desejava ver todos os elementos que formavam os fundamentos de sua teoria política: novas formas sociais, conselhos políticos locais, uma federação e cooperação internacional”. 119

Cf. ARENDT (CR, p. 186); ISAAC (1994, pp. 163-164); para a descrição de alguns desses exemplos, dentro do que Arendt chama de “surgimento e ressurgimento metódico do sistema de conselhos”, cf. ARENDT (SR, pp. 328-349) e ARENDT (TI); especificamente sobre seus comentários e críticas aos movimentos estudantis estadunidenses, cf. ARENDT (SV, p. 29 e ss., além do apêndice III e ss.).

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Assim, a noção-chave para que possamos, no próximo capítulo, investigar mais detalhadamente a proposta de Arendt para dar materialidade ao princípio da igualdade é autosseleção. É ela que nos permite articular alguma ligação entre a posição democrática, descrita por Jeremy Waldron (2010, p. 31) como “posição i)”, e a posição republicana de Hannah Arendt. Afinal, como definiu a própria Arendt (SR, p. 344), “a liberdade em sentido positivo só é possível entre iguais, e a própria igualdade não é de maneira nenhuma um princípio de validade universal, sendo, ela também, aplicável apenas com limitações e até dentro de certo limites espaciais”. E isso significa dizer, mais especificamente, que se no interior de uma determinada comunidade política a prática da igualdade deve ser pactuada mutuamente (participando dela somente aqueles que assentirem com esse acordo), então fora dessa comunidade – isto é, nos demais espaços sociais – o que vale é, em geral, o princípio da desigualdade, a luta por reconhecimento e a regra da autoridade convertida em padrões de organização hierárquicos, já que, para Arendt (SR, p. 348), […] os princípios de escolha dos melhores, tais como são sugeridos no sistema de conselhos, o princípio da autosseleção nos órgãos políticos de base e o princípio da confiança pessoal em sua transformação numa forma federativa de governo não são universalmente válidos; eles se aplicam apenas dentro da esfera política.

CAPÍTULO 7

ENTRE A IGUALDADE E A AUTORIDADE: ARENDT E O SISTEMA DE CONSELHOS

Térsites e Agamenon devem ser iguais. Homero, Ilíada.

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Se o governo representativo toma para si o mérito de ter ampliado a distribuição de domínios no que tange aos interesses da sociedade, é essa mesma forma de governo que ainda cria barreiras não-políticas à distribuição de domínios do poder político. Por isso, admitir a ideia de que a política seja obra de uma “aristocracia” depende do devido reconhecimento ao caráter peculiar com o qual Arendt trata o termo aristoi120 e ao modo como ela o utiliza para reforçar sua crítica à democracia representativa. Afinal, […] é fato que o governo representativo se tornou um governo oligárquico, mas não no sentido clássico de um governo de poucos para poucos; o que hoje chamamos de democracia é uma forma de governo em que poucos governam no interesse, pelo menos supostamente, da maioria. Esse governo é democrático no sentido em que o bem-estar popular e a felicidade privada são seus objetivos principais; mas pode ser chamado de oligárquico no sentido em que a felicidade pública e a liberdade pública voltaram a ser privilégios de uma minoria. Os defensores desse sistema, que atualmente é o sistema do Estado de bem-estar social, precisam negar, se são liberais e possuem convicções democráticas, a própria existência da felicidade e da liberdade públicas; precisam insistir que a política é um fardo e que seu fim não é político em si. (Arendt, SR. p. 337. grifos meus).

Como se vê, a questão da representação passa a ser crucial na era das revoluções e, para Arendt (SR, p. 299), ela “implica uma decisão sobre a própria dignidade da esfera política em si”. No contraste que ela propõe entre as revoluções francesa e americana, aparece a conhecida distinção entre “a representação como simples substituta da ação direta do povo”, que teria levado os revolucionários franceses a ocuparem-se com o bem-estar da população, imbuídos da certeza de que sabiam qual era a vontade daqueles impedidos, pela miséria, de tomar parte no governo, e a “representação como um domínio popularmente controlado dos representantes do povo sobre o povo” (ibid.). Esse segundo caso, mais próximo da realidade dos revolucionários estadunidenses, ainda mantinha, no entanto, “a velha distinção entre governante e governados que a revolução [americana] pretendera abolir com o estabelecimento de uma república” (Arendt, SR. p. 300). O preceito do igual direito de ser admitido na esfera pública e de participar do governo era novamente refreado e, como 120

Para a passagem em que Arendt se refere, especificamente, aos aristoi, cf. ARENDT (CH, p. 28). Para trechos em que esse conceito é contrastado com outras ideias, como do “gênio” e da “originalidade do artista”, cf. ARENDT (CH, pp. 222-224) e ARENDT (LFK, pp. 79-80); para a relação com a “igualdade” [isonomie] e a “liberdade”, cf. ARENDT (CH, pp. 41-42 e n. 21); para a relação com a “excelência” [areté] ou “mérito”, cf. ARENDT (CH, p. 58 e n. 39).

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consequência, não somente mantinha-se entre poucos o privilégio de influenciar e decidir sobre questões políticas, como corria-se o risco de fazer do nascente governo um “despotismo eletivo”, nas palavras de Jefferson121 – o que chamaríamos atualmente de “tirania da minoria”122. O aspecto mais importante dessa questão, para Arendt (SR, p. 216), está menos na defesa ingênua ou otimista da Democracia per se, pois concentra-se antes no problema de que para “preservar intacto o poder desses corpos [políticos] era [necessário] preservar intacta a fonte de sua autoridade”, isto é, de que a autoridade central depende da autoridade de suas instâncias subordinadas tanto como a autoridade dessas mesmas instâncias depende de que o poder seja entre elas distribuído. Sem essa possibilidade de agir e de resistir disseminadas, sem democratizar a participação nos assuntos de governo, mesmo uma das mais satisfatórias criações dos “pais fundadores” para dividir os poderes, e assim controlá-los – os mecanismos de pesos e contrapesos –, não poderia salvá-los daquela letargia popular que é “precursora da morte da liberdade pública”, como escreveu Jefferson (apud ARENDT [SR, p. 300]). Diante disso, a pluralização de instâncias de representação atenderia tanto à divisão e distribuição dos poderes, com a finalidade de melhor controlá-los e de proteger o governo do “despotismo eletivo” (seja da maioria ou da minoria), quanto à multiplicação das experiências de liberdade pública. Se parece, por um instante, que se fala de possibilidades utópicas ou de experiências idealistas, se chegamos a pensar no irrealizável de uma empreitada como essa, a ser concebida em um futuro distante ou inalcançável, vale nos determos na longa, porém preciosa passagem em que Arendt (SR, pp. 219-220) descreve não assentamentos humanos futuros, mas uma experiência política real, ocorrida na Nova Inglaterra seiscentista, cuja diferença não só lhe é “notável” como lhe parece “absolutamente decisiva”: […] os imigrantes britânicos insistiram desde o começo que se constituiriam em “corpos políticos civis”. Tais corpos, além disso, não eram concebidos como governos em sentido estrito; não implicavam um mando, nem a divisão do povo entre governantes e governados. […] Esses novos corpos políticos realmente eram ‘sociedades políticas’, e sua grande importância para o futuro consistia na 121

Em carta endereçada ao coronel Edward Carrington em 16 de janeiro de 1787, Jefferson escreve: “Se alguma vez [nosso povo] ficar desatento aos assuntos públicos, você e eu, o Congresso e as assembleias, os juízes e governadores, todos nós viraremos lobos” (apud ARENDT, SR. p. 301).

122

A esse respeito, cf. DAHL, 1989 [1956]; MIGUEL, 2016.

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formação de uma esfera política que gozava de poder e estava habilitada a reivindicar direitos sem possuir ou reivindicar soberania. A maior inovação revolucionária – a descoberta do princípio federativo para a fundação de repúblicas de grande extensão, feita por Madison – […] condicionava seus membros a uma ampliação constante, cujo princípio não era o expansionismo nem a conquista, e sim a combinação continuada de poderes.

Nesse contexto, fica mais clara a ênfase de Hannah Arendt (CH, p. 15) ao dizer que, se a coragem é a virtude política por excelência, e não a compaixão, da mesma forma então a pluralidade, e não a soberania, é “a condição – não apenas a conditio sine qua non, mas a conditio per quam – de toda a vida política”. A política depende da multiplicidade de interesses e opiniões e sua dignidade reside na relevância de sua atividade, em seu exercício como vida pública, isto é, no fato de que as pessoas estejam, com efeito, fazendo política quando agem, formam opiniões e manifestam interesses. No entanto, ao ancorar-se em um “realismo” surpreendentemente excludente – ainda que Arendt (SR, p. 338) alegue ser diferente do “atual ‘realismo’, [da] descrença nas capacidades políticas do povo” –, ela vai dizer a formação de uma elite política, encerrada em uma comunidade autosselecionada de iguais, é devido ao fato de que “o modo de vida político nunca foi e nunca será o modo de vida da maioria” (idem, p. 344); o que a leva a concluir que o problema não é a formação dessa elite política, ou seja, “não é o espírito revolucionário e sim a mentalidade democrática de uma sociedade igualitária que tende a negar a evidente incapacidade e flagrante desinteresse de grandes parcelas da população pelos assuntos políticos em si” (idem, pp. 346-347). Será mesmo que é o círculo vicioso entre desinteresse e incapacidade, em que um fomenta o outro, aquilo que afasta as pessoas da atividade política? Por que Arendt não chega a considerar a hipótese de que bloqueios estruturais e condicionantes sociais mantêm o campo político impenetrável a algumas das pessoas que, a despeito de sua vontade e de suas capacidades, elas veem, cotidianamente, disparidades surpreendentes nos acessos e oportunidades do mundo livre? Se os favores da fortuna não alcançam todos, é ainda mais preocupante que seus desfavores sejam tão relevantes a muitos cuja virtù lhes deveria ser imperativo suficiente para agir. Para Arendt (SR, p. 339), como vimos no capítulo anterior, a busca de respostas a essas questões deve concentrar-se, do ponto de vista político, não nos

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padrões de discriminação social, mas na forma como constituímos nossos mecanismos políticos de regulação, sem “tomar como dado assente que não existe e jamais existiu alternativa alguma ao sistema presente”. 7.1. A autosseleção da “elite política do povo” Com efeito, no raro momento em que se dispõe a apresentar uma forma institucional de “materialização” de seu pensamento sobre alternativas ao “sistema presente”, ela trata do sistema de conselhos. No entanto, mesmo aí, Hannah Arendt (SR, pp. 346-347) fala literalmente de uma “elite política do povo” – contrariamente à “elite surgida do povo”, existente no sistema partidário – cujos membros “não eram indicados de cima e apoiados em baixo”, como ocorre nos partidos políticos. Dessa forma, se a acepção usual para elite “implica uma forma oligárquica de governo, a dominação da maioria sob o domínio de uma minoria”, como define Arendt (SR, p. 345), então a “elite política do povo” deve ser compreendida como um corpo político de pessoas autosselecionadas – mas em princípio aberto a qualquer uma, vinda de qualquer lugar – a ser composto por aquelas que decidem não “autoexcluir-se” e que se ocupam (pois podem ocupar-se, é claro) da liberdade e da felicidade públicas. Essa aristocracia, portanto, constitui a si mesma com os “melhores politicamente”, aqueles “poucos, de todos os campos da vida, que têm gosto pela liberdade pública e não podem ser ‘felizes’ sem ela”, nas palavras de Arendt (SR, p. 349. ênfase minha). Em resumo, por assim dizer, o que está em jogo é justamente a aparente contradição entre o aristocratismo inerente à necessária virtude política para participar dos assuntos públicos, guiado pelo princípio da distinção, e a igualmente necessária multiplicação de espaços públicos em que essa discussão sobre a felicidade e a liberdade públicas – seu aspecto marcadamente democrático – possa ser levada a cabo em ambiente de pluralidade, evitando manter os espaços em que são partilhados tais “privilégios” sob o controle de uma minoria ou impenetráveis a quem neles quiser tomar parte. Por isso, pode-se argumentar que a preocupação de Arendt (SR, p. 348) não é tanto com a igualdade em relação à liberdade, como havíamos investigado no capítulo anterior; seu

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sistema de conselhos é proposto, como ela mesma diz, para oferecer “a solução para um dos problemas mais sérios de toda a política moderna, que não é como reconciliar liberdade e igualdade, e sim como reconciliar igualdade e autoridade”. E essa difícil reconciliação se dá porque a autoridade envolve um certo tipo de obediência voluntária, “na qual os homens retêm sua liberdade” (Arendt, EPF. p. 144), e, desse modo, tanto depende do reconhecimento e da legitimidade da hierarquia quanto mostra-se incompatível, segundo Arendt (EPF. p. 129), com a persuasão igualitária do processo político de argumentação. Entretanto, o fato de que há uma relação hierárquica em toda relação de autoridade não impossibilita a igualdade política. Isso significa que a autoridade da relação desigual não pode vir de sua naturalização – isto é, quando a própria relação é um elemento de obrigação, como nas relações despóticas de senhor-escravo e nos governos tirânicos/ditatoriais, ou quando a sujeição se dá antes da ordem, como na relação entre médico-paciente, como exemplifica Arendt (EPF, pp. 148-149) – ou ainda, no pior caso, quando sua força vem de imutáveis leis naturais ou históricas, cuja aplicação ideológica sempre serviu para sustentar ditaduras (militares, proletárias ou alguma outra), e não democracias. Ainda assim, se a autoridade política não pode ser absoluta nem natural, por outro lado, ela não pode ser temporária a ponto de impedir que o governo, assegurado por ela, realize sua tarefa de governar. Por isso, fragilidade dos conselhos sempre foi, apesar de sua reincidência, a inconstância de sua permanência. A solução dogmática para esse impasse – que Arendt tenta evitar a todo custo – foi atribuir à “classe oprimida” a força e a perenidade da necessidade histórica; foi transformar as relações de poder e de violência, estabelecidas entre as pessoas, em leis férreas da carência e da necessidade. Assim, se a autoridade, como vai dizer Arendt (SR, pp. 288-289), “se assenta na opinião”, isto é, na formação e na troca de opiniões contrárias, cuja mediação pode ser feita com a institucionalização de um “corpo de homens, escolhidos para este fim”, ela precisa dar origem a “uma instituição duradoura para a formação das posições públicas dentro da própria estrutura da república”. E, novamente, nos resta a tarefa de compreender como e por quais critérios se daria a constituição e a composição desse grupo. O fato de Arendt (SR, p. 287) nos relembrar que, no caso do governo norte-americano, a instituição que encarna essa autoridade, advinda do Senado romano, seja tanto a “câmara alta, inteiramente dedicada à

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representação da opinião”, quanto o Supremo Tribunal, “uma espécie de Assembleia Constituinte em sessão contínua” (idem, p. 258), não facilita a tarefa. O que podemos fazer é nos voltar à distinção conceitual que incorpora esse problema concreto: a distinção entre o poder político – em seu gesto fundacional – e a autoridade, cuja raiz etimológica latina augere indica que por meio dela é possível aumentar, fazer crescer e alargar as fundações de um corpo político. Nesse sentido, a ação conjunta, o poder de dar início a algo novo, a uma mudança desejável, poderia prolongar sua necessária “permanência” enquanto legitimar-se por apelos tanto ao princípio da ação – seus preceitos – como ao começo da ação – isto é, à comunidade política fundada nessa ação, que é exatamente o que confere autoridade ao poder. Por essa razão, como vai dizer Arendt (EPF, p. 134), a autoridade democrática não se assenta no poder “superior” do que manda, pois sabemos, do exemplo contrário, que “a origem da autoridade no governo autoritário é sempre uma força externa e superior a seu próprio poder”. Ainda sim, se a autoridade não deveria ser confundida com poder – que nela vai buscar a fonte de sua legitimidade e, com isso, muitas vezes o transcende – tampouco pode ser identificada à violência, pois deve prescindir, para ser efetiva, de meios externos de coerção ou de força (mesmo que seja, no limite, a “força do melhor argumento”). Embora a autoridade possa ser encarada como um dos elementos mais declaradamente antidemocráticos no pensamento arendtiano, por conta de seu aspecto intrinsecamente autoritário, não igualitário e anti-persuasivo, Celso Lafer (2005, p. 23) vai reforçar que é a autoridade que dá sentido ao contexto em que a ação política acrescenta “importância à fundação da comunidade política e vida às suas instituições”, isto é, para aquele momento em que, no acontecimento revolucionário ou no ato fundacional, institui-se um novo começo e, consequentemente, ergue-se o risco de que a violência constitutiva suprima a mesma liberdade que o legitimou. Assim, ele vai dizer que […] este fundamento é indispensável porque, num determinado momento, o processo político exige uma escolha entre diversos argumentos. Este momento, que é o momento do poder, resulta do agir em conjunto que, no entanto, requer, para ser estável, legitimidade. Esta legitimidade deriva do início da ação conjunta, cujo desdobramento assinala a existência de uma comunidade política. O início da ação conjunta – a fundação – confere autoridade ao poder. (Lafer, 2005. p. 23).

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Seguindo essa pista, proponho deixarmos de lado, temporariamente, a preocupação com a liberdade – assumindo, no entanto, que a abertura do espaço público-político à participação garantiria a existência da liberdade, como voltaremos a discutir no próximo capítulo. Assim, poderemos voltar ao pantanoso terreno em que Arendt novamente justifica seus argumentos com base em uma escalada progressiva de distinções, mas ainda concentrados em compreender a relação que ela estabelece entre igualdade e autoridade. Nesse sentido, ao descrever sua proposta de um “sistema de conselhos”, a ser constituído por “repúblicas elementares” federadas, Arendt (CR, p. 198) aponta que sua “vantagem é que o poder não vem nem de cima nem de baixo, mas é dirigido horizontalmente de modo que as unidades federadas refreiam e controlam mutuamente seus poderes”. Seu interesse está direcionado diretamente para uma forma peculiar de organização – “a única alternativa [ao Estado soberano] que já apareceu na história, e que tem reaparecido repetidas vezes” – o que lhe “parece corresponder e brotar da própria experiência da ação política” (idem, p. 199). Por isso ela chega a antever a possibilidade de que a teoria política tenha que mudar o conceito atual de Estado: “um estado-conselho deste tipo, para o qual o princípio de soberania fosse totalmente discrepante, seria admiravelmente ajustado às mais diversas espécies de federações, especialmente porque nele o poder poderia ser constituído horizontalmente e não verticalmente” (idem, p. 201). Daí a relevância do conceito de autoridade para o mundo moderno, em que ela foi perdida juntamente à crise da tradição: se o gosto pela liberdade pública fosse estimulado a cada nova experiência de fundação de um corpo político, haveria ainda duas outras dificuldades. Por um lado, precisaríamos atrelar à nossa atual tradição política a importância da manutenção de espaços públicos onde a liberdade possa ser vivida – é isso que chamamos, aqui, de alterar nossos padrões sociais de organização. Por outro lado, teríamos de encontrar meios de garantir a correspondente autoridade de cada nova experiência de fundação no âmbito mais geral da relação entre os diversos corpos políticos – para tanto, seriam necessários mecanismos políticos de regulação de conflitos mais adequados. E é por essa razão que insistimos, mais uma vez, que na Democracia há um condicionamento recíproco entre aqueles padrões e estes mecanismos. Celso Lafer (2005, p. 25) chama essa dupla e reciprocamente condicionada dificuldade de “a trágica ironia da tradição revolucionária

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moderna”. Por isso, nesse contexto, como vai complementar Lafer (ibid.), “as revoluções não conseguiram assegurar a felicidade pública: porque não mantiveram um espaço público onde a liberdade como virtuosidade pudesse permanentemente aparecer na coincidência entre ação, palavra viva e palavra vivida”. Há, ainda, outro problema: Arendt (SR, p. 347) não esconde que “essa forma de governo [o sistema de conselho], se se desenvolvesse por completo, voltaria a ter a forma de uma pirâmide, que, é claro, é a forma de um governo autoritário”123. Contudo, essa forma de organização se distinguiria de outras formas de autoritarismo ao assegurar – pelo critério de autosseleção e pelo princípio da confiança pessoal organizada, isto é, pela igualdade artificial e temporária entre seus membros e pela autoridade assumida por aqueles que se distinguem e são escolhidos como representantes – que essa autoridade não venha nem de cima (como nos governos autoritários) nem de baixo (como nos partidos, cujos representantes “apoiam-se” nas bases). Para Arendt (SR, p. 348), essa autoridade se teria gerado “a cada camada da pirâmide”, de modo que ela constituiria um espaço público distinto, mas interligado, por meio de uma miríade de pequenas organizações constituídas por pessoas de todos os campos da vida. A imagem que Arendt (CR, p. 200) nos oferece é a de uma organização tão simples quanto aquela em que seres humanos, “dez de nós”, estão “sentados em volta de uma mesa, cada um expressando sua opinião, cada um ouvindo a opinião dos outros”, quando “então uma formação racional de opiniões pode ter lugar através da troca de opiniões”. Assim, aquilo que parece justificar os rompantes de elogios, vindos de seus comentadores, ao democratismo radical de Arendt e, igualmente, seu possível “contraste gritante” frente aos elitistas, como argumentou Hansen (1993, p. 190), seria essa multiplicação de diferentes espaços públicos como locus de poder e agência, e não a questionável defesa de uma aristocracia autosselecionada e transformada em “uma elite política verdadeira”, como de fato disse Arendt (CR, p. 201). Apesar disso tudo, Arendt (SR, p. 346) não explica como a estrutura de autosseleção dos conselhos se diferenciaria do que ocorre com os partidos ao comentar a citação de

123

Longe de ser mero casuísmo, note que Arendt (EPF. pp. 135-136; 166) se utiliza da mesma imagem em “Que é Autoridade?”.

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Maurice Duverger (1954 [1951])124, de que “[…]‘a significação mais profunda dos partidos políticos’ consiste no fato de que eles fornecem ‘a estrutura necessária permitindo às massas que recrutem dentre elas mesmas suas próprias elites’”. Ela resvala, portanto, em dois diferentes problemas que essa específica crítica aos partidos políticos deixa em aberto. Por um lado, temos a questão da carreira política, que parece ser um problema exclusivo da estrutura e do modo de funcionamento dos partidos, quando fica evidente que “o problema, em outras palavras, é que a política passou a ser uma profissão e uma carreira, e portanto a ‘elite’ tem sido escolhida de acordo com padrões e critérios que são, em si mesmos, profundamente apolíticos”, como observa Arendt (SR, p. 347). Por outro lado, a nítida separação entre a atividade política e as tarefas administrativas parece servir imediatamente a esse propósito de diferenciar o que deveria ocorrer nos conselhos da rotina a que se acostumaram os partidos. Desse modo, Arendt (SR, p. 342) vai concluir: “o equívoco fatal dos conselhos sempre foi o problema que eles mesmos não distinguiam claramente entre a participação nos assuntos públicos e a administração ou gerenciamento das coisas no interesse público”. 7.2. A autosseleção do primus inter pares e o problema do carreirismo Para o primeiro problema, poderíamos supor que, tal como o sorteio se baseia em um critério explicitamente igualitário – em que qualquer um pode ser igualmente escolhido “pela sorte” e, com isso, “deixa de existir o político profissional”, como explica Miguel (2000, p. 78) –, a noção de autosseleção parte do princípio de que a existência de um espaço público em que essa seleção possa ser feita pelas pessoas que nele tomam parte garantiria o caráter público e político – e igualmente distribuído a todos – desse tipo de “autosseleção”. É esse simples – para não dizer simplório – critério de autosseleção que leva seus comentadores a afirmarem, talvez apressadamente, como dissemos, que “o conceito de uma elite política de Arendt está em contraste gritante com as chamadas teorias de elite da democracia” (Hansen, 1993. p. 190. trad. minha). Mas novamente vale dizer que, apesar de sua simplicidade questionável, o que Arendt procura ressaltar é que esses critérios de seleção não sejam “extra-

124

Cf. DUVERGER (1954 [1951], p. 426).

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políticos”. Não é possível saber, no entanto, quais seriam possíveis critérios “intra-políticos” – para além dos princípios da autosseleção nas bases e do princípio da confiança pessoal organizada em uma forma federativa de pactos e promessas recíprocas – ademais do procedimento, sugerido por Arendt (SR, p. 347) como recorrente na história dos conselhos, de que “os membros do conselho então escolhiam seus delegados para o conselho logo acima, e esses delegados também eram escolhidos por seus pares [recebendo um voto especial de confiança], sem estar sujeitos a qualquer pressão de cima ou de baixo”125. Tampouco é evidente como se poderia definir e diferir a característica “intra” ou “extra” política desses critérios. Será “extra-político” todo critério definido ex ante à interação? Embora Arendt (SR, p. 286) dê clara ênfase à discussão de opiniões e ideias e à persuasão, e denuncie “a incompatibilidade decisiva entre o domínio de uma ‘opinião pública’ unânime e a liberdade de opinião”, se assumimos sua visão de “autosseleção” e de “espaço de aparecimento” e então aceitamos o fato de que é somente por meio de sua “presença” que as pessoas podem efetivamente dialogar e partilhar opiniões e manifestar seus interesses coletivos, não é difícil supor que Arendt pudesse aproximar-se do que Anne Phillips (1995) chamou de “política de presença”, ou seja, da ideia de que “grupos minoritários precisam estar representados fisicamente para que seus interesses sejam levados em conta”, com explica Miguel (2000, p. 70). Para Phillips (1995, p. 1. trad. minha), no entanto, está claro que “a necessidade de presença física dos grupos excluídos nos locais de decisão, […] se traduz frequentemente na adoção de cotas eleitorais”. Seria possível então afirmar algo sobre a posição de Arendt diante da adoção de uma política afirmativa como um dos critérios possíveis de autosseleção, para que a igualdade presumida seja efetivamente garantida com a autoridade necessária?126 Ou Arendt adotaria uma postura semelhante à dos críticos atuais de tais políticas afirmativas, argumentando que, embora sua pretensão seja a de garantir a igualdade entre diferentes grupos sociais justamente equalizando suas diferenças específicas,

125

Outra menção, muito semelhante, sobre o procedimento de escolha dos representantes, encontra-se em ARENDT (CR, p. 200): “Lá [no conselho de base] também ficará claro qual de nós é o melhor indicado para apresentar nossos pontos de vista diante do conselho mais alto seguinte, onde nossos pontos de vista serão esclarecidos pela influência de outros pontos de vista, revisados, ou seus erros demonstrados”.

126

A esse respeito, cf. os comentários já feitos na nota 95.

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esse tipo de critério não somente é “extra-político” – e deveria ser entendido como um critério para resolver uma “questão social”, e não política –, como interfere diretamente em direitos individuais fundamentais? De todo modo, se não é possível conceber as políticas afirmativas como parte, mesmo que temporária, do esquema mais geral em que o sistema de conselhos é apresentado, por Arendt, como uma alternativa ao sistema multipartidário, a questão do carreirismo, por ela mesma colocada, continua em aberto e não encontramos na teoria política arendtiana uma forma adequada ou minimamente satisfatória para enfrentá-la de fato. A única referência em Arendt (RJ, p. 273) que ainda poderia nos auxiliar a compreender essas questões indica que as qualidades que são valorizadas politicamente, “longe de serem especialidades, elas são precisamente aquelas distinções a que todos os votantes igualmente aspiram – não necessariamente como seres humanos, mas como cidadãos e seres políticos”. É isso que Arendt chama de valor político. Sendo diferente do valor social, o valor político do representante não só mantém sua validade restrita ao âmbito públicopolítico – porquanto seja reconhecido inter pares, isto é, entre aqueles homens livres e, por isso, iguais – como depende, ao mesmo tempo, da virtù da iniciativa individual, para lançar o homem à ação, e da fortuna de que ele seja acompanhado por outros127. Com isso, ele pode então ser escolhido pelos demais como primus e, portanto, digno de autoridade, isto é, de receber apoio e de, com esse apoio vindo de outros, acrescentar vida às instituições. A expressão primus inter pares parece ser a única fórmula que nos permitiria interligar, como uma síntese, todo o argumento arendtiano até aqui: i) a virtude política do pária e a operação de seu princípio de distinção na escolha dos melhores entre seus iguais; ii) o processo de autosseleção “a cada camada da pirâmide”, que confere autoridade aos representantes por meio de contratos horizontais; e iii) a institucionalização da confiança pessoal e do respeito mútuo128, que Aristóteles chamava de philia politike [amizade política], em uma forma federativa de governo. Nesse sentido, portanto, o valor político da virtude dos 127

Como enfatiza Arendt (EPF, p. 182), a virtù que Maquiavel insistiu ser “a qualidade humana especificamente política”, é uma resposta do homem às possibilidades de um mundo que se abre a ele, mas “não possui a conotação de caráter moral da virtus romana, e tampouco a de uma excelência moralmente neutra à maneira da areté grega”, podendo ser mais bem traduzida como virtuosidade, tal qual sugere Lafer (2005, p. 21).

128

Cf. ARENDT (CH, pp. 254-255).

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aristói, dos melhores, se mostraria bastante distinto da atribuição, possivelmente elitista e historicamente construída, de valores sociais positivos dados a determinados grupos que estão no centro do campo social. No entanto, o que ainda há de problemático nesse foco individual-particularista do primus inter pares é que ele oblitera certas desigualdades que atingem grupos específicos ou que não se manifestam entre indivíduos no interior desses grupos. Assim, ficam invisibilizadas até mesmo outras desigualdades que dependem de articulação coletiva para serem compreendidas e traduzidas em apelos por direitos democráticos, para usar novamente a expressão de Mouffe (2005 [1993], p. 19. trad. minha), ou seja, para serem compreendidas por meio daqueles “direitos que, ainda que associados ao indivíduo, só podem ser exercidos coletivamente e que pressupõem a existência de direitos iguais (ou igualmente equivalentes) para outros”. Além disso, a perspectiva de que há um “caminho individual” com barreiras eventuais, que podem ser removidas caso a caso, nos faz deixar de lado os demais problemas da igualdade, já apresentados no capítulo anterior em diálogo com Giovanni Sartori: o problema de se desconsiderar “pontos de partida” diferentes – e relevantes, quando eles impõem sérias limitações nas opções de autorrealização disponíveis ou mesmo nas possibilidades efetivas de reconhecimento social da igualdade; o problema de não se cogitar a demanda por tratamento diferente para obstáculos diferentes nas trajetórias, o que é o único modo de, legitimamente, reconhecer situações finais mais iguais; e, finalmente, o problema de se afirmar a necessidade de tratamento igual para o que quer que se entenda como “sucesso”, validando a noção, desprezada até mesmo por Rawls (1997 [1971]), de que o mérito é derivado somente de expressões individuais de determinadas capacidades129. Sem nos permitir um tratamento adequado a cada um desses problemas, o pensamento de Arendt parece, então, ser de pouco auxílio no que diz respeito a gerar ideias e 129

John Rawls (1997, §77) propõe a definição de uma “área de capacidades” na qual está inserida uma propriedade de extensão [range property] (em contraste aos variados graus em que alguém possui uma scalar property) para fundamentar sua noção de igualdade. Qualquer pessoa que seja capaz (não importa em que grau) de adotar uma concepção sobre seu próprio bem e um senso de justiça é um pessoa ética e, portanto, deve ter direito à justiça igual e liberdade igual. Assim, a “justiça como equidade” de Rawls nega que as liberdades e os direitos básicos devam variar de acordo com o mérito advindo do exercício de capacidades individuais (as vantagens advindas daí seriam distribuídas, na verdade, de acordo com o princípio da diferença). Para outras discussões a esse respeito, cf. também a nota 138.

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propostas para reduzir as desigualdades sociais. Por isso, poderíamos parafrasear o que Sartori (TDR2, pp. 115-116) escreveu, em referência ao liberalismo, e afirmar que, em relação à igualdade social, há pouca dúvida de que a teoria política de Hannah Arendt preocupa-se muito mais com a liberdade política do que com os problemas de classe e status. 7.3. A “questão social”: entre a atividade política e as tarefas administrativas Precisamos voltar à questão da distinção entre atividade política e tarefas administrativas, pois não é evidente que a tarefa de escolher os membros de um conselho e os representantes que passam ao conselho superior seja, por si só, uma tarefa política – a depender somente do discurso e da persuasão – e, ao mesmo tempo, uma atividade democrática – isto é, que possa de fato ocorrer a partir de uma experiência, partilhada entre seus partícipes, de igualdade nos assuntos públicos. Tomando novamente como comparativo a situação de sorteio, vemos que há nele um imprescindível elemento tecnológico – a aleatoriedade – e uma regra bem definida – a sorte pode chegar igualmente a todos porque não depende da escolha de ninguém. No entanto, na proposta do “sistema de conselhos” não ficam claros quais seriam os tais critérios e padrões que poderiam contribuir para que a autosseleção não seja mera tarefa administrativa de escolha de representantes, condicionada por critérios extra-políticos, como aspectos econômicos. Ou seja, não é possível saber quais características peculiares os conselhos teriam, ou a que tipo de atividades deveriam dedicar-se, para não serem corrompidos como os partidos políticos – os quais, na visão de Arendt (SV, p. 39), “‘representam’ não os filiados, mas seus funcionários”. Afinal, se a oligarquização é um problema institucional que parece acometer quaisquer organizações – segundo a generalização proposta por Michels (1982 [1911]), que ficou conhecida como sua “lei de ferro” – então o problema das barreiras sociais e estruturais que dificultam o acesso e a presença de grupos nas instâncias de participação e representação não parece ser menos generalizável. De todo modo, quando Arendt (SR, p. 100) fala sobre as tarefas administrativas como distintas das atividades propriamente políticas, ela se refere, mais especificamente,

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àqueles empreendimentos que devem ser realizados por meios técnicos, “pois é evidente que a tecnologia, em contraste com a socialização, é politicamente neutra; ela não prescreve nem exclui nenhuma forma específica de governo”. E, mesmo que tais empreendimentos dependam da persuasão para que sejam definidos previamente seus parâmetros e propósitos, e que se sustentem em decisões majoritárias quando há questionamento sobre sua legitimidade ou relevância, sua implementação requer, basicamente, capacidade técnica instalada, por assim dizer. Nesse contraste, fica claro que a atividade política, cuja finalidade é a instauração e a manutenção de espaços em que a liberdade de participar da condução dos negócios públicos possa ser exercitada, está associada então à escolha de uma forma de governo – o que, desde os Antigos, pode ser sintetizado com a questão: seremos governados por muitos, por poucos ou por um só? E, ao se optar pelo governo dos muitos, como é o caso da Democracia, o que entra em jogo nessa atividade política é o fato de que as condições para a emancipação e participação da multidão precisam ser asseguradas. É nesse sentido que Arendt (SR, pp. 96) reconhece que, “se Marx ajudou a libertar os pobres, foi […] por persuadi-los de que a pobreza em si é um fenômeno político, não natural, resultado da violência e da violação, e não da escassez”. Assim, diferentemente do que ocorre com muitas das interpretações equivocadas sobre a crítica de Arendt a Marx, o problema que a autora apresenta não é tanto a inevitável utilização marxista de categorias econômicas no plano político ou, de outra forma, como fez sabiamente o jovem Marx, a introdução de um elemento político – a exploração, realizada por uma “classe dominante” – na ciência econômica, inaugurando a economia política 130. Em ambas as relações, ainda se pode perceber uma clara distinção entre o que é do âmbito político e o que é fundamentalmente econômico. A esse respeito, aliás, Arendt (SR, p. 97) é bastante

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Contrariamente, no entanto, do que aparece nos escritos tardios de Marx (depois do Manifesto comunista), Arendt (SR, p. 96) seguirá entendendo por economia política “uma economia baseada no poder político e, portanto, passível de ser subvertida por uma organização política e por meios revolucionários”. O que está em jogo nesse ponto é o fato de Marx ter outorgado à economia, como infraestrutura, a posição privilegiada onde se realizariam as transformações sociais e onde o homem poderia resgatar sua dignidade, perdida com a exploração; para Arendt, ao contrário, esse locus é a política, pelo ato de organizar corpos políticos, de criar constituições, de garantir o dissenso e a oposição, e de fundar instituições duradouras que regulem o processo.

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direta quando, ao confirmar o mérito da intenção do jovem Marx, diz que “se a condição de miséria […] devia gerar revoluções em vez de conduzi-las à ruína, era preciso traduzir as condições econômicas em fatores políticos e explicá-las em termos políticos”, ou seja, em termos de opressão, exploração e alienação. O grave problema, portanto, é que ocorreu justamente o inverso: redefiniram-se as questões sociais e o impulso político das revoluções – isto é, o princípio da liberdade – em termos puramente econômicos, ou seja, em termos de escassez e de necessidade, que possuem uma força ainda mais coercitiva que a violência. Mesmo reconhecendo o que Marx havia feito originalmente com a relação entre violência e necessidade, como vimos na sessão 3.6. – Marx desmascarou “a necessidade como violência perpetrada pelos homens” – Arendt (SR, p. 99) vai dizer que essa relação “simplifica as questões a ponto de tornar supérflua uma efetiva distinção entre violência e necessidade”, que foi o que, para ela, finalmente “o levou a uma rendição efetiva da liberdade à necessidade”. *** Se uma parte da questão que envolve a igualdade social – isto é, a existência da pobreza e da condição de miséria – é certamente associada ao fator econômico da escassez e, portanto, precisa ser resolvida com a modificação nas condições sociais de produção, uma outra parte – a invisibilidade que mantém os pobres na obscuridade, fora do espaço público – é uma questão essencialmente política e se traduz, sob a decisão por uma forma de governo dos muitos, não somente na possibilidade de eles terem seus interesses representados ou de escolherem seus representantes, mas também na efetivação de sua influência social e política, e na partilha de opiniões sobre valores e necessidades, inclusive econômicas – questão essa que discutiremos no próximo capítulo. Por hora, basta dizer que é obvio que há uma relação entre essas duas partes, pois se a primeira trata do aspecto econômico, ela também depende de direitos e incentivos políticos para incidir nas decisões sobre a propriedade e sobre a redistribuição de domínios; e se a segunda parte diz respeito à capacidade de influência política, ela seguramente depende das condições econômicas e sociais que emancipam a capacidade de agir e influenciar. Mas sem direitos políticos e civis que permitam a condução apropriada das decisões públicas no governo dos muitos, e sem incentivos políticos para a

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presença de grupos excluídos nas arenas públicas, isto é, sem liberdade e sem pluralidade, a emancipação econômica ainda se traduz somente em liberdade pessoal, não em liberdade política. Em suma, a relação entre as condições econômicas e políticas pode ser definida, a partir da proposta de Sartori que expusemos anteriormente, como uma equalização na distribuição de domínios. Contudo, se é relevante notar as relações entre elas, é somente com a distinção entre as demandas econômicas e políticas que se pode evitar a rendição de uma à outra, quando uma delas se torna supérflua – o que de fato aconteceu tanto com Robespierre quanto com Marx. Assim, é emblemático que Arendt (SR, pp. 99-100) exemplifique a importância dessa distinção explicando o caso em que “mesmo Lênin, a despeito de seu marxismo dogmático, […] ao pedido de resumir numa frase a essência e os objetivos da Revolução de Outubro, respondeu com uma fórmula curiosa, esquecida há muito tempo: ‘Eletrificação + sovietes’”. Que Lênin tenha mudado de ideia em favor do Partido Bolchevique ao longo do curso da história – colocando o partido no centro tanto do desenvolvimento econômico quanto da forma política de governo – isso não altera o mais substancial do argumento, pelo contrário. Nessa fórmula leninista para as atividades do sistema de conselhos, relembra Arendt (SR, p. 100), […] temos uma separação totalmente não marxista entre economia e política, uma diferenciação entre a eletrificação como solução para o problema social da Rússia e o sistema de sovietes como novo corpo político, que surgira durante a revolução fora de qualquer organização partidária. O que é talvez ainda mais surpreendente num marxista é a sugestão de que o problema da pobreza não se resolveria pela socialização e pelo socialismo, e sim por meios técnicos; […] a libertação da calamidade da pobreza ocorreria por meio da eletrificação, mas o surgimento da liberdade se daria por meio de uma nova forma de governo, os sovietes.

De todo modo, imbricada nessa mudança em favor do Partido Bolchevique, está a ideia de que não somente liberdade e pobreza são incompatíveis – o que, em seus graus extremos, é uma realidade concreta – como está também a ideia, mais importante justamente porque menos correta, de que “um povo incompetente num país atrasado não conseguiria vencer a pobreza em condições de liberdade política, não conseguiria, em todo caso, derrotar a pobreza e simultaneamente instaurar a liberdade”, segundo interpretação de Arendt (SR, pp. 100-101) sobre a visão de Lênin para a mudança de rumos. O contra-argumento mais

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elegante, pela simplicidade e força, a fazer frente a essa concepção – de que é preciso primeiro alcançar a igualdade social para que haja liberdade política, ou de que a libertação, sendo condição para a liberdade131, faz que a liberdade seja o efeito imediato da emancipação – está descrito nas palavras de Amartya Sen (1999, p. 4. trad. minha): No decorrer do século XIX, teóricos da democracia achavam bastante natural discutir se um ou outro país estava ‘pronto para a democracia’ [fit for democracy]. Este pensamento mudou somente no século XX, com o reconhecimento de que a própria questão estava errada: um país não precisa ser visto como pronto para a democracia; ao invés disso, deve se tornar pronto por meio da democracia [fit through democracy]. Essa é uma mudança importante.

Acreditando que Arendt não discordaria dessa proposição de Sen, poderíamos dizer que, de fato, não é tanto a defesa de um elitismo demofóbico, mas a própria crença cega na força do estatuto da igualdade política o que impede Arendt de considerar os bloqueios estruturais e sistêmicos que atuam, não necessariamente contra a agência dos homens, mas às vezes a despeito de suas intenções explícitas e de suas capacidades inerentes – o que, de qualquer maneira, não faz de Arendt imediatamente uma anti-democrata. Para ela, como para Sen, é a partilha igualitária garantida pelos incentivos políticos o que torna os direitos e liberdades políticos tão fundamentais132. Seu apelo, portanto, dirige-se à importância crucial do papel protetor que as liberdades políticas assumem – em uma Democracia mais radicalmente do que em qualquer outra forma de governo – quando esse papel é especialmente necessário, isto é, quando as condições econômicas de emancipação são refreadas. Nesses casos, o que se perde de mais fundamental não é tanto a igualdade social, mesmo que seu abismo seja assustadoramente alargado, mas é a própria voz dos despossuídos e explorados – relegada ao espaço privado, em que ainda há certa liberdade pessoal – o que deixa de aparecer no espaço público e, por

131

A esse respeito, Arendt (VE, p. 476) é bastante específica quando diz que “a liberação, ainda que seja a conditio sine qua non da liberdade, jamais é a conditio per quam que causa a liberdade”.

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A esse respeito, Amartya Sen (1999) explica que “muitos tecnocratas da economia recomendam o uso de incentivos econômicos (que o sistema de mercado provê), enquanto ignoram incentivos políticos (que sistemas democráticos poderiam garantir). Isso significa optar por um conjunto de regras básicas profundamente desequilibrado. […] O peso da contração [econômica] não é largamente partilhado, mas permitido que caia sobre aqueles — os desempregados ou seu equivalente economicamente — que menos podem suportá-lo”.

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isso, deixa de ser considerada nas decisões políticas, ou seja, deixa de ter, por assim dizer, a autoridade necessária para reequilibrar a balança da justiça.

CAPÍTULO 8

ENTRE A FUNDAÇÃO DA LIBERDADE E O TRABALHO DE LIBERTAÇÃO

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Remontando o problema aristotélico de definir a democracia como o governo da maioria e, especificamente, dos pobres, Hannah Arendt é levada a argumentar que a era moderna – e, de modo exemplar, a Revolução Francesa – trouxe a “questão social” para a política. Para ela, foi nesse momento que o espaço público foi invadido com o que lhe parecem ser questões próprias do âmbito privado ou, em outras palavras, que a política tornou-se refém da economia e que o espaço da liberdade viu-se cerceado pelo regime da necessidade. E, como ressalta Jonathan Schell (SR, p. 16) na apresentação de Sobre a Revolução, para Arendt essa invasão ocorreu “em uma tentativa equivocada […] de utilizar a revolução para solucionar ‘a questão social’, isto é, para aliviar a miséria dos pobres, cuja terrível necessidade tem a força de empurrar a revolução ‘para sua ruína’”. No entanto, ao contrário do que dizia Aristóteles sobre a saudável aliança entre ricos e pobres, que poderia culminar em uma certa mediania para equilibrar as disputas de interesses de classe no interior de uma Democracia, o problema da “questão social” tem raízes que alcançam, em Arendt, uma até então justificada preocupação com o que ela chamou de “aliança temporária entre a ralé e a elite”133 – conjunção que ela considerava uma precondição para movimentos totalitários – e que poderia facilmente transformar a Democracia em uma Oclocracia, isto é, no governo das massas. Sem dúvida alguma, esse é um ponto espinhoso a ser enfrentado para não descartar logo de saída uma aproximação de Arendt à Democracia, pois qualquer teórico político que não esteja comprometido com o “governo do povo” – e a igualdade de condições impõe profundos rearranjos na estrutura social para proporcionar aos pobres a atenção a necessidades que lhes garantam a cidadania prevista para participar do governo – não poderia ser considerado, estritamente falando, um democrata. Será preciso considerar essa questão sobre seus diversos prismas, não somente para compreender sua complexidade, mas também para melhor analisar em que sentidos o argumento de Arendt sobre a exclusão da “questão social” da esfera pública e política a afastaria ou a aproximaria de uma política democrática e emancipatória. Só com essas várias digressões poderemos, enfim, traçar um perfil mais

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Cf. ARENDT (OT, pp. 457-473); YOUNG-BRUEHL (1997, pp. 209-210).

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adequado para compreender que a “questão social” é efetivamente um problema não só no pensamento arendtiano frente à Democracia, mas no interior da própria teoria democrática. A primeira tarefa, portanto, é sistematizar algumas das distinções que a própria autora – uma “teórica das distinções”, como disse Ann Lane (1997) – elabora em seu estudo sobre o político e sobre a liberdade como o sentido da política, sem deixar de ter em vista que o fio que separa e distingue cada conceito de seu semelhante é o mesmo fio que os conecta, que os relaciona. Afinal, como avalia acertadamente André Duarte: “a própria exigência arendtiana de estabelecer distinções implica o reconhecimento de que, na vida política cotidiana, o limite jamais é absoluto, mas sempre tênue e sujeito à contaminação e ao deslocamento” (SV, p. 134). Sua preocupação com a privatização da esfera pública e com a massificação de interesses, isto é, com a “alienação do mundo”, já nos levou, no capítulo 5, a investigar suas críticas aos parvenus – indivíduos ou grupos socialmente ambiciosos, sejam pobres ou ricos, que habitam o “reino social” e não o “reino político”, mas cujas ações são intencionalmente direcionadas para manipular interesses e grupos políticos em seu proveito. Tomados em seu conjunto, tais argumentos nos ajudaram a entender o viés aristocrático presente na concepção política de Arendt como fundado em um princípio de distinção essencialmente político, e por isso ambiguamente igualitário, que combinaria a coragem de agir com a inocência preservada, para “quebrar as barreiras do que denominamos sociedade civilizada”, com diz Young-Bruehl (1997, p. 192), sendo finalmente corporificada na figura do “pária politicamente consciente”. Mas há outro modo, menos metafórico e filosófico, e mais adequado a nossos fins, de como se pode entender a distinção que apareceu naquele complexo jogo de palavras entre espontaneidade e coragem, entre igualdade e distinção. Ele pode ser explicado por meio da separação entre aristocratas e democratas – que Arendt (SR, p. 284) vai curiosamente dizer que “não existia antes das revoluções” modernas. O fato de que as democracias atualmente existentes sejam descritas como uma competição entre elites, fadadas a terem de conviver com a oligarquização de suas instituições, e destinadas à luta perpétua contra as desigualdades políticas e sociais que ela mesma parece engendrar sub-repticiamente, nada disso faz que Democracia seja, nem possa ser, confundida com Aristocracia.

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Desde de que Aristóteles argumentou em favor de uma República com constituição mista – em que os interesses dos pobres deveriam ser levados em consideração, em que as decisões deveriam ser tomadas pela maioria do povo com vistas ao interesse de todos, e em que as virtudes cívicas dos cidadãos que se empenhassem em um tal governo levariam não só à formulação de melhores leis, mas também a julgamentos mais justos –, desde então não houve nada que abalasse tais convicções políticas dentro do campo das teorias “fortes” da democracia134. Não sem razão, Aristóteles concluía que esse tipo de República se aproximaria mais da Democracia (e não da Oligarquia), por ser necessariamente o governo dos muitos. Mas, sendo esses muitos governados pelas leis, e por boas e justas leis que balanceariam os interesses diferentes de ricos e pobres, uma tal forma de governo teria mais chances de não cair sob o domínio despótico da maioria (ou de seus demagogos), risco esse que afligira até então – e nos dois milênios seguintes – todos aqueles que se ocuparam da filosofia política e que nela se entranhou sob a forma do que chamamos aqui de demofobia. Nesse sentido, a ideia de Arendt sobre a possibilidade de indistinção entre o “governo do povo” e o “governo dos melhores” está alicerçada no agir político dos aristói, na capacidade de fundar um novo copo político sempre que as circunstâncias assim demandarem – independentemente de a circunstância de tal corpo político ser constituído por indivíduos do povo ou não. Ela sabia – e é difícil negar – que embora a extensão dessa possibilidade de ação a todos os cidadãos seja uma marca fundamental e relevante de nosso tempo, nem todos – e menos ainda em todos os momentos – se habilitam a constituir um corpo político, a responsabilizar-se pelo mundo e por sua mudança. Assim formulada, essa distinção entre Aristocracia e Democracia se aplica somente em relação ao escopo do espaço público, em relação a quantos participam ou não da política; no que concerne ao aspecto prático do agir político, uma vez que são sempre os poucos – e melhores – que efetivamente o fazem, democratas e aristocratas não apresentariam, em princípio, qualquer outra diferença além da demanda democrática pela ampliação do escopo e das condições para participação.

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Já vimos, a partir dos argumentos apontados em Miguel (2002), como as correntes hegemônicas foram erigidas sobre bases antidemocráticas e elitistas, o que nos leva a afirmar que há um “sentido fraco” de democracia nessa teorias, uma vez que elas têm como propósito conjecturar sobre a impossibilidade mesma da democracia.

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Ainda assim, ao entendermos Democracia – ou Aristocracia – como uma forma de governo, se torna bastante óbvia a justificativa dessa distinção, calcada basicamente na diferença entre o corpo governante. O governo do Dēmos é feito pelo povo, pelos muitos, inclusive pelos pobres, pois certas qualificações prévias, dadas pelo nascimento, por títulos ou pela riqueza, não podem ser critério de exclusão para a participação nos negócios públicos. Já o governo dos Aristói é conduzido pelos melhores, cujos critérios de distinção e seleção, baseados em virtudes cívico-políticas e no desempenho público de cada cidadão, nos levaria a concebê-lo como um governo feito por poucos. Embora tais critérios de seleção não sejam autoevidentes, certo é que eles não podem ser fundados em preconceitos sociais, que são prépolíticos e violam a isonomia, nem em aspectos econômicos (isto é, relacionados à propriedade), que pertencem à esfera que Arendt classifica como “privada” – o que faria da Aristocracia uma simples Oligarquia, o governo dos poucos e privilegiados. No entanto, se tais aspectos sociais e econômicos não deveriam determinar a seleção do corpo governante, seja em uma Aristocracia, seja em uma Democracia, não se pode descartar o fato de que a libertação – tanto da tirania, em alguns casos, quanto da miséria, em outros – seguramente pode condicionar as possibilidades efetivas do que quer que se entenda como liberdade política – este sim “o critério supremo para julgar as constituições dos corpos políticos”, como vai dizer Arendt (SR, p. 57). Nesse sentido, uma Aristocracia, por definição, isto é, por incluir somente aqueles que tenham condições de participar do governo, teria mais chances de compor um corpo governante do que a Democracia. Apesar disso, mesmo que as condições necessárias para a libertação – sejam elas materiais ou legais – não possam ser descartadas do “grande jogo do mundo”, e talvez precisem ser satisfeitas antes de se poder realmente jogar, a liberdade de que fala Arendt (EPF, p. 194) aparece sempre que as pessoas agem em concerto, sem que seja causada unicamente por essa libertação nem impedida totalmente por sua ausência: “a liberdade [liberty] necessitava, além da mera liberação [freedom], da companhia de outros homens que estivessem no mesmo estado, e também de um espaço público comum para encontrá-los”. Afinal, a luta pela liberdade ainda é possível mesmo nas condições mais ameaçadoras, a menos que se prive o ser humano de sua condição mais fundamental, a de agir, falar e pertencer à comunidade humana – o que, nas palavras de

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Arendt, expressa-se como “o direito de ter direitos”135, incluído aí, obviamente, o direito à isenção da política. E, com isso, uma Democracia, em que há certa pressão pela ampliação constante das possibilidades de participação no corpo governante, teria, para todos os efeitos práticos, melhores chances de ser constituída por um corpo governante mais qualificado – dado o aumento, por assim dizer, da oferta – do que qualquer outra forma de governo. Ainda assim, Arendt observa que com as revoluções modernas – e, particularmente, com seu ímpeto irrefreável por tentar resolver a “questão social” ao mesmo tempo em que se ocupava da “questão política” de fundar um novo governo como Novus Ordo Saeclorum, uma Nova Ordem do Mundo – houve uma separação factual entre aqueles que julgavam que o governo deveria ser constituído pelos melhores – e que, por isso, a maioria dos pobres estaria excluída (na prática, mas não por princípio) de qualquer participação política na fundação desse novo governo – e aqueles outros que viam no “governo do povo” seu melhor sistema político – e que, portanto, procuraram formas de unificação social que permitissem a consideração da questão da pobreza (mas não necessariamente a participação dos pobres) desde a fundação do novo governo. Para utilizar termos atuais, essa é a confusão entre uma república “feita de cima para baixo”, mas sob as vestes da Democracia, e uma república feita “de baixo para cima”, mas sob as vestes da Aristocracia; essa é a confusão que Arendt procura evidenciar em sua análise da Revolução Francesa, ao mesmo tempo unificadora (e centralizada), democrática e elitista, e da Revolução Americana, ao mesmo tempo multiplicadora (e descentrada), aristocrática e popular. Como elementos tão opostos podem ser ligados senão por várias conexões paradoxais? Como tais paradoxos poderiam nos ajudar a compreender a distinção entre as questões políticas e sociais? Com isso, vemos que essa distinção entre a questão social e a questão política envolvida em uma Nova Ordem do Mundo deve ser compreendida com mais precisão. Em sua palavras, Arendt (EPF, p. 224) vai literalmente dizer que […] o significado dessa nova ordem, dessa fundação de um novo mundo contra o antigo, foi e é a eliminação da pobreza e da opressão. Mas ao mesmo tempo, sua grandeza consiste no fato de que, desde o início, essa nova ordem não se desligou do mundo exterior – como costumava suceder alhures na fundação de utopias.

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A esse respeito, cf. ARENDT (OT, pp. 404-407).

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Assim, essas distinções só fazem sentido se elas evidenciam o fato de que uma não pode obliterar a outra, isto é, de que a “questão social”, se e quando passa a ser uma “questão política”, corre o risco de apartar-se duplamente do mundo que visava mudar: ou cria um modelo ideal a ser feito ou alcançado, ou cristaliza-se sob a forma de insuspeita ideologia. Dos dois modos, portanto, perde-se justamente seu caráter político de ter de ser realizada pela persuasão, e não pela força. A questão que fica, no entanto, é que somos “forçados” não somente pela necessidade, mas também pela urgência, que o “tempo político” e a virtude da moderação parecem negligenciar: afinal, quem tem fome tem pressa. Por isso, não se pode deixar de notar novamente as ambivalências de Arendt no tratamento das demandas por libertação e na preservação do desejo de liberdade. Ambas, tanto a liberdade quanto as condições de libertação, ainda parecem reservadas somente a uma parcela privilegiada da comunidade política, aquela que não extrai sua paixão pela liberdade do ato precedente de libertação. Uma rápida digressão etimológica ajudará a compreender melhor essa ambivalência. Para a língua inglesa, ao menos desde o texto da Magna Carta (Inglaterra, 1215), e certamente na Declaração dos Direitos (EUA, 1776), firmou-se a distinção entre as palavras Freedom [liberação] e Liberty [liberdade]. Embora, possivelmente, não tenha sido essa a intenção do autor, parece que Isaiah Berlin, em seu famoso ensaio Dois conceitos de liberdade, de 1958, capta com precisão essa diferença conceitual ao tratar da liberdade positiva como aquela atividade de remoção de constrangimentos (como no latim Libertas é a soltura, o livramento) e ao referir-se à liberdade negativa como a situação em que há ausência de coerção, ou de qualquer tipo de constrangimentos externos – o que, no limite, parece só existir de fato na ausência de quaisquer relações a não ser a do indivíduo consigo mesmo. Essa distinção pode oferecer uma boa síntese ao colocar o liberalismo ao lado da liberdade negativa, uma vez que ele relega a liberdade positiva de participação e influência direta no governo como uma promessa utópica, e a teoria política de Arendt ao lado daquilo que Bobbio chamou de liberdade democrática, isto é, daquelas formas de liberdade que precisam

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responder à questão: “o que significa para o indivíduo ser livre como membro de um todo?”136. É preciso dizer ainda que, não só conceitualmente, mas também historicamente, essa dupla noção de Liberdade encontrou diversas nuanças: foi a luta para libertar-se da opressão, desde os tempos imemoriais até as revoltas burguesas e aristocráticas contra o poder absoluto e imperial do monarca; o que veio a se associar, ainda que de maneira sensivelmente diferente, à possibilidade de intervenção e participação política nas duas invenções da Democracia, a realizada pelos antigos gregos e a empreendida pelos modernos; o que se ampliou com a demanda por liberdade de credo e consciência a partir da Reforma; e que culminaria na liberdade de autorrealização e autodeterminação, pela ampliação da privacidade, com a globalização da sociedade de massa e de consumo. Se tomarmos a simplificação da trajetória histórica proposta, é possível sustentar que cada uma dessas formas de materialização da liberdade foi sendo suplantada, pouco a pouco, uma sobre a outra. Assim, a ressignificação da noção de Liberdade como “liberdade negativa” e como autonomia individual se viu cada vez mais vinculada ao espaço privado, na delimitação cada vez mais imprecisa da fronteira entre o público e o privado (e, por conseguinte, entre o político e o econômico). É fato que isso contribuiu para moldar as atuais instituições públicas e teve reflexos importantes nas atuais concepções do bem público e do indivíduo em sua autonomia. Mas, se a noção de Indivíduo e a consequente formalização da igualdade jurídicopolítica individual é a condição única para a autonomia individual, então estamos ainda no campo do particularismo137, em que a desigualdade social pode ser confundida facilmente com o acaso de um insucesso individual inevitável ou como mero efeito da distribuição naturalmente desigual de capacidades ou de mérito138.

136

Apud MERQUIOR (1991, pp. 26-27).

137

Nesse sentido, Merquior (1991, p. 29) relembra que a liberdade democrática, para Rousseau, “em detrimento da liberdade liberal, não consistia num prejuízo ao individualismo, mas na destruição do particularismo. O particularismo refletia o encanto de uma velha força na política francesa: patrimonialismo”.

138

Como já havíamos indicado na nota 129, mesmo na formulação do liberalismo político de Rawls há um rompimento com o valor da meritocracia. A esse respeito, cf. RAWLS (1997, §48. pp. 342-348).

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Em outras palavras, uma noção de autonomia individual consistente com a liberdade que Arendt almeja precisa se ocupar das condições de sua produção do mesmo modo como a noção de autonomia coletiva precisa considerar os meios de formação das preferências, isto é, a coletivização das decisões e da própria atividade política, como uma de suas condições. A esse respeito, novamente Sartori (TDR1, p. 286 e ss.) nos ensina que decisões coletivizadas “se aplicam e são impostas a uma coletividade independentemente de serem tomadas por uma pessoa, por algumas ou pela maioria. O critério de definição não é mais quem toma as decisões, mas seu alcance: seja quem for que tome as decisões, decide por todos […] no sentido de que suas decisões recaem sobre todos”. Daí ele dizer que uma característica da política é que ela “consiste em decisões coletivizadas”. Sem compreender isso, o principal problema do foco exclusivo na liberdade negativa é que ele se mantém incapaz de apreender o caráter constitutivo da atividade política, como aponta Mouffe (2005 [1993], p. 25). E, como complementa Miguel (2016, p. 5), ao restringir o local adequado para a formulação prévia e individual das opções políticas à esfera privada ou ao exercício do pensamento, sem considerar também, além da esfera pública e política em seu caráter constituidor de opiniões e opções, o modo de funcionamento dos meios de produção simbólica, a teoria política de Hannah Arendt efetivamente padecerá da ausência de preocupação com o impacto das desigualdades e com os padrões sociais de manutenção dessas desigualdades, nas dinâmicas sociais. Por isso, mesmo que Arendt procure compatibilizar a relação entre liberdade e igualdade, em um sentido jurídico-institucional, pela fórmula “iguais em liberdade”, podemos recorrer a Bobbio (1986, p. 112) para nos recordar de que “é preciso que se introduza também algum critério de justiça distributiva” na relação entre igualdade e liberdade. E então podemos ver como Sartori (TDR2, p. 133. grifos do autor) estabelece uma ligação entre liberdade e igualdade, que ele vai chamar não casualmente de “procedimental”, para argumentar que “a igualdade pressupõe a liberdade”, de modo que “a liberdade deve materializar-se no tempo e de fato antes da igualdade”, já que “a igualdade sem a liberdade é algo que não pode sequer ser reivindicado”. De certo modo, tudo nos leva a crer que Arendt concordaria integralmente com esses pontos de vista, se efetivamos o necessário diálogo entre esses autores.

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Mas a Democracia não deve servir para regular conflitos somente porque não somos anjos – e os homens precisam de condições para seu autogoverno tanto quanto precisam controlar o próprio governo, como falava Madison139 – nem tampouco somente para aqueles que, sob o benéfico efeito da libertação, podem ingressar no precioso espaço da liberdade, ainda um privilégio de poucos. Assim, precisamos considerar como a relação entre libertação e liberdade pode contribuir para rebalancear os critérios de justiça social e, para isso, podemos observar como se dá a interação entre pessoas. Afinal, é preciso lembrar aquilo que ficou registrado no fato de que a palavra “política” está ligada ao acontecimento da pólis grega, como diz Arendt (CH, p. 211), e isso significa que a atividade política, antes de tudo, “é a organização da comunidade que resulta do agir e falar em conjunto, e seu verdadeiro espaço situa-se entre as pessoas que vivem juntas com tal propósito, não importa onde estejam”. Precisamos, portanto, entender a outra forma para aquilo que Arendt chama de ação política, isto é, seu caráter de “fundação” e de “organização” da comunidade política – uma forma distinta da ação-como-Revolução, cujo objetivo é a constituição de uma nova forma de governo e cuja solução, tal como proposta por Arendt, discutimos nos capítulos 6 e 7 ao tratar do sistema de conselhos. Tomando como ponto de partida a própria sugestão da autora, de que “o que mantém unidas as pessoas depois que passa o momento fugaz da ação (aquilo que hoje chamamos de ‘organização’) e o que elas, por sua vez, mantém vivo ao permanecerem unidas é o poder” (Arendt, CH. p. 213), então poderemos investigar o nexo possível da teoria política de Hannah Arendt com as atuais discussões sobre a justiça social, isto é, sobre a hipótese de que o poder político e os conflitos sociais estejam fundados no que é chamado de “lutas por reconhecimento”. Com isso, poderemos notar assimetrias e desequilíbrios de influência entre o poder político derivado do reconhecimento da agência e do engajamento dos atores e aquele poder derivado da redistribuição de condições materiais e simbólicas.

139

Vale observar que, longe de ser falso alarmismo, esta premissa já estava declarada na formulação de Madison: “Ao moldar um governo que deve ser administrado por homens sobre homens, a grande dificuldade reside nisso: você precisa primeiro capacitar o governo a controlar os governados e, no passo seguinte, obrigá-lo a se autocontrolar”. Cf. The Federalist Papers, nº 51.

CAPÍTULO 9

HANNAH ARENDT E AS LUTAS POR RECONHECIMENTO

Apertado entre aqueles que de um lado se batem por uma excessiva liberdade, e do outro por uma excessiva autoridade, é difícil passar sem ferimento por entre as lanças de ambos os lados. Thomas Hobbes, Leviatã.

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Quando Hannah Arendt (CH, p. 15) afirmou que a pluralidade humana é “a condição – não apenas a conditio sine qua non, mas a conditio per quam – de toda a vida política”, ela o fez mais como um alerta sociológico do que como mera postulação filosófica. Para ela, a política é criada pelos homens e entre os homens – o que significa, como já vimos no capítulo 1, que a política não é nem uma atividade natural, que existe sempre que os homens se encontram, nem tampouco alguma substância original que pertença à essência do homem. E isso deveria colocar no centro dos debates políticos atuais as “condições de possibilidade” da existência simultânea de diferentes sujeitos, individuais ou coletivos, no espaço social; esse é o problema que emerge diante da decadência do estado nacional – isto é, “o problema não resolvido de uma nova organização dos povos” –, da perpetuação do racismo – isto é, “o problema não resolvido de um novo conceito de humanidade” – e do avanço do imperialismo, isto é, “o problema não resolvido de organizar um mundo em constante encolhimento, que precisamos partilhar com povos cujas histórias e tradições estão fora do mundo ocidental” 140. Foi com vistas a esse conjunto de problemas, aliás, que Arendt empreendeu seu estudo sobre as Origens do Totalitarismo. Ali, no entanto, ela argumenta que o advento da busca pela onipotência do Homem, a expansão ilimitada do poder em abrangência e profundidade, e a superação de todos os limites, naturais e principalmente humanos – cujo ápice se deu no fim da era moderna, com o advento da bomba atômica e dos campos de extermínio –, por serem ainda elementos de uma realidade tangível, colocam em xeque essas condições de possibilidade e continuamente ameaçam eliminar a pluralidade humana, pois tornam supérfluos cada indivíduo e todos os homens juntos. Assim, não basta a suposição de “pluralidade” como mera “simultaneidade existencial”, uma vez que ela se desdobra em distintas visões e explicações não somente sobre os conflitos entre diferentes sujeitos, mas também sobre as possibilidades de solidariedade e de reconhecimento mútuo, isto é, sobre a interação entre esses sujeitos, seus modos de convivência, as possibilidades de formação de comunidades, o comércio intersubjetivo e até mesmo a noção de comparecimento de um perante outro – como quando, muito concretamente, se avalia a taxa de comparecimento eleitoral em regimes democráticos ou 140

Citado por Young-Bruehl (1997, p. 195), a partir dos memorandos não publicados, mas muito comentados, que Arendt escreveu a Mary Underwood.

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quando comparecem diante do tribunal as partes em juízo, a partir de um procedimento determinado, e que por vezes exclui a própria voz da vítima. É preciso compreender, portanto, o que significa, hoje, a mutualidade, o viver-junto, e quais são suas condições políticas específicas. As respostas que se situam no polo da convivialidade harmoniosa, não raras vezes, mascaram ou tornam invisíveis justamente a paradoxal resistência à ideia de reciprocidade e mutualidade, dada por aquilo que Ricœur (2006, p. 164) chama de uma “assimetria originária”, ou seja, por uma “insuperável diferença que faz que o uno não seja o outro” – o que deu vazão a toda sorte de correntes de pensamento racista, sexista ou colonialista; em suma, ideias balizadas por uma presumida “falsa simetria”. Do outro lado, contudo, permanecemos diante da noção de que o espaço político e social é marcado de maneira indelével pela dinâmica da “continuação da guerra por outros meios”. E mesmo para aqueles que, acertada e realisticamente, não abdicam da noção de conflito social, não é tão simples a passagem de visões sobre os enfrentamentos – marcadas pela necessária exclusão do outro, pela oposição schmittiana “amigo-inimigo” – para modalidades de perspectivas agonistas, que ainda permitem alguma convergência entre grupos social ou politicamente opostos, ou mesmo para aquilo que se denomina – não sem algum romantismo – como “política da amizade”141. Assim, trata-se de saber não somente se o reconhecimento pode ser completado com a reciprocidade, ou se a mutualidade do viver-junto é possível a partir de um impulso natural dado por alguma essência social dos seres humano, mas se o desejo de ser reconhecido pode ser colocado em alguma medida como “origem moral” para o agir humano e em contraposição à hipótese hobbesiana de um desconhecimento originário e total, que leva ao medo. Ao fim e ao cabo, como enfatiza Ricœur (2006, p. 168), essas noções marcam “a reciprocidade como uma superação sempre inacabada da dissimetria”, pois “trata-se em cada uma das vezes de comparar incomparáveis e assim igualá-los” (idem, p. 175. grifo do autor). Daí advém a conexão que pode existir entre o impulso de reconhecimento recíproco e as

141

É esse o título do livro de Francisco Ortega (2000) – “Para uma política da amizade” – em que ele procura aproximar as ideias de Hannah Arendt, Michel Foucault e Jacques Derrida sobre a política, a partir do foco na noção de phlia politike, de amizade política.

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demandas por igualdade em liberdade, pois “o reconhecimento igualiza o que a ofensa tornou desigual”, como conclui Ricœur (2006, p. 197). Uma vez que possamos sustentar que a política não precisa necessariamente seguir pelos caminhos da tradição contratualista hobbesiana, atualmente ainda hegemônicos, que nos levariam a conceber a atividade política unicamente como uma competição mutuamente excludente entre interesses de agentes racionais isolados com vistas à maximização de seus benefícios individuais, podemos notar o impacto que a introdução da noção de cooperação social pode ter para as teorias da democracia e para uma abordagem social do processo político. A cooperação voluntária, quando aventada como uma hipótese consistente para a ação coletiva e concertada, abre um novo campo dentro do qual pode-se lidar com a invenção democrática “não só como um ideal político, mas primeiramente como um ideal social” (Honneth, DCR. p. 91); ou, em outras palavras, como um modo de vida que une determinados padrões sociais de organização a mecanismos políticos específicos para resolução de conflitos e para tomada coletiva de decisões sobre assuntos comuns e públicos. Em oposição à visão liberal-utilitarista da política, reaparece em nosso horizonte a necessidade de se reequilibrar a formação coletiva das opiniões e da vontade política e de se estender a compreensão dos direitos subjetivos para incorporar um leque mais amplo de liberdades, que extrapolariam sua concepção negativa, privada e individualista, para poder tratar dos apelos por equalização de oportunidades e por participação social e política, tão evidentes em ambientes democráticos. Afinal, como explica Honneth (DCR, p. 68), “o centro de todas as objeções continuamente levantadas contra a perspectiva liberal da democracia pelas abordagens radicais da democracia refere-se à sua interpretação meramente negativa, individualista do conceito de liberdade pessoal”. E tínhamos boas razões para acreditar que a teoria política de Hannah Arendt nos ofereceria um anteparo proveitoso nesse sentido. Com ela, poderíamos fazer algumas ponderações contra a função meramente legitimatória da participação democrática e, em especial, àquelas que se atêm ao direito de votar, que percebem o cidadão como consumidor de propostas políticas, que encaram a atividade política como mera administração do Estado e que, portanto, terminam por esvaziar o significado mesmo de participação política, com vistas a escapar dos riscos presumidos que adviriam da agitação popular e do conflito social para assegurar estabilidade e

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governabilidade ao Estado. Essas ponderações permitiriam revitalizar a esfera pública, que é novamente encarada como o espaço propício para os processos políticos de tomada de decisão, e recolocariam em cena a necessidade de se discutir mais seriamente a consequente coletivização das decisões. E, ao fazer isso, atrela-se a liberdade não só à ação comunicativa e à deliberação pública e contínua, mas aponta-se para o fato de que “só em uma situação de interação livre de dominação a liberdade individual pode ser atingida e protegida” (Honneth, DCR. p. 69). Assim, pelo que pudemos descrever até agora, a ciência política parece apresentar os debates entre liberdade e igualdade sob dois aspectos, quando colocados de maneira simples e direta: i) a ação coletiva está situada entre as motivações morais, para uns, ou utilitárioracionais, para outros; ii) os conflitos sociais estão fundados na diferença de condições materiais, para uns, ou na implementação de instrumentos político-institucionais, para outros. Um dos modos como esse debate foi travado contemporaneamente, sob o título de “lutas por reconhecimento e redistribuição”, se apresenta como uma interpretação sobre como as dinâmicas sociais permitiriam transformações nas relações de reprodução material e simbólica da sociedade e oferece respostas particularmente promissoras, ou ao menos alguns importantes deslocamentos de perspectiva, para três das questões que seguidamente viemos demarcando: i) A conceitualização do reconhecimento pode nos oferecer uma alternativa à visão sobre as relações sociais – inaugurada por Maquiavel e consolidada por Hobbes – que se concentra na luta entre indivíduos isolados por sua autoconservação; ii) O debate entre Honneth e Fraser142, além de oferecer uma série de reflexões sobre a sociedade liberalcapitalista contemporânea, colocou à disposição dos teóricos ao menos duas alternativas para o estudo da justiça social e para equacionar a superação das desigualdades; iii) A teoria do reconhecimento também oferece indicações de que o foco normativo de uma teoria crítica 142

Cf. FRASER; HONNETH (RR). O extenso intercâmbio entre esses dois teóricos apresenta diversas nuanças, algumas das quais não nos interessam no escopo específico dessa tese, e envolveu diversos outros pensadores e comentadores, que optamos por deixar de fora. Para um estudo que oferece uma apresentação introdutória de cada um dos autores envolvidos na construção do debate sobre reconhecimento, cf. a tese publicada de Patrícia Mattos (2009). Algumas das críticas mais pertinentes sobre o debate (na verdade, sobre cada uma das duas propostas apresentadas) podem ser lidas, respectivamente, em YOUNG, 2009 (sobre a “teoria dual dos sistemas”, de Fraser) e em ZURN, 2000 (sobre a “concepção formal de vida ética”, de Honneth).

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deve estar na interação social. De maneira mais ampla, o que exploraremos agora são alguns dos termos desse debate entre “lutas por reconhecimento e redistribuição” e os possíveis incrementos que esses termos podem oferecer à teoria política de Hannah Arendt, e, em particular, ao modo como ela trata da “questão social”, na ausência de uma efetiva discussão da autora sobre a noção de justiça social. 9.1. A conceitualização do reconhecimento Em 1992, o filósofo canadense Charles Taylor publica Multiculturalism and The Politics of Recognition143, em que ele associa a formação identitária individual ou coletiva, por ser um movimento político, à noção de reconhecimento. Para Taylor (1992. p. 25.trad. minha), reconhecimento é “uma necessidade humana vital” que envolve a construção, o espelhamento, o retorno e a difusão de imagens do self individual ou do grupo – o que Hegel havia chamado, como veremos abaixo, de exprimir de si o que é em si e que se converte, deste modo e por si mesmo, em objeto para si, isto é, no reconhecimento de um outro e no ser reconhecido por meio de um outro. No mesmo ano de 1992, o sociólogo alemão Axel Honneth publica sua tese de livredocência como livro, intitulado Kampf um Anerkennung [Luta por reconhecimento]. Ele parte de uma inovadora leitura de Hegel, apoiada nas conclusões de base empírica da psicologia social de George Herbert Mead, para investigar o desenvolvimento moral da sociedade na construção das identidades pessoais e para explicar os fenômenos políticos e a manutenção dos conflitos sociais atuais, daí advindos. Mas, para a tarefa de que nos cabe agora – isto é, compreender como a conceitualização do reconhecimento pode nos oferecer uma alternativa à visão hobbesiana sobre as relações sociais como luta entre indivíduos isolados por sua autoconservação –, tomaremos como ponto de partida a obra do filósofo francês Paul Ricœur Parcours de la reconnaissance: trois études, publicada em 2004144. Nesses três estudos, ele pretendeu

143

Cf. TAYLOR (1992); e também, TAYLOR (1994).

144

Utilizaremos, como referência, o texto da edição brasileira publicada em RICOEUR, 2006.

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enunciar e avaliar o “estatuto semântico do próprio termo ‘reconhecimento’ no plano do discurso filosófico” (Ricœur, 2006. p. 9). Sua perplexidade partia da observação de que, embora haja diversas correntes de pensamento sobre as condições que nos permitem “conhecer”, isto é, sobre a epistemologia, parecia não haver “uma teoria do reconhecimento digna desse nome” (ibid.)145. Para ele, a dispersão do emprego filosófico desse termo careceria da “coerência de uma polissemia regrada” (idem, p. 10). Em suma, os teóricos parecem não ter tanta clareza, do ponto de vista conceitual, quando tratam do reconhecimento, especialmente na forma passiva: do que se está falando quando se fala dos apelos e lutas por reconhecimento, em que o ser-reconhecido pelos outros é o horizonte? E é esse o intento de Ricœur ao longo das três etapas que constituem seu “percurso” filosófico: explorar os caminhos trilhados pelo conceito e estabelecer a genealogia da definição de reconhecimento. Para Ricœur (2006), três são os impulsos que convergem para e que emanam do reconhecimento. Em seu primeiro estudo, ele descreve o reconhecimento como o impulso de identificação – de algo em geral para a distinção e conexão das particularidades de algo – a partir do estatuto lógico da identidade, ainda excludente. No segundo estudo, o autor aborda o impulso de ser-reconhecido em sua singularidade – que permite ao indivíduo reconhecer-se a si mesmo e em suas responsabilidades, isto é, em sua capacidade de se manter responsável146 – e o faz poder seguir rumo à experiência existencial de participação na reprodução simbólica das representações sociais, em que o si-mesmo é afetado pelo outro. Com isso, Ricœur (2006) toma de empréstimo do economista Amartya Sen147 o termo “capabilidades” e o vincula ao 145

Embora o autor se proponha a apresentar um “percurso”, não uma teoria, Ricœur (2006, p. 27) descreve e relaciona os três casos exemplares, a despeito de não haver nenhuma referência comum entre eles, em que o termo “reconhecimento” aparece no plano filosófico: pela primeira vez com Kant, na primeira edição da Crítica da Razão Pura, sob o vocábulo Rekognition; depois em Bergson, como “reconhecimento das lembranças”; e, finalmente, com o jovem Hegel, já na acepção que estudaremos aqui, sob o termo Anerkennung.

146

A noção de identidade, aqui, vincula-se diretamente à noção de responsabilidade por tratar-se de uma identidade ética, “no sentido de [referir-se a] sua capacidade [do agente] de se manter [no tempo, e em face às possíveis mudanças em sua identidade pessoal] responsável por seus atos” (Ricœur, 2006. p. 117). Não me parece ser diferente do que propõe Honneth (LR), em sua explícita referência ao campo do direito como locus de proteção e imputabilidade, embora Ricœur (2006, p. 121) deixe claro que “a ideia de responsabilidade subtrai a de imputabilidade à sua redução puramente jurídica”.

147

Ricœur (2006, p. 154) menciona, especificamente, os artigos intitulados “Rights and Capabilities”, de 1985, e “Rights and Agency”, em que Amartya Sen “coloca no centro de sua argumentação em favor de uma reintrodução de considerações éticas na teoria econômica o conceito de ‘capabilidades’, unido

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reconhecimento de si para expressar essa transformação que surge na concertação de capacidades individuais para realizar uma boa vida, que Sen associa explicitamente à noção de ter “direitos a certas capabilidades” – direitos que garantem capacidades reais de agir e de fazer escolhas de vida. O impulso do terceiro estudo parte do reconhecimento das identidades e capacidades particulares para as dinâmicas do reconhecimento mútuo e da estima social – o que deixaria, como subproduto, a abertura para a gratidão. Afinal, pergunta o filósofo francês, “não é em minha identidade autêntica que peço pra ser reconhecido? E se, por sorte, me reconhecerem como tal, minha gratidão não será dirigida àqueles que, de uma maneira ou de outra, reconheceram minha identidade ao me reconhecer?” (Ricœur, 2006. p. 11). Que a política se baseie no conflito entre adversários, mas não na guerra entre inimigos que buscam a eliminação mútua, e que a democracia seja um modo de coletivização desses conflitos e de suas decisões, então não seria estranho acrescentar que também a gratidão pode fazer parte, assim como a promessa e o perdão de que falava Arendt (CH, pp. 248-256), do encontro agonístico entre diferentes modos de vida para a regulação – cooperativa, enquanto comunicativa – de seus conflitos. Uma primeira resposta consistente a essas questões foi apresentada pelo jovem Hegel a partir do conceito de Anerkennung, de reconhecimento entendido como respeito, na acepção que estudaremos aqui. Ele desenvolveu esse conceito, entre 1801 e 1806, nos textos do Sistema da eticidade e da edição intitulada Realphilosophie, elaborados quando lecionava em Iena. Para Hegel, a eticidade humana se desenvolve a cada tomada de consciência própria, quando o sujeito interage, consigo e com outros, e sua consciência passa a ser, também, seu objeto de intervenção no mundo e de interação com o mundo. É quando o sujeito vê a si mesmo como algo em si que ele pode ver o outro e, ao mesmo tempo, passa a ver o si mesmo no outro: torna-se, portanto, um objeto de consideração e respeito para si mesmo. E, inclusive etimologicamente, não poderia ser de outro modo: respeito é a palavra que traduz o ato de ver e considerar (de seu sufixo latino “specto”) novamente; ou seja, de ver a si mesmo e de

ao conceito de ‘direitos’”. Cf. também SEN (1987).

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deixar-se ver como um si mesmo, e de ser visto pelo outro e de conhecer o si mesmo pelo outro. Por isso Hegel, em uma retomada da ideia aristotélica da natureza humana como essencialmente social e em resposta ao problema colocado por Hobbes nos idos de 1650, apresenta o conceito de respeito como uma experiência moral tão originária quanto o medo hobbesiano da morte violenta, mas agora com o acréscimo de uma implicação recíproca entre a autorreflexão e a intersubjetividade. Assim, uma vez que esse estado originário dos seres humanos “desde o início se caracteriza pela existência de formas elementares de convívio intersubjetivo” (Honneth, LR. p. 43), então, como descreve Ricœur (2006, p. 165), “o desejo de ser reconhecido ocupa o lugar do medo da morte violenta na concepção hobbesiana do estado de natureza”. Tanto Hobbes quanto Hegel vão entender como necessária a saída do estado de natureza. Contudo, Hobbes deixou aberta uma lacuna ao conceber esse ato pontual como um voluntarismo arbitrário. Na proposta de Hegel, que visava justamente preencher essa lacuna, o medo hobbesiano da morte violenta é substituído por outra sensação: a indignação com a falta de reconhecimento. E, desse modo, as lutas por reconhecimento tomariam o lugar consagrado, como origem, das lutas pela sobrevivência advindas da desconfiança e do medo. Assim é que a mutualidade – isto é, o fato de que há formas elementares de reconhecimento inter-humano, às quais Hegel vai denominar “Eticidade natural” em oposição à condição atomizada originária suposta por Hobbes – pode promover trocas entre indivíduos, o que os leva a formalizar tais costumes como Direito. Esse processo de lutas, trocas e formalizações de entendimentos vai culminar, portanto, em certa hierarquização de poderes, que procura articular o reconhecimento em “níveis hierárquicos correspondentes a instituições específicas”, como indica Ricœur (2006, p. 188). Em outras palavras: contra aquele voluntarismo arbitrário de Hobbes, que preconizava um ponto de inflexão com a saída do homem do estado de natureza, há em Hegel uma dinâmica histórica em que se substituem umas às outras as etapas de reconciliação e de conflito, isto é, passa-se da indignação com a falta de reconhecimento a situações de reconhecimento, e então volta-se aos equívocos por desconhecimento ou mesmo parte-se para novas exigências de individualidades ainda não reconhecidas.

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Com essa reinterpretação do modelo hobbesiano de luta originária de todos contra todos, Hegel renova também a perspectiva de questionamento, modificação e ampliação da ordem vigente, superando a velha ordem contratual de um abandono unilateral de direitos ao nos oferecer, então, uma constelação ordenada de modelos de reconhecimento: as formas singulares e afetivas do Amor, as formas jurídicas e institucionais do Direito e as formas de mutualidade e comunalidade alcançadas na Solidariedade, além de suas respectivas forças negativas, como a Necessidade, o Crime e a Desconfiança. Assim, por uma dinâmica que vai da injustiça rumo ao respeito, enfatiza Ricœur (2006, p. 189), “o reconhecimento por si de cada indivíduo, que era colocado na posição de princípio, é colocado agora na posição de resultado em relação à grande dialética que articula uma sobre a outra negatividade e institucionalização”. Desse modo, como resume Honneth (LR, p. 48), se os sujeitos precisam abandonar e superar as relações éticas nas quais eles se encontram originariamente, visto que não vêem plenamente reconhecida sua identidade particular, então a luta que procede daí não pode ser um confronto pela pura autoconservação de seu ser físico; antes, o conflito prático que se acende entre os sujeitos é por origem um acontecimento ético, na medida em que objetiva o reconhecimento intersubjetivo das dimensões da individualidade humana. Ou seja, um contrato entre os homens não finda o estado precário de uma luta por sobrevivência de todo contra todos, mas, inversamente, a luta como um medium moral leva a uma etapa mais madura da relação ética.

No entanto, embora o contrato e as subsequentes relações jurídicas por ele suscitadas contribuam para estabelecer um processo salutar de afastamento ou de proteção dos indivíduos frente a suas determinações naturais – de modo a promover o reconhecimento da “individualidade” de cada sujeito para além do fato social de seu nascimento –, Honneth (LR, p. 50) reforça a ideia de que “numa organização social caracterizada por formas jurídicas de reconhecimento, os sujeitos não estão constitutivamente incluídos senão mediante liberdades negativas”. Em outras palavras, o contratualismo nos faria estacionar em uma posição – relativamente confortável para alguns – já alcançada por aquilo que caracterizou o impulso liberal: a liberdade negativa, a igualdade formal e o estado de direito. Assim, somos levados a constatar, novamente, a difícil conciliação desse individualismo particularista com o metabolismo social das práticas democráticas.

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Essa visão de que há um indivíduo que se encontra isolado – e que, nessa circunstância, necessita de proteção (pela via exclusiva da propriedade e do espaço privado) contra as arbitrariedades do poder tanto do Estado quanto da Sociedade – abre caminho para deflagrar aquilo que Macpherson (1979) chamou de “individualismo possessivo” de direitos148. O problema, vê-se, é que esse individualismo possessivo, ao confundir direitos individuais com particulares, segue na contramão do impulso democrático de coletivização de direitos, ou seja, afasta a possibilidade de articulação de direitos democráticos149 como coletivização de direitos não universais, que os complementaria e asseguraria direitos específicos a coletivos específicos, equalizando diferenças relevantes intra e intergrupos. Exceto, talvez, ao não deixarmos de considerar que o formalismo legal, alcançado também por essa afirmação liberal do individualismo ético, que o liberalismo – em conjunto (nem sempre harmonioso) com as lutas sociais por democratização – nos legou, é uma das formas, e atualmente ela é fundamental, de criar, manter, questionar e reinventar alguns dos laços sociais; aliás, os mesmos laços sociais que tal individualismo parece, em princípio, colocar de lado. Dito de outro modo, vê-se que as leis (às quais os “direitos e liberdades individuais” fazem apelo) não servem somente – mesmo do ponto de vista dos dominados – como garantias solenes e consagradas no plano jurídico-formal para controle e proteção, mas também como dispositivo mobilizador para lutas e reivindicações sociais, ainda mais em ambiente em que já foram institucionalizadas algumas dessas garantias. Ainda assim, não podemos esquecer que mesmo o “individualismo democrático” – geralmente sustentado sobre argumentos elitistas – nem bem defende a coletividade, mas somente “certa” coletividade, elitizada, nem tampouco rejeita o individualismo, “mas [rejeita] a possibilidade de qualquer um partilhar de suas prerrogativas” (Rancière, 2014. p. 88). Para investigar como se poderia ultrapassar as formas meramente cognitivas de reconhecimento e a maneira isolada e abstrata como se dão as relações jurídicas, alcançando a categoria de “solidariedade” – quando os indivíduos “podem se encontrar e reunir mais uma vez no quadro abrangente de uma 148

A esse respeito, cf. MOUFFE (2005 [1993], p. 19 e ss.).

149

Cf. no capítulo 6 nossa discussão sobre a noção de Direitos Democráticos, proposta por Chantal Mouffe (2005 [1993]).

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comunidade ética” (Honneth, LR. p. 59) – precisamos voltar à proposta de Honneth, em que a hierarquização institucional decorrente do processo de reconhecimento corresponderia, como uma alternativa factível, à fabricação do Leviatã. 9.2. Honneth: primeira alternativa para o estudo da justiça social Como pudemos comentar anteriormente, Honneth observa, com Hegel e contra Hobbes, que os conflitos não se extinguiram com a pactuação do contrato social, mas que eles evoluíram daquela luta de todos contra todos pela sobrevivência para uma luta por reconhecimento mútuo. E disso Honneth já tinha indicativos desde que, em sua tese de doutoramento, Crítica do poder (1985)150, procurou retomar do projeto habermasiano o aspecto político que há nos mecanismos de coordenação da ação social que sejam tipicamente comunicativos, à luz dos escritos históricos de Michel Foucault sobre as interpenetrações entre poder, discurso e saber. Aparece nesse tipo de interação social não somente uma racionalidade própria da ação comunicativa e um tipo de ação orientado para o entendimento, mas o “conceito de uma luta moralmente motivada” (Honneth, LR. p. 23). Essa motivação moral permitiria incidir na reprodução simbólica da sociedade, dando nova orientação à emancipação, mas também permitiria impor freios à racionalidade instrumental e a formas de reprodução material da sociedade. É a partir desse argumento, aliás, que Honneth (RR, p. 114. trad. minha), reiteradamente, procurará afirmar, já em diálogo franco contra Fraser, que “mesmo injustiças distributivas devem ser entendidas como a expressão institucional do desrespeito social – ou, melhor dito, como relações de reconhecimento injustificadas”. Ficara evidente, por aquilo que Honneth chamou de “deficit sociológico” em Habermas, que o projeto de seu mentor precisava ser reformado para voltar a incorporar o fato, igualmente inescapável, de que os conflitos sociais continuam impregnados tanto no “sistema” quanto no “mundo da vida”. Assim, se a ação social é o necessário mediador entre a reprodução material das determinações econômicas e a reprodução simbólica dos processos

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Cf. HONNETH, Axel. Kritik der Macht. Reflexionsstufen einer kritischen Gesellschaftstheorie, 1985.

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culturais de socialização de indivíduos e grupos, então “a base de toda interação é o conflito, e sua gramática, a luta por reconhecimento” (Honneth, LR. p. 17). Mas é ao destrinchar essa tese central, no que consiste sua contribuição mais importante e específica para as teorias do reconhecimento pós-hegelianas, que Honneth (LR) poderá compreender que, se os conflitos sociais têm por base a negação do reconhecimento, então as ações de desrespeito e menosprezo social podem ser agrupadas sob três formas151: i) as torturas (ou maus-tratos, violações e humilhações), pois impedem a autorrealização completa do indivíduo, seja por violarem sua integridade física, seja por destruírem a confiança elementar (ou autossegurança) que uma pessoa tem em si mesma e em seu mundo social, a partir do que poderíamos chamar de privação de aprovação pessoal ou subjetiva, culminando em uma “morte psíquica”; ii) as privações de direitos e as exclusões sistêmicas, pois impedem a autorrealização completa do indivíduo por violarem sua integridade social ou por não permitirem condições de igualdade de oportunidade e acesso às conquistas institucionais152, culminando em uma “morte social”; e iii) as ofensas sistemáticas e a desconsideração pública, pois impedem a autorrealização completa do indivíduo por violarem sua integridade moral, isto é, sua dignidade, culminando na “degradação cultural de uma forma de vida”, que Honneth (LR, p. 218) vai chamar de “vexação”. Assim, Honneth (LR) confirma a hipótese de que se os conflitos surgem diante dessas formas de desrespeito, eles se mantém enquanto há resistência a elas, de modo que sua superação dialética (ou o avanço normativo social, no vocabulário de Honneth) se dá quando se torna possível, progressiva e respectivamente, a articulação “gramatical” dos três tipos de reconhecimento intersubjetivo, atualizados a partir do que Hegel havia proposto em Iena: i) o amor, que permite ao indivíduo a autorrealização pessoal, na esfera emotiva e privada das

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A sistematização que apresentamos aqui é uma interpretação da proposta original de Honneth (LR), já com algumas modificações a partir da leitura que Ricœur (2006) propõe.

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Isso significa, como já notamos alhures, que uma parte de não-reconhecimento permanece atrelada ao direito, sempre e quando sua premissa de igualdade formal não encontra correlação factual no acesso às instituições que garantiriam sua aplicação. No entanto, a expressão “exclusão estrutural”, usada por Honneth (LR, p. 216), não parece dar conta do fato de que é o uso, e não somente a posse (abstrata) do direito, que deve valer como parâmetro para se medir a justiça social. O mesmo é observado também por Ricœur (2006, p. 211).

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relações primárias153, pela expressão da confiança em si mesmo; ii) o direito, que assegura ao indivíduo, na esfera pública e jurídica, sua autonomia (para ser protegido, mas também punido), promovendo o autorrespeito por meio da moral socialmente ampliada e compartilhada154; e iii) a solidariedade, que permite ao indivíduo, na esfera social, o terceiro tipo de reconhecimento mútuo, a estima social, pela consideração de sua dignidade tanto no que diz respeito ao “tratamento igual”, aspecto que partilha com o direito, quanto na promoção de vínculos emotivos e de assistência, aspecto também partilhado com o amor. Para Honneth (RR, p. 185. trad. minha), o “respeito às diferenças” – que ele vai descrever como “aumento das possibilidades sociais para individualização” –, articulado à expansão inclusiva de “tratamento igual” ou da “igualdade legal”, tem nos levado ao desenvolvimento de uma práxis social e jurídica que progressivamente assegura direitos mais amplos, mais liberdades e melhores condições para a autonomia individual. Será preciso investigar, no entanto, se as lutas por reconhecimento, ampliando as liberdades individuais e coletivas em sociedades modernas, pós-tradicionais, liberais e capitalistas, como descreve Honneth, garantem o necessário balanceamento, reivindicado pela democracia, frente às demandas por igualdade, em suas várias vertentes. Para tanto, é necessário não só descrever quais são as formas de desrespeito e os tipos de reconhecimento que nos permitem uma

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Inicialmente, Honneth (LR) apresentou restrições para que o padrão de reconhecimento recíproco do amor fosse tematizado como objeto de lutas sociais, uma vez que o reconhecimento denegado não “admite o potencial de desenvolvimento normativo” justamente porque trata da natureza particular de uma relação próxima e destaca a diferença (e interdependência) específica de uma pessoa. Sua posição passa a incluir também a possibilidade de que a demanda pelo reconhecimento mútuo do amor permite expandir ou diferenciar as necessidades de cuidado pessoal e, por isso, ele conclui que em conflitos desse tipo haveria um acréscimo de validação normativa (cf. FRASER; HONNETH [RR, p. 144 e, em especial, n. 35]) para ampliação de outras esferas do reconhecimento social. Assim, se o amor, quando denegado, não é motivador de lutas sociais em si mesmo, como forma primária (e prévia) de reconhecimento, ele certamente ocupa uma posição especial, como Honneth (LR, p. 79) afirma, “no processo de formação da autoconsciência de uma pessoa de direito”, sendo parte de uma “força de integração social” que se completará como solidariedade.

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Ampliação e partilha social referem-se ao que ele apresenta, sob a forma de reconhecimento tipificada como “direito”, como etapa intermediária tanto no que diz respeito à ampliação das liberdades quanto no que diz respeito à partilha da validade universal da norma jurídica pela institucionalização de padrões sociais. Em outras palavras, como explica Ricœur (2006, pp. 212; 214. grifos do autor), a “estrutura dual do reconhecimento jurídico consiste, assim, na conexão entre a ampliação da esfera dos direitos reconhecidos às pessoas e o enriquecimento das capacidades que esses sujeitos reconhecem em si mesmos”. Por outro lado, há que se fazer o contraste – que promove conflitos sociais – entre a “atribuição igual de direitos e a distribuição desigual dos bens”.

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avaliação moral dos conflitos sociais – como fizemos acima – mas, principalmente, compreender de que modo o desenvolvimento das relações sociais de reconhecimento pode promover a justiça social. Do ponto de vista dos membros de uma sociedade, o modo como ocorre sua inclusão está relacionado à articulação entre as três esferas de reconhecimento, da mesma forma como sua autonomia individual (sua autorrealização) depende das experiências de reconhecimento social de sua individualidade. Sem os devidos ganhos que o reconhecimento de suas necessidades, de sua igualdade legal e de suas contribuições sociais deve proporcionar ao indivíduo, a noção de autonomia permanece abstrata. E, apesar de todos os problemas que podem ser diagnosticados no mundo atual, a aposta de Honneth (RR, p. 184 e ss.) é clara: a humanidade caminha no rumo de um progresso moral, o que resulta em uma superioridade da constituição normativa da modernidade155. É com essa concepção de progresso que Honneth justifica que o ponto de partida legítimo para uma ética política esteja na “infraestrutura moral das sociedades modernas, liberais-capitalistas”. Assim, seria possível perceber que a ampliação tanto no respeito ao indivíduo quanto na inclusão social de um número crescente de pessoas ocorre de modo articulado com as variações em cada uma das esferas de reconhecimento, uma vez que a modernidade é caracterizada pelo aumento da independência do critério da igualdade legal, no campo do direito, em relação ao critério da estima social. Em outras palavras, uma vez que tenhamos aceitado que há três critérios para justiça, dados pelas três esferas de reconhecimento social que progressivamente se ampliam tanto na dimensão da individualização quanto na dimensão da inclusão social, a avaliação da justiça social pode ser medida a partir da responsividade a cada um desses critérios.

155

Ao se estabelecer critérios de justiça para o funcionamento dessa dinâmica de reconhecimento, são necessárias duas condições exógenas: uma concepção teleológica de justiça social fundada no progresso moral da sociedade e o status de que a teoria do reconhecimento provê uma concepção hipotética, mas suficientemente adequada, de uma “vida boa”. A Teoria do Reconhecimento, portanto, configura-se tanto como uma formulação teleológica quanto inverte a prevalência kantiana do “direito” sobre o “bem”. E aqui o diálogo com o pensamento de Arendt se mostra particularmente problemático, pois nem bem Arendt estaria de acordo com uma teoria política teleológica, que pressuponha qualquer noção de um “progresso” da humanidade, nem tampouco ela se mostra favorável à prevalência de uma concepção de bem sobre o direito.

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Na esfera do amor, por exemplo, o indivíduo espera ser reconhecido em suas demandas por ter atendidas suas necessidades. São essas demandas por formas específicas de cuidado, se ainda não foram adequadamente consideradas ou se não tiveram uma resposta social ou institucional correspondente, que podem, então, ampliar o princípio geral do amor e promover melhor equalização para a justiça, expandindo as relações existentes de reconhecimento. Na esfera do direito, por sua vez, são as circunstâncias particulares da vida de cada membro da sociedade que devem ser levadas em consideração e, com isso, ampliam o modo como o reconhecimento da igualdade legal se traduz socialmente na ampliação do que é entendido por justiça. Por fim, na esfera solidariedade, em que são articuladas as contribuições particulares da atuação cooperativa de cada membro da sociedade, são as demandas por equalização entre essas contribuições e o princípio mais geral que Honneth vai chamar de achievement, traduzido ora por “desempenho”, ora por “mérito”, que podem contribuir para que cada membro da sociedade receba o reconhecimento – e, indiretamente, os resultados materiais desse reconhecimento – condizente com a valorização social de sua contribuição. Assim, há pelos menos duas situações em que os indivíduos podem demandar reconhecimento de suas particularidades e, com isso, engajar-se nas lutas por alterações no valor da estima social e, portanto, de distribuição de recursos; e isso quer dizer que há, então, uma forma dupla de distribuição de bens produzidos socialmente. Em apelos que mobilizam o princípio da igualdade legal, podem ser politicamente negociados os investimentos na redistribuição de benefícios sociais, independentemente do mérito, o que leva às lutas por democratização dos recursos e expansão dos direitos sociais. Quando não mobilizam direitos sociais, resta apelar ao princípio do sucesso individual para assegurar que haja reconhecimento de um desempenho ainda não valorizado socialmente, seja por sua contribuição material, seja porque a demanda tem legitimidade moral. De todo modo, o que se vê é a demanda por uma reavaliação cultural das capacidades individuais contra o engessamento das estruturas valorativas hegemônicas.

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9.3. A “questão social” e a visibilidade das identidades narrativas Até agora pudemos constatar como a proposta de Honneth, em uma invulgar conjunção da argumentação especulativa herdada de Hegel com a teorização empiricamente sustentada da psicanálise e da psicologia social sobre interações humanas, pôde afirmar que a noção de luta por reconhecimento e respeito social fundamenta a “gramática moral dos conflitos sociais” e explica a formação das identidades individuais e coletivas no mundo contemporâneo. Para Honneth (LR, p. 257), portanto, as lutas sociais por reconhecimento são o “processo prático no qual experiências individuais de desrespeito são interpretadas como experiências cruciais típicas de um grupo inteiro”. Desse modo, as ações individuais são vistas como interações intersubjetivas e influenciam, motivam e direcionam sistêmica e sistematicamente todas as relações sociais, intencionalmente ou não, a partir de bases morais. Ainda assim, “permanece sempre uma questão empírica saber até que ponto um conflito social segue a lógica da persecução de interesses”, isto é, da luta pela sobrevivência, segurança ou maximização do bem-estar individual, como afirmam teorias utilitaristas 156, “ou a lógica da formação da reação moral” (Honneth, LR. p. 261). Para Honneth (LR, p. 145), tais lutas por reconhecimento visam não somente à autonomia moral do indivíduo, mas também à ampliação do reconhecimento universal, na esfera jurídica, o que afeta toda a comunidade e acaba “colocando em questão a ordem institucionalizada”. Mas esse quadro abrangente, é preciso dizer, depende de que as lutas por reconhecimento coloquem em xeque alguns padrões normativos hegemônicos e possam contribuir para um “enriquecimento da comunidade”. A tarefa é saber como se pode conciliar a cartilha liberal que faz referência a indivíduos, e seus direitos formais, com a promoção democrática de constituição de grupos, e de condições para suas ações coletivas. Ainda mais se não deixamos de nos atentar para a situação assimétrica entre o apelo aparentemente individual a direitos que são, pela condição de dominação de um grupo, universais (ou seja,

156

A esse respeito, Honneth (LR, p. 258) explicitamente afirma que, “diferentemente de todos os modelos explicativos utilitaristas, ele [seu conceito de luta social] sugere a concepção segundo a qual os motivos da resistência social e da rebelião se formam no quadro de experiências morais que procedem da infração de expectativas de reconhecimento profundamente arraigadas”.

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não há conflito entre os interesses individuais e a demanda passível de coletivização pelo agregado de indivíduos que partilham desses interesses) e a lógica perversa a que está submetido qualquer grupo oprimido: entre o interesse individual de escapar de certa dominação (por exemplo, entre ficar desempregado ou submeter-se “livremente” a remuneração menor do que a estipulada pelo sindicato, conquistando o emprego mas contribuindo para sua precarização) e o interesse coletivo (de manter o piso mínimo para o salário, mesmo sob risco – alegado pelo patronato – de aumento do desemprego geral), não há saída fácil nem evidente que leve à universalização daqueles interesses individuais. Vimos, na sessão anterior, como as formas de reconhecimento mútuo foram utilizadas por Honneth para balizar sua reflexão sobre um modelo normativo de justiça social e quais são as alternativas surgidas a partir desse modelo para equacionarmos a superação das desigualdades e injustiças sociais. Por hora, cumpre notar que aparece aqui, novamente, o velho dilema da ação coletiva, tal como descrito por Mancur Olson (1999), mas ele se mostra ainda mais complexo diante da assimetria de poder entre grupos, que altera substancialmente sua capacidade de formular e universalizar propostas e interesses coletivos157. O poder, ou o privilégio, nesse caso, é não precisar se preocupar com o privilégio de fazer parte do grupo que tem, como interesses individuais e privados, aqueles direitos já institucionalizados ou os interesses dominantes, que podem entrar na agenda política158.

157

É justamente essa assimetria que fica invisibilizada em certas concepções de darwinismo social, como as de Herbert Spencer e de Ludwig von Mises. Eles acreditam que na “luta pela existência”, em um ambiente de livre-mercado, os melhores ainda sim ofereceriam seus serviços aos desejos da maioria, de modo que o poder econômico, visto sob esse ângulo, estaria nas mãos dos consumidores. A associação de “poder” com “desejos da maioria” pode ser tentadora, mas é enganosa. Platão já usava essa estratégia para afirmar o poder da maioria, mesmo sendo contrário a ela. Então, associar o poder econômico aos consumidores é ver somente um lado da questão, reduzida a um ingênuo decisionismo: optar por uma das ofertas possíveis é diferente de escolher e participar da tomada de decisão. E, mais que isso, é invisibilizar a assimetria de poder entre produtores e consumidores, entre a força dos monopólios e as restritas possibilidades de intervenção da maioria (para, por exemplo, fixar preços ou boicotar produtos de primeira necessidade). E o paralelo até hoje feito com o poder político do voto, que transforma o eleitor em consumidor, é evidente. Sobre esse problema da multifuncionalidade da representação pela utilização do voto como sanção ou como instrumento (in)eficaz de accountability, cf. MIGUEL (2005).

158

Nesse sentido, como argumentou Pierre Bourdieu (2007 [1979], p. 518), “a classe dominante se define precisamente pelo fato de que ela possui um interesse particular pelos assuntos ditos de interesse geral, porque os interesses particulares de seus membros são particularmente ligados a esses assuntos” (apud MIGUEL [2016, p. 13]).

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O momento crucial em que Arendt se deparou com problemas dessa magnitude e com esse viés foi o já descrito caso em Little Rock. Para Arendt159, de início, estava evidente que, do ponto de vista psicológico, “a situação de ser não-desejado (uma situação tipicamente social) é mais difícil de suportar do que a perseguição direta (uma situação política), porque o orgulho pessoal está envolvido”; afinal, o que os “pais ausentes” pareciam exigir da garota negra que saía escoltada (por um amigo branco de seu pai) de uma escola recentemente integrada era que ela “fosse uma heroína”, um fardo que nenhum deles parecia estar disposto a carregar naquele instante. Mas o que Arendt aprendeu naquele caso – e especialmente com as críticas de Ralph Elisson – é que havia ali uma situação que não poderia ser captada “por aqueles que podem considerar assegurado o seu próprio lugar na sociedade”, como mencionamos na sessão 5.1; havia ali uma experiência que exigia das pessoas envolvidas – dos negros norte-americanos, no caso – uma necessidade de demonstrar, frente à discriminação social e política, um tipo de coragem que mesclava, por conseguinte, elementos sociais e políticos; exigia, portanto, um “ideal de sacrifício”, nas palavras de Elisson 160, que se não encaixava bem nas específicas distinções arendtianas. Ainda assim, a crítica de Arendt à substituição da coragem pela compaixão como virtude política, que vai justamente bloquear o caminho da solidariedade, aponta para outra parte do problema, uma parte que as lutas por liberdade e igualdade – ou as lutas por reconhecimento – não deixam tão evidente. Quando ela escreve em Sobre a Revolução acerca da “questão social”, fica claro que a atividade política essencial depende da visibilidade, pois ela só pode ser realizada na presença de outros e, tendo em vista a distinção – aquele “desejo não só de se igualar ou se assemelhar, mas de primar pela excelência”, como dizia John Adams161 –, ela também depende do reconhecimento. Se levarmos a sério a convicção, partilhada por Arendt (SR, p. 104), “de que a maldição da pobreza consiste mais na obscuridade do que na escassez”, talvez se possa justificar a posição de que é a capacidade de influência política, de participar do governo à luz 159

Cf. ARENDT, Hannah. “A Reply to Critics”. Em: Dissent, primavera de 1957, p. 179. Citado por Young-Bruehl (1997, p. 285).

160

Cf. YOUNG-BRUEHL (1997, pp. 284-285) e nota 99.

161

Cf. ADAMS, John. “Discourses on Davila”. Em: Works, Boston, 1851, vol. VI, pp. 267; 279. Citado em ARENDT (SR, p. 104, n. 11).

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do público, de ser reconhecido – legal e politicamente – como um cidadão ativo e, portanto, capaz de governar e ser governado, aquilo que deve mover uma “questão política”. Por isso, a ação-como-Revolução, que está centrada na decisão sobre a forma de governo, na instauração de uma Novus Ordo Saeclorum, e que descrevemos nos capítulos 6 e 7 por meio da proposta do sistema de conselhos, precisa ser tematizada agora sob outra forma: a de uma ação-comoFundação, centrada no reconhecimento de direitos sociais e políticos e amparada pela fundação da liberdade, isto é, na Constitutio Libertatis, na constituição de uma comunidade política, “que garante o espaço onde a liberdade pode aparecer” (Arendt, SR, p. 170). *** A miséria e a indigência trazem consigo não só a mutilação das condições para a vida humana, como também a invisibilidade e a indignidade que, se de qualquer ponto de vista são todas intoleráveis, só podem ser resolvidas pela via política parcialmente. Há uma outra parte, se podemos dizer assim, que envolve essencialmente questões técnicas e administrativas de redistribuição de domínios. Assim, mesmo a mera escolha de representantes não substitui essa atividade política essencial. A representação, o fato de que se possa atribuir a responsabilidade por essa atividade a outros, vai dizer Arendt (SR, p. 104), “é apenas uma questão de ‘autopreservação’ ou de interesse próprio, necessária para proteger a vida dos trabalhadores e de defendê-los da intromissão do governo; [mas] essas salvaguardas essencialmente negativas não abrem de forma alguma a esfera política à maioria” – o que, em essência, é a mesma ponderação que Honneth (LR, p. 50) havia feito sobre formas jurídicas de reconhecimento somente incluírem os sujeitos “mediante liberdades negativas”. Por isso, surgem em nosso horizonte duas alternativas que, conjugadas, nos oferecem um exemplo concreto para a ação-como-Fundação: o reconhecimento de grupos invisibilizados e a formação de identidades narrativas. Seguindo esse argumento, poderíamos retomar brevemente a questão da pobreza – a exclusão da “questão social” como problema político – para submetê-la a novo exame, à luz da heideggeriana “primazia existencial” que Arendt dá à ação enquanto exercício de sentido, isto é, enquanto criação e ampliação da legislação que inscreve esse sentido no mundo e lhe

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dá durabilidade – afinal, como relembra Dana Villa (1996, p. 7. trad. minha), “é por meio da ação política que nosso senso de justiça – daquilo que temos para com nossos concidadãos e para com aqueles que virão depois de nós – é, ao mesmo tempo, articulado e preservado. Sem um ‘sentido de comunidade’, a justiça se torna mera legalidade”. Como vimos, no esquema arendtiano há uma análise fenomenológica do espaço específico que foi configurado, historicamente, com a realização cotidiana de cada atividade humana. Desse modo, a inflexível exclusão de questões socioeconômicas do âmbito político tem a intenção não tanto de manter a “pureza” da esfera política – que é mais porosa do que alguns de seus críticos sustentam162, pelo simples fato de ser historicamente variável conforme “o que é valioso de ser discutido em público” pelo corpo político específico desse tempo163 –, mas principalmente de reivindicar a autonomia própria dessa esfera – que foi perdida na modernidade, solapada pelo domínio do social. E essa distinção nos indica que há pelo menos duas abordagens diferentes para o problema das desigualdades socioeconômicas e, em sua face mais radical, da questão da pobreza. Por um lado, este é um problema que se tenta resolver por meios econômicos – de redistribuição de riquezas164. Excluir essa forma de resolução do problema do âmbito político, embora seja bastante questionável, diz respeito ao fato de que, ao entrar na esfera política, se essa questão não é traduzida em demandas e termos políticos, então corremos o risco de desviar o foco da política (o mundo comum) para a disputa de interesses privados, por assim dizer, o que nos levaria de volta à lógica tradicional e utilitarista de “luta por autoafirmação (econômica)”165. Por outro lado, abordar o problema da pobreza em seu aspecto político nos leva a distinguir as questões estritamente políticas – isto é, de opressão e exploração, de denegação de reconhecimento, de redistribuição de domínios – daquelas “condições políticas

162

Uma boa revisão da posição de alguns desses críticos – nomeadamente, D’Entrevés, Benhabib e Pitkin – encontra-se em CORREIA (2008).

163

Cf. citação em HILL, Melvyn [Ed]. Hannah Arendt: The Recovery of the Public World, p. 316.

164

Cf. a discussão feita na sessão 6.2 sobre o tipo 5 de igualdade.

165

Ao menos essa é a advertência de Honneth (LR, pp. 230-237). Para ele, Marx faz uma controversa transição do modelo hegeliano de reconhecimento para o modelo de luta de classes, pela alienação do trabalho, e a insere dentro da lógica de detenção dos meios de produção e do antagonismo de interesses econômicos – o que o levou, na visão de Honneth, a meramente sustentar a lógica tradicional e utilitarista de “luta por autoafirmação (econômica)”.

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para a mundanidade do homem”, como diz Arendt (CH, p. 265). Arendt não tem dúvidas de que a mais elementar dessas condições é a propriedade que, “em contraposição à riqueza e à apropriação, refere-se a uma parte do mundo comum que tem um dono privado” (ibid.). Perder esse lugar privativo no mundo, pela expropriação, e, portanto, deixar de pertencer ao corpo político, tornam-se equivalentes, respectivamente, à alienação em relação ao próprio mundo comum e ao desenraizamento do indivíduo de sua comunidade. É inegável que a pobreza impede que pessoas submetidas a esse extremo de desamparo [loneliness] tenham “condições e possibilidades de permanência” no espaço público, para usar os termos de Dana Villa (1996, p. 11). Mas esse é ainda o sentido prépolítico da questão – e a razão mesma de sua localização fora da esfera política, de modo que sua solução possa ser apropriadamente resolvida no âmbito da administração das coisas e da geração de condições técnicas. O fato é que a pobreza, em seu sentido estritamente político, tal como analisado por Arendt (SR, pp. 103-109), torna os homens invisíveis e, mesmo que essa situação seja parcialmente contornada pelo desenvolvimento econômico ou pela representação social de seus interesses, as circunstâncias existenciais das pessoas, por assim dizer, ainda “permanecem nas sombras”; elas são percebidas como indivíduos indistintos que convivem com seus iguais, sem as condições de enraizamento, pertença e pluralidade, que são os meios para a ação. Nas palavras de Arendt (CH, p. 224), isso significa que essa pessoa “vive na presença e na companhia de outros, mas [que] esta companhia [togetherness] não possui nenhum dos traços distintivos da verdadeira pluralidade”, ou seja, que esta companhia se dá somente para a sobrevivência ou pelo fato óbvio de que precisamos uns dos outros enquanto seres viventes. Apesar disso, mesmo para uma autora que tem em elevada conta a participação ativa dos cidadãos na vida pública, sua avaliação sobre o possível ganho político ao se tentar resolver a questão da pobreza, ainda que por meios administrativos (como ela considera adequado), traz um caráter marcadamente demofóbico, se bem que condizente com a realidade de uma sociedade de massas, dada sua certeza de que o instinto de autopreservação, e não o desejo de distinção, está marcado a ferro no animal laborans166: 166

Nesse sentido, Arendt (OT, pp. 444-446) já havia observado como o homem de massa, com sua “amargura egocêntrica”, é diferente daqueles que, pobres ou burgueses, ainda retém “o interesse no

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Quando os pobres enriqueceram, na América e em outros países, não se tornaram membros das classes ociosas motivados em suas ações pelo desejo de primar pela excelência, mas sucumbiram ao tédio do tempo livre, e, embora também desenvolvessem o gosto pela ‘consideração e reconhecimento’, contentaram-se em obter esses ‘bens’ da forma mais barata possível, isto é, suprimiram a paixão pela distinção e pela excelência que só pode ser exercida à luz plena do público. […] Em vez de vir para a praça pública, onde a excelência pode brilhar, eles preferiram, por assim dizer, escancarar suas residências particulares ao ‘consumo conspícuo’, ostentar suas riquezas e exibir aquilo que, por sua própria natureza, não se presta a ser visto por todos. (Arendt, SR. p. 105. grifo meu).

A crítica de Arendt, portanto, vai dirigir-se não à inclusão de pobres, ou de quem quer que seja, no corpo de cidadãos governantes – e seus argumentos pela necessária ampliação da participação no governo corroboram esse ponto, mesmo que seu diagnóstico da situação atual seja absolutamente pessimista, para não dizer, novamente, demofóbico. Sua discussão trata, antes, da perniciosa ideia de que os pobres, depois de assegurada a questão da sobrevivência, precisam ser mantidos pobres e unificados para serem “incluídos” no dēmos, deixando-os ausentes não da consideração do público, mas do próprio espaço público de ação e intervenção e, por isso, deixam de ter a autoridade necessária para reequilibrar a balança da justiça nos momentos em isso se mostra fundamental167, como havíamos concluído no capítulo 7. Para Arendt, foi isso que ocorreu quando a compaixão substituiu a coragem como virtude política. *** Ao tratar da importância – muitas vezes devastadora – que a compaixão exerce nos espíritos revolucionários desde a Revolução Francesa, Arendt (SR, p. 109) está ciente de que “era tão impossível desviar os olhos da miséria e desgraça da grande maioria da humanidade no século XVIII em Paris ou no século XIX em Londres […] quanto hoje em alguns países

próprio bem-estar” e, portanto, ainda pertencem a uma determinada classe e ainda mantém “relações sociais normais”. O que o “colapso da sociedade de classes” trouxe consigo foi “um claro enfraquecimento do instinto de autoconservação” do homem de massa atomizado, que se mantinha consciente somente de sua desimportância e dispensabilidade, mas agora esse era um “fenômeno de massa”. 167

Para o argumento de Amartya Sen (1999) nesse sentido, cf. também a nota 132.

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europeus, em muitos latino-americanos e em quase todos os asiáticos e africanos”. Assim, sua objeção à invasão da “questão social” nos domínios políticos não diz respeito a uma insensibilidade qualquer “à falta de oportunidades iguais ou ao problema do prestígio social que, nas últimas décadas, tornou-se um tema central nas ciências sociais” (Arendt, SR. p. 108). O que a autora insiste em marcar é que, no decurso de uma revolução iniciada, como quase todas, contra a tirania e a opressão, foi a manutenção da distância entre governantes e governados, entre o governo e a nação, aquilo que a afastou desse propósito político; em suma, foi a incapacidade de fundar ou alterar politicamente a forma de governo – em seu sentido amplo, de como as pessoas governam e são governadas – o que gerou seu efeito mais pernicioso: substituir o desejo de liberdade e felicidade, por assim dizer, pela força da vontade e da necessidade. E a compaixão, segundo sua análise, foi o local exato para onde convergiram as demandas de legitimação social das leis e de legitimação pessoal dos representantes. Afinal, como proclamou Robespierre em seu discurso diante da Convenção Nacional, em fevereiro de 1794, “as leis devem ser promulgadas ‘em nome do povo francês’ e não da ‘república francesa’”168. Era o “povo francês” que garantia, ao mesmo tempo, a legitimidade das ações, por ter sua vontade previamente unificada, e a legitimação das soluções, pela compaixão que, mesmo sem saber, despertava. Ao deixar de lado a tarefa, seguramente difícil e lenta, de alcançar o que Rousseau chamou de “vontade de todos” pela persuasão e assentimento, e de condensar o altruísmo da compaixão – essa “capacidade de se render aos sofrimentos alheios” (Arendt, SR. p. 118) – em uma “vontade geral”, o caminho dos revolucionários franceses que visavam ao bem de todos foi logo desviado para o “terror da virtude” de Robespierre. Foi assim que, distorcida sob a forma de piedade – esse “lamentar [pelo sofrimento de outrem] sem sofrer na própria carne” (Arendt, SR. p. 123) –, a compaixão quebrou em um mesmo movimento dois pilares políticos: a compaixão abole a necessária distância que separa os homens e torna possível a mediação de seus interesses, agora unificados sob a mesma paixão, e o faz porque declara ainda “que é mais fácil sofrer do que ver os outros sofrerem” (idem, p. 124), colocando o dever da compaixão acima da virtude da coragem, limitando desejo de liberdade à tarefa de

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Apud ARENDT (SR, p. 112, n. 20).

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libertação. Nesse sentido, ela tanto destrói o espaço entre os homens, onde se situam os assuntos políticos, quanto acaba, ao mesmo tempo, com a igualdade artificialmente presumida entre eles e com a distinção entre cada um, ou seja, com o fato de a pluralidade humana ser a condição da política e a liberdade, seu sentido. Por isso essa atração perniciosa pelo sofrimento do povo dificilmente se diferencia do desejo de poder, da vontade de domínio sobre esse mesmo povo. Primeiro, porque o sofrimento precisa ser mantido para que a piedade tenha ainda algum sentido. Em segundo lugar, e mais importante, como nos lembra Arendt (SR, p. 129), porque a compaixão particular pelo sofrimento encarnado em uma pessoa se desvia rapidamente para uma “insensibilidade profundamente emotiva diante da realidade”, ao considerar a unicidade meramente numérica do “povo sofredor”, fazendo dele um objeto despersonalizado sobre o qual é preciso fazer algo. Daí ser possível afirmar que essas duas visões – do povo-massa como agregado de indivíduos, ou de indivíduos como átomos do povo-mercado – são nada mais que dois lados de uma mesma moeda chamada por Sartori (TDR1, p. 46) de demolatria: “um fetiche de um povo ideal situado completamente fora da realidade”, transformado em massa ou em mercado, desprezado sempre que aparece vivo e real no plano concreto das disputas políticas, mas adulado enquanto se mantém inofensivamente arrebanhado. Por isso, como acusa o mesmo Sartori (TDR1, p. 46), “fazer um fetiche de um povo ideal anda de mãos dadas, frequentemente, com um desprezo generalizado pelo povo real”. E como sabemos, o desprezo tanto quanto a adulação são poderosas ferramentas políticas para destruir a autoridade e denegar reconhecimento169. Em resumo, poderíamos dizer que foi justamente quando os revolucionários – ao constituírem um novo corpo governante, durante a Revolução Francesa – separaram-se do restante da população (do ponto de vista político, já que socialmente eles nunca foram próximos), isto é, foi no anseio de representar le peuple [o povo] – nos dois sentidos do termo: de criar uma imagem única do povo e de sua vontade, e, ao mesmo tempo, de encarnar essa imagem nos representantes e essa vontade nas leis – que eles bloquearam o caminho dos 169

Arendt (SV, p. 62) vai dizer que “o maior inimigo da autoridade é, portanto, o desprezo”; nesse mesmo sentido, Peter Sloterdijk (2002, pp. 38-39.) nos diz que, se “no conceito de massa estão incluídas características que per se tendem a uma retenção do reconhecimento”, então “reconhecimento recusado chama-se desprezo” e a adulação é “como um desprezo invertido”.

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demais para a liberdade. Pela compaixão irrefreável, destruíram as possibilidades revolucionárias da solidariedade. Portanto, como escreve Arendt (SR, pp. 110-111), diante do fato histórico de que “a libertação da tirania trouxe liberdade apenas para uma minoria, e praticamente nem foi sentida pela maioria, que continuou vergada sob o peso da miséria”, e no intuito de “identificar a vontade própria com a vontade do povo”, os revolucionários franceses abandonaram a ideia de liberdade – e, com ela, a necessidade de constituir um novo governo, baseado na solidariedade – para adotar como tarefa a “felicidade da maioria”, a partir da paixão pelo infortúnio. É claro que toda essa construção teórica e histórica – e, portanto, questionavelmente abstrata e fria diante de circunstâncias tão avassaladoras quanto concretas – pode parecer inicialmente uma farsa, no melhor dos casos. Mesmo que amparada por noções caras à Democracia, como a igualdade e a liberdade, ela parece não dar conta do fato, igualmente inescapável para Arendt (SR, p. 134), de que, antes não menos do que hoje, “o oceano da miséria e os sentimentos oceânicos assim despertados” caminham lado a lado; e isso enquanto não deixarmos de lado aquelas paixões que, tanto quanto a razão que nos faz pensar sobre elas, mantém acessa em nós a chama do humanismo contra a sombra gélida do imobilismo. Mas, na análise de Arendt (ibid.), o fato de que essa união de oceanos nos levou a “afogar os fundamentos da liberdade” é também o que torna a questão tão sombria e complexa. Afinal, o quanto de compaixão não emerge justamente do que ela mesma chamava de responsabilidade pessoal170? E o quanto de solidariedade não depende igualmente dessa responsabilidade – não aquela perigosamente arrogante “por todo o povo”, nem alguma outra comprometida com certo “amor” pelos homens (própria da piedade) ou que leve à obediência (que, distinta do apoio, é anti-política), mas simplesmente essa “responsabilidade pessoal por julgamentos ou ações concretas” de que nos fala Young-Bruehl (1997, p. 325)? Na ânsia de não ser guiada somente pelo sofrimento das massas miseráveis ou oprimidas – o que substituiria o desejo de liberdade pelo imperativo da necessidade – e com o intento de não confundir a paixão avassaladora da compaixão com a potência política da solidariedade, Arendt se coloca dois problemas que permanecem irresolvíveis ao longo de sua 170

A esse respeito, cf. o artigo “Responsabilidade pessoal sob a ditadura”, em ARENDT (RJ, pp. 79111).

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obra: o dilema da aparente injustiça com que trata as vítimas e o enganoso reforço à injúria que seus argumentos podem oferecem aos algozes. Para Arendt (SR, p. 134), “o problema político”, que deveria ser levado em conta quando a multidão miserável grita em uníssono pelo pão e se converte em uma só massa lutando pela sobrevivência, é “que o sofrimento de fato alimenta emoções, disposições e atitudes que se assemelham à solidariedade a ponto de se confundir com ela, e que – não menos importante – a piedade por muitos se confunde facilmente com a compaixão por um”. Assim, a solidariedade – que é objetiva porque se funda em um mundo comum sobre o qual se pode falar e, portanto, é externo aos agentes e passível de mediar seus interesses –, deve ser a meta a guiar as ações políticas tanto quanto a compaixão pode ser o motor que inspira a iniciativa de cada agente – mas somente enquanto for limitada ao indivíduo que a desperta e ao indivíduo que a sente, isto é, à relação pessoal entre eles, pois será sempre subjetiva e incomunicável, ausente portanto das considerações políticas, mas indiscutivelmente presente nas considerações individuais. Talvez por isso mesmo Arendt (SR, p. 127) vá concluir, finalmente, que “é por piedade que os homens são ‘atraídos para les hommes faibles’, mas é por solidariedade que eles estabelecem de modo deliberado e como que desapaixonado uma comunidade de interesse com os oprimidos e explorados”. *** De todo modo, para grupos histórica e socialmente oprimidos ou excluídos de narrativas hegemônicas, em suas lutas por ampliação de liberdades coletivas, a acepção proposta por Ricœur (2006) – do reconhecimento de si como expressão de capacidades e produção de identidades narrativas – aparece de modo particularmente promissor. E, mais ainda, se entendermos que a estratégia afirmativa do reconhecimento, ou de “valorizar a especificidade do grupo”, como vai dizer Fraser (2001, p. 264), pode ter como objetivos, justificadamente e sem contradição formal, aqueles aspectos da equalização de oportunidades e do “tratamento igual”, evocados no capítulo 6.

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Afinal, o reconhecimento de si, se entendido como identificação e expressão de capacidades, é gerador de um homem capaz de criar e disputar, na instauração de seus vínculos sociais, a produção de identidades narrativas, quando o “aprender a narrar-se é também aprender a narrar a si mesmo de outro modo” (Ricœur, 2006, p. 115)171. Ou seja, se o reconhecimento de si pode levar à atestação de certas capacidades e à noção de reconhecimento de responsabilidades e, consequentemente, de imputabilidade, então passamos do reconhecimento de si – isto é, do “homem capaz” – para a apreciação de suas identidades narrativas, o que resulta na admissão de si – que trata do que “eu posso” – e em demandas pela reconfiguração de certas representações sociais. O que se vê nessa linha de argumentação de Ricœur (2006) é o salto entre a atestação e a reivindicação, isto é, do direito de exigir para a exigência por direitos. Espera-se com isso que uma avaliação da promoção da justiça social deva permitir a comparação, entre regimes políticos concorrentes, de respostas aos conflitos sociais advindos de demandas pela ampliação de direitos que garantem capacidades reais de ação e escolha. Ricœur (2006, p. 160) no ensina, ainda, que esse tipo de análise se mostraria compatível com distintas invenções da democracia, pois […] essa marca ética colocada sobre a atestação das capacidades e sobre a reivindicação das capacidades é, no fim das contas, comum ao pensamento dos antigos e ao dos modernos. O direito a certas capabilidades remete à ideia grega de areté, e não se deve esquecer que ela significa fundamentalmente a excelência da ação.

Assim, embora possamos concordar com a distinção analítica e didática (e mesmo de prática e estratégia política) entre redistribuição e reconhecimento, proposta por Fraser (2001, p. 253, n. 14), especialmente porque ela permitiria “distinguir interferências mútuas que 171

Consciente dos problemas envolvidos no ato de “reconhecer-se em um determinado personagem” de uma narrativa disponível, ou mesmo de indivíduo prefigurar-se como identificado a determinados grupos ou identidades mais socialmente aceitas, Ricœur (2006, p. 115) argumenta que “essa apropriação pode assumir uma variedade de formas, desde a armadilha da imitação servil (…) passando por todos os estados da fascinação, da suspeição, da rejeição, até a busca do justo distanciamento em relação a modelos de identificação e a seu poder de sedução. Aprender a ‘narrarse’ poderia ser o benefício dessa apropriação crítica”. Ainda assim, a apropriação crítica pode não ser suficiente, já que ele mesmo diz que “é digno de nota que as ideologias do poder procurem, com um sucesso inquietador, manipular essas identidades frágeis (…) graças a recursos de variação oferecidos pelo trabalho de configuração narrativa [que] tornam-se assim recursos de manipulação” (Ricœur, 2006. p. 118). Daí o argumento de que as lutas por reconhecimento não têm como único desfecho possível – e nem sempre o mais desejado, necessariamente – as políticas culturais de reconhecimento afirmativo de identidades, tal como problematizado por Fraser (2001).

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poderiam surgir quando as demandas distributivas e as demandas por reconhecimento são perseguidas simultaneamente”, não podemos adotar como única acepção para “reivindicações de reconhecimento” aquelas que “tendem a promover diferenciação entre grupos”, se essa diferenciação é o mesmo que “arranjos econômicos que causam especificidades de grupos” (pp. 253-254). Isso porque é perfeitamente plausível argumentar que algumas “reivindicações de reconhecimento” – senão, mais generalizadamente, que a maioria das atuais lutas por reconhecimento no âmbito da democracia172 – são demandas por “tratamento igual” e, portanto, visam a promover, ao contrário do que diz Fraser (2001), a equalização entre grupos. Afinal, como vimos no capítulo 6, a partir do que escreveu Sartori (TDR2), a demanda por “tratamento igual” não se reduz ao imperativo liberal-formal de igualdade, mas é ampliado justamente por meio das lutas democráticas “por reconhecimento”. Se admitimos que as disputas para a participação, produção e reprodução de tais ou quais representações moldam não somente os laços sociais feitos e desfeitos nesse processo, como também as práticas sociais que emergem dessas disputas, então podemos validar a conclusão de Ricœur (2006, p. 150), que aponta para o fato de que “a ideia de capacidades sociais encontra sua justificação no acoplamento entre representações coletivas e práticas sociais”. Isso significa que tais práticas são, ao mesmo tempo, constituídas e constituintes de determinadas identidades coletivas lutando por reconhecimento: o reconhecimento de suas capabilidades173. Desse modo, poderíamos indicar que essas lutas estão situadas entre as demandas por igualdade e liberdade, seja para questionar “diferenças relevantes” e desconstruir privilégios simbólicos ou econômicos de determinados grupos superiormente posicionados nas escalas de status social, seja para requerer direitos, oportunidades ou acessos iguais e, em algum grau mais radical de igualitarismo, certa equalização de circunstâncias por meio, necessariamente, da redistribuição de domínios. Com isso, o que se recupera, no mesmo movimento, e em sentido alternativo aos utilitaristas, é não só a relevância em se avaliar socialmente a capacidade de agir – a agency – a partir da liberdade de realizar dos indivíduos,

172

A esse respeito, Honneth (RR, p. 169. trad. minha) comenta que “a gramática moral dos conflitos conduzidos atualmente ao redor de questões das ‘políticas de identidade’ em Estados liberaisdemocráticos é essencialmente determinada pelo princípio do reconhecimento da igualdade legal”.

173

A esse respeito, cf. acima a nota 147.

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que está no leque das liberdades “positivas”, mas também sua conexão real e necessária com os direitos garantidos politica e juridicamente por instituições ocupadas com a redistribuição e o reconhecimento dos bens sociais. 9.4. Fraser: segunda alternativa para o estudo da justiça social Diante dessa argumentação, parece ser inescapável que a fonte de boa parte de nossos atuais conflitos sociais advenha de interpretações morais e da coletivização de decisões políticas. No entanto, essa postulação precisa dar conta dos conflitos que partem, ao mesmo tempo, de implicações materiais dessas decisões políticas, isto é, daqueles que são originados no campo denominado por economia. Em outras palavras, pode ser que haja lutas específicas motivadas por desigualdades de classe social, que tratam da injustiça social visando a redistribuições econômicas e materiais pela transformação no campo infraestrutural das relações de produção e propriedade, e que estariam focadas em outras estratégias, para além daquelas que visam à emancipação por meio de transformações socioculturais no reconhecimento do status, seja ele social ou político, em ambiente liberal e pós-tradicional que não condiciona mais esse status à hierarquia estamental e que permite alguma forma de mobilidade social. A inclusão desse componente “material” na estratégia de Honneth (LR) ainda aparece apenas esboçada e, de fato, como argumentamos anteriormente, seria preciso conjugar à motivação moral dos conflitos sociais o aspecto de formação e reprodução dos interesses individuais e de grupos para fechar o circuito explicativo das práticas e lutas sociais. Quem retomou o debate nesses termos foi a cientista política norte-americana Nancy Fraser, ao publicar em 1997 o artigo “From Redistribution to Recognition? Dilemmas of Justice in a ‘Postsocialist’ Age”174. Esse texto abriu caminho para um “intercâmbio políticofilosófico” entre ela e Axel Honneth, publicado, em 2003, na compilação Redistribution or

174

O referido artigo foi publicado em FRASER (1997). Utilizaremos aqui a versão em português publicada em FRASER (2001), a partir da tradução de Márcia Prates do artigo original que, por sua vez, foi uma versão ampliada e modificada da lecture apresentada por Fraser na University of Michigan em março de 1995.

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Recognition?. Mesmo que Fraser (2001, p. 245) admita, de saída, que “a luta por reconhecimento tornou-se rapidamente a forma paradigmática de conflito político no fim do século XX”, ela vai alertar para o fato de que “estamos presos nos círculos viciosos de reforço mútuo da subordinação cultural e econômica. Nossos melhores esforços para reparar essas injustiças (…) estão gerando efeitos perversos” (idem, p. 282). Assim, se ela identifica um nível crescente de desigualdade material nessa era pós-socialista, mesmo dentro do contexto liberal de universalização dos direitos humanos 175, fica a questão sobre o motivo de estarem, como ela diz, “eclipsados” aqueles apelos igualitários por redistribuição e aquelas análises críticas sobre as situações de exploração, interesse e classe. É para tentar buscar alternativas diante desse diagnóstico que Fraser (2001, p. 246) vai propor a tarefa de articular “uma teoria que identifique e defenda apenas versões da política cultural da diferença que possa ser coerentemente combinada com a política social da igualdade”. A proposta de Nancy Fraser (2001), se encarada como uma maneira de se postular o problema da justiça social mais focada nas estratégias e práticas políticas adotadas pelos agentes coletivos dos novos movimentos sociais, pode ser descrita nos seguintes termos: o dilema entre redistribuição e reconhecimento é encarado como um balanço complementar entre ambas as políticas, sempre e quando houver demandas específicas que não impliquem perda de liberdades por conta de “apelos à diferença” que, como vimos, estão a meio caminho entre o tratamento igualitário e a complexa equalização das desigualdades. Assim, os aspectos que emergem entre as lutas por reconhecimento e as demandas por redistribuição se situam em um movimento dual entre o geral e o particular: demandas particulares e específicas de uma dada perspectiva apelam tanto a padrões gerais de organização social que equalizem as desigualdades quanto a mecanismos de regulação de conflitos que integrem essas demandas.

175

Fraser (2001, p. 247 e n. 3) assume como “pressuposto preliminar” de seu argumento “o fato de variedades de política de reconhecimento que não respeitem direitos humanos (fundamentais, dos tipos usualmente festejados pelos liberais de esquerda) serem inaceitáveis, mesmo se promoverem igualdade social”. Vale indicar, no entanto, que o modelo de Honneth, por ser metodologicamente construído a contrário, isto é, considerando primeiramente formas de desrespeito social que incluem torturas, privações de direitos e ofensas sistemáticas, além de não se comprometer com uma construção histórica de formulação específica do que sejam os direitos humanos, parece oferecer um leque mais amplo para explicar o modo como algumas formas de resistência e luta social podem incidir em ampliação das liberdades individuais e coletivas, mesmo quando contrárias ao padrão de organização social atual e à ordem jurídico-institucional vigente.

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Em outras palavras, pode-se dizer que as democracias contemporâneas dão lugar ao confronto entre dois impulsos contrários, mas correlacionados. O foco no indivíduo permite que se façam e se mantenham promessas políticas que visam à autonomia individual e à autorrealização pessoal, além de autorizar a prestação de contas sobre as garantias de validade da inviolabilidade de cada ser humano. É esse impulso que nos leva a demandas pelo particular que há em cada indivíduo, seja para protegê-lo ou para puni-lo, e que nos leva, portanto, a afirmações identitárias (em suas diversas manifestações) e a demandas por respeito à diferença. Por outro lado, o mesmo foco no indivíduo, mas em seu viés hegemônico atomizado, que considera esse indivíduo de maneira isolada dos demais, dá margem às constantes rupturas do tecido social e coletivo, o que amplia a faixa de exploração permitida em contratos de base mercantilista ou utilitarista, como vimos na sessão 6.1, e aumenta as distâncias, desigualdades e opressões sociais a que esse mesmo indivíduo estará mais ou menos sujeito, a depender do coletivo ao qual está associado em um dado momento. Assim, em sentido contra-hegemônico, esse impulso nos leva àquelas demandas pelo universal e comum que há no coletivo humano, às práticas sociais que geram e são geradas por representações coletivas e, enfim, às lutas pelo reconhecimento das identidades múltiplas e coletivas, em apelos geralmente relacionados a demandas por igualdade. Fraser (2001, p. 251) reforça em diversos pontos do texto, no entanto, que “essa distinção entre injustiça econômica e injustiça cultural é analítica. Na prática, ambas estão interligadas”. Assim, é para uma análise mais refinada e condizente com a complexidade do problema que ela vai postular que toda forma de injustiça pode ser apresentada e igualmente reclamada sob uma perspectiva dual, isto é, em sua bidimensionalidade irredutível: uma que trata da má distribuição presente na estrutura político-econômica de uma sociedade de classes e que requer, portanto, lutas por redistribuição, e outra que envolve situações, pontuais ou sistemáticas, de desrespeito quanto ao status social ou político de grupos ou entre grupos, em uma sociedade democrática, quando se requerem lutas por reconhecimento. Ou seja, nessa perspectiva analiticamente dual, há uma dimensão material, que aborda o aspecto socioeconômico da igualdade como condição objetiva de interação social, e outra dimensão simbólica, como condição intersubjetiva da representação e da comunicação, que visa ao desenvolvimento moral de certos valores culturais (que regulam as interações sociais com

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base na estima e no respeito) sempre que haja ampliação da liberdade pela equivalência de direitos e pela promoção da solidariedade. Nesse embate entre perspectivas que primam pela igualdade e perspectivas que dependem da valorização da diferença, é justamente aquela difícil conciliação para reequilibrar a balança da igualdade, discutida ao longo dos capítulos 5 a 7, que se reconfigura novamente. Por isso, não seria inoportuno chamar o conjunto dual dessas perspectivas, retomando os termos de Sartori (TDR2) expostos no capítulo 6, de equalização de oportunidades e circunstâncias. Se demandas para ampliar oportunidades de acesso não requerem, necessariamente, políticas redistributivas, quando tratamos de reivindicações por igualdade nas circunstâncias (sejam elas materiais ou simbólicas), então adentramos o campo em que é preciso definir os meios para equalizar as condições iniciais ou, ainda, evidenciar formas para a redistribuição de domínios. Em que medida as políticas culturais que enfocam a diferença e que se concentram em políticas afirmativas para efetivar alguma redistribuição podem ser conflitantes ou mesmo mantenedoras de estigmas sociais que elas visavam extinguir? – é isso que foi exaustivamente discutido por Fraser (2001). A pergunta à qual seria necessário responder, talvez culminando em investigações sobre as raízes últimas das motivações intersubjetivas para os conflitos sociais, poderia ao menos ser formulada da seguinte maneira: as lutas sociais são todas e tão somente estratégias diferentes para atender a uma mesma e única necessidade humana universal (de reconhecimento, que é sua causa motivacional)? Ou, antes, trata-se de duas necessidades primárias e irredutíveis uma à outra (de justiça econômica/igualdade social e de liberdade/reconhecimento cultural)? Ao respondermos afirmativamente à segunda questão, então é o caso de se demandar soluções distintas para cada necessidade, uma vez que elas estejam em domínios diferentes, mas também soluções complementares, uma vez que economia e cultura estejam “imbricadas dialeticamente”, de modo que ainda possam aparecer, politicamente, sob o manto da mesma estratégia. Para Arendt, vale recordar, a solução é a separação entre essas duas soluções, ou seja, a separação entre as demandas econômicas, com solução técnica, e as demandas por liberdade, que só podem ser articuladas politicamente. Para Fraser (2001, p. 280), a maneira

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possível de se lidar com problema também parece evidente, uma vez que os coletivos reais tendem a ser ambivalentes176: […] o dilema de redistribuição/reconhecimento é real. Não há qualquer jogada teórica que permita sua completa dissolução ou resolução. O melhor que podemos fazer é tentar suavizar o dilema achando abordagens que minimizem conflitos entre redistribuição e reconhecimento em casos nos quais ambos devem ser buscados simultaneamente.

No entanto, se caminharmos com Honneth, visando ao monismo metodológico, mas sem abandonar completamente a suspeita de Fraser de que as lógicas das políticas de redistribuição e de reconhecimento podem ser diferentes, podemos indagar novamente se a lógica das políticas de redistribuição não vêm ao auxílio das demandas sociais quando a lógica de “tratamento igual” (que podem sim estar associadas a políticas de reivindicação de reconhecimento) não contribui para alterar os padrões de reprodução material da sociedade. Se a universalização de direitos é processo historicamente progressivo, há que se ter em conta que a relação aporética entre igualdade e liberdade não pode ser sanada, não apresenta conclusão, senão sob o risco sempre permanente de que, por um lado, o “tratamento igual” – instrumento político ainda eficaz contra os particularismos patrimonialistas, como vimos no capítulo 8177 – sirva para nada mais do que perpetrar desigualdades e opressões, e que o “tratamento desigual”, por sua vez, não possa contribuir para assegurar a liberdade de todos diante da imensa desigualdade ainda existente entre muitos. Em termos habermasianos, tal como Honneth (LR) se propõe a revisitá-los, os conflitos realmente se concentram no mundo da vida, e se articulam por meio da ação comunicativa. No entanto, quando as demandas por igualdade se chocam contra o sistema e são impedidas pela ação estratégica que guia a reprodução material das determinações econômicas, parece ser a mesma lógica que, ao demandar o reconhecimento da igualdade,

176

Fraser (2001, pp. 259-261) trata de “coletividades ambivalentes” como grupos que sofrem ambos os tipos analiticamente diferenciados de injustiças de modo primário e original, sem que um tipo seja efeito indireto do outro. Coletividades fundadas na “raça” ou na divisão de gênero são apresentadas pela autora como paradigmáticas dessa ambivalência, pois parecem estruturar divisões básicas da economia política tanto quanto diferenciações (e depreciações) culturais que, ao determinarem normas e valores sociais, contribuem para prejudicar alguns grupos sociais em detrimento de outros, “até mesmo na ausência de qualquer intenção de discriminação”.

177

Para a referência específica, veja nota 137.

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requer também a distribuição equitativa dos bens e domínios socialmente produzidos. Assim, quando Fraser (2001) chama a atenção para o fato de que as estratégias de ambas as políticas são diferentes e que, por isso, seria preciso analisá-las de maneira separada e distinta, parece ser mais correto, do ponto de vista teórico-analítico, dizer que a lógica é uma só, porque atende a uma e mesma necessidade humana – o reconhecimento –, ainda que seja igualmente verdadeiro e necessário atentar-se para as diferentes estratégias – políticas ou administrativas, como vai dizer Arendt – para que se alcance, por meio do reconhecimento, não apenas uma mudança de status para um grupo social, mas a condição e implicação material desse reconhecimento, isto é, uma transformação nas bases materiais da sociedade e no modo como a distribuição de seus produtos é feita e assegurada. É essa a ideia que está contida na origem da distinção arendtiana entre libertação [freedom] e liberdade [liberty]. E, de alguma forma, me parece ser exatamente isso, em suma, que Fraser (2001) tem em mente ao falar de seus remédios transformativos – o socialismo e a desconstrução. É verdade que ainda há, no plano da teoria moral, divergências quanto à pertinência do enfoque monista ou dualista da justiça; ou seja, que no plano da teoria política sempre há desacordos sobre estratégias de funcionamento e adequação dos modelos explicativos para os atuais conflitos sociais. Mas não seria equivocado dizer que a principal disputa conceitual entre Honneth e Fraser situa-se em um nível mais importante e profundo, que diz respeito aos objetivos – seu “porquê” e seu “para quê” – da justiça social. Embora haja acordo entre os dois teóricos sobre o fato de que a igualdade formal e o status alcançado pela valorização da autonomia individual é uma das principais condições das sociedades liberais modernas, Honneth (RR, p. 176. trad. minha) é claro ao especificar essa divergência central: […] a diferença entre nossas abordagens consiste essencialmente no fato de Fraser partir imediatamente do ponto da autonomia individual para a ideia de participação social, enquanto eu passo da autonomia individual primeiramente para o objetivo da formação identitária o mais intacta possível, para só então introduzir os princípios do reconhecimento mútuo como a pressuposição necessária para o alcance desse objetivo.

Assim, para Honneth, a justiça social depende sobremaneira da qualidade das relações de reconhecimento mútuo, cuja avaliação é feita a cada interação intersubjetiva, nos três níveis em que o indivíduo espera poder manifestar sua autorrealização. Não é o caso de

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simplesmente excluir a participação social – seja por se mostrar um conceito vago, seja por se resumir ao proceduralismo formal –, uma vez que o próprio conceito de reconhecimento mútuo, como espero ter mostrado em mais de uma ocasião, envolve tanto a noção de responsabilidade quanto a de engajamento em distintos níveis em que a interação social e o desenvolvimento institucional ocorrem. Em seu “monismo normativo”, Honneth dá continuidade àquela tentativa de resgatar a interação social como mediador único e fundamental entre os dois polos opostos por Habermas: o da dimensão sistêmica e o do mundo da vida. Honneth notou que, entre uma sociedade concebida e determinada por suas estruturas econômicas e uma sociedade fundada na intersubjetividade comunicativa que socializa seus indivíduos e instituições, havia um e somente um elo: a realidade social do conflito e as lutas por reconhecimento, advindas daí. E isso o leva tanto a resgatar o necessário momento normativo dessas lutas sociais 178, quanto a validar a força moral que impulsiona cada indivíduo a contribuir com o desenvolvimento coletivo da sociedade. Assim é que toda interação social “é também uma luta entre grupos sociais para a modelagem da própria forma organizacional da ação instrumental”, isto é, para modelagem daquele tipo de ação que visa à coordenação das ações para o êxito e para a produção das condições materiais da vida (Honneth, LR. p. 19). Por isso, para Honneth, as diversas lutas por reconhecimento incluem também, justamente porque compõem sua motivação moral de fundo, aquelas lutas específicas entre as diversas forças políticas para alterarem sejam os padrões sociais de produção e distribuição material, sejam as dinâmicas sociais de reconhecimento de valores culturais diferentes. ***

178

Honneth (LR, p. 24) apresenta a “ideia de uma teoria crítica da sociedade na qual os processos de mudança social devem ser explicados com referências às pretensões normativas estruturalmente inscritas na relação de reconhecimento recíproco”. Por isso dissemos, em mais de uma ocasião, que para Honneth as mudanças sociais devem passar por sua incidência no campo do direito, pois é ele e somente ele que regula as interações como reconhecimento recíproco (para o respeito protetivo e para a punição).

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Mesmo com todas essas distinções e definições, em algum momento foi necessário que Arendt escrevesse explicitamente a um de seus críticos sobre o fato de que nem sempre é fácil, claro ou imediato “compreender qual é o momento exato em que chegara a linha que nunca deveria ser ultrapassada”179, isto é, quando se precisa fazer o necessário. Aliás, como estão marcadas nas últimas páginas de Origens do Totalitarismo, é justamente nesses momentos de solidão e desamparo, de miséria humana afinal, que “o eu e o mundo, a capacidade de pensar e de sentir, perdem-se ao mesmo tempo” (Arendt, OT. p. 637). No entanto, a preocupação de Arendt com a conexão entre pensamento e ação só fica mais clara quando vemos, ao mesmo tempo, a maravilha e o grande perigo da ação: não somente seu início é um mistério e seus efeitos são imprevisíveis, como também é esse mesmo início que dá origem a uma multiplicidade de comunidades e às mais variadas e instáveis manifestações de leis, práticas, relações e costumes, isto é, dá origem a uma infinidade de tradições e padrões de juízo político e moral que “é lamentavelmente inadequada à rica diversidade dos seres humanos que vivem juntos na Terra” (Arendt, VE. p. 470). E é precisamente isso que Arendt (VE, p. 473) chama de “o abismo da liberdade” A ação, não ainda como resistência e não mais como revolução, mas agora como fundação, pode ser a ponte que preenche esse vazio. Ponte, pois trata da situação viva e presente na qual se encontra todo homem de ação, todo corpo político que deu início a algo novo e precisa então conectar o passado (uma vez que o ato de fundação demanda autoridade e apela à tradição) e o futuro (já que a continuidade de algo novo demanda estabilidade, que apela à institucionalização). Apesar disso, esse hiato entre “não mais e ainda não” corre o risco de ser preenchido – agora, como sempre – com ideologias e com “promessas utópicas e infundadas de um ‘reino da liberdade’ final” (Arendt, VE. p. 486). Assim, tal qual adverte Arendt (CE, p. 191), em uma reveladora resenha de A morte de Virgílio, de Hermann Broch, “como o ‘não mais e ainda não’ não pode ser transposto pelo arco-íris da beleza, […] é nesse momento que os amigos entram em cena”.

179

Cf. YOUNG-BRUEHL (1997, p. 308). A carta de Arendt foi endereçada a Judah Goldin em 18 de julho de 1963.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A noite caiu somente para os que se deixaram cair na noite. Para os que são vivos, helios neos eph’hémeréin estin – o sol é novo a cada dia. Heráclito.

Não entre sem resistência pela noite da boa morte A velhice tem de arder e imprecar [quando o fim estiver próximo Fúria, fúria contra a luz que se apaga. Dylan Thomas.

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Diante das duas perguntas que estão presentes no título dessa tese – Arendt é uma democrata?; Arendt é contra a Democracia? –, devemos responder negativamente: nem bem se pode dizer que Arendt seja uma democrata, ou uma teórica da democracia, nem tampouco pode-se afirmar, sem mais, que a teoria política de Arendt caminhe no sentido contrário ao desenvolvimento das teorias da Democracia mais progressistas ou radicais. Isso porque, se parece evidente para vários de seus intérpretes que Arendt é uma das pensadoras contemporâneas que mais efetivamente nos apresenta argumentos favoráveis à radicalização da participação na Democracia, então dificilmente se poderia dizer que seus escritos tenham sido articulados em contraposição aos princípios democráticos de igualdade, justiça e liberdade. E, de nossa parte, simplesmente nos somamos a esse coro que tem razão em dizer que Arendt não é, como nunca foi, contra a Democracia, mesmo quando ela, em seu estilo caracteristicamente controverso, deplorava o estado em que se encontravam as “democracias atualmente existentes” em seu tempo, ou mesmo quando alertava para os perigos associados à transformação da Democracia em uma “‘causa’ no sentido ideológico estrito”. De todo modo, também parece igualmente evidente para esses intérpretes que isso bastaria para que se pudesse afirmar que Arendt foi uma democrata. Ao longo desse estudo, no entanto, constatamos que há diversos contra-argumentos sobre tal epíteto. Há, até mesmo, brechas suficientes na teoria da ação de Hannah Arendt para nos levar a crer que a Democracia – isto é, que uma teoria da democracia mais robusta, com conceitos mais fortes sobre a relação entre pessoas e delas com seus governos – não pode ser pensada somente a partir de seus conceitos e, em particular, de sua proposta para a ação. Para não dizer que só falamos de flores, nos cabe então delinear – à guisa de conclusão – alguns dos pontos em que permanecem dúvidas sobre o aspecto democrático da teoria política de Hannah Arendt – seja pelas lacunas que ficaram abertas, seja pelas contradições ou aporias inerentes a seu pensamento – e que, por outro lado, se mostram passíveis de reformulação ou complementação. Com isso, visamos alcançar, tanto quanto o estado atual de desenvolvimento das teorias da democracia nos permitem, graus mais elevados de proximidade e articulação do pensamento arendtiano com uma noção “forte” de Democracia, que conjugue padrões de organização social mais comunitários, mais cooperativos, mais igualitários e plurais, com formas de governo e mecanismos políticos de regulação de

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conflitos mais interativos, protegidos, distribuídos e responsivos. Essa noção, sem pressupor uma única fórmula internacional baseada em instituições políticas e parlamentares dos séculos XVIII e XIX, permitiria a observação de múltiplas experimentações de Democracias glocais, isto é, padrões de organização e mecanismos de regulação que sejam mutuamente vinculantes e que estejam atentos tanto aos apelos locais quanto às demandas globais. Somente assim estaríamos tratando desse tradicional termo político nos marcos da continuidade dos processos de democratização e nas condições contemporâneas da sociedade em rede. *** O conjunto da obra de Arendt é bastante sistemático – embora seu estilo seja, por vezes, aporético e polêmico, mas quase sempre eloquente –, o que faz de suas definições algo sintomaticamente rígido, mesmo apesar da maneira dispersa como se encontram alguns de seus conceitos, por terem sido elaborados ao longo de diversos textos, escritos em momentos temporalmente distantes. Certamente esse é o caso de seu conceito de ação. Com incursões controversas no campo da historiografia, do ensaio crítico, do jornalismo político e até mesmo das meditações filosóficas, Hannah Arendt fez referências, raras no entanto, à estrutura da “narração de estórias” para justificar seu método peculiar de escrita e pensamento e à “fenomenologia” para caracterizar seu método filosófico. Ainda assim, a base mais geral de sua teoria política concentra-se em tríades bastante conhecidas, e já mencionadas ao longo desse estudo – todas elas, como indica Young-Bruehl (1997, p. 256), sendo “variações sobre as categorias temporais de passado, presente e futuro”. O primeiro tripé, que diz respeito às “origens” do totalitarismo, sustenta sua crítica não só aos elementos cristalizados nos sistemas totalitários, mas também à funcionalização da política e às noções de teleologia e progresso histórico. Munida das críticas articuladas por esse tripé, Arendt visa contrapor-se, em larga medida, ao que ela julga como percalços da modernidade. Nesse tripé, encontram-se suas descrições histórico-conceituais de racismo, de imperialismo e de decadência do estado nacional, sendo derivadas em três problemas políticos correlatos: o problema que emerge diante do conflito entre a nação e o Estado, e entre a Sociedade e o Estado – isto é, “o problema não resolvido de uma nova organização dos

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povos”; a perpetuação do racismo – isto é, “o problema não resolvido de um novo conceito de humanidade”; e o avanço do imperialismo, isto é, “o problema não resolvido de organizar um mundo em constante encolhimento”180. O segundo tripé é construído a partir de seus estudos sobre as atividades essenciais realizadas pelos seres humanos (a ação, a fabricação e o labor), sobre os espaços onde elas são realizadas (privado, público e social), de modo que eles sejam configurados e modificados por essas mesmas atividades, e, finalmente, sobre as condições existenciais da humanidade sobre a Terra (o fato da natalidade e da mortalidade, isto é, da própria vida, a mundanidade e os limites da terra, e a pluralidade). Em resumo, Arendt procurou avaliar os modos mais constantes como os seres humanos são condicionados por suas “raízes vivenciais”, isto é, pelas atividades que exercem e pelos espaços em que as exercem e em que habitam – daí seu assombro com os percalços da modernidade, revelado por Young-Bruehl (1997, p. 288): “o que mais distingue o mundo moderno é que as condições da existência humana, o mais constante dos três termos da análise de Hannah Arendt, estão, elas próprias, tornando-se um tema de ação humana e controle potencial”. Assim, ao constatar a reversão da hierarquia entre vita contemplativa e vita activa, empreendida pela modernidade, Arendt precisou construir o último tripé de seu sistema, delineando as faculdades humanas (o pensar, o querer e o julgar) como aquele segundo modo da pluralidade – o estar junto consigo mesmo –, um modo “pensante” que ainda pode, e precisa, ser assombrado pelos assuntos humanos – como naquele thaumadzein dos antigos gregos, um maravilhamento que, para Arendt, era a condição de toda filosofia política. Daí a clara indicação de Young-Bruehl (1997, p. 293. trad. mod.) de que o sistematismo da obra arendtiana se revela, finalmente, quando “o princípio e o fim do pensamento político de Arendt mostram, por si, serem um e o mesmo. O que unia seu pensamento era o amor que ela chegara a compreender como aquele que une o eu e os outros – o Amor Mundi”. Mesmo com toda essa sistemática, pudemos atestar algumas “pontas soltas” em seu esquema: i) a ausência de uma teoria da justiça; ii) a lacuna deixada entre ação e pensamento, isto é, entre os dois modos da pluralidade, e sua descrição incompleta sobre o Julgar (pela

180

Para as referências e nossos comentários a esse respeito, cf. acima a nota 140.

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fatalidade da morte da autora, mas também pelas tensões teóricas internas de seu pensamento), que ora é descrita como uma faculdade moral para “distinguir o que é certo do que é errado”181 (oferecendo, com isso, princípios de ação), ora é apresentada como uma habilidade narrativa do observador para desvelar significado nos eventos passados, ou que, finalmente, deve ser exercitada como uma prática política próxima da phrônesis aristotélica; iii) o viés aristocrático contraposto à crença na igualdade política; iv) a questão da autoridade e o “problema do absoluto” dos valores; v) a crítica dos sistemas partidários, que não oferece alternativa clara para os critérios de autosseleção nos conselhos para além do enaltecimento tocquevilleano da vida associativa civil; vi) a dupla visão sobre liberdade, em que a iniciativa da ação é como um pathos de novidade182, mas que não ultrapassa o “abismo”183 assinalado entre as noções de liberdade [liberty] e libertação [freedom], pois ainda está focada no voluntarismo individual e na proteção conferida por certa “estrutura de legalidade”; vii) a antinomia entre a concepção moderna e universalista da política e dos direitos (fundada no “direito a ter direitos”) e sua antimoderna concepção individualista (isto é, não-social e agonista) da ação e da presença no espaço público; viii) a antitética relação da revolução com a força (e não, como a política, com o poder), o que coloca essa forma de ação “fora do âmbito político no verdadeiro sentido”184. De natureza essencialmente teórica, mas com graves implicações para a prática política cotidiana, várias dessas “pontas soltas” já foram observadas por comentadores da obra arendtiana, que geralmente as sumarizam na indicação da ausência de uma teoria da justiça. Em seu confuso antimodernismo, como vai apontar d’Entrèves (1994, p. 8. trad. minha), “Arendt é incapaz de responder por alguns dos mais importantes resultados da modernidade – a ampliação da justiça e dos direitos iguais, além da reconfiguração das fronteiras entre o público e o privado”. E, por causa dessa alegada incapacidade, Benhabib (1990, pp. 194-195. trad. minha) complementa e conclui: 181

Cf. ARENDT (VE, p. 19 e ss.).

182

Cf. MILLER, 1979.

183

Cf. GRAY, 1979.

184

Cf. carta ao editor Klaus Piper, datada de 7 de abril de 1959, em ARENDT (OP, p. 195), também mencionada na nota 92.

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[…] a distinção entre o social e político não tem sentido no mundo moderno, e não porque toda a política se tornou administração e a economia se converteu na quintessência do público em sociedades modernas, mas primariamente porque o conflito para tornar algo digno do público é uma luta por justiça.

Embora tenhamos assinalado alguns dos ganhos teóricos e políticos com tais distinções, a obra arendtiana se fia na profunda e lacônica conexão entre ação e pensamento para lançar as bases que poderiam nos ajudar a construir pontes entre esses conflitos, advindos da mutualidade e da pluralidade humana. Assim, na medida em que a investigação sobre a faculdade eminentemente política do espírito – a faculdade do juízo – não foi devidamente apresentada e publicada, a teoria da ação de Arendt permanece incompleta. Pode-se alegar que os estudos preliminares185 e as notas feitas por Arendt186 são suficientes para encaminhar o debate, pois permitiram muitos comentários de seus estudiosos, mas é inegável que, com isso, há igualmente brechas para toda sorte de especulação. No mar revolto em que emergem, vez por outra, algumas dessas especulações, podemos observar a paradoxal facilidade com que são manejados conceitos e críticas de base profundamente aristocrática diante de esperanças igualitárias e democráticas – atitude muitas vezes frustrada pela própria teoria da autora alemã. Pudemos analisar alguns dos problemas envolvidos na contenda – irresolvível, no seio da proposta arendtiana – entre o aristocratismo de fundo e a crença abstrata no igualitarismo. Como vimos, a distinção aristotélica (e aristocrática) entre Democracia e República, que Arendt reencena constantemente, não nos oferece tanto espaço para nos movermos, com Arendt, no campo das teorias contemporâneas da democracia. Isso sem falar no “problema do absoluto” e na correlata questão da autoridade – que Arendt (HTS, p. 208) considera uma “perda irreparável”, mas que não deixa de ser

185

Penso aqui nos textos “Compreensão e política”, de 1953; na terceira parte da conferência de 1954, intitulada “The problem of Action and Thought after the French Revolution”, publicada como “Filosofia e Política” em 1990; e na conferência de 1970 intitulada “Pensamento e considerações morais”; além, é claro, das Gifford Lectures, cujo texto deu base à obra A Vida do Espírito (1971, 1978). Todos esses textos foram publicado em português, sendo os três primeiros parte da coletânea A dignidade da política (1993), organizada por Antônio Abranches.

186

Arendt ministrou um curso de dois semestres na New School for Social Research, em 1970 (e outro na Universidade de Chicago, em 1971), dedicado ao tema da faculdade do juízo – cujas notas foram postumamente compiladas por Ronald Beiner no livro Lectures on Kant's Political Philosophy (1982), traduzido por André Duarte sob o título Lições sobre a filosofia política de Kant (1993). Cf. ARENDT (VE, p. 532); LAFER (1979, p. 83); ARENDT (LFK, p. 141, n. 3).

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louvada e ensejada, até mesmo em seu sistema de conselhos, recebido por alguns como uma proposta radicalmente democrática, mas que termina por efetivar-se historicamente somente como uma breve, passageira e revolucionária alternativa para autogoverno em tempos de ausência de governo e, portanto, de lacuna na autoridade instituída. É visível, por exemplo, o embaraço explicitado em Compreensão e política, quando Arendt (CE, p. 355), ao ser confrontada com uma forma de governo que tem no “amor à igualdade” seu elemento constituinte e com um modo de vida cuja virtude é exercida pela crença no fato de que “todos os homens, a despeito de suas diferenças, são igualmente valiosos e, ademais, que a natureza conferiu a cada um o mesmo montante de poder”, os designa – usando a classificação de Montesquieu e, portanto, sem mencionar a Democracia – simplesmente por “governo” e “cidadãos republicanos”. Estes seriam regidos por leis que “não favorecem a distinção; pelo contrário, restringem o poder de cada um de modo a preservar espaço para o poder de seu semelhante” – ao que poderíamos somar a constante ambiguidade no pensamento arendtiano, que sustenta que “a discriminação, não obstante a opinião contrária atual, é um elemento constituinte do âmbito social, tanto quanto a igualdade é um elemento constituinte do âmbito político” (Arendt, HTS, p. 167). Assim, sem qualquer outro apoio que não a “estrutura da legalidade”, e a despeito de sua proclamada fé no poder de associação dos homens, isto é, em sua capacidade de ação concertada, a conclusão de Arendt (CE, p. 356) não pode ser outra: O perigo específico de todas as formas de governo baseadas na igualdade consiste no momento em que a estrutura da legalidade – dentro da qual a experiência de igualdade do poder recebe rumo e significado – desmorona ou se transforma, os poderes entre os iguais se anulam, e o que resta é a experiência de absoluta impotência.

Nem a autoridade, por ter sido irreparavelmente perdida, nem a igualdade, ambiguamente assegurada como valor político-jurídico (mas não como valor social), poderiam, portanto, servir como princípios para se julgar os acontecimentos políticos em uma Democracia que tem, como destino e princípio, o questionamento de todos os absolutos. Daí vem a impossibilidade em alcançarmos resolução satisfatória para o problema político mais concreto e cotidiano de sua teoria da ação, que Arendt deixa sempre em aberto: a inexistência

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de explicação sobre os critérios de autosseleção nos conselhos – ou, colocado em termos mais gerais, o problema da representatividade e o problema das desigualdades. Com essas observações em mente, apresentarei algumas perspectivas a partir das quais se pode avaliar o objeto sobre o qual nos debruçamos: a teoria da ação de Hannah Arendt. Nesse sentido, proponho três perspectivas de avaliação e crítica: i) a perspectiva assombrada, ou da “sombra totalitária”; ii) a perspectiva relacional, ou da “justiça social”; e iii) a perspectiva narrativa, ou da “formação identitária”. E se é certo, como ensinou Arendt (HTS, p. 169), que “a pergunta básica de toda crítica” deve ser formulada para se procurar saber “se o brilhante conteúdo de verdade da obra se deve a seu tema ou se a sobrevivência do tema se deve ao conteúdo de verdade”, então esperamos que nossas perspectivas de avaliação e crítica sirvam, dessa forma, não só para demarcar lacunas e eventuais contradições internas no pensamento da autora, mas, principalmente, como uma tentativa – que não se esgotará aqui, obviamente – de buscar preencher tais lacunas, revelando e reforçando o “conteúdo de verdade” de sua obra, além de aproveitar suas contradições internas, tão aparentes nos temas mais controversos sobre os quais Arendt refletiu em “seu próprio tempo” e que, de certa forma, ainda se mantém atuais, para constatar seu brilhantismo. Esperamos, com isso, contribuir com o alargamento da teoria da ação de Hannah Arendt, quiçá no sentido mais literal de “teoria”, ou seja, para que tenhamos uma visão mais ampla sobre o palco onde aparecem as interações humanas, sem julgá-las por meio de critérios externos ao acontecido, nem por desígnios superiores, que supostamente deveriam ser realizados. 10.1. Perspectiva assombrada, ou da “sombra totalitária” É perigoso crer que somente se pode ser livre – como indivíduo ou como grupo – sendo soberano. A famosa soberania dos organismos políticos sempre foi uma ilusão, a qual, além do mais, só pode ser mantida pelos instrumentos de violência, isto é, com meios essencialmente não-políticos. (Arendt, EPF, p. 213).

Pode-se dizer que Hannah Arendt é contra a Democracia se com isso entendemos que ela foi uma das primeiras e mais severas críticas acerca de qualquer ilusão que venhamos

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a ter sobre as vantagens exclusivas da vigência da Democracia como forma de governo nos países ditos democráticos. Para Arendt, que acreditava na forma política de governo da República, caracterizada pelo domínio da lei, o perigo estava na mistura de alienação e superfluidade dos homens, típicas de uma sociedade de massas, à soberania estatal em seu caráter “essencialmente não-político”, mesmo que (ou até mais se) fosse uma soberania popular, como na Democracia. Assim, ao escrever sobre a política e sobre a modernidade, Arendt buscava compreender a natureza particularmente nova e disruptiva do governo totalitário, encontrando em suas origens os mesmos elementos, cristalizados em um dado momento histórico: “o desenraizamento, a falta de um sentimento de pertença e a desintegração dos corpos políticos e das classes sociais”. E se essas origens “não geram diretamente o totalitarismo, no mínimo criam quase todos os elementos que acabam entrando em sua composição”, quais sejam: o racismo, o imperialismo, a ideologia, o terror e, em síntese, os campos de concentração. Assim, não restam dúvidas de que, para Arendt (CE, p. 295), “a despeito dos movimentos totalitários em determinado país, o totalitarismo em si constitui a principal questão política de nossa época”. Desse modo, quem tenta traçar uma linha para interligar os conceitos e as preocupações políticas de Hannah Arendt acaba dividindo o mundo – como ela mesma o faz em certas ocasiões – em sua parte totalitária e em sua parte não totalitária. Essa divisão, contudo, pouco contribui para o estudo da Democracia187. Assim, mesmo quando Arendt (CE, p. 300) procura ressaltar o aspecto limitado, participativo e parcimonioso da construção de um sistema político não totalitário, conjurando contra todos aqueles – sejam comunistas, excomunistas, democratas, liberais ou conservadores – que nunca abandonaram, de fato, a crença de que “a história mundial, na medida em que aspira à grandeza, sempre exigiu e obteve grandes sacrifícios”, ela vai dizer, literalmente, no paradigmático texto “Os ovos se manifestam”: O que interessa é que o totalitarismo como questão política central de nossa época só faz sentido caso se admita que todos os outros males do século mostram uma

187

Vale lembrar, por exemplo, que Sartori (TDR1, p. 246 e ss.) estabelece importantes distinções entre graus e tipos de Democracia, sem o quê uma teoria da democracia seria desnecessária.

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tendência a se cristalizar naquele mal supremo e radical que chamamos governo totalitário. Sem dúvida, todos esses outros males, comparados ao totalitarismo, são males menores: sejam eles tiranias e ditaduras, ou miséria e exploração desavergonhada do homem pelo homem, ou a opressão imperialista dos povos estrangeiros, ou a burocratização e corrupção dos governos democráticos (Arendt, CE. p. 295).

E parece ser essa, justamente, a falha na empresa de Hannah Arendt, isto é, conceber o totalitarismo – enquanto “mal radical” – em termos comparativos com os demais males políticos da humanidade. Diante da imensa preocupação em se compreender e evitar esse “mal radical”, todas as demais tarefas políticas são solapadas pela crença em uma esfera política purificada de outras questões que não sejam a liberdade e a igualdade políticas. Assim, denominaremos por sombra totalitária um dos aspectos que dificultam a aproximação de Arendt às questões mais prementes de uma sociedade democrática, ao transformá-las em “questões menores” para sua teoria política. Nessa perspectiva, por exemplo, podemos apontar, mesmo que com certo assombro, para a hipótese de que a pejorativa descrição que Arendt (CE, p. 295) faz de alguns dos “antitotalitaristas” – esses que “já chegaram a elogiar alguns dos ‘males menores’, porque a época não muito distante em que esses males dominavam um mundo ainda ignorante do pior dos males acaba parecendo nostalgicamente dourada” – estaria perigosamente próxima de sua própria imagem. Afinal, não foi precisamente essa crítica sobre o caráter nostálgico e conservador de sua teoria política umas das mais constantes que Arendt recebeu ao longo de sua vida, desde que escreveu – para mencionar somente algumas ocasiões – sobre “A Solução Grega” em A Condição Humana, deixando de lado a questão da ausência de cidadania universal e a dependência da pólis de um sistema escravagista; ou mesmo quando anotou suas observações antimodernas sobre “A questão social” em Sobre a Revolução; e também quando abordou “A questão do negro” em “Reflexões sobre Little Rock”, munida de um aparato conceitual universalista, mas com evidente insensibilidade contextual? Assim, Arendt (CE, p. 295) parece prever o dilema – quase como em uma profecia autorrealizada – quando escreve: “O problema começa quando alguém chega à conclusão de que não vale a pena lutar contra nenhum outro mal ‘menor’”. O dilema, no entanto, é que “todas as indicações históricas e políticas apontam com clareza a ligação mais do que íntima

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entre o mal menor e o mal maior”. Em outras palavras, a sombra totalitária pode ter tomado conta do pensamento arendtiano de modo a enuviar a difícil e extensa discussão sobre todos aqueles “inúmeros pequenos e nem tão pequenos males que pavimentam o caminho para o inferno”, como admite Arendt (CE, p. 296). O que se pode fazer, então, para desanuviar o pensamento de Hannah Arendt dessa nuvem densa e carregada que chamamos de sombra totalitária? Biograficamente, pelo óbvio que vem de sua história de vida e pelo aparente que vem de sua obra, não há muito. Quero dizer com isso que, afora rever e reelaborar a parte realmente radical e revolucionária de sua obra – suas três tipificações de ação política, o papel do juízo na atividade política e a questão da dignidade do “homem comum” como equivalente à dignidade da própria política –, parece que não há muito mais que possamos colocar em diálogo com as teorias da democracia. É inegável, contudo, que isso já seja bastante, ainda mais se conseguirmos ver na política arendtiana algo mais do que o desalentador “comércio do desespero”188. Mas o lado conservador e a postura reativa com que ela enfrentou alguns dos dilemas da democracia de seu tempo revelam certa incapacidade de seu pensamento em oferecer renovadas suspeitas e alternativas, em provocar, de novo e sempre, reflexões e ações. Tal incapacidade se revela no que diz respeito à insensibilidade na discussão – ou mesmo à ausência de discussão – sobre partes importantes da Democracia: partes que procuram lidar com os assim chamados “males menores”. E esse é o principal motivo por que decidimos conduzir nosso estudo sobre a teoria política de Arendt, para avaliá-la à luz do pensamento político contemporâneo sobre a Democracia, não a partir das teses históricas de Origens do Totalitarismo, mas por meio da teoria da ação delineada ao longo dos quatro anos (de 1958 a 1962 189) em que ela publicou A Condição Humana, Entre o passado e o futuro e Sobre a Revolução. Nesse período, ela deparou-se com os “outros” problemas políticos de seu tempo, descrevendo, assim, formas de Resistência e de Reconstrução para um mundo pós-totalitário, nos permitindo observar como 188

A expressão está em carta de Arendt a Judah Magnes em 3 de outubro de 1948. Citado por YoungBruehl (1997, p. 219).

189

Mais especificamente, Young-Bruehl (1997, p. 256) observa que, mesmo antes desse período, quando foram finalmente publicadas as três obras, “tudo o que Arendt escreveu entre 1952 e 1956 estava destinado originalmente ao livro sobre o marxismo”.

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o Estado de Direito oferece, mal ou bem, um espaço de movimento e de pensamento dentro do qual podemos, novamente, olhar para nossos “males menores” com a devida importância a ser dada a todas aquelas questões que mantém uma “ligação mais do que íntima” com males maiores. Esse é o caso do problema das desigualdades – política, social e econômica – em grandes democracias, assim como da questão da representatividade em sistemas democráticos multipartidários. E essas parecem ser duas das pontes que ligarão, inevitavelmente, uma série de “males menores” ao imenso mal, que ainda assombra nosso mundo, da perda de liberdades democráticas e de obliteração da dignidade do homem, ou seja, de reforço dos processos de desdemocratização. Afinal, se é certo que muitos ainda chamariam de “imagem do inferno” 190, sem qualquer exagero, nosso atual caminho como uma sociedade em escala global de ávidos consumidores e de “empregados sem emprego”, também é certo que podemos encontrar em Arendt (OT, p. 605) uma crítica vigorosa sobre essa forma de convívio humano – a pior delas, que não é somente o “domínio despótico dos homens, mas sim um sistema em que os homens sejam supérfluos”. 10.2. Perspectiva relacional, ou da “justiça social” Qualquer desdobramento do pensamento político de Arendt, baseado em sua teoria da ação e que se proponha minimamente comprometido com a Democracia, precisa incorporar alternativas para lidar com a questão da desigualdade social e uma abordagem que, ao menos, tangencie a teoria da justiça, de modo a oferecer uma visão sobre a justiça social compatível com os processos de democratização inspirados por tal desdobramento. Embora não tenha formulado qualquer teoria da justiça, Arendt (CE, p. 332, n. 2) se fia no diálogo entre pares e no exercício da compreensão, a partir de “um fluxo constante de informações fidedignas”, para lançar seu apelo: “[…] um apelo à Liberdade e à Justiça, que mobilize as

190

Tenho em mente aqui o artigo “A imagem do inferno”, em que Arendt (CE, pp. 226-233) descreve as dinâmicas sociais e políticas que ocorrem “nessa monstruosa igualdade sem fraternidade nem humanidade – igualdade que poderia ser dividida com cães e gatos – [em] que vemos, como num espelho, a imagem do inferno”.

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pessoas para a luta”. Mas esse apelo não parece ser suficiente – ou, mesmo, nem parece ter sido feito, de fato – quando observamos, por outro lado, a estrita ligação de Arendt à esfera legal como único meio de garantir, politicamente, a limitação do poder para o adequado balanço entre a igualdade e a justiça social. Com sua análise dos estudos de Montesquieu191, Arendt (CE, p. 355) vai simplesmente corroborar a ideia de que a experiência fundamental, “da qual brota a ação dos cidadãos de uma república, é a experiência de conviver e pertencer a um grupo de homens com o mesmo poder”. E isso desconsidera, ingenuamente, as profundas e variadas assimetrias de poder que constituem nossa experiência política e social atual – ou desde sempre. Assim, se afirmamos que o pensamento político de Arendt está comprometido com uma visão sobre a liberdade humana como sentido e significado da política, e não descartamos a hipótese arendtiana, absolutamente plausível, de que a igualdade conquistada por meio da libertação oferece certas condições para a liberdade, o que é que nos impede de abordar sua teoria da ação a partir de uma perspectiva sócio-histórica, que analise “o social” em relação ao político e que, finalmente, nos permita aproximar seu pensamento de uma teoria da justiça e, portanto, das teorias contemporâneas sobre a Democracia? A primeira e mais direta resposta vem do fato de Arendt ter rechaçado o ponto de vista analítico de Marx, que é puramente social. Contudo, dizer que a teoria política de Arendt, em sua resposta a Marx, é “anti-humanista, isto é, adota o ponto de vista do ‘mundo’ e de sua conservação em oposição à perspectiva do suprimento das necessidades humanas”, como faz Duarte (2000, p. 104), ainda explica muito pouco e contribui para apresentar a autora sob um matiz extremamente cínico ou ingênuo. Argumento que a recusa de Arendt por aceitar o ponto de vista marxista, que é o ponto de vista da sociedade (ou da Humanidade), se justificaria então a partir de dois pólos. Em um extremo, se aceitamos a tese de Marx de que a unidade da sociedade, dessa “humanidade socializada”, eliminaria a “lacuna entre a existência individual e a existência social do homem” (Arendt, CH. p. 100, n. 21) alcançamos o que Arendt chama de ficção comunística, que diz respeito à hipótese de que se poderia alcançar uma “harmonia de 191

A esse respeito, cf. a análise de Arendt (OP, pp. 128 e ss.) sobre os princípios da ação de Montesquieu, como a honra, a virtude, a justiça e a igualdade.

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interesses” quando se extraísse, do desenvolvimento das “forças sociais”, a síntese de um “interesse único”. Essa sociedade monolítica, fruto de uma “humanidade socializada” e equivalente a um sujeito político unitário, poderia ser governada sem a necessidade da intervenção política (ou estatal), mas como mera administração das coisas. No outro extremo da recusa de Arendt em aceitar o ponto de vista da sociedade está o fato de que, no âmbito da vida, cerceada por suas necessidades inerentes e clamando por segurança, a política só pode ser feita sob o princípio da dominação, isto é, como uma força que divide os homens entre aqueles que obedecem e aqueles que ordenam. Divididos assim, e por amor a sua própria vida, fazem da política uma guerra de todos contra todos e, da sociedade, mera organização da “dependência mútua em prol da subsistência, e de nada mais” (Arendt, CH. p. 56). Ainda assim, tais elementos não foram suficientes, como procuramos expor ao longo dessa tese, para nos desencorajar de conjugar sua teoria política com uma teoria crítica que conceba o metabolismo social em termos históricos192. Isso não comprometeria sua teoria política com uma visão de “progresso da humanidade”. Pelo contrário, nos permitiria conjugar sua abordagem com propostas tão diversas quanto a teoria do reconhecimento de Axel Honneth e Nancy Fraser – apesar de base hegeliana, no primeiro, e marxista, na segunda. Tal conjugação nos parece bastante factível na medida em que Arendt também direcionou sua teoria política no sentido de uma “fundamentação moral” dos conflitos sociais193. Afinal, o que essa teoria política de Hannah Arendt ainda nos permitiria analisar é como padrões sociais de organização, condicionados reciprocamente pelos mecanismos políticos de regulação de conflitos adotados em dado tempo histórico, podem ser democraticamente constituídos, de modo que a política não comece “depois” da pretensa regulação dos conflitos, senão que seja, ela própria, essa atividade. Desconstituir autocracia – 192

Devedora da “dialética negativa” de Walter Benjamin, a própria Arendt estabelece seu “método historiográfico fragmentado” buscando nas “origens” do passado e na “cristalização de elementos” a fonte de explicação para a “configuração” do presente. A esse respeito, cf. HERZOG (2000); EVERS (2005); D’ENTRÈVES (1994, pp. 4, 31 e ss).

193

Embora seja sabido que Arendt separa as considerações morais da ação política, encontramos uma resposta bastante adequada ao problema da mediação entre os princípios morais da ação e a cultura moral de uma sociedade em BENHABIB (1988, pp. 46-47), ensaio em que a autora oferece argumentos para “o cultivo de qualidades da amizade cívica e de solidariedade” como uma ponte entre “demandas por justiça” e “demandas da virtude”.

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que é a essência dos processos de democratização – envolveria, portanto, a fundação de mecanismos de regulação que fossem mais interativos e inclusivos, protegidos e garantidos, responsivos e mutuamente vinculantes, para retomar a formulação proposta por Charles Tilly (2013). E, de fato, tal qual indicou a própria Arendt (SR, p. 348) de maneira simples e direta, esses mecanismos não podem se assentar somente na força das bases (como nos partidos) ou do topo (como nos governos autoritários), mas devem ser constituídos como um poder – limitado pelas leis, embora distinto delas – cuja fonte de autoridade emerge “a cada camada da pirâmide”; ou, como na teoria do reconhecimento de Honneth (LR), “a cada interação intersubjetiva”. Com esse tipo de análise crítica, podemos ter alguma garantia de que não seremos tentados a definir tais mecanismos políticos de maneira autocrática – seja pelo líder máximo do governo ou do partido, seja pelo desígnio da História. Uma teoria da democracia precisa, também, enfrentar o desafio de estabelecer um sistema de equilíbrio entre as demandas por igualdade e os apelos por liberdade. Como vimos, há tanto a questão normativa da “precedência” – a igualdade deve vir antes, como condição, da liberdade? – quanto o problema concreto em que há interferência mútua entre demandas e apelos, como aparece claramente na noção de “Democracia como cooperação reflexiva”, que Honneth (DCR, p. 91) entende “não só como um ideal político, mas primeiramente como um ideal social”194. E essas questões se materializam seja no nível da estratégia de ação política – como pudemos perceber a partir das questões apontadas por Fraser (RR), por exemplo – seja no nível dos valores sociais e políticos – em que a demanda por igualdade para “mais alguns” requer a redistribuição do domínio de liberdade entre todos, como descrevemos na análise do modelo de Sartori (TDR2) para os cinco tipos de igualdade. No entanto, mesmo quando Arendt (OP, p. 94) fala de cooperação em um sentido muito próximo ao de Honneth, isto é, como um “sistema de relações surgidas a partir do agir”, ela procura se contrapor a uma das faces perversas do igualitarismo, isto é, àquela que constitui a sociedade de massas tal qual uma “organização pública do próprio processo vital” (Arendt, CH. p. 56). Novamente, é a oposição à formação de uma unidade orgânica, a

194

A esse respeito, veja nossa discussão sobre a pluralidade e a mutualidade apresentada no capítulo 9.

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englobar todo o conjunto da comunidade e todas as atividades ali exercidas, o que está por trás da preocupação de Arendt (CH, p. 136), quando ela diz: “esta unidade é exatamente o oposto da cooperação; indica a unidade da espécie, em relação à qual cada membro individual é igual e intercambiável”. Apesar disso, a teoria política de Hannah Arendt, do ponto de vista da ação-comoRevolução, oferece uma resposta apenas parcial ao “problema do absoluto” dos valores, que precisa ser complementada para que se aproxime da Democracia. Isso porque, no momento em que Arendt (EPF, p. 60) analisa a similitude entre a luta revolucionária e os apelos da Democracia contra todos os absolutos195, ela estabelece, na verdade, uma crítica conservadora ao fato de que “o ‘bem’ perde seu caráter de ideia, padrão pelo qual o bem e o mal podem ser medidos e reconhecidos; torna-se um valor que pode ser trocado por outros valores, tais como eficiência ou poder”. Assim, sua distinção entre princípios políticos – a liberdade e a felicidade públicas e o espírito público – e valores sociais – as liberdades civis, o bem-estar individual e força da opinião pública – apenas corrobora sua crítica sobre a “invasão da esfera pública pela sociedade, como se os princípios originalmente políticos tivessem se traduzido em valores sociais” (Arendt, SR, p. 281). Sua abordagem afirma o papel da autoridade (e, por isso, como algo distinto do poder) para a resolução desse problema. No entanto, a mera postulação da noção de “ação concertada” não resolve muitos dos problemas da abordagem individualista (e, por vezes, aristocrática) que Arendt nos oferece em sua teoria da ação e, em particular, da ação concebida como “iniciativa”, como “novo início”, como “Revolução”. Uma alternativa a esse caminho passaria pela inclusão da discussão sobre os processos de socialização e reprodução simbólica na sociedade contemporânea nos termos de uma dinâmica entre os pólos do particular e do universal, do indivíduo e do coletivo, da estrutura e da agência; em suma, sobre o dilema entre cidadão-indivíduo. Uma teoria política comprometida com a crítica social e com a Democracia não poderia deixar de notar como se dá a formação desse sentido comum e comunitário do cidadão, assim como a formação individual e coletiva das preferências políticas; precisaria, portanto, valer-se da crítica sobre os modos de reprodução social das desigualdades e dos valores políticos, e não só da

195

Sobre “o problema do absoluto”, cf. ARENDT (SR, p. 208 e ss.) e nossa discussão feita na sessão 2.2.

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afirmação do poder puro e simples advindo da ação concertada no espaço público ou da capacidade de considerar a pluralidade de perspectivas. Para tanto, poderíamos aproveitar as teorias políticas e sociológicas feitas, por exemplo, por Pierre Bourdieu196 (que, em sua crítica do gosto, parte justamente do juízo estético kantiano, utilizada por Arendt em sua definição política do Julgar) e por teóricas feministas (penso aqui nos conceitos de performatividade, de Judith Butler197, e de contrapúblicos subalternos, de Nancy Fraser198). Nesses exemplos, vemos clara problematização – que é descartada por Arendt – sobre os condicionamentos advindos da posição social, do prestígio, da escolaridade e do domínio do “campo” (ou habitus), sendo reproduzidos tanto por relações materiais quanto por relações simbólicas e culturais. Nesse sentido, a teoria política de Arendt, no que diz respeito à sua teoria da ação, não apresentaria nenhuma nova proposta para a teoria da Democracia, exceto se pudermos preencher suas lacunas – espaços em que a teoria de Arendt, mesmo que sistemática, uma vez que não se propõe a ser totalizante ou sistêmica, nos oferece oportunidade de ampliação e revisão – com algumas das teorias que estudamos ao longo dessa tese. Nomeadamente, procuramos fazer isso com o sistema descritivo histórico-conceitual de Sartori para a questão do balanço das igualdades; com a teoria do reconhecimento de Honneth, para organizar uma visão de justiça social a partir da noção de conflitos sociais que ambos têm em comum, qual 196

Cf. BOURDIEU (2007[1979]). Nessa ampla pesquisa empírica, apesar das imprudentes descrições deterministas, o autor estabelece uma estreita relação entre o gosto e a classe social, indicando como os juízos de gostos e as preferências são socialmente construídos como mecanismos de dominação simbólica, ao serem constituídos e reproduzidos como capital cultural, aprofundando as disposições ligadas ao princípio da distinção típicas das classes dominantes.

197

Judith Butler (2003, p. 205) afirma que, no ato performativo, “o ‘agente’ é diversamente construído no e através do ato”, de modo que a ação (e o discurso que a antecede ou sucede) pode contribuir para revelar sua “própria estrutura ideológica, linguística e cultural”, como explica Patrícia Rocha (2008, p. 88). Com essa distinção, podemos estabelecer novas relações entre a escolha por “autenticidade” ou “efetividade”, que por vezes afeta as ações de grupos não-dominantes.

198

Cf. FRASER (1997b). Essa noção leva em conta que certas posições sociais subalternas estariam mais sujeitas à violência e à humilhação, de modo que a formação de seus interesses e identidades, e não só a conformação de sua perspectiva pela publicização e pelo discurso, demandaria um espaço público específico e alternativo para sua constituição autônoma, antes de poderem “aparecer” no espaço público mais geral e confrontar-se com outras perspectivas e interesses antagônicos. Isso porque, como explica Miguel (2011, p. 36), “os grupos subordinados se veem diante de uma escolha entre ‘autenticidade’ e ‘efetividade’. Seu discurso e seu comportamento tornam-se mais eficazes quando se adaptam às regras do jogo estabelecidas, mas com isso a ‘diferença’ que se queria representar é dissipada”.

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seja, a de que há uma base moral que dá origem e princípios às ações humanas e que, por isso, a ação e o pensamento precisam andar lado a lado no mundo; e, finalmente, com a crítica de Fraser ao modelo monista de Honneth, que nos oferece, no campo da estratégia política, a possibilidade de considerar a distinção de Arendt entre a atividade política e as tarefas administrativas como parte dessa crítica. Para contemplar esse último ponto, no entanto, precisamos incorporar uma perspectiva narrativa, ou da “formação identitária”, em nossa avaliação. 10.3. Perspectiva narrativa, ou da “formação identitária” O “poder redentor da narrativa”199 ou a storytelling [contação de estória] como “compreensão crítica”200 não dependem nem de uma noção de progresso da humanidade, nem se comprometem unicamente com o relato dos vencedores, mas procuram um balanço desapaixonado entre os lados da contenda, como na imagem de um observador-narrador imparcial da história do mundo. Assim, esse observador converte-se em ator justamente ao começar sua narrativa: o storyteller é aquele que, como um ator-observador, narra e atualiza os acontecimentos a partir de sua observação, e portanto age no palco da história, com mirada sempre retrospectiva; é um espírito que não contempla de fora do mundo a história universal, mas observa, como um espectador engajado, com sua “imparcialidade situada”, como define Disch (1993, p. 666), os eventos particulares que ocorrem em seu próprio mundo, um mundo objetivamente partilhado, formado por uma pluralidade de perspectivas e pelo qual ele é responsável. O que é possível avaliar, então, a partir do que chamamos aqui de uma perspectiva narrativa da teoria da ação de Hannah Arendt? Acredito que podemos articular, sucessivamente, pelo menos mais três pontos de contato com as teorias da democracia: i) na luta por reconhecimento, uma vez que a teoria arendtiana seja entendida não só pelo viés da práxis de participação política, mas como um processo conjugado de ação e compreensão,

199

Cf. BENHABIB, 1990.

200

Cf. DISCH, 1993.

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pode-se trazer a público novas perspectivas e identidades narrativas de grupos invisibilizados; ii) na formação dessas identidades narrativas, pode-se partir da storytelling como estratégia de ação e discurso para ampliar a capacidade dos grupos políticos de articular “direitos democráticos”, tal como apresentados por Chantal Mouffe (2005 [1993]), e, com isso, aumentar o potencial de sua efetividade em relação ao dilema da autenticidade 201; iii) na reconfiguração dessa estratégia política, pode-se reavaliar a ação-como-Fundação como uma forma de adquirir e manter poder político na disputa sobre narrativas sociais e como um modo de empregar o poder político na implementação (ou institucionalização) de políticas e direitos. Assim, para avaliar o potencial da teoria da ação de Hannah Arendt diante das lutas por reconhecimento, devemos começar por nos atentar ao que reclama Arendt (CE, pp. 357358) sobre a autodeclaração e o poder de fala: As fontes falam, e o que elas revelam é a autocompreensão e auto-interpretação de pessoas que agem e acreditam saber o que estão fazendo. Se lhes negamos essa capacidade e supomos que nós é que sabemos, e podemos lhes revelar quais são seu “motivos” reais ou as “tendências” reais que representam objetivamente – não importa o que elas próprias possam pensar –, estamos lhes roubando a própria faculdade de fala, na medida em que a fala faz sentido.

Dessa forma, dificilmente alguém poderia inferir que Arendt deixou de ver na questão do reconhecimento e da identidade uma forma de articulação entre saber e poder, entre comunicação e ação, entre a compreensão do mundo e a capacidade de agir, ou, como dissemos aqui, entre o reconhecimento de si (e de suas capabilidades) e as demandas por direitos. Ela mesma, em entrevista a Günter Gaus202, vai confirmar: “se alguém é atacado como judeu, tem de se defender como judeu. Não como alemão, não como cidadão do mundo, não como defensor dos direitos humanos, ou seja o que for. Mas: o que eu posso fazer especificamente como judeu?”. Umas das alternativas para responder a essa questão e apresentar uma forma de ação comunicativa – ou de “produção comunicativa de poder” – foi sugerida por Habermas (1994) ao distinguir a ação arendtiana como práxis, que lida com o momento da geração [generation] 201

A respeito do dilema entre “autenticidade” e “efetividade”, cf. notas 197 e 198.

202

Cf. ARENDT (CE, p. 41). A entrevista também foi publicada em ARENDT (DP, 1993).

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de poder, das circunstâncias de competição política estratégica e de implementação [employment] do poder em políticas. Para Habermas (1994, p. 221. trad. minha)203: Arendt equipara estratégia com ação instrumental. Assim, ela enfatiza que a ação estratégica é instrumental e violenta, e que ações desse tipo estão fora do âmbito político. A questão se modifica se colocamos lado a lado a ação estratégica e a ação comunicativa como outra forma de interação social (que, é claro, não está orientada para alcançar acordos, mas para ser efetiva [to success]) […]. Então se torna conceitualmente plausível que a ação estratégica também tenha lugar dentro dos muros da cidade – e, assim, nos conflitos de poder, na competição por posições às quais estava vinculado o exercício do poder legítimo. A aquisição e manutenção do poder político devem ser distintas tanto da implementação do poder político – isto é, do governo [rule] – quanto da geração do poder político. No último caso, mas somente no último, o conceito de práxis é útil [helpful].

Nesse sentido, procuramos equivalências entre a formação de identidades narrativas, apresentada no capítulo 9, e aquilo que Arendt (EPF, pp. 41-42) chama de storytelling, ou narrativa: uma maneira de “adquirir experiência em como pensar”, que não se diferencia nem deve se separar da prática e do exercício necessários à ação; uma maneira, portanto, de “adquirir alguma desenvoltura no confronto com problemas específicos”, os quais emergem “da concretude dos acontecimentos políticos”. Assim, se reconsiderarmos os argumentos de Lisa Disch (1993. trad. minha)204 à luz dessa alternativa habermasiana, podemos reconceituar a narrativa como uma estratégia de ação e discurso para: i) articular realidades passadas, partilhadas por determinado grupo, com propostas para o futuro, “de uma forma que não compele ao assentimento mas, antes, estimula as pessoas a pensarem sobre o que elas estão fazendo” (p. 671); ii) conjugar demandas coletivas sem perder de vista a noção moderna e arendtiana de individualidade, uma vez que

203

O tradutor da versão em português sugere o seguinte texto: “H. Arendt equipara pura e simplesmente a ação estratégica à instrumental. Graças ao exemplo da guerra, ela demonstra que a ação estratégica é, ao mesmo tempo, violenta e instrumental; uma ação deste tipo situa-se fora da esfera do político. A situação apresenta-se de forma distinta se confrontarmos com a ação comunicativa a ação estratégica entre protagonistas que competem entre si, participando de uma forma de interação social orientada não tanto para o entendimento mútuo, mas para o êxito [...]. Torna-se claro, assim, que a ação estratégica também se realiza dentro dos muros da cidade; ela se manifesta nas lutas pelo poder, na concorrência por posições vinculadas ao exercício do poder legítimo. Devemos distinguir a dominação, ou seja, o exercício do poder político, tanto da aquisição e preservação desse poder, como da sua gestação. Nesse último caso, e somente nele, o conceito de práxis pode auxiliar-nos”. Cf. HABERMAS (1980, p. 111).

204

As páginas referentes às citações estão em seguida.

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as “três condições das quais depende a individualidade [são] legalidade, publicidade e natalidade” (p. 673); e, com isso, abre-se o campo político para iii) reposicionar as fronteiras – historicamente condicionadas – entre o público e o privado, diante da certeza de que “sem um espaço público, a pluralidade humana – que é a condição da fraternidade e da individualidade – não tem lugar para aparecer” (p. 673). Essa não é, portanto, uma “política de identidade” no sentido usual do termo, mas a formação de um campo objetivamente comum, a partir de estórias explicitamente fundadas no âmbito da moral do cidadão, uma vez que ele é habitado por seres humanos com diferentes identidades, dentre as quais está sua persona pública, o modo como cada um se identifica e é identificado socialmente e aqueles complexos entrecruzamentos de classe, raça, gênero, etnia etc. que podem provocar diferentes opressões ou manter privilégios. Assim, ao aparecem publicamente, fundarem comunidades políticas e demandarem reconhecimento desde a dimensão intersubjetiva, essas identidades narrativas podem contribuir para o alargamento das demais dimensões do reconhecimento, isto é, para adquirir e manter o poder político na institucionalização de direitos, com diz Habermas, e para a concertação da solidariedade, como pretende Honneth. *** Porém, embora estejamos de acordo com a alternativa proposta por Habermas (1994), é preciso questionar seu diagnóstico. Apesar de seu pressuposto correto, de que “Hannah Arendt naturalmente não abandona seu marco teórico da ação para evitar inserir nele uma análise funcionalista” (p. 222), Habermas chega a uma conclusão que simplesmente não se sustenta. Para ele, o funcionamento da política requer um “tal poder [que] está ancorado no reconhecimento de facto de demandas de validade que podem ser redimidas discursivamente e fundamentalmente criticadas” (p. 225); e o que impediria Arendt de chegar em tal formulação de um fundamento adequado (isto é, racional) para o poder da opinião é “o imenso abismo entre conhecimento e opinião que não pode ser fechado por argumentos” (ibid.). Se é verdade que há um abismo entre o conhecimento – direcionado à verdade – e a

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opinião, não ocorre o mesmo com a diferença entre a opinião e a compreensão – que busca o sentido da ação, o significado dos acontecimentos. Essa é a distinção kantiana que, logo na introdução de seu volume sobre O pensar, Arendt (VE, p. 28) ressalta ser “crucial para nossa empreitada”. Assim, ela vai dizer que “a distinção entre as duas faculdades, razão [Vernunft] e intelecto [Verstand], coincide com a distinção entre duas atividades espirituais completamente diferentes: pensar e conhecer; e dois interesses inteiramente distintos: o significado, no primeiro caso, e a cognição, no segundo” (idem, p. 29). A razão e o pensamento, uma atividade do espírito que será complementada pela faculdade eminentemente política do Julgar, são a condição de toda a partilha de opiniões, e isso significa, em resumo, que “a necessidade da razão não é inspirada pela busca da verdade, mas pela busca do significado. E verdade e significado não são a mesma coisa” (idem, p. 30. em itálico no original). A teoria da ação de Hannah Arendt (CH, p. 320), ao final das contas, indica que agir é, em parte, um “desencadeamento de processos” e que, portanto, pode sim ter metas e princípios, sem com isso converter-se em um processo evolutivo (ou necessário) ou em uma ação instrumental (e violenta, como a fabricação). Em mais uma de suas complexas distinções, Arendt (OP, p. 126) argumenta que ao se introduzir o elemento de força na ação política – convertendo o agir político em “agir violento” – não há como se evitar introduzir a principal característica que diferencia a fabricação de todas as outras atividades humanas: a utilidade, a finalidade ou, mais especificamente, o objetivo a ser alcançado pelos meios materiais necessários, pois “só quando a força é introduzida […] as metas de uma política tornam-se os objetivos”. As metas da ação, portanto, dizem respeito a nada mais do que “linhas e diretrizes”, como uma orientação de sentido – na dupla acepção do termo – tanto para o rumo e localização do agir no mundo quanto para a experiência existencial do agente. Já havíamos dito que uma ação quase sempre deixa de alcançar o que inicialmente pretendia, uma vez que entra na “teia” de relações humanas, mas ela “não é por causa disso sem objetivo nem sem sentido”, vai insistir Arendt (OP, p. 127). Normativamente, Arendt vai justificar essa ideia dizendo que uma ação “não pode ser sem objetivos, pois jamais perseguiu objetivos, apenas se orientou, com mais ou menos sucesso, por metas”. Há que se dizer, então, o que significam, para a autora, objetivo, meta e sentido.

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Considerações finais

O sentido da ação é diferente de seu objetivo na medida em que “está sempre contido nela mesma; o sentido de uma atividade só pode existir enquanto durar essa atividade” (Arendt, OP. p. 127), revelando-se durante sua execução. O objetivo, ao contrário, “só começa a aparecer na realidade quando a atividade que o produziu chegou a seu fim” (ibid.), embora tenha estado lá desde o início, como aquilo que se perseguia. A meta, por fim, vai nos dar o ideal, a medida e “os parâmetros pelos quais deve ser julgado tudo o que é feito” (ibid.), excedendo ou transcendendo o que deve ser medido (como todo parâmetro de medição), e situando-se, tal como o objetivo, fora da ação. Como é muito característico do estilo de pensamento de Hannah Arendt, ela não se contenta com esses três conceitos e, a eles, acrescenta outro, que toma emprestado de Montesquieu: o “princípio do agir”, que “na verdade jamais é motivo imediato do agir, mas que o põe em andamento” (idem, p. 128), sendo chamado de “princípio” porque é dele, como uma origem, que “se alimentam sem cessar” os homens de ação. Embora Arendt tenha ciência de que tais definições se prestam facilmente à confusão, ainda mais entre os próprios homens de ação e entre os diferentes períodos históricos e suas cambiantes formas de governo, o que lhe importa é que possamos realizar a mesma inconveniente pergunta, do ponto de vista do agir político, para cada um desse conceitos: tem ainda a política algum sentido?; algum objetivo que valha (e se limite) pelos meios a serem empregados para atingi-lo?; alguma meta que persista no campo da política, sem converter-se ou em uma utopia banal ou em um moto-perpétuo imperioso?; algum princípio que ainda possa ser recomendado, ou ao qual se possa recorrer quando queremos recomeçar? Assim, a falácia, o problema e o perigo de uma ação pautada apenas pelo objetivo final aparece claramente em uma passagem que, a despeito de Arendt (OP, p. 208, n. 59) tê-la deixado apenas na versão rascunhada do texto, sem indicar se seria acrescentada ou suprimida da versão final, deve ser citada na íntegra por ser a síntese da discussão que pretendíamos apresentar: Se fosse verdade que o agir político persegue objetivos e deve ser julgado segundo sua conveniência, então daí resultaria que na política se trata de coisas que em si não são políticas, mas são tão superiores à política quanto todos os objetivos devem ser superiores aos meios através dos quais são produzidos. Além disso, resultaria que o agir político encontra seu fim quando seu objetivo é alcançado e que a política em geral, quando é apenas o meio adequado e conveniente para alcançar

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Considerações finais

objetivos não políticos, só para os quais tem direito a existir, deve desaparecer em algum momento da história da Humanidade. Por fim, para um agir conveniente no qual realmente nada mais entre em jogo a não ser a realização de objetivos superiores e positivos, a força deve desempenhar um excelente papel.

Assim é que a formação de identidades narrativas parecer contribuir, como exercício prático e teórico, individual e coletivo, para pavimentar o caminho, ainda inacabado, que permite interligar pensamento e ação, a tarefa de compreensão e a atividade política. Parafraseando a conclusão de Disch (1993, p. 671. trad. minha) – de que “na esteira de um regime político que exerceu o poder por meio da fabricação da realidade deve-se reconhecer que a ‘verdade’ poder ser um constructo do poder” –, podemos dizer que na Democracia, de fato e por direito, o reconhecimento da opinião leva sempre a uma luta de poder, ao passo que o poder da opinião vem sempre de uma luta por reconhecimento – e nem sempre “da razão” ou “da força do melhor argumento”, como quer Habermas. *** Escrever tudo isso a partir da teoria da ação e do pensamento político de Hannah Arendt para avaliar se ela é contra a Democracia é, ao mesmo tempo, dizer ainda muito pouco e, talvez, dizer mais do que se poderia. Três testemunhos sobre essa dúvida, que nos ataca desde o início e, ainda, ao chegarmos ao final dessa tese, poderiam ser utilizados em defesa – embora não saiba bem se própria ou se de Arendt. O filósofo e judeu norte-americano Raziel Abelson, da Universidade de Nova York, escreveu certa vez: “Nunca fica claro, se é que isso é possível, de quê a srta. Arendt é contra ou a favor. Em certo ponto ela parece meramente defender a causa da clareza intelectual”. O internacionalista e judeu alemão Hans Morgenthau, amigo pessoal de Arendt, lhe escreveu uma ponderação: “Que idiotice supor que, quando se escreve, precisa-se necessariamente defender uma causa. Como intelectuais, nós brigamos o tempo todo. Somos a favor ou contra uma coisa ou outra. Assim, se não deixamos claro de que lado das barricadas estamos, nós fracassamos”. E, finalmente, sua

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biógrafa Elisabeth Young-Bruehl resume e sentencia: “Arendt conhecia o valor do ‘mero’ esclarecimento em ‘tempos sombrios’”205. É possível que as dúvidas sobre o quanto Arendt estava de um lado ou de outro das barricadas de seu tempo – e o quão corretamente nós a situamos de um lado ou de outro das barricadas de nosso presente – permaneçam e, até mesmo, aumentem tanto mais se alargue o abismo entre o passado e o futuro; é possível que elas deixem de ser relevantes, mas é mais provável que elas simplesmente se transformem em outras dúvidas, mais pertinentes talvez. É possível que seja esse, afinal, o destino do penseur professionnel tanto quanto do flâneur: transformar dúvidas em curiosidade, e então em novas dúvidas. Hannah Arendt, que não se conformava em ser nem uma coisa nem outra, viu muitas vezes suas dúvidas transformarem-se e, por vezes, tomarem o mesmo assustador tamanho da transformação pela qual passava a Weltlage, a situação mundial de seu próprio tempo – e então registrou em carta a sua amiga e confidente Mary McCarthy, com sua costumeira ambivalência, algo que nos parece tanto um desalentador pessimismo sobre “o que fazemos” quanto um esperançoso acalento para continuarmos a fazer o que fazemos, “em nosso próprio tempo”: Tenho uma sensação de futilidade em tudo o que faço. Comparado com o que está em jogo, tudo parece frívolo. Sei que esse sentimento desaparece quando me deixo cair nesse espaço entre passado e futuro, que é o locus temporal adequado do pensamento.

Ao fim e ao cabo, ainda que a ação seja fútil, é o que nos faz não somente ser-com, na mutualidade de partilharmos o mesmo destino sobre a Terra, mas viver e agir in-beetween, entremeados pelo mundo comum que criamos e conservamos, e sobre o qual opinamos. Se aceitarmos a premissa de que essa jornada filosófica – iniciada por Hannah Arendt e deixada incompleta, a ser continuada pelos que vierem depois – é investigar não somente “o que estamos fazendo”, mas compreender o próprio tempo – e aqueles, não nos esqueçamos, eram tempos sombrios –, será inegável concluir que a ação, assim como a compreensão, é apenas um outro lado da difícil mas importante tarefa de “encarar a realidade sem preconceitos e com

205

As referências dessa e das citações anteriores estão em YOUNG-BRUEHL (1997, pp. 371-372). A referência da carta de Arendt a Mary McCarthy está em YOUNG-BRUEHL (1997, p. 369).

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atenção, e resistir a ela”206. Para não fugirmos da realidade nem desconsiderarmos as dificuldades das lutas cotidianas, contribuindo para dar atualidade e continuidade àquela jornada, o antídoto mais eficaz continua sendo a autolimitação – do pensamento tanto quanto da política; limites que mantenham os pés no chão em que se pisa, que mantenham as soluções políticas na comunidade em que se convive, que mantenham o poder nos limites de sua ação e de seu território – e que tudo isso seja protegido pelas regras e promessas que mantêm os homens em relação: unidos, mas distanciados, de modo que todos se observem mutuamente quando à luz do público; fortes, mas não onipotentes; corajosos, mas nunca com insensível destemor; solidários, e conscientes dos riscos da irrazoável compaixão.

206

Cf. ARENDT (OT, p. 12).

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APÊNDICE A Correspondência não publicada entre Hannah Arendt e Hans-Jürgen Benedict Publicado em 04/05/2008 – Folha de S. Paulo Tradução: Samuel Titan Jr. Disponível em: . Revisão, edição e notas adicionais: Mateus Fernandes Correspondência inédita entre Hannah Arendt e o então estudante de teologia HansJürgen Bendict, publicada na Folha de S. Paulo, em maio de 2008, onde Arendt rebate o alcance universal dos atos políticos. Em carta de 1967, a pensadora antecipa questões que estariam no centro dos acontecimentos do Maio de 68.1 Hans-Jürgen Benedict2 355 Marburg Universitätsstrasse 30-32 Marburg, 3 de junho de 1967. Estimada senhora! Ao reler, nos últimos dias, seu livro Sobre a Revolução Húngara e o Imperialismo Totalitário3, senti-me como quem recorda, depois de muito tempo, os ideais de sua própria juventude e só consegue vê-los a distância, tristemente, como através de um véu. Do mesmo modo, os acontecimentos desde então lançaram uma nova luz sobre as suas ideias de outrora, cujo apelo não perdeu atualidade: conservar a memória dos acontecimentos é tão necessário agora como então, e a repressão brutal à revolução deve 1

Excelentes comentários sobre essa carta e seus desdobramentos podem ser lidos no texto de Wolfgang Kraushaar, intitulado “Hannah Arendt and the student movement: Notes to the correspondence between Hans-Jürgen Benedict and Hannah Arendt”, publicado (originalmente em alemão) em Mittelweg, 36, 1/2008. Disponível em . Acesso em: jul/2016.

2

Hans-Jürgen Benedict (1941-) nasceu em Hamburgo, estudou teologia protestante em Hamburgo, Heidelberg, Tübingen e Marburg. Após receber seu doutorado em 1972, foi Professor visitante na Universidade de Hamburgo entre 1977-1978. Ele trabalhou com seu orientador de doutorado, HansEckehard Bahr, em um livro sobre o tema “Paz Mundial e Revolução” (cf. Hans-Jürgen Benedict, “Schöne Worte jenseits der Fronten? Die Friedensvoten der Kirchen und die politische Realität”, In: Hans-Eckehard Bahr (ed.). Weltfrieden und Revolution. Neun politisch-theologische Analysen. Reinbek, 1968. pp. 237-290.). Tinha 25 anos quando enviou a Hannah Arendt essa carta, cujos argumentos resumiu, pouco tempo depois e mais incisivamente, em uma resenha. Cf. Hans-Jürgen Benedict. “Totalitarismus und Imperialismus im Jahre 1967. Fragen an Hannah Arendt”. Em: HansEckehard Bahr (ed.), Weltfrieden und Revolution. Neun politisch-theologische Analysen, Reinbek, 1968. pp. 95-105.

3

A menção refere-se ao texto “Die Ungarische Revolution und der totalitäre Imperialismus”, München, 1958. Para a edição em inglês, cf. Arendt, Hannah. “Totalitarian Imperialism: Reflections on the Hungarian Revolution”. Em: The Journal of Politics, vol. 20, n. 1, fev., 1958. pp. 5-43. Disponível em: . Acesso em: jul/2016.

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continuar a ser objeto de condenação. O que me parece ter envelhecido é a posição a partir da qual a senhora argumentava em seu livro. Como também me parece questionável a veemência de seu veredicto, a ênfase com que a senhora condenou o imperialismo russo. Para começar por este último ponto: talvez a reviravolta na política russa ainda não fosse visível à época da redação do ensaio. Mas mesmo se fosse esse o caso (coisa de que duvido: a nova tendência foi volta e meia ocultada por crises e só ganhou nitidez a partir de Kossygin4 e da não intervenção no conflito do Vietnã), isso justificaria o esforço de negar substancialmente ao comunismo toda possibilidade de mudança e fixá-lo definitivamente em suas feições stalinistas? Isso não significaria limitar a abertura da história no que tange à esfera de poder comunista? Seus prognósticos quanto aos desenvolvimentos externos e internos bem podiam ser precisos naquela ocasião, mas não necessariamente assim. Justamente essa suposta ausência de potencial do “imperialismo totalitário” vem agora se vingar: já há muito que não há terror organizado na URSS, e a política exterior de coexistência da URSS vem lhe valendo a crítica de contribuir para a persistência da miséria no Terceiro Mundo. A mudança de rumo da política russa surpreendeu a todos, de tal modo que se torna mais urgente a questão de saber de onde ela provém. A senhora concordaria com a ideia de que a etiqueta de “totalitarismo/poder absoluto” já não faz justiça ao comunismo russo e de que já não se pode dizer que este opere unicamente por “considerações de poder” e almeje apenas a “construção de um mundo fictício”? A própria renovação do comunismo russo, tal como se exprime na definição de coexistência formulada no programa do Partido Comunista da URSS em novembro de 19615, não mostra que ele se volta a se comprometer com uma renovação do gênero humano e com um mundo melhor, que ideias originais da revolução, enterradas durante o stalinismo, voltam a cobrar vida? Em segundo lugar: a situação se inverteu desde a Revolução Húngara [1956]. Essa mesma situação não nos força a reformular – ainda que com pesar e a contragosto – o título de seu livro como “A Guerra do Vietnã e o Imperialismo Americano”?. A senhora não se identificou, em seu ensaio, com a posição do Ocidente, por mais que fosse dali que criticasse o imperialismo totalitário. Tratava-se, para a senhora, de dar contornos nítidos à liberdade genuína que se mostrava na Revolução Húngara. Ao fazê-lo, a senhora excluía, de caso pensado, o problema econômico, a assim chamada questão social, de vez que esta não pertenceria, a seu ver, ao âmbito da política. Mas a questão social não se tornou, hoje em dia, o problema político por excelência? A luta do Terceiro Mundo contra a pobreza, a fome e o analfabetismo não tem a ver com liberdade, humanidade e solidariedade num sentido revolucionário? Sua redução do problema e sua interpretação da Revolução Francesa como má revolução não justifica o modo de pensar do governo norte-americano, que se sente no direito de intervir “onde quer 4

Alexei Nikolayevich Kossygin (21 de fevereiro de 1904 – 18 de dezembro de 1980) foi um político e administrador soviético, que serviu como Premier da União Soviética entre 1964 e 1980, no que inicialmente era uma troika [triunvirato] no comando do país com Leonid Brejnev como secretáriogeral do Partido Comunista e Anastas Mikoyan, e logo depois Nikolai Podgorny, como presidente do Presidium [Politburo]. (Adaptado da Wikipedia)

5

O XXII Congresso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), realizado de 17 a 31 de outubro de 1961, aprovou o Terceiro programa do Partido e adotou a política de “coexistência pacífica” entre sistemas diferentes (capitalismo e socialismo) como novo paradigma para o comunismo internacional. O termo foi cunhado pelo líder soviético Nikita Khrushchev, sucessor de Stálin (que renegou a herança do stalinismo) e secretário-geral do PCUS entre 1953 e 1964. Em política internacional, refere-se às relações que manteriam a União Soviética e os Estados Unidos dentro da chamada Guerra Fria. A União Soviética aplicou-a às relações entre o mundo ocidental e, em particular, com os Estados Unidos, os países da OTAN e as nações do Pacto de Varsóvia. (Adaptado da Wikipedia)

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que haja governos fracos e tecidos sociais instáveis” (McNamara6)? Em seu grande livro Sobre a Revolução, a senhora responsabilizou o pauperismo das massas na revolução francesa pela desfiguração de baixo para cima do processo de realização da liberdade revolucionária. A alternativa, hoje, seria a pacificação americana “de cima para baixo”? E ainda por cima com a pretensão de pôr fim definitivo à “época dos revolucionários românticos e agressivos” (Walt Rostow7)? Se for assim, então essa pacificação de cima para baixo terá de reconhecer que inadvertidamente se transformou em contrarrevolução no sentido clássico do termo. Em outras palavras: em que termos a senhora esboçaria o capítulo adicional da história da revolução que os últimos desenvolvimentos tornaram necessário? Permita-me, ainda a esse respeito, acrescentar mais uma questão, derivada da introdução a seu novo livro8: mesmo contrapondo-se antiteticamente revolução e política de poder, não haverá distintas formas de violência, uma que se exerce como fim em si mesma, e uma outra que se exerce como meio de abolir a si mesma? A violência será mesmo “muda”? A resistência violenta dos oprimidos do Terceiro Mundo não fala por muitos livros? Escrevo-lhe estas linhas no mesmo dia em que se divulgou que um estudante berlinense foi morto por um policial durante as manifestações contra o xá da Pérsia 9. Estas já não são questões meramente acadêmicas na Alemanha Ocidental. Anticomunismo, falta de liberdade política e injustiça no Terceiro Mundo parecem 6

Robert Strange McNamara (9 de junho de 1916 – 6 de julho de 2009) foi um empresário e político norte-americano que serviu como o 8º Secretário de Defesa dos Estados Unidos, de 1961 a 1968, durante as presidências de John F. Kennedy e Lyndon B. Johnson, período em que teve um importante papel no aumento do envolvimento norte-americano na Guerra do Vietnã e também na negociação da Crise dos Mísseis de 1962. Depois de sair do cargo ele serviu como presidente do Banco Mundial até 1981. (Adaptado da Wikipedia)

7

Walt Whitman Rostow (7 de outubro de 1916 – 13 de fevereiro de 2003) foi um economista e teórico político norte-americano que serviu como Assistente Especial para Assuntos de Segurança Nacional do presidente Lyndon B. Johnson entre 1966 e 1969. Teve papel proeminente na política externa norte-americana para o Sudeste Asiático e apoiou fortemente o envolvimento dos EUA na Guerra do Vietnã. (Adaptado da Wikipedia)

8

Provavelmente, a menção refere-se a On Revolution (1963), cuja introdução intitula-se “War and Revolution”, pp. 11-20. Junto com 2 a edição em inglês, a edição alemã, Über die Revolution, foi lançada em 1965 (e entre 1966 e 1969 não houve novas publicações de Arendt na Alemanha). Para a última edição brasileira, cf. Arendt, Hannah. Sobre a Revolução. [Trad.: Denise Bottmann]. São Paulo: Companhia das Letras, 2011; introdução “Guerra e Revolução”, pp. 35-46.

9

Em 2 de junho de 1967, durante uma série de protestos pela visita à cidade de Berlim do Xá da Pérsia (futuro Irã) Reza Pahlevi e sua esposa, um estudante foi baleado e morto por um policial perto da Deutsche Oper, onde os visitantes deviam assistir à ópera “A Flauta Mágica”, de Mozart e Immanuel Schikaneder (autor do libreto). O confronto se deu na Krumme Strasse, perto do teatro. A morte do estudante não só deflagrou mais protestos naquela noite e nas seguintes, como acirrou as manifestações que iriam crescer cada vez mais durante aquele ano e os seguintes, acompanhando e insuflando a onda mundial. O estudante morto era Benno Ohnesorg, de 27 anos incompletos, que levou um tiro na cabeça e morreu diante da mulher e de três fotógrafos que documentaram o fato, cujas imagens foram bastante reproduzidas na Alemanha, na Europa e em outras partes do mundo. O autor do disparo era o policial Karl-Heinz Kurras, que fazia parte da folha secreta de pagamentos da Stasi (abreviação de Ministerium für Staatssicherheit [Ministério da Segurança de Estado]), a polícia política da, então, Alemanha Oriental. (Adaptado do texto “Reescrevendo a História”, de Flávio Aguiar. Disponível em: . Acesso em: jul/2016.

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formar um complexo. A guerra do Vietnã demonstrou para nós, estudantes, a unidade do mundo e a necessidade de transformá-lo. Começamos a entender que estamos envolvidos na persistência de situações indignas na Pérsia, no Vietnã ou no Brasil. Acreditamos ter aprendido – e em boa parte por sua influência – com o nosso passado e por isso nos sentimos implicados onde quer que algo de semelhante se repita. Sua resposta a estas perguntas não apenas seria de grande valia para nós como também fortaleceria nossa oposição. Com admiração, Hans-Jürgen Benedict

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Hannah Arendt 370 Riverside Drive New York, NY 10021 25 de novembro de 1967. Prezado senhor Benedict, O senhor está a par das errâncias de sua bela carta, que só me chegou às mãos, depois de todas as tribulações, quando eu já me aprontava a embarcar num avião. Quero tentar responder-lhe agora; é uma pena que deva fazê-lo por escrito. O senhor diz ter relido minha brochura sobre a revolução húngara [1956]3. Até onde sei, a editora [alemã] Piper a retirou do mercado – com a minha concordância. Suas objeções estão corretas – são as mesmas que me faço hoje. Não pus fé no desenvolvimento da situação na Rússia. E, para lhe mostrar o que penso hoje, remeto-lhe em anexo a nova introdução ao “Origens do Totalitarismo”10, republicado aqui no ano passado [3a Edição, em 1966]. Não vale a pena mandar o livro inteiro, uma vez que não alterei nada, exceto a introdução à segunda edição (que corresponde à [1a] edição alemã [1955]); na segunda edição americana [1958], publiquei como epílogo minhas considerações sobre a revolução húngara11 – que agora simplesmente excluí. Também lhe envio o prefácio inédito ao volume sobre o imperialismo de meu livro sobre o poder total [i.e. Origens do Totalitarismo] – para a edição em brochura, a editora decidiu dividi-lo em três volumes 12. Creio que o senhor encontrará a resposta a suas perguntas nesses textos; no caso da introdução datilografada, o senhor pode começar a ler a partir da terceira seção, à página 14 13. Respondo, portanto, apenas aquilo que o senhor não encontrará necessariamente nos textos anexos. Jamais ataquei o comunismo enquanto tal, muito menos o reduzi a uma posição totalitária. Sempre me manifestei com toda clareza contra a identificação de Lênin com Stálin ou mesmo de Marx com Stálin. Não diria que o comunismo se modificou, mas sim que a forma de domínio se transformou. O que temos hoje na Rússia é a ditadura do partido único, uma variante da tirania – e apenas isso – que era de se esperar pelo curso “normal” das coisas após a morte de Lênin, não fosse a intervenção de Stálin. Também não acredito no “potencial” de autotransformação do sistema totalitário – seria como se uma monarquia absoluta pudesse rumar por si só para uma monarquia constitucional. A morte de Stálin, a derrota e a morte de Hitler – esses acontecimentos externos foram decisivos. Se subestimei alguma coisa, foi o assim chamado fator subjetivo, isto é, o elemento estritamente pessoal e, a par dele, a dificuldade de encontrar sucessores para o déspota. As coisas poderiam ter tomado outro rumo, caso se tivesse encontrado alguém

10

Provavelmente, a referência é ao “Preface to the Second Enlarged Edition”, publicado junto à 2a edição de Origens do Totalitarismo em 1958. Cf. Arendt, Hannah. The Origins of Totalitarianism. 2nd Enlarged Edition. Meridian Book, 1958. pp. xi-xii.

11

Como está descrito no Prefácio à Segunda Edição, esse texto foi publicado anteriormente, também em 1958, no Journal of Politics. Cf. referência do texto na nota 3.

12

Provavelmente, Arendt refere-se ao prefácio da Parte II “Imperialismo” escrito em julho de 1967. Esse texto foi publicado na edição americana de 1968 e foi incluído nas edições brasileiras de 1989 e 2012. Cf. Arendt, Hannah. Origens do Totalitarismo. [Trad. Roberto Raposo]. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. pp. 181-188.

13

Nem no prefácio da Parte II “Imperialismo”, nem no prefácio à Segunda Edição há quaisquer divisões internas e a paginação desses textos, obviamente, não segue o que foi indicado na carta.

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disposto a seguir em frente – talvez Béria 14, se bem que duvido muito. Inclino-me a pensar que nem mesmo [Nikita] Kruschev (ou seja lá como se grafa seu nome em alemão), no ano de 1957, quando escrevi a brochura [sobre a revolução húngara], sabia por certo até onde as coisas chegariam – por mais que estivesse bem mais decidido do que eu pensava a pôr fim aos traços mais essencialmente criminosos do sistema. Também no que toca o seu segundo ponto – imperialismo americano no Vietnã –, estamos de acordo quanto ao essencial, como o senhor verá pelo novo prefácio [ao volume sobre o imperialismo, em Origens do Totalitarismo]15. O único elemento de consolo na história toda é que o país vai se agitando mais e mais e que o governo não pode fazer nada a respeito, se não quiser atingir os fundamentos da república16. Confio que o senhor esteja a par disso e não entrarei em detalhes. Pode bem ser que estejamos no início de um novo desenvolvimento imperialista – não necessariamente totalitário; o que é certo é que a república dos EUA não sobreviverá a um tal curso das coisas, isto é, a república como forma de governo, não o próprio país. Também o país se encontra sob grave ameaça, mas isso não me importa tanto. Minha lealdade vincula-se a esta república – não ao país – e, é claro, também às pessoas, entre as quais, feitas as contas, me sinto melhor do que nunca. O senhor me pergunta ainda se a questão social se tornou a questão política por excelência. A luta contra a pobreza e a fome diz respeito exclusivamente à pobreza e à fome, pelo menos no que diz respeito aos pobres e famintos, que não costumam ser os que conduzem ou que poderiam conduzir essa luta. E a luta contra o analfabetismo é cada vez mais uma precondição para o fim da pobreza e da fome. A pobreza e a fome (chame-as como quiser) impediram que surgisse, dos movimentos de libertação na Ásia e na África, alguma coisa com um mínimo de estabilidade. A pobreza e a fome criaram o vácuo de poder – também na América do Sul, onde a corrupção dos governos é o reverso dessa medalha – que agora está ressuscitando o imperialismo. Toda formação política se caracteriza pelo poder (não pela violência!) que ela é capaz de exercer; pobreza, fome e analfabetismo criam apenas impotência. Não me venha com os vietnamitas, que de fato conquistaram poder no curso da guerra de guerrilha; nós já os conhecíamos quando ainda se chamavam “indochineses”. Não são absolutamente um povo miserável, mas um povo desafortunado, [se bem que] altamente dotado e herdeiro de uma cultura antiga. Trata-se, ali, de libertação nacional, mas não, absolutamente, do que

14

Lavrentiy Pavlovich Béria (29 de março de 1899 – 23 de dezembro de 1953) foi um político soviético e chefe da NKVD (Narodniy Komissariat Vnutrennikh Diel; o “Comissariado do povo para assuntos internos” foi o Ministério do Interior da URSS). Béria também dirigiu o “Comissariado do Povo para a Segurança do Estado”, responsável pela polícia política e pelos serviços de espionagem. Em julho de 1953, no entanto, foi detido e processado por “atividades criminosas contra o partido e o Estado” e condenado à pena máxima (execução) como traidor. (Adaptado da Wikipedia)

15

Cf. referência ao texto na nota 12. Arendt também analisa o envolvimento norte-americano no Vietnã e as políticas norte-americanas na América Latina como imperialistas e contrárias a “antigos sentimentos anticoloniais” do país em seu artigo “Lying in Politics”, publicado em 1972 (cuja epígrafe, aliás, é uma citação de McNamara, mencionado na nota 6). Para a edição brasileira, cf. Arendt, Hannah. “A Mentira na Política – Considerações sobre os Documentos do Pentágono”. Em: Crises da República. 2a edição. São Paulo: Editora Perspectiva, 1999. pp. 9-48.

16

Em seu artigo “A Mentira na Política” (1999, pp. 47-48), Arendt diz que “as tíbias tentativas do governo de cercear as garantias constitucionais e intimidar os que resolveram não ser intimidados, que preferem ir para a cadeia a verem suas liberdades amordaçadas, não são suficientes, e provavelmente não serão suficientes para destruir a República”. Cf. referência do texto na nota 15.

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entendemos por liberdade. E o mesmo vale, creio eu, para Cuba, onde cabe a nós a culpa maior pelo desdobrar dos acontecimento rumo à tirania russa. Mas olhe bem para os outros Estados sul-americanos. Bem, chegamos então ao “capítulo adicional da história da revolução que os últimos desenvolvimentos tornaram necessário”. Quisera eu ser tão otimista quanto o senhor! A Pax Americana17, contra a qual [John F.] Kennedy se exprimiu com veemência e que [Lyndon B.] Johnson proclamou abertamente, é um pesadelo imperialista – mas, por isso mesmo, apenas um sonho18. A “pacificação de cima para baixo” de que o senhor fala é impossível tecnicamente, seja em termos militares ou econômicos. Ninguém é rico o bastante para ajudar a quem não consegue se ajudar; foi possível dar auxílio à Alemanha ou ao Japão, mas não há como ajudar a Índia, o Egito ou o Congo 19. E, no que diz respeito aos militares, a Guerra do Vietnã deveria ser prova suficiente de que as superpotências já não têm como conduzir guerras convencionais; e graças a Deus estão todos de mãos amarradas no que diz respeito à guerra atômica. É claro que seria possível invadir o Vietnã, o Vietnã do Norte e ocupar e violentar o país com alguns milhões de soldados. Mas, sem falar nos tremendos riscos políticos, quantas vezes um país como os EUA poderia se permitir esse tipo de coisa? De resto, o senhor tem razão em mencionar Walt Rostow 7 nesse contexto. Ele de fato quer uma contrarrevolução, e a ideologia sob a qual navegam todos os esforços nesse sentido é o anticomunismo, cuja origem e formulação ideológica se deve, como o senhor sabe, em boa medida a ex-comunistas20. Como um amigo, o crítico norte-americano Harold 17

A Pax Americana (em referência histórica ao Império Romano [Pax Romana] e ao Império Britânico no século XIX [Pax Britannica]) é um termo latino que se refere à hegemonia norte-americana no mundo como potência imperialista ou a seu papel colonialista de “polícia do mundo”. Também indica o período de relativa paz entre as potências ocidentais e outras grandes potências do fim da Segunda Guerra Mundial em 1945, coincidindo com a atual dominação econômica e militar dos EUA. (Adaptado da Wikipedia)

18

Em seu artigo “A Mentira na Política” (1999, p. 47), Arendt vai escrever que “há uma lição a ser aprendida para os que, como eu, acreditavam que este país [os EUA] tinha se envolvido numa política imperialista; […] para este país levar uma política aventureira e agressiva ao sucesso, teria que haver uma mudança decisiva no ‘caráter nacional’ do povo norte-americano”, mudança esta que ela não acredita ter se concretizado à época, dadas as várias demonstrações de resistência e desobediência civil. Já no prefácio do “Imperialismo” (2012, p. 184), Arendt acrescenta que “nossa esperança de que [a política imperialista de poder] não venha a realizar-se no futuro […] decorre, simultaneamente, da autocoibição imposta pelo desenvolvimento tecnológico da era nuclear”. Cf. referência do texto na nota 15 e 12, respectivamente.

19

Essa ideia está mais bem desenvolvida no prefácio do “Imperialismo” (p. 187), em que Arendt argumenta que a ajuda a “todos aqueles países que não tinham a capacidade de se ajudarem a si mesmos […] aumenta assustadoramente as possibilidades do imperialismo”. Embora na carta ela não responda especificamente se é contrária ou não a essa política (alegando somente a “impossibilidade técnica”), como inqueriu o aluno Benedict, no prefácio fica claro que ela entende que “essa situação objetiva […] transforma toda ajuda externa em instrumento de domínio” de um lado, frente ao caso de necessidade do outro. A solução, portanto, ainda que impossível, deveria mesmo ser técnica, e não política. Cf. referência do texto na nota 12.

20

Vários anos antes, em 20 de março de 1953 (em plena era anticomunista liderada pelo senador republicano reeleito Joe McCarthy, e mesmo diante da reativação da Lei McCarran-Walters, uma lei de imigração para “tornar a América mais americana” que poderia afetar sua condição de recémcidadã, obtida em agosto de 1952), Arendt publicava na Commonweal o texto “Os ex-comunistas”. O texto é uma resenha de Witness (1952), memórias do jornalista/espião Whittaker Chambers, apresentado como um “tipo” concreto de um ex-comunista – que ela distingue do perfil dos “antigos

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Rosenberg, escreveu a Sartre há alguns anos: “tome cuidado com o comunismo, ele é canteiro do anticomunismo! Précisément!”. No que diz respeito à violência: não há revolução que tenha triunfado graças à simples violência. Há, é claro, o levante violento dos oprimidos, que entretanto só conseguiu alguma coisa quando o poder do Estado já estava minado. É sempre a impotência, a cólera cega e tremenda dos impotentes que se manifesta como violência21. Quando ela triunfa, o caos puro e simples se instala no dia seguinte – simplesmente porque todos que descarregaram sua ira começam imediatamente a divergir. Daí não virá nenhuma resistência. E, se acha que algo do gênero está se dando no Vietnã, creio que o senhor está fundamentalmente equivocado. E creio haver algo do gênero, um erro do mesmo gênero, em outra de suas observações. O senhor afirma que a guerra do Vietnã teria revelado aos estudantes “a unidade do mundo e a necessidade de transformá-lo”. Quanto a esse último ponto, podemos concordar sem mais delongas; mas a “unidade do mundo”, supondo que o senhor entenda por esse termo mais que uma espécie de solidariedade, é apenas um sonho22. Apenas em termos técnicos o mundo constitui uma espécie de unidade. Sob todos os outros pontos de vista, sobretudo no que diz respeito à política e às chances de um desenvolvimento rumo à liberdade, cada país constitui um caso à parte. Tome a questão da guerra de guerrilha. Sem dúvida, uma modalidade de luta muito eficaz para povos oprimidos, sobretudo diante de invasores estrangeiros. Mas quantos povos, em sua opinião, estão em condições de organizar uma guerra assim? Não se esqueça de que a expressão Terceiro Mundo é apenas um conceito negativo e se refere a todos aqueles povos que não se encontram nas esferas de poder russa ou americana 23. O

comunistas”. Mas o argumento principal desfilado no texto áspero é a diferença entre a liberdade e a ideologia, entre o agir e o fazer (como categoria de meios-e-fins), entre os que se deparam com a imprevisibilidade dada pela liberdade e a valorizam e aqueles que querem “fazer a história” a partir de uma ideologia (seja ela comunista ou anticomunista), justificando seus meios “maus” a partir de seus fins “bons”. Cf. Arendt, Hannah. Compreender: formação, exílio e totalitarismo (ensaios) 1930-1954. [Trad. Denise Bottman] [Org. Jerome Kohn]. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. pp. 407-416. 21

O desenvolvimento dessas ideias só foi publicado (em inglês, com tradução alemã) em 1970, em seu ensaio Sobre a Violência. Para a última edição brasileira, cf. Arendt, Hannah. Sobre a Violência. [Trad. André Duarte]. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. O ensaio também foi publicado no volume Crises da República (1999 [orig. 1972], pp. 91-169).

22

Hannah Arendt desenvolveu sua distinção entre bondade, compaixão, piedade e solidariedade no capítulo 2 (especialmente, partes 3 e 4) dedicado à “questão social”, em Sobre a Revolução. Cf. referência do texto na nota 8, pp. 109-138. Mas suas conclusões, contrárias a quaisquer ideias que possam “levar a uma sentimentalidade falsa em que todas as questões reais são obscurecidas” (p. 214), devem ser balanceadas com o que ela escreve sobre a distinção entre “responsabilidade política (coletiva)” e “culpa moral (pessoal)”. A esse respeito, cf. Arendt, Hannah. “Responsabilidade pessoal sob a ditadura”; “Responsabilidade coletiva”. Em: Responsabilidade e Julgamento. [Ed. Jerome Kohn]. [Trad. Rosaura Einchenberg]. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. pp. 79-111; 213-225. Só assim ficam mais claras as ideias que justificam a passagem em que ela escreve, na carta: “Não reconhecer esses limites é um delírio de grandeza, por mais que este se oculte por trás de sentimentos sublimes”.

23

Em outras partes, Arendt é mais explícita e diz que “o Terceiro Mundo não é uma realidade, mas uma ideologia” ou uma ilusão (cf. Sobre a Violência, 2009. pp. 37-38 e nota 38); e na entrevista publicada em Crises da República (1999, pp. 180-181), ela explica mais detidamente que essa frase aponta para o perigoso “nivelamento imperialista de todas as diferenças” entre os chamados “povos subjugados”.

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senhor acha mesmo que isso basta para constituir uma unidade? Quanto ao seu último ponto, não resta dúvida de que estamos envolvidos na persistência de “condições indignas” na Pérsia, no Vietnã e no Brasil, mas não cabe a nós transformá-las. Esta me parece ser uma espécie de delírio de grandeza às avessas. Tente fazer política na Pérsia, e o senhor logo estará curado. Sua responsabilidade diz respeito a impedir que se perpetuem condições indignas na Alemanha ou que se matem estudantes durante uma manifestação. Temo que isso já o manterá mais que ocupado. Politics, like charity, begins at home. [A política, como a caridade, começa em casa]. Se amanhã – e isso seria bem possível –, após a retirada das tropas americanas do Vietnã, os vietnamitas começarem a se degolar mutuamente, eu não me sentirei em nada responsável. A política é sempre, entre outras coisas, a arte do possível, e as possibilidades dos homens e dos povos são sempre limitadas. Não reconhecer esses limites é um delírio de grandeza, por mais que este se oculte por trás de sentimentos sublimes. E isto, em política, é muito perigoso, ainda mais na Alemanha. Espero que não tenha aprendido isto com meus escritos. É verdade que [Georges] Clemenceau 24 disse (durante o affaire Dreyfus25): “L’affaire d’un seul est l’affaire de tous” [O problema de um só é problema de todos], mas é claro que ele se referia a todos os franceses. Se um cavalheiro de Pequim tivesse aparecido então para lhe dizer que o affaire também lhe dizia respeito, Clemenceau provavelmente o teria julgado ligeiramente perturbado. Não me leve a mal! Tais confusões, por mais que sejam elementares, produzem-se facilmente quando se começa a generalizar. Em certo sentido, todos nós incorremos nelas, mas é preciso prestar atenção para não perder o bom senso. Nenhum de nós pode mudar todo o mundo, porque nenhum de nós pode ser cidadão do mundo; e costumam se inclinar por uma responsabilidade mundial justamente aquelas pessoas que fogem, por razões compreensíveis, à responsabilidade por seu mundo. Não há como determinar teoricamente os limites, que entretanto facilmente se mostram em termos práticos. Quando se trata de política, é preciso aprender a pensar em termos limitados. Isso não é fácil para quem, como o senhor ou como eu, vem de uma tradição Seu apelo insistente é para que se evite, em política, quaisquer generalizações homogeneizantes, movimentos de unificação (pan-movements) ou formações unitárias a partir de um único “denominador comum”. Aqui fica absolutamente clara a passagem em que ela escreve, na carta: “quando se trata de política, é preciso aprender a pensar em termos limitados”. 24

Georges Benjamin Clemenceau (28 de setembro de 1841 – 24 de novembro de 1929) foi um estadista, jornalista e médico francês. Ocupou o cargo de primeiro-ministro da França nos períodos de 19061909 e 1917-1920. Foi líder da delegação francesa à Conferência de Paz de Paris (18 de janeiro de 1919 a 20 de janeiro de 1920), que resultou no tratado de Versalhes (assinado em 28 de junho de 1919, definindo os termos da paz com as nações derrotadas na I Guerra Mundial). Em 1897 foi o responsável pela publicação de L'Aurore, onde o escritor francês Émile Zola lançou “J'accuse” a propósito do “Caso Dreyfus”. (Adaptado da Wikipedia)

25

Alfred Dreyfus (9 de outubro de 1859 – 12 de julho de 1935), oficial de artilharia do exército francês, de origem judaica, foi condenado em 1894 por alta traição, por alegadamente escrever uma carta suspeita [Le borderau, “a lista”] ao adido militar alemão, o tenente-coronel Schwarzkoppen. Dreyfus foi condenado à prisão perpétua na Ilha do Diabo, na costa da Guiana Francesa. Dreyfus, no entanto, era inocente. Em novembro de 1897, seu irmão Mathieu Dreyfus descobre que Charles Esterhazy é o verdadeiro culpado, autor da carta. Em 1898, as evidências da inocência de Dreyfus possibilitaram um segundo julgamento, mas a sentença anterior foi mantida. A farsa foi acobertada por uma onda de nacionalismo antialemão e pelo antissemitismo que invadiu a Europa no final do século XIX. O escritor francês Émile Zola expôs o escândalo ao público no jornal literário L'Aurore, em 13 de janeiro de 1898, publicando uma carta aberta ao Presidente da República Félix Faure intitulada J'accuse! [Eu acuso!]. (Adaptado da Wikipedia)

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filosófica pesada e grandiosa como a alemã, pois é da essência do pensamento transpor limites. Poderíamos continuar a conversar e a discutir nestes termos, sem – quero crer – cair em birras ou meras disputas. Mas esta carta já está longa demais. E agora me ocorre que não lhe escrevi com uma cópia em carbono para o professor [Hans-Eckehard] Bahr26. Posso pedir que encontre uma máquina xerox e lhe faça chegar uma cópia? Com os melhores votos, sua Hannah Arendt

26

Hans-Eckehard Bahr (1928-) foi orientador de doutorado de Hans-Jürgen Benedict e desde 1967 é Professor de Teologia Prática na Universidade de Bochum. Encontrou-se pessoalmente com Hannah Arendt em 1966, quando ambos lecionaram na Universidade de Chicago.

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APÊNDICE B Esquematização apresentada para a defesa pública da Tese

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