Contra-escatologia: Adorno e Lukács, leitores de Lessing (São Paulo, 17.12.2012)

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Contra-escatologia Adorno e Lukács, Leitores de Lessing1 Eraldo Souza dos Santos ([email protected])

“(...) o dito por Ernst Bloch contra Nietzsche, isto é, que o eterno retorno era uma eternidade mal imitada a partir de repetições infinitas, vale literalmente para a fibra musical de Stravinsky” (Adorno, Stravinsky, uma imagem dialética).

Trata-se aqui de pôr em marcha um procedimento considerado temerário pela História da Filosofia, ao menos por aquela concebida segundo os moldes tradicionais de uma “ciência rigorosa” à moda estruturalista; buscar-se-á, bem entendido, fazer comparações entre a obra de dois filósofos. Nosso objetivo, entretanto, não é tentar traçar, com requinte documental, a forma como o trabalho de um desses autores interferiu na obra do outro ou como teria se configurado uma “influência espiritual” decisiva, para usar uma expressão cara a um deles, que teria permitido com que, apesar de todos os embates entre esses dois autores, ambos se encontrassem, em relação a uma questão específica, sobre um campo comum. Antes disso, buscar-se-á reconstituir algumas tópicas de dois ensaios sobre estética que, embora se dediquem a campos distintos do fazer artístico, a saber, a música, no caso de Adorno, e a narrativa, no caso de Lukács, encontram-se unidos por suas críticas recorrentes à tentativa de espacialização das artes do tempo; críticas dirigidas com força contra os procedimentos artísticos daqueles que operam pela mimetização da estrutura estático-espacial da pintura. A partir daí, ambos extrairão como conclusão consequências precisas acerca da forma da temporalidade histórica no capitalismo avançado e de como ela é percebida concretamente pelos sujeitos políticos1.

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O presente texto foi apresentado no grupo de pesquisa do professor Vladimir Safatle, em 17/12/2012, na Universidade de São Paulo. Trata-se de parte de minha pesquisa de iniciação científica sobre o conceito de mediação na filosofia adorniana da música. Embora eu não concorde mais com tudo o que escrevi naquela ocasião, mantive o texto em sua versão original, por se tratar de um working paper.

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Alguns textos nos ofereceriam, todavia, recurso documental para fundamentar uma tal comparação entre as obras desses dois pensadores. No texto “Contradição” (1956), por exemplo, em que Adorno apresenta suas oposições a um texto de Lukács que terminara de ser traduzido do húngaro, o filósofo diz: “Suas obras de juventude me causaram o mesmo que a outros intelectuais de minha geração: uma grande impressão. Mas, quanto ao essencial, Lukács segue hoje em dia devendo seu prestígio intelectual a esses trabalhos iniciais, mesmo que há muito tempo ele já tenha os refutado

Não ignoramos o quão esses autores esboçam reflexões distintas e opostas em relação à estética; também não desconhecemos o campo de forças aberto pelo debate entre eles acerca de conceitos como “decadência” ou “regressão” em arte, além das rivalidades marcadas pela discussão central sobre o papel político da arte de vanguarda e do realismo. Peter Bürger (2008), em sua Teoria da Vanguarda, esboça (embora de maneira um tanto sistemática) alguns pontos fundamentais desse debate. Sobre Lukács, o autor dirá, por exemplo, que “na imersão naturalista no detalhe e na subsequente perda de perspectiva de conjunto, manifesta-se a dissolução do realismo burguês, que atinge seu ápice na vanguarda. Esse é o desenvolvimento de uma decadência histórica necessária” (p. 168). Enquanto para esse, “a obra de arte orgânica represent[a] um tipo de perfeição absoluta, (...) realizado nos grandes romances realistas de Goethe, Balzac e Stendhal” (idem), para Adorno “a obra vanguardista”, “não-orgânica”, “é a única expressão autêntica possível do atual estado do mundo (...); a obra de arte vanguardista aparece como expressão historicamente necessária da alienação na sociedade do capitalismo tardio; pretender medila pela coesão orgânica da obra clássica ou realista seria inadequado” (p. 169). Quer dizer: enquanto, por um lado, Lúkacs afirmará que a vanguarda é sintoma da alienação dos intelectuais e artistas em tempos de capitalismo tardio, para Adorno, defender o realismo seria “não apenas uma regressão em relação a um nível já alcançado das técnicas artísticas, mas, mais do que isso, suspeita de ideologia” (p. 170), “falsa reconciliação com o existente” (p. 173). Nosso objetivo aqui, contudo, não será investigar as conhecidas críticas de Lukács ao Grande Hotel Abismo frankfurtiano; nem lançar luz sobre o tema sempre recorrente relativo à produção lukácsiana sob os olhos de Stálin; mas sim, para usar a imagem feliz de Deleuze, de perceber como dois ensaios, um de Adorno e outro de Lukács, são planos que se curvam um sobre o outro. Refiro-me ao ensaio de Adorno “Stravinsky e a restauração”, parte integrante do livro Filosofia da Nova Música, e ao texto de Lúkacs Narrar e descrever (1936).

solenemente e siga a linha cultural geral dos russos soviéticos. É possível que agora me cite a fim de desprender-se disso ou, ao menos, de dar por confirmadas por teóricos ocidentais independentes as teses até o momento aprovadas por ele – como a de uma cultura tutelada pelo ‘realismo social’ – aos olhos dos pensadores liberais. Tão contente eu estaria, todavia, se Lukács acabasse opondo-se à destruição de sua própria razão; na mesma medida, não posso tolerar que ele fique obstinadamente com o conteúdo de minha filosofia da música na cabeça” (p. 870).

Quadro estático do mundo As teses centrais, eu já as apresento: trata-se de mostrar como tanto a grande narrativa do realismo francês – Flaubert e Zóla (no ensaio de Lukács), quanto a música de Igor Stravinsky, que viemos investigando até aqui, recorrem a procedimentos estilísticoformais que espacializam, para cada caso mutatis mutandis, o meio característico de artes nas quais o desenvolvimento temporal é intrínseco – a narrativa tradicional, no caso do primeiro ensaio, pensada a partir das formas clássicas de desenvolvimento, tensão, clímax e resolução do enredo das formas épicas e do romance realista, e, no segundo, certa figura ou modalidade de composição musical, da qual a música germânica seria a representante legítima, que teria como base o desenvolvimento harmônico e que, nesse sentido de maneira semelhante à literatura, também lidaria com tensões e resoluções, aqui de combinações entre sons que, entre si, apresentam-se como dissonantes ou consonantes. O que permite levar a frente minhas hipóteses comparativas é que em ambos os casos tal espacialização do tempo musical ou narrativo parece mimetizar certa espacialização do tempo histórico tal como ele passa a ser concebido e vivido no interior do capitalismo avançado – num mundo que se oferece para nós como já acabado, em que a história parece ter adquirido sua forma definitiva (bem antes das formulações temerárias de um Fukuyama...), o tempo histórico deixaria de ser fluxo, desenvolvimento, variação, tensão, surgimento do novo, irrupção do inesperado, para se manifestar como quadro estático do mundo. Quadro em que não haveria mais a possibilidade de pensar a revolução ou a mudança – somente contemplar o espetáculo de uma catástrofe. Vejamos como isso surge nos dois autores. No ensaio de Lukács, desde o primeiro momento – o texto começa em medias res – , já são apresentadas duas figuras paradigmáticas, ao ver do autor, da maneira como duas dimensões da composição literária, narrar e descrever, aparecem no romance realista. São comparadas as estratégias formais mobilizadas para contar duas corridas de cavalo que fazem parte de romances classificados sob a grande categoria do “realismo” em literatura – Ana Karenina, de Tolstoi, e Naná, de Zola. O que está em jogo aqui é a maneira como a corrida, um episódio pertencente ao conjunto do enredo de cada um dos romances, integra-se ao todo da narrativa. Por um lado, Lukács dirá sobre Naná que (...) a descrição da corrida é um esplêndido exemplo do virtuosismo literário de Zola. Tudo o que pode acontecer numa corrida em geral, vem descrito com exatidão, com plasticidade e sensibilidade. A descrição de Zola é uma pequena monografia sobre a moderna corrida de trote, que vem acompanhada

em todas as suas fases, desde a preparação dos cavalos até a passagem pela linha de chegada, com a mesma insistência. A tribuna dos espectadores aparece com toda a pompa e o colorido de uma exibição de moda parisiense sob o Segundo Império. Também o que acontece na pista vem representado com exatidão em todos os aspectos: a corrida termina por uma grande surpresa e Zola não se limita a descrever esta surpresa, mas desmascara também a complicada trama que a causou (p. 43-4).

Naná, como todos os grandes textos da produção de Zola, seria marcado por um grande refinamento descritivo e técnico – a descrição perfeita permite que o espectador não só imagine a cena do romance, como, também, venha a conhecer melhor todos os procedimentos necessários para que uma corrida de trote se realize. Em tal talento descritivo do escritor, todavia, Lukács vê claras limitações narrativas. Por isso, logo em seguida já acrescenta – “no entanto, esta descrição, com todo o seu virtuosismo, não passa de uma digressão dentro do conjunto do romance” (p. 44). Digressão que apresenta conexões “débeis” com o tema principal da narrativa e com seu desenvolvimento central, e que, se suprimida, não faria falta ao conjunto orgânico do romance. Não é isso, por outro lado, que se poderia perceber no romance de Tolstoi. A corrida de cavalo de Ana Karenina é o ponto crucial de um grande drama. A queda de Wronski representa uma reviravolta na vida de Ana. Pouco antes da corrida, Ana fica sabendo que está grávida e, depois de uma dolorosa hesitação, decide comunicar sua gravidez a Wronski. A emoção suscitada pela queda de Wronski provoca a conversa decisiva de Ana com Karenin, seu marido. Todas as relações entre os principais personagens do romance entram numa fase decididamente nova, após a corrida. Esta, por conseguinte, não é um “quadro” e sim uma série de cenas altamente dramáticas, que assinala uma profunda mudança no conjunto do entrecho (p. 44).

Percebamos aqui, primeiro momento de muitos em que a noção de quadro e pintura é invocada no texto, como ela é oposta à noção de “profunda mudança”, isto é, àquilo que caracterizaria o desenvolvimento próprio à narrativa, a criação de movimentos de tensão e distensão. A passagem que se opera de um método de composição centrado no narrar (no qual nenhum evento é episódico e casual, mas necessariamente conectado, “amarrado”, ao fluxo narrativo) para um método que hipostasiaria a descrição, Lukács a identifica na mudança do papel do narrador como participante, em Tolstoi, para um narrador como espectador passivo, no realismo francês. É importante notar, como Lukács o fará, que não se trata simplesmente de escolhas quaisquer relativas à organização do conteúdo das obras literárias, o que reduziria o debate

a um “disse-que-me-disse” sobre quem é o preferido do crítico de arte, mas sim de escolhas políticas precisas a partir das quais se descortina ou não, entre as opções de narrar ou descrever, o campo do engajamento e da ação política do escritor no interior da sociedade. Por isso ele afirmará que (...) o contraste entre o participar e o observar não é casual, pois deriva da posição de princípio assumida pelo escritor, em face da vida, em face dos grandes problemas da sociedade, e não do mero emprego de um diverso método de representar determinado conteúdo ou parte de um conteúdo (p. 50).

A questão, para o autor, não é estabelecer tipos ideais, como se pudéssemos separar, na história da arte literária, obras narrativas e descritivas. Trata-se, em uma perspectiva diversa, de investigar por que a descrição, que era somente mais um elemento narrativo dentre outros, pode alcançar a importância que alcançou no interior do realismo e naturalismo francês, tornando-se princípio fundamental da composição. Lukács, durante todo o seu texto, apontará que o perigo da descrição é o seu caráter inumano – ela não “narra acontecimentos humanos”, com vemos num Tolstoi; antes disso, ela tudo nivela, coloca coisas e homens no mesmo patamar de importância, anunciando e mesmo mimetizando já a transformação do próprio comprador em mercadoria nas sociedades de consumo características do capitalismo avançado. Tais mudanças na composição literária, como o autor não deixará de lembrar, são resultado de uma dinâmica necessária da obra de arte no interior de uma sociedade como a sociedade burguesa – “todo novo estilo surge como necessidade histórico-social da vida e é um produto necessário da evolução social” (p. 53). Isso não significa, todavia, que os estilos sejam impostos a nós e que escolhas diferentes não sejam possíveis, visto que “a necessidade pode ser, também, a necessidade do artisticamente falso, disforme e ruim” (idem). É a partir desse quadro que se pode compreender a apologia lukácsiana da épica, do drama e do grande romance de formação. O fim do caráter épico do narrar e sua transformação em quadro descritivo é consequência da tirania da prosa do capitalismo sobre a íntima poesia da experiência humana; a crueldade da vida social, o rebaixamento do nível de humanidade são fatos objetivos que acompanham o desenvolvimento do capitalismo e desse desenvolvimento decorre necessariamente o método descritivo (...). O nível poético da vida social decai – e a literatura sublinha e aumenta a decadência (p. 61-2).

A transformação do tempo inerente à composição literária em quadro estático, dessa maneira, assemelha-se à forma como o tempo histórico é concebido e vivido no interior do capitalismo tardio – não há mais tensões, verdadeiras alterações, mas somente uma longa monotonia; a literatura descritiva, nesse ínterim, ressalta e aprofunda o estado de alienação. “Descrevem-se situações estáticas, imóveis, descrevem-se estados de alma dos homens ou estados de fato das coisas. Descrevem-se estados de espírito ou naturezasmortas. Dessa forma, a representação degenera em esboços (...)” (p. 66). Quadros, naturezas-mortas, esboços. A pintura surge como modelo dessa espacialização temporal temerária. Em Madame Bovary, na famosa cena em se apresentam alternadamente as investidas de Rodolfo sobre Emma e o discurso burocrático do Estado numa premiação dirigida a trabalhadores do campo, Lukács encontra mais uma vez a ocasião para mostrar a distinção entre o tempo humano na concepção do realismo russo e na visão do realismo francês. O “cenário” possui uma significação autônoma, enquanto elemento destinado a completar o ambiente. Aqui, porém, os personagens são unicamente espectadores – e por isso se tornam, para o leitor, elementos constitutivos, homogêneos e equivalentes, dos acontecimentos descritos por Flaubert, relevantes apenas do ponto de vista da reconstituição do ambiente. Tornam-se manchas coloridas dentro de um quadro, que só ultrapassam os limites estáticos da moldura na medida em que se eleva o irônico símbolo da essência do filisteísmo (p. 49).

Os personagens de Flaubert e Zola espelhariam bem a impotência que abateria os indivíduos no interior da sociedade capitalista – aqui, meras “manchas coloridas dentro de um quadro”, mais a frente “espectadores mais ou menos interessados nos acontecimentos”, que, por seu desinteresse em agir, se petrificam, o que faz com que os observemos não como seres humanos que vivem no tempo, mas sim como objetos dispostos no espaço – a narrativa passa a ser concebida como “uma série de quadros” (p. 50). Tendência que apresenta uma íntima relação com o desenvolvimento científico do século XIX e com a maneira segundo a qual a ciência conceberá a relação de exterioridade radical entre sujeito e objeto: o paradigma para a descrição literária, não se pode esquecer, passa a ser o rigor “objetivo”, “neutro” e “distanciado” da ciência, como quer o romance naturalista, que, nas mãos de um Zola, radicalizará a tendência do positivismo, querendo transformar a literatura numa ciência descritiva perfeita. Transformando o homem em um

objeto a ser descrito cientificamente, a literatura só aprofunda a falta de humanidade capitalista, reificando as relações humanas. Vejamos agora como Adorno pensa o problema no caso musical. De maneira geral, como vimos nos capítulos anteriores, poderíamos dizer que a figura do esquizofrênico, recorrente no segundo ensaio da Filosofia da Nova Música, é sempre invocada para explicar algumas das figuras da subjetividade que a obra de Igor Stravinsky faria vir à tona no momento mesmo em que empreende o projeto central de fazer desaparecer o sujeito do interior do seu material musical. Para buscar “objetividade” em tempos de “Rappel à l’ordre”, o projeto do compositor, como Adorno afirma com frequência, configura-se precisamente a partir da tentativa de realizar o apagamento e a destruição da subjetividade, da “alma”, em música. Destruição que estaria perfeitamente representada nas próprias narrativas que fariam parte de suas principais óperas e balés, como Petruschka, O rouxinol e A Sagração da Primavera. A destruição do subjetivo manifestar-se-ia, assim, na insistência com a qual as obras de Stravinsky figurariam o ataque contra o sujeito, sem se colocar em sua defesa, nem se esforçando para amenizar seu sofrimento. Sua obra representa somente os gestos violentos daqueles que querem que a subjetividade seja destruída. “Esses homens crédulos”, escrevia Cocteau com boas intenções iluministas e com certa complacência a respeito da juventude préhistórica do Sacre, ‘imaginavam que o sacrifício duma jovem eleita entre todas é necessário para que a primavera recomece’. E a música diz: assim era; e não toma nenhuma posição, assim como não a toma Flaubert em Madame Bovary. O horror é observado com certa complacência; não é transfigurado, mas representado sem paliativos. (Adorno, FNM, p. 116).

Como em Madame Bovary, observa-se o sofrimento subjetivo das personagens, mas sem interferir no seu percurso, sem ser solidário ou não às suas tragédias ou comicidades, sem se preocupar em diminuir o sofrimento do indivíduo ou em mostrar as injustiças que estariam sendo cometidas contra ele. Somente se observa a violência, complacentemente, enquanto se representa de forma impass o sofrimento do indivíduo. “É assim”, diz a música de Stravinsky, sem querer dizer mais nada. Ela nos convidaria, dessa forma, diante de sua aparente “objetividade” e “neutralidade”, a ficar do lado da instância que quer destruir o subjetivo: o coletivo, a sociedade, que só pode existir enquanto repressão das individualidades.

Projeto composicional que se radicalizará quando Stravinsky chegar àquela que geralmente é considerada a segunda fase de sua obra, a Nova Objetividade – numa busca por objetivação, Stravinsky esforçar-se-ia por destruir a todo custo o sujeito. Esforço transformado nesse momento em princípio fundamental de uma ideia programática que o acompanhará até o fim de sua vida. Adorno dará razão a Isaiah Berlin, quando esse, num ensaio, compara tal impulso de Stravinsky com a insistência neopositivista de mostrar a coisa tal como ela realmente é, afastando (ou tentando afastar) violentamente o sujeito do processo de conhecimento (Adorno, SID, p. 406). Recorrendo às definições de esquizofrenia do famoso manual do psicanalista Otto Fenichel, Adorno identifica nesse comportamento das obras de Stravinsky um sintoma da esquizofrenia – e o curioso, mas talvez o mais difícil de entender, é que se trata justamente de afirmar que é a obra que se comporte dessa maneira, não o compositor, nem seu público, como muitos críticos de Adorno fizeram acreditar. Trata-se, na Filosofia da Nova Música, de um dos sintomas clínicos típicos da esquizofrenia, a saber, a hebefrenia, que se caracterizaria fundamentalmente pela indiferença do indivíduo em relação ao que lhe é exterior; sintoma que, em muitos casos, é vivido pelo paciente como indistinção com o mundo, retorno à situação uterina de completude. O rechaçamento da expressão, que em Stravinsky constitui o aspecto mais evidente da despersonalização, tem na esfera da esquizofrenia sua réplica clínica na hebefrenia, que é a indiferença do doente com relação aos fatos exteriores. A frieza dos sentimentos e o “achatamento” emocional que sempre se encontra nos esquizofrênicos não é um empobrecimento da suposta interioridade em si. Procede da falta de conteúdo libidinoso no mundo dos objetos, da própria alienação que não permite que a interioridade se desenvolva, mas a exterioriza, traduzindo-a em rigidez e imobilidade. (...) [A hebefrenia] não se deixa perturbar por impulsos, mas se comporta como se operasse no reino das ideias (p. 136).

A interioridade não encontra a oportunidade de amadurecer precisamente porque não existe o contato essencial da subjetividade com o que lhe é exterior. necessário para que o desenvolvimento do indivíduo ocorra. A música de Stravinsky, de maneira semelhante, dessubjetivada e imatura, não consegue mais se relacionar com o mundo. Todo gesto seu é rígido e sua tendência é o imobilismo. Ao deixar de se constituir como ego individualizado, simplesmente retornaria a uma união com o todo, que, nesse caso, significaria o todo social, a mimetização das forças sociais opressoras.

Ao ver do filósofo alemão, seria possível também detectar nas partituras de Stravinsky manifestações esquizofrênicas como a catatonia. O sintoma seria caracterizado pela repetição incessante de ideais e gestos. Fenichel (1981) refere-se a ele como “o modo passivo pelo qual os pacientes experimentam os seus próprios atos, como se de forma alguma atuassem, mas fossem obrigados a realizar certos movimentos ou a pensar certas ideias, que sentem ‘introduzidas’ na sua mente” (p. 395). Os movimentos que antes eram autônomos e parte integrante do agir corporal e mental livre do indivíduo, agora são sentidos como uma obrigação vinda do exterior – de um exterior, todavia, não identificável. Obrigação que exige repetição, também sem que se saiba exatamente por quê. A música de Stravinsky, ao ver de Adorno, se comporta precisamente dessa maneira. O filósofo volta-se para o ritmo característico nas obras do compositor, desenvolvido a partir de shocks e de repetições incessantes de movimentos semelhantes, que mimetizariam algo que ocorre frequentemente também no corpo do esquizofrênico que apresenta catatonia. Isso se mostraria com clareza em trechos como os seguintes da Filosofia da Nova Música. Como as vítimas de um choque ou como aqueles que só podem ainda ter prazer revivendo o que vivenciou no esforço de um sonho, a música de Stravinsky repete incessantemente os mesmos gestos, sem lhes opor nenhuma resistência, de maneira muito semelhante aos esquizofrênicos que tem manifestações sintomáticas catatônicas. Após a dissolução do eu, do fim (ou quase fim) da subjetividade do indivíduo acometido pela patologia, só resta um corpo que repete gestos incessantes. Seu procedimento rítmico aproxima-se em tudo bastante do esquema das condições catatônicas. Em certos esquizofrênicos, o fato de que o aparato motor se torne autônomo conduz, após a dissolução do eu, a uma repetição sem limites de gestos e palavras; algo parecido já se conhece em pessoas que sofreram um shock (p. 135-6).

A música de Stravinsky, como o caso da Sagração pode nos mostrar, manifesta tais shocks a partir de escolhas composicionais precisas, como o uso recorrente de síncopes, as mudanças assimétricas de compasso, a pulsação em ostinato (Socha, 2012, p. 10-1) mostram. É fundamental notar que o shock proveniente de tais escolhas compositivas relega sempre a música a uma dimensão corporal: o choque é sempre algo que se sente no corpo. Adorno nunca deixará de ver isso como um dos problemas centrais do projeto estético de Stravinsky, pois isso põe em jogo a autonomia musical. O compositor russo é um compositor de balés, Adorno lembrará mais de uma vez (FNM, p. 112; SID, p. 410). É nesse sentido que se

pode recuperar aqui a defesa adorniana da música absoluta, pois Stravinsky acaba por exigir que a forma musical se submeta à dança, como o princípio da repetição deixa claro. Nesse ínterim, a música precisa se submeter a algo que lhe é exterior – “a dança impunha à composição, desde o princípio, certa subordinação, e a renúncia à autonomia” (Adorno, FNM, p. 150). O caráter de música de balé manifesta-se, no final das contas, como prescrição de “movimentos físicos e, consequentemente, comportamentos” (ibid., p. 134). Comportamentos repetidos compulsivamente, não seria demais dizer, que são característicos do indivíduo alienado no interior dos modos de vida do capitalismo tardio, como o trabalho industrial figuraria com clareza. O fato da música de Stravinsky remeter com insistência à corporeidade aponta para algo que se mostra fundamental nas críticas que Adorno formula contra o compositor. Sua música apresenta-se em grande medida como espacialização do tempo. Ela é, nos termos de Adorno, “uma intemporalidade imanente, contra o ideal de dinâmica, constitutivamente temporal” (p. 395), uma tentativa de “abolição do tempo” (p. 396). Isso se dá no nível compositivo também a partir de escolhas estéticas: além das já citadas, a composição por “blocos” sonoros (Boucourechliev, 1986; Safatle, 2011; Socha, 2012) abre o campo para a manifestação daquilo que tratamos mais acima como advento do “tempo-espaço” em música. Na música de Stravinsky, em sua fase russa, nada se realiza no seu sentido estrito. Por exemplo, todo desenvolvimento harmônico é cortado, o que faz com que as passagens de um material ao outro sejam abruptas e articuladas a partir do princípio de justaposição ou sobreposição. Também não há algo que poderíamos chamar de desenvolvimento melódico. No seu lugar, há apenas “células motívicas” que são repetidas, sobrepostas a outras células e dissolvidas (através da modificação dos tempos fortes ou do apagamento dos seus limites), mas nunca desenvolvidas no interior de uma lógica, por exemplo, de antecedente-consequente. No seu lugar, o que temos normalmente é o uso deliberado de contrastes e cortes abruptos. Desta forma, assistimos ao desenvolvimento de uma espécie de escrita em blocos sonoros que fica muito visível, por exemplo, em A Sagração da Primavera. A metáfora é cara aqui. Quem fala em blocos, fala em volumes que podem ser justapostos, sobrepostos e quebrados (Safatle, 2011, p. 3).

O próprio Adorno insiste, ao analisar as partituras do compositor, em identificar o que nelas manifesta-se como subtração ao que “poderia verdadeiramente constituir relações temporais, como, por exemplo, a transição, o crescendo, a diferença de tensões e resoluções, de exposição e desenvolvimento, de pergunta e resposta” (Adorno, FNM, p. 149). A música de Stravinsky seria, nesse sentido, formada basicamente por repetição e

justaposição, de maneira que tenderia a deixar de ser propriamente uma exposição cinéticatemporal do material musical. É o que Adorno afirma claramente na Filosofia da Nova Música ao comparar, como vimos, os procedimentos composicionais de Stravinsky com os de Debussy. O compositor francês também partiria, segundo o filósofo, desse processo de espacialização da música: através da “justaposição de elementos separados”, se dissociaria, em sua música, “a própria continuidade temporal”. A quem quer que esteja formado na música alemã e austríaca é familiar já em Debussy uma sensação de decepcionada expectativa. O ouvido permanece tenso e atento, durante toda a obra, para que “isso chegue”; tudo parece como um prelúdio, um preâmbulo que precede à verdadeira realização musical. É um “epodo” que nunca chega. O ouvido deve orientar-se de maneira diferente para compreender exatamente Debussy, para entendê-lo, não como um processo de tensões e resoluções, mas como uma justaposição de cores e superfícies, como a de um quadro (Adorno, 1974, p. 144).

O que causa incômodo na música de Debussy é, propriamente falando, a ausência de processos propriamente harmônicos no interior da música. Por isso que Adorno poderá concordar com Westphal quando este define a música do compositor como “harmonia privada de funções” (idem). O contraponto, como já insistimos mais de uma vez, define justamente a possibilidade de se estabelecer no interior da música tensões e resoluções de tensões, a partir de relações formais estabelecidas entre acordes consonantes e dissonantes, que dão propriamente o desenvolvimento do material musical. Remetendo-nos à arte literária talvez se torne mais claro do que se trata aqui: a narrativa clássica só existe a partir de combinações de intrigas, clímax e resoluções, que dão o desenvolvimento próprio da história, seu enredo. A música de Debussy, por sua vez, seria ausência de desenvolvimento. Há algo que esperamos, por hábito de esperar que algo como um “acontecimento” ocorra em música, mas esse algo nunca chega. Essa é a sensação ao se ouvir peças como Prelúdio à tarde de um fauno. Não há telos, “não há um “final”; a obra termina como o quadro de que afastamos o olhar” (ibid., p. 145). E as acusações da crítica da época ao compositor se dirigiam precisamente a esse aspecto de sua música – “ela não vai para lugar nenhum”. Todavia, enquanto em Debussy ainda restaria a possibilidade de uma percepção orgânica do tempo musical, em Stravinsky esta seria destruída mediante o procedimento dos shocks, isto é, mediante a dissolução métrica do tempo musical (Socha, 2010). O projeto de Stravinsky se mostra aqui em sua configuração precisa – seu truque formal, que prevaleceria em suas composições, é a suspensão do tempo como numa cena

de circo – no picadeiro, enquanto o acrobata está no ar, é como se o tempo parasse. Empreende-se, nesse sentido, uma “pseudomorfose do tempo musical com o espaço, isto é, sua detenção mediante shocks, mediante sacudidelas elétricas, que dispersam a continuidade” (Adorno, FNM, p. 149). Quando isso ocorre, a música perde o caráter de arte temporal que lhe é característico – da passagem do tempo-duração de Debussy para o tempo-espaço de Stravinsky, conta-se a história da petrificação da música em quadro estático. Mimetizando as artes do espaço, a música perde sua autonomia e sua essência. Em seu impulso hebefrênico, perde seu caráter humano.

Esperança Cumpre agora sistematizar os elementos extraídos da contraposição entre estes dois estetas rivais. Poderíamos levantar várias tópicas comuns aos dois textos: a crítica paradigmática à indiferença e neutralidade do narrador (e, talvez, do artista mesmo), por exemplo, em um livro central do realismo como Madame Bovary, a discussão acerca dos perigos que a arte corre quando se aproxima de tendências científicas positivistas ou póspositivistas, a crítica da espacialização do tempo narrativo ou musical usando como contraponto central uma noção paradigmática (justa ou não...) de pintura. Todavia, esse último ponto, especialmente, cumpriria, um papel central no argumento de Lukács e Adorno, parecendo mesmo oferecer o norte da economia dos textos aqui analisados: espacializar o que é de natureza essencialmente temporal é uma escolha estética que pode acarretar consequências políticas perigosas; o próprio advento dos elementos estéticos que levam ao estático mostram, de alguma forma, o quão petrificado já é concebido e vivido o devir histórico. Para além das conhecidas relações entre imagem e reificação no interior da tradição marxista, tal distinção entre “artes do tempo” e “artes do espaço” é proveniente de Lessing, e, tanto Lukács, quanto Adorno, recorrem a ela. Trata-se, no interior da discussão do Laooconte, de se perguntar por que a transferência de temas entre as artes é tão complicada. Conhecemos a reposta de Lessing: cada arte possui seu meio e seu objeto; a poesia trabalha com a sucessão no tempo, e, a pintura, por sua vez, com a sucessão no espaço. Enquanto a pintura, por um lado, é inerte e espacial (pois seu meio são cores arranjadas no espaço), a poesia, por outro, é temporalidade e movimento (já que trabalha com sons articulados no tempo). Enquanto o pintor tem que ver as cenas e escolher o cume da ação para dele

esboçar um retrato, no poeta vemos o nascimento das coisas (Lessing, 1998, p. 194-5). Para esclarecer a diferença entre poesia e pintura, Lessing recorre ao texto da Odisseia. Em vez de pintar os objetos descrevendo exaustivamente suas características físicas, Homero esforça-se por apresentar suas características essenciais: “para uma coisa, eu dizia, Homero possui de ordinário apenas um traço. Para ele a embarcação é ora a embarcação negra, ora a embarcação côncava, ora a embarcação veloz, no máximo a embarcação negra com bons remos” (ibid., p. 194). No mesmo movimento em que não recorre a uma descrição exaustiva, o poeta apresenta – e isso é o fundamental – o devir das coisas; ao invés de pintar um quadro do cetro divino, ao invés de oferecer dele uma “cópia”, Homero oferece-nos a história do cetro: “primeiro ele é trabalhado por Vulcano; depois ele brilha nas mãos de Júpiter; depois ele realça a dignidade de Mercúrio; depois ele é bastão de comando do guerreiro Pélops; depois a vara de pastorear do pacífico Atreu, etc.” (ibid., p. 196). Dessa distinção clássica entre “artes do espaço” e “artes do tempo”, diferentemente de Lessing, Adorno e Lukács extraem consequências políticas precisas. A história do cetro, relembrada por Lukács em seu Narrador e Descrever, oferece-se como paradigma para a possibilidade estético-política de um desvelamento do processo de produção de coisas e fatos. Desvelamento que possibilitaria ao receptor da obra superar sua mera posição enquanto “espectador” da história, compreendendo como as coisas no interior da sociedade vêm-a-ser e como se pode interferir nesse devir com o objetivo de mudar o curso da história. Lukács (2002, p. 131, apud Safatle, 2007, p. 384), em seu História e consciência de classe, já parece ser orientado por reflexões dessa natureza quando afirma que a racionalidade própria ao capitalismo “reduz tempo e espaço a um denominador comum, nivelando o tempo segundo o plano do espaço”, de forma que “o tempo perde seu caráter qualitativo, mutável, fluido, cristalizando-se em um contínuo cheio de ‘coisas’ delimitadas de maneira estática, quantitativamente mensuráveis”. No interior da filosofia da música adorniana, como acreditamos, tal reflexão retornaria com força, sobretudo, nas décadas de 1950 e 19602. No ensaio Stravinsky: uma imagem dialética, o filósofo utilizará uma expressão que surgirá mais de uma vez, em outros ensaios produzidos nessa época, para caracterizar o 2

Em “Sobre a relação entre pintura e música hoje em dia” (1953) e em “Sobre algumas relações entre pintura e música” (1965), o filósofo vai se concentrar novamente essa reflexão acerca da mimetização entre as artes. O tema da “pseudomorfose” em Adorno, entretanto, não se limita ao campo artístico, estando presente também na reflexão acerca de outras esferas da sociedade: para uma constelação exaustiva do conceito, cf. Duarte, Rodrigo. “Sobre o conceito de ‘pseudomorfose’ em Theodor Adorno”. Artefilosofia, Ouro Preto, n.7, p. 31-40, out. 2009.

trabalho dos artistas: Adorno dirá logo de início que a obra de Stravinsky tem consequências precisas para a “filosofia da história”. E será nessa chave que o filósofo compreenderá nesse texto o problema da espacialização do tempo na música do compositor russo: a composição prefiguraria uma temporalidade que anuncia que não há mais nada a se fazer. Ao tomar essa escolha, o músico opõe-se à essência ética da música. Desde que existe, a música foi protesto, por mais impotente, contra o mito e o perene destino, contra a morte mesma. Não se desprende de sua essência antimitológica ainda quando o estado de desespero objetivo faz desta seu próprio assunto. (...) A liberdade mesma lhe é imanente e necessária. Essa é sua essência dialética. Stravinsky negou o dever musical da liberdade talvez sob a pressão do desespero objetivo, pelo motivo maior, quer dizer, um que forçaria a música emudecer. (Adorno, SID, p. 396).

Stravinsky renunciaria à resistência e ao protesto, ao dever de constituir a própria música como luta pela liberdade. Esse é o problema central do projeto compositivo stravinskiano: a música, tal como ele a concebe, cala-se diante do destino, não se apresenta mais como tentativa de revolta, mesmo que trágica, contra tudo que se manifesta como necessidade impiedosa e dor profunda. A espacialização do tempo só mostra, no interior do material musical, algo que percorre toda a sociedade administrada avançada: a sensação de que não há mais nada a fazer, somente observar e receber os shocks que o novo sistema econômico e social impõe às nossas subjetividades. Sua música, nesse sentido, como Adorno já indicara na Filosofia da Nova Música, é alienada porque “induz o ouvinte a esquecer a dimensão temporal de sua experiência e a abandonar-se, inerme à dimensão espacial. Essa música glorifica como aquisição própria e como objetivação da vida o fato de já não existir vida” (Adorno, FNM, p. 149). Longe de projetar imagens de mundo e formas de sensibilidade no interior dos quais a vida humana ainda é possível, o compositor só se contentaria, de maneira pessimista e perigosamente próxima à instância dominadora, em descrever o mundo reificado. Um dos procedimentos composicionais de Stravinsky, a repetição, característica fundamental da composição para dança, é, para Adorno, no fundo, a marca fundamental de uma filosofia da história com um rosto definidamente trágico. A “repetição compulsiva, iniludível, de uma música cuja estrutura reproduz o desesperantemente circular contexto do destino, o emaranhado mito” (Adorno, SID, p. 395) mostra que o tempo de Stravinsky, no

fundo – e isso talvez não tenha sido alvo de interesse pela tradição de comentadores de Adorno – é mimetização da temporalidade histórica de sua época, de “seu tempo”, da sociedade administrada, do capitalismo avançado. Stravinsky figuraria uma eternidade mal-disfarçada só que sem progresso e sem salvação, sem um Messias que poderia vir salvar-nos, sem um escathon. Poder-se-ia dizer que, ao fazer a relação da música de Stravinsky com uma reflexão sobre o tempo histórico, estaríamos forçando o texto a dizer algo que ele não diz. Mas de fato podemos recuperar momentos fundamentais de ambos os ensaios aqui analisados, nos quais, embora de maneira quase aforismática, reflexões sobre o tempo histórico surgem. É nesse ínterim que podemos citar, a guisa de exemplo, a passagem em que Adorno recupera as reflexões de Bloch sobre a escatologia para criticar a noção de tempo composicional stravinskyana: “o dito por Ernst Bloch contra Nietzsche, que o eterno retorno era uma eternidade mal imitada a partir de repetições infinitas, vale literalmente para a fibra musical de Stravinsky” (ibid., p. 397). No fundo, o tempo de obras como a Sagração é a figuração clara do eterno retorno do mesmo, mas de um mesmo sempre cruel e massacrante. A eternidade aqui se manifesta como eternidade da alienação e do sofrimento – tudo parece mudar, mas tudo permanece o mesmo. Essa música “celebra a crueldade contra si e contra toda a esperança”, ela é “monumentum aere perennius” da paralisia histórica (ibid., p. 400). À música de Stravinsky lhe é imanente algo que não marcha: “Il y a quelque chose qui ne va pas”. A música está, enquanto arte temporal, ligada por seu puro meio à forma da sucessão e é, portanto, tão irreversível como o tempo. Enquanto arranca, já se obriga a seguir, a converter-se em algo novo, a desenvolver-se. O que em música pode chamar-se sua transcendência: que em todo instante se converteu e é algo distinto do que é, que aponta mais além de si, não é imperativo metafísico ditado a ela, mas sim reside em sua própria disposição, contra a qual nada pode (ibid., p. 396).

A música, em sua forma mesma, enquanto temporalidade, já se mostra como predisposição para a transformação – o tempo é isso que exige a mudança, que obriga que se passe de uma situação a outra. Há aqui, com certeza, algo fundamental para a tese da autonomia musical – a música, por sua própria constituição, constituição metafísica poderíamos mesmo dizer, mostra-se como meio ideal para a crítica social. O problema estético-político surge quando ela mimetiza procedimentos de outras artes, colocando o desenrolar imanentemente crítico do tempo em jogo. Ao se tentar pintar quadros em música ao invés de compor obras temporais, ao transformar a música em uma parasita da

pintura (Adorno, FNM, p. 150), perde-se tal potencial crítico do tempo musical. Ao fazer “música sem devir” (ibid., p. 412), ao compor “corpos musicais” ao invés de obras temporais (ibid., p. 402), o músico russo abre mão de sua responsabilidade como artista, abandonando a promessa de esperança à “opressão proto-histórica enquanto intemporal” (ibid., p. 412), ao retorno à “grosseria física” (idem). “Eternidade negativa”, não “espelhar de uma perenidade”, a noção de tempo em Stravinsky seria aquela dos sujeitos que sabem que seus tormentos não terão nunca mais fim (ibid., p. 416). Tal rigidez da obra stravinskiana levará Adorno a dizer que os temas de seus balés e óperas “poderiam ter procedido de Marquês de Sade, cujas orgias organizavam-se como ballets mecânicos” (idem). Seria interessante notar que a distinção que serve de pano de fundo para Adorno entre tempo mítico, caracterizado pela circularidade e repetição, e tempo histórico, marcado, sobretudo, pela possibilidade de irrupção de um acontecimento que altere o próprio curso temporal, é uma tópica recorrente na tradição da escatologia marxista. Como Löwith (2002) indica em seu História e Salvação, as possibilidades de se pensar a temporalidade se esgotam em dois grandes modelos oferecidos pelas duas grandes tradições que teriam formado o Ocidente: a. por um lado, o modelo grego, de acordo com o qual o tempo seria circular, eterna repetição do mesmo; a doutrina de Políbio acerca da decadência dos regimes políticos, nesse ínterim, oferecer-se-ia como formulação bem acabada da maneira a partir da qual os gregos pensavam o tempo; b. o modelo judaicocristão, que concebe a história como movimento rumo a um fato que levará à salvação – a vinda do Messias, o escathon; modelo que seria o pano de fundo de teorias tão distintas como as de Comte, Hegel e Marx. De fato, parece mesmo que é a essa segunda tradição que Adorno irá recorrer, como o uso de conceitos tais como “filosofia da história”, “comunidade por vir”3 e a

3

Já em “Anton von Webern” (1932), por exemplo, Adorno dirá: “Se, por outro lado, a música contém em si o vestígio de uma comunidade futura, cujas leis aparecem antecipadamente em suas próprias, então a comunidade, tal qual é hoje, não é a instância adequada para decidir sobre ela. Mas o artista serve à comunidade por vir na medida em que traça, em conformidade com as exigências de seu objeto, o projeto do futuro, contido nas exigências do próprio objeto” (GS 17, p. 223). Dos comentadores de Adorno, aquele que insistirá nessa categoria será justamente Vladimir Safatle, muito embora a busque em outro lugar – em Rancière: “O ‘formalismo’ nunca foi alguma forma de pregação autista da autonomia da obra de arte. Jacques Rancière compreendeu isso muito bem quando lembrou que, em toda discussão sobre a autonomia da obra de arte, sempre ressoou a crença em uma comunidade por vir. Crença de que a arte, quando fala de si mesma, pode fornecer os delineamentos de um vínculo social renovado”. (Formalismo. [Por ocasião da morte de Décio Pignatari] Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/vladimirsafatle/1195341-formalismo.shtml. Acessado em: 4.12.2012). Mas disso, como diria Paulo Arantes, só mandamos notícia.

referência aos trabalhos de Bloch parecem indicar4. É nesse sentido que talvez possamos reinscrever a reflexão de nosso filósofo, para o arrepio da tradição que insiste no pessimismo adorniano, no interior de uma escatologia marxista, inserindo-o num campo em que somente Benjamin e Bloch, daqueles ligados ao círculo de Frankfurt, pareceriam encontrar lugar. Decerto Adorno, em suas críticas a Bloch, recusa a esperança considerada como princípio. Mas isso não significa que a ignore – e é porque Stravinsky a deixa de ter como horizonte que nosso filósofo dirige contra ele suas críticas. É na luta por um tempo que seja ainda desenvolvimento, tensão e resolução – por que não dizer, aberto a possibilidade mesma da história? – que pensadores com teorias estéticas tão distintas parecem encontrar-se num campo comum.

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Mereceria nossa atenção também uma comparação entre a filosofia adorniana da música e a reflexão escatológica de Bloch, que concebem diagnósticos muito semelhantes, como a apologia do atonalismo livre e do dodecafonismo e o ataque aos procedimentos composicionais de Stravinsky: “Também ela [Erwartung, de Schoenberg] é 'música de clima', não ' música de máquina', como a intencionada por Stravinsky ao lado do neoclassicismo enrijecido” (Bloch, 2006, p. 176). O esforço de Bloch, durante os três tomos d'O princípio esperança, todavia, é preciso, diferenciando-se claramente do de Adorno: elencar as diversas figuras da esperança na tradição ocidental, como forma de recuperar para a ação política seu verdadeiro objetivo: a vida melhor que percorre o sonho de todos os seres humanos.

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