Contra-hegemonia e comunicação: Usos e apropriações da comunicação no fortalecimento da luta pela terra

June 20, 2017 | Autor: Bárbara Duarte | Categoria: Cinema, Contra-hegemonia, Cinema Paraibano
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Contra-hegemonia e comunicação: Usos e apropriações da comunicação no fortalecimento da luta pela terra Bárbara Duarte da Silva1 1. Introdução:

A Comunicação sempre teve um papel fundamental no desenvolvimento das sociedades. No entanto, percebemos que na era atual ela assume uma importância mais do que significativa. Isso se dá, em razão do desenvolvimento e avanço das tecnologias de informação e comunicação. Sendo assim, é praticamente impossível pensarmos a sociedade contemporânea no século XXI e o cotidiano individual dos sujeitos, sem perceber as relações mediadas por um ambiente de tecnologia da comunicação. Alguns autores até arriscam dizer que vivemos a era da “sociedade da comunicação”. Dessa maneira, é possível perceber também que o impacto da comunicação como instrumento de resistência cultural se dá até nos contextos mais recônditos. O documentário que vamos analisar trata da luta pela terra da comunidade Baixio do Riachão, no interior da Paraíba e da utilização de um instrumento de comunicação como baluarte dessa resistência, o búzio. A comunidade do Baixio do Riachão ou Baixio, como é popularmente chamada, teve parte da sua história relatada pela primeira vez por Silvio Dá Rin no documentário “A Igreja da Libertação” de 1985. Esse documentário mostrou a influência da Igreja Católica na organização do movimento do campo no estado. Entretanto, o foco principal não foi a comunidade em si, mas a luta pela terra que se iniciava em vários distritos do estado. O documentário de Cecília Bandeira, Abuzú: Ecos da Luta no Baixio (2013) foi a primeira obra que relatou a história da comunidade, suas lutas e disputas de uma maneira mais profunda. Seu objetivo foi realizar um processo de rememoração da luta pela terra, com a participação dos posseiros e moradores mais antigos, com intenção de repassar os acontecimentos daquela época para as crianças e jovens do tempo atual. Foi destacada a importância da apropriação da Comunicação como instrumento de luta e resistência. Podemos dizer que há muito tempo a Comunicação vem funcionando como uma ferramenta importante para a informação e o fortalecimento das relações entre os grupos na sociedade. No entanto, com o desenvolvimento do modo de produção capitalista, mais 1

Doutoranda em Sociologia pelo Programa de Pós-graduação em Sociologia da UFPB, Bolsista CAPES.

do que informação, a Comunicação foi se transformando em poder. Na sociedade em que vivemos, existe uma interdependência entre o econômico, o político e o cultural, ocorrendo uma dominação ideológica através dos “aparelhos privados de hegemonia”2, como nos ensina Antônio Gramsci. Esse processo de dominação é responsável pela manutenção da hegemonia das classes dominantes. Todavia, como todo processo social, não se dá de forma unilateral, logo, existem disputas entre a classe dominante e a dominada, ocorrendo uma reprodução da luta econômica no campo cultural. Assim, como nos orienta o autor, observamos que as classes e os grupos dominados também são responsáveis por processos de ‘contrahegemonia’, burlas e resistências. Assim, apesar dessa experiência se remeter a um contexto local específico, ao mesmo tempo, ela interfere na maneira de refletirmos sobre a necessidade da apropriação e do controle da comunicação pelos movimentos sociais, como forma de realizar processos de transformação social. No caso específico, a comunicação teve o papel de impulsionar a luta e num segundo momento, a partir desse documentário, existe a oportunidade de contar a história da comunidade e difundir uma visão de mundo não-oficial ou alternativa. Levando em conta esses pressupostos, pretendemos realizar uma análise do documentário Abuzú a partir de aspectos históricos e sociológicos presentes na obra. Sob o ponto de vista histórico, a utilização do cinema como fonte histórica e a utilização da voz dos participantes contando sua própria história, como uma tentativa de “salvar” as experiências coletivas e particulares num projeto que se coaduna com “reescrever a história dos vencidos”, como nos orienta Walter Benjamin. No olhar sociológico, encontramos disputas entre as classes sociais, afirmação da identidade e do território, transmissão do saber e disputas pela terra. A partir da comunicação, analisaremos alguns aspectos fílmicos que contribuíram para a realização dessa obra. Entretanto, antes de entrar propriamente na discussão sobre a obra, acreditamos que é importante destacar a tradição cinematográfica vigorosa do cinema paraibano e a sua repercussão para a historiografia do cinema nacional.

2. Apontamentos sobre a trajetória do cinema paraibano e sua influência sobre Abuzú 2

Sobre os “Aparelhos privados de hegemonia” Gramsci se refere aos partidos políticos, Sindicatos, Igrejas, Escolas, Meios de comunicação, entre outros difusores da hegemonia.

De acordo com teóricos e historiadores do cinema, as produções do Cinema paraibano foram concebidas em três grandes ciclos ou gerações, que foram marcadas por períodos de crescentes produções e também por períodos de recessão. Como nos orienta Silva (2010), o primeiro ciclo foi conhecido como o “pioneirismo” de Walfredo Rodrigues na década de 20, o segundo e provavelmente o mais conhecido foi o “ciclo do cinema documentário”, com forte produção na década de 60 e 70, com destaque para o documentário Aruanda (1960) de Linduarte Noronha. O terceiro ciclo se afirmou diante de uma intensa crise econômica, com produções em pequenas equipes e um movimento alternativo em torno das realizações em bitola Super 8 na década de 80 e 90. (Silva, 2010; (Nunes, 2013). Elegemos o segundo ciclo como o mais representativo do cinema paraibano, trazendo à baila o destaque especial para o campo cinematográfico brasileiro, que teve a produção do documentário Aruanda. Foi uma obra reverenciada por muitos cineastas e críticos, em função da inovação estética apresentada e dos poucos recursos para sua execução, sendo considerada para muitos cineastas, entre eles Glauber Rocha, a obra precursora do Cinema Novo. Glauber foi um cineasta sensível as questões do povo e preocupado com a defesa de um cinema nacional que expressasse a cultura brasileira. Influenciado pela linguagem de Aruanda, e atento ao movimento das Ligas Camponesas que se desenvolvia no Nordeste, com destaque para Pernambuco e Paraíba, iniciou as gravações do filme “Cabra marcado para morrer”. O documentário pretendia relatar a prematura morte do líder da Liga de Sapé na Paraíba, João Pedro Teixeira, que foi assassinado a mando dos proprietários de terra. As gravações se iniciaram em 1964, mas foram interrompidas pelas forças políticas que defendiam o Regime militar, só sendo retomadas em 1984, com o processo de abertura democrática do país (Nunes, 2013). Apesar de não ser uma obra do cinema paraibano, o filme de Glauber relatou a realidade de disputa política na zona rural paraibana tendo forte repercussão para o cinema em todo o Brasil. Importante destacar que duas tônicas se fizeram presentes na trajetória das obras do cinema paraibano no século XX. Uma delas foi a temática do campo e os conflitos que envolviam a disputa pela terra durante os anos sessenta, repercutindo até os anos oitenta. Isso em virtude do destaque das Ligas Camponesas na Paraíba, por um lado, e do outro, pela crise política e social que o Brasil viveu no fim dos anos oitenta, o que acentuou o debate político sobre a necessidade de uma Reforma Agrária, que infelizmente continuou

sendo um projeto inalcançado até os dias de hoje. A segunda tônica presente nas produções paraibanas foi a temática social. Desde a época de Aruanda, foi possível perceber retratado no cinema produzido na Paraíba, o impacto do subdesenvolvimento econômico do estado para as populações mais pobres em inúmeros títulos da cinematografia. Nessa linha, muitas produções abordaram comunidades de pescadores, representantes

de

expressões

da

cultura

popular

e

grupos

marginalizados

economicamente na sociedade. Numa cinematografia mais contemporânea do século XXI, nos deparamos com um contexto econômico e político em ascensão e com a democratização do fazer cinematográfico a partir da expansão dos bens de consumo. Uma nova safra de diretores premiados nacionalmente, um grande número de festivais e exibições por todo o estado, e um cenário de produção audiovisual pulsante sobre inúmeros e diversificados temas, com muitos filmes e diretores premiados nacional e internacionalmente. Considerando ser uma tarefa por demais abrangente, uma classificação das áreas de atuação do cinema paraibano contemporâneo, nos deteremos a analisar a forma que Abuzú se propõe a representar a tradição da trajetória do cinema paraibano, reinterpretando a temática da luta no campo e da questão social, e ao mesmo tempo, introduz a importância do controle da comunicação como manutenção da hegemonia e da organização da comunidade. 3. A “história oral” e a memória como ferramenta metodológica do fazer cinematográfico

Na maioria das vezes, a utilização de uma metodologia que privilegia o aspecto oral está relacionada com uma tentativa de valorização dos grupos marginalizados e das trajetórias pessoais de sujeitos anônimos que representam narrativas desprezadas pela história “oficial”. Assim, seja na pesquisa científica ou no fazer cinematográfico, esse tipo de metodologia significa um tipo de postura política que colabora para o fortalecimento dos grupos excluídos, num movimento de “escovar a história a contrapelo”, como nos ensina Walter Benjamin. Nesse sentido, a partir de uma nova mentalidade que trata o cinema como fonte de conhecimento válida para história e para as inúmeras disciplinas científicas, surge a abordagem chamada de “cinema-história” fundada por Marc Ferro, que defende o cinema como um importante registro histórico e agente transformador da história.

Marc Ferro nos seus trabalhos sobre o tema afirma que o filme não é apenas um produto, mas um agente da história, que pode ser usado como uma fonte reveladora dos costumes, crenças e imaginário do homem. O autor explica que todo filme carrega por trás uma ideologia da sociedade, mas o mais importante é o seu papel de revelar uma “contra-história”, o que torna possível uma “contra-análise” da sociedade. Seguindo essa perspectiva de utilização do cinema como agente transformador da sociedade, a partir de um olhar diferenciado sobre a realidade social, foi concebida a idéia do documentário Abuzú de Cecília Bandeira. Numa proposta de dar voz aos fazedores de história, procurando valorizar os seus testemunhos sobre a trajetória política e de vida, numa relação de construção da linguagem cinematográfica a partir do saber compartilhado. Foi escolhido retratar a história da luta pela terra de uma comunidade pobre do interior da Paraíba, se caracterizando como um contraponto ao continumm histórico que valoriza a história a partir da óptica dos vencedores, como bem caracteriza Benjamin. Na análise da obra, percebemos uma empatia com a visão Benjaminiana de apresentar a história dos “vencidos” ou mesmo como nos orienta o historiador inglês E.P. Thompson, a história dos “de baixo”. Desde o início do documentário quando é estabelecido uma aproximação com Dona Lia e Seu Genivaldo como principais interlocutores da narrativa audiovisual, percebemos uma intenção da diretora em construir um roteiro de forma coletiva, a partir da ótica dos próprios participantes. Sendo assim, o “testemunho” da experiência vivida pelos indivíduos passa a adquirir valor de verdade, e interfere diretamente na construção do roteiro. É uma intenção conjunta, da diretora e da própria comunidade, a construção de uma obra que documente o seu passado de luta e repercuta para as gerações mais novas a importância da participação política e de conhecer o próprio passado. Dessa maneira, a memória funcionou como um elemento significativo para um roteiro que pretendeu ser mais importante do que a técnica, captando a subjetividade e revitalizando as impressões dos personagens, que apesar de serem memórias individuais, aliadas a linguagem cinematográfica, tiveram como função representar uma memória coletiva e um sentimento de pertencimento ao lugar. De acordo com Pollak sobre a memória: “Podemos, portanto dizer que a memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto individual como coletiva, na medida em que ela é também um fator extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerência de uma

pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si”. (POLLAK, 1992, p.6).

Compreendemos assim que a memória faz parte de um processo social em que os indivíduos não estão isolados, mas interligados através de estruturas sociais e de processos interativos do passado no presente. O processo de interação dos sujeitos e de suas memórias ocasiona o surgimento de uma memória coletiva em cada sociedade. Sendo assim, relembrar depois de trinta anos as disputas e dificuldades que ocorreram antes da posse da terra no Baixio, traz à tona inúmeras subjetividades, entre elas, aparece freqüentemente no documentário a utilização do búzio como meio de comunicação que colaborou para a organização da luta pela melhoria da condição de existência e da qualidade de vida da coletividade. Como percebemos, se deu ênfase num processo de construção coletiva, existindo a preocupação em privilegiar a participação ativa dos personagens e representantes da comunidade, num procedimento pautado na valorização do saber do outro e na sua memória coletiva.

4. Análise fílmica e sociológica de Abuzú

De início, observamos que esta obra cinematográfica teve uma relação muito estreita com as teorias e as obras de Eduardo Coutinho, principalmente, com “Cabra marcado para morrer”, já que são dois filmes que tratam da mesma temática, guardada a particularidade de Abuzú avançar na discussão sobre a função da comunicação no processo de luta pela terra. É possível perceber inúmeras semelhanças com a obra de Coutinho pela temática, por escolher tratar de um tema específico como a luta no campo depois de um processo já consolidado há décadas, pela exibição de filmes durante a produção da própria obra como um processo de devolução de algo para a comunidade, e fundamentalmente, por uma perspectiva de construir um documentário a partir do processo de dar voz ao outro de uma maneira muito peculiar. Sendo intencional ou não, a determinação inicial seguiu as mesmas orientações propostas por Eduardo Coutinho (1997) numa proposta de iniciar o documentário com algumas perguntas e tentar encontrar as respostas durante o processo de gravação. Na parte estética, um dos elementos importantes utilizados intencionalmente foi a câmera, na maioria das vezes na mão, para captar a forma de organização do coletivo, demonstrando uma construção dialógica do processo.

A proposta da diretora levou em consideração um plano de filmagem baseado no que defendia Vertov, a realização cinematográfica sem um roteiro pré-definido (Vertov, 1929). Sendo assim, foi planejada uma série de encontros com a comunidade, num modelo dialógico de colaboração e conversas de onde sairiam os encaminhamentos para a elaboração da gravação das sequências das cenas. A partir das rodas de conversas com os posseiros, foram organizados os próximos encontros e foram definidas as seguintes cenas: a Ida ao Barreiro, o cinema na rua, a gincana das crianças e a cerca das mulheres, como explica a própria diretora. Mesmo com a proposta de um roteiro aberto, percebemos que o documentário esteve orientado para trabalhar com a memória dos moradores e militantes mais antigos, como fio condutor da restauração dos acontecimentos do passado, para as gerações mais novas. Foi dada uma ênfase especial a voz de Dona Lia, personagem que teve destaque central na condução do enredo e narração dos acontecimentos. Houve uma intencionalidade do roteiro em destacar a sua expressividade, em função do seu papel de articulação política na comunidade, respeito e consideração pela sua trajetória política. Antes mesmo, no filme de Sílvio Dá Rin, A Igreja da Libertação, no trecho em que é exibida a comunidade do Baixio, Dona Lia nos anos de sua juventude já expressava sua postura política de liderança como dirigente da Igreja Católica e do movimento do campo. A valorização das vozes e dos sons ultrapassam os aspectos físicos e humanos necessários para estar presente no plano do simbólico, sempre em conexão com os relatos e transmissões da memória dos atores-personagens. Como elo dessa relação entre passado e futuro a intenção foi dar um destaque especial para o papel do Búzio como meio de comunicação que auxiliou o processo de resistência dos posseiros na consolidação do seu território. De acordo com a autora sobre a intencionalidade da obra: “O documentário é como o búzio, quer fazer eco, quer que a história de resistência do Baixio seja ouvida, ultrapassando suas serras”. O Búzio foi um tipo de instrumento sonoro, semelhante a uma concha, que foi utilizado como um apito, primeiramente pelos patrões para chamar os trabalhadores. Em seguida, seu uso foi apropriado pelos posseiros organizados para se proteger dos patrões e da polícia e para organização das suas reuniões. Durante os diversos conflitos ocorridos para a conquista da terra pela comunidade, o búzio se transformou num elemento simbólico importante que demonstrou a força da luta dos mais velhos. O documentário

teve como objetivo reativar a memória das crianças, numa função pedagógica de rememoração do passado como tentativa de experenciar a potência da luta. Vários recursos no filme representam essa idéia de transmissão do saber geracional aos mais novos que não viveram a luta de perto. A utilização do Búzio em forma de brincadeira, a criação de situações como, por exemplo, a cena da gincana das crianças, representa uma tentativa de contar a história de uma maneira lúdica e participativa, que adentre o imaginário infantil, despertando lembranças de um passado que não viveram, mas que de alguma forma representa o seu grupo. Nesse sentido, observamos como a obra cinematográfica se torna um suporte essencial que pretende passar uma mensagem, transmitindo idéias, valores, sentimentos e significados aos espectadores. De acordo com Bill Nichols é importante que o documentário expresse uma concepção de voz que esteja intimamente relacionada com a forma como o cineasta pretende expressar sua visão de mundo sobre determinados problemas. A voz, a que Nichols se refere, é algo mais específico que estilo, estaria ligado à maneira como o material é organizado para falar ao espectador. Sílvio Dá Rin no seu livro o Espelho partido, trabalha em larga medida com a proposta de Bill Nichols de que o documentário deve se portar diante da sociedade não apenas como representação dela, mas de modo interativo e reflexivo, demonstrando ao longo da obra que a trajetória do documentário é uma crescente metamorfose dialética de ideais tradicionais e modernos. No filme, é possível encontrar elementos recorrentes na tradição do cinema paraibano, como já citamos mais a cima, a ênfase na escolha de uma comunidade rural que passou por processos de luta pela hegemonia em busca do seu território. Ao mesmo tempo, presenciamos uma proposta atual e diferenciada de encarar as disputas políticas para além do plano econômico, inserindo o debate sobre a importância da apropriação e controle da comunicação para a organização das classes subalternas.

4.1 Contra-hegemonia e apropriação da comunicação

Um autor que nos ajuda a compreender esse processo de como a luta de classes pode ocorrer também na cultura é Antônio Gramsci. Ele foi responsável por influenciar boa parte da literatura marxista brasileira da década de sessenta em diante, em função da semelhanças do Brasil dividido entre industrial e agrário com a sociedade italiana da sua

época3. A sua contribuição ao marxismo cultural com o conceito de hegemonia4, entendido para além da estrutura econômica e política, ligando-a a um plano éticocultural. Assim, hegemonia passou a ser compreendida como a disputa entre classes ou grupos para afirmação do consenso. Numa tentativa de Sintetizar as teorias gramscianas, o que o autor procurou explicar foi que a dominação entre as classes sociais ocorria num aspecto mais profundo a partir do que ele chamou de “aparelhos privados de hegemonia”, que eram difusores de concepções particulares de mundo como universais, com o intuito de incorporar todas as classes e frações de classes dominadas. Na disputa por hegemonia, as classes subalternas e frações dissidentes da burguesia, assim como representantes da Igreja, decidem enfrentar as classes dominantes e dirigentes através de ações contra-hegemônicas, com o propósito de sair de uma condição de exclusão e de criar uma nova forma de organização “ético-política” (Gramsci, . Assim, é através da luta real, denominada práxis, que as classes subalternas têm a condição de expressar suas aspirações particulares como representantes da coletividade e de um projeto universal de sociedade. Desse modo, a partir da compreensão das dificuldades históricas para a realização de um projeto de esquerda revolucionário e universal, pretendemos nos apegar aos pontos de resistência à hegemonia das classes dominantes, que se afirmaram através da ação contra-hegemônica realizada pelos militantes da comunidade do Baixio. O Baixio do Riachão se tornou um território livre do jugo dos proprietários de terra e da ação da polícia, em função da escolha dos seus representantes em encampar uma luta pela defesa do seu território e contra a opressão realizada pelos seus patrões. Essa comunidade modesta e humilde, em termos diminutos, mas não por isso, menos importante, realizou uma apropriação da comunicação na maneira mais simples que ela pode ser realizada, em prol da luta e da organização popular. É claro que não estamos falando de uma sociedade amplamente desenvolvida, com veículos de comunicação elaborados, mas podemos perceber que seja qual for a forma de comunicação existente em determinado lugar e em determinada sociedade, é possível a partir de um anseio coletivo, reagir e utilizar a comunicação como ferramenta importante contra o predomínio da opressão e exploração. 3

Uma obra que explica o contexto da entrada das idéias marxistas de Antônio Gramsci no Brasil a partir da década de sessenta é a obra de Carlos Nelson Coutinho: Intervenções: o marxismo na batalha das idéias. São Paulo:Cortez, 2006. 4 A fim de aprofundar a discussão sobre hegemonia em Gramsci, uma boa indicação é a obra de O conceito de hegemonia em Gramsci. Rio de Janeiro:Graal, 1978.

O documentário é antes de tudo uma escolha política da diretora e da comunidade em divulgar e encher de esperança a realidade, através de uma história real e vitoriosa de luta e organização de uma comunidade que, orientada pelos representantes da Teologia da Libertação, enfrentou os proprietários de terra, reivindicando o direito a ter um pedaço de terra, produzir e sobreviver. Contar essa história a partir do documentário tem duas funções importantes: A primeira é preencher uma lacuna-histórica de inscrever na “história oficial” o passado que se encontra apenas escrito na memória dos participantes mais velhos, de forma a trazer dignidade e consideração pelas suas escolhas, a si mesmos e ao grupo como um todo; E a segunda, é uma perspectiva Freireana5 baseada na educação popular de reproduzir para as gerações mais novas o ensinamento sobre o seu papel político e social na garantia dos seus direitos e na organização do grupo. A própria visão gramsciana sobre revolução salientou a necessidade de expandir o processo revolucionário para a dimensão cultural da luta de classes. Para ele, uma transformação radical das relações sociais de produção e da consciência dos trabalhadores só seria possível, a partir de ações pedagógicas que denunciassem o processo de dominação capitalista. No entanto, o engajamento maior do filme, esteve reservado a realizar um processo educativo com as crianças, sobre a importância dos esforços das gerações que lhes antecederam, na luta pelo território em que hoje vivem, para que valorizem e não esqueçam. Uma das cenas que mais nos chamou atenção foi quando Seu Genivaldo agora através da Rádio difusora, alerta: “Lembrem-se que antes era o búzio, mas depois da conquista pela terra, tá aqui esse aparelho de comunicação tão importante, que foi adquirido depois da conquista da terra. Olha lá como é bom lutar por bons objetivos, Olha como é bom crianças, aprendam crianças isso, se acharem prejudicados, levantem a cabeça e vão à luta. Levantem a cabeça e vão à luta! (Seu Genivaldo) Nesse momento, duas questões nos vêem a mente. Uma delas se refere a percepção da existências de uma vontade enorme que essa luta seja levada para frente, para a vida futura das crianças. A segunda, diz respeito ao tempo do lugar. Durante todo filme, observamos que passados mais de trinta anos, foram poucos avanços que chegaram aquele lugar. É claro que, uma rádio difusora é um avanço importante para o grupo, mas é 5

Mais informações sobre a metodologia de Paulo Freire pode ser obtida em: Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 43. ed., São Paulo: Paz e Terra, 2011. FREIRE, Paulo.

irônico que passado tanto tempo, a comunidade ainda viva nos dias de hoje sobre tão poucos avanços econômicos, políticos e culturais, necessitando de investimentos em prioridades básicas. No entanto, não sabemos ao certo, se pode ter sido justamente essa lógica do tempo específica que colaborou para que durante todo esse tempo a comunidade resistisse e sobrevivesse, ou se, foi a sociedade como um todo que ao longo do tempo perdeu suas formas de resistência e se adaptou ao desenvolvimento.

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