Contra-visão (Vilém Flusser)

June 28, 2017 | Autor: Rui Matoso | Categoria: Intentionality, Vilem Flusser, Vilém Flusser, Vision
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Vilém Flusser

Contra-visão.1

Um esboço para um ensaio em colaboração com Mueller-Pohle e Fontcuberta. Ver é é ter olhado para. Ter uma visão é assim o resultado de uma intenção. Isto distingue ver de ouvir. Nós podemos ouvir sem intenção. O ouvido está indiscriminadamente aberto aos sons, enquanto que o olho tem de se abrir a si mesmo e olhar para alguma coisa. Sendo que o ouvido é passivo, não pode haver contra-audição. O mundo de sons que nos envolve não pode ser discriminado. A poluição sonora é por isso um problema diferente da poluição visual. Esta é a primeira coisa que devemos ter em mente: a possibilidade da contra-visão está inscrita no carácter intencional da visão. O mundo de imagens que nos banha não nos pressiona apenas. É também o resultado da nossa própria discriminação entre as imagens que de nós se aproximam. Temos apenas de fechar os olhos para apagar as imagens que sentimos como poluentes. Mas tal fechar de olhos, tal pestanejar que permite que algumas imagens sejam vistas e outras não, não é contra-visão. É somente uma critica da visão. Esta é a segunda coisa que devemos ter em mente: que a contra-visão não pode ser uma critica da visão. O carácter intencional da visão não pode ser considerado, se tivermos em conta apenas o olho. Existe uma sincronização entre o olho e a mão, entre “theoria” e “praxis”, e é esta sincronização que está na base da intencionalidade da visão. A mão aproxima-se das coisas para ser vista, e isso coloca-a dentro do campo de visão. Agarra as coisas e roda-as, de modo a que o olho possa vê-las de ângulos diferentes. E o olho dirige a mão no seu movimento e isso controla-a. A mão apreende as coisas para que possam ser imaginadas, e o olho imagina as coisas para que possam ser apreendidas. É claro que existe visão amputada, imaginação impraticável. E há manuseamento sem olhar, cegueira desastrada. Mas a intenção da visão é a coordenação do olho e da mão, apreensão imaginativa. Esta é a terceira coisa que devem ter em mente: que a contra-visão tem a ver com mãos, que é um problema prático, um problema político. A câmara fotográfica é um aparelho feito para fundir o olho e a mão: é tanto um auxiliar de visão como uma ferramenta para manusear. O fotógrafo é alguém que dirige o seu olhar para o mundo através da câmara, e é quem lida com a câmara de forma a que o seu olhar se lance ao 1

Tradução de Rui Matoso (out./2015). O manuscrito original Counter-vision, está disponível em: http://www.flusserstudies.net/sites/www.flusserstudies.net/files/media/attachments/flusser-countervision-best1608.pdf [email protected] | outubro 2015 | http://grupolusofona.academia.edu/ruimatoso

mundo. A câmara fotográfica é o lugar da fusão entre teoria e praxis. A câmara é então o carácter intencional da visão transformado num aparelho. A visão fotográfica é a visão intencional na sua perfeição técnica até agora. Aquele que deseje estudar a intencionalidade da visão necessita apenas de analisar a câmara, para encontrar a sua estrutura. Esta determinação permite-lhe descobrir a possibilidade da contra-visão. A possibilidade de inverter a intenção visual. Nomeadamente a possibilidade de virar a câmara do avesso como se fosse uma luva, e assim revelar o seu interior. E isto mostrar-lhe-à o significado da contra-visão, designadamente, a visão da intenção visual. Esta é a quarta coisa que devem ter em mente: que a contra-visão não é uma visão do mundo, mas uma visão da visão. Mas a câmara é mais do que a fusão do olho e da mão. É também um aparelho de produzir imagens. Isto não significa apenas que ele fixa a visão fugaz numa superfície estável. Também significa que transfere o processamento da visão do cérebro para o interior da sua caixa-preta. Virar a câmara do avesso implica que se revele a simulação do cérebro quanto ao aspecto do processamento da visão. Agora, este processamento da visão serve, em última instância, para fornecer um sentido à visão. A simbolização da visão. Assim, se virarmos a câmara do avesso descobrimos como a visão se torna significativa. Descobrimos que a intenção da visão é precisamente a de dar ao mundo, tal como o vemos e manuseamos, um sentido específico. E consequentemente descobrimos qual é a intenção da contra-visão. Designadamente a de observarmos como a visão providencia o mundo com sentidos específicos. Esta é a quinta, e a mais importante, coisa a reter: que a intenção da contra-visão é descobrir os vários sentidos que a visão fornece ao mundo e, consequentemente, descobrir outros sentidos possíveis de atribuir ao mundo. Agora, claro, se tivermos estas cinco coisas na mente, torna-se óbvio que um ensaio sobre a contra-visão terá de lidar com a intenção invertida. Com uma intenção que já não é mais dirigida às coisas para serem vistas ou manuseadas, mas contra a maneira como as coisas são vistas e manuseadas. Para a contra-visão o centro da atenção não é já ocupado pelas coisas, mas pela nossa relação com as coisas. A contra-visão pretende saber como é que nós nos relacionamos com as coisas, como lhe atribuímos sentido. E, claro, como, tendo atribuído sentidos específicos às coisas, os podemos alterar. Em suma: a intenção da contra-visão é observar o nosso ser-no-mundo, e não o mundo em si mesmo. Sendo assim, a contra-visão é “abstracta”, no sentido em que a sua atenção é abstraída das coisas do mundo. Mas é “concreta”, no sentido em que o foco da sua atenção está dirigido à nossa existência concreta. Acredito que isto seja o tema central de qualquer ensaio cobre contra-visão. Vou resumir o que queria esboçar com estas considerações: (1) que o problema da contravisão é o da intenção. (2) Que isto não é uma crítica da visão, mas da intenção visual. (3) Que isto é [email protected] | outubro 2015 | http://grupolusofona.academia.edu/ruimatoso

uma problema prático e por isso político. (4) Que o seu “objecto” não é o mundo, mas a relação do sujeito com o objecto. E (5) que pretende tornar visível a forma como o sujeito injecta sentidos nos objectos. O ensaio sobre a contra-visão terá de analisar estes cinco pontos, quer sobre uma perspetiva teórica, mas também com base em fotografias que mostrem tal intenção invertida.

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