Contratos de Jogo e Aposta

May 29, 2017 | Autor: Yuri Fisberg | Categoria: Direito, Direito Civil, Contratos, Contratos Civiles, Obrigações
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CONTRATOS DE JOGO E APOSTA Autor: YURI FISBERG1 SUMÁRIO 1. Introdução; 2. Premissas; 3. Natureza Jurídica; 4. Validade e eficácia; 5. Contratos diferenciais; 6. Legislação Estrangeira; 7. Polêmica da legalização; 8. Jogo e aposta nos Tribunais; 9. Conclusão; 10. Bibliografia. RESUMO O presente ensaio tem por escopo a análise, não exaustiva, dos negócios jurídicos de jogo e aposta. Tratados como espécie de contrato típico (artigos 814 a 817, do Código Civil), discutindo, para tanto, a origem histórica, a distinção terminológica e as espécies de jogo e aposta. Aborda a questão da natureza jurídica dos institutos, para qualificá-los nos planos da validade e eficácia – devotando-se, também, à legislação estrangeira como hipótese de aprimoramento da interpretação do texto vigente no Brasil, especialmente no tocante às restrições impostas. Palavras-chave: Obrigações. Contratos. Jogo. Aposta. Obrigação Natural.

1. INTRODUÇÃO Reconhecidos como obrigações naturais, o jogo e a aposta foram previstos de forma sucinta e conjunta no Capítulo XVII, do Título VI (Das várias espécies de contratos), entretanto, a repetição quase integral do texto do Código Civil de 1916 não significa higidez interpretativa do regramento civil atinente. Aliás, a previsão na Codificação de 1916 contraria a própria vontade do projeto de CLÓVIS BEVILAQUA2, ainda não superada a controvérsia que motivava a não inclusão naquele texto. Os contratos de jogo e aposta encontram precedentes no Direito Romano3 e as remotas influências extrínsecas ao direito dos contratos – como a moral e a religião – hoje, somam-se com reflexos da saúde, tecnologia. Além das questões sociais e fáticas, há influxos intrínsecos, ou seja, de outros ramos do direito – direito tributário, administrativo, do consumidor – além da própria controvérsia do âmbito do direito dos contratos. O singelo tratamento jurídico no Código Civil de 2002, praticamente repetindo o teor do Código Bevilaqua cunhado há mais de dois séculos, solucionou parte da controvérsia (excluindo os contratos derivativos), não elidiu questionamentos remotos, como a natureza jurídica, tampouco foi capaz de prever as complexidades hodiernas. Deste modo, o tratamento lacônico do Código e, por vezes, dos manuais doutrinários, permite a reflexão vasta sobre tais contratos. Antes, porém, do debate acerca destes influxos (intrínsecos e extrínsecos), faz-se necessária análise introdutória dos institutos – origem, natureza e semelhanças e distinções -, premissas que servirão para a conclusão deste ensaio.

Mestrando em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FD-USP), Especialista em Direito Civil – Escola Paulista da Magistratura (EPM-TJSP), Bacharel em Direito – Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FD-USP). Assistente Jurídico – Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. 2 Cf. Projeto do Código Civil de 1916, Trabalhos da Câmara, v. VI, p. 167, apud. RODRIGUES, Silvio. Direito Civil: dos contratos e das declarações unilaterais de vontade, v. 3, 30a ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 351. 3 BONILHA, Marcio Martins. “Contratos de Jogo e de Aposta”. In. CAHALI, Yussef Said. Contratos nominados : doutrina e jurisprudência. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 315. 1

2. PREMISSAS 2.1. ANTECEDENTES HISTÓRICOS Admitidos como “fenômenos sociais” 4 , o jogo e a aposta antecedem ao direito e acompanham a natureza humana5. Basta rememorar que a disputa é ínsita ao humano coletivo e, outrora, o jogo e a aposta serviram até mesmo na solução de conflitos, função atualmente relegada à jurisdição. Na sociedade Maia (América Central), o “jogo de bola mesoamericano” constituía uma disputa ‘esportiva’, pela qual se decidia quem seriam os indivíduos sacrificados conforme o ritual religioso 6 . Na Europa Continental, elementos semelhantes ao jogo e a aposta também serviam como “sucedâneos da prova faltante”7; ou seja, pelas ordálias, duelos ou apostas decidia-se quem seria merecedor da tutela jurisdicional8. Paralelamente, o jogo e aposta sempre estiveram presentes como fenômenos de distração e entretenimento. A política do “pão e circo” nos rememora que, desde os povos antigos, as sociedades précapitalistas apresentavam um contingente ocioso, em que o embate de gladiadores ou a corrida de cavalos no Coliseu Romano serviam como instrumento social ou político9. HUIZINGA define que os jogos eram os meios pelos quais a sociedade estreitava laços e se sentia unida10. Com efeito, os antecedentes remotos do jogo e da aposta denotam a primeira objeção aos institutos. O processo evolutivo do conceito da “pessoa humana”, narrado por FÁBIO KONDER COMPARATO 11, e a “afirmação histórica dos Direitos Humanos” (título da obra) evidenciam o progresso antropológico, social e jurídico em que religião e filosofia alteraram sucessivamente a sociedade humana. E, nesta evolução, tanto os jogos-entretenimento quanto os jogos meios para a solução de conflitos sofreram verdadeira repulsa. Os jogos, tal qual as ordálias, têm como figura ínsita a “aleatoriedade”, não condizente com o processo evolutivo da sociedade. No âmbito processual, o Estado concentrou para si um poder-dever, substituindo as partes na solução dos conflitos (jurisdição)12. Outrossim, no tocante à diversão, os efeitos dos jogos lhes tornaram repulsivos. Ainda recentemente, MARCIO MARTINS BONILHA definia o jogo como um “fato universal” que remonta aos primórdios da humanidade, merecendo repulsa (...) por ser um dos males sociais que mais avilta a comunhão humana”13. Por isso, a origem do jogo e da aposta deve ser estudada por seus regramentos proibitivos. Excetuados os jogos desportivos (in quibus ars dominatur ac de virtute certamen est) valorizados porque úteis ao desenvolvimento corporal e, consequentemente, à guerra14; os jogos de azar (in quibus sors praedominatur) eram vedados pelo direito romano, como leciona VALDIR SZNICK. Em Roma, admitia-se, ainda, ação de repetição àquele que pagou débito contraído em jogo ou aposta, por suas “consequências funestas”15.

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Idem, p. 310. VENOSA, Silvio Salvo. Direito Civil : Contratos em Espécie, v. 3, 12a Ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 407. WHITTINGTON, E. Michael. The Sport of Life and Death : The Mesoamerican Ballgame. New York: Thames & Hudson, 2001, p. 20–31. 7 BARBOSA MOREIRA, José Carlos. “Julgamento e ônus da prova”. In Temas de Direito Civil (Segunda Série), 2a Ed. São Paulo: Saraiva, 1988, p. 81. 8 FERREIRA, William Santos. “Limites da Inversão do Ônus da Prova e a ‘Reinversão’ nas Ações de Responsabilidade Civil”. In GUERRA, Alexandre; BENACCHIO, Marcelo (coords.). Responsabilidade Civil Bancária. São Paulo: Quartier Latin, 2012, p. 363. 9 Panem et circenses – cf. http://www.the-colosseum.net/ita/games/g1.htm. Acesso: 02 de outubro de 2015. 10 HUIZINGA, Johhan. Homo Ludens. São Paulo Perspectiva, , p. 17. 11 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos Direitos Humanos, 7a ed., rev., atual. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 13-43. 12 FERREIRA. Ob. Cit., p. 363. 13 Ob. Cit., p. 310. 14 MONTEIRO, Washington de Barros; MALUF, Carlos Alberto Dabus; SILVA, Regina Beatriz Tavares da. Curso de Direito Civil : Direito das Obrigações, 2a parte, 41a Ed. São Paulo: Saraiva, 2014. 15 BEVILAQUA, Clóvis. Direito das Obrigações, 8a Ed., rev. e atual. por Achilles Bevilaqua. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1954, p. 319. 5 6

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Tratamento análogo se verifica na Europa Medieval, em que, apesar da predileção dos germanos, a influência religiosa integrou-se com a desaprovação moral primitiva tornando os jogos proscritos 16 . BEVILAQUA cita que a restrição à exigibilidade destas dívidas estava presente na maioria dos códigos oitocentistas: francês, italiano, bávaro, holandês, austríaco, prussiano e espanhol17. No Brasil, o Código Criminal de 1830 já contemplava punição à exploração do jogo18; o que persiste como contravenção penal contrária “à polícia de costumes” (Decreto-Lei n. 3.688, de 1941)19. Não obstante, desde 1784, o Estado se vale das loterias para arrecadar verbas20, sendo que em 27 de abril de 1844, Dom Pedro II regulamentou a loteria, por meio do Decreto n. 357, “a fim de não se desacreditar esse meio de favorecer os estabelecimentos uteis com augmento da Renda Publica”21. Portanto, o percurso histórico do jogo e da aposta antecede ao direito; porém, é exatamente o paradoxo entre a vedação dos jogos de azar e o fomento estatal ou a plena aceitação social (v.g. jogo do bicho), ao longo dos tempos, que torna a questão pródiga em reflexos jurídicos. 2.2. TERMINOLOGIA Deve anteceder à análise dos efeitos jurídicos e da natureza a problemática da terminologia e do conceito. CARVALHO DE MENDONÇA alertava que o tratamento jurídico conjunto e a ausência de critério legal distintivo tornam a distinção entre jogo e aposta de menor interesse prático 22 . A doutrina, no entanto, é pródiga em teorias distintivas; PONTES DE MIRANDA as elenca: teoria da opinião, da atividade, da relevância do resultado, do fim lúdico, da indiferença ao tempo, dos fins e dos motivos. Segundo HENRI DE PAGE, prevalece o critério da participação das partes (atividade) como definidor da distinção23, entendimento coincidente com a lição de ORLANDO GOMES, cuja discriminação depende da (a) participação e do (b) motivo, conforme distinguiam os romanos (alearum lusus – jogo; sponsio – aposta)24. Conforme o critério da participação, no jogo as partes influenciam o resultado; o sucesso ou a perda dependem da participação, “seja por sua inteligência, habilidade, força ou, simplesmente, sorte”. Já a aposta é marcada pela passividade, as partes não intercedem no acontecimento que lhes trará alguma vantagem; trata-se de promessa de prestação em face do prevalecimento de “opiniões diferentes sobre certo acontecimento”25. De forma crítica, ENNECCERUS, KIPP e WOLF, rememoram o exemplo tradicional de THOL, em que dois indivíduos disputam qual de dois caracóis seria mais veloz em cima de uma mesa. Qualificar-se-ia a

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SZNICK, Valdir. Contravenções Penais, 2a ed. São Paulo: Editora Universitária de Direito, 1991. Ob. Cit., p. 319. 18 “Art. 28 . Ter casa publica de tabolagem para jogos, que forem prohibidos pelas posturas das Camaras Municipaes. Penas - de prisão por quinze a sessenta dias, e de multa correspondente á metade do tempo.” 19 “Art. 50. Estabelecer ou explorar jogo de azar em lugar público ou acessível ao público, mediante o pagamento de entrada ou sem ele. (...) § 3º Consideram-se, jogos de azar: a) o jogo em que o ganho e a perda dependem exclusiva ou principalmente da sorte; b) as apostas sobre corrida de cavalos fora de hipódromo ou de local onde sejam autorizadas; c) as apostas sobre qualquer outra competição esportiva. c) a sede ou dependência de sociedade ou associação, em que se realiza jogo de azar;” 20 CAIXA ECONÔMICA FEDERAL. Loterias – um breve histórico. 2012. Disponível em: < http://www1.caixa.gov.br/lotericos/Asp/rede_loterica.asp>. Acesso: 03 de outubro de 2015. 21 Redação original da ementa do Decreto n. 357, de 1844. Disponível em: < http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-357-27abril-1844-560703-publicacaooriginal-83831-pe.html>. Acesso: 03 de outubro de 2015. 22 CARVALHO DE MENDONÇA, Manoel Ignácio. Contractos no Direito Civil Brasileiro. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1911. 23 DE PAGE, Henri. Traité Élémentaire de Droit Civil Belge : principes doctrine, jurisprudence, t. 5. Bruxelas: Emile Bruylant, 1947, p. 282. 24 GOMES, Orlando. Contratos, 9a ed. Rio de Janeiro: Forense, 1983, p. 483. 25 GAGLIANO, Pablo Stolze. “Disciplina Jurídica do jogo e aposta no sistema brasileiro”. In. ASSIS, Araken de. et. al. Direito Civil e Processo : Estudos em homenagem ao Professor Arruda Alvim. Snao Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 86. 17

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avença como aposta se tais indivíduos apenas observassem os moluscos, mas, se tivessem os colocado na mesa, tratar-se-ia de um jogo26. O segundo parâmetro mencionado por ORLANDO GOMES distingue o jogo da aposta pelo motivo determinante do ato. No primeiro, busca-se uma “distração” ou “ganho”, ao tempo na aposta há finalidade específica de “robustecer uma afirmação”. Deste modo, “toda aposta seria jogo” com motivo qualificador, como sintetiza CARVALHO SANTOS: “A aposta, em sua essência, participa de todos os vícios do jogo. Deste, ela só se distingue na forma, por isso que, enquanto jogo o azar depende em grande parte da habilidade dos parceiros, na aposta depende da habilidade de um terceiro ou num acontecimento imprevisto ou ignorado do qual os contraentes fazem nascer a obrigação.”27 Resumem os irmãos MAZEAUD que um mesmo fato pode se qualificar como jogo ou aposta; exemplificam com uma luta de boxe, cuja competição ativa dos lutadores lhes denota um jogo, enquanto que para os espectadores tratar-se-ia de aposta28. Em verdade, a imprecisão dos traços distintivos para determinados exemplos é fundamento para afirmar a desimportância da classificação dos institutos – cujo tratamento jurídico (efeitos) é equiparado. Com efeito, importa-nos fixar a premissa de que há traços distintivos, mas, não suficientemente relevantes para a prática. O jogo e a aposta são tratados (tanto no Código Civil de 2002, quanto de 1916) de forma conjunta e, não raro, repetimos despretensiosamente alguma das designações fazendo menção a condutas que, segundo os critérios supra são próprias da outra figura. Por isso, trataremos-nas de forma indistinta. 2.3. LEGISLAÇÃO Como mencionado, a exploração do jogo encontra-se tipificada desde o Código Criminal de 1830. E, embora, ainda hoje seja tratada como contravenção penal29, o jogo e a aposta também encontram previsão no âmbito civil no capítulo dos contratos em espécie. O elemento comum ao jogo e à aposta consiste exatamente no tratamento jurídico. Lhes é coincidente a vinculação à álea, pelo que poderiam ser considerados incluídos de forma genérica no Título V, do Direito das Obrigações do Código Civil30. Todavia, tal qual já ocorria no Código Civil de 1916, encontram-se previstos conjuntamente, Capítulo XVII, do Título VI (Das várias espécies de contratos), com pequenas alterações pelo Código Reale. Para demonstrar a similitude dos textos, utiliza-se do quadro comparativo que segue: Quadro 1 – Comparativo Legislação Civil Código Civil de 1916

Código Civil de 2002

CAPÍTULO XV

CAPÍTULO XVII

Do Jogo e da Aposta

Do Jogo e da Aposta

Art. 1.477. As dividas de jogo, ou aposta, Art. 814. As dívidas de jogo ou de aposta não obrigam a pagamento; mas não se não obrigam a pagamento; mas não se pode

recobrar

a

quantia,

que pode

recobrar

a

quantia,

que

voluntariamente se pagou, salvo se foi voluntariamente se pagou, salvo se foi 26

ENNECCERUS, Ludwig; KIPP, Theodor; WOLFF, Martin. Tratado de Derecho Civil : derecho de obligaciones, v. 2, t. 2. Buenos Aires: Bosch, 1948, p. 450. 27 CARVALHO SANTOS, João Manoel de. Direito das Obrigações : arts. 1.363 – 1.504, Vol. XIX, 8a Ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1964, p. 412. 28 Apud. PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de Direito Civil : Contratos, v. III, 1a Ed. Eletrônica, rev. e atual. por Regis Fichtner. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 300. 29 Cf. Notas de rodapé n. 14 e 15. 30 No Código Civil de 2002, Livro I, Título V, da Parte Especial, artigos 458 a 461, prevê de forma geral os negócios jurídicos envolvendo álea.

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ganha por dolo, ou se o perdente é ganha por dolo, ou se o perdente é menor, ou interdito. Parágrafo

único.

disposição

qualquer

menor ou interdito. esta §1o

Aplica-se contrato

Estende-se

que qualquer

esta

contrato

que

disposição

a

encubra

ou

encubra ou envolva reconhecimento, envolva reconhecimento, novação ou novação ou fiança de dividas de jogo; fiança de dívida de jogo; mas a nulidade mas a nulidade resultante não pode ser resultante não pode ser oposta ao oposta ao terceiro de boa fé.

terceiro de boa-fé. §2o O preceito contido neste artigo tem aplicação, ainda que se trate de jogo não proibido, só se excetuando os

jogos

e

apostas

legalmente

permitidos. § 3o Excetuam-se, igualmente, os prêmios oferecidos ou prometidos para o vencedor em competição de natureza

esportiva,

intelectual

ou

artística, desde que os interessados Art. 1.478. Não se pode exigir reembolso se submetam às prescrições legais e do que se emprestou para jogo, ou regulamentares. aposta, no ato de apostar, ou jogar.

Art. 815. Não se pode exigir reembolso

Art. 1.479. São equiparados ao jogo, do que se emprestou para jogo ou submetendo-se, como tais, ao disposto aposta, no ato de apostar ou jogar. nos artigos antecedentes, os contratos Art. 816. As disposições dos arts. 814 e sobre títulos de bolsa, mercadorias ou 815 não se aplicam aos contratos sobre valores, em que se estipule a liquidação títulos de bolsa, mercadorias ou valores, exclusivamente pela diferença entre o em que se estipulem a liquidação preço ajustado e a cotação que eles exclusivamente pela diferença entre o tiverem, no vencimento do ajuste. Art.

1.480.

O

sorteio,

para

preço ajustado e a cotação que eles dirimir tiverem no vencimento do ajuste.

questões, ou dividir coisas comuns, considerar-se-á sistema de partilha, ou processo de transação, conforme o caso.

Art. 817. O sorteio para dirimir questões ou dividir coisas comuns considera-se sistema de partilha ou processo de transação, conforme o caso.

Fonte: http://www.planalto.gov.br - grifos destacando divergências não originais A análise comparativa denota que o tratamento jurídico se manteve inalterado (artigo 814, caput); por outro lado, o Código Civil de 2002 introduziu algumas exceções à regra geral – especificamente, a tolerância com o “jogo legalizado” (artigo 8 4, §2o) e com os prêmios na esfera desportiva (§3o), além da exclusão dos

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contratos derivativos. Destaca-se a inclusão do parágrafo 2o, do artigo 814, que retrata distinção há muito sedimentada na doutrina, sobre os tipos de jogos. 2.4. ESPÉCIES DE JOGOS O estudo da validade e da eficácia dos contratos de jogo e aposta depende da definição das suas espécies. Como já mencionado, atualmente, tais espécies podem ser verificadas implicitamente do texto do artigo 814, do Código Civil de 2002; a doutrina clássica, porém, já as distinguia – embora não seja pacífica a sedimentação. WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO 31 e SILVIO RODRIGUES32 indicam que o jogo se divide entre: (i) lícito e (ii) ilícito. A partir da distinção entre jogo e aposta, pode-se afirmar que para tais autores são lícitos – admitidos pelo ordenamento – os jogos, convenções amparadas na destreza/habilidade dos intervenientes; por outro lado, as convenções cujo revés depende exclusiva ou principalmente da sorte (aposta) seriam proscritas. Referidos juristas, contudo, apontam que a definição é irrelevante, porque “ambos [lícitos ou ilícitos] não geram negócios jurídicos, nem obrigam a pagamento”, “seja qual for a espécie de jogo, a lei lhe nega o principal efeito almejado pelas partes, ou seja a exigibilidade” (respectivamente). Para alguns, como ORLANDO GOMES e CLÁUDIO LUIZ BUENO DE GODOY, a distinção em duas categorias é imprecisa, pois incompatível com as nuances do contrato de jogo e de aposta no âmbito da validade e eficácia. Adota-se, portanto, classificação trinária, em que são espécies de jogo e aposta: i.

jogo proibido;

ii.

jogo tolerado;

iii.

jogo autorizado.

O jogo proibido (i) coincide com o “jogo ilícito” da definição binária, ou seja, aqueles vedados pelo ordenamento, inclusive tipificados (cf. artigo 50, da Lei de Contravenções Penais); dentre tantos, exemplificase com o jogo do bicho. ORLANDO GOMES os definia como “contrato nulo de pleno direito, por ter causa ilícita”33, isto é, inválido por força do disposto no artigo 104, inciso II, do Código Civil. Sintetiza FERNANDO NORONHA 34 que tal espécie não se assemelha com o tratamento jurídico previsto nos artigos 814 e seguintes. De fato, tal qual prevê o regramento do jogo e da aposta, o valor pago voluntariamente em “jogos proibidos” também não poderia ser objeto de restituição, porém, com fundamento no artigo 883, da Lei n. 10.406, de 2002. Por outro lado, o jogo tolerado (ii) e o jogo autorizado (iii) se enquadram na espécie lícita da distinção binária, mas, apresentam eficácia distinta, conforme prevê o artigo 814, caput e parágrafo 2o, do Código Civil de 2002. O Professor e Desembargador CLAUDIO LUIZ BUENO DE GODOY define os jogos tolerados como de “menor reprovabilidade, em que o evento não depende exclusivamente do azar”; assim, a lei os tolera, não proíbe, mas, também não os dota de exigibilidade (obrigação imperfeita), porque os considera uma “diversão sem maior proveito”35 – exatamente como disposto no artigo 814, caput, do Código Reale. Derradeiramente, os jogos autorizados constitui a inovação legislativa do parágrafo 2o, do artigo 814, do Código Civil. Embora há muito já reconhecêssemos algumas figuras legalizadas de jogo e aposta (v.g. 31

Ob. Cit., p. 434. Ob. Cit., p. 352. 33 Ob. Cit., p. 485. 34 NORONHA, Fernando. Direito das obrigações, v. 1. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 232-234. 35 PELUSO, Cezar (coord.). Código Civil Comentado : Doutrina e Jurisprudência, 6a Ed., rev. atual. Barueri: Manole, 2012, p. 834. 32

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turfe e loteria), somente em 2002 dissociou-se tal espécie do jogo tolerado anteriormente previsto no artigo 1.477, do Código Bevilaqua de 1916. Como leciona ORLANDO GOMES, a autorização legislativa torna plenamente eficaz o contrato do jogo lícito e, ao contrário do tolerado, “a dívida de jogo autorizado é obrigação perfeita”36. A classificação, portanto, é de suma importância para qualificar os jogos e apostas dentro da “escada ponteana”. Superar a “confusão” do perfil jurídico permite compreender o regramento do Código Civil e, principalmente, estabelecer parâmetros de compreensão do jogo e da aposta no sistema jurídico diante do paradoxo aparente de tratamento, vedação (proibidos), tolerância (tolerados) e fomento (autorizados).

3. NATUREZA JURÍDICA Como delineado na introdução deste ensaio, a inserção do jogo e da aposta no Código Civil de 1916 contraria a própria vontade do projeto de CLÓVIS BEVILAQUA37, que os qualificava como mero passatempo, a serem considerados apenas no âmbito dos costumes38. Introduzido na codificação, o tratamento jurídico permitiu florescer controvérsia sobre a natureza jurídica – fato, ato ou negócio jurídico. Parece-nos que a topologia do Código (tanto de 1916, quanto de 2002) torna induvidosa a natureza de contrato nominado. Aliás, o próprio autor do Código de 1916, posteriormente, posicionou-se na divergência entre ato e contrato, qualificando o jogo e a aposta como espécie de contrato (aleatório) – cita-se: “contrato aleatório, em que duas ou mais pessoas prometem certa soma àquela, dentre as contraentes, a quem for favorável certo azar [jogo]. (...) contrato igualmente aleatório, em que duas ou mais pessoas, de opinião diferente, sobre qualquer assunto, concordam em perder certa soma em favor daquela, dentre as contraentes, cuja opinião se verificar ser a verdadeira”39. Diverge, entretanto, SILVIO RODRIGUES, para quem a recusa dos “efeitos almejados pelas partes” prevista no artigo 814, caput, do Código Civil, significa sua descaracterização como ato jurídico. Relevante a transcrição do entendimento dissidente: “tanto o jogo lícito quanto a aposta não são atos jurídicos, posto que a lei lhes nega efeitos dentro do campo do direito. Assim, não podem ser enfileirados entre os negócios jurídicos, e por conseguinte, entre os contratos”40. A doutrina majoritária, contudo, perfilha-se no sentido contrário, isto é, definindo-os como contrato (negócio jurídico). Como menciona PABLO STOLZE GAGLIANO, “a condição de obrigação natural não descaracteriza a figura contratual”, cuida-se de relação jurídica de direito material existente, válida e, parcialmente eficaz, a qual não se pode negar a natureza negocial, sob risco de “sobrepujar o preconceito à norma e à efetiva aceitabilidade social do instituto” 41 . Neste aspecto, relevante destacar que a natureza jurídica, tal qual a eficácia do jogo e da aposta, depende da espécie. Como supracitado, os jogos proibidos encontram tipificação na Lei de Contravenções Penais (art. 50), o que lhes qualifica como “ato ilícito criminal” na doutrina de MARCOS BERNANDES DE MELLO 42 . Ao contrário dos jogos lícitos que são classificados como negócio jurídico, seja na hipótese autorizada, seja nos jogos tolerados, pois, o que lhes distancia são os efeitos. 36

Ob. Cit., p. 486. Cf. Projeto do Código Civil de 1916, Trabalhos da Câmara, v. VI, p. 167, apud. RODRIGUES, Silvio. Ob. Cit., p. 351. BEVILAQUA, Clóvis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil, v. V. Rio de Janeiro: Paulo Azevedo, 1954, p. 228. 39 BEVILAQUA, Clóvis. Direito das Obrigações, 9ª ed., atual. por Achiles Bevilaqua e Isaías Bevilaqua. Rio de Janeiro: Paulo de Azevedo, 1957, p. 319. 40 Ob. Cit., p. 352. 41 Ob. Cit. p. 88. 42 MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do Fato Jurídico : Plano da Existência, 17a Ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 157. 37 38

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Nos termos da lição de FERNANDO NORONHA, já citada, os jogos permitidos sequer encontram fundamento nos artigos 814 e seguintes do Código Civil 43; em outras palavras, subsomem-se à previsão genérica dos contratos aleatórios44 - em outras palavras, negócio jurídico. Já os jogos tolerados, ou seja, precisamente aqueles objeto de menção específica do Código (artigos 814 a 817), encontram restrição de exigibilidade (eficácia). Tais limitações, no entanto, não excluem a natureza de negócio jurídico, como há muito advertia SERPA LOPES: “(...) se por contrato dermos um sentido lato como sendo toda relação a que corresponder um acordo de vontades, então, sim, teremos incontestavelmente neles um contrato”45. Por negócio jurídico, entenda-se um fato jurídico “cujo elemento nuclear do suporte fático consiste em manifestação ou declaração consciente de vontade”, pela qual o sistema jurídico faculta aos sujeitos, “dentro de limites predeterminados e de amplitude vária”, a escolha de categoria jurídica e a obtenção de determinados efeitos46. Evidente que o artigo 814, caput, do Código Civil, estabelece restrições aos efeitos desejados (obrigação imperfeito), isto, contudo, coincide com o conceito supra, já que são próprios deste modelo os limites e amplitude variáveis. Na lição do Professor ÁLVARO VILLAÇA AZEVEDO, contrato é a “manifestação de duas ou mais vontades, objetivando criar, regulamentar, alterar e extinguir uma relação jurídica (direitos e obrigações) de caráter patrimonial”47. Neste aspecto, não há dúvida que o jogo e a aposta se subsomem à definição de contrato, como negócio jurídico bilateral, apto a criar relações jurídicas – a obrigação natural afeta a eficácia, sem, contudo, esvaziar-lhes totalmente tal aptidão obrigacional. Assim, na doutrina pátria, SILVIO RODRIGUES é entendimento minoritário, porque a maioria define o jogo e a aposta como contrato. Dentre tantos, menciona-se ORLANDO GOMES48, BUENO DE GODOY49, SILVIO SALVO VENOSA50, CAIO MARIO DA SILVA PEREIRA51 e MARIA HELENA DINIZ52. 3.1. CLASSIFICAÇÕES DO CONTRATO DE JOGO E APOSTA Estabelecer a natureza jurídica do jogo e da aposta como contratos significa permitir classificá-los segundo os inúmeros critérios próprios da matéria. De plano, repisa-se o elemento comum pelo qual estão previstos conjuntamente no Código Civil, qual seja a álea. Sujeitam-se, pois, ao regramento próprio dos contratos aleatórios. Também já se fez menção que a previsão expressa no capítulo dos contratos em espécie, são contratos típicos53. Ainda, como anota PABLO STOLZE GAGLIANO, são bilaterais e, não raro, se qualificam como plurilaterais (v.g. contratos de loteria), podendo se revestir como “contratos consumeristas”. Quanto à forma, são contratos “não-solenes e consensuais”54; de forma paritária ou por adesão. Por fim, indica SILVIO

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Cf. Nota de rodapé n. 29. Título V, Capítulo I, Seção VII – “Dos Contratos Aleatórios” (artigos 458 a 46 ), do Código Civil de 2002. 45 LOPES, Serpa. Curso de Direito Civil : fontes das obrigações, contratos, v. 4, 2a Ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1960, p. 414. 46 MELLO. Ob. Cit., p. 225. 47 AZEVEDO, Álvaro Villaça de. Teoria Geral dos Contratos Típicos e Atípicos : Curso de Direito Civil. São Paulo: Atlas, 2002, p. 21. 48 Ob. Cit., p. 482. 49 Ob. Cit., p. 834. 50 Ob. Cit., p. 407. 51 Ob. Cit., p. 299. 52 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil – Teoria das Obrigações Contratuais, v. 3, 31a Ed. São Paulo: Saraiva, 2015. 53 AZEVEDO, Álvaro Villaça. Ob. Cit., p. 59. 54 Ob. Cit., p. 94. 44

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VENOSA que devem ser definidos contratos tipicamente onerosos, juridicamente irrelevantes os contratos gratuitos55.

4. VALIDADE E EFICÁCIA – LIMITAÇÕES DA OBRIGAÇÃO NATURAL ORLANDO GOMES há muito já mencionava que “o jogo e a aposta constituem contratos de eficácia restrita e validade limitada”56. Isto porque, o jogo proibido encontra obstáculo no plano da validade (objeto); enquanto os jogos tolerados têm eficácia restrita segundo a lei civil. Repisa-se a acurada definição do referido autor, pela qual o jogo proibido constitui ato ilícito, nulo por infringência ao artigo 104, inciso II, do Código Civil, não preenchido o requisito de regular constituição referente ao objeto57. Embora parcela da doutrina, como VENOSA58, aponte a aplicabilidade do artigo 814 também aos jogos proibidos, trata-se de contrato inválido, cujo impedimento à restituição dos valores efetivamente pagos também é obstada, porém, com fundamento no artigo 883, do Código Civil 59. Igualmente, o jogo autorizado (legalizado) não se sujeita à previsão dos artigos 814 a 817, do Código Civil. Ao contrário, no entanto, são atos lícitos (lato sensu), cujo afastamento do regramento mencionado do jogo e da aposta lhes denota plena eficácia e validade, a priori, tal qual outros contratos aleatórios genéricos. Por outro lado, impõe-se a análise do teor do artigo 814, caput, para estabelecer quais limites ao jogo tolerado. Dispõe o Código Civil de 2002, em redação idêntica àquela do Código de 191660: “Art. 814. As dívidas de jogo ou de aposta não obrigam a pagamento; mas não se pode recobrar a quantia, que voluntariamente se pagou, salvo se foi ganha por dolo, ou se o perdente é menor ou interdito”. Segundo JOSÉ MARIA TREPAT CASES, em obra coordenada pelo Professor ALVARO VILLAÇA AZEVEDO, o referido artigo traduz a inexigibilidade das dívidas oriundas do contrato de jogo ou de aposta, por constituírem “obrigação natural”61. Consequentemente, faz-se necessário o exame da obligatio naturalis. Com fundamento no direito romano e modernamente chamada pela doutrina alemã de obrigação imperfeita, a obrigação natural constitui tertium genus “entre o mero dever de consciência e a obrigação juridicamente exigível”62. JULES-ANTOINE BREYNAT, em 1845, definia o perfil da obrigação natural como aquela sem exigibilidade, ou seja, sem actio para cobrá-la, mas, também, indissociada da moral – ou seja, sem ação para restituição em caso de pagamento voluntário63. Neste mesmo sentido, destacável a definição de CAIO MARIO DA SILVA PEREIRA, com fundamento na lição de SERPA LOPES, “uma obligatio revestida de todas as características da obrigação perfeita, menos uma, a ação”. A partir da decomposição binária da obrigação, com antecedentes em BRINZ e SAVIGNY, pode-se afirmar que o jogo e a aposta qualificam-se como um débito (Schuld) sem garantia (Haftung)64.

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Ob. Cit., p. 315. Ob. Cit., p. 483. Sobre os planos do negócio jurídico vide AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Negócio Jurídico : Existência, Validade e Eficácia, 4a Ed., atual., 7a tiragem. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 43. 58 Ob. Cit., p. 409. 59 NORONHA. Ob. Cit., p. 233. 60 Cf. Quadro I. 61 AZEVEDO, Álvaro Villaça (coord.); CASES, José Maria Trepat. Código Civil Comentado – Várias espécies de contrato. Comissão. Agência e Distribuição. Corretagem. Transporte. Seguro. Constituição de renda. Jogo e Aposta – artigos 693 a 817, v. VIII. São Paulo: Atlas, 2003, p. 367. 62 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil : Teoria Geral das Obrigações, v. II, 20a Ed., rev. e atual. por Luiz Roldão de Freitas Gomes. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 28. 63 BREYNAT, Jules-Antoine. Code Civil : de l'obligation naturelle en droit français. 26 de Agosto de 845. Tese de Doutorado – Université de France (Académie de Strasbourg). Estrasburgo, 1845, p. 15-16. 64 Ob. Cit., p. 24-25. 56 57

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E, como já estabelecia o direito romano, o artigo 814, caput, do Código Civil de 2002 (que repete o artigo 1.477, do Código de 1916), traduz expressamente a hipótese de obrigação natural. O Código reconhece a relação negocial e o dever de pagamento, mas, não lhe tutela exigibilidade (actio) – ou seja, há Schuld, mas, não Haftung; e, uma vez solvida a obrigação espontaneamente, o credor é protegido pela soluti retentio (consolidação do pagamento efetivado)65. Sintetiza PONTES DE MIRANDA: “Ninguém deve por perder em jogo proibido, ou em aposta proibida. Quem perdeu em jogo não proibido, ou em aposta não proibida, deve, porém, contra essa pessoa não há pretensão nem ação”66. Em outras palavras, o jogo (tolerado) ostenta natureza jurídica de contrato aleatório de eficácia limitada. Como definem ENNECCERUS, KIPP e WOLFF, trata-se de verdadeira relação contratual, apta a gerar obrigação sem sanção, qualificando um crédito desprovido de força executiva67; ao tempo que o jogo legalizado ostenta plena validade e eficácia, enquanto o jogo ilícito é nulo68.

5. CONTRATOS DIFERENCIAIS O artigo 1.479, do Código Bevilaqua69, estabelecia que “contratos sobre títulos de bolsa, mercadorias ou valores” eram equiparados à hipótese do jogo e da aposta – ou seja, contratos de eficácia limitada (obrigações imperfeitas), sem exigibilidade. Referida equiparação tinha justificativa nos mesmos obstáculos morais e sociais que impuseram limites ao reconhecimento da eficácia plena ao jogo e à aposta, como se verifica de excerto de uma carta de THOMAS JEFFERSON: “A riqueza adquirida pela especulação e pilhagem é fugaz em sua natureza e enche a sociedade com o espírito do jogo”70. Como destacado no Quadro I, entretanto, o Código Civil de 2002 superou a polêmica equiparação dos contratos derivativos aos contratos de jogo e aposta; cita-se: “Art. 816. As disposições dos arts. 814 e 815 não se aplicam aos contratos sobre títulos de bolsa, mercadorias ou valores, em que se estipulem a liquidação exclusivamente pela diferença entre o preço ajustado e a cotação que eles tiverem no vencimento do ajuste” (grifo não original). Verdadeiramente, os contratos diferenciais/derivativos negociados em mercados especulativos também têm como característica ínsita, tal qual o jogo e a aposta, a álea. A equiparação, todavia, era incompatível com o liberalismo e o capitalismo de mercado. De fato, tais negócios ostentam risco, porém, tal característica lhes é “inerente” – como qualifica PABLO STOLZE GAGLIANO71. Doutrina e jurisprudência, no entanto, perceberam a referida incompatibilidade da restrição imposta pelo artigo 1.479, do Código Civil de 1916, muito antes da vigência do Código Reale. Neste aspecto, inúmeros os argumentos para não subsunção dos contratos derivativos ao disposto no Capítulo do jogo e da 65

PEREIRA. Ob. Cit., p. 31. apud. VENOSA. Ob. Cit., p. 408. 67 ENNECCERUS, Ludwig; KIPP, Theodor; WOLFF, Martin. Tratado de Derecho Civil : derecho de obligaciones, v. II, t. I. Buenos Aires: Bosch, 1948, p. 12. 68 Além dos demais já citados, VENOSA. Ob. Cit., p. 410. 69 “Art. 1.479. São equiparados ao jogo, submetendo-se, como tais, ao disposto nos artigos antecedentes, os contratos sobre títulos de bolsa, mercadorias ou valores, em que se estipule a liquidação exclusivamente pela diferença entre o preço ajustado e a cotação que eles tiverem, no vencimento do ajuste.” 70 Tradução livre, original “The wealth acquired by speculation and plunder is fugacious in its nature and fills society with the spirit of gambling” (HAZEN, Thomas Lee. “Disparate regulatory schemes for parallel activities: securities, regulation, derivatives regulation, gambling, and insurance”. Annual Review of Banking & Financial Law, Boston, v. 24, 2005, pp. 402-403). 71 Ob. Cit., p. 95. 66

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aposta; PEDRO MAFUD 72 elenca alguns destes argumentos: função pública das bolsas, poder normativo delegado de fiscalização e punição no ambiente regulado e função econômica dos contratos derivativos RACHEL SZTAJN afirma que o Código Civil de 2002 não menciona os contratos derivativos negociados fora de bolsa ou cuja liquidação não se dê pela diferença 73 . A divergência da doutrina especializada, todavia, excede ao objetivo deste ensaio Logo, repisa-se que o Código vigente sedimentou entendimento doutrinário, superando os obstáculos de eficácia dos contratos derivativos.

6. LEGISLAÇÃO ESTRANGEIRA CAIO MARIO DA SILVA PEREIRA ressalta que, por sua “inutilidade social”, o jogo e aposta são repetidamente tratados no direito estrangeiro como contratos, porém, de eficácia restrita, tal qual o modelo brasileiro 74 . Sem dúvida, entre os sistemas da família romano-germânica deve-se este tratamento às influências do direito romano e do direito canônico75. Por outro lado, as restrições legais tem precedentes remotos na China Imperial, no Código de Manu (Índia) e no Alcorão76. O regramento jurídico de outras legislações aproxima-se do artigo 814, do Código Civil de 2002. Considerando que a legislação vigente praticamente repete o Capítulo de jogo e aposta do Código Bevilaqua, inequívoca a influência dos regramentos francês e alemão. Neste sentido, o Code Civil da França trata nos artigos 1.962 e 1.967, com redação original mantida desde 1804, regramento muito semelhante àquele estabelecido pelo artigo 1.477, do Código Civil de 1916 (hoje, repetido no artigo 814). Cita-se: “Art. 1.965. A lei não concederá ação para uma dívida de jogo ou para o pagamento de uma aposta”77 “Art. 1.967. Em qualquer caso, o perdedor não pode repetir o que pagou voluntariamente, a menos que tenha havido, por parte do vencedor, dolo, engano ou fraude”78. Na Alemanha, o Bürgerliches Gesetzbuch (1900) apenas indica a ineficácia restrita do jogo e da aposta, qualificando-o como obrigações imperfeitas, cujo pagamento não permite restituição. Em tradução livre, do §762 “nenhuma obrigação é estabelecida por jogos e apostas. O que foi pago em razão de tais jogos e apostas não pode ser exigido de volta com base de que inexistia obrigação”79. Ainda, também se assemelha ao regramento pátrio o Código Civil Suíço de Obrigações (Livro 5, de ). Estabelece o art. 5 3 que “o jogo e a aposta não dão qualquer direito de reivindicação” 80; o artigo subsequente, porém, denota a validade dos títulos de crédito em posse de terceiros, tal qual reconhecido pela nossa jurisprudência, e a irrepetibilidade dos pagamentos voluntários81.

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MAFUD, Pedro Darahem. Racionalidade econômica e aspectos jurídicos dos derivativos: uma análise jurisprudencial. 2014. Dissertação (Mestrado em Direito Comercial) Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014. Disponível em: . Acesso em 03 de outubro de 2015. 73 SZTAJN, Rachel. “Regulação e o Mercado de Valores Mobiliários”. Revista de Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, São Paulo, ano 43, n. 135, julho-setembro/2004, p. 144. 74 Ob. Cit., p. 299. 75 NAHAS, Imad. Le Jeu et Le Pari en Droit. 2014. Tese (Doutorado em Direito) – Université Panthéon-Assas (Paris II), Paris, 2014, p. 25-33. 76 VASCONCELOS, Fernando Antônio. “Contrato de Jogo e Aposta permissão ou proibição”. Revista Direito e Liberdade, Escola da Magistratura do Rio Grande do Norte (ESMARN) – v. 15, n. 2., p. 93-133, maio/ago. 2013, p. 95. 77 Tradução livre de “La loi n'accorde aucune action pour une dette du jeu ou pour le paiement d'un pari”. 78 Tradução livre de “Dans aucun cas le perdant ne peut répéter ce qu'il a volontairement payé, à moins qu'il n'y ait eu, de la part du gagnant, dol, supercherie ou escroquerie”. 79 Tradução livre. Original, do Código Civil Alemão “Durch Spiel oder durch Wette wird eine Verbindlichkeit nicht begründet. Das auf Grund des Spieles oder der Wette Geleistete kann nicht deshalb zurückgefordert werden, weil eine Verbindlichkeit nicht bestanden hat”. 80 Tradução livre – original: “Le jeu et le pari ne donnent aucun droit de créance”. 81 Código Civil Suíço, artigo 514: “(...) Il n'y a lieu à répétition de paiements volontaires que si l'exécution régulière du jeu ou du pari a été empêchée par un cas fortuit, par le fait de l'autre partie, ou si cette dernière s'est rendue coupable de manouvres déloyales”.

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O Codice Civile Italiano, de 1942, também prevê regramento análogo. O destaque, todavia, deve se dar à menção da eficácia restrita aos jogos ilícitos – interpretação que influenciou a “confusão” no tratamento das espécies no Brasil82. A imprecisão já delineada sobre a inaplicabilidade das regras de jogo e aposta à espécie ilícita (contratos nulos) é expressamente prevista pelo artigo 1.933, do Código Civil Italiano: “Não há ação para o pagamento de um débito de jogo ou de aposta, mesmo que se trate de jogo ou aposta não proibido. O perdedor, todavia, não pode repetir o quanto pagou voluntariamente, após o resultado de um jogo ou de uma aposta em que não houve fraude (2034). A repetição é admitida, em qualquer caso, se o perdente é incapaz (414 e seguintes, 1191)”83 Opostamente, a Codificação Portuguesa (1966) esclarece a distinção supramencionada, com base na lição de ORLANDO GOMES, acerca da invalidade dos jogos ilícitos e validade, com eficácia restrita, dos jogos lícitos – conforme artigo 1.245, ora transcrito: “O jogo e a aposta não são contratos válidos nem constituem fonte de obrigações civis; porém, quando lícitos, são fontes de obrigações naturais, excepto se neles concorrer qualquer outro motivo de nulidade ou anulabilidade, nos termos gerais de direito, ou se houver fraude do credor na sua execução”. Igualmente louvável o Código Civil Argentino, recentemente promulgado (2014), que trata da matéria com extensão não verificada em outros regramentos (artigos 2.051 a 2.069), em conjunto com os contratos aleatórios. Também, ao contrário da maioria dos textos legais, o Código Argentino define na lei jogo e aposta84.

7. POLÊMICA DA LEGALIZAÇÃO 7.1. ASPECTOS EXTRAJURÍDICOS Desde JUSTINIANO, tem-se notícia da convivência da proibição e legalização dos jogos e da aposta85; referido paradoxo no tratamento desses contratos não está necessariamente vinculado ao direito. A tolerância com jogos e apostas sofre variação temporal e espacial, mas, é necessário frisar que os fundamentos deste movimento são próprios da moral, sociologia e psicologia86. O induvidoso reflexo na legislação, entretanto, justifica o interesse desses ramos alheios da dogmática jurídica. MÁRCIO MARTINS BONILHA indica que a “solução jurídica” tem amparo em necessidades históricas e políticas – sintetiza: “Essa orientação [art. 814, do CC], que tem a finalidade de afastar os malefícios do vício, atinge o jogo em sua repercussão na esfera patrimonial e no âmbito de sua influência moral, tendo em vista que à ordem jurídica interessa a eliminação do problema, que se enraíza na paixão humana, e cujo desenvolvimento chega a representar perigo ético-social, que incumbe ao Estado combater”87.

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GOMES. Ob. Cit., p. 484. Original, artigo 1.933: “Non compete azione per il pagamento di un debito di giuoco o di scommessa, anche se si tratta di giuoco o di scommessa non proibiti. Il perdente tuttavia non può ripetere quanto abbia spontaneamente pagato dopo l'esito di un giuoco o di una scommessa in cui non vi sia stata alcuna frode (2034). La ripetizione e ammessa in ogni caso se il perdente è un incapace (414 e seguente, 1191)” – tradução livre. 84 “Artículo 2052. El contrato de juego tendrá lugar cuando dos o más personas entregándose al juego se obliguen a pagar a la que ganare un suma de dinero, u otro objeto determinado. Artículo 2053. La apuesta sucederá, cuando dos personas que son de una opinión contraria sobre cualquier materia, conviniesen que aquella cuya opinión resulte fundada, recibirá de la otra una suma de dinero, o cualquier otro objeto determinado”. 85 NAHAS. Ob. Cit., p. 27. 86 VENOSA. Ob. Cit., p. 407. 87 BONILHA. Ob. Cit., p. 315. 83

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Quanto às restrições morais e sociais, destaca-se o impetuoso discurso de RUI BARBOSA, para quem o jogo “é a lepra do vivo e o verme do cadáver”, porque tripudia a sociedade88. Aqui, não se pode olvidar o influxo da religião neste “pré-conceito” sobre o jogo. Como já citado, as sociedades primitivas chinesa, hindu, judaica, árabe e cristã repudiavam de certa forma o jogo e a aposta. IMAD NAHAS menciona o influxo do direito canônico na repressão jurídica aos jogos, porque atentam ao “amor ao próximo” e fomentam o “espírito de lucro”89. Hodiernamente, a religião e a moral têm menos força restritiva – notável que tais elementos não ostentam a aptidão de “controle social” de outrora90. Não obstante, crescentes as críticas de outros ramos; hoje fundamentam a limitação à eficácia plena dos jogos tolerados ou a proibição dos “jogos de azar” a medicina (“jogo patológico”), a criminologia/vitimolgia (associação ao crime organizado, tráfico de drogas e de armas91) e a economia. Os transtornos psiquiátricos em decorrência do jogo e da aposta são classificados pela ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE, que define o jogo patológico como “episódios frequentes e repetidos de jogo que dominam a vida do indivíduo, restringindo gradativamente seus compromissos sociais, materiais e familiares”92. O primeiro estudo epidemiológico no Brasil apontava, em 2009, que 1% (um por cento) da população adulta apresentava a moléstia93, sujeitas, por exemplo, a maior propensão de suicídio94. As críticas da seara médica-sanitária adquiriram destaque porque a incidência da patologia é reflexo da disponibilidade (oferta) de jogos95, ao tempo que a massificação da sociedade pós-moderna implica em proliferação também dos jogos (v.g. apostas online). A problemática se acentua pois já comprovado que os fatores de risco de dependência estão associados à senescência96 - população reconhecida como vulnerável pelo legislador pátrio (cf. Estatuto do Idoso). MARIA LUIZA FOZ MENDONÇA sintetiza que a dependência ao jogo deve ter o mesmo tratamento que as drogas ilícitas, face aos riscos análogos97. Tais argumentos, no entanto, servem também à regulação do contrato de jogo e aposta – densificar regras de eficácia e validade (suprimindo a ilicitude), como já evidenciado em outras culturas, possibilitaria o controle estatal98. 7.2. JOGOS LEGALIZADOS A controvérsia acerca da legalização ganhou recente destaque em virtude do decréscimo na arrecadação fiscal do Estado; segundo a mídia, o Governo consultou o Congresso Nacional sobre a viabilidade da regulação dos bingos, jogo do bicho, máquinas caça-níqueis e jogos pela internet99. A sugestão contraria os fundamentos (extrajurídicos) da Lei n. 9.981, de 2000, e da Medida Provisória n. 168, de 2004,

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LIMA, João Franzen de. Curso de Direito Civil, 7a Ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 848. Ob. Cit., p. 33-36. 90 BAUMAN, Zygmunt. Vida Líquida, 2a Ed. São Paulo: Zahar, 2007. 91 MENDONÇA, Maria Luiza Foz. “Legalização do jogo uma aposta arriscada”. Revista dos Tribunais, ano 94, volume 837, julho de 2005, p. 389-397. 92 ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE. CID 10 – Classificação Internacional de Transtornos Mentais e de Comportamento, 10a Ed., 2006. 93 GALETTI, Cecilia. Perfil sócio-demográfico, comportamento de jogo e variáveis associadas do jogador patológico idoso que procurou tratamento. 2009. Dissertação (Mestrado em Psiquiatria) - Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009. Disponível em: . Acesso em: 2015-10-08, p. 3. 94 MENDONÇA. Ob. Cit., p. 393. 95 JACQUES, C.; LADOUCEUR, R.; FERLAND, F. Impact of availability on gambling: a longitudinal study. Canadian Journal of Psychiatry, n. 45, p. 810815. 96 GALETTI. Ob. Cit., p. 5. 97 Ob. Cit., p. 396. 98 Itália, Inglaterra, França, Portugal e Estados Unidos têm o jogo legalizado, sem notícia de alteração de crimes, possibilitando, ainda, a regulação e controle de condutas abusivas (VASCONCELOS. Ob. Cit., p. 109). 99 FOLHA DE SÃO PAULO. Governo consulta base sobre legalizar jogos de azar para elevar arrecadação. Ranier Bragon e Débora Álvares, Brasília, 17 de setembro de 2015. Disponível em: , acesso em 03.10.2015. 89

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que proibiram o funcionamento dos bingos no país, mas, coincide com o progresso das loterias e, principalmente, atenderia ao anseio fiscal. Como mencionado no capítulo referente aos antecedentes históricos, a loteria encontra fundamento legal desde o Decreto n. 357, de 1844. A relevância atual se justifica pelos números apresentados pela CAIXA ECONÔMICA FEDERAL. Segundo o relatório anualmente publicado, os jogos legalizados promovidos pelo Estado apresentaram em 20 4 “resultados recordes”, traduzidos pelo crescimento de 18% (dezoito por cento) , em relação ao ano anterior, e arrecadação total de R$13,5 bilhões100. A loteria regulada pela CEF é um case de sucesso, seja pelo crescimento anual da arrecadação, seja pelos repasses. Do valor supracitado, R$6,38 bilhões foram repassados ao desporto, à educação, à saúde, à cultura, à segurança e à seguridade social – além do recolhimento de impostos101. Com efeito, a regulação e a questão financeira justificam os inúmeros projetos de lei para legalização de espécies hoje proscritas – confira-se dentre outros: PL. n. 442, de 1991; PL. n. 2.826, de 2008; PL. n. 1.471, de 2015.

8. JOGO E APOSTA NOS TRIBUNAIS A prodigalidade da temática no âmbito social, por óbvio, repercute no Poder Judiciário, que já conheceu de diversas nuances do jogo e da aposta. De plano, inolvidável a menção à súmula vinculante n. 2102 do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. A segunda súmula vinculante do STF é fruto do movimento em favor da legalização do jogo e da aposta e da coexistência de legislações estaduais que os autorizavam, apesar da vedação expressa da restrição federal. Além da questão legislativa, sedimentada por meio de enunciado vinculante, a “legalização” estadual (temporária) e a “tolerância social” são objeto de reiterada discussão no âmbito penal. Não raro, os casos envolvendo contravenção penal denotam o debate acerca da ineficácia da norma penal (adequação social ou tipicidade conglobante, a depender da doutrina) incriminadora do jogo proibido, como o “jogo do bicho”. Uníssono, no entanto, com fulcro em decisões do Tribunais Superiores103, o entendimento pela higidez do tipo contravencional – cita-se ementa de julgado do TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO: “Apelação – Contravenção penal de jogo do bicho e Corrupção ativa – Condenações – Manutenção – Réu preso em flagrante na posse de blocos e anotações referentes ao jogo do bicho – Oferecimento de dinheiro aos policiais para deixarem de efetuar a prisão – Admissão de que atuava como bicheiro – Negativa da corrupção isolada do contexto probatório – Inadmissível a tese de adequação social – Conduta que não está de acordo com a ordem social e que prolifera a corrupção e deixa nódoas na sociedade – Crime de corrupção ativa – Inocorrência de ofensa ao princípio da proporcionalidade – Bens jurídicos distintos – Condenações mantidas – Pena bem dosada – Comprovados os antecedentes criminais – Impossibilidade de substituição da pena corporal por pena restritiva de direito – Recurso de apelação não provido” (Tribunal de Justiça de São Paulo, Apelação n. 0030401-62.2011.8.26.0562, Rel. Des. Cesar Augusto Andrade de Castro; 4ª Câmara Criminal Extraordinária; Data do julgamento: 04/02/2015). Outra controvérsia relevante consiste no debate acerca da exigibilidade de dívidas contraídas durante o funcionamento precário dos bingos; bem como a questão da autonomia dos títulos de créditos emitidos no âmbito das dívidas de jogos e apostas. Recentemente, o Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO reiterou o entendimento jurisprudencial sobre tais temas, reafirmando a natureza de obrigação natural do 100

CAIXA ECONÔMICA FEDERAL. Relatório A Sorte em Números (2014), Brasília, 2014, p. 33-34. Idem. 102 “É inconstitucional a lei ou ato normativo Estadual ou Distrital que disponha sobre sistemas de consórcios e sorteios, inclusive bingos e loterias”. 103 Exemplifica-se: STJ – Recurso Especial n. 54.716/PR, 5a Turma, Rel. Min. Assis Toledo – j. 09/11/1994; STF – Recurso Extraordinário n. 608.425/MG, Rel. Min. Ayres Britto, j. 22/06/2010. 101

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débito, mesmo que contraído em bingo autorizado (mas, precariamente), e a causalidade do título a ele vinculado. Transcreve-se a ementa: “RECURSO ESPECIAL. CIVIL. DÍVIDA DE JOGO. CASA DE BINGOS. FUNCIONAMENTO COM AMPARO EM LIMINARES. PAGAMENTO MEDIANTE CHEQUE. DISTINÇÃO ENTRE JOGO PROIBIDO, LEGALMENTE PERMITIDO E TOLERADO. EXIGIBILIDADE APENAS NO CASO DE JOGO LEGALMENTE PERMITIDO, CONFORME PREVISTO NO ART. 815, § 2º DO CÓDIGO CIVIL. 1. Controvérsia acerca da exigibilidade de vultosa dívida de jogo contraída em Casa de Bingo mediante a emissão de cheques por pessoa diagnosticada com estado patológico de jogadora compulsiva. 2. Incidência do óbice da Súmula 284/STF no que tange à alegação de abstração da causa do título de crédito, tendo em vista a ausência de indicação do dispositivo de lei federal violado ou objeto de divergência jurisprudencial. 3. "As dívidas de jogo ou de aposta não obrigam a pagamento" (art. 814, caput), sendo que "o preceito contido neste artigo tem aplicação, ainda que se trate de jogo não proibido, só se excetuando os jogos e apostas legalmente permitidos." (art. 814, § 2º, do Código Civil). 4. Distinção entre jogo proibido, tolerado e legalmente permitido, somente sendo exigíveis as dívidas de jogo nessa última hipótese. Doutrina sobre o tema. 5. Caráter precário da liminar que autorizou o funcionamento da casa de bingos, não se equiparando aos jogos legalmente autorizados. 6. Inexigibilidade da obrigação, na espécie, tratando-se de mera obrigação natural. 7. RECURSO ESPECIAL DESPROVIDO” (Superior Tribunal de Justiça, Recurso Especial n. 1.406.487/SP; 3a Turma; Data de Julgamento: 04/08/2015). Por outro lado, além da exigibilidade dos contratos de jogos legalizados104, cumpre destacar iterativo entendimento dos tribunais acerca da exigibilidade das obrigações quando contraídas em países que admitem a eficácia obrigacional plena do jogo e da aposta. Com fulcro em precedentes remotos e no disposto no artigo 9o da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro 105, admite-se a execução de títulos de crédito, carta rogatória de citação ou mesmo cobrança dos valores devidos, desde que no país de origem reconheça-se o jogo ou a aposta como obrigação perfeita. Exemplifica-se: “Embargos à execução de título extrajudicial – Notas promissórias emitidas no exterior para custeio de jogos em cassino localizado no Uruguai. Embargos à execução – Alegada vedação de cobrança por dívida de jogo (art. 814 Código Civil), falsidade das assinaturas dos títulos e excesso de execução – Descabimento – Notas promissórias executadas emitidas em país em que lícito a prática do jogo em cassino – Aplicação da regra do locus regit actum, pela qual as obrigações são qualificadas e regidas pela lei do país em que constituídas (art. 9º da LINDB) – Laudo grafotécnico concluindo pela assinatura do embargante nas notas promissórias – Excesso de execução não evidenciado – Sentença mantida – Recurso negado. (...)” (Tribunal de Justiça de São Paulo; Apelação n. 0015234-52.2013.8.26.0071; Rel. Des. Francisco Giaquinto; 13ª Câmara de Direito Privado; Data do julgamento: 27/05/2015). Por fim, registre-se que os jogos legalizados não ostentam significativa relevância nos Tribunais pátrios. Neste esteio, a partir da análise feita por VASCONCELOS 106 pode-se afirmar que as loterias reguladas pela CAIXA ECONÔMICA FEDERAL constituem serviço público de excelência e eficiência comprovadas; o que se confirma por simples pesquisa na jurisprudência dos maiores tribunais do país107.

9. CONCLUSÃO

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Superior Tribunal de Justiça, Recurso Especial n. 1.070.316/SP; 3a Turma – Rel. p/ Acórdão Min. MASSAMI UYEDA; Data de Julgamento: 09/03/2010. 105 “Art. 9o. Para qualificar e reger as obrigações, aplicar-se-á a lei do país em que se constituírem” (Lei n. 4.657, de 42). 106 Ob. Cit. 107 A pesquisa com a temática “loterias” e “Caixa Econômica Federal”, no endereço eletrônico do Tribunal Regional Federal a 3 a Região, apresenta apenas 27 (vinte e sete) resultados; na competência do Tribunal de Justiça de São Paulo, há discussões indenizatórias contra terceiros (v.g. jornais) que publicam resultados errados do sorteio, frustrando a expectativa de ganho dos apostadores – cf. Apelação n. 1000721-28.2014.8.26.0071, 10a Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Carlos Alberto Garbi – Data do Julgamento: 17.03.2015.

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Sem pretensão de esgotar a matéria, o presente ensaio buscou aprofundar a questão dos contratos de jogo e aposta, normalmente tratados de forma singela na doutrina 108 e na jurisprudência. Em conclusão, importante repisar a natureza de negócios jurídicos bilaterais, qualificados expressamente pelo Código Civil como contratos típicos. Apesar de incompreensão, o tratamento dos artigos 814 e seguintes do Código de 2002 tem natureza residual. Proscritos desde a antiguidade, os jogos ilícitos não são dotados de validade (art. 104, inciso II, do Código Civil) e tem a ação de restituição inviabilizada pelo artigo 883, do Código. Opostamente, os jogos legalizados – como as loterias da caixa e as apostas no turfe – encontram regulação específica, chancela do Estado e, portanto, são dotados de validade e eficácia plena. Resta, portanto, ao tratamento do artigo 814, caput, do Código Reale, as dívidas contraídas no jogo tolerado, definidas como obrigações naturais, ou como sustentam os alemães, obrigações imperfeitas. A previsão do Código Civil não abrange mais os contratos derivativos e apresenta semelhanças com diversas experiências jurídicas da família romano-germânica de direito. Noutros países, como no Brasil ao longo da história, o jogo e a aposta têm graus distintos de tolerância, sendo certo que, além do critério moral, prevalecem, hoje, no debate os aspectos econômicos, fiscais e sanitários. Apesar do risco que envolve a questão do “jogo patológico”, o sucesso arrecadatório e fiscalizatório das loterias no Brasil, serve de fundamento para justificar a regulação de outras espécies, precisamente para repelir outros efeitos deletérios da ilegalidade. A hipótese, todavia, exige alteração da lei (conforme projetos já em trâmite) e, até ulterior deliberação legislativa, inequívoco que os contratos de jogo e aposta (tolerados) constituem obrigação natural. Trata-se de exemplo de débito (Schuld), sem responsabilidade (Haftung), vedada a cobrança e a repetição dos valores pagos – exceto quando contraída no exterior, hipótese que a jurisprudência consagrou a exigibilidade com fundamento no artigo 9o, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro.

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Sem juízo sobre a densidade jurídica do tratamento, exemplifica-se a singeleza da matéria com a obra de Obrigações de BEVILAQUA, que relega ao Jogo e à Aposta duas páginas (Ob. Cit., p. 319-320).

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