Contribuições acerca do papel das ciências sociais na educação básica do campo: potencialidades e desafios da experiência do instrumental curricular e pedagógico da pedagogia da alternância

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I Seminário de Ciências Sociais e Educação Básica



O Sentido das Ciências Sociais na Educação Básica

06 e 07 de novembro de 2015

GT 1 – Currículo e Material Didático








CONTRIBUIÇÕES ACERCA DO PAPEL DAS CIÊNCIAS SOCIAIS NA EDUCAÇÃO BÁSICA DO
CAMPO: POTENCIALIDADES E DESAFIOS DA EXPERIÊNCIA DO INSTRUMENTAL CURRICULAR
E PEDAGÓGICO DA PEDAGOGIA DA ALTERNÂNCIA









Leonardo de Abreu Voigt
Centro Familiar de Formação por Alternância Colégio Estadual Agrícola Rei
Alberto I
Baixada de Salinas – Nova Friburgo - RJ



[email protected]












RESUMO

Partindo da histórica preponderância contínua e agravante das regiões
urbanas sobre as regiões rurais desde o desencadeamento da revolução
industrial e de consolidação da hegemonia capitalista, onde o resultado
inquestionável é seu respectivo impacto massivo tanto sobre o metabolismo
existente entre as sociedades humanas e os distintos meios naturais onde
estas se instalaram, como na unidade político-econômico-filosófica derivada
incidente sobre a história da educação e do currículo, propomos avançar
sobre a importância das ciências sociais na leitura das implicações deste
processo para os dilemas contemporâneos, e históricos, da educação do
campo.
Para tanto, nos baseamos na experiência curricular e pedagógica da
pedagogia da alternância, no sentido de refletir sobre os possíveis papéis
das ciências sociais na educação do campo, bem como salientar as
potencialidades curriculares e pedagógicas desta pedagogia, inclusive para
a educação urbana.


INTRODUÇÃO

O desenvolvimento da longa história humana, desde nossos antepassados
mais antigos até o presente, perpassa o que para nós seriam três grandes
fases da organização humana da satisfação de nossas necessidades. Estas
fases, ao se acumularem uma sobre a outra, historicamente, por vezes
complementar e por vezes competitiva, concorrem para explicar, até certo
ponto, o contexto da educação do campo no Brasil hoje, abrangendo tanto as
potencialidades como os desafios da pedagogia da alternância para a
formação integral da população rural.
Evolutivamente, de maneira bem resumida, iniciamos nosso percurso
humano como caçadores e coletores, predando e obtendo da natureza nossas
necessidades alimentares, medicinais, entre outras, forma essa que persiste
até a atualidade, em maior ou menor medida. Em seguida, desenvolvemos
variados sistemas agrícolas ao redor do planeta, dialogando com incontáveis
realidades naturais, através das quais o nomadismo foi, paulatinamente,
sendo substituído pelo sedentarismo produtivo, nunca o suplantando
completamente, mas se impondo hegemonicamente como fonte mais segura e
perene de obtenção de alimentos e toda sorte de produtos derivados da
natureza. Entretanto, é com o advento da Revolução Industrial, e seu
produto direto, o fenômeno urbano, que se impõe ao mundo, direto do coração
da dita "civilização", um modelo de existência homogeneizante,
padronizador, e que, todavia, deveria se adaptar a cada rincão do mundo
para, através dessa diversidade, uniformizar as trocas e valores econômicos
sob o signo da forma mercadoria, signo basilar do ascendente e pujante
sistema capitalista.
Da Europa, irradiou-se o "modelo definitivo" que, suportando todas as
adaptações pertinentes aos distintos contextos e às diferentes conjunturas
históricas, foi capaz de concentrar renda, riqueza e poder, assim como
promover pobreza, fome e penúria como nenhuma forma de organização humana
foi capaz de, se quer, se aproximar. E o seu desenvolvimento cotidiano,
apesar de ter conseguido uma pequena redução nos índices da fome no mundo
recentemente[1], não demonstra apontar para uma saída definitiva, quando
compreendemos que a situação da fome está intimamente ligada às condições
econômicas, e essas, por sua vez, seguem seu curso de concentração e
exclusão[2][3].
Karl Marx, todavia, já as denunciava em meados do século XIX, e,
apoiado numa vasta influência filosófica desde Epicuro até Hegel, passando
por tantos outros, desenvolveria sua teoria econômico-político-filosófica
aprofundando as reflexões sobre uma miríade de conceitos: "trabalho",
"capital", "forças produtivas", "matéria-prima", "meios de produção",
"modos de produção", "ideologia", "mais-valia", "metabolismo"
(stoffwechsel), "falha metabólica" (rift), "alienação", "fetichismo", entre
outros, compondo uma história de escritos altamente relevantes não só para
a compreensão do sistema capitalista, mas, principalmente, em se tratando
de seus aspectos metodológicos (Materialismo Histórico Dialético) e
políticos.
Todavia, para efeito deste trabalho, buscaremos trazer as
contribuições dos conceitos de "trabalho", "metabolismo" e "falha
metabólica" na sua compreensão da separação traumática e violenta entre
cidade e campo, produto direto da ascensão e hegemonia do sistema-mundo
capitalista. (WALLERSTEIN, 1996)
Este processo de desenvolvimento do sistema-mundo capitalista, apesar
de produzir suas contradições inclusive nas zonas urbanas, privilegiadas
pelo aporte de recursos e equipamentos derivados da evolução tecnológica e
científica que o acompanha, de forma inequívoca impôs ao campo, às zonas
rurais, os piores prejuízos e as maiores desgraças derivadas de seu
aperfeiçoamento técnico-político e seu amadurecimento concentrador. Se é
verdade que existem distintas zonas rurais, onde as mais bem equipadas,
mais bem dimensionadas e mais bem colocadas entre elas cheguem a atingir
uma produtividade bruta da ordem de 2.000.000 kg de equivalente-cereal por
trabalhador e por ano, ultrapassando ganhos de produtividade da indústria e
do setor de serviços, será igualmente verdadeiro constatar que a grande
maioria dos camponeses está muito longe dessa realidade, de modo que, por
mais contraditório que seja, três quartos dos indivíduos subnutridos do
mundo, no início do século XXI, pertenciam ao mundo rural. (MAZOYER e
ROUDART, 2010, p. 26 – 28)
Nesse sentido, entendemos que o surgimento da pedagogia da
alternância na França, na década de 30 do século passado, serviu como
importante instrumento de formação e autoformação técnica e humana para
enfrentar essa situação agravante, desenvolvendo uma estrutura curricular e
didático-pedagógica que valoriza as peculiaridades do campo e suas
distintas especificidades, bem como tende a favorecer a organização
política das comunidades atendidas.
Dessa forma, finalizarei apresentando as potencialidades e os
desafios desse instrumental curricular e pedagógico a partir de minhas
vivências e experiências no Centro Familiar de Formação por Alternância
Colégio Estadual Agrícola Rei Alberto I, situado em Baixada de Salinas,
região do município de Nova Friburgo, Rio de Janeiro. Mais ainda,
acreditamos que tal instrumental tem a possibilidade de trazer
contribuições, inclusive, para os desafios e as contradições dos modelos
pedagógicos eminentemente urbanos.

TODA HISTÓRIA TEM UM COMEÇO

Sabemos todos, de maneira mais ou menos consciente, que o processo
histórico de desenvolvimento natural tanto quanto humano operou sobre
distintas realidades, particularidades e especificidades, as quais
garantiram o que hoje conseguimos denominar largamente como a diversidade
constitutiva de nosso planeta. Seja biológica ou cultural, a diversidade
constitui riqueza hoje irrefutável de todo o sistema de vida planetário,
onde distintos continentes, biomas, paisagens, territórios, países,
estados, cidades, regiões, localidades, províncias, povoados, aldeias,
entre outros, serviram como suporte para a proliferação das imensas
variedades de vida natural e social.
Sobre as bases naturais fundamentais, as consequentes formas humanas e
animais de organização, exploração e cooperação transformaram o meio onde
viviam de forma a aumentar sua capacidade de suporte, assim como os
recursos disponíveis para seu próprio uso, aumentando sua própria valência
ecológica.
Muito além do que normalmente imaginamos, numerosos serão os animais
que constroem ambientes artificiais necessários ao seu desenvolvimento,
como o urbanismo coletivo dos castores e das abelhas, ou os sistemas de
criação e cultivo das térmitas, das formigas, entre outros. Chegam,
inclusive, ao ponto além da exploração de outras espécies por simples
predação, dedicando-se a transformarem o meio de maneira a criar condições
de vida artificiais que favorecem o desenvolvimento de espécies que elas
exploram, domesticando-as. (MAZOYER e ROUDART, op.cit. p. 55)
Todavia, é certo que a agricultura humana é bem diferente daquela das
formigas ou das térmitas. Diferentemente de outras espécies, nós não
nascemos cultivadores, nos tornamos cultivadores, e somente após o
refinamento de alguns bons milhões de anos.
Se o processo de hominização dos seres humanos se desenrola de
maneira contínua e complexa num processo evolutivo que perfaz, segundo a
teoria mais comumente aceita, entre 6 e 7 milhões de anos, desde o início
da nossa separação de outros primatas, será apenas nossa evolução mais
recente, o Homo Sapiens Sapiens, que nos colocará mais próximos de outras
espécies cultivadoras. Nesse momento histórico, entre 40.000 e 11.000 anos
antes de nossa era, surgirão os humanos atuais e modernos, pensadores e
sábios, aqueles e aquelas que, além de caçadores e coletores, passarão,
pouco á pouco, ao cultivo e à criação como formas de elevar sua valência
ecológica. (MAZOYER e ROUDART, op.cit. p. 57 – 70)
Apesar dos grandes debates em torno desse processo e as possíveis
subespécies que teriam composto essa épica aventura humana, importa-nos
nesse momento, de forma específica, pontuar que, apesar dessa longa
trajetória, será apenas entre 10.000 e 5.000 anos antes de nossa era que
algumas sociedades neolíticas começarão, com efeito, a semear plantas e
manter animais em cativeiro, "com vistas a multiplicá-los e utilizar-se de
seus produtos". Essas espécies especialmente escolhidas, selecionadas e
exploradas serão, então, domesticadas, fato esse que, de maneira
contundente, transforma as antigas sociedades de predadores e coletores em
também sociedades de cultivadores e criadores. (idem)
Desde o início da história desses sistemas agrários, a evolução
quantitativa da população humana é marcante, tendo como condições básicas a
revolução agrícola do neolítico, o desenvolvimento das civilizações
hidroagrícolas, a revolução agrícola da idade média e as revoluções
agrícolas dos tempos modernos (primeira revolução agrícola, segunda
revolução agrícola, revolução verde e revolução agrícola contemporânea).
(MAZOYER e ROUDART, op.cit. p. 89)
Porém, é no curso dessa trajetória, entre a primeira e a segunda
revoluções agrícolas da modernidade, que a "falha metabólica irreparável"
entre humanos e natureza se anuncia de modo profético e veemente. Com o
aumento da demanda de produtos agrícolas em decorrência da industrialização
e da urbanização, frutos da primeira revolução industrial, e a
superpopulação direcionada por este processo, tanto quanto necessária ao
seu triunfo (enquanto geradora de "exército de mão-de-obra de reserva" e
sua consequente baixa no preço do trabalho nas cidades pelo excesso de
oferta), temos o início da separação antagonista, traumática e degradante
entre cidade e campo, entre o urbano e o rural, entre práticas urbanas e
práticas rurais.

FALHA METABÓLICA DA RELAÇÃO CAPITALISTA ENTRE CIDADE E CAMPO

Como apresentado por John Bellamy Foster em "A ecologia de Marx:
materialismo e natureza" (2005), Karl Marx em O Capital – crítica da
economia política (1867), consegue manejar, de maneira inovadora, a
integração da sua concepção materialista de natureza com sua concepção
materialista de história, tendo como elementos mediadores fundamentais os
conceitos de "trabalho", "metabolismo" (stoffwechsel) e "falha metabólica"
(rift). (FOSTER, 2005, p. 201)
No livro primeiro de O Capital, intitulado O processo de produção do
capital, em sua seção III nomeada A produção da mais-valia absoluta, no seu
capítulo V – Processo de trabalho e processo de valorização, Marx delimita
o que considera ser o "processo de trabalho" independentemente de qualquer
forma social determinada, ou seja, o trabalho em seu sentido ontológico, e
que estabelece, de forma nítida, a relação metabólica entre toda atividade
humana e as bases fundamentais naturais sobre as quais esse trabalho é
empregado.
Dirá Marx que:
"Antes de tudo, o trabalho é um processo entre o
homem e a Natureza, um processo em que o homem, por sua
própria ação, media, regula e controla seu metabolismo com
a Natureza. Ele mesmo se defronta com a matéria natural
como uma força natural. Ele põe em movimento as forças
naturais pertencentes a sua corporalidade, braços e pernas,
cabeça e mão, a fim de apropriar-se da matéria natural numa
forma útil para sua vida. Ao atuar, por meio desse
movimento, sobre a Natureza externa a ele e ao modificá-la,
ele modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza. Ele
desenvolve as potências nela adormecidas e sujeita o jogo
de suas forças a seu próprio domínio" (MARX, 1996, 297)

Contudo, antes que possamos cair em qualquer tentativa de ver nos
escritos de Marx alguma relação de polaridade entre os seres humanos e a
natureza, como se houvesse alguma possibilidade de sua existência separada,
o referido autor, construindo as bases de seu projeto de conhecimento, já
explicava no Manuscritos econômicos e filosóficos de 1844 que "[O] homem
vive da natureza, isto é, a natureza é o seu corpo, e ele precisa manter
com ela um diálogo continuado para não morrer. Dizer que a vida física e
mental do homem está vinculada à natureza significa simplesmente que a
natureza está vinculada a si mesma, pois o homem é parte da natureza".
(MARX, 1974, p. 328 apud. FOSTER, op.cit. 223, grifos do autor)
Assim, do modo mais simples possível, o processo de trabalho envolverá
uma "atividade orientada a um fim", ou seja, a sua teleologia, os objetos
sobre os quais esse trabalho age e, finalmente, os meios através dos quais
essa operação será possível. Desse modo, Marx avançará explicando os
conceitos de matéria-prima, meio e objeto de trabalho, que serão
compreendidos em geral como meios de produção, as noções de valor de uso,
valor de troca, trabalho produtivo, de forma que, quando colocados em
perspectiva histórica e evolutiva, apontarão para um determinado modo de
produção, característico de determinada forma de gregariedade humana em
determinado momento histórico e em determinada região, em nosso caso, o
sistema-mundo capitalista e sua hegemonia globalizante.
Em última análise:
"O processo de trabalho, como o apresentamos em seus
elementos simples e abstratos, é atividade orientada a um
fim para produzir valores de uso, apropriação do natural
para satisfazer as necessidades humanas, condição universal
do metabolismo entre o homem e a Natureza, condição natural
eterna da vida humana e, portanto, independente de qualquer
forma dessa vida, sendo antes igualmente comum a todas as
suas formas sociais." (MARX, op.cit. p.303, grifos nossos.)

Na sua versão capitalista, focada na produção e comercialização de
mercadorias, a gregariedade que é produzida pela aliança entre a
congregação de enormes contingentes populacionais, de maneira direcionada e
violentamente forçada, nos grandes centros urbanos; e a grande propriedade
fundiária redutora da população agrícola a um mínimo sempre declinante,
provoca uma "falha irreparável no processo interdependente do metabolismo
social". Esta, por sua vez, perturba "a interação metabólica entre o homem
e a terra", fazendo com que "a população urbana tenha uma preponderância
sempre crescente". (MARX, Capital, vol. 3, p. 949-50 e vol. 1, p. 637-38
apud FOSTER, op.cit. p. 219)
Nesse sistema, a apropriação de parte significativa do trabalho
do trabalhador pelos empresários capitalistas impunha à classe trabalhadora
degradações materiais e espirituais severas. Friedrich Engels foi um dos
primeiros a fornecer uma análise detalhada das condições de vida dos
trabalhadores, apontando no seu A condição da classe trabalhadora na
Inglaterra (1845) as condições de saúde pública de sua época, com base em
relatórios de médicos e de inspetores das fábricas.
Usando ainda dados demográficos das autoridades de saúde pública,
Engels foi capaz de afirmar, de forma pioneira, que os índices de
mortalidade eram inversamente proporcionais à classe social. Desde a falta
de ventilação das casas dos trabalhadores, passando pelos efeitos da falta
de tratamento dos dejetos humanos e animais, a poluição severa da atmosfera
e da água dos apartamentos, pátios e ruas das camadas pauperizadas, o alto
índice de doenças infecciosas, a superpopulação, as deformidades ósseas
causadas pelo raquitismo, os problemas ortopédicos, visuais, o
envenenamento por chumbo, enfim, uma gama de violações das condições
mínimas básicas para uma vida saudável foram relatadas por Engels.
Ilustrando, ainda, com uma ironia sarcástica, o desequilíbrio gritante
dessas condições, afirmará que "a melhor parte do arranjo é que os membros
da aristocracia endinheirada podiam fazer o caminho mais curto, cruzando
todos os bairros trabalhadores até chegar ao seu local de trabalho, sem
jamais se dar conta de estar no meio daquela miséria encardida à sua
direita e à sua esquerda". (ENGELS, 1984, 308 – 317, apud. FOSTER,
op.cit.p. 158 – 159)
Nesse sentido, a indústria de larga escala e a agricultura de larga
escala feita industrialmente concorrem para produzir o mesmo efeito.
Enquanto uma "deixa resíduos e arruína o poder do trabalho e portanto o
poder natural do homem" a outra "faz o mesmo com o poder natural do solo",
de modo que as duas se unem em seu desenvolvimento, já que "o sistema
industrial aplicado à agricultura também debilita ali os trabalhadores, ao
passo que, por seu lado, a indústria e o comércio oferecem à agricultura os
meios para exaurir o solo". (idem)
Todavia, é a separação entre cidade e campo, para Marx e Engels, que
consistirá um dos principais produtos do desenvolvimento do sistema
capitalista. Nas suas próprias palavras, como apontado por Foster, "a
divisão do trabalho dentro de uma nação leva primeiro à separação entre
trabalho industrial e comercial e trabalho agrícola, e daí à separação de
cidade e campo e ao conflito dos seus interesses". Para os autores, "a mais
importante divisão entre trabalho material e mental", "a contradição entre
cidade e campo, só pode existir no âmbito da propriedade privada. Ela é a
mais crassa expressão da sujeição do indivíduo à divisão do trabalho, a uma
atividade definida à qual ele é forçado – uma sujeição que transforma um
homem num animal restrito à cidade, outro num animal restrito ao campo, e
recria diariamente o conflito entre os seus interesses". Nesse sentido, só
restaria afirmar que "a abolição da contradição entre cidade e campo" é
"uma das primeiras condições da vida comunal". (FOSTER, op.cit. p. 168)
Durante o avançar desse processo, a produção agrícola observava suas
concentrações energéticas, na forma de alimentos e outros produtos, se
deslocarem dos campos para as cidades. De lá, estas seguiam,
irracionalmente, como excrementos sólidos e líquidos, para os rios e para o
mar, mediante grandes investimentos arquitetônicos, negando a possibilidade
de se retornar ao solo, de forma orgânica, os nutrientes extraídos deste no
formato de alimentos e outros produtos. Constituía-se aí um dos pontos-
chave dessa falha metabólica, como apontou Justus von Liebig no seu Letters
on the subject of the utilization of the municipal sewage (Cartas sobre o
assunto da utilização do esgoto municipal, tradução livre do autor) de
1865. Entretanto, em 1840, Liebig, no seu Organic chemistry in its
application to agriculture and physiology ("Química orgânica e sua
aplicação para a agricultura e a fisiologia", conhecido como Agricultural
chemistry, "Química agrícola". Traduções livres do autor), já havia provido
a primeira explicação convincente da história sobre o papel dos nutrientes
do solo, tais como nitrogênio, fósforo e potássio, no crescimento das
plantas. Tal descoberta foi fundamental para refutar as teorias anteriores,
propagadas principalmente por Malthus e Ricardo, sobre as supostas
condições fixas e imutáveis da fertilidade dos solos, servindo como base,
tanto para o próprio Liebig como para Marx, criticarem a "natureza
insustentável da agricultura capitalista". (FOSTER, op.cit, p. 212 - 213)
Finalmente, nas palavras de Marx:

"[T]odo progresso na agricultura capitalista é um progresso
da arte de roubar, não só do trabalhador, mas do solo; todo
progresso no aumento da fertilidade do solo por um
determinado tempo é um progresso em direção à ruína das
fontes mais duradouras dessa fertilidade... A produção
capitalista, portanto, só desenvolve a técnica e o grau de
combinação do progresso social da produção solapando
simultaneamente as fontes originais de toda a riqueza – o
solo e o trabalhador." (MARX, vol. 1, p. 637-38 apud
FOSTER, op.cit. p. 219 – 220)

A PEDAGOGIA DA ALTERNÂNCIA E A EDUCAÇÃO DO CAMPO FRENTE À HEGEMONIA URBANA

A evolução dramática da urbanização e da ampliação de seus domínios,
em contraposição ao campo, produziu não apenas a conquista efetiva de
territórios cada vez maiores por parte das cidades como também,
principalmente, a justificação racional e política necessária para sua
consequente supervalorização cultural. Nesse sentido, a escrita
desempenhará papel importante, e a cidade, como seu local de origem,
concentrará documentos, ordens, inventários, cobrança de taxas etc. Nas
palavras de Lefebvre, "ordem e ordenação, poder". (LEFEBVRE, 1999, p. 19)
Soma-se a isso o pensamento evolucionista mecanicista, que
compreendia a vida urbana como secretada, evoluída, a partir dos campos
cultivados, da aldeia e da civilização camponesa, num movimento único e
indiscutível rumo ao "progresso", e teremos, grosso modo, a manifestação da
ideologia da superioridade evolutiva urbana e citadina sobre o "atraso" do
mundo rural. (LEFEBVRE, op.cit. p. 18)
Tal fenômeno, impondo-se de maneira tanto colonial quanto
imperialista, acabou por produzir, de forma quase universal, a
naturalização da superioridade urbana sobre as regiões rurais,
subvalorizando não só os produtos do trabalho agrícola e o trabalho manual
em geral, mas principalmente um largo conjunto de conhecimentos, costumes,
crenças e tradições.
Na França, em meados da década de 30 do século passado, o processo de
industrialização avançava firmemente, do mesmo modo que as instituições
pedagógicas e as práticas aliadas desse projeto. Buscando ir contra essa
homogeneização pedagógica em torno, predominantemente, dos valores urbanos,
de um saber conceitual, não problematizado politicamente, distante da
realidade próxima, e de caráter majoritariamente instrumental, a Pedagogia
da Alternância tem início como demanda de "famílias rurais em fornecer a
seus filhos uma formação profissional, geral e humana condizentes com a
realidade local, sem que os educandos precisassem abandonar o campo para
continuar seus estudos". (DÁLIA, 2011, p. 14)
Assim, na localidade de Sérignac-Péboudou, formou-se, em 1935, uma
associação de pais envolvidos com o sindicato local de trabalhadores
rurais, e que, junto com o sacerdote da comunidade, monitor pedagógico do
projeto, Padre Abbé Granereau, fundou, 2 anos mais tarde, a Casa Familiar
Rural de Lauzun (Maison Familiale Rurale – MFR). (DÁLIA e FRAZÃO, 2011, p.
137)
De lá para cá, essa pedagogia, após ter sido reconhecida pelo governo
francês em 1960 e constituido-se nos Centros Familiares de Formação por
Alternância (CEFFA´s), teve uma vertiginosa expansão. Após seu
estabelecimento na Europa (Itália, Espanha e Portugal), no continente
Africano, na América do Sul, no Caribe, na Polinésia, na Ásia, e,
finalmente, na província de Quebec, no Canadá (GIMONET, 1999, apud SOUZA,
2008), chega a aproximadamente 1.300 CEFFA´s espalhados por todo o mundo,
sendo 260 só no Brasil, ocupando 23 estados brasileiros. (DÁLIA, op.cit. p.
18)
De forma geral, têm estreita relação com o trabalho rural local, com
a profissionalização, associando disciplinas do núcleo comum às do núcleo
técnico, assim como as formações profissional e geral, integrando, ainda,
através de seus instrumentos pedagógicos, os meios social, profissional e
familiar. Como metodologia fundamental, quatro pilares sustentariam a
Pedagogia da Alternância: associações locais, que envolvem membros da
escola e da comunidade; Pedagogia da Alternância, adaptada a cada meio;
formação integral dos estudantes; e promoção do desenvolvimento
sustentável. (DÁLIA, op.cit. p. 18) Outra forma de apresentar esse aparato
pedagógico, como apresentará Jean-Claude Gimonet, é salientar: a) A
primazia da experiência sobre o programa; b) A articulação dos tempos e dos
espaços de formação; c) Um processo de alternância num ritmo em três tempos
(meio – CEFFA – meio); d) O princípio da formação´profissional e geral
associadas; e) O princípio de cooperação, de ação e de autonomia e; f) A
associação dos pais e mestres de estágios profissionais como parceiros e co-
formadores. (GIMONET, 2007, p. 28 – 31, apud DÁLIA, op.cit. p. 23)
Dialogando com Paulo Freire, a Pedagogia da Alternância
organizará seu ensino em torno de temas geradores, temáticas significativas
que funcionam como fios condutores do conteúdo programático que se propõe
investigar, promovendo a compreensão do mundo através de cada disciplina.
Nas palavras de Freire, "Investigar o tema gerador é investigar o pensar
dos homens referido à realidade, é investigar seu atuar sobre a realidade,
que é a sua práxis", estabelecendo a educação como prática da liberdade.
(FREIRE, 2005, p. 115, apud. DÁLIA, op.cit. p. 26)
Praticando a alternância real ou integrativa, aquela que "realiza uma
verdadeira interação entre os vários momentos e espaços de formação,
apoiando-se em atividades reflexivas sobre a experiência e colocando o
alternante como ator de sua própria formação" (GIMONET, op.cit p. 120, apud
DÁLIA, op.cit. p. 32), o Centro Familiar de Formação por Alternância
Colégio Estadual Agrícola Rei Alberto I, situado em Baixada de Salinas,
Nova Friburgo (RJ), forma jovens em alternância desde o ano de 1994, em
parceria com o Instituto Bélgica – Nova Friburgo (IBELGA). De 2002 em
diante dispõe do ensino médio técnico, contando com o cursos técnicos de
Agropecuária, e, mais recentemente, de Administração. (DÁLIA, op.cit. p. 19
– 20)
Como previsto pela estrutura básica da Pedagogia da Alternância
(P.A.), temos hoje um conjunto de ferramentas e atividades aplicadas
nacionalmente, tendo a organização básica composta de: Plano de Estudo
(P.E.); Folha de Observação (F.O.); Colocação em Comum (C.C.); Atividades
de Retorno; Visitas de Estudo; Intervenções Externas; Caderno da Realidade
(C.R.); Caderno Didático (C.D.); Tutoria; Serões de Estudo; Caderno de
Acompanhamento da Alternância; Visita às famílias; Estágios; Projeto
Profissional do Jovem (P.P.J.); e Avaliação.
Apesar da interdependência de todas essas ferramentas pedagógicas,
segundo Dália, em pesquisa realizada pelo IBELGA, o Plano de Estudos foi
apontado pelos professores – monitores dos CEFFA´s Fluminenses como o
instrumento mais importante da P.A. (DÁLIA, op.cit. p. 34)
Nas palavras de Dália, eis um breve resumo do Plano de Estudos e suas
atividades correlatas:
"O Plano de Estudo é um roteiro de pesquisa elaborado por
educandos e orientado pela equipe de tutores daquele grupo,
a partir do tema e do eixo gerador. Ele compreende
um guia para uma entrevista, que deve ser realizada com a
família ou com membros da comunidade, de acordo com a
necessidade de cada P.E. Seu objetivo é traçar um perfil
local em relação a um determinado assunto, apontado pela
comunidade escolar como de extrema importância para o seu
próprio desenvolvimento e/ou o do educando. Esse
diagnóstico é elaborado na Colocação em Comum, que é o
momento no qual os alternantes expõem, para toda a turma, o
resultado de sua pesquisa, organizada em textos individuais
e previamente apreciada pelo tutor. Expostos os dados
dessas entrevistas, elabora-se um texto único, chamado
Síntese, que é o resultado da pesquisa realizada por toda a
turma. O tempo destinado a esse processo e a sua
periodicidade varia de acordo com a realidade de cada
escola." (DÁLIA, op.cit. p. 33 – 34)

Tendo em vista que, recentemente, no Exame Nacional do Ensino Médio
(ENEM) de 2014, as escolas famílias agrícolas ficaram entre as melhores
instituições privadas do país que atenderam alunos de nível socioeconômico
baixo ou muito baixo, ou seja, os mais vulneráveis socialmente, concluímos
definitivamente que estas escolas certamente tem bastante o que
compartilhar de experiências positivas com as escolas mais tradicionais
urbanas, seus professorxs, alunxs, pais, mães e responsáveis.
Ao se deparar com esses dados, o mesmo pensou, em agosto de 2015, o
então ministro da Educação Renato Janine, dizendo: "Não sabíamos da
grandeza do trabalho delas [das escolas familiares agrícolas] e é
interessante quando uma pesquisa mostra algo inesperado, porque normalmente
elas mostram confirmações do que já existe ". Conclui o então ministro
dizendo que o MEC daria mais visibilidade a essas escolas e iria atrás de
suas experiências para "aprender com elas"[4].
Outra informação que recebemos recentemente, e que se soma a esses
resultados positivos, apesar de ainda não termos tido contato com os
materiais oficiais, fala sobre o fato de nosso colégio ter ficado com a
maior nota média do estado na parte de redação do SAERJ. Ainda, tal
resultado foi atribuído, por colegas mais experientes, ao trabalho que
desenvolvemos com o P.E., e o quanto este dispositivo pedagógico seria
significativo e eficaz no desenvolvimento das capacidades de escrita e
argumentação dos educandos.

CONCLUSÃO

Como resposta à hegemonia urbana imposta cotidiana e paulatinamente
pelo desenvolvimento e evolução do sistema-mundo capitalista, as formas de
gregariedade rurais, de predominância agrícola, de origens camponesas,
lograram desenvolver uma forma consistente e, simultaneamente, adaptativa,
de educação do campo, mesclando de forma unitária as formações geral e
profissional.
A Pedagogia da Alternância, por basear-se majoritariamente em
relações íntimas com as associações e sindicatos locais, tende a fortalecer
as organizações políticas locais, aumentando o debate público sobre os
projetos, o papéis, e os desafios das escolas do campo.
Tendo como foco uma formação humanista, integral e produtiva,
buscando um olhar mais curioso e atento para a própria realidade, a
Pedagogia da Alternância, através do estímulo ao melhoramento de práticas
agrícolas desempenhadas pelas famílias ou o desenvolvimento de outros
estudos técnicos através do Projeto Profissional do Jovem (PPJ), busca
promover um desenvolvimento territorial sustentável, e, prioritariamente,
endógeno.
Dentre os aspectos principais da Pedagogia da Alternância que
julgamos dignos de nota e reflexão para contribuição das propostas
tradicionais de educação urbana, destacamos as seguintes: significativos
momentos dialógicos, construindo propostas coletivas de investigação
baseadas em temas geradores construídos coletivamente em reuniões de pais e
professores; a preocupação com o lado afetivo do educando e com sua
estrutura familiar, colocando a necessidade de visitar as famílias dos
educandos e, efetivamente, conhecê-las, como parte da jornada de trabalho
do professor, portanto, como atividade pedagógica; a integração das
propostas de formação geral e profissional, permitindo ao educando já
concluir o ensino médio com capacidade crítica e de escolha, além de
qualificação e experiência produtiva; e, por fim, os estímulos à cooperação
e à autonomia como produto do entrelaçamento de todos os elementos didático-
pedagógicos da Pedagogia da Alternância, produzindo uma metodologia
poderosa e cativante.





BIBLIOGRAFIA

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de língua portuguesa no currículo integrado da pedagogia da alternância,
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[1] http://nacoesunidas.org/relatorio-da-onu-fome-diminui-mas-ainda-ha-805-
milhoes-de-pessoas-no-mundo-com-desnutricao-cronica/, acessado em
17/10/2015.

[2]
http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/01/150119_riquezas_mundo_lk,
acessado em 17/10/2015.

[3] http://exame.abril.com.br/mundo/noticias/desnutricao-afeta-2-bilhoes-de-
pessoas-no-mundo-2, acessado em 17/10/2015.

[4] http://www.ebc.com.br/educacao/2015/08/escolas-familiares-agricolas-
estao-entre-melhores-instituicoes-privadas-do-pais, acessado em 13/09/2015.
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