Contribuições metodológicas à demografia histórica brasileira.

September 27, 2017 | Autor: I. Costa | Categoria: História do Brasil, Demografia Histórica
Share Embed


Descrição do Produto

CONTRIBUIÇÕES METODOLÓGICAS À DEMOGRAFIA HISTÓRICA BRASILEIRA



Iraci del Nero da Costa




Como sabido, a demografia histórica brasileira espelhou-se, sobretudo, nas
técnicas e modelos propostos pelos estudiosos franceses, não lhe sendo
estranho, ademais, o contributo de autores ingleses. Não obstante, é
possível identificar algumas expressivas contribuições metodológicas ao seu
desenvolvimento entre nós e que se devem a pesquisadores brasileiros ou a
estrangeiros que se têm devotado ao estudo de nossa formação populacional.
De início, como não poderia deixar de ser, o esforço maior foi dirigido no
sentido de se adequarem as aludidas técnicas e modelos à realidade
brasileira. Num segundo momento os autores, ainda no âmbito daquela
necessária adaptação, passaram a dedicar atenção às peculiaridades dos
segmentos básicos de nossas populações pretéritas e aos temas que se
impunham dadas as características próprias de uma sociedade fundada no
trabalho compulsório e estruturada sob a égide da exploração colonial, a
qual se embasava nas práticas mercantilistas. Nos dias correntes vivemos os
inícios de uma terceira fase, a qual, a nosso juízo, virá a marcar-se pela
busca de teorização capaz de reunir num todo orgânico e harmônico os
conhecimentos hauridos em ricas e diversificadas fontes empíricas.

Passemos, pois, em revista, cada um destes momentos, os quais, diga-se,
entrecruzam-se e ainda não se viram esgotados em todas suas dimensões.

Com respeito à primeira fase acima referida, cabe realce a três trabalhos
que reputo fundamentais. A cidade de São Paulo, de Maria Luíza Marcílio,
representou passo decisivo na adequação, à nossa realidade, dos
procedimentos estabelecidos pelos demógrafos historiadores europeus.
Segundo Michel Fleury e Louis Henry -- que prefaciaram a edição em francês
(1968), com respectiva tradução para o português (1974) -- "o trabalho que
nos oferece hoje a professora Marcilio resulta da adaptação às condições
que existiram no Brasil, de 1750 a 1850, dos métodos que temos preconizado
e depois aplicado, há já mais de dez anos, para o estudo das populações
antigas da França", e acrescentam: "é evidente que uma simples transposição
de procedimentos utilizáveis para a Europa teria sido inoportuno, senão
impossível" (MARCÍLIO, M. L., 1974a, p. XI). Ademais, como notam os
prefaciadores, a autora "correlacionou, com muita felicidade, o estudo da
população -- objeto próprio de sua tese -- à Geografia, à História e à
Economia" (MARCÍLIO, M. L., 1974a, p. XI), dando início, assim, para o caso
brasileiro, a uma perspectiva analítica que, posteriormente, viria a ser
intensamente explorada pelos demógrafos historiadores emergentes e que se
revelou das mais férteis.

Outro trabalho de relevância na linha de adaptação de métodos às condições
específicas das fontes documentais brasileiras foi efetuado por Louis Henry
com a colaboração de Altiva Pilatti Balhana; referimo-nos ao livro Técnicas
de análise em demografia histórica, o qual resultou de curso ministrado
pelo autor em Curitiba, no verão de 1974. Segundo A. P. Balhana, que a
prefacia, a obra foi elaborada "a partir das notas de aula, do autor e dos
alunos do curso, as quais foram por mim reunidas, traduzidas e ordenadas em
redação preliminar; foi a mesma posteriormente revisada e ampliada pelo
autor [...] grande parte dos exemplos que aparecem no presente volume
constituem algumas das inúmeras soluções encontradas pela criatividade de
Louis Henry para resolver os desafios, impostos à sua inteligência pela
diversidade da documentação de base, utilizável em demografia histórica,
existente no Brasil" (HENRY, L., 1977, p. 4-5). Ainda no quadro deste
processo inicial de adequação, cumpre lembrar a série de trabalhos
desenvolvidos no Paraná, estudos estes que cobriram um leque diferenciado
de fontes primárias. Além disto, como é notório, quase todos os
pesquisadores da área tiveram de, em maior ou menor escala, enfrentar os
problemas decorrentes daquela irremissível adaptação; sem embargo, cremos
que as observações acima postas bastam para situar a questão em tela. O
terceiro trabalho a lembrar, devemo-lo a M. L. Marcílio e Luís Lisanti
Filho; trata-se do artigo intitulado Problèmes de l'histoire quantitative
du Brésil: métrologie et démographie, publicado em 1973. Nele, os autores
oferecem, com base na literatura internacional, "uma primeira classificação
das fontes demográficas disponíveis para a Demografia brasileira"
(MARCÍLIO, M. L., 1977, p. 20); tema este que voltaria a receber a atenção
daquela autora (MARCÍLIO, M. L., 1974b).

O privilegiamento dos segmentos populacionais característicos de nossa
sociedade colonial abre o segundo momento acima referido. A preocupação com
este tema, que já se nota nos trabalhos pioneiros da demografia histórica
brasileira, viu-se reforçada nos artigos intitulados Brancos, pardos,
pretos e índios em Sergipe: 1825-1830 (MOTT, Luiz R. B., 1974), Marriage
and the family in colonial Vila Rica (RAMOS, D., 1975), City and country:
the family in Minas Gerais, 1804-1838 (RAMOS, D., 1978) e Os homens livres
de cor na sociedade escravista brasileira (KLEIN, H. S., 1978). Não
obstante, entendo que o aludido privilegiamento só foi definitivamente
explicitado e assumido no trabalho Vila Rica: população (1719-1826): "a
massa de escravos, os forros e os demais livres revelaram, de per si,
comportamentos particulares, formando corpos populacionais autônomos em
relação a vários parâmetros demográficos e, ao mesmo tempo, apresentaram
respostas diversas quanto às flutuações da atividade econômica, tanto no
curto como no longo prazo" (COSTA, I., 1979, p. 4).

Esta segunda fase marca-se, também, pelo estudo sistemático da estrutura de
posse de escravos. Embora tangencialmente, esta questão foi colocada em
Estrutura demográfica das fazendas de gado do Piauí-ColoniaL um caso de
povoamento rural centrifugo (MOTT, Luiz R. B., 1978). Com o trabalho
pioneiro de Francisco Vidal Luna (1981), ao qual seguiu-se artigo de Stuart
B. Schwartz (1982), o tema autonomizou-se e seu estudo conheceu tratamento
metodológico original; tema, aliás, com respeito ao qual ainda estão a se
dar avanços metodológicos nos dias correntes (Cf. COSTA, I. & NOZOE, N. H.,
1989).

Ainda nesta segunda fase, deu-se a incorporação da "teoria do ciclo de
vida" aos estudos referentes à família brasileira (METCALF, A. C., 1983) e
à própria estrutura de posse de escravos (COSTA, I., 1983).

Relativamente à família escrava foram propostos novos cortes (SLENES, R.
W., 1987) dos quais decorreu grande número de trabalhos que alargaram em
muito nosso conhecimento do fenômeno.

Às questões concernentes à categorização sócio-profissional e à elaboração
de uma classificação das atividades econômicas adequada às especificidades
da sociedade colonial brasileira também se tentou oferecer respostas
originais (COSTA, I., & NOZOE, N. H., 1987).

No que tange à crítica sistemática das fontes, é preciso reconhecer a
modéstia dos avanços alcançados. Afora alguns elementos dispersos
encontráveis em quase todos os trabalhos de demografia histórica
desenvolvidos entre nós, pouquíssimo se fez. Destarte, nesta área, a nosso
juízo, apenas dois trabalhos merecem menção especial: a tese de
doutoramento de Ana Maria de Oliveira Burmester (1981), ainda não
publicada, e o artigo intitulado A consistência das listas nominativas da
capitania de São Pauto: um estudo de caso (FERNANDEZ, R. V. G., 1989),
publicado recentemente. Àquela autora devemos, ainda, trabalho no qual
apresenta uma contribuição metodológica para estimativas de mortalidade da
população livre (BURMESTER, A. M. O., 1986); à estimativa da longevidade de
escravos, por seu turno, dedicou-se Pedro Carvalho de Mello (1983).

A abrir o terceiro momento aludido na abertura destas notas estão duas
obras nas quais denuncia-se a preocupação de se construir uma história
regional que, realçando o elemento demográfico, seja capaz de integrar num
todo harmônico as distintas dimensões da vida em comunidade. Stuart B.
Schwartz (1985) ocupou-se da Bahia e Maria Luíza Marcílio (1986) debruçou-
se sobre o evolver de um núcleo paulista. As implicações metodológicas e
teóricas da postura assumida por estes autores ainda não estão plenamente
estabelecidas mas, certamente, serão rapidamente enfrentadas, pois há um
número expressivo de pesquisas em andamento nas quais denota-se perspectiva
analítica similar à dos supracitados estudos.


* *
*

Estas notas restariam mais imperfeitas se em seu fecho não fizéssemos
alusão explícita a sua não completitude, a qual, frise-se, deve-se, tão-
somente, à ignorância do autor. Dixi.


Referências Bibliográficas


BURMESTER, Ana Maria de Oliveira. Population de Curitiba au XVIIle. siècle.
Montréal, Université de Montréal, tese de doutoramento1 1981, mimeografado.

BURMESTER, Ana Maria de Oliveira. Contribuição metodológica para
estimativas de mortalidade: Curitiba, século XVIII. Brasil: história
econômica e demográfica. São Paulo, IPE-USP, 1986, p. 295-308.

COSTA, Iraci del Nero da. Vila Rica: população (1719-1826). São Paulo, IPE-
USP, 1979, 268 p.

COSTA, Iraci del Nero da. Nota sobre ciclo de vida e posse de escravos.
História: Questões e Debates, Curitiba, APAH, 4(6): 121-127, 1983.

COSTA, Iraci del Nero da & NOZOE, Nelson Hideiki. Economia colonial
brasileira: classificação das ocupações segundo ramos e setores. Estudos
Econômicos, São Paulo, IPE-USP, 17(1): 69-81,1987.

COSTA, Iraci del Nero da & NOZOE, Nelson Hideiki. Elementos da estrutura de
posse de escravos em Lorena no alvorecer do século XIX. Estudos Econômicos.
São Paulo, IPE-USP, 19(2): 319-345,1989.

FERNANDEZ, Ramón V. Garcia. A consistência das listas nominativas da
capitania de São Paulo: um estudo de caso. Estudos Econômicos. São Paulo,
IPE-USP, 19(3):477-496, 1989.

HENRY, Louis. Técnicas de análise em demografia histórica. Curitiba,
Universidade Federal do Paraná, 1977,165 p.

KLEIN, Herbert S. Os homens livres de cor na sociedade escravista
brasileira. Dados: Revista de Ciências Sociais. Rio de Janeiro, IUPERJ, 17:
3-27, 1978 (publicado anteriormente em 1969).

LISANTI FILHO, Luís & MARCÍLIO, Maria Luíza. Problèmes de I'histoire
quantitative du Brésil: métrologie et démographie. L'histoire quantitative
du Brésil de 1800 a 1930, Paris, CNRS, 1973, p. 29-37.

LUNA, Francisco Vidal. Minas Gerais: escravos e senhores. São Paulo, IPE-
USP, 1981, 224 p.

MARCÍLIO, Maria Luíza. A cidade de São Paulo: povoamento e população, 1750-
1850, São Paulo, Pioneira/EDUSP, 1 974a, XXII + 220 p.

MARCÍLIO, Maria Luíza. Evolução da população brasileira através dos censos
até 1872. Anais de História, São Paulo, FFCL de Assis, 6: 115-137,1979b.

MARCÍLIO, Maria Luíza. (org.). Demografia histórica: orientações técnicas e
metodológicas. São Paulo, Pioneira, 1977, 261 p.

MARCÍLIO, Maria Luíza. Caiçara: terra e população; estudo de demografia
histórica e da história social de Ubatuba. São Paulo, Paulinas/CEDHAL,
1986, 246p.

MELLO, Pedro Carvalho de. Estimativa da longevidade de escravos no Brasil
na segunda metade do século XIX. Estudos Econômicos, São Paulo, IPE-USP,
13(1): 151-179,1983.

METCALF, Alida C. Recursos e estruturas familiares no século XVIII, em
Ubatuba, Brasil Estudos Econômicos, São Paulo, IPE-USP, 13 (Especial): 771-
785, 1983.

MOTT, Luiz R. B. Brancos, pardos, pretos e índios em Sergipe: 1825-1830.
Anais de História, São Paulo, FFCL de Assis, 6: 139-184,1974.

MOTT, Luiz R. B. Estrutura demográfica das fazendas de gado do Piauí-
Colonial: um caso de povoamento rural centrífugo. Ciência e Cultura. São
Paulo, SBPC, 30 (10): 1.196-1.210, 1978.

RAMOS, Donald. Marriage and the family ln colonial Vila Rica. The Hispanic
American Historical Review, Durham, Duke Unlversity Press, 55(22): 200-225,
1975.

RAMOS, Donald. City and country: the famliy in Minas Gerais, 1804-1838.
Journal of Family History, Greenwlch, National Council on Family Relations,
3 (4): 361-375, 1978.

SCHWARTZ, Stuart B. Patterns of slaveholding in the Americas: new evidence
from Brazil. The American Historical Review, Washington, American
Historical Association, 87 (1): 55-86,1982.

SCHWARTZ, Stuart B. Sugar plantations in the formation of brazilian
society: Bahia, 1550-1835. Cambrldge, Cambridge University Press, 1985, 616
p.

SLENES, Robert W. Escravidão e família: padrões de casamento e estabilidade
familiar numa comunidade escrava (Campinas, século XIX). Estudos
Econômicos, São Paulo, IPE-USP, 17(2): 217-227,1987 (publicado
anteriormente em 1984).
Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.