Contribuições para a análise de “Trabalhos e Dias”

June 5, 2017 | Autor: Andre Vidal Viola | Categoria: Hesiodic Poetry, Ancient Greek History, Ancient economy, Hesiod, Social class struggles, Hesiodo
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Aviso​ :  O  presente  texto é a  integra da monografia apresentada para a obtenção do  título de  bacharel  em  Ciências Sociais sem quaisquer alterações do texto aprovado. Portanto, possui  os  limitantes  de  investigação  e  exposição  típicos  de  um  graduando.  As  falhas  analíticas  e  ausências  bibliográficas  (das quais não  se pode responsabilizar outros alem do autor) talvez  sejam compensadas pelo debate franco e aberto ou, quiçá, pelo  esforço e enfase nas fontes  primárias. Tudo aqui deve ser tomado ​ cum grano salis.​  

O ​ parecer oficial​  de avaliação aponta, com  justiça, as seguintes falhas:  ­ ­ ­ ­

Conflito entre a estrutura do trabalho e o seu método de desenvolvimento.  Ausência de base filológica ou historiográfica no confronto com a bibliografia.  Falta de rigor e domínio da historiografia antiga e da história literária.  Insuficiência  na  explicitação   de  pressupostos  teóricos  e  metodológicos  implicando  no  escamoteamento  e  distorção  do  “quadro”  teórico  das  fontes  secundárias. 

Os  autores  secundários  debatidos  aqui,  direta  ou  indiretamente,  foram  escolhidos   por  serem  considerados  relevantes  durante  a  pesquisa. Relevantes por conteúdo e não por  fama  e  sucesso.  As  críticas  reconhecem  contribuições  desses   trabalhos  para  as  reflexões  presentes  e   têm  de  ser  consideradas  como apontamentos  para a leitura dos  originais. Toda  e  qualquer  grosseria  e  incompetência  literária  só  depõem  contra  mim.  Mas  na  ciência  é  assim;  ninguém  está  autorizado  a  saltar  um  texto  pela   simples  opinião  de  seus  comentadores ­ ​ ἰδοῦ Ῥόδος, ἰδοῦ και πήδημα ​ (aqui está Rodes, salta aqui).  As  críticas   de  traduções  feitas  aqui  refletem  a  imaturidade  de  quem  adentra  o  assunto  e  engatinha  na  língua  ­  quando  a  vontade  submete  a  prudência.  ​ Mea   culpa,  mea  culpa,  mea  maxima  culpa.​   Dito  isso  cabe  lembrar  que,  ao  contrário  de  uma  tradição  do  direito,  a  lógica  aqui não autoriza lançar fora a árvore toda em função do fruto podre. Certos  acertos  e  verdades  permanecem  mesmo  no  interior  de  erros  e  mentiras…  a dialética exige  o movimento na unidade da contradição.  É  da  vontade  e  da  crença  desse  autor  que  mesmo  com  falhas  declaradas  e  insuficiência  teórica  o  presente  texto  recupera  o  debate  por  uma perspectiva incomum mas  fértil.  Pelo  sim  ou  pelo  não  a   síntese  bibliográfica  de  fontes  primárias  deve  interessar  ao  jovem pesquisador. ​ Atenção às notas de rodapé!  Att, Andre Vidal Viola  Abril de 2016 

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS  DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS         

Contribuições para a análise de “Trabalhos e Dias”.        Aluno: Andre Vidal Viola  Orientador: Joelson Gonçalves de Carvalho              São Carlos  2015   

 

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS  DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS       

Contribuições para a análise de “Trabalhos e Dias”.        Aluno: Andre Vidal Viola  Orientador: Joelson Gonçalves de Carvalho    Monografia  apresentada  como  requisito  para  conclusão  de curso  e obtenção do  título de bacharel em Ciências Sociais. 

      São Carlos  2015 

Agradecimentos    Karl  Heinrich  Marx,  por  romper  o  casulo  do  cretinismo  dominante,  pela  doçura  com  que  amou  a  humanidade,  por  sua  contribuição,  voz  e  método  na  interminável  resistência organizada dos explorados.    Às  pessoas  anônimas,  bilhões,  que  com  o  trabalho  de  formiga  construíram  a  inimaginável Torre de Babel na qual vivemos.    Ao  pessoal  do   Perseus  Digital  Library  (​ http://www.perseus.tufts.edu/hopper/​ ),  que tornou  o  mundo greco­romano  de  fácil acesso. Não existe uma única página deste  trabalho que não deva algo a eles.    Ao  meu  orientador,  Joelson,  pela  oportunidade,  pelas  aulas,  por  sacudir  o  marasmo das Ciências Sociais.    Minha família... dedicação, paciência e amor por alguém incorrigível.    Daniela  Spinelli,  por  ser um raio no  céu azul e não deixar pedra sobre pedra por  onde passa… por ser aquilo que a humanidade deu pra chamar de Espírito.          Aos que deram tudo, que são tudo e de quem tudo se tira pela húbris.              

Resumo    Essa  pesquisa  procurou  analisar  o  poema  "Trabalhos  e  Dias", de Hesíodo  (séc. VII a.C.),  com  um  enfoque  e  método  diferentes da fortuna crítica. Não foi uma ideologia  do  trabalho ou do  agrário  o  objeto  da  investigação,  mas  sim  a  forma  concreta  assumida  pelo  conflito  entre  a  aristocracia  dos  grandes  proprietários  e  os  pequenos  e  médios  produtores,  ou  seja,  a  luta  de  classes.  Que  a  economia  grega  se  apoiava  firmemente  no  trabalho  forçado  é  um  fato  inegável,  mas  isso  não  implica  na  redução  de  todas  as  formas  de  trabalho  livre  à  uma  única  classe.  Nas  condições  concretas  da  antiguidade  grega  as  contradições  internas  ao  modo  de  produção  colocavam  as  classes  proprietárias  no  centro  dinâmico  das  relações  de  produção.  Foi  através  dessa  chave  analítica  que  encontramos  uma  nova  possibilidade  de  corte  analítico  do  poema.  Nossa  investigação  vai  até  o  verso  341  (sobre  a  permuta  da  terra)  entendendo  que  esses  primeiros  versos  tratam  de  uma  totalidade,  as  conflituosas  relações  de  produção  entre as classes  proprietárias,  e  que  a  partir  daí  o  poema  segue internalizando as relações de produção ­ primeiro  na  classe  dos  pequenos  e  médios  proprietários  até  penetrar  na  unidade  produtiva,  o  oikos.  Acompanhar  esse segundo momento do poema exigiria uma análise de fôlego  que não cabe nesta  pesquisa.  Mesmo  desses  primeiros  versos  vale  que  o  caráter  exploratório  desse  trabalho  impede  que essa monografia seja conclusiva, esgote a análise ou a bibliografia sobre o tema.    palavras chaves: Hesíodo, Grécia Antiga, Arcaico, Classes. 

             

Sumário    Introdução _______________________________________________ 01  Capítulo I. Contexto  I.1 Autor ____________________________________________ 04  I.2 Obra _____________________________________________ 11  Capítulo II.  Ensaio de História e Método Sobre o Arcaico  II.1. História ________________________________________ 18  II.2. Classes ________________________________________ 30  Capítulo III. O poema  III.1  Proémio e Duas Érides ___________________________________ 37  III.2 Prometeu Pandora e as cinco raças dos homens ______________ 49  III.3 E agora contarei uma fábula aos reis, sábios que eles sejam ____ 55  III.4 auri sacra fames _________________________________________ 61  III.5 a fim de permutares a gleba de outros, não outro, a tua ________ 71  III.6 A Oikonomia da vizinhança ________________________________ 74 

Conclusão _____________________________________________ 76  Referência Bibliográfica __________________________________ 78       

          ἐκ γαίης γὰρ πάντα καὶ εἰς γῆν πάντα τελευτᾷ.  Da terra tudo vem e na terra tudo termina.  Xenófanes de Cólofon, CURFRAG.tlg­0267.26            τὴν μὲν τῶν ​ αὐτουργῶν​  αὐτοπωλικὴν διαιρουμένην, τὴν δὲ τὰ ​ ἀλλότρια ἔργα ​ μεταβαλλομένην  μεταβλητικήν.  Que uma das partes é a venda da ​ própria produção​ , mas que a outra parte é a​  troca do trabalho  de outros por meio de intercâmbio​ .  Platão, Sofista, 223d       

Introdução  Muitos  não  gregos  descrevem   a Grécia como um cenário paradisíaco de praias ​ joyeuses e  hotéis  com  diárias  estratosféricas.  Mergulhar  sob  o  sol  de Santorini ou esquiar em Aráchova nas  encostas  do  Monte  Parnasso  próximo  as  ruínas   do   Oráculo  de  Delfos?  Ou  ainda,  meditar  no  Mosteiro  de Dionísio na Península Calcídica ou fazer um hiking no maciço do Taigetos no sul do  Peloponeso?  A  variedade  de  ofertas  para  o  turista  faz  jus  à  geografia  grega,  mas  para  um hilota  messênio  o  maciço  do  Taigetos  era  um  ninho  de  assassinos  "políticos"  da  Cripteia  espartana.  Centenas, se não milhares, de "persas" perderam a vida quando suas embarcações foram lançadas  contra  o  rochoso  Monte  Atos  onde  atualmente  fica  o  Mosteiro  de  Dionísio.  Delfos…  ora,  Delfos…  foi  um  centro  de  poder  e  corrupção  política  da  aristocracia  grega.  Bruno  Snell  (2012,  p.295)  descobriu  na  Arcádia  do  poeta  romano  Virgílio a primeira “paisagem espiritual”, onde “a  obra  literária  torna­se  autônoma,  torna­se  um mundo em si, torna­se absoluta”. Antes de Virgílio  a Arcádia foi  onde caiu o general tebano Epaminondas, não sem antes afundar consigo o domínio  espartano  sobre  a  Grécia.  Como  deve  ter  parecido  idílico  aos  olhos  de  um  hilota  livre  o  vale  de  Mantinéia  onde  foi enterrado Epaminondas. Como devia ser horrível para um tebano, apenas três  décadas  após  a  morte  do  beotarca,  pensar  que  ali  jazia  o  homem  que  poderia  ter  salvo Tebas da  fúria  de  Alexandre  III  da  Macedônia,  O  Grande1.  Snell  nos  oferece  a  geografia  imaginária  das  Éclogas  de  Virgílio,  nós  oferecemos  a  famosa  elegia  à  Epaminondas  como  foi  resgatada  pelo  geógrafo grego Pausânias:  Por meus conselhos foi Esparta despojada de sua glória,  E a divina Messênia recebeu por fim seus filhos.  Pelos braços de Tebas foi Megalópolis cercada com muros,  E toda Grécia ganhou independência e liberdade.  Desc. 9.15.6. (trad. nossa) 

A  elegia  jamais   se  realizou,  a  Grécia  nunca  foi  livre  e   independente. Esparta nunca mais  se  reergueu,  mas  também  sua  influência  na  Lacedemônia  não  desapareceu  em  Mantinéia.  Ao  invés  da liberdade prometida a Beócia se lançou rapidamente na construção de um "imperialismo  1

 A tragédia só  fica  completa  com a  história  contada, no  século I,  por Dion Crisóstomo,  o  “Boca  de Ouro”,   onde  Filipe  II,  pai  de  Alexandre  III,  recebeu   na  sua  juventude  lições  de  Epaminondas   e  teve  Pelópidas,  outro brilhante beotarca e general tebano, como amante, enquanto era refém na  pólis de Tebas (Orat. XLIX.  5). 

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tebano",  bloqueado  não  pela  mesquinhez  ateniense  mas  pela  horripilante  destruição  que  os  reis  macedônios  trouxeram  durante  sua  expansão.  Depois  vieram  os  celtas,  os  romanos,  o  império   bizantino,  os  otomanos,  depois  da  Primeira  Guerra  Mundial  a  independência  sob  o  fascismo  de  Metaxás,  a  colaboração  com  o  Eixo  durante  a  Segunda  Guerra,  a  Guerra  Civil  de  1946­1949,  uma  monarquia  sob  a  influência  americana,  a  brutal  ditadura  militar  dos  anos  1967­1974  e vive  atualmente  sobre  a  ingerência  e  o  assédio  da  E.U..  A  história  de  invasões,  guerras  e  destruição  constante  na  Hélade  tem  não  menos  que  trinta  e  cinco  séculos,  do  micênico  (séc.  XVI  a.C.)  até  os  dias  atuais. Sua localização geográfica entre a Europa e a Ásia Menor fez dela, assim como de   todo  o  Oriente  Médio,  um  eterno  tabuleiro  de  guerra das potências "ocidentais". A região que se  estende dos Bálcãs ao Irã é o Fênix, culpada e vítima, da nossa história de violência.  Muitos  "ocidentais"  acreditam  que  a  Grécia  foi  onde  surgiu  a  forma  mais  evoluída  de  contrato  social,  e  que  esse  serviu  como  berço  dourado  da  razão  humana.  Mas  o  que  esse  berço  teve  de  dourado  foi  uma   aristocracia  apoiada  na  miséria  e  na  escravidão.  O  fundamento  aristocrático  da  filosofia  grega  cabe  em  uma  comédia  do  também  aristocrata  (um  dos  mais  geniais  ideólogos  do  elitismo)  Aristófanes,  "As  Nuvens",  escrita  contra  Sócrates.  Se  a  filosofia  era  uma  "profissão"  perigosa  como  descreve   tão  bem  Luciano  Canfora  (2002),  marcada  pela  volatilidade  do  amor  e   do   desprezo  popular,  por  assassinatos,  linchamentos,  suicídios,  condenações,  desterros  e  o  autoexílio,  a  culpa  certamente   não  recai  apenas  na  ignorância  e  dirigismo  da  "massa"  popular  ­  essa  sim  uma  das  mais  duradouras  formas  de  exclusão  e  o bode  expiatório  perfeito  da  democracia.  A  filosofia  é  política,  os filósofos sempre estiveram ligados a  alguma  classe,  e  na   maioria  das  vezes  a  alguma  classe  dominante  (nenhum  filósofo  grego  do  Clássico  mereceu  a   "pecha"  de  humanista).  Para  concluir  a  "profanação" da tradição "ocidental"  falta  ainda  falar  da  democracia.  Pois  bem,  a  democracia  grega,  assim  com  sua  irmã  mais  nova, 

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permitiu  apagar  da  história  o  último  círculo  dos  infernos;  o  amontoado  fétido  e  miserável2  de  escravos, servos e metecos que sustentam essa fantasia.  Aqui  jaz  o  alegre   velho  palhaço  Protogenes,  escravo  de  Clulius,  que  deu  prazer a muitas e muitas pessoas com seus truques.3  

Enfim,  não  estudamos  a  Grécia  Antiga  porque  amamos  um  passado  mítico  mas  porque  odiamos o presente.  ­­­­­­­­­­­­­­­­­­ // ­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­    Por  fim,  uma  breve  explicação  sobre  a  organização  do  texto.  A   relação  entre  os  dois  primeiros  capítulos  e  o  terceiro  inverte  a  ordem  da  pesquisa,  já que o poema é fonte documental  privilegiada  tanto  da   biografia  de  Hesíodo  como  da  historiografia  do  período,  i.e.,  a  ordem  da  exposição  não  acompanha  a  ordem  da  investigação. O primeiro capítulo busca apresentar o aedo  e  sua  obra  dando  ênfase  para  sua  posição  de  classe,  i.e.,  um  agricultor  entre  os  pequenos  e  médios  proprietários.  No segundo capítulo procuramos definir o cenário histórico do Arcaico por  seu  tensionamento  entre  o  período  Geométrico  e  o  Clássico.  Não  se  trata  de  uma  história  do  Arcaico,  mas  sim  de  apontar  alguns  elementos  que  auxiliam  na  análise  do  poema.   No  terceiro  capítulo  fazemos  a  análise  dos  primeiros  341  versos  do  poema  com  o  intuito  de  recuperar  as  oposições  fundamentais  entre  a  aristocracia  dos  basileis  e  a  classe  dos  pequenos  e  médios  proprietários.  A  escolha  por  esta  organização  dos  capítulos  não  foi  apenas didática mas também  metodológica,  pois  permite  explicitar  e  expandir  algumas  relações  necessárias  à  analise  do  poema.    2

 Novamente  é Aristófanes,  em  "Os Cavaleiros",  quem nos dá a descrição mais  próxima do estado em que  viviam  os   trabalhadores  pobres,  os  mendigos  e os  "biscateiros" da  Atenas do  século V  a.C.  ­ o horror  da  hilotagem espartana ou do trabalho nas minas jamais será conhecido.  3

  Epitáfio  de  Protogenes,  encontrado  em  um  muro  de  Preturo,  próximo  a  Amiternum,  c.165–160  d.C.[?].  "Here is  laid  the  jolly old  clown Protogenes,  slave of Clulius, who made many  and many a delight  for people  by  his  fooling".  CIL_12​ ​ .1861.  Archaic   Latin  Inscriptions.  Inscriptions  Proper  1.  Epitaphs  (LOEB,  LCL  359,  p.11, tradução nossa), In:  http://www.loebclassics.com/view/archaic_latin_inscriptions_i_inscriptions_proper_epitaphs/1940/pb_LCL35 9.11.xml?readMode=recto​ . Acesso em 07/11/2015. 

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Capítulo I ­ Contexto    I.1 ­ Autor  Quanto  à  data  de  Hesíodo  e  Homero,  depois  de  me  ter  esforçado  grandemente por  apurar a verdade  com todo o rigor, não me aprouve escrevê­lo,  por  saber  quanto  há  de controverso  nesta questão, sobretudo  entre os críticos da  epopeia meus contemporâneos.  Pausânias, Desc. Gre., IX.30.3 (HESÍODO, 2005, p.7)   

Não  se  sabe  de   fato  se existiu um aedo chamado Hesíodo, natural de Ascra e que compôs  no  século  VII  a.C.  dois  dos  mais  importantes   poemas  da  tradição  arcaica.  Essa  é  a  primeira  afirmação  em   quase  todas  as  introduções  biográficas  sobre  o poeta. O necessário para tornar sua  existência  uma   certeza,  ou  pelo  menos  mais  provável,  seriam  os  registros  contemporâneos  de  outros  autores  ou  provas  arqueológicas,  como  o  trípode que o poeta alega ter ganhado em Cálcis  por  exemplo  (vv.654­657).  No  entanto,  as  evidências  de  sua  existência  não  se  encaixam  em  nenhuma  dessas  duas  formas  de  registro  histórico.  Em  parte  esse  silêncio  contemporâneo   pode  ser  explicado  pelo  fato  do  poeta  pertencer  a  um  período  no  qual  ainda  vigorava  a  tradição  oral.  Mesmo  que  a  escrita  já   estivesse  presente,  tendo  ressurgido  provavelmente  entre  o  final  do  século  IX  a.C.  (Pereira  in  HESÍODO,  2005,  p.8)  e  o  início  do  século  VIII  a.C.  (WEST,  1988,  p.viii),  o mais aceitável é que a divulgação de seu nome e seus poemas tenha sido feita oralmente  por  rapsodos.  Também  Hesíodo  não   cita  outro  aedo  contemporâneo  –  assim  como  não  faz  nenhuma  referência  ao  nome  de  seu  antecessor  Homero  –  e  desconhecemos  qualquer  aedo  que   tenha  se  reivindicado  contemporâneo seu. Se a primeira referência ao poeta deve ser considerada  4

o lendário epitáfio de Quércias de Orcômeno (séc. VII a.C.) ​ , as possíveis paráfrases na poesia de  5

Alceu  de  Mitilene   (séc.  VII  a.C.)   ou  a  referência  nominal  de  Xenófanes  de  Cólofon  (séc.  VI  6

a.C.)   é  algo  aberto  à  discussões  diversas. Certamente Hesíodo é anterior a Xenófanes e portanto  4

 Paus. 9.38.10. 

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 e.g. Hes. Op. v.721 e Alceu fr.140 (LOEB142, p.407). 

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 Diogenes Laertius, Lives of Eminent Philosophers, IX.18 (também CURFRAG.tlg­0267.11). 

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tem  de  ser  anterior   ao  século  VI  a.C..  Quanto  aos  achados  arqueológicos  e  registros  materiais  7

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como  trípodes ​ ,  alguma  dedicatória  ou  marcação  tumular ​ ,  a  distância  no  tempo  torna remota as  chances de sobrevivência.  O  que  se  considera  como evidência biográfica de sua existência é,  acima de tudo, o que o  próprio  aedo  fornece  como  informação  sobre  a  sua  vida.  Ao  descrever  sua  vitória  em  um  concurso  de  cantos  durante  os  jogos  funerários  em  homenagem  ao herói Anfidamas de  Cálcis,  o  aedo  permite  localizá­lo  como  contemporâneo  da  Guerra  Lelantina  entre  Cálcis  e  Erétria,  ocorrida  na  ilha  de   Eubeia  no  final  do  século  VIII  a.C.  (cerca  700  a.C.,  Pereira  in  HESÍODO,  2005,  p.16).  Daí  que  o  mais  aceito  seja  que  Hesíodo  compôs  durante  o  primeiro terço do século  VII  a.C.  (West,  1988,  p.vii).  É  ele  também quem nos conta ser de Ascra (v.640),  ao pé do monte  Hélicon  na  Beócia  onde  apascentava  cordeiros  (Th.,  v.23),   e que seu pai havia migrado de Cime  na  Eólia  (v.636),  no  litoral  da  Ásia  Menor  (atual  Turquia),  fugindo  de  funesta  pobreza  (vv.637­638).  Por  ser  considerado  o  primeiro  poeta  a  falar  de  si  mesmo  em  seus  versos  é  visto   como  importante  expressão de uma individualidade emergente na cultura grega. Este também é o  motivo  pelo  qual  sabemos  seu  nome,  “sim,  então  essas  a  Hesíodo  [​ Ἡσίοδον​ ]  o  belo  canto  ensinaram”  (Th.,  v.22).  Algumas  outras  passagens  biográficas  são  fonte  de  interpretação  e  debate. Sobre o nome de seu pai o verso 299 já foi interpretado como “Perses, filho de Dios” mas  9

o  aceito  é  “Perses  de  linhagem  divina”   –  a  confusão  ocorre  com  o termo ​ δῖον em “Πέρση, δῖον  γένος”.  O  verso  271  sugere  pelo  menos  um  filho  (e o verso  376  sugere não mais que um), mas é    Seja  o  tripode  que  o  próprio  Hesíodo  alega  ter  ganhado  ou  aquele  do  ​ Certamen  referido por Plutarco  (Plut.  Septem.  10)   e  de  provável  autoria  do   sofista  Alcidamas  no   século  IV  a.C.  (WEST,  1988,  p.xx).  A  versão  acabada  do  ​ Certamen​ ,  i.e.,  aquela  que  vai além da  disputa  de versos  entre Homero e  Hesíodo,  é  certamente  posterior   ao  sofista  Alcidamas   de  quem   chega  mesmo  a  fazer  referência   (2005,  p.155). Ana  Elias Pinheiro localiza o texto após o século II d.C. (ibidem, p.140).  7

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 Como os  versos de  Quércias  de Orcômeno  (sec. VII a.C.)  inscritos no túmulo de Hesíodo  (Paus. 9.38.10)  –  que  o  próprio  Pausânias  diz  já  não  existir  mais  no   seu   tempo  (sec.  II  d.C.).  Os  versos  talvez  sejam  aqueles   citados  no  ​ Certamen  (2005,   p.155).  Pausânias  também  cita  uma  placa  de  cobre,  já  bastante  apagada pelo tempo, onde estaria inscrito o ​ Erga​  (Paus. 9.31.4).  9

 Assim  traduz  Werner (2013b);  Ferreira (2005) mantém  o sentido trocando apenas “linhagem” por “estirpe”;  West (1988,  p.45 e  p.76) traduz como  “of Zeus’  stock” e sugere que essa seja a reivindicação da família de  uma  linhagem  divina.  O  que  teria  motivado  a  confusão  seria  a  forma  ​ diou  (​ δίου​ , Dios)  no lugar de  ​ dion  (​ δ​ ῖ​ ον​ , Zeus). 

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bastante  inconclusivo  sobre  o  assunto  e  não  se  pode  ir  além  da  mais  pura  especulação.  A  existência  de  seu  irmão,  Perses,  e  de  um  litígio  sobre  a  terra  herdada  do  pai  é  a  discussão  mais  importante  porque  trata  diretamente  do  motivo  do  poema  “Trabalhos  e  Dias”.  Um  dos   argumentos  favoráveis  da  veracidade  desses  fatos  é  a  pouca  atenção  dada  na  caracterização  de  Perses,  quando  justamente  o inverso seria esperado se este fosse um personagem inventado. Esse  argumento  por  si  só  não  é  suficiente,  e  tem  de  enfrentar  o  fato  do  nome  Perses  (​ Πέρση​ )  se  aproximar  do  termo  utilizado  para  “pilhagem”  (​ πέρσις​ ,  LSJ10 ),  o  que  sintetiza  seu  papel  no  poema.  No entanto, não consideramos que o poema trate de motivos pessoais, logo a importância   da  existência  ou  não  de  Perses,  bem  como  da  disputa  pela  herança,  fica  reduzida  frente  ao  elemento  didático  do  poema.  Para  todos  os  casos  nós  admitimos  não  apenas  a  veracidade  dos  dados  biográficos  mas  também  tomamos  todos  os  versos  como  autênticos  ignorando  o  importante  debate  sobre  possíveis  interpolações  e versos de autoria estranha  ao poeta11 . Fazemos  isso  pelos  seguintes  motivos:  enquanto  os  debates  biográficos  não  se  resolvem  preferimos  ficar  com  a  palavra  do  autor,  mas  também  porque  os  artifícios  e  recursos  que  o  autor  mobiliza  são  parte  da  obra   e,  portanto,  não  podem  ser  excluídos da análise. Sobre as possíveis interpolações e  12

versos  de  autoria  estranha  acompanhamos  a  tradição  sedimentada  das  edições  de  West ​ ,  mais  que isso não caberia na presente pesquisa. 

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 LSJ: ​ Liddell­Scott­Jones Greek­English Lexicon. Consultado extensamente ao longo da pesquisa. 

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  A  própria  dedicatória  do  trípode  para  as  musas  do  Hélicon   é  considerada   por  alguns  como  uma  interpolação  dos  sacerdotes  de  Delfos  para  valorizar  um  festival  ativo  no  período  helênico  e  Romano  (Lamberton in HESIOD, 1993, p.6).  12

  Utilizada  por  Werner  em  sua  edição   bilingue  que  consultamos  largamente  (HESÍODO,  2013b,  p.24).  Outras  duas  edições  bilíngues  consultadas  são  Alessandro  Rolim  de  Moura  (HESÍODO,  2012)  e  Hugh  Evelyn­White  (HESÍODO,  1918).  As  modernas  (séc.  XX)  edições gregas do poema são sempre devedoras  do trabalho de Rzach (1902, 1913). 

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Existem  algumas  lendas  sobre  a  vida  e  a  morte  de  Hesíodo.  Na  ​ Suda   encontramos  a  seguinte  descrição:  natural  de  Cime,  foi  levado  ainda  jovem  para  Ascra  por  seu  pai  Dios  (Dio,  14

Dius;  ​ Δίου​ )  e  sua  mãe  Pukimede  (Picimede;  ​ Πυκιμήδης​ ) ​ ,  seria  parente  de  Homero  e  de  15

linhagem  divina,  descendente  de  Atlas ​ .  Ainda  segundo  a  ​ Suda  teria  nascido  em  808  a.C.  e  morreu  assassinado  pelos  irmãos Ântifo e Ctímeno que tomaram equivocadamente o poeta como  16

o  sedutor  da  irmã ​ .  O  ​ Certamen  conta  uma  história  parecida  mas  acrescenta  algumas  informações  e  uma  outra  versão  para  a  morte  de Hesíodo. No ​ Certamen​ , o poeta também é dado  como  filho  de  Dio  e  Picimede,   seria  parente  de Homero mas sua linhagem divina viria de Apolo 17

.  Em  uma  outra  versão  sobre  a sua  morte, ocorrida em Énoe na Lócrida, não  teriam sido Ântifo 

e  Ctímeno,  filhos  de  Ganíctor,  os  assassinos,  mas   Ganíctor  e  seu  irmão  Anfífanes  e  o  motivo  seria  o  mesmo  –  a  desonra  da  irmã.  Após  o  assassinato,  os  irmão  teriam  atirado  o  corpo  de  Hesíodo  no  mar, mas três dias depois ele teria retornado a Énoe transportado por golfinhos. Alí o  seu  corpo  teria  sido  enterrado  e  Zeus  fulminado  os  irmãos  enquanto tentavam escapar até Creta.  Na  versão  mais  próxima  daquela  da  ​ Suda  ​ (que  o  ​ Certamen  atribui  a  Eratóstenes  de  Cirene)  a  irmã teria cometido suicídio, os irmãos assassinos  foram sacrificados aos deuses pela intervenção  de  um  adivinho  e  o  corpo  de  Hesíodo   levado  para  ser  enterrado  em  Orcômeno na Beócia. Essas  lendas  não  devem  ser  tomadas  como  meras  curiosidades,  pois  o  estudo  dessas  lendas  ajuda  a 

  A  ​ Suda é  uma  importante “enciclopédia” bizantina,  datada do  século X d.C., que apesar de uma série de  imprecisões  é   considerada  uma  fonte  valiosa  de   informações  sobre  a  antiguidade  na  região  do  mediterrâneo.  A  entrada  ​  ​ Ἡ​ σίοδος  (η  583)  é  onde  se  encontram  as   informações  sobre  o  poeta.  In:  http://www.stoa.org/sol­bin/search.pl?db=REAL&search_method=QUERY&login=guest&enlogin=guest&  user_list=LIST&page_num=1&searchstr=eta,583&field=adlerhw_gr&num_per_page=1  .  Acesso  em  21/10/2015.  13

  Provavelmente  essa  “informação”  vem  do  historiador  Éforo  de  Cime  (séc.  IV  a.C.).  Fonte:  ​ Mary  R.  Lefkowitz. The Lives  of the Greek Poets. Bloomsbury Academic, 2013,  p.8. O termo  ​ Πυκιμήδης  (Pukimede)  significa “mente  judiciosa”  (LSJ)  e ao  que parece  Éforo  teria inventado  esse nome para a mãe de Hesíodo  baseado no caráter didático da sua poesia.  14

  Na  Teogonia,  Atlas  é   filho  de  Jápeto,   logo  é  irmão de  Prometeu.  Assim essa  versão  da  ​ Suda cria um  parentesco entre Hesíodo e Prometeu.  15

  Bem antes  da ​ Suda​ , Pausânias  (séc. II d.C.)  reproduz  essa mesma  versão  sem,  no  entanto,  assumir  a  inocência do poeta (Paus. IX.31.6).  16

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 Na tradição mitológica o deus Apolo está ligado a inspiração profética e artística. 

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compreender   a  imagem  que  os  gregos  construíam  de seus poetas. Embora atualmente o nome de  Hesíodo  não  seja  tão  conhecido  como  o  de  Homero,  na  antiguidade  greco­romana  ambos  os  poetas  eram  considerados  como  da  maior  importância.  Primeiro  Xenófanes  e  depois  Platão  irão  empreender   uma  “reforma  moral  do  Olimpo”  buscando  escapar  do  comportamento  18

exageradamente  humano  que  os  dois  poetas  “fundadores”   atribuíram  aos  deuses.  Heródoto,  mais  interessado  na  “fundação”  que  na  reforma  teológica,  diz  em  sua  “História”  (Hdt.  2.53,  2006):  Durante  muito  tempo  ignorou­se  a  origem  de  cada  deus,  sua  forma  e  natureza,  e  se  todos  eles   sempre  existiram.  Homero  e  Hesíodo,  que  viveram  quatrocentos  anos  antes  de  mim,  foram  os  primeiros  a  descrever  em  versos  a  teogonia,  a  aludir  aos  sobrenomes  dos  deuses,  ao  seu  culto  e  funções  e  a  traçar­lhes o retrato​ . 

Nossa  análise  se  apoia   menos  nessa  biografia  que  na  controversa  posição  de   classe  do  poeta  e  na  expressão  dessa  posição  no  seu  poema.  Defendemos  que  Hesíodo  fazia  parte  de  um  grupo  social  específico   com  importância  central  em  toda  a  antiguidade  grega,  aquele  dos  pequenos  e  médios  proprietários.   Novamente  será  “Trabalhos e Dias” o principal  ponto de apoio  para  essa  hipótese.  Não é o caso de adiantar a análise, mas o agricultor que o poema narra, e com  o  qual  Hesíodo  se  identifica,  é  aquele  que  contando  com  a  ajuda   de  alguns  escravos  (e  trabalho  pago)  não  pode  se  privar  de  trabalhar  ele  próprio.  Entre   esses  trabalhadores  há  pelo  menos  um  que  auxilia  na  manutenção  do  oikos,  mas  aqui  também  a  manutenção  depende  do  trabalho  familiar  (o  cuidado  com  os  instrumentos,  vv.405­409;  o  tear,  v.779;  acalmar  os  animais,  vv.795­797;  inciar  um  cântaro,  v.815,  etc.  O  calendário  dos  dias  entre  os  versos  765  e  821  é  dirigido  ao  agricultor  e  sua  família).  Nitidamente  falta  no  poema  uma  marca  comum  da  aristocracia,  qual  seja,  a  figura  do  escravo  administrador  cuja  importância  é  atestada  por  Aristóteles  (Política  I.2.23  [1255b31­40],  2009,  p.23;  ou  ainda  Econômicos,  2011,  p.11),  ao  contrário,  Hesíodo  entende  que  algumas  funções  administrativas  são  obrigações  do  proprietário  18

 Ainda  é  bastante  aceito  que a estruturação do Panteão grego ganhou uma organicidade religiosa a partir  dos  Hinos  Homéricos,  dos  dois  poemas  de  Homero  e  da  Teogonia   de  Hesíodo.  Solmsen  (1995,   p.91)  defende que “Trabalhos e  Dias”  de Hesíodo  deu um  lugar de  destaque para a  deusa  Dike  (Justiça) – algo  que ele aponta como de importância central durante o Período Clássico. 

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(vv.600­603  e  vv.765­768).  O  poeta  beócio  reconhece  apenas  o  trabalho  como  fonte de riqueza,  negando  tanto  a  atividade  política  da  ágora,  em  um  período  no  qual  juízes  e  políticos   eram  os  mesmos,  quanto  a  pilhagem  da  guerra.  O  poema  se  apoia  rigorosamente  no  trabalho  concreto  (não  custa  enfatizar)  como  necessidade  material,  ou  seja,  o  trabalho  visava  produzir  uma  utilidade  em  acordo  com  as  necessidades  do  próprio  trabalhador  e  não  um  valor  de  troca  ­  a  exceção   no   poema  é  a  navegação  comercial,  mas  esta  tinha  por  finalidade  cobrir  dívidas  e  não   orientar  genericamente  o  trabalho19 .  Seu  argumento  é  bastante  simples;  aquele  que  não  possui  riqueza  suficiente  para  se  ausentar  dos  trabalhos  tem  de  trabalhar  trabalho  sobre  trabalho  seguindo  o  calendário  das  estações.  As  duas  exceções  são  o  descanso  de  verão  e  os  dias  sagrados.  Certamente  não  se  trata  de  um  rico  proprietário  de  terras  e  escravos  com  uma  confortável  produção  de  excedentes.  O  risco  de  perder  a  produção  e  ter  de  apelar  para  o  endividamento  ou  até  mesmo  para  a  permuta  da  terra  acompanha  o  agricultor  do  poema.  O  comércio  começa  a aparecer como possível fonte  de riqueza, mas ele ainda é marginal, preso não  apenas  ao  excedente  mas  a  situações  específicas  (e.g.  cobrir  dívidas),  não  existe  a  figura  do  comerciante  pois  o  comércio  é  feito  com  o  produto  do  seu  próprio  trabalho.  Essa  última  afirmação  pode  encontrar  algum desacordo com as biografias que falam do pai de Hesíodo como  uma  comerciante  (West,  1988,  p.ix).  Em  primeiro  lugar  a  afirmação  feita  acima  sobre  a  não  existência  do  comerciante  em  tempo  integral,  como  profissão,  está  limitada  ao  contexto  do  poema  –  sabemos  que  eles  de  fato  já  existiam  até  mesmo  antes  de  Hesíodo  (e.g.:   é  uma  figura  presente  nas narrativas homéricas), a exclusão feita pelo aedo é, segundo entendemos, proposital.  Por  fim,  não  vejo  nos  versos  630­640  a  certeza  de  uma  profissão,  eles  podem  fazer  referência a  uma  atividade  esporádica  feita apenas quando necessária – o que  se encaixa mais com o poema e  particularmente com o contexto da passagem sobre a navegação. 

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  A  ausência  de  uma  orientação  genérica  do  trabalho  para  o  mercado  não  deve  ser  confundida  com  a  inexistência de  troca  econômica  ou de  relações  sociais de  trabalho. Sobre as  relações  sociais  de trabalho  recordamos que  mesmo a unidade produtiva ­ o oikos ­ estando voltada para suas necessidades concretas,  a  realização  dessas necessidades  se apoiava  amplamente no trabalho escravo.  Sobre as diferentes trocas  econômicas,  voltadas  para  as  necessidades  concretas  do  oikos  ou  integralmente  para  a  acumulação  de  valor  de  troca,  ver  a  discussão  feita  por   Aristóteles  sobre  a  crematística  natural  e  a  contra­natura  em  "Política". 

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Não  sabemos  se  Homero   era  ou  não  um  aristocrata  mas  damos  como  certo  que  os  seus  poemas  foram  expressões dessa classe. Werner Jaeger (Paideia,  cap, 1 e 2), quebrando uma visão  comum  de  homogeneidade  cultural  da  Grécia  Arcaica,  separa  Homero  e  Hesíodo  como  expoentes  de  um  ideal  aristocrata  e  de  um  ideal  rural  respectivamente  ­  no  entanto  dá  pouca  atenção  ao  conflito  por  trás  de  tais  ideais.  As  várias  aproximações  entre  atividades  militares  e  trabalhos  específicos  durante  as  narrativas  de  batalha  na   Ilíada  sugerem  que  o  domínio  de  algumas  práticas agrícolas e artesanais eram tanto do conhecimento do aedo como de seu público  aristocrata  (Odisseu   desafia  o  aristocrata  Eurímaco  nos  trabalhos   do   campo,  Od.,  2014,  p.561  vv.357­376  c.XVIII).  O  trabalho,  quando  aparece,  não  é  uma   necessidade  mas  uma  atividade  esporádica  e   contingente;  como  por  exemplo  o  leito  nupcial  feito  por Odisseu (Od., 2014, p.693  v.197  c.XXIII),  o  detalhado  fazer  de  uma  jangada  (Od.,  2014,  pg.157  vv.234­262  c.V),  ou  o  trabalho  de  Telemaco  no  pomar  do  avô  (Od.,  2014,  p.725  vv.361­364  c.XXIV). Se Homero não  cantava  para  os  aristocratas  certamente  cantava  a  aristocracia,  seus  personagens  são  os   basileis   da  Hélade,  ora  em  guerras,  ora  em  assembleias,  ora  em  festejos, jamais  se encontram presos por  uma  rotina  de  trabalho.  Já  em  Hesíodo o trabalho não é uma contingência,  seus versos gnômicos  não  se  dirigem  aos  basileis   (embora  também  se  dirija  a  eles,  mas  sempre  repleto  de  críticas  pouco  disfarçadas),  mas  àqueles  que  como  Perses  têm  de  colocar  trabalho  sobre  trabalho  ou  enfrentar  a  miséria  horripilante.  O  aristocrata  é  o  homem  liberto  do  trabalho  como  necessidade  (Odisseu  pode  se  dar  ao  luxo  de  preferir  a  guerra  ao  trabalho,  Od.,  2014,  pg.423  vv.223­225  20

c.XIV) ​ ,  mas  sua  autarquia21  tem  necessariamente  de  ser  suportada  pelo  trabalho  alheio  ao   Não nos deixemos  enganar pelo trabalho dos filhos de Aigyptios, este é um herói, ​ ἥ​ ρως Α​ ἰ​ γύπτιος​ , mas   não um aristocrata  (Od.,  2014, pg.39  vv.21­23  c.II.).  Pelo  menos é da nossa  opinião que a posição e a fala  de Aigyptios durante a assembleia não é de um aristocrata.  20

21

 A autarquia a  qual fazemos referência é aquela do  trabalho, ou  seja, a  plena liberação do trabalho ou  o  trabalho  integralmente  realizado   em   meios  de  produção  próprios.  Como  entendemos,  a   não  coerção  do  trabalho  à  meios  de  produção   alheios  é  o  único  conceito  de  autarquia  que  se  pode  retirar  do  poema  “Trabalhos  e  Dias”.  Tratar a autarquia como autosuficiência no consumo é perder de vista a centralidade do  poema,  i.e.,  a   relação  terra­trabalho.  Diferente   de  nós, Zurbach, por exemplo,  faz durante sua análise  do   poema de  Hesíodo uma diferenciação  entre autarquia  e  autosuficiência: a primeira seria uma  estratégia de  troca que  utiliza o excedente para obter algo que falta  (DESCAT  apud  ZURBACH, 2009, p.27); e a segunda  seria  uma  estratégia  destinada a  viver da  própria  produção (ZURBACH,  2009,  p.27).  Nossa  opinião  é que  essa noção de autarquia de Descat e Zurbach é contrária a tradição grega (ver nota 70). 

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mesmo  tempo  em  que  reproduz  as  bases sociais dessa forma de exploração. O aristocrata é antes  de  mais  nada  um  senhor  de  escravos,  mas  a  reprodução  de  sua  condição  de  classe  e,  portanto,  também  a  do  escravo,   tem  uma  base  social  muito  mais  ampla.  Falaremos  disso  em  lugar  apropriado,  por  ora  essa  contraposição  entre  Hesíodo  e  Homero  tem  por  objetivo  apontar  algumas  diferenças  entre  a  classe  dos  pequenos  e  médios  proprietários  e  a  classe  dos  grandes  proprietários,  a  aristocracia  dos  basileis.  Isso é necessário porque consideramos que a posição de  classe  de Hesíodo não pode ser  deduzida simplesmente dos seus conhecimentos práticos sobre os   22

trabalhos  agrícolas ​ .  Esse  tipo  de  dedução  induz,  mesmo  que  involuntariamente,  ao  mais  grave  reducionismo  no  tratamento   de  classes  sociais,  ou  seja,  a  classe  como  um  conceito  e  definição  23

isolado  cuja  determinação   não  está  na  relação  dialética  com  as  demais.  A  contraposição  feita   aqui  entre  Hesíodo  e  Homero  é  apenas  um  primeiro  momento  dessa  determinação.  Sabemos,  é  claro,  que  nenhum  dos  dois  aedos  procurou  definir  classes,  mas  um  dos  principais  objetivos  dessa pesquisa foi buscar no poema algumas contradições concretas  que dão forma as relações de  classe.      I.2 ­ Obra    Como  faremos  mais  adiante  a  análise  do  poema  o  que  cabe  aqui  são   alguns  breves  comentários  sobre  a  obra  de  Hesíodo.  Uma  série  de  poemas  são  atribuídos  a   sua  autoria,  parte  deles foi perdida e um parte sobreviveu apenas através de fragmentos. O consenso é que o beócio  24

teria  composto  “Teogonia”   e  “Trabalhos  e  Dias”,  muitos  aceitam  sua  autoria  para  “O  Escudo  22

 Por exemplo como tenta fazer GOMES, 2007, p.42. 

23

  O  termo  “determinação” como  utilizamos  aqui nada tem  em  comum  com a noção  de determinismo.  Ele  deve  ser  pensado  a partir dos processos que dão  forma as  diversas relações sociais, i.e., determinar  algo é  dar forma a esse algo.  24

  "Os  beócios  que  habitam  próximo  ao  Helicon  mantêm  a  tradição  que  Hesíodo   escreveu  apenas  os  Trabalhos,  e mesmo  deste eles rejeitam o prelúdio as Musas". “The Boeotians dwelling around Helicon hold 

11

de  Héracles”  e  “Catálogo  de  Mulheres”  (West  não  aceita  e  coloca  os  dois  poemas  no  século  VI  25

a.C.,  1988,  p.xix) ​ .  O  poema  que  é  aqui   objeto  de  análise  não  tinha  um  título  em  sua  origem,  com  o  tempo  convencionou­se  chamá­lo  de  Ἔργα  καὶ  Ἡμέραι  (Erga  kai  Hēmerai;  Pausânias  se  refere  a  ele  apenas  como  Erga  [Ἔργα];  ver  nota  de  rodapé   24)  e  a  abreviação  largamente  utilizada  “Op.”  deriva  de  seu  título  em  latim  “Opera  et  dies”.  Para   recompor  o  poema tal qual o  conhecemos  atualmente  o  filólogo  Alois  Rzach  se  utilizou  no  início  do  século  XX  de uma série  de  manuscritos  medievais  dos   séculos  X  ao  XIII,  também  West  e  Solmsen  puderam  fazer  algumas  comparações  com  alguns  fragmentos  do  poema  encontrados  em  papiros  antigos  dos  séculos  II  a.C.  ao  III  d.C.,  mas  ainda  assim  devemos  reconhecer  que  uma  primeira  versão  26

integral distante 1700 anos de Hesíodo torna o consenso impossível ​ .  Acredita­se que o poema  tenha sido originalmente composto através da improvisação  oral  (Rolim  in  HESÍODO,  2012,  p.12),  o  que  dá  uma  impressão  confusa  e  desconexa  em  algumas  passagens  e  leva  a  crer,  equivocadamente,  que  o  poema  seja  uma  justaposição  de  temas  sem  27

unicidade  –  tentaremos  demonstrar  na  análise  que  essa  é  uma  falsa   impressão ​ .  Essa  aparente  quebra  temática  se  reflete  no  fato  de  muitas  edições   do   poema  apresentarem  separações  e  subtítulos  no  seu  interior  (e.g.  HESÍODO,  2012).  Não  consideramos  essa  prática  equivocada  já  que  sua  intenção  é  apenas  auxiliar  na  “navegação”  do  poema,  e  alguma  separação  é  inclusive  inevitável  para  qualquer  análise,  apenas  chamamos  a  atenção  para  o  fato  de  que  qualquer   separação  temática  ou  analítica  do  poema  é  artificial.  Os  versos  foram  compostos  na  métrica  poética  de  hexâmetros  datílicos,  melhor  adaptados  para  as  técnicas  de  oralidade  em  grandes  the  tradition  that  Hesiod  wrote  nothing but the Works [​ Ἔ​ ργα​ ], and even  of this they reject the prelude to the  Muses” (Paus. 9.31.4, trad, nossa).  25

 O  verso 828  que  encerra  os  “Trabalhos  e  Dias” parece  fazer uma alusão ao poema “Ornitomancia”, mas  esse também não é atribuído ao poeta (Ferreira in HESÍODO, 2005, p.123, nt.98).  26

  Rolim  de  Moura,  de   quem  retiramos  as  informações acima,  fornece  uma lista bem  mais detalhada dos  manuscritos, papiros, citações,  escólios  e  lemmata  usados  na montagem  atual  do poema, bem como uma  explicação  metodológica  do  tema  (Rolim  in  HESÍODO,  2012,  pp.36­47).  O  conjunto  de  manuscritos  que  West se refere abarca os séculos X ao XVI e os fragmentos estão entre o I a.C e o VI (1988, p.xxiii).  27

  Por  um  caminho  e  uma  metodologia  bastante  diferente  da  nossa  Jean­Pierre   Vernant  mostrou  a  unicidade estrutural do poema em “Le mythe hésiodique des races.  Essai d'analyse structural”. In: Revue de  l'histoire des religions, tome 157 n°1, 1960. pp. 21­54. 

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poemas  como  os  de  Homero  e  Hesíodo ​ ,  em  dialeto  jônico  (West,  1988,  p.ix),  embora  o  mais  provável  é  que  Hesíodo   tivesse  por  dialeto  “natural”  o  beócio  (pertencente  ao  grupo  do  dialeto  eólico).  Diferente  da  tradição  homérica,  ou  mesmo  de  seu  primeiro  poema  ­ ​ Teogonia ­ os ​ Erga  cantam  um  tema  mais  “mundano”  e  menos  heroico.  Os  versos  desse  que  é  considerado  o  primeiro  poema  didático  do  Ocidente29  tratam  de  uma  admoestação  ao  trabalho  como  a  única  forma  adequada  de  enriquecimento,  e  é  acompanhado  por  uma  série  de  ensinamentos  sobre  o  trabalho  agrícola,  a  navegação  comercial,  a  observância  dos  costumes  e  da  religião.  Seus  ensinamentos  dirigem­se   ao  seu  irmão  Perses  e  aos  basileis  aristocratas  que  julgavam  as  contendas  pessoais  na  ágora.  No  entanto,  acreditamos  que  o  poema  tinha como alvo um público  maior.  A  questão  da  audiência  ­  do  público  que  escutava  o  canto  do  poema  ­  é  central  quando  tratamos  de  poesia  oral  e  do  aedo.  Embora  a  composição  não  estivesse  voltada  para  a  leitura  30

(WEST,  1988,  p.viii)   é  improvável   que  o  aedo  ignorasse  sua  reprodução,  tanto  na  forma  de  versos  cantados  pelo  rapsodo  quanto  pelo  público  na  forma  de  citações,  admoestações,  31

ensinamentos  ou sabedoria. No caso de  Hesíodo, que certamente conhecia os épicos homéricos ​ ,  32

reproduzindo  até  mesmo  alguns  de  seus versos  (Op. vv.317­318) ​ , é razoável considerar que ele  sabia,  ou  ao  menos  esperava,  que  o  poema  alcançaria  um  público  maior  e  mais  diverso  que  a  audiência  imediata.  Entendemos  que  não  apenas  ele,  mas  também  os  outros  aedos  levavam  isso  em  consideração  durante  a  composição.  Se  sua  audiência  era  majoritariamente  composta  por  aristocratas  –  e  se  é  que  era ­, como é comum imaginar o público dos festivais onde  cantavam os  28

 A Ilíada  e a Odisseia  possuem  cada  um  mais de  10 mil  versos, já  os dois poemas de Hesíodo possuem  1022 em Th. e 828 em Op..  29

  Os  provérbios  e   a poesia  de  ensinamentos  já  estavam presentes entre  os  sumérios no  terceiro milênio  antes da nossa era (Lamberton in HESIOD, 1993, p.9).  30

 West sugere  que  a  presença da  escrita  já no período de Homero e Hesíodo  possibilitava que os poemas  fossem  preservados  de  forma  mais   ou  menos  fixa  –   uma  vantagem  da  qual  os  autores  poderiam  ter  se  utilizado. (1988, p.viii).  31

 Se Hesído  não conhecia diretamente  a obra de  Homero  (West, 1988, pp.viii­ix) ele certamente conhecia  parte do corpus homérico, i.e., aquilo que mesmo não sendo de sua autoria veio a fazer parte da sua obra.  32

 Analisamos esses versos na seção IV do Cap. 3 da presente monografia. 

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aedos  e  rapsodos,  o  ​ Certamen   aponta  também  para  uma  presença  “popular”  durante  algumas  apresentações.  Embora  a  comparação  seja  um  instrumento  com  certa  validade,  as  diferenças  entre  a  estrutura  social  narrada  por  Homero  e  aquela  narrada  por  Hesíodo  têm  de  ser  utilizadas  com  cuidado.  O  primeiro  cuidado  está  em  reconhecer  que  apesar  de  inserir  uma  série  de  elementos  contemporâneos  na  estrutura  social  de  poemas  como  a  Ilíada  e  a   Odisseia,  Homero,  procurou  cantar  um  tempo   antigo  cujas recordações eram passadas através de tradições míticas. A tradição  mítica  não  é  uma  forma  de  preencher  os  vazios  do  conhecimento  de  um  passado  recente  (aproximadamente  os  três  séculos  que  separam  Homero  da  guerra  de  Troia),  ela  tem sua função  própria,  em  grande  parte  o  que  preenche esses vazios é a especulação, a projeção  racional (ainda  que  inconsciente)  do  presente  sobre  o  passado.  O  que  se  considera  como  um  vazio  de  conhecimento  sobre  uma  história  do  passado  pode  nunca  ter  sido  um  vazio  para  uma  estrutura  mítica,  e  só  aparecer  como  uma  ausência de algo que deveria estar lá, como causa explicativa  ou  na  estrutura  lógica,  a  partir  de  uma  narrativa  histórica.   O  mito  pode   muitas  vezes  cumprir  essa  função,  já  que  através  de uma reorganização do presente é capaz de internalizá­lo em sua própria  estrutura  mítica.  Na  Ilíada  e  na  Odisseia  não  são  os mitos que se encaixam na história mas antes  o  inverso,  ou,  o  que  consideramos  mais  provável,  a  história  desponta  onde  o  mito  já  não  encontrava  espaço  para  as  necessidades  próprias  da  epopeia  dos  séculos  IX  a.C.  e  VIII a.C.. No  entanto,  mesmo  que  não   tenha  sido  parte  dessa  pesquisa  a  análise  acurada  dos  poemas  homéricos,  concordamos  com   a  tradição33  que  vê  no  poema  elementos  suficientes  para  que  sua  obra  possa  informar  algo   tanto   da  estrutura  social  da  sociedade  micênica  quanto  da  sua  própria  época,  o  período  arcaico.  Tentamos,  sempre  que  foi  necessário,  utilizar  desse  cuidado  nas  comparações. 

33

  Se  acreditarmos  em  Plutarco  (Plut.  Lycur.   28)  o   primeiro   legislador  espartano,   Licurgo  (séc.  VI  a.C.),  reconhecendo  o caráter  político  e  disciplinar  da obra de  Homero  teria copiado  os  seus  poemas na Jônia e   divulgado estes na Grécia. 

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Sobre  o  poema  analisado  ainda  é  importante  destacar  que  “Trabalhos  e  Dias”  é  34

considerado  por  alguns  como  a  primeira  reflexão  econômica registrada no Ocidente ​ . Esse foi o  principal  fator  que  influenciou  a  escolha  dessa  obra  para  a  presente  análise.  Não  à  toa  o  poema   figura no catálogo da  editora Segesta como parte da coleção “Raízes do Pensamento Econômico”  antecipando  em  2.000  anos  a  segunda  obra  mais  antiga  da  coleção,  “Pequeno  Tratado  da  35

Primeira  Invenção  das  Moedas”  do  francês  Nicole  Oresme  (1355) ​ .  Obviamente existem outras  obras  com  elementos  de  reflexão  econômica  nesse  intervalo,  damos  como exemplo, apenas para  ficar  entre  os   gregos,  o  livro  quinto  da  Ética  a  Nicômaco  e  várias  passagens  da  Política,  ambos  de  Aristóteles,  várias  passagens  em  As  Leis  de  Platão  e  até  mesmo  as  comédias  de Aristófanes,  particularmente  o  genial  discurso  da  Pobreza na peça "Pluto" (onde tenta provar que a existência  da  riqueza  é  decorrente  da  própria  existência  da  pobreza)36 .  No  entanto,  desconheço  qualquer  pesquisador  que  considere  o  poema  de  Hesíodo  como  um  tratado  de  análise  econômica  ­  não  existe  nenhum  motivo para discutir essa hipótese porque ela é inexistente. O objetivo de Hesíodo  não  foi  sequer  o  de  escrever  uma  Oikonomia,  como  fariam  posteriormente  Xenofonte  e  Aristóteles,  ou  um  “manual”  de  administração  doméstica.  O  que  consideramos  como  reflexão  econômica  é  antes  de  mais  nada  sua  tentativa  de  compreender  o  trabalho  como  única origem da  riqueza,  riqueza  essa que é limitada apenas ao que atualmente chamamos valor de uso. Mais uma 

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  Infelizmente  muitas  abordagens  tratam  obstinadamente  da  escassez,  da  ganância,  de uma  propensão  natural para a troca e  de  uma moralidade  econômica  (e.g.: Cosimo Perrotta [2003]  The  legacy of the past:  ancient  economic   thought  on  wealth  and  development,  The  European  Journal  of the  History  of  Economic  Thought,  10:2,  177­229;   ou:  Barry  Gordon  [1963]  Aristotle  and  Hesiod:  The  Economic  Problem  in Greek  Thought, Review of Social Economy, 21:2, 147­156).  35

 O poema “Trabalhos e Dias”  na edição bilíngue de Rolim  de Moura bem como as outras obras da coleção   “Raízes  do  Pensamento  Econômico”  estão  disponíveis  gratuitamente  e  legalmente  para  download  em:  http://www.segestaeditora.com.br/pages­rpe/obras­editadas.php​  . Acesso em 24/10/2015.  36

 Ernest  N.  Manning  (2008,  p.21) sustenta que a superação, a  partir do pós­guerra, da  figura do  camponês   como forma  econômica primitiva  e  em  vias de  desaparecer  foi  responsável  em  parte pela  recuperação de  Hesíodo  e seu  poema  "Trabalhos e  Dias".  Com exceção de  Aristófanes, que teria dado certa importância à  figura   do  agricultor  em   suas  peças,  o  resto  dos  autores  gregos  estudados  pela  história  econômica  concentraram  seus  argumentos   no  espaço  urbano  (asty),  na  aristocracia  e no  comércio.  No  entanto,  isso  pode ter sido exagerado pela leitura moderna destes autores. 

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vez  não  desejamos  antecipar  a  análise,  o  que  só  levaria  a  mais  confusão  sobre  o  tema,  mas  apenas apontar um elemento reconhecido da obra.                                         

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Cap. II – Ensaio de História e Método sobre o Arcaico   

 

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  II.1 ­ História    Uma  das  características  marcantes  do  Período  Geométrico  é  a  economia  de  subsistência  visando  a  reprodução  material  da  comunidade  nuclear  local,  ou  seja,  havia  pouca  ou  nenhuma  atividade  econômica  voltada  para  fora  da  comunidade  nuclear  e  pouca  interferência  externa  na  economia  de  subsistência  (subsistência  da  comunidade  mais  que  de  seus  indivíduos)37 .  Esses  traços  são  tão  genéricos  que  podem  conduzir  equivocadamente  a  uma  aproximação  com  o  feudalismo.  Entre  uma  multidão  de  fatores  que  diferenciam  os  dois  períodos  históricos  destacamos  a  diferença  na  organização  do  trabalho  na  terra  ­  sequer  havia  uma  distribuição  de  terras parecida com o feudo ­ e a falta de um poder centralizado do tipo senhorial.  A  troca  deve  ter  sido  reduzida  ao  limite  e  integralmente  contida  no  interior  da  comunidade,  provavelmente  em  forma  de  simples  redistribuição  obedecendo  a  reprodução  da  ordem  comunal  (por  ordem   comunal  não  estamos  supondo  igualdade  material).  Se  isso  for  verdade  é  razoável  imaginar  um  agricultura  rústica,  sem  instrumentos  elaborados  ou  complexas  partes  metálicas  (embora  a  “reciclagem”  do  bronze  fosse  presente  ela  era  certamente  limitada  quantitativa  e  qualitativamente  pelo  desgaste  do  uso,  perda  na  reciclagem  e  outros  fatores  diversos).  O  trabalho  forçado,  servil  ou  de  escravos,  se  existente  tinha  de  ter  origem  local,  mas  o  mais  provável  é  que  grupos  submetidos  a  alguma  forma  de servidão durante o Micênico tenham  se  tornado  livres  após  sua  queda.  Quando  falamos  do  Período  Geométrico  a  ausência  de  fontes  documentais  e  o  baixo   volume   de  registros  arqueológicos  sobre os fundamentos mais básicos de  tais  comunidades  faz  jus  ao  termo  Idade  das  Trevas  (Dark  Age),  mas  é  o  atual  estado  de  conhecimento  sobre  o  período  mais  que  qualquer  ausência  de  vida  material  e  cultural  o  que  dá  37

  Essa  característica  marcante  dos  Períodos  Proto­Geométrico  e  Geométrico  não  ocorria  em  grau  homogêneo  por  todo  território.  Locais  de  ocupação  constante  como  Lefkandi,  Atenas  ou  Creta  possuem  indícios  arqueológicos  de  uma  abertura  mais  precoce  (séc.  X  a.C.).   Também,  nessa  pesquisa,  não  observamos o diferencial histórico das comunidades gregas da Ásia Menor. 

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sentido  ao  termo  Trevas  ­   novas  metodologias  arqueológicas,  como  a  arqueologia  da  paisagem,  vêm  mudando  esse  cenário  desde  meados  da  década  de  1980  (e.g.,  SNODGRASS,  1983;  BINTLIFF,  2005).  Com  efeito,  não  existe   nenhuma  sociedade  livre  de  materialidade38  e  de  expressões  culturais.  O  termo  Trevas  foi,  no  entanto,  adotado  para  marcar  o  declínio relativo de  uma  rica  e  complexa  sociedade  palaciana  do  Período  Micênico  para  um  aglomerado  de  comunidades  desconexas,  fragmentadas  e  de baixa atividade econômica. Esse ponto de vista tem  por  finalidade  contar  a  história  da  emergência  do  Período  Clássico  e  trata  o  Geométrico  como  uma  obstrução  anormal  e  inexplicável  dessa  trajetória.  Tudo  indica,  e  a  arqueologia  vem  apontando  para  isso,  que  a  sociedade  palaciana  do  Micênico  levou  com  seu  colapso  a  uma  acentuada  redução  populacional,  o  desaparecimento  da  escrita  micênica  (batizada  como  Linear  B)  sem  a substituição por nenhuma outra e o declínio das técnicas cerâmicas, agrícolas, em obras  hidráulicas  e  de  construções  (públicas  e  privadas)39 .  Por  mais  que  o  termo  Trevas  traga  um  sentido  ideológico  negativo  essa  ideologia não é mera invenção dos historiadores, o importante é  ter  em  mente  que o declínio é sempre referente a uma história que não é a do próprio Geométrico  mas  tem  algum  outro  período  como  referência  ­  agora,  se  esse  declínio  é  uma  melhora  ou piora  moral não cabe à nenhuma historiografia decidir40 . O modelo, em traços muito gerais, com o qual  iniciamos  o  parágrafo  é apenas um modelo dentre tantos outros, todos eles tão hipotéticos quanto  este.  A  contradição no interior dessa imagem apocalíptica é que, em  algum  momento durante o  Geométrico  o  uso  do  ferro  começou  a  substituir  o  bronze,  e  alguns  atribuem  a  ele  avanços  38

  Materialidade  não  significa  tecnologia  mas   sim  as  bases  materiais  de  uma  forma  social  qualquer;  por  exemplo,  a  área  de  caça  onde  um  grupo  de   caçadores   preparam  uma   tocaia  é,  enquanto  meio  de uma  organização  social,  parte  de  sua  materialidade.  No  caso  do  Período  Geométrico  a  base  material  mais  evidente é o meio socialmente organizado pelo e para o trabalho agrícola.  39

  O  impacto  da  redução  populacional  para  o  declínio  das  técnicas,  principalmente  de  obras  públicas,  é  quase  impossível de  medir,  mas ele  é,  no entanto,  central.  Grandes  obras hidráulicas do Micênico  como a   drenagem  do lago  Kopais  na Beócia  só  foram  possíveis com  a  mobilização  de  centenas, se não milhares,  de trabalhadores da região sob o planejamento centralizado de Orcômeno.  40

  Submeter  a   história  a  juízos  absolutos  não  se  assemelha  em  nada   com  a  observação   do  desenvolvimento   de  necessidades   imanentes  às  formas  sociais  que  seguem,  esse  sim  um  método  absolutamente legítimo da historiografia. 

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agrícolas  (GOMES,  2007,  p.18)  que   permitiram  inverter  o  declínio  com  um  crescimento  populacional  e  lançar  as  bases  para  a  transição  ao  Período  Arcaico.  Essa  visão  é  bastante  unilateral,  se  a  queda  da  sociedade  palaciana  não  pode  ser  explicada  por  um  único  fator então a  virada  do  Geométrico   para  o  Arcaico  também  não  deve   se  apoiar  unicamente  em  uma mudança  tecnológica  na  agricultura.  Podemos  supor,  com  alguma  segurança,  outros  fatores   importantes  dessa  virada.  Por  exemplo,  a  contribuição,  bastante  aceita,  de  invasores  (sejam  eles  dóricos,  povos  do  mar  ou  algum  outro)  no  declínio  do  Micênico  teria  em  algum  momento  se  esgotado  e  dado  lugar  a  formação  de  assentamentos  permanentes  desses  invasores  com  relações  mais  estáveis  (ou  menos  conflituosas)  com  as  populações “autóctones”. A presença crescente do ferro  e  de  outros  achados  arqueológicos  indicam,  em  algum  grau, uma retomada do comércio exterior  (provavelmente  no  séc.  X  a.C.).  Também,  o surgimento no final do séc. IX a.C. (ou ainda, início  do  VIII  a.C.) do alfabeto grego transformado do fenício41 aponta para  um contato mais ativo com  o  exterior42.  A  redução  de  conflitos  bélicos  e  uma  maior  estabilidade  no  tratamento  entre  as  diversas  comunidades  permite  relações  mais  duradoras  com  um  território  e  a  reorganização  distributiva  de  trabalho  e   terra.  A  abertura  e  intensificação  das  trocas,  não  apenas  entre  as  comunidades  mas  também  com  o  mediterrâneo,  impacta radicalmente tanto a cultura local como  as  possibilidades  econômicas.   O  declínio  mais  ou  menos  comum  a  todo  o  leste do mediterrâneo  durante  os  séculos  XIII  e  XII  a.C.  ainda  pede  uma  reflexão  sobre  a  influência  mútua  na  recuperação  da  região  como  um  todo.  Estes  são  alguns  argumentos  que  complexificam  a  passagem  entre  os  períodos,   mas  certamente  existem  muitos  outros  fatores  que  nos  escapam  e  que devem ser pesados no processo histórico que deu origem ao Arcaico. 

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  Cabe  aos  especialistas  discutir quais as  contribuições  da  criação  grega de  um  alfabeto  fonético a  partir  do  silábico  fenício.  Mas  devemos  abandonar  qualquer ilusão de  superioridade  já  que modelos silábicos e  ideogramas não impediram outros povos de  desenvolverem tanto sistemas eficientes de registro ou as mais  variadas e ricas expressões artísticas.  42

  Talvez  iniciado  entre  a  Ilha  de  Eubeia  e  a   Ilha   de  Creta;  hipótese   reforçada  tanto  pelos  achados  de  Lefkandi  na   Eubeia  como  pela  inscrição  em  alfabeto  grego  na  “Taça  de  Nestor”  encontrada  na   colônia  eubeia  de  Pithekoussai  próxima  a Nápoles na Itália e  datada da segunda metade do século VIII  a.C. ­ outra  inscrição  de  mesma  data  é  o  Vaso  de  Dipylon   encontrado  em  Atenas. É  extremamente  significativo que  Lefkandi  e  Atenas  tenham  sido  ambos  sítios  de  ocupação  continuada  durante  o  Proto­Geométrico  e  o  Geométrico. 

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Desconhecemos  a  forma  política  dominante  do  período  Geométrico,  mas  todos  os  indícios  levam  a  crer  que  a  figura  do  basileus  (singular:  ​ βασιλεύς​ )  foi  ganhando  centralidade  desde  a  queda  da  sociedade  palaciana  do  Micênico.  Ao  final  do  Geométrico  e início do Arcaico  já  não  restam  dúvidas  que  os  basileis  (plural:  ​ βασιλεῖς​ )  são  a  aristocracia  da  sociedade  emergente  (Homero  e  Hesíodo  são  ambos  testemunhas  desse  poder  dos  basileis).  Essa  aristocracia  dos  basileis  se  diferencia  do  Micênico  pela  ausência  de  um  poder  centralizado  na  figura  do  Wanax   (Anax),  os  basileis  não  orbitam  mais  um  monarca  e,  em  partes   importantes da  Hélade,  não  observamos  a  concentração  de  poder  na  mão   de  um  basileus  mas  antes  em  uma  assembleia  de  basileis,  i.e.,  o  governo  nas  poleis  emergentes  era  oligárquico  (a  Macedônia  e  o  Epirus, por exemplo, têm histórias bem diferentes).  Utilizamos  aqui  o  termo  oligarquia  como  referência  ao  governo  dos  aristocratas  que  retiravam  seus  poderes  do  monopólio  de  grandes  pedaços  de  terra  (grandeza  relativa).  No  entanto,  nem  Homero  e  nem  Hesíodo  testemunharam  a  existência  de  poleis,  ou  pelo  menos   não  com  as  feições  que iriam assumir no séc. V a.C. e no Período Clássico, ou seja, não devemos nos  enganar  pela  presença  do  termo  na  obra  dos  aedos.  Com  isso  queremos  destacar  que  o  governo  dos  aristocratas  não  se   confundia  com o governo de um Estado, a polis da qual se refere Hesíodo  não  é  aquela  das  instituições  públicas  voltadas  para  o  “benefício”  dos  cidadãos  mas  uma  koinonia  (​ κοινωνία​ ,  comunidade)  de particulares (oikos) sob a interferência de basileis locais ou  externos  (é  bem  provável  que  os  basileis  do  poema  de  Hesíodo  fossem  de  Tespias  e  não  da  própria Ascra).   

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  Em azul: expansão colonial grega no séc. VI a.C. (Fonte: Wikipedia). 

  O  Período  Arcaico  foi  também  aquele  que  deu  início  ao  processo  de  colonização  grega,  em  um  primeiro  momento  na  região  do Egeu, Oriente Próximo, Sicília e sul da Itália e depois na  Líbia,  o  litoral  sul  da  França,  nordeste  da  Espanha  e a região do Mar Negro ­ as afirmações (e.g.  GOMES,  2007,  p.23)  de  que  a  emporion43  é  posterior  a  apoikia44  podem  ser  relativizadas,  ou  seja,  não  marcam   duas  épocas  distintas  na  colonização.  Sobre  essa  gigantesca  expansão  grega  não  existe  consenso  do  que  teria  motivado  tal processo de colonização.  Para alguns a explicação  43

 ​ ἐμπόριον​  era uma “colônia” que funcionava basicamente como entreposto comercial. 

 ​ ἀποικία  é  o termo grego  para  colônia  (LSJ)  e  é utilizado  normalmente  para  designar  um assentamento  agrícola fixo distante da “polis­mãe”. Em termos grosseiros seria uma colônia de povoamento.  44

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seria  uma  crise  agrária  causada  pela  escassez  de  terras  férteis,  para  outros  uma   crise  alimentar  causada  pelo  aumento  populacional,  mas  quase  todos  aceitam  atualmente  uma  pluralidade  de  fatores ­ crises políticas  internas, conflitos bélicos externos, necessidade de metais, crescimento e  maior  dependência  de  redes  comerciais,  etc45 .  O  que  nos  interessa  particularmente  no  processo  de  colonização   é  que  ele  exige  um  certo grau de organização política e econômica, ou seja,  além  dos  fatores  que  empurravam  para  a  colonização  tem  de  ter  existido  condicionantes  prévios  que  possibilitavam  esse  processo.  Por  colonização  não  entendemos  a  migração cotidiana de  algumas  famílias,  como  por  exemplo   o   pai  de  Hesíodo,  mas  a fundação de poleis previamente planejadas  na  “metrópole”.  Portanto,  o  processo  de  colonização  grega  nos  alerta  sobre  dois  fatores:  poleis  organizadas  com  tensões  internas  e  externas  já  no  início  do  Arcaico,  ainda  que  não  na  forma  típica  do  Clássico,  e  a  heterogeneidade  de  organizações  (condicionantes)  e  tensões  (motivos)  entre as poleis no território da Hélade.   

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 Os termos interno e externo fazem referência as poleis  e não  necessariamente  a Helade.  Um exemplo de  fator  externo  é  a migração  forçada de  parte da  população  eubeia  após  a ocupação  ateniense  da ilha. Um  exemplo  de  fator  interno  é  a disputa de  sucessão  em  Esparta entre os  filhos de  Anaxândrides II que  teria  levado Dorieu a uma série de fracassadas expedições colonizadoras (Hdt. 5.42­46). 

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  Décret concernant la fondation de la colonie de Bréa en Thrace, vers ­445 (IG I³ 46) (Musée épigraphique  d'Athènes). séc V a.C. (Fonte: Wikipedia).   

A  relação  entre  colônia  e  metrópole  é  outro  tema  complicado  e  do  qual  especulamos  muito  e  sabemos  pouco.  Há  um  exagero em harmonizar essa relação apoiada prioritariamente na  diferença   entra  a  colonização  grega   antiga  e  a  mercantil  capitalista.  Mas  a  concentração  de  esforços  em  apontar  diferenças  óbvias  não  contribui  com  nada  de  útil  e   serve  apenas  para  fazer 

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parecer  inteligente  e  crítica  uma literatura que é na verdade um vazio analítico. Insistir  em cultos  religiosos  comuns  e  na  presença  de  instituições  políticas  semelhantes  é  esconder   que  a  organização  política,  econômica  e  social  não  pode  ser  a  mesma  quando  uma  população  local  é  submetida  a  formas  de  trabalho  forçado,  caso  de  muitas das colônias não egeias, ou quando esse  trabalho  forçado  é  trazido  de  lugares  distantes  e  diferentes,  o  caso  mais  comum  nas  poleis  da  Helade.  Também  é  evidente  que  as  colônias  fora  da  região  do  Egeu  tinham  de  lidar  com  populações  autóctones  para  além  das  relações  de  trabalho  forçado.  Algumas  das  mais  antigas  colônias  como  Náucratis  no  Egito  (séc.  VII  a.C.),  e  provavelmente  Al  Mina  na  Síria  (séc.  VIII  a.C.)  e Pithekoussai na Ischia napolitana (séc. VIII a.C.), eram concessões  comerciais negociadas  com  populações  autóctones  ou  mesmo  com  governos  como  no  caso  da  referida  Náucratis,  um  emporion  concedido  aos  gregos  pelo  Faraó  Psammetichus  I  no  século  VII  a.C.  (Hdt.  2.154).  É  difícil  saber  o  grau  de   autonomia  e  independência  das  colônias,  algo  que  devia  variar  muito  em  grau  e  forma,  mas   a  busca  de  várias  colônias  em  escapar  da  esfera  de  influência  de  suas  metrópoles  durante  a  Guerra  do  Peloponeso  mostra  que  a  suposta  harmonia  não  passa  de  um  romantismo46 .  Os  tópicos  mais  polêmicos  sobre  o  Arcaico  talvez  sejam  a  “Crise  Agrária”  e  o  debate  sobre  classes  sociais,  principalmente  o  trabalho  forçado,  ambos  intimamente  relacionados.  A  “Crise  Agrária”  por  um  lado  invoca  diretamente  a  relação  entre  a  propriedade  da  terra  e  a  organização  do  trabalho  agrícola  e  por  outro  um  mecanismo  econômico  de  escravização  por  dívida  (não  obrigatoriamente,  como  mostram  a  Lacedemônia,  a  Tessália  e  Creta).  Ao  invés  de  apresentar  algumas  hipóteses  sobre  suas  causas  consideramos  imperativo  apresentar  a  própria  crise,  e  o  que  alguns  consideram  como  consequência  da  crise  será  tratada  aqui  como  a  própria  crise, já que consideramos o próprio período Clássico como sua consequência47 . 

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  “A  independência   das   colônias  em  relação  às  metrópoles  é  um  fator  preponderante  para  o  bom  relacionamento  observado   entre  estas,  que   se  identificavam  por  relações  baseadas   nas  tradições  e  nos  cultos”, GOMES, 2007, p.23.  47

 Deixaremos de lado algumas  teses  “antropológicas” como  o limite psicológico de convívio demográfico ou  a questão endogâmica. 

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A  tese  mais  trabalhada  sobre  a  Crise  Agrária  é  a  da  escassez  de  terras  por  pressão  demográfica.  Segundo  essa  tese  o  acentuado aumento populacional durante o fim do Geométrico  e  o  início  do  Arcaico  teria  levado  a  ocupação  quase  absoluta   das  terras  férteis  disponíveis  e  a  partir  daí  seguiu­se  uma  expansão  colonial  em  busca  de  novas  terras.  Em  conjunto  com  essa  expansão  colonial,  a  escassez  produziria  a  ineficácia  econômica  da  pequena  propriedade  em  decorrência de uma fragmentação contínua por herança. ​ A tese da Crise Agrária se apoia em uma  teoria  de  Sistemas  Agrários48 ,  fixando  uma  produtividade  por  área  e  o  consumo  de  subsistência  hipotético  de  uma  família  "média".  Dessa  forma   ela  deduz  a  área  mínima  necessária  para  alimentar  uma  família  e  produzir  os  insumos  necessários  para  reproduzir  o  ciclo.  Com  o  crescimento  demográfico  e  a  ocupação  de  todas  as  terras  férteis não haveria novas terras  para os  filhos  e  a  herança  passaria  a  fragmentar  a  terra  até  o  limite  mínimo49 . ​ Ainda que levássemos em  conta que o aumento populacional  ocorreu graças a inovações nas técnicas agrícolas a redução da  área  de  um  oikos  geração  após  geração  alcançaria  em  um  dado  momento  um  mínimo  crítico.  A  lógica  é  extremamente  simples,  o  ganho  na  produção  por  inovação   não  era  contínuo enquanto o  parcelamento  da  propriedade  era.  Esse  eco  malthusiano  na  historiografia  antiga  é  dominante  na  “nova”  arqueologia,  ou  seja,  novos  métodos  submetidos  a  antigas  teorias  interpretativas  conservadoras.  O  arquétipo  dessa  teoria  é  Atenas50  e  isso  basta  para  apontar  uma   inconsistência;  quanto  mais  a  terra  era  parcelada  e  se  tornava  incapaz  de  produzir  a  própria  subsistência  das  famílias  48

 Para uma visão histórica dos sistemas agrários ver Mazoyer e Roudart, 2010. 

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  A  tese  funciona  ao  contrário  do  raciocínio   normal,  ela  não  verifica  concretamente  a  densidade  demográfica  mas supõe  que essa seja  uma explicação válida para a colonização (busca por novas  terras) e  a  partir daí calcula  a população da época. Acreditamos que essa  tese possui uma série de  falhas, uma das  mais  graves  é  generalizar  a  economia   de  subsistência,  se  muito,  válida  apenas  para  os  pequenos  proprietários,  supondo  que  a  terra  estava  igualmente  distribuída  no  limite  (e  desconsiderando,  absurdamente,  a  produtividade  diferencial  da  terra).  Também,  uma   família  com  área  de  terra  suficiente   apenas  para  a  alimentação  precisava  dar  a  própria  terra  como  garantia  pelo  empréstimo  de   sementes,   animais e  instrumentos  necessários ao  novo  ciclo  ­ claramente impossível  de cobrir supondo produtividade  e  consumo constantes (mecanismo de concentração agravado pela existência de juros) ­, o que  dificilmente   poderia ser considerado como economia de subsistência pura e simples.  50

  A  polis  de  Atenas  englobava  toda  a  Ática  como   sua   khora  (“periferia”)  e   não  apenas  a  asty  (“urbe”)  ateniense. 

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maior  era  o  comércio  ateniense  com  o exterior. Como é possível produzir abaixo da subsistência  (ou  mesmo  apenas  para  a  subsistência)  e  ao  mesmo  tempo  produzir  excedente  para  o  comércio  externo?  O  excedente  provinha  dos  grandes  proprietários?  Formalmente,  i.e.,  na  lógica  de  um  modelo,  isso  seria  possível.  Bastaria  que  o  montante  produzido  fosse  inferior  a  uma  hipotética  linha  de  subsistência mas a apropriação privada fosse suficientemente desigual e já seria possível  falar  em  um  excedente  privado51 .  Na  prática,  o  efeito  concreto  de  tal  condição  social  seria  o  oposto  de  uma  sociedade  em  plena  ascensão.  Que  existia  uma  apropriação  privada  desigual  ninguém  tem  dúvida  mas  essa  é  a  origem  da  pobreza  (relativa   e  absoluta),  que  certamente  teve  um  papel  central  na  instabilidade  política  e  nos  processos  de  colonização  do  período. O que não  existiu  foi  uma  produção   abaixo  da  linha de subsistência, como prova o permanente crescimento  populacional  (com   raras  exceções  como  o  caso  espartano  e  por  motivos  diversos).  Foi  o  excedente  agrícola  quem  suportou  o  crescimento  “urbano”  (asty),  a  emergência  das  poleis,  o  desenvolvimento  de  obras  públicas,  o  patrocínio  dos  oráculos,  os  festivais e os jogos regionais e  pan­helênicos.  Em  resumo,  tudo  aquilo que se tem como imagem de uma “civilização avançada”  cujas  bases  econômicas  eram  inquestionavelmente  agrárias52.  Não  desejamos  contestar  que  motivos  econômicos  marcaram  a  passagem  do  Geométrico  para  o  Arcaico,  nossa  intenção  é  apenas  desnaturalizar  a  pobreza  e  escapar  dos  determinismos  técnicos  tão  fora  de  moda  nas  ciências sociais atual mas ainda insistentes em algumas historiografias da antiguidade.  Esse  problema  não  está  circunscrito  ao  arquétipo  ateniense.  Se  esse  é  o  caso,  se  existia  excedente  para  o  comércio  (ponto  fundamental  da  passagem  do  Geométrico  para  o  Arcaico  e  deste  para  o  Clássico),  então  a  crise  não  era  decorrente  de  uma  pressão  demográfica  sobre  as  escassas  terras  férteis,  o  problema  era  a  concentração  de  terras,  a  escassez  era  induzida  por  relações  de   propriedade.  Onde  há  em  conjunto  escassez  e   excedente  tem  de  haver  relações  de  51

  É  óbvio  que  esse  modelo,  ou   qualquer  outro  aproximado,  deixa  de  lado  as  visões  ingênuas  de  uma   economia  de subsistência pura. A ideia do  oikos como unidade produtiva e núcleo da vida arcaica não deve  esconder  sua  relação  com o “exterior”,  a polis,  e  nem  a abertura  cada  vez mais  acentuada destas  para  o  “mundo” mediterrâneo.  52

  Ninguém  discute  a  importância  das   minas  de  Laurium  (ou  Laurion)  para  a  economia  e  a  política  de  Atenas,  principalmente  nos   período de  Pisístrato  (séc.  VI a.C.) e  Temístocles  (séc.  V  a.C.), mas  ninguém  nega o caráter agrário da Ática. 

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classe  já  desenvolvidas,  i.e.,  as  relações  de  classe  não  são  consequências  dessa  contradição  da  “oferta”   ­  ou  ainda,  a  situação  de  classe  não  é   uma  situação  de  mercado  como  deseja  certa  corrente  sociológica  mas  antes  uma  relação de produção em um modo de produção estabelecido.  É  urgente  abandonar  qualquer  metodologia,  para  qualquer  tempo  histórico,  que  pense  uma  população em termos de consumo mas  seja incapaz de pensá­la em termos de produção. Assim, a  Crise  Agrária  foi  a   expressão, agravada durante os séculos VII e VI a.C., das contradições de um  modo de produção específico.  A  emergência  de  tiranias  “antiaristocráticas”  em  várias  poleis  gregas,  a  revolução  “democrática”  ateniense  que  se arrasta desde antes da “reforma” de Solon até depois da época de  Clístenes, as duas primeiras Guerras Messênias que levaram a servidão hilota pelos espartanos na  Lacedemônia  (Paus.  3.3.2)  são  exemplos  dos  radicais  processos  de  transformações  sociais  que  marcaram  o  Arcaico. Essas transformações estiveram solidamente ligadas a novas formas sociais  de  organização  do  trabalho;  o  uso  generalizado  de  trabalho  escravo,  a  redução  de  populações  inteiras  a  condição  de  servidão,  a  expansão  das  formas  de  trabalho  pago  (misthos  [​ μισθός​ ]  ou  thetes  [​ θῆτες​ ]),  o  deslocamento  massivo  de  força  de  trabalho  (e.g.  Atenas­Eubeia,  Ascra­Tespias),  processos  de  colonização  (emporion  e  apoikia)  e  etc.  Em  resumo,  a escassez de  terras  não  foi  a   causa  da  crise  mas  foi  parte  da própria crise e o produto de relações conflituosas  de  classe.  Mesmo  aqueles  que  se  opõem  a  uma  análise  centrada   nas  classes  e  preferem  estamentos,  ordens  e  status reconhecem a importância das formas de organização do trabalho em  tais processos históricos:  As  sociedades antigas teriam passado de uma fase Arcaica marcada pela  multiplicidade  de  status,   formando   um  degradê  da  liberdade à  escravidão  com  numerosas categorias intermediarias, para uma fase Clássica  onde os status  são  reduzidos essencialmente a  dois,  escravidão e  liberdade, depois para  uma  outra  fase,  a Antiguidade  Tardia,  quando  retornariam a  uma  multiplicidade de status.  Esta  hipótese está na origem  da ideia  bastante  difundida de  que a escravidão e a  liberdade andam de mão dadas.  (ZURBACH, 2013, p.961, trad. nossa)53  "Les  sociétés  anciennes  seraient passées  d’une  phase  archaïque  marquée  par la multiplicité des statuts,  ​ formant  un   dégradé  de  la  liberté  à  l’esclavage  avec  nombre  de  catégories  intermédiaires,  à  une  phase  classique où les statuts  se réduisent pour l’essentiel à deux, l’esclavage et la liberté, puis à une autre  phase,  53

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O  problema  central   de  lidar  com  a  polarização  entre  escravidão  e  liberdade  é  que,   principalmente  para  o  pensamento  moderno,  um  termo  tem  fundamento  concreto na economia e  no  trabalho  enquanto  o  outro  é  uma  abstração  jurídica.  Essa  oposição  remete  a  Aristófanes  de  Bizâncio  (séc.  III  a.C.)  e  foi  escolhida  por  M.  Finley  para  repensar  a  sociedade  grega  antiga  como  espectro  entre  o  escravo  e  o  homem  livre54 .  A  partir  dessa  oposição,  e  da análise feita por  Finley  (com  forte  influência  weberiana),  o que se seguiu foi um hábito de  tratar a escravidão não  mais  como  uma  forma   social  das  relações  de  produção  mas  como  uma  relação  de  dominação  entre  indivíduos.  Essa  mudança  metodológica  não  se  apoia  em  nenhuma  nova  descoberta  historiográfica  ou  arqueológica  sobre  a  antiguidade  grega  mas  apenas  no  rechaço,  acentuado  a  partir  de  1980,  do  marxismo  e  na  ascensão  meteórica  do  individualismo  metodológico  entre  as  ciências sociais55.  De  nossa  parte  preferimos  pensar  a  liberdade  para  os  gregos  a  partir  da  noção  de  autarquia,  as  fontes  textuais  clássicas  reforçam  essa  abordagem  para  o  tema.  Por  sua  vez,  a  autarquia  grega  era  rigorosamente  associada  ao   trabalho  agrícola  e  à  propriedade  dos  meios   necessários  para  a  realização  do  trabalho,  sendo  a  terra  o  mais  importante  de  todos  ­  acompanhados  imediatamente  do  escravo  e  da  mulher  (como   instrumento  de auxílio  do  trabalho  o  escravo  não  se  confunde  com  um  trabalho  específico,  algo  que  Finley  parece  desconsiderar).  Isso  não  deve  refletir  uma  escolha  arbitrária,  baseada  em  modismos  metodológicos  ou  em  preferências  ideológicas  pessoais,  mas  tem  de  ser  coerente  com  os  fundamentos  concretos  da  análise  ­  no  caso  da  presente  pesquisa,  fontes  documentais  do  período.  De  maneira  alguma  estamos  negando  a  validade  de  abordagens  "extra­econômicas"  do  tema,  pois,  de fato, nenhuma  relação  social   pode  ser  reduzida  unicamente  as  suas  determinações  econômicas  mais  imediatas.  l’Antiquité  tardive, où  l’on serait  revenu  à une multiplicité de statuts. Cette hypothèse est  à l’origine de l’idée  très répandue que l’esclavage et la liberté marchent main dans la main".  54

  μεταξύ  ελευθέρων  και  δούλων;  entre  livres  e   escravos   ([p.233],  M.  I.  Finley.  Between  Slavery  and  Freedom. Comparative Studies in Society and History, Vol. 6, No. 3 (Apr., 1964), pp. 233­249).  55

 Essa acensão  meteórica  tem fundamentos históricos na  própria década  de 1980 e não em uma suposta  superioridade  metodológica  demonstrada  por  argumentos  cientificamente  neutros.  Aqueles  que procuram  defender  essa  "virada"  como  uma  superação  da velha polaridade  entre  agência e estrutura, motivada  por  uma evolução interna das ciências sociais, fazem apenas o velho jogo político disfarçado de ciência. 

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Nossa  intenção  é  chamar  a  atenção  para  uma   ideologia  anti­econômica  que  ora  se  recusa  a  reconhecer  a  presença  da  economia  nos  fenômenos  sociais   e  ora,  quando  já  não  pode  mais  contornar sua presença, reserva a ela um lugar secundário ou marginal.    II.2 ­ Classes    Todo  o  Estado  se  compõe de três classes  de  cidadãos: os que são  muito  ricos,  os  que  são  muito  pobres  e  aqueles  que  estão  em  uma  posição  intermédia com uns e outros.  Arist. Pol. 1295b; IV.IX.3; 2009, p.140.   

Essa  frase  de   Aristóteles,  embora  bastante  criticada,  permanece  extremamente  viva  no  senso  comum  até  os  dias  atuais.   Isso  se  deve  em  parte  pela  simplicidade  de  sua  lógica;  dois  extremos  e  um  meio.  A  empiricidade  dessa  lógica  é  uma  outra  parte   dessa  popularidade;  a  imediata  diferença  dos  extremos  e  a  complexa  variedade  do  que  não  é  nem  um  nem  outro.  A  validade  metodológica  dos   dualismos  parece  se  apoiar  largamente   em  sua  potência  de  determinar,  por  negação  simples,  um  terceiro.  Parece  contraditório  que  a  força  dos  dualismos  esteja  em  determinar  uma  terceira  parte,  mas   tal   aparência se dissolve quando consideramos que  essa  terceira  parte  tem  por  substância  o  dualismo  original  ­  nenhuma  imagem   escapa ao jogo de  sobreposição entre o claro e o escuro.  Deixando  de  lado  o  aspecto  puramente  formal desse dualismo encontramos na citação de  Aristóteles  alguns  elementos  históricos  (e  substanciais)  explícitos:  a  presença  do  Estado  inseparavelmente  relacionada  a  presença  de  cidadãos  que  se  diferenciam  por  critérios  objetivos  (e  não  por  linhagens  parentais,  filiação  a  um  grupo  ou  seita  religiosa  ou  pertencimento  a  uma  categoria  jurídica).  Aristóteles  não  é  nem  o  primeiro  e  nem  o  último  a   perceber  essa  inseparabilidade  entre  política  e  diferenciação  econômica,  ou  seja,  os  fundamentos  econômicos  do  Estado  ­  Estado  este  que  não   é  reduzido  a  condição de corpo administrativo ou governo, mas 

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é  o  lócus  dos  conflitos  sociais.  Dizemos   lócus  dos   conflitos   e  não  da  solução  dos  conflitos  seja  porque  ao  negociar  os  conflitos  ele  os  reproduz  ao  invés  de  superá­los  ou  porque  ele  mesmo  aparece  como  forma  de  dominação política do conflito. Em ambos os casos  a natureza do Estado  é  a  da  reprodução  dos  conflitos  e não de sua superação. Ao longo de toda história a superação de  uma  forma  do  conflito   por  outra  exigiu  mudanças  na  própria  forma  do  Estado  e,  pelo  mesmo  motivo,  uma  determinada  forma  de  Estado  sempre  se  revelou  como  obstáculo  para  a  superação  do  conflito  em  qualquer  de  suas  formas.  No  caso  da  Grécia  Arcaica  é  impossível  separar  esses  conflitos da emergência de tiranias, da democracia e das Constituições.  No  entanto,  a  frase  de  Aristóteles  não  trata  propriamente  de  classes  mas  sim   das frações  sociais  segundo  seus  interesses  políticos  apoiados  na  desigualdade  econômica.  Grosso  modo,  a  passagem  faz  referência  ao  conflito  entre   aqueles  que  desejam  utilizar  do  Estado  para  tomar  o  patrimônio  dos  ricos,  ou  seja,  os  pobres,  e  aqueles  que  desejam  utilizar  do  Estado  em  benefício  próprio,  ou  seja,  os  ricos56 .  O  filósofo  estagirita  se  utiliza  desse fracionamento em busca de uma  Constituição  ideal  e  para  tanto  naturaliza  essas  frações  sociais,  em  nenhum  momento  está  pensando  em  revoluções  nos   modos  de  produção  que  possam  superar  tal  fracionamento.  Não  cabe  aqui  discutir  a  filosofia  política  aristotélica,  o  que  desejamos  com  a  citação  é  ilustrar  a  presença  inequívoca  de  tensões  políticas  com  origem  econômica  na  antiguidade  grega. Faremos  outra  citação,  mas  agora  para  ilustrar  que  suas  reflexões  econômicas  não  estavam  reduzidas aos  interesses subjetivos de uns e outros ou a capacidade de acessar bens no mercado:  No que se  refere  à propriedade [​ κτήσεως​ ], a primeira ocupação [​ πρώτη  ἐπιμέλεια​ ]  é  a  que  vem  de  acordo  com  a  natureza  [​ φύσιν​ ].  Ora,  segundo  a  natureza,  a  agricultura  tem  a prioridade; depois, estão as  artes que  ​ extraem  as  riquezas  do  solo​ ,  como  a  atividade  mineira  e   outras  do  mesmo  gênero.  ​ A  agricultura  [γεωργικὴ]  detém  a  primazia,  pois  respeita  a  justiça;  na  verdade,  nada  retira  ao   homem,  seja  com  o  seu  consentimento,  como  no  comércio [καπηλεία] ou no  trabalho  assalariado  [μισθαρνικαί], seja contra  sua vontade, conforme ocorre nas lides guerreiras [πολεμικαί]​ . 

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 Dito  dessa forma  (e  não  estamos  acusando Aristóteles de ter dito algo parecido) o Estado  aparece  como  um  ente  reificado,  com  existência  própria  separada  da  sociedade,  e  disputado  por  frações   sociais  com  diferentes  interesses  políticos.  Essa   reificação  é  uma  fantasia  moderna   com  raízes  no  Iluminismo  que  entende o Estado como objetivação da razão em uma forma burocrático­legal. 

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Aristóteles, Econômicos, 2007, p.7. [1343a25­30] (grifo nosso).   

Durante  a  análise  do  poema  de  Hesíodo  veremos  uma clara aproximação com essas duas  citações.  Aproximação  que  não  deve  ser  exagerada,   é  verdade,  mas  que  ainda  assim  evidencia   um  eixo  comum  de  tensões  na  sociedade  grega  seja  do  início  do Arcaico ou do fim do Clássico.  A  primeira  delas  consiste  na  incompatibilidade  de  interesses  entre  frações  econômicas  da  sociedade  e  no  uso da  política  em benefício próprio por parte da aristocracia, no caso de Hesíodo 57

,  e  de  uma  oligarquia  ou  democracia  (tirania  da  demos)  no  caso  de  Aristóteles.  A  segunda 

aproximação  é  a  primazia  da  agricultura  por  ser  esta  uma  forma  de  riqueza  produzida  e  não  retirada  de  um  outro  (o   que  parece  ainda  mais  evidente  no  Arcaico  de  Hesíodo  que  no  Clássico  de  Aristóteles).  O  principal  meio  de  produção  (usando  uma  terminologia  moderna)  reconhecido  pelos gregos da antiguidade era a terra (o que permanece válido em termos gerais mesmo durante  o  Clássico,  quando  algumas  grandes  fortunas  nasceram  do  comércio  e  da  mineração).  Daí  a  diferenciação  dos  trabalhos  ser  vinculada  à  terra  e  das  riqueza  por  suas  origens,  i.e.,  pelos  próprios  trabalhos  diferenciados  (não  há  riqueza  abstrata   onde  falta  o  trabalho  abstrato).  Se  a  política  é  parte  importante  para a reprodução de desigualdades econômicas ela não é a origem de  tais  desigualdades.  Com  isso  desejamos  enfatizar  que  entre  os  gregos  a  riqueza  não  era  a  acumulação  de   uma  forma  abstrata  de  valor,  a  atual  forma­dinheiro,  mas  a acumulação dos dois  meios  de  produção  primordiais,  terra  e  trabalho.  Apenas  no  modo  de  produção   atual,  o  capitalismo,  é  que  o  dinheiro  assume  um  papel  central  na  economia,  qual  seja,  o  de  forma  abstrata das relações de produção como capital monetário (riqueza móvel). 

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 O  nosso entendimento  é que  para  Hesíodo é  impossível  à qualquer  não  aristocrata utilizar a  política em  benefício  próprio.  Não  porque  ele   não  possua  os  meios   para   corromper  ou  adquirir   privilégios  políticos,  menos  ainda  por qualquer  superioridade moral  do trabalho,  mas  porque  a política  nada produzindo  não é  uma  forma  de sustento  viável  para  aqueles que  precisam trabalhar. Já o aristocrata,  retirando seu sustento  da  grande propriedade  e  do  maior  número  de  escravos, não  precisa  trabalhar  e pode, portanto, dominar o  espaço  da  política.  Esse  será  exatamente  o   mesmo  argumento  desenvolvido  por  Aristóteles  em  sua  Constituição  ideal  para  negar  a  cidadania  ativa (​ πολίτας​ ) àquele que  trabalha  a terra (​ γεωργοὺς​ ) (Aristot.  Pol.  7.1328b40).  Vê­se  como   ideologias  de   classe  podem  aparecer  como  reflexos  invertidos  de  uma  realidade concreta. 

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Enquanto  a  riqueza   esteve  presa  quase  que  exclusivamente  à  terra  a  aristocracia,   os  grandes  proprietários,   seriam  dominantes  politicamente.  Na  época  de  Hesíodo,  portanto,  a  reprodução  das  condições  de  classe  do  pequeno  e  médio  proprietário  era  também  a  reprodução  da  aristocracia  (reproduzir  o uso da terra como fonte de poder político, militar e econômico ­ e, o  mais  importante,  domínio  sobre  o  trabalho  do  não  proprietário).  No  entanto,  aí  encontramos  também  a origem do tensionamento de classes, a disputa por e contra a acumulação da terra (e do  trabalho  forçado),  e  a  fraqueza  política  da  aristocracia  que  não  conseguia  levar  a  termo  o  monopólio  da  terra  (algo  que  o  hoplita  tornará  inviável  por  completo).  Que  a  aristocracia  avançava   sobre  a  terra  dos  pequenos  e  médios  agricultores  não  resta  dúvida.  A  lei  solônica58 do  século  VI  a.C.  na  Ática,  o  forte  governo  oligárquico  de  Tebas  na  Beócia  ou  as  guerras  na  Lacedemônia  que  reduziram  povos  inteiros  a  condição  de  servidão   deixam  pouca  margem  para  outras  hipóteses.  Mais  ainda,  a  escravidão  por  dívida  que  cresceu  entre  o  século  VII  a.C.  e  VI  a.C.  é  evidência  de  que  a  acumulação  de  terras   vinha  acompanhada  da  acumulação   de  trabalho  forçado  ­  acumular  terra  sem  gente  para  trabalhar  nela  seria  um  esforço  inútil.  Essa  dinâmica  econômica  era  o  principal  fator  de  reprodução  da  classe  aristocrata,  e  não  um  suposto  poder  estamental  fundado  em  linhagens  heroicas  –  poder  que  era  radicalmente  negado  pelos  proprietários  não  aristocratas,  como  atesta  a  guerra  civil  que  levou a produção das leis solônicas 59

,  a  degola  dos  ricos  em  Megara60  ou  o  avanço de Téspias sobre Ascra (BINTLIFF, 1999, p.49). 

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 e.g. σεισάχθεια, seisachtheia, leis  de abolição da  servidão por dívida. Antes dela  o devedor ao não pagar  perdia  a  terra  e  ficava  preso ao  seu  novo  proprietário, o  credor,  na condição de  servidão  conhecida como  hektemoroi, ἑκτήμοροι,  i.e.,  aquele  que paga ⅙ da  produção. Sobre  as leis de Solon ver  Aristot. Const.  Ath.  6.1 e 7.3.  59

 "Para o ateniense a Constituição era em todos os aspectos oligárquica, e  de fato os pobre eles  mesmos e  também  suas  esposas  e  filhos  eram  na  realidade  escravos  dos ricos;  e  eles  eram chamados Clientes,  e   arrendatários   de  uma  sexta  parte  (pois  essa era  a renda que pagavam  pela terra  dos  homens ricos  onde  eles plantavam,  e toda região estava em poucas mãos), e se alguma vez eles falhassem em pagar a  renda,  eles mesmos e  seus filhos ficavam passíveis de prisão; e todo o empréstimo era assegurado com a pessoa   do  devedor  até  o tempo de Solon: foi ele quem primeiro tornou­se chefe do povo. Assim a coisa mais grave  e  cruel  no  estado  dos  assuntos  públicos   para   as  massas  era sua escravidão;  não  apenas,  mas também  estavam  descontentes  com  todo  resto,  pois  se  encontravam   virtualmente  sem  parte   em  coisa  alguma.  (Arist.  Const.   Ath.  2.2­3,  trad.  nossa).   Sendo  esse   o  sistema   na  Constituição,  e  os  muitos  sendo  escravizados  pelos  poucos,  o  povo  se  levantou  contra  os  notáveis.  Sendo  a  luta  partidária  violenta  e  permanecendo  as  partes   organizadas  em  oposição   uma  à  outra  por  muito  tempo,  eles  conjuntamente  escolheram  Solon  como  árbitro  e  Arconte,  e  confiaram  o  governo  a  ele"  (Aristot.  Const. Ath. 5.1­2,  trad. 

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Mas  como  já  ressaltamos,  isso  não  implica  em  uma  negação  absoluta  de  uma  classe  frente  a  outra  pois  ambas  reproduzem  não  apenas  as  suas  condições  de  classe  mas  também  das  demais.  As  relações  entre  terra  e  trabalho  devem  ser  observadas  como  produto  da  dinâmica  de  classes,  dos mecanismos de sua reprodução e a origem do seu poder61.  Já  dissemos  antes  que  um  dos  objetivos  dessa  pesquisa  foi  procurar  alguns  contornos  concretos  das  relações  de  classe,  a  forma  que  tais  relações  assumem, no poema de Hesíodo. Daí  que  não  se  deva  esperar  dessa  monografia  nem  definições  das  classes  sociais  da  antiguidade  grega  (até   por  completo  desacordo  com  qualquer  metodologia  que  estude  classes  sociais  por  definições conceituais) e nem mesmo um tratamento mais aprofundado ou exaustivo do tema. Ao  contrário, buscamos em Hesíodo uma oportunidade de entrar na questão do debate metodológico,  central  para  as  ciências  sociais,  sobre  classes  em  formações  históricas  não  capitalistas.  Por  ora,  desejamos  apenas  destacar  dois  pontos  (inseparáveis  entre  si)  que  consideramos  de  extrema  importância  para  a  compreensão  sobre  as  classes  na  antiguidade  grega:  um  deles  trata  da  propriedade  da   terra  como  centralidade  da  dinâmica  social  e  do  conflito  de  classes  na  Grécia  Antiga;  o  outro  trata  da  oposição  central  na  sociedade  grega  entre  trabalho  forçado  e  trabalho  livre  (deixando  de lado aquela abstração de "homens  livres"), onde o primeiro é o fundamento da  reprodução  do  segundo.  Assim,  entendemos  que  a  dinâmica  social  grega  tem  de  ser  procurada  nossa)".  [“For the Athenian  constitution was in  all  respects oligarchical, and  in fact the poor themselves and  also their  wives and children were actually in slavery to the rich; and  they were called Clients [​ πελάται​ ], and   Sixth­part­tenants   [​ ἑκτήμοροι​ ]  (for  that   was  the  rent  they paid  for  the  rich  men's land  which they  farmed,  and the whole of  the country  was  in  few hands),  and if  they ever  failed  to  pay  their  rents, they  themselves  and their children  were liable to arrest; and all borrowing  was on the security of the debtors' persons down to  the  time of  Solon:  it was he  who first became head of the People. Thus the most  grievous and bitter thing in   the  state  of  public  affairs for the masses was their slavery [​ δουλεύειν​ ]; not but what they were discontented  also about  everything  else, for they  found  themselves virtually without  a  share in anything.” (Aristot. Const.  Ath.  2.2­3). “Such being  the  system in the constitution,  and the many being enslaved to  the  few, the people   rose  against the notables. The party struggle  being violent and the parties remaining arrayed in opposition to  one another for a long time, they  jointly chose Solon as arbitrator and Archon, and  entrusted the government   to him” (Aristot. Const. Ath. 5.1­2)].  60

 Arist. Pol. 1305a20­30 (V.IV.5). 

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  Arist. Pol.  1319a5­20  (VI.II.5­6). Uma  lista  com  exemplos desse  tema  aparece  em  Zurbach  (2009, p.37,  nt.66);  “Aristote,  ​ Politique​ ,   1319a  6­14  ;  1265b   12­16  ;  1266b   14­24  (comprenant  la  loi  de  Solon   fr.  66  Ruschenbusch) ; 1274b 2­5”. 

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nos conflitos pela propriedade da terra mas que estando a reprodução  concreta de todas as classes  proprietárias  vinculada  ao  trabalho  forçado  (em  suas  diversas  formas)  este  constitui  um  fator  determinante das relações sociais, entre as classes, na antiguidade.  Sócrates  —  De  cada  um  dos  indivíduos  que  possuem muitos escravos  na  cidade,  pois  eles  são  semelhantes  aos  tiranos   no  seguinte…  Exercem  o  comando sobre  muitos, e  a diferença está  em  que  os escravos do tirano formam  uma multidão.  Glauco — É essa a diferença.  Sócrates  —  Sabes   que  esses  indivíduos  vivem  tranquilamente  e  não  temem seus servidores?  Glauco — Ora, o que temeriam?   Sócrates — Nada. Falei. Mas sabes por qual razão?  Glauco  —  Sim,  porque  toda  a  cidade  corre  em auxílio de  cada  um de  seus homens.  Sócrates  —  Respondeste  bem,  disse  eu.  Mas  e  agora?  Se   um  deus  tirasse  da  cidade   um  só  homem  que  tenha  cinquenta  escravos  ou  mais,  junto  com  a mulher  e filhos, e  os  colocasse  com todos  os  seus bens e servidores num  deserto  em  que  nenhum homem livre  iria socorrê­los, imaginas como  e quanto,  por si, pelos filhos e pela esposa, ele temeria a morte na mão dos servidores?  Glauco — Sentiria medo de tudo, acho eu, disse ele.  Sócrates  —  Não  seria  forçado  a  adular  a  alguns  dos  escravos,   a  fazer­lhes  muitas  promessas  e  a  libertá­los  sem  necessidade,  revelando­se  a si  próprio como adulador dos seus escravos?  Glauco — Seria forçado a agir assim, disse, ou a morrer.  Sócrates  —  E  então?   Se  também  o  deus  instalasse  ao  redor  de  sua  propriedade  muitos  vizinhos  que  não  suportassem  que  um  homem  pretendesse  ser  o  senhor  de  outrem,   mas,  caso  topassem  com alguém com tais  pretensões,  imporiam penalidades extremas?  Glauco  —  Creio  que a  sua infelicidade, disse eu,  seria ainda maior, ao  sentir­se cercado por todos os seus inimigos.  Platão, Rep., IX.578d­579b; 2006, pp.358­359. 

   Esse  diálogo  também  ajuda   a  dissipar  confusões entre o que é luta de classes, fator social  constante,  com  processo  revolucionário,  evento.  Não  é  um  argumento  válido   negar  a  existência  de  uma  classe,  ou  da  luta  de  classes,  pela  ausência  de  revoluções.  O  evento,  a  revolução  no  interior  da  luta  de  classes,  depende  de  fatores  objetivos  tais  como  organização  mínima  e  condições  concretas  de  superação  política  e  econômica  da  forma  social  vigente.  Daí  que  o 

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movimento  histórico  da  Grécia  Antiga  esteja  ancorado  nos  pequenos  e  médios  proprietários  de  terra  e  não   nos  escravos  ­  e  por esse mesmo motivo é que a escravidão  dos próprios membros da  polis  desmoronou  antes  mesmo  de  se  efetivar.  É  corretíssima  a  noção  de  que  a  oposição  fundamental  na  antiguidade  grega  era  aquela  entre  trabalho forçado e trabalho livre (ou livres  do   trabalho  como  os  aristocratas)  justamente  porque  todas  as  classes  sociais  livres  da  Grécia  estavam  radicalmente  apoiadas  no  trabalho  forçado  para  se  reproduzirem.  Nesse  cenário  as  condições  de  superação  da  escravidão  eram  praticamente  nulas  ­  se  não  totalmente  nulas.  Mas  daí  não  se  tira  que  todos  os  homens livres pertenciam a uma única classe ou que os  escravos não  resistiam  como  podiam  à  escravidão ­ a rebelião constante dos hilotas, a fuga dos 20.000 durante  a  ocupação   espartana  de  Atenas  ou  até  mesmo  a  morte  como  forma  de  libertação62.  Para  nossa  infelicidade   Hesíodo  não  tenciona a escravidão em seu poema. Certamente a forma natural como  ela  era  vista  pelas  classes  proprietárias ajuda a explicar essa  ausência, mas também, e talvez esse  seja  o  principal  motivo,  porque   o   foco  do aedo é o conflito com os basileis aristocratas ­ conflito  no qual a escravidão, ao contrário de um contraste, é o elemento comum.                 

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 "Debita  libertas  iuveni  mihi lege  negata  / morte  immatura  reddita  perpetua  est." [CIL X 4917];  epitáfio de  um  escravo  romano (vilicus) morto aos 25 anos  como os seguintes dizeres "a devida liberdade negada pela  lei na juventude / a morte prematura tornou perpétua"  (CROIX, 1981, p.174, trad. nossa). 

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Capítulo III ­ O Poema     III.1 Proémio e Duas Érides    Não  afirmarei  falsamente que me destes  a arte, ó Apolo,  nenhuma  voz  de um pássaro celeste  me aconselhou, eu jamais avistei Clio ou  suas  irmãs enquanto  apascentava  rebanhos, ó  Ascra, em teus vales:  Experiência incitou esse trabalho: ouve o poeta experiente: eu canto  a verdade: ó Vênus, assiste minha sorte!  Ovídio​ , Ars Amatoria63     Combati  o  bom  combate,  acabei  a  carreira,  guardei  a  fé.  Desde  agora,  a  coroa  da  justiça  me  está guardada,  a qual  o  Senhor, justo  juiz,  me   dará  naquele  dia;  e  não  somente  a  mim,  mas  também  a  todos os que amarem a sua vinda.  2 Timóteo 4:7­8   

O  que  pretendemos  nesse  capítulo  é  algo  bastante  diverso  da  fortuna  crítica  discutida no  primeiro  capítulo.  A  tradição  analítica  no  entorno  de  “Os  Trabalhos  e  os  Dias”  é  a  do  estudo  sistemático  de  passagens,  aprofundamento  de  tópicos  e  de  eruditos  trabalhos  filológicos.  O  que  já  foi  vertido  em  tinta  apenas  no  estudo  jurídico  do  poema seria suficiente para empalidecer, em  quantidade,  não  em  qualidade, as mais de cinco mil páginas dos “Comentários sobre Aristóteles”  escritos  por  São  Tomás  de  Aquino. Um exemplo de erudição filológica “recente” é o trabalho de  W.  J.  Verdenius,  “​ A  Commentary  of  Hesiod  ­  Works  and  Days,  vv.  1­382”,  ​ de  1985,  onde  o  "Nor  will I  falsely  say  you  gave  me  the  art,  Apollo, no  voice from a heavenly bird gives me advice, I never   ​ caught  sight  of  Clio or  Clio’s  sisters while herding the flocks,  Ascra, in your valleys: Experience prompts this  work:  listen  to  the  expert  poet:  I sing true: Venus,  help my  venture!" (​ Publius Ovidius  Naso​ ,  Ars  Amatoria,  p.123, trad. nossa).  63

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classicista  holandês  discute,  verso  por  verso,  alguns  termos  gregos  quase  à  exaustão.   Nosso  tratamento  é   tão  mais  superficial  quanto  geral, o esforço tem como objetivo principal concatenar  posições  de  classe,  relações  entre  produtor  e  meios  de  produção  e  a  inseparabilidade  analítica  entre  interior  e  exterior  da  unidade  produtiva  ­  o  ​ oikos​ .  Os  versos  do  poema  não   autorizam, nos  limites  da  ciência,  nada  além  de  exageros  especulativos.  Mas  é  exatamente  isso  que  torna  “Os  Trabalhos  e  os  Dias”  uma  inesgotável  fonte  de  análises  acadêmicas   e  um  objeto  de  pesquisa  eternamente  original.  É  um  engano esperar neutralidade em qualquer trabalho analítico, aqui não  é  diferente.  Ao   invés  de  disfarçar  os  juízos  por trás de um linguajar científico deixamos que eles  se  revelassem  abertamente, assim como o voto de Panedes no Certamen entre Hesíodo e Homero 65

.  Ora  ao  ver   que,  apesar  de  a  cidade  se  envolver  em  frequentes  dissensões  [​ στασιάζουσαν​ ], alguns dos  cidadãos,  por apatia,  se compraziam  com  o acaso,  promulgou  uma  lei  a eles  dirigida:  “Quem,  estando a  cidade em dissensão, não  pegar  em armas por nenhum dos partidos, tornar­se­á atimos [​ ἄτιμον​ , sem timé]  e não tomará parte na vida da cidade”.  Aristot. Const. Ath. 8.5 (LEÃO, 2002, p.28) 

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 Apesar  do título,  o livro  não  comenta  o  poema  mas  funciona, antes, como  um importante instrumento de  auxílio,  bem  ao estilo  do classicismo, para a sua análise. Para um trabalho parecido, ver a dissertação  para   obtenção  do título  de  PhD na  University  of  Chicago escrita  por  Heber  Michel Hays,  1918. Utilizamos,  com  muito mais  regularidade,  o  dicionário sensível ao contexto LSJ (várias vezes citado pelo próprio Verdenius)  e o de termos Middle Liddell disponíveis no site Perseus.    Durante  essa  narrativa  ficcional  Hesíodo  vence  Homero   em  um  competição  (​ Certamen​ ,  ou  também  Agon​ )  de cantos. Panedes, irmão  de Anfidamante, para quem os  jogos funerários eram dedicados, justifica  seu voto  contrário  à  vontade  popular “dizendo que  era  justo que  vencesse  aquele que incitava ao trabalho  do campo e à paz, não aquele que descrevia combates e mortes” (2005, p.154).  65

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Hesíodo  começa  amparando  a  verdade   de  suas  sentenças  na  inspiração  das  Musas ​ ,  portadoras  de  um  conhecimento  sobre  a  ordem  divina  da  natureza  que  recai  sempre  na  vontade  de  Zeus.  O  aedo  não  possui  o  Iluminismo  e  nem  precisa dele, para sua gnose o divino basta, sua  intenção  é  didática  e  versa  sobre  a prática. Ou seja,  Hesíodo não reflete sobre a verdade dos seus  conhecimentos  como   se  estes  fossem  o  produto  de  uma  cabeça  pensante.  O  conhecimento  do  Cosmo  é  externo  e  objetivo  e  não  um  fenômeno,  modelo  ou  teoria.  Para  os  atuais  padrões  da  ciência  isto  é   inadmissível,  sem  uma  prévia  “massagem”  metodológica  qualquer  propedêutica  é  dogma  e  ingenuidade.  O  que   o   "sujeito  hesiódico"  coloca  para  si   como  objeto  de  reflexão  é  a  transmissão  desse  saber  e  o  que  fazer  com  ele.  Mas  o  aedo  gnóstico  não  é   um  técnico,  é  um  artista, e isso significa que sua reflexão crítica se encontra no produto final  de sua obra de arte. Já  dissemos  que  o  poeta  versa  sobre  a  prática,  e  descreve  aqui  e  ali  uma  ou  outra  técnica,  muito  rústica  aos olhos modernos e certamente do conhecimento de seu público. Mas também dissemos  que sua intenção é didática, e o que Hesíodo deseja ensinar não é o jungir dos bois.  Qual  a  relação  entre  técnica  e  didática?   Essa pergunta vai muito além da presente análise  e,  por  ora,  nos  contentaremos  com  uma  breve  discussão  sobre  o  saber  fazer  e  o  saber  ensinar.  Nenhum  dos  dois  existe  desprovido  de  reflexão.  A  poesia  didática  é  uma  forma  expositiva  (inspirada  pelas  Musas  e  executada  pelo  aedo)  que  intenta  fazer  com  que  alguém  compreenda  68

algo ​ .  Hesíodo  não  ensina  como  proceder  nos  trabalhos  agrícolas  mas  sim  porque  fazê­los  e    A  tradução  feita  por  José  Ribeiro  Ferreira  (HESÍODO,  2005)  de  ​ ἐ​ τήτυμα  (v.10)  como  “verdade”  é  acompanhada  por  Hugh  Evelin­White  (HESIOD,  1914)  que verte o  termo  grego  como  “true”  e também  por  Alessandro  Rolim  de Moura  (HESÍODO,  2012).  Porém,  não é  adotada por Werner  (HESÍODO, 2013b) que   prefere  o  termo  “genuíno”.  Em  Teogonia (v.28) a  verdade  proclamada pelas  Musas  é  ​ ἀ​ ληθέα​ . A  verdade   (​ ἀ​ ληθέα​ )  cantada  pelas  Musas  e  o  discurso  genuíno  (​ ἐ​ τήτυμα​ )  de  Hesíodo  não  são,   de  fato,  a  mesma  coisa  e   por  isso  preferimos  a  tradução  de  Werner  que  as  demais.  No  entanto,  essa  diferença,  cuja  a  importância  consideraremos mais  a frente, não altera a fonte  do conhecimento transmitido  pelo aedo, como  fica evidente na passagem sobre a navegação (vv.660­662).  66

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 A localização geográfica das Musas na  Piéria,  região  da Macedônia  grega próxima ao  Monte  Olimpo,  e   não  em  Hélicon  na   Ascra  de  Hesíodo,  deu  origem  a  uma  discussão  sobre   a  autoria   do  proémio  (Paus.   9.31.4).  No  entanto,  embora  dedique  o  proémio  da Teogonia as Musas do  Hélicon estas são as  mesmas  nove Musas do Olimpo paridas por Mnemosine na região da Piéria (Hes. Th. vv.22­25;53­62).  68

 Isso não  implica em  que todo  o  poeta didático  tenha sucesso no seu ensinamento, ou ainda  que tenha a  qualidade  de  um  Hesíodo  ou  de  um  Ovídio.  Não  reconhecemos   a  Teogonia  como  poesia  didática,   mas  também os hinos e a épica, com sua ação de dar nome as coisas e eventos do mundo é amplamente aceita 

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porque  fazê­los  segundo  uma  ordem  e  um  tempo.  Daí  que  muitas  vezes  a  poesia  didática  seja  vista  como  poesia  moral;  o  porquê,  não  raro,  se transforma rapidamente em um juízo que  separa  o  que  é  do  que  deve   ser.  Eis  a  causa  pela  qual  importa  menos  justificar  o conhecimento por sua  origem  divina  que  justificá­lo  por  suas  consequências práticas (e éticas). Hesíodo não se limita a  transmitir  o  conhecimento  soprado  pelas  musas,  por  exemplo  quando  navegar,  mas  deseja  que  seus  ouvintes  saibam  o  motivo  e  o  fim  de  tal  conhecimento.  “O  melhor  de  todos (​ πανάριστος​ ) é  aquele  que  pensa  por  si,  compreendendo  o  que  em  seguida  e  no  fim  será melhor”  (vv.293­294).  Portanto,  saber  ensinar,  ser  didático,  é também saber o porquê se ensina e  dessa forma explicar o  porquê  de  saber  fazer  algo  para  que  o  aprendiz   pense  por  si  próprio,  compreendendo  o  que  em  69

seguida  e  no  fim  será  melhor.  Sem  isso  não  existe  a  autarquia ​ ,  o  controle  sobre  si  próprio,   conceito  caro  aos  gregos  da  antiguidade  ­  atualmente  muito  confundido  com o conceito abstrato  70

de  liberdade ​ .  Portanto,  uma  das  primeiras  condições  da  poesia  didática,  a  existência  da  “constelação  professor­aluno”  (VOLK  in  TREVIZAM,  2014,  p.38),  é  que  aedo  e  ouvinte sejam  cientes  de  si.  A  emergência  de  uma  reflexão  sobre  a  própria  subjetividade  não  era  no  período  arcaico  uma  exclusividade  da  poesia  didática,  mas  também  estava  presente  no  “Eu”  da  poesia  lírica.  Um  delicioso exemplo é fornecido por Plutarco que recupera os versos do poeta Arquíloco  de Paros (séc. VII a.C.):  O escudo abandonei porque foi preciso, pobre armadura inculpável!  Próximo a uma moita, alegra agora algum dos Saios,  mas eu me salvei. O que me importa esse escudo? 

como  “pré­filosofia”  (seja  porque  o   nome,  conceito,  é  condição  para  a  reflexão  de  algo,  ou   porque  o  conceituar, dar nome, é o produto particularizante de um momento reflexivo).  69

 Ou ainda o ​ ὄ​ λβον,​  olbon, fortuna em sentido amplo, para além do material. 

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  Pura  confusão, a  autarquia  grega  excluía o assalariado  (thete) e  era  limitada àqueles  que  possuíam  os  meios  imediatos  (sem  mediação   necessária),  leia­se  terra,  para  satisfazer  suas  necessidades  materiais.  Obviamente  excluía  também  escravos  e  servos,  e  não  raro  comerciantes.  Embora  a  exclusão  dos  comerciantes,  ricos  ou pobres,  pudesse  se  apoiar  na não  propriedade da  terra os argumentos  podem  ser  muito mais complexos. Aristóteles, de forma absolutamente genial e precursora, observa que a atividade de   aquisição  de  um  valor  de  troca que ignore o  valor  de uso (crematística  não natural) leva a uma  potencial  acumulação ilimitada, e, portanto, não existe uma finalidade própria a ser satisfeita (Política, livro I). 

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Que vá amaldiçoado. Outro arranjo, tão bom quanto.  

Arquíloco  não  estava  ensinando  ninguém  a  fugir  da  batalha  e  abandonar  os  companheiros,  mas  essa  forma  de  subjetividade  era  exageradamente  subversiva  e  inaceitável  para  a  disciplina  espartana,  e  o  poeta  foi  banido  da  polis  enquanto  tentava  visitá­la.  No entanto,  não  trouxemos  Arquíloco  para perto de Hesíodo apenas como um recurso anedótico, a intensão é  contrapor duas expressões de subjetividade em suas respectivas formas literárias.  Segundo  Bruno  Snell  (2012,  pp.55­79)  é  com  a  lírica  que  o  pensamento  grego  inicia  a  longa  jornada  que  liberta  o  homem  da opressão dos deuses e da natureza. Para romper com essas  cadeias  da  opressão o “eu lírico” tem de se separar do “eu orgânico”, cisão entre corpo e  espírito.   O  exemplo  talvez  mais  marcante  que  Snell oferece é o seguinte verso da poetisa Safo de Lesbos,  “Alguém  dirá  que  da  negra  terra  os cavaleiros são a coisa mais bela, outro que os soldados ou os  navios,  e  eu,  o  que  o  coração,  amando,  deseja”.  Mas  Snell  exagera  a  lírica  ao mesmo tempo em  que  reduz  os  versos  de  Hesíodo  à  “simples  arma  numa  contenda  judiciária”  (2012,  p.66),  e  ele  72

faz  isso  porque  é  obcecado  por  uma  interioridade  autônoma  ao  exterior  mundano ​ .  A  inexistência  de   um  aprendiz  na  poesia  lírica  faz  com  que  os  versos  apareçam  como  autojustificativa,  como  justiça  particular,  de  uma  ação mundana (a vaidade de Safo quer seduzir,  a  covardia  de  Arquíloco  quer  salvar­se  a si próprio). Se o “Eu” lírico se separa do “Eu” orgânico  eles  precisam  retornar um no outro para se efetivar como “Eu” subjetivo, ou seja, como ação ­ de  resto,  Snell  é  pura  abstração.  Nem  a  poesia  lírica  e  nem  a  didática  têm  como objetivo a vontade  de  saber  puro.  O  que  difere  Hesíodo e seu poema didático é a presença do aprendiz, aqui o poeta 

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 “The shield I  left because I must, poor blameless armament! beside a bush, gives  joy now to some Saian,   but myself I have saved. What care I for that shield? It shall go with  a curse. I'll get me another e'en as good”  (trad.  nossa).  Em,  Elegy   and  Iambus,   vol.  II.   with  an  English Translation  by.  J.  M.  Edmonds.  Cambridge,  MA.  Harvard  University  Press.  London.  William  Heinemann  Ltd.  1931.  [2.21.2]  In:​ http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus%3Atext%3A2008.01.0480%3Avolume%3D2%3At ext%3D21%3Asection%3D2  .  Snell   (2012,  p.61)  oferece  uma  tradução  que  esconde  o  motivo  da  ação  infame do poeta, salvar­se (​ α​ ὐ​ τ​ ὸ​ ν δ' ​ ἔ​ κ μ' ​ ἐ​ σάωσα​ , fr.5 West).  72

 Sua  obsessão desconhece qualquer  limite!  Em outro  artigo (SNELL, 2012, p.287­310) ele faz da Arcádia  das  Éclogas  do  poeta  romano  Virgílio  a  primeira  “paisagem  espiritual”,  onde  “a  obra  literária  torna­se  autônoma, torna­se um mundo em si, torna­se absoluta” (ibdem, p.295). 

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não  pode  fazer  de  sua  justiça  uma  justiça  particular,  seus  valores  têm  de  ser  universais. Daí que  ele  invoque  as  Musas  para  garantir  um  discurso  genuíno,  ​ ἐτήτυμα  (ver  nota  66),  onde  as  sentenças não estejam entortadas por interesses pessoais.  É  algo  inegável   que  os  valores  universais  apresentados  por  Hesíodo estejam apoiados na  ética  e  na  religião.  O  erro  está  em acreditar que estejam apoiados apenas nisso. Nossa intenção é  demonstrar  ao  longo  da  análise que a justiça de Hesíodo é algo visível, possível de ser observada  com  os  olhos,  nas  consequências  concretas  de  cada  ação  humana.  Lembremos  que  Hesíodo  não  pune,  apenas  ensina   proferindo  aquilo  que  é  genuíno  em  um  discurso,  quem  pune  é  Zeus,  olhando  e  ouvindo  ele  endireita  sentenças  com  a  justiça  (enviando  Horcos,  a  Punição,  ou  ainda  Juramento,  toda  vez  que   a  Justiça  é  desrespeitada).  Se  o  discurso  de  Hesíodo   é  genuíno  e  Zeus  pune  todo  aquele  que  entorta  a  justiça  como  ele  criou,  então  nenhum  homem,  nenhum  grupo  social,  nenhum  basileu  aristocrata,  pode  proferir  sentenças  livremente.  A  primeira  condição  do  proémio  de  Hesíodo  é  que a justiça não pertence aos homens, estes só emitem  sentenças (erradas  em  grande  parte).  Ela  é  tão  universal  quanto  Zeus,  e  com  o  fim   da  raça  dos  heróis,  todos  os  73

homens  estão  igualmente  distantes  de  Zeus ​ .  A  Justiça,  Diké  (​ Δίκη​ ),  exige  uma  atitude  de  comunhão  com  a  ordem  do  mundo,  e  não  é  o  fundamento  de  uma  autoridade   humana,  de  uma  74

hierarquia  entre  os  homens.  Em  última  instância,  a  ordem  natural,  obra  do  demiurgo  Zeus ​ ,  se  encontra  acima  da  lei  dos  homens  e  a  desautoriza.  Resumindo,  Hesíodo  não  reconhece  a  75

autoridade  do  aristocrata,  do  sacerdote  ou  da  ágora   nos  assuntos  relativos  à  propriedade.  Para 

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 A justiça  não  precisa  considerar todos os homens  iguais, ela  apenas ignora na sua universalidade  toda e  qualquer particularidade.  74

  Não  estamos  mais  na  Teogonia,  os  elementos  mitológicos  do  poema  “Os   Trabalhos  e  os  Dias”  se  referem sempre à posição do homem na ordem do cosmos ­ onde Zeus é o demiurgo privilegiado.  75

 Ao que  tudo indica Hesíodo  desconhecia  a  democracia,  em  nenhum  momento  ele vê a ágora  como um  espaço da  razão,  onde a lei pode, através da argumentação gnóstica, ecoar a sentença genuína.  Na ágora,  onde se decide o  apelo de  Perses,  estão  presentes  somente  os basileis (comedores de presentes). Nossa  hipótese  é  que  na   época  de  Hesíodo  a  aristocracia   era  incapaz  de   impor  sua  autoridade  sobre  os  proprietários sem agravar o conflito entra as classes. 

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tais  assuntos  existe  uma  sentença  reta,  genuína,  o  que  torna  a  mediação  de  um  terceiro  desnecessária ­ a sentença tem de ser justa em si mesma e, portanto, universal.  Essa  universalidade  pode  ser  vista  como  uma  alienação  da  moral   dos  costumes  em  uma  ética  transcendental  (mitológica  ou  religiosa).  Mas  Hesíodo  ainda  que  tenha  conhecido  essa  universalidade  ­  as  sentenças  genuínas  ­ através das Musas, faz dela algo que pode ser alcançado  tanto  por  Perses,  o  ​ grande  tolo  Perses  ​ (​ μέγα  νήπιε  Πέρση​ ),  quanto  por  qualquer  76

ouvinte­aprendiz ​ ,  utilizando­se  unicamente  do  ensinamento,  de  uma  razão  expositiva, e não de  um  ritual,  seita  ou  revelação.  Essa  racionalização   dos  costumes  em  universalidade  é  certamente  uma  reflexão  crítica.  Mas  por  mais  instigante  que  seja  esse  racionalismo,   na  prática  ele  servia  77

concretamente  como  negação  da  autoridade  aristocrata.  Em  toda  a  história ​ ,  a  universalização  constitui  um  momento  de  emancipação  frente  às  estruturas  sociais  de  uma  classe  particular  ­  a  universalidade desaparece junto com o caráter progressista do movimento histórico.  “[Zeus]  com  justiça  endireita  sentenças  tu;  já  eu,  a  Perses  o  que  é  genuíno  poria  num  discurso”  (HESÍODO,  2013,  vv.9­10).  Trata­se,  portanto,  de  endireitar  sentenças  que  se  78

entortaram durante uma disputa com Perses ​ . Mas a disputa não existe no mundo como uma só e  sim  como  duas  Érides  (​ Ἐρίδων​ ;  Disputas,  Lutas):  uma  favorece  a  guerra  e  a  discórdia,  é  venerada,  pela  vontade  dos  imortais,  ainda  que  mereça  reprovação;  a  outra  é  boa  (​ ἀγαθὴ​ ),  pois  desperta  para  o  trabalho  até  mesmo  o  inapto (vv.11­20). Com estas duas Érides, Hesíodo, separa  o  mundo  social  (​ locus  dos  conflitos  humanos)  pondo  de  um  lado  a  guerra e a discórdia, armas e  79

política ​ ,  e do outro o sustento (​ βίος ἐπηετανὸς​ ,  v.31), autodeterminação material da vida, posto  76

 Até  mesmo  por um basileus sábio (vv.202­212).  É uma oposição importante; aprender o universal é algo  possível  ao  tolo  Perses   e  ao  basileus  sábio.  Quem  está  excluído  desse  conhecimento  é  aquele  cujo  coração, ou a mente, se encontra dominado pela ganância.  77

 Para evitar polêmicas inúteis enfatizamos que a frase trata da história de sociedades de classe. 

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 É interessante  notar  que até esse  momento  nada  se  sabe  de Perses, menos ainda que  este seja irmão  do  poeta.   O nome  Perses (​ Πέρση​ )  se  aproxima da  palavra grega  para  pilhagem (​ πέρσις​ ) (​ sacking, ​ LSJ;  HESÍODO,  2013,  p.31),  o  que  leva  a  crer que Hesíodo esteja  fazendo um jogo de palavras com  o que  vem  a seguir; a pilhagem, reprovável mas venerada, da primeira Éris, e, a “pilhagem” injusta, da segunda Éris.  79

  “não  te  afaste  o   coração  do  trabalho  a  Luta  que  deseja  o mal,  para  te  quedares,  fascinado,  a escutar  querelas na ágora” (vv.28­29). 

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por  Zeus  nas  raízes  da  terra  (​ γαίης  ἐν  ῥίζῃσι​ ,  v.19).  Em  apenas  41  versos  o  poeta  reduz  o  basileus  aristocrata  a  uma força destruidora, improdutiva, reprovável, que só é aceita por ser essa  80

uma  sádica   (​ κακόχαρτος​ ,  v.28)  vontade  dos  imortais.  Na  ágora,  Hesíodo,  vê  apenas  o  roubo  (v.34 e v.38).  Em  contraposição  com  esse  mundo  encontramos  a  terra,  de  onde  o  homem  tira  seu  sustento  através  do  trabalho.  De  fato,  é  preciso  arrancar  com  fadiga  e  suor  a  vida  da  terra,  bem  ali onde Zeus com raiva em seu juízo enterrou escondido (​ ἔκρυψε​ ,  v.47) o sustento como castigo  pelas  artimanhas  de  Prometeu.  O sustento  é uma luta, uma disputa, uma Éris ­ se assim não fosse  bastaria  um  único  dia  para  obter  o  sustento  de  um  ano  (v.43­44).  Mas  como  um  homem  pode  saber  que  essa  Éris é a  melhor? Vendo rico o vizinho por seu trabalho,  vendo a riqueza, concreta,  81

como  produto  do  trabalho,  concreto…  vizinho  inveja   (​ ζηλοῖ​ )  vizinho,  oleiro  ressente  (​ κοτέει​ )  oleiro,  o  artesão  ao  artesão,  o  pedinte  guarda  rancor   (​ φθονέει​ )  do  pedinte  e  o  aedo  do  aedo  (vv.25­26).  E  o  que  ocorre  com  aquele  que,  estimulado  pela  outra  Éris,  procura  buscar  seu  sustento  na  ágora  mirando  bens alheios? O que ganha aqui perde lá, quando tiver de alimentar os  basileus  comedores  de  presentes  (​ βασιλῆας  δωροφάγους​ ).  “Não  te  será  possível  segunda  vez 

  Também  a  inveja  sádica  (​ ζ​ ῆ​ λος  ​ [...]  κακόχαρτος​ ) reinará  sobre a  terra quando  Respeito  e Retaliação*  (​ Α​ ἰ​ δ​ ὼ​ ς  κα​ ὶ  Νέμεσις​ )  abandonarem  os  homens  (vv.195­200)  ­  passagem  da   profecia  apocalíptica  dos  versos  180 ao  201. A  profecia se fez como  previsto, a economia moderna  conhece apenas a  inveja  sádica.  [*  a  tradução  de  ​ Νέμεσις  ​ como  “Indignação”  feita  por  Werner,  embora   correta,  não  condiz  com  as  exigências  concretas  do  poema,   onde   não  basta  a  Indignação  para  preservar  a  medida  da  justiça,   é  necessário que  essa  indignação se apresente  em  sua forma concreta  como Retaliação (​ divine Retribution​ ,  LSJ)].  80

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 Não há  uma  única forma de  inveja  assim como não há uma  única  forma de disputa (ver  nota 80). Alguns  comentadores  (e.g.  ZARECKI,  2007, p.9)  sugerem a  boa Disputa, e a inveja por ela estimulada,  como uma   competição  entre  os  homens  pelo  sustento.  Isso  só  é  admissível  enquanto  não  se  confunde com  a  tese  absurda de  que  Hesíodo  introduz a  noção  de escassez  como centralidade da  vida  econômica (GORDON,  1963,  p.149).  Um  vizinho não  cobiça redistribuir,  em  seu  benefício  e  contra  o de  seu  vizinho, uma quantia  estática  de  riqueza  (essa  é  a  má  Éris   censurada  por  Hesíodo).  Não  se  trata  de   distribuição  mas  de  produção,  e  Hesíodo  supõe  a  disponibilidade  do   trabalho   e  dos  meios  necessários  para  sua realização.  Embora  a riqueza, o  sustento, apareça no  poema  como dádiva  dos  deuses, e o que cabe ao  trabalho  seja  somente colhê­la, seria  ridículo  supor  que  o  aedo limitasse a dádiva  de Deméter ou de Zeus. A escassez é  algo  que  definitivamente não passa pela cabeça  do poeta  beócio. As tentativas de atribuir  uma naturalidade  à  escassez  são  de um cinismo torturante!  Defendem  a  escassez “​ natural​ ” aqueles  que detêm o monopólio   social  dos  meios de  produção, i.e., aqueles  que  excluem  socialmente o  acesso  do trabalhador  aos  meios  de realização do seu trabalho. 

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agir  desse  modo”  (vv.34­35).  Perses  sabe  disso  porque  retorna  outra  vez,  mas  agora  pobre  e  endividado  (v.404  e  v.647),  tentando  roubar  o  resto  de  gleba  (​ κλῆρον​ )  que  pertence  a  Hesíodo.  Nada  produzem  a  assembleia  na  ágora  ou  a luta na guerra, a riqueza que vem destas atividades  é  apenas a pilhagem das posses de outrem (​ κτήμασ᾽ ἐπ᾽ ἀλλοτρίοις​ , v.34).  82

Retornaremos  algumas  vezes  ao  tema  da  riqueza.  Por  ora  diremos  que  a  riqueza   é  certamente  concreta  pois é o produto do trabalho. Não de um trabalho qualquer, mas daquele que  pertence  à  um  certo  tipo  específico  de  trabalhador  porque  este  o  conhece  e  tem  os  meios  necessários  de  realizá­lo.  De  que  adiantaria  o  carpinteiro  invejar  o  agricultor  sendo  incapaz  de  83

emular   sua  atividade  produtiva.  Por  certo,  o  basileus  em sua condição de aristocrata não inveja  nenhum  trabalhador,  quanto  menos  emula  seus  trabalhos  –  como  já  vimos,  seu  lugar  é  na ágora  comendo  presentes.  Mas  eles  são  assim  por serem tolos (​ νήπιοι) que “não sabem quão maior é a  84

metade que o todo nem quão grande valia há na malva e no asfódelo” (v.40­41) ​ .  Os  comentadores  dessa  passagem  tornaram­na  bastante  confusa. Lafer  (1996, p.25, nt.5),  apoiado  em  Vernant  (2002,  p.74),  sugere  que  a  malva  e  o  asfódelo  faziam  parte  de  uma  dieta  mística  que  permitia  ao sábio  Epimênedes separar a alma do corpo,  Werner (2013b, p.25) fala de  85

uma  mística  órfico­pitagórica,  Ferreira  (2005,  p.93,  nt.12)  usando West  sugere que a passagem 

 A riqueza  a  qual  nos referimos aqui é aquela fartura (​ ἄ​ φενος​ ) almejada ao ver­se o rico (​ πλούσιον​ )  dos  versos  21­24.  O  termo  utilizado  para  “rico”  deriva  de  ​ πλο​ ῦ​ τος(ν)​ ,  que  é  também  o  nome  do  deus  da  riqueza  chamado  Pluto,  filho  de  Deméter,  deusa   da  agricultura.  Hesíodo  nos conta  na Teogonia  (2013a,  vv.969­974)  que  “Deméter   a  Pluto  gerou,  diva  entre  as  deusas,  (...)  em   pousio  com  três  sulcos,  na fértil   região  de   Creta,  (...)  quem  ao  acaso  encontra  [Pluto],  e  alcança  suas  mãos,  a  esse torna  rico  [​ ἄ​ φενος​ ,  fartura], e lhe dá grande fortuna [​ ὄ​ λβον​ , afortunado]”.  82

  Emular  e  invejar  são  duas  formas   de  verter  o   termo  grego  ​ ζηλο​ ῖ  (LSJ).  Aristóteles captura  bem esse  sentido  de  disputa  e  de inveja/emulação quando  utiliza  essa  passagem do  poema  para  ilustar a  oposição  interna*  entre  tirania  e  democracia;  onde  a  pimeira é a  forma  final  da segunda  (Arist.  Pol. 1312b1­5). [*a  oposição  se  dá  entre  mesmos,   ou  um  é  a   forma  superada  do  outro].  Para  outra  discussão  sobre  a  passagem ver Dio Chrysostom, Discourses, 77.  83

  Preferimos  usar  a  tradução  de  Werner  (2013b,  vv.40­41).  A   escolha  por  verter  ​ ὄ​ νειαρ  como  “valia”  é  delicada e sugerimos “proveito” (LSJ; MOURA, 2012).  84

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  O  comentário  de  West  (1988,  p.75,  trad.  nossa)  diz  o  seguinte  "malva   e  asfódelo:   os  mais  baratos  e  simples  dos  comestíveis.  Mesmo  essa  pobre   refeição  é  melhor  que   uma  mesa   cheia  que  depende  da  desonestidade"  [“mallow   and  asphodel:  the  cheapest  and  plainest  of comestibles.  Even such  poor  fare  is 

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é  um  elogio  da  pobreza  honesta,  Camila  Oliveira,  cuja  dissertação   de  mestrado  é  devotada  para  explicar  o verso 40, entende que a questão do todo e do meio trata da atribuição de sentido a uma  medida pelo trabalho, “é a conquista de valor, que é a participação na articulação do todo” (2008,  p.86)  ­  o argumento da autora está amparado na lógica e na  linguagem e não deve ser confundido  com  uma  leitura  marxiana  do  poema  (trata­se  de  um  valor  que  surge  do  indivíduo  e  não  socialmente).  Se  Hesíodo  estivesse  elogiando  a  pobreza  honesta  ele jamais teria  escrito o poema  que  agora  analisamos,  o  cristianismo  dessa  interpretação  de  Ferreira  chega  a  ser  tocante.  Por  mais  tentador  que  seja  o  argumento  de  Oliveira  ele  extrapola  em  muito  o poema. E que raios há  de  místico  na  passagem   em  que  ele  acusa  os  basileis  de  dividirem  injustamente  sua  herança?  Nada  indica  que Hesíodo estava preocupado em recomendar uma  dieta mística para tornar sábios  os  basileis.  Moura  (2012,  p.44)  e  Evelyn­White  (1914,  p.5)  são  mais  contidos  e  suas  notas  86

esclarecem  apenas  que  a  malva  e  o  asfódelo   eram  parte  de  uma  dieta  frugal,  simples  mas  proveitosa.  Moura  ainda  relembra  uma  máxima  grega  amplamente  aceita,  “a  justiça  reside  no  87

meio  termo” ​ .  No  verso  39  o  aedo  fala  da  injustiça  na  divisão  da  herança  feita  pelos  basileis  devoradores  de  presentes,  o  que  para  nós  indica  que  os  versos  40  e  41  simplesmente  reafirmam  que  os  basileis  não  possuem  medida   nem  na  justiça  nem  na  comida  (possível  metáfora  dos  presentes).  Eis o que sabemos até agora, e não é pouco: 

better  than   a  loaded  table  that  depends   on  dishonesty”].  Não   nos   parece  que  isso  seja  um  elogio  da  pobreza honesta, embora seja uma condenação da riqueza desonesta.  86

 Sobre o asfódelo  diz Theophrastus  (sec.IV a.C.),  "Ele proporciona  muitas coisas úteis  como alimento: o  talo é  comestível  quando frito, a  semente  quando  torrada,  e  acima  de tudo a  raiz  quando cortada em figo;  de  fato,  como  diz  Hesíodo,  a  planta é  extremamente  proveitosa" [“It provides  many things  useful  for  food:  the  stalk is edible when fried, the seed when roasted, and above all the root when cut up with figs;  in fact, as  Hesiod says, the plant is extremely profitable”] (LOEB ­ Enquiry into plant, V.II, p.129, trad. nossa).  87

 É claro que  não  havia  na Grécia  Antiga uma  única  “lei” de  herança, mas  a máxima não visava apenas a  herança.  Também, e esse é o argumento principal, na Ascra  de Hesíodo os filhos dividiam a herança, o que  é  bastante  óbvio  dada  a  disputa  com Perses  ou também a recomendação no  verso  376,  “Possa um único  filho herdar a casa paterna”. 

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O  aedo  que  canta  o  poema  didático  reconhece  a  origem  externa  dos  saberes  que  deseja  ensinar,  i.e.,  o  que  ele   sabe  não  é  particular  a  nenhum  indivíduo  e,   portanto,  não  é  subjetivo88  –  ao  contrário  dos  versos  de  Ovídio   que  abrem  essa  sessão  a  objetividade  não vem da experiência  (Ars  Amatoria,  p.123).  O  que  ele  sabe  é  a  própria  ordem  do  mundo,  algo  que  ele  conheceu  através  das  Musas  e   cantou  na  forma  descritiva  de  um  catálogo  em  sua  Teogonia  –  que  nesse  caso  é  também  uma  cosmogonia.  No  entanto,  agora  como  poeta  didático  esse   caráter  descritivo  tem  de  transformar­se  em  algo  diverso, tem de dar lugar a uma prática desse conhecimento. Essa  prática  só  é  possível  porque  o  conhecimento  é  objetivo,  universal  e  normativo  e  pode, portanto,  tornar­se  meio  para  um  fim  –  ser  objeto  para  uma  ação  reflexiva.  Hesíodo  não  é  apenas  o  primeiro  poeta  didático,  mas  é  também  aquele  que  explicita  seu  fundamento  último,  “o  melhor  de  todos  é  aquele  que  pensa  por  si,  compreendendo  o  que  em  seguida  e  no  fim  será  melhor”  (vv.293­294).  A  subjetividade  não  está,  portanto,  na  relativização  do  mundo,  em  ontologias  particulares,  mas  na   capacidade  de  transformá­lo  em  objeto  para  si  através  da  compreensão  das  89

normas  do  cosmos ​ .  Não  é  transformar  o  mundo  em  objeto  de  compreensão,  em  uma  atitude  puramente  contemplativa  ­  aquilo  que  Snell,  equivocadamente,  comemora  na  lírica  grega ­, mas  transformá­lo  em  objeto  para  si  através  do conhecimento objetivo do mundo. Ou seja, utilizar­se  do  mundo  para  produzir  a  si  próprio,  emancipar­se  da  natureza  e  tornar­se  sujeito  ­  a  poesia  didática,  para  provocar  Snell,  comemora  a  práxis.  O  que  estamos  falando  aqui é completamente  oposto  à  ideia  de  separação  entre  corpo  e  espírito,  cisão  absoluta  de  um  sujeito  abstrato.  O  "sujeito  hesiódico"  tem  apenas  o  mundo  para  produzir­se  a   si  próprio,  e,  portanto,  o  seu  autoproduto  é  absolutamente  mundano  e  imanente.  Antes  da  emergência  do  sujeito  abstrato  da  88

 Subjetivo  não é, no poema, o conhecimento de algo mas  o que  fazer, e porque fazê­lo, segundo algo que   se conhece. A objetividade  do conhecimento é o que permite antecipar as consequências das ações (e.g., o  destino da polis injusta e o da polis justa, ou ainda, a escolha entre aretê e kakia).  89

  O  cosmos  é  o  todo  normativo,  uma  totalidade  ordenada,   o  seu  conhecimento  é  na  verdade  o   conhecimento  de  sua  normatividade,  da  sua  ordem.   A  própria  cosmogonia  não  é  outra  coisa  que  o   conhecimento  da  passagem  do  todo  indeterminado   até   a  determinação   do  todo.  O  Caos  primordial   da  Teogonia  não  é  a  ausência  de ordem no  universo, mas  a ausência de  determinação,  de  forma, é  a  partir  deste que  surgem as  primeiras  formas,  Gaia e Tártaro,  que moldam o espaço. Seguem­se, Eros, força  que  impede a dissolução  das  formas ­  o  retorno ao  indeterminado  ­,  e a Noite, que por  determinação negativa  gerou Dia, ambas formas que inseparáveis moldam o tempo. 

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filosofia,  limitado  apenas  por   sua  razão,  todo  o  sujeito  era  limitado  pelo  concreto  ou  pelo  teológico.  Tendo  em  mente  que  os  deuses  gregos  são  parte constituinte do mundo (se não forem  sua  totalidade)  é  natural  que  para  Hesíodo a observância das normas religiosas  seja tão relevante  quanto  a  obediência  as  estações  do  ano  ­  ambas  constituem  o  concreto  com  que  o  homem  se  autoproduz.  Hesíodo  não  faz  concessão  a  ordem  social  dos  basileis,  como  deixa   claro  em  sua  fábula  do  rouxinol  e  do  falcão  (vv.202­212) essa ordem social não é natural entre os homens (ou  deixou  de  ser  com  a  raça  de  ferro)  ­  e  o natural na Grécia Antiga envolve sempre o divino ­ mas  um  produto  da  força  (que  pertence  apenas  a  ordem  do  mundo  animal,  não  humano).  Não  é  o  momento  de  tratarmos  esse  aspecto  do  poema,  mas  faremos  uma  breve  observação  já  que  ela  é  90

necessária;  os  escravos,  e  até  determinado  ponto  as  mulheres ​ , são tratados pelo aedo não como  sujeitos,  mas  como  objetos  para  si  ­  quase  uma  natureza  inanimada,  algo  que  só  não  se  realiza  91

efetivamente  pelo  trabalho ​ .  O  que  se  apresentava  para  Hesíodo  como  um  obstáculo  para  a  emancipação   de seu sujeito (de classe) eram os basileis aristocratas, e não mulheres e escravos. E  aqui entramos finalmente na parte mitológica do poema.  O  homem  do  poema  de  Hesíodo  não  encontrou  no  mundo  concreto  um  caminho  fácil  para  sua  reprodução  e  autoprodução,  em  muito  o  mundo  lhe  parece  hostil.  Novamente,  esta  hostilidade  é  parte  objetiva  do  mundo,  é  uma  condição  dada,  ou  imposta,  pelo  demiurgo  com  a  qual  o  sujeito  tem  de  lidar  ­  é  uma  adversidade,  uma  luta,  uma  disputa.  Para  tanto  é  preciso  compreender   "o  que  em  seguida  e  no  fim  será  melhor”.  No  mundo  não  existe  apenas  uma  luta  (​ Éris​ ),  mas  duas.  Uma  delas  vive  apenas  entre  os  homens,  é  a  guerra  e  a   discórdia,  e  deve  ser  reprovada,  embora  não  possa  ser  abolida  já  que  é  objetiva  (vontade  dos  imortais).  A  outra  é  melhor,  vive  entre  os  homens  e  as  raízes  da  terra,  é  a  luta pelo sustento, pela vida (​ βίος​ ), e pode  ser  mais  que  a  subsistência,  até  mesmo  afortunada,  como  descreve  o  poeta  no  charmoso 

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 O  poema trata muito pouco  da  reprodução  moral dos sujeitos para que  as mulheres apareçam  com toda  a  complexidade  de  relações  sobre   as  quais  sua  participação  era  central  para  a  sociedade  grega.  Trataremos  superficialmente  desse assunto  nos  versos  em que  ele é tematizado  (ver aqui por exemplo as  notas 120 e 122).  91

 A escravidão na antiguidade grega é assunto complicado e foi tratado em separado. 

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piquenique  de  verão  (vv.582­596).  Embora  alguns  tolos  acreditem  poder  disputar  essa  luta  na  ágora,  essa  Éris  só  se   dobra  pelo  trabalho  fatigante.  Aquele  que  não é tolo, vendo o vizinho rico  pelo  trabalho,  sente­se   instigado  a  trabalhar.  Dissipando qualquer possível confusão enfatizamos  que  o  aedo  não  faz  nenhum  elogio  do  trabalho,  mas  sim,  e  apenas,  da  vida que ele proporciona.  Essa  condição  do  homem,  a  boa  Éris,  é  objetiva,  universal  e  insuperável  ­   para  ela  não  existem  desvios ou atalhos.   

III.2 Prometeu, Pandora e as cinco raças dos homens  We  came  to  the  land  of the Cyclops race, arrogant lawless beings  who  leave  their  livelihoods  to   the  deathless  gods  and  never  use  their  own  hands  to  sow  or   plough…They  have  no  assemblies  to  debate  in,  they   have  no  ancestral  ordinances;  they  live  in  arching  caves   on  the  tops   of  hills,  and  the  head  of  each  family  heeds  no  other, but makes his own ordinances for wife and children.  Homer, Odyssey, IX.113­124.   

Em  “Os  Trabalhos  e  os  Dias”  o  mito  já  aparece  interpretado,  ele   já  se  tornou  objeto  de  reflexão  e   ao  contrário  de  uma  descrição  de   eventos  ele  é  condição  para  uma  ação  reflexiva.  A  primeira  reflexão  sobre  o  mito  que  Hesíodo  faz  é  aquela  sobre  as  duas  Érides,  e  serve  para  dividir  o  mundo  conflituoso  dos  homens  em  dois,  aquele  entre  os  homens  e  aquele  entre  os  92

homens  e  a  natureza ​ .  Essa  segunda  Éris  é  predominante  em  todo  o  poema  e   coloca  o  trabalho  (​ ergon​ )  como  mediação  central  entre  o  homem  e  seu  sustento.  Agora,  como  o  trabalho (​ ergon​ ),  autoprodução  do  homem  que  transforma  o  mundo  em  vida,  passa  a  ser  o  esforço   extenuante,  o 

92

 A diferença  com Homero (e.g. Iliada, IV.439­445)  ou  com  sua  obra  anterior, Teogonia, de  uma Éris para  duas  Érides, é a  marca  criadora do poeta (ποιέω, criar). Hesíodo transforma a tradição para ajustá­la  à sua  exposição. 

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labor  do  trabalho  fisiológico  (​ ponos​ ) ​ ?   Nem  toda  ação  é  desprazerosa,  nem  toda  ação  é  fastidiosa. Certamente, o aedo não reclamaria de beber o vinho biblino à sombra de uma pedra.  Os  cinco  versos  (vv.42­46)  que  servem  de  prelúdio  ao mito de Prometeu merecem  maior  atenção.  O  argumento  de  Hesíodo  é  simples;  se  os  deuses  não  tivessem  ocultado  o  sustento  dos  homens  (​ βίον  ἀνθρώποισιν​ )  bastaria  um  único  dia  de  trabalho  fácil  (​ ῥηιδίως…  ἤματι  ἐργάσσαιο​ )  para  ter  o  bastante  por  um  ano.  O  último  verso  dessa  passagem  é  qualquer  coisa  menos  simples.  Quem  melhor  traduz  esse  verso  é  Lafer  (1996),  “trabalhos  de bois e incansáveis  mulas  se  perderiam”   (​ ἔργα  βοῶν  δ᾽  ​ ἀπόλοιτο  ​ καὶ  ἡμιόνων  ​ ταλαεργῶν  ,  v.46,  grifo  nosso).  O  poeta  diz  literalmente  que  sem  o  trabalho  humano  o  trabalho  dos  animais  seria  destruído  (​ ἀπόλοιτο​ ).  Oliveira  (2008,  pp.80­81)  percebe  a  importância  desse  verso  e,  para  ela,  o  fato  de  que  os  animais  trabalhem,  mas  que  sem  o  trabalho  humano esse trabalho seja perdido,  é sinal de  que  caberia  ao  homem  dar  sentido ao trabalho animal a partir do sentido do seu próprio  trabalho,  ou  seja,  o  fazer  dos  homens  proporciona  aos  animais  um  poder  fazer,  este  por  sua  vez  está  limitado  ao  que  pode  cada  animal  (utilizando  o  verso  454  ela  estende  o  argumento  também  aos  instrumentos  de  trabalho).   Não  fica  claro  se  Oliveira  está  tratando  o  “dar  sentido  ao  trabalho”  como  aquele  pôr  teleológico  que  Lukács,  e  antes  dele  Marx,  tanto enfatizam como algo humano  (Ontologia  II,  cap.I.1)  ­  e  se  fossemos  arriscar  diríamos  que  não.  Para  nós,  Hesíodo  não  atribui  nenhum  trabalho  aos  bois  e  mulas,  mas  apenas  a  condição  de instrumentos de trabalho. Oliveira  não  quer  concordar  com  isso  porque  considera  essa  instrumentalização  um  modernismo,  uma  versão  moderna  de  homem  dominando  a  natureza.  Mas  isso  é  um  raciocínio  mistificado  e  de  ponta cabeça. 

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 Um  erro  comum no  tratamento  dos  termos é o seguinte: “Ergon (o trabalho criativo, cujo esforço dignifica  o  homem)  e  Ponos  (a   labuta  sofrida,   extenuante)”,  em  Renato  Nunes  Bittencourt,   “O  valor  sagrado  do   trabalho em  Hesíodo”,  p.81.  Bittencourt  apela  para os comentários de Arendt, mas a diferenciação feita por  ela  é   absolutamente  forçada  em  Hesíodo.  No  poema,  erga  e   ponos  podem  não  ser  iguais  mas  são  inseparáveis  (o   homem  não   é  reduzido  a  subsistência  e  o  algo  mais  de  seu  ser  não  vem  da  atividade  contemplativa  mas dos erga em condição de  ponos). Resumindo,  no  poema  o  ponos é  uma condição dos  erga e não uma oposição entre o moral e o degradante. 

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A  negação  do  domínio  do  homem  sobre  a  natureza  exige  a  crítica  de  uma  razão  iluminista,  mas  nem  o  domínio,  que  exige  consciência  da  instrumentalização,  nem   sua negação,  que  exige  a  crítica  da  consciência,  eram  uma  questão  para  Hesíodo.  No  entanto,  se  o  agricultor  beócio  não  tinha  a  consciência  de  si  como  uma  razão  que  domina a natureza, não se conclui por  isso  que  relações  instrumentalizadas  com  a  natureza  não  estavam  postas  concretamente.  A  natureza  não está dada para o homem, ele tem de tomá­la  segundo sua carência obedecendo tanto  à  legalidade  objetiva  do  mundo  quanto  as  relações  técnicas  do  trabalho  concreto  ­  ele  tem  de  transformar  a  natureza  segundo  suas  necessidades  (momento  incontornável  da  posse)  para  perpetuar­se  como  um  ser  natural  (de  uma  natureza  transformada).  A  “crítica  crítica”  não  pode  94

abolir,  fora  da  ideia,  a  ​ posse  da  natureza  como  momento  próprio  do  trabalho ​ .  Quando  o  boi  pasta  ele  não  está   trabalhando,  é  o  não  trabalho,  igual  ao  leme  depositado  sobre  a  fumaça,  i.e.,  quando  não  é  instrumento  de  trabalho  humano  não  possui  nenhum  trabalho.  O  verso  diz  pouco,  mas  diz  algo  importante;  só  é  trabalho  a  atividade  produtora  de  vida  humana,  o  Ergon  é  exclusividade  dos  deuses  e dos homens. Sem o trabalho dos homens não há trabalho dos bois, ou  do  leme,  o  trabalho   deles  desaparece,  é  destruído  (claro,   a  exceção  é quando os deuses fazem as  coisas  trabalharem;  e.g.  quando  Hefestos  traz  a  vida,  da  ânima,  para  sua  oficina;  Escudo  de  Aquiles,  Hom.  Il.  XVIII.468­473).  A  alternativa  de  traduzir  “erga”  (​ ἔργα)  como  “feitos”  (os  fazeres)  e  ​ ἀπόλοιτο  como  “findaria”,   ou   “perderia”,  é  válida,  mas  em  nada  altera  o  nosso  argumento  e  facilmente  induz  conclusões  equivocadas. Quando o fazer  de um boi não é um feito  para  o  homem  ele  é  um  fazer  perdido,  inútil  ­  embora  não  seja  para  o próprio boi. Só é trabalho  (​ ἔργον​ )  aquilo  que,  sendo  feito  pelo  boi,  resulta  em  sustento  para  o homem. O trabalho humano  não  atribui  “sentido”  ao  “trabalho  do  boi”,  ele  converte  concretamente  o  fazer  inútil  do  boi  em  trabalho  humano,  em   resultado  concreto  e  útil.  Acreditamos  que  o  próprio  verso  traz  um  termo  esclarecedor,  o  ​ ταλαεργῶν  das  mulas,  ou  seja,  serem  suporte  do  trabalho  (​ τλάω  +   ​ έργον​ , 

 Não é  a  ​ posse que  é moralmente discutível mas a abstração  generalizada da natureza em valor de troca   –  o  que  torna  sua  posse  não  apenas  permanente  mas  sua  acumulação  necessariamente  ilimitada.  No  entanto, permanecer no plano da discussão moral vale o mesmo que nada.  94

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suportar/submeter­se  ao  trabalho,  ou  ainda,  perdurar  no  trabalho) ​ .  Enfim,  o  trabalho  humano  torna  o  boi,  o  leme,  a   natureza,  matérias  de  sua  autoprodução  e   objetos  para  si.  Ainda  que  Hesíodo  não  o  soubesse,  o  que  ele nos diz é que o trabalho humaniza a natureza. Insistimos, isso  não  é  tornar  a   natureza  um  objeto  para  o  pensamento  humano,  mas  tornar  a  natureza  concretamente  um  produto  do  homem  e  o  homem  um  algo  constituído  dessa  própria  natureza  transformada.  No  contexto  da  passagem,  e  da  obra  como  um  todo,  o trabalho aparece como a atividade  que  traz  ao  mundo  dos  homens  o  sustento,  os  meios   de  vida  (vida  além  da  subsistência).  Essa  atividade  é  necessária  aos  homens  desde  sempre,  antes  e  depois  dos  deuses  esconderem  o  sustento.  No  hipotético  mundo  sem  castigo  do  verso  43  o  que  muda  é  que  o  trabalho  é  fácil  e  dura  apenas  um  dia  por  ano,  o  trabalho  (ergon)  não  é  o  castigo,  o  castigo  é  o  doloroso  labor  96

(ponos) ​ .  Isso  é  o  que  confirma  tanto  o  mito  de  Prometeu  quanto  o  mito  das  cinco  raças,  o  97

mundo  antes  de  Pandora  e  antes  da  raça  de  ferro ​ .  O  doloroso  labor  (ponos)  é  a  condição  do  trabalho  após  Pandora,  e  é  exatamente  isso  que  a  sequência  dos  versos   procura  mostrar.  Sem  Pandora  o  trabalho  (ergon)  era  fácil,  é  somente  depois  da  abertura  da  jarra,  quando  o  sustento é 

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  É  o  que   Lafer  traduz  por  “incansáveis”  e  Werner   por  “robustas”.  Nossa  intenção  não  é  questionar  a  tradução mas explicar o termo no contexto do verso.    “A  troco  de  ​ penas​ ,  vendem­nos  os  deuses  tudo quanto há  de bom”, Xenofonte  atribui  essa  máxima  a  Epicarmo,  comediógrafo  do início  do  século  V a.C.,  provavelmente  de Siracusa  (2009,  p.121). No  original,  “τ​ ῶ​ ν ​ πόνων​  πωλο​ ῦ​ σιν ​ ἡ​ μ​ ῖ​ ν πάντα τ​ ἀ​ γάθ​ ᾽​  ο​ ἱ​  θεοί”, (Xen. Mem. II.1.20).  96

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 Como exposição  da condição humana Hesíodo se utiliza tanto do evento – Pandora – como do processo  –  “queda”  das  raças.  Não  há  necessidade  alguma  de  localizar  o  tempo  de  um  mito  no  de  outro.  Em   qualquer  caso  o  mito ocorre sempre  em  um  tempo  indeterminado e culmina em uma  origem inalcançável.  Em  Homero,  apesar  dos  inúmeros  exemplos  de degradação  entre uma geração e outra – principalmente a  perda  de força  ­,  a linhagem  semi­divína  dos basileis  é  invocada  a todo  momento. Para  Hesíodo, o fim da  raça  dos  heróis  e  o  surgimento  da  raça  de  ferro  dissolve  essa  continuidade   das  linhagens  enquanto  Pandora  universaliza  a  condição  humana.  Toda  a   tradição  mitológica  coloca  os   heróis  em  um  tempo  pós­Pandora,  o  próprio  Hesíodo  conta  que  Héracles*  libertou  Prometeu  de  seu  castigo  (Teogonia,  vv.526­531),  o  que  condiz com  o  constante sacrifício  e  sofrimento  dos  heróis,  mas tudo isso  veio a  termo  com   o  fim  dessa  raça.  [*Aproveitamos  a  oportunidade  para  sugerir  que  Héracles  não  executa  doze  trabalhos mas sim ​ batalhas​ , ​ Άθλοι​  του Ηρακλή]. 

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escondido  e  alcançá­lo  exige  esforço,  que  o  termo  labor  (​ πόνοιο​ , ​ πόνων ​ ­ ​ πόνος​ , ponos) aparece  no poema (v.91 e v.113).  Lembremos  que  o  sustento  é  dado  pelos  deuses,  principalmente  por  Deméter,  e  que  a  98

riqueza  é  natural  e  não  um  produto  do  trabalho ​ ,  a natureza fornece tudo o que é útil, o trabalho  antes  de  Pandora  tinha  apenas  de  colhê­la,  agora  tem  de  lutar   por  ela.  O  trabalho  não  é  uma  atividade  produtora  de  riquezas,  mas  uma  atividade  produtora  do  próprio   homem,   que  com  a  “queda”  das  raças  e  as  artimanhas  de  Prometeu  tornou­se  uma  atividade  fisiologicamente  extenuante ­ o milagre do parto não é isento de dores.  Existe  uma  infinidade  de   análises  do  mito  de  Prometeu  ou  das  cinco  raças  dos  homens,  versando sobre os mais diferentes temas e assuntos. Para nós, o que cabia dizer aqui já foi dito. O  trabalho  não  nasce  com  Pandora  ou  com  a  raça  de  ferro,   ele  se  transforma.  Como  atividade  produtora  do  próprio  homem,  as  transformações  do  trabalho  são  também  transformações  do  próprio  homem.  Daí  a  autoprodução  do  homem  ter  mudado  sua  qualidade,  e  não   apenas  sua  quantidade.  Durante  a  raça  de  ouro, quando afastados do labor (​ ἄτερ τε πόνων, v.113) cabia aos  99

homens,  voluntária  e  tranquilamente, repartirem os frutos dos trabalhos (ROLIM, 2012, v.119) ​ ,  a  vida  social  era   ocupada  por  festejos  (​ θαλίῃσι​ ,  v.115).  Na  sequência  vieram  os  mimados  (nutridos  pelas  mães)  e  eternamente  infantis  (pois  morriam  jovens)  homens  de  prata,  estes  viviam  apenas  para   a  violência  (​ ὕβριν​ ,  v.134)  recíproca,  e  assim  pouco  tempo  vivam.  Depois,  raça  de  bronze,  com  grande  força  (​ μεγάλη  δὲβίη​   ,  v.148)  e  mãos  intocáveis,  feita  de  bronze,  com  casas  de  bronze,  armas  de  bronze  e  com  o  bronze  trabalhavam  (​ χαλκῷ   δ᾽  εἰργάζοντο​ )  100

porque  não  comiam  pão  (​ οὐδέ  τι  σῖτον  ἤσθιον​ ,  vv.146­147.) ​ ,  se  ocupavam  apenas  da  guerra  sangrenta  (​ Ἄρηος  ἔργ​ ᾽  ἔμελεν,  trabalhos de Ares, vv.145­146) e nela se acabaram (v.152). Outra  98

 No melhor  estilo “quase­fisiocrata”  ­  certamente  bem mais  afins com  o  pensamento hesiódico do que os  neoclássicos. No entanto, o trabalho (ergon) não viza  produzir  o sustento do homem mais o próprio homem.  Apenas  na  sua  forma abstrata, na forma­valor, é que o trabalho ao invés de  autoproduzir o homem passa a  produzir também, e centralmente, riqueza abstrata (forma­dinheiro).  99

 ο​ ἳ​  δ​ ᾽​  ​ ἐ​ θελημο​ ὶ​  ​ ἥ​ συχοι ​ ἔ​ ργ​ ᾽​  ἐ​ νέμοντο​ ​  σ​ ὺ​ ν ​ ἐ​ σθλο​ ῖ​ σιν πολέεσσιν​ . 

100

 West (1988,  p.75)  entende  desse verso  que  os homens  da raça de  bronze se alimentavam daquilo  que  cresce selvagem e complementavam essa alimentação com carne. Discordamos dessa interpretação. 

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melhor,  a  linhagem  dos  heróis,  destruíram­se  uns  aos  outros  nas  guerras  de  Tebas  e  de  Tróia.  Finalmente  a  raça  de  ferro,  onde  nasceu  Hesíodo,  entregue  à  fadiga,  à  agonia  e  aos  duros  tormentos.  Essa  última  raça,  que  também  é  a  nossa,  já  não  pode  mais  viver  em  festejos,   ou   se  ocupar  com  a violência reciproca, nem com a guerra sangrenta ou com a heroica, pois condenada  ao  labor  extenuante  tem  de  trabalhar  para  retirar  pelo  suor o sustento da terra. Essa raça não terá  destino  diferente  das  outras,   porque  com  tortas  sentenças  o  mau  prejudicará  o  homem  melhor  (v.193)  até  que  Respeito  e   Retaliação,  partindo  para  o  Olimpo,  abandonem   os  homens   sem  defesas  contra  o  mal  (v.201).  Não  é  a  pouca  fé  na  humanidade   que  nos  interessa  destacar  no  poema,  mas  sim  que  a  condição  do  trabalho  extenuante  e  prolongado  (ponos)  coloca  ele,  o  trabalho  (ergon),   no   centro  da  vida  individual.  Apenas  neste  mundo,  depois  de  Pandora e com a  raça  de  ferro,  é  que  o  oikos,  como local de trabalho, torna­se o centro da vida social (relações de  vizinhança).  Os  cantos  épicos  do  passado  estão  desautorizados,  Hesíodo  rompe  com   a  tradição  homérica  que  sustenta  a  elite  arcaica,  e  o  seu  poema  canta  apenas  o  presente  hesiódico  –  até  101

mesmo seus mitos terminam invariavelmente no nosso tempo ​ .  A  ordem  expositiva  do  poema  é  precisa  e  sua  unidade  temática   é  patente,  contradizendo  algumas  análises  que  tratam  o  poema  como  uma  colagem  de  temas  e  tópicos  descontinuados  (WERNER,  2013b,  p.12).  Nisso  incorrem  com  regularidade  aquelas  análises  estruturais  dos  102

mitos  feitas  ​ a  la  e  contra  Vernant   que  simplesmente  arrancam  à fórceps passagens inteiras do  contexto  da obra. Não se trata de uma oposição ao método, sua possível validade está,  de fato, no  mito,  mas  não  se  confunde  com a obra, onde o mito é utilizado em um objetivo, se não maior, ao  103

menos  diferente ​ .  Começamos  com  o  trabalho,  continuamos  com  o  trabalho  e seguiremos com  101

 A mesma “oposição” temporal aparecerá no Período Clássico entre a comédia e a tragédia. 

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 Püschel  dedica  um artigo  para  mostrar  como Vernant  ajuda a  devolver a unicidade  interna do poema. O  sucesso de  Vernant é inegável  para aquilo que ele se propõe, encontrar uma unidade estrutural  e lógica no  poema.  Mas o  que se  segue é  lastimável  quando  sua  análise  serve  para  outros  tragarem  o poema  inteiro  para  o  interior da  estrutura mental do  mito.  A  referência do  artigo é  PÜSCHEL,  R.. “Sintaxe poética de Os  Trabalhos e os Dias”. Sinergia, São Paulo, v. 11, n. 2, p. 176­181, jul./dez. 2010.  103

  E  não  dizemos  isso  contra  Vernant   mas  com Vernant; "Mas Hesíodo  repensou o tema mítico  em  seu  conjunto  em  função  de  suas  próprias  preocupações.  Nós   devemos,  portanto,  tomar  a  história   como  se  apresenta  no  contexto  dos  Trabalhos  e  Dias,  e  nos  questionar  qual   é,  sob  essa  forma,  seu   significado"  [“Mais  Hésiode  a  repensé  le  thème   mythique  dans  son  ensemble  en  fonction  de  ses  préoccupations 

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o  trabalho  como  tema  central.  É  importante  ressaltar  isso  porque  agora  o  poema  parece  dar  um  salto  rumo  à  justiça  e  à  ética.  Nada  mais  natural,  uma  vez  que   a ordem  social não se funda mais  na  força  ou  na  honra  (idealmente  para  o  nosso  poeta)  é  preciso  refundá­la  em  um  princípio  de  justiça  que  se  oponha  radicalmente  ao  uso  desmedido  da  força.  O  termo  desmedida,  que  em  grego  é  húbris  (​ ὕϐρις​ ),  já  foi  visto  anteriormente   no   poema  e  também  tem  o  sentido  de  “violência”  (até  porque  essa  é  o  uso  desmedido  da  força)  mas  ganhará  uma  importância  significativa  na  passagem  seguinte.  Justiça  (​ Δίκη​ )  e  desmedida  (​ ὕϐρις​ )  ganham  forma  por  oposição.  Na  presença  de  boa  Éris,  Disputa,  justa  é  a  certa  medida  das  coisas,  quando  o  meio  é  104

maior do que o todo (v.40) ​ .  III.3 "E agora contarei uma fábula aos reis, sábios que eles sejam"​  (v.202).  No  entanto,  em  seu  desejo  de  provocá­lo,  ele  disse:  "Mas  tome  Hesíodo,  Alexander; você o julga como de pouca importância como  poeta?"  "Não,  eu  não", ele respondeu, "mas  de  toda a importância,  embora  não  para  reis  e  generais,  eu  suponho."  "Bem,  então,  para  quem?"  E  Alexander  respondeu  com   um  sorriso:  "Para  pastores,  carpinteiros, e agricultores".  Dio Chrysostom, Discourses II.8, trad. nossa105    

Sem  querer  julgar  até  onde  vai  o amor entre irmãos, por vezes é difícil  acreditar que toda  essa  energia  criativa  de  Hesíodo  seja  desperdiçada   em  um   péssimo  fulano  como  Perses. Eis que 

propres. Nous  devons donc  prendre le  récit tel  qu'il se présente dans  le contexte des Travaux et des  Jours,  et  nous  demander   quelle  est,  sous  cette  forme,  sa  signification”]  (1960,  p.24,  trad.  nossa). Apesar desse   acordo nossa análise não segue a dele.  104

  Seja  lá  o  que  for  esse  meio,  dada  uma  proporção  aritmética   ou  geométrica  (justiça   corretiva  ou  distributiva. Aristot.  Nic.  Eth. V). Também estamos cientes que Hesíodo recomenda retribuir sempre mais,  o  que não altera em nada sua fórmula de justiça já que o “mais” exige o “meio” como medida (vv.349­351).  105

 "Nevertheless, in his desire to arouse him, he said, "But take Hesiod, Alexander; do you judge him of little  account   as  a  poet?"  "Nay,  not  I,"  he  replied,  "but  of   every  account,  though  not  for  kings  and  generals, I   suppose."  "Well, then, for whom?"  And Alexander  answered  with a smile: "For shepherds,  carpenters,  and  farmers". Diálogo entre Alexandre III, o Grande, e seu pai Filipe II. 

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agora  o  poeta  beócio  quer  falar para os basileis mesmo que eles  já saibam (como se até agora ele  não  estivesse  falando)  ­  tamanha  presunção  para  um  frágil  aedo.  Para  tudo  o  que  se  segue  é  106

preciso guardar com atenção os versos 274­279 ​ :  Oh Perses, tu essas coisas em tua mente lança,  ouve Justiça e a força [​ βίης​ ] de todo esquece.  Essa norma [​ νόμον​ ] para os homens o Cronida ordenou,  para peixes, feras e aladas aves  se entredevorarem, pois Justiça não está entre eles.  Aos homens deu Justiça, que de longe o melhor é 

Com  exceção  das  raças  de  ouro  e  de  ferro  todas  as  demais  foram  dominadas  pela  violência  (​ ὕβριν​ )  e  pela  força  (​ βίης​ ),  mas  como  vimos  as  coisas  mudaram  com  a  chegada  do  trabalho  extenuante  (ponos),  e,  embora  seja  amargo  o  nosso  destino,  enquanto  estiverem  entre  nós  ​ Respeito  e  Retaliação  haverá  defesa  contra  o  mal.  A  fábula  (de  onde  se  tira  sempre  uma  lição,  normalmente   chamada  moral  da  história)  que  Hesíodo  dirige  aos  basileis  (vv.202­212)  trata  de  um  rouxinol  cantor  (​ ἀοιδὸν​ )  cuja  sorte  se  encontra  nas  garras  de  um  falcão mais forte ­   seria  impossível  ser  mais  explícito.  Esse  tema  talvez  não fosse novo e certamente corria entre os  gregos  como  um  dito  popular.  O  fabulista  Esopo,  ele  próprio  provavelmente  um  escravo  trácio  107

do  século  VI  a.C. ​ ,  tem uma versão dessa  fábula que reaparece em várias versões desde a Idade  108

Média até La Fontaine ​ :  Um  falcão  que  estava  caçando um  coelho  pousou no  ninho de uma  rouxinol,  lá  encontrando  alguns  filhotes.  Quando  a  rouxinol  voltou,  ela  implorou ao falcão  para poupar  os  filhotes. O  falcão disse, "eu vou conceder  o  seu  pedido,  se você  me  cantar uma  bela canção". Mesmo reunindo toda  a  sua  coragem, a  rouxinol ainda tremia de medo. Aterrorizada, ela começou a  cantar,  mas  sua  canção  estava repleta de aflição.  O falcão  que cercava  seus  filhotes exclamou: "Essa não é  uma bela canção!" Ele então apanhou um dos  filhotes  e  o  engoliu.  Enquanto  isso,  um  caçador  de  pássaros  se  aproximou   106

  Quem  nos  chamou   a  atenção  para  a  relação  entre  esses   versos e  a  fábula foi  Annie Bonnafé  em  Le  rossignol  et  la  justice  en  pleurs (Hésiode,  Travaux  203­212). In:  Bulletin  de  l'Association  Guillaume Budé,  n°3, octobre 1983. pp. 260­264). Para a citação utilizamos WERNER, 2013b.  107

 Herodotus, The Histories, Hdt. 2.134. 

108

 A lição  da fábula  de La  Fontaine (IX.18) está expressa em seu último verso, “uma barriga vazia não tem  ouvidos”. 

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por   trás  e  furtivamente  levantou   seu  laço:  o  falcão  foi  pego  na  pegajosa  armadilha e caiu no chão.  109

Aesopica, Perry 567, trad. nossa    

Essa  versão  de  Esopo  é  considerada apócrifa, mas sua lição ­ há sempre um terceiro mais  forte  –  se  aproxima  daquela  de  Hesíodo.  A  fábula  narrada  por  Hesíodo  parece  ter  como  lição  o  verso  210  onde  diz  “Insensato  é  quem  quer  medir­se  com  os  mais  fortes” (ROLIM, 2012), mas,  devolvendo  a  fábula  ao  seu  contexto  este  verso  chega  a  soar  irônico.  Com  efeito,  o  poeta  e  seu  irmão  não  devem  se  bater  com  os  basileis  mais  poderosos,  o  que  causa  um  estranho  efeito  de  inversão  no discurso. Enquanto se dirige  aos basileis parece estar falando com seu irmão Perses e  em  seguida  quando  se  dirige  ao  seu  irmão  Perses  parece  estar  falando  com  os  basileis  (vv.213­218, WERNER, 2013b):  Oh Perses, escuta Justiça e não fomentes Violência (ὕβριν):  violência é nociva no mortal miserável, e nem o nobre  é capaz de fácil suportá­la, mas a ela sucumbe  ao topar desastres. Caminho distinto de percorrer  é mais forte, o rumo ao justo:  Justiça (Δίκη) sobrepuja Violência (Ὕβριος)  ao se consumar; e após sofrer o tolo aprende. 

A Era onde governava  a força e a violência é passado, mais forte agora é a Justiça. Talvez  um  tolo  ainda  não saiba disso mas aprenderá sofrendo, seja ele um miserável como Perses ou um  nobre  basileus.  E se a Justiça é mais forte então o verso 210 pode ser compreendido por qualquer  um  que  não  sendo  tolo  é  um  basileus  sábio;  “​ Insensato  é  quem  quer  medir­se  com  os  mais  fortes​ ”.  Mas  o  poeta  não  se  contenta  em  apenas  acusar  de  tolo  aquele  que  governa  pela  força  e  109

 "A  hawk who  was  hunting a rabbit alighted  in a nightingale's nest and found  her baby  chicks there. When  the  nightingale returned, she begged  the hawk to  spare the chicks. The hawk said, 'I will grant your request,  if  you  sing  me  a  pretty  song.'  Even though she mustered all her courage, the nightingale trembled with fear.  Stricken with  terror, she started  to  sing  but  her  song  was  full of grief. The  hawk  who had seized  her chicks  exclaimed,  'That  is  not  a  very  nice  song!'  He  then  snatched  up  one  of  the  chicks  and   swallowed   it.  Meanwhile, a bird catcher  approached from behind and stealthily  raised his  snare:  the  hawk was caught in  the  sticky   birdlime  and  fell  to  the  ground".  ("The  nightingale,  the  hawk  and  the  bird  catcher”  In   Aesop's  Fables.  A  new  translation  by  Laura  Gibbs.  Oxford  University  Press  (World's  Classics):  Oxford,  2002).  No  Index, Perry 4 da Aesopica a fábula repete quase na integra a versão de Hesíodo. 

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pela  violência acima  da Justiça e da ordem de Zeus (recordemos, aquela do mundo pós­Pandora),  com  um  sarcasmo  destruidor  ele  acusa  quem  vive  sem  a  norma  (​ νόμον​ )  de  Zeus,  como  as  raças  governadas  pela   força,  de  viverem  como  animais!  (vv.274­279).   O  que  poderia  ser  mais irônico  que  um  poeta­cantor,   um  aedo  frágil  como  um  rouxinol,  chamando  os  fortes basileis comedores  de  presentes  de  animais?  Fazendo  isso  pedindo  que  sejam  sábios para compreender a fábula que  tem  por  aparente   lição  “Insensato  é  quem  quer  medir­se  com  os  mais  fortes”.  A  época  de  Hesíodo,  o  período  arcaico, é  aquela onde começa a ganhar centralidade a ideia do bárbaro como  aquele  que  vive  sem  o  governo  de  uma  norma  medindo­se  uns  com  os  outros  unicamente   pela  força  –  algo  que   ninguém   na  Hélade  gostaria  de  ser.  A  noção  de  bárbaro  irá  assumir  o  lugar  de  110

differentia  specifica  entre   os  gregos  e  o  resto  do  mundo ​ .  O  que  teria  passado  pela  cabeça  do  111

poeta beócio ao ouvir o canto homérico onde Odisseu ​  afirma:  I did not care about farm work, nor the frugal home life of those who  would  bring  up  children.  My  delight  was  in  ships,  fighting,  javelins,  and  arrows  ­  things  that  most  men  shudder  to  think  of;   but  one  man  likes  one  thing  and  another  another,  and  this  was what  I  was  most naturally inclined  to.  Hom. Od. 14.3 ; vv.221­228 c.XIV, 1919.    112 ​

Embora  não  seja  em nada semelhante a um espartano, como seria Tirteu , é Hesíodo, ou  melhor,  seu  “modelo  social  e  político”,  quem  melhor  explica  a  dinâmica  daquela  polis.  Para  viver  absolutamente  livre  do  trabalho  em  uma  comunidade  de  ​ homoioi  (​ ὅμοιοι​ ;  os  iguais  espartanos),  o  cidadão  de  Esparta  tem  de  viver  integralmente pela força, usando a violência para  reduzir  todo  um  povo  a  servidão   da  hilotagem.  Daí  é  perfeitamente  compreensível  que  os  homoioi  espartanos  tivessem  o  hábito  de  renovar  oficialmente,  ano  após  ano,  a   declaração  de  guerra  contra  sua  própria  força  de  trabalho!  (CROIX,  1981,  p.149).   Não  estamos  dizendo  que 

110

 Arist. Pol. VII.2.5­7; 1324b3­29. 

111

 Obviamente  estamos  nos  utilizando  de  retórica.  Hesíodo não pensaria  nada, já que Odisseu  é do tempo  da  raça  dos  heróis.  Outra  “curiosidade”  nessa  passagem  é  que  nela   já  está  o  “Eu  que  prefere”,  em  um  épico anterior a lírica.  112

 Arist. Pol. 1306b35 (L.V.cap.6). 

58

Hesíodo  reprovaria  os  lacedemônios  pelo  uso  do  trabalho  forçado,  ele  mesmo  não  demonstra  qualquer  simpatia  por   seus  escravos.  O  que  dizemos  aqui  é  que  através  do  poeta  é  possível  perceber  que  na  antiga  Hélade  o  não  trabalho  se  equivale à guerra constante – já citamos antes o  diálogo  de  Platão  onde  a  pólis  aparece  como  mobilização  constante  para  a  reprodução  do  113

trabalho  forçado ​ .  Faremos  um  último desvio literário antes de voltar aos ​ Erga​ . Aquele que nos  acompanha  é  novamente  Esopo,  mas  no  lugar  do  falcão  quem  tem  agora  o  rouxinol  em  suas  garras é um trabalhador:  Durante  as  noites  de  verão  um   certo  trabalhador   ia  se  deitar ouvindo a  canção  de   um  rouxinol.  Tão  satisfeito  com   aquilo  ele  estava  que  na  noite  seguinte  preparou  uma  armadilha  e  capturou   o  rouxinol.  "Agora  que  eu  te  peguei", exclamou ele, "você cantará sempre para mim".  "Nós rouxinóis nunca cantamos em uma gaiola." disse o pássaro.  "Então  eu vou te comer", disse  o  trabalhador. "Eu sempre ouvi  dizer que  um rouxinol com torradas é um petisco saboroso".  "Não,  não  me  mate",  disse o Rouxinol,  "mas deixe­me  livre e eu  vou  te  dizer  três  coisas  muito  mais  valiosas  do que o  meu pobre corpo". O trabalhador  então  soltou  o  pássaro,   e  ele  voou  até  o  galho  de  uma  árvore e  disse: "Nunca  acredite  na  promessa  de  um  cativo;  essa  é uma  das coisa".  Então,  novamente:  "mantenha o  que  você tem. E o terceiro conselho é: não lastime sobre o que está  perdido para sempre". E então o pássaro cantor voou para longe.  114

Aesopica, Jacobs 58, trad. nossa    

Já  apontamos  que  Hesíodo  retorna  sempre  ao  concreto,  após  tantos  versos  mitológicos  é  hora  do  aedo  mostrar   a  diferença  entre  uma  polis  justa  e  uma  injusta.  Na  polis  justa,  onde  os  basileis  não  entortam  sentenças  em  benefício  próprio,  i.e.,  naquela  onde  os  basileis  não  113

 Platão, Rep. IX.578d. 

114

 "A  Labourer  lay listening to  a Nightingale's song throughout the summer night. So pleased was he with it   that  the  next  night   he set  a  trap for  it and  captured it.  "Now that  I have  caught  thee," he  cried, "thou shalt  always  sing   to  me".  "We  Nightingales  never  sing  in  a  cage."   said  the  bird.  "Then  I'll  eat  thee."  said  the  Labourer. "I have  always heard  say  that a  nightingale  on  toast is dainty morsel". "Nay, kill  me  not," said the  Nightingale; "but  let  me  free,  and I'll tell thee three things far better worth than my poor body." The Labourer  let him loose,  and  he  flew up  to a  branch of a tree  and  said:  "Never believe  a captive's promise; that's one  thing. Then  again: Keep  what you have.  And  third piece of advice  is:  Sorrow  not  over what is lost forever."  Then  the  song­bird  flew  away".   “The  Labourer  and  the  Nightingale”  In​ :  ​ The  Fables  of  Aesop, by  Joseph  Jacobs with illustrations by Richard Heighway (1894). 

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governam  pela  força,  jamais  a  guerra  funesta  lhes  decreta  Zeus,  jamais  aos  homens  de  reta  justiça  acompanha  a  Fome,  o  sustento  é  abundante  e  em  festejos  gozam  os  frutos  do  árduo  trabalho  –  já  sabemos  que  mesmo  a  terra  (Gaia)  muito  ofertando,  o  trabalho  árduo  é  necessário  para  dela  retirar  o  sustento  abundante  (vv.225­237).  Em  resumo,  quando  os  basileis  não  interferem  na  ordem  de  Zeus  o  árduo  trabalho  colhe  livremente  o  que  a  terra  fértil  oferece.  Na  polis  injusta  pagam  todos  pela  húbris  (​ ὕϐρις)  de  um  só.  Nela,  se  arruínam   as  fazendas/casas  (​ οἶκοι​ ,  oikoi,  v.244),  segue  a  fome  e  a  peste,  em  guerras  perdem  seus  exércitos  e  quando  115

desesperados  se  lançam  ao  mar,  alí  o  Cronida  destrói  suas  embarcações   (vv.238­247).  Paga  todo um povo (​ δῆμος​ ) pela iniquidade dos basileisis (​ ἀτασθαλίας βασιλέων​ , vv.260­261).  Agora nem eu próprio desejaria ser justo entre os homens  nem sequer o meu filho, visto que é mal ser homem justo,  se recebe melhor justiça o homem mais injusto.  (vv.270­272, FERREIRA, 2005).   

Por  ser  condicional  é  que  a  justiça  de  Hesíodo  funciona  ou  degenera,  uma  polis  injusta  mesmo  em  uma  única  parte  produz  cidadãos  injustos  em  totalidade.  Já  que  citamos  Homero,  estamos  falando  de  Húbris  e  Diké  e  em  breve  falaremos  de  Timé   (​ τιμή​ ,  honra),  é  importante   fazer  uma   ressalva.  Embora  por  princípios  bastante  distintos  daqueles  de  Hesíodo,  também  em  Homero  a húbris (desmedida) individual  arrasta todos os homens para um destino comum – aqui,  no  entanto,  trata­se  de  não  medir  adequadamente  a  timé  de  um  outro.  Na  Ilíada,  Agamemnon  é  injusto  ao  não  medir  a  timé  de  Aquiles   (tomando­lhe  Briseida),  causando  o  prolongamento  da  guerra  de  Tróia  e  grandes  desgraças;  na  Odisseia,  os  pretendentes  de  Penelope  diminuem  a  sua  timé  (devorando  seu  patrimônio  ao  invés  de  ofertar  presentes),  o  que  não   apenas  destrói  muitas  linhagens  entre  os  basileis   de  Ítaca  como  por  pouco  não  conduz  a  uma  gerra  total  na  ilha.  O  inverso  também  está   presente  em  Homero:  na  Ilíada,  restaurar  a  timé  entre  os  gregos  é  a  peça  central  nos  jogos  funerários  de  Pátroclo;  na  Odisseia,  reconhecer   a  timé dos adversários durante  os  jogos  de  Alcíno  na  ilha  de Esquéria (ou Feácia, atual Corfu) é o que leva Odisseu para  casa, e  115

  O  verso  pode  tanto  fazer  referência  ao  comércio  atrás   de  alimentos  quanto  àqueles  que  partem  em  busca de novas terras, como o próprio pai de Hesíodo (quem sabe até mesmo fundar colônias). 

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o  reconhecimento  da  timé  dos  demais  basileis  de  Ítaca  é  o  que  impede  sua  destruição  total.  No  entanto,  em  Homero  a  medida  certa  é  sempre  aquela  da   timé  e  o  trabalho  não  tem  nenhuma  função.    116

III.4 ​ auri sacra fames ou “quando ​ a vontade de ganho seduz a mente​ ”   Quanto  à riqueza,  não há um limite claro definido para o homem; para os  que  têm  hoje  as maiores riquezas entre nós,  estes têm duas vezes a  ânsia que os  outros têm; e  quem pode  satisfazer todos? Certamente  nossas posses tornam­se   loucura,  e  uma  ruína  se  revela  logo  além, quando um  homem  tem  agora e  um  outro então, sempre que Zeus a envia em sua miséria.  The Elegiac Poems of Theognis of Megara, Book 1, 227­232, trad. nossa117    

O  poeta  inicia  aqui  (v.286)  as  recomendações  e  sentenças  sobre  o  trabalho  (dirigidas  ao  grande  tolo  Perses;  ​ μέγα  νήπιε  Πέρση​ ).  Embora  Hesíodo  abra  com  a  já  bastante  conhecida  máxima  que  opõe  o  caminho  fácil  da  miséria  ao  áspero  caminho  da   riqueza,  a  introdução  de  alguns  termos  como  ​ aretê  (​ ἀρετή​ )   e  ​ aidos  (​ αἰδὼς​ )  complicam  sobremaneira  a  análise.  Até  o  final  dessa  subseção  não  estamos  interessados  na  correspondência  entre   uma  palavra  em  português  e  um  termo  grego,  o  que   nos  interessa  é  o  sentido  dos  versos.  A  primeira  relação  complicada  é  aquela  entre  trabalho  e  Excelência;  isso  é  como  Werner  (2013b)  traduz  ​ ἀρετή​ ,  outros  traduzem  como  Mérito  e  é  exatamente  isso  que  queremos  evitar  (2005,  v.289).  O   problema  da  tradução de aretê como “Mérito” é o mesmo que  de sua tradução por “Virtude” para  textos  anteriores  ao século V a.C., ou seja, a ideia de medida do merecimento de  um homem e de 

116

 Livre tradução nossa do verso 323, ​ ε​ ὖ​ τ​ ᾽​  ​ ἂ​ ν δ​ ὴ​  κέρδος νόον ​ ἐ​ ξαπατήσ​ ῃ​ . 

  "​ As  for  wealth,  there's no  end set  clear  for  man;  for such  as have  today the greatest riches  among  us,  these have twice  the eagerness  that  others  have;  and who  can  satisfy all?  'Tis sure our possessions turn to  folly, and  a ruin  is revealed  thereout, which  one man  hath  now  and another  then, whenever it be that Zeus  send it him in his misery​ ".  117

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seu  valor  moral  (sua  inclinação  para  fazer  o  bem  e  o  bom)118.  A  tradição  concorda  sobra  a  inexistência  de   um  sentido  moral   do   termo  aretê  até  o  século  V  a.C.  (SNELL,  2012,  p.167  e  pp.251­252; HESÍODO, 2005, p.103, nt.42). A aretê, Excelência, aparece em Hesíodo como algo  externo  ao  homem  e  que  tem  de  ser  alcançado  com  suor  (​ ἱδρῶτα​ ,  v.289),  ela  também  não  é  a  riqueza  ou  o  renome,  pois  renome  e  aretê  acompanham  à  riqueza  (​ πλούτῳ  δ᾽  ​ ἀρετὴ  καὶ  ​ κῦδος  ὀπηδεῖ, v.313).  A  noção  moral  de  aretê,  ou seja, aquilo que entendemos como uma leitura equivocada do  poema,  é  o  que produz a opinião comum de uma moral do trabalho em Hesíodo. “Trabalho  não é  reprovável  para  ninguém,  reprovável  é  não  trabalhar”  (ἔργον  δ᾽  οὐδὲν  ​ ὄνειδος​ ,  ἀεργίη  δέ  τ᾽  119

ὄνειδος​ .  v.311,  trad.  nossa)   não  implica  que  o  trabalho  aumente  a  dignidade  do  homem,  mas  apenas  que  não  trabalhar  é  motivo  de  reprovação.  Quem  não  trabalha  é  detestado  por  mortais  e  imortais  (v.303),  quem  trabalha  é  mais  querido  por  mortais  e  imortais  (v.309­310).  Por  que?  Porque  quem  não  trabalha   vive  do  trabalho  de  outrem,  assim  como  a  metáfora  dos  zangões  nos  120

versos  304­306  (e  Teogonia,  v.594­602) ​ ,  e  Hesíodo  já  deixou  suficientemente  claro   que  essa  forma  de  injustiça   leva  a  destruição  de  homens  e  de  poleis.  Daí  não   se  tira  que  alguém  possa  prejudicar  um  suplicante  (v.327)  ou  reprovar  um  homem  por  sua  pobreza  (vv.717­718),  o  reprovável  é   aquele  que  sem  trabalhar  procura  tomar  os  bens  (​ χρήματα​ )  alheios,  ou  adquirir  grande  fortuna  (​ μέγαν  ὄλβον​ )  pela  força  das  mãos  (​ χερσὶ  βίῃ​ )  ou  saquear  por  meio  da  língua  (​ γλώσσης  ληίσσεται​ )  (vv.320­322).  Vale  a  pena  destacar  que nessa passagem Hesíodo separa o  118

 O  termo  aretê podia ser usado  de diversas  maneiras.  Para Teógnis de Mégara a aretê que ele buscava  era ser feliz e  querido  pelos deuses  imortais, εὐδαίμων εἴην  καὶ θεοῖς φίλος ἀθανά τοισιν, Κύρν᾿·  ​ ἀρετῆς δ᾿  ἄλλης οὐδεμιῆς ἔραμαι. (vv.653­654, LCL 258. p.268).  119

 Na tradução  do grego para o  inglês  de  West  (1988,  p.46) o verso aparece como “Work is  not  reproach,   but not working is a reproach”.  120

  Nessa  passagem  da  Teogonia  a  metáfora  é  utilizada  para  falar  da  mulher  como  parceira  de  feitos  aflitivos, que,  como  o  zangão faz  com a abelha, se alimenta  do trabalho do homem sem produzir alimentos  ela  mesma.   Hesíodo  não  ignora que  a mulher  trabalha  (vv.63­64 e v.405), até mesmo  reconhecendo sua  importância, ele  apenas não reconhece nenhum estatuto de igualdade desses trabalhos – mas isso decorre  dele  não  reconhecer  um  estatuto de  igualdade  entre  homens  e  mulheres. Em tudo a mulher aparece como  ambiguidade,  uma  forma   de  fornecer  o  mal  pelo  bem  ­  a  mulher  é  um  bem  que  traz  consigo  o  mal  (Teogonia,  v.585  e  v.602;   Trabalhos  e  Dias  vv.57­58).  O   nome  Pandora  faz   referência  àquela  que  é  portadora de todas as dádivas (vv.80­81). 

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roubo,  furto  de patrimônio alheio, no verso  320,  da ​ grande ​ fortuna obtida pela força das mãos ou  121

por  meio  da  língua.  Em  ambos  os  casos  (força  e  palavra)   apenas   a  guerra  e  a  política  podem  dar  origem  as  grandes  fortunas  e  é  razoável  imaginar   isso  como  mais  um  ataque  do  poeta  aos  basileis  –  é  abstrair  do  bom   senso  acreditar  que grandes fortunas venham de pequenos  golpes na  praça.  Resumindo,  o  trabalho  não  é  uma  virtude,  o  roubo,  a  pilhagem e a política corrupta é que  são  desonrosas  –  quando  não  desastrosas.  A  comparação feita por Hesíodo é com aquele que faz  algum  mal  ao  suplicante,  ofende  órfãos,  briga  com  o  pai  ancião  ou  que  pratica  atos  impróprios  122

com  a  esposa  do  irmão.  Em  todos   os  casos  a   ação  ocorre  contra  pessoas  vulneráveis ​ .  Se  trabalhar  é  como   não  bater  no  pai  ancião  então  dificilmente  isso  tornaria  alguém  honrado.  Isso  não  é  suficiente  para  superar  as  leituras  moralistas  do  poema  mas  serve  ao  propósito  dessa  monografia.  Retornando  à  aretê,  entendemos  que  se  trata  da  qualidade  do  trabalho,  a  maneira  como  ele  é  executado  e  o  compromisso  que  se  tem  com  ele.  O  simples  aumento  quantitativo   dos  trabalhos  (erga)  é  o  labor  (ponos), a aretê coloca uma determinação qualitativa nos trabalhos que  é  sua  execução  adequada  e  ordenada  (v.306). A aretê se vê no resultado ­ a riqueza ­, mas não se  confunde  com  esse  resultado  pois  acompanha  o  mesmo.  A  aretê  é  fazer  um  trabalho  com  excelência,   mesmo  que  ele  seja  um  labor  doloroso  (ponos)  e  exija  suor  (​ ἱδρῶτα​ ).  Aliás,  é  justamente  pelo  ​ ponos  que  o  trabalho  pede  ​ aretê​ ,  “Ó  covarde,  não  procures  o  que  é  macio,  não 

121

  Odisseu  é  a  personificação  daquele  que  sabe  usar  da  força  e  da  palavra  para  vencer  os  desafios.  Porém, o  dom  da palavra  é quase  inseparável da  arte  de enganar o adversário.  O caso mais ambíguo é o  da  tragédia  de  Sófocles,  “Filoctetes”,  onde  Odisseu  busca   a  qualquer  custo,  pela  força   ou  através  de  mentiras,  recuperar  o  arco  de  Héracles  que  se  encontra  com  Filoctetes   –  recuperar  o  arco  de  forma  “honesta” é a única alternativa que não passa por sua cabeça.  122

  Fica   claro  nessa  passagem  que  Hesíodo   considera  a  mulher  vulnerável,  seja   por  sua  fraqueza  de  “espírito”  (caráter,  ou  desejo  irrefreável)   ou  por  ser  considerada  fisicamente  mais  fraca que  o homem. A  tradição  grega  reserva  Eros   apenas  ao  amor  entre  homens,  entre  homens  e  mulheres  intervém  apenas  Afrodite.  Também  no  mito  de  Pandora,  tanto  na  Teogonia   como  nos  Trabalhos  e  Dias,  dos deuses que   participam da sua criação temos Afrodite mas não temos Eros. Mudar essa tradição será como desatar o nó  górdio, tarefa a  que se propõe  Plutarco em seu “Diálogo  Sobre o  Amor”.  No entanto, Plutarco  sugere  que  na  prática  as  coisas  não funcionavam  bem assim (2009,  p.57). Não nos  deixemos  enganar!  Plutarco  não  defende  uma  igualdade  entre  homens   e  mulheres,  seu  desejo  é  unicamente   aumentar  a  dignidade  (e  importância social) da família introduzindo Eros nessa relação. 

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123

vás  ficar  com  o  que  é  duro”  (XENOFONTE,  2009,  p.121­122) ​ .  Para  quem  deseja  o  macio,  o  124

suave  (​ μαλακὰ​ ) ​ ,  o  caminho  é  o  duro  trabalho  árduo.  No  verso  289  aretê  aparece  em  contraposição  com  kakotita  (​ κακότητα​ )  no  verso  287,  e  essa  oposição  entre  aretê  (​ Ἀρετὴ​ )  e  125

kakia  (​ Κακία​ )  é  regular  na  tradição  grega ​ .  Uma das referência mais famosas dessa oposição é  o  mito  de  Héracles  contado  por  Pródico  e  que  Xenofonte  recupera  (Memoráveis  II.1.21­34,  2009,  p.121­127).  Nesse  mito,  Héracles,  chegando  à  adolescência,  se  encontra  indeciso  sobre  o  seu  futuro  e  resolve  procurar  um  lugar  tranquilo  para  refletir  sobre  qual  caminho  o  levará  à  126

felicidade  (​ εὐδαιμονία​ ),  o  que  segue  é  um  típico  ​ agon ​ .  Enquanto  Héracles pensava aparecem  duas  mulheres,  Aretê   e  Kakia,  a  primeira  de  aspecto  digno,  postura  recatada  e  singelamente  ornamentada,  e  a  segunda  de  aspecto  mole,  se  vestindo  de  modo  a  exibir  sua  juventude  e  maquiada  para  parecer  o  que  não  era. Kakia promete um caminho mais agradável e fácil, repleto  de  prazeres  e  livre de dificuldades, chamando a si própria de Felicidade (​ Εὐδαιμονίαν​ ) enquanto  seus inimigos chamam­na de Maldade (​ Κακίαν​ ). Responde então Aretê dizendo:  Não  te  vou  enganar  com  introduções  sobre  prazer;  vou,  sim,  expor  a verdade  [ἀληθείας]  sobre  a  qual  os  deuses  estabeleceram  quanto  existe.  De  quantas  coisas  boas  [ἀγαθῶν]  e  belas  [καλῶν]  existem,   nenhuma  deram  os  deuses  ao  homem sem dor  [πόνου] e  sem cuidado  [ἐπιμελείας] (...) ​ se queres que a terra  te  dê  frutos  em  abundância,  terás  de  cuidar  a  terra;  se  julgares  que  te  é  necessário enriquecer criando gado, terás de te preocupar com esse ​ gado​ ; se  ambicionas tornar­te poderoso através da guerra e queres ser  capaz de libertar os  teus  amigos  e  subjugar  os  teus  inimigos,   terás  de  aprender  as  artes  da guerra,  junto  de  aqueles  que  as  conhecem,  e  praticá­las  de  modo  a  poderes  fazer  uso  delas  quando  o  necessitares.  Se  queres  que  o  teu   corpo  seja  forte,  tens  de  o  habituar  a   submeter­se  à  inteligência  e  exercitá­lo  com  esforço e  suor  [πόνοις  καὶ ἱδρῶτι].  XENOFONTE, 2009, pp.124­125; ​ Memorabilia​ . 2.1.28. 

  Epicarmo,   ver   nota  96.  No   original,  “​ ὦ  πονηρέ,  μ​ ὴ  τ​ ὰ  μαλακ​ ὰ   μ​ ῶ​ σο,   μ​ ὴ  τ​ ὰ   σκλήρ​ ᾽  ​ ἔ​ χ​ ῃ​ ς”  (Xen.  Mem.  II.1.20).  123

  Ao  que   parece  o   comediógrafo  deseja  fazer   uma  ironia  usando  o   campo   semântico  de  ​ μαλακ​ ὰ   que  envolve tanto a noção de maciez e suavidade quanto de afeminado e covarde.  124

 Outros  exemplos são  ​ Ἀ​ ρετ​ ὴ e Κακία  no trabalho de escravos (ARISTÓTELES. Econômicos. 2011, p.12)  e ​ Ἀ​ ρετ​ ὴ​  e Κακία nas definições de qualidade e movimento (ARISTÓTELES. Metafísica. 5.1020b).  125

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 Disputa verbal, um debate, que permite resolver um dilema e, assim, desobstruir uma ação. 

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  127

Como  esperado,  no  final  do  ​ agon  Héracles  escolhe  seguir o caminho da Aretê ​ . Em seu  poema,  Hesíodo,  também   aponta  dois  caminhos;  o  da  ​ κακότητα​ ,  que  a  maioria  dos  tradutores  verte  como  Miséria,  e   o   da  aretê,  traduzido  como  Excelência  (Werner,  2013b;  Lafer,  1996),   Mérito  (Ferreira,   2005),  Virtude  e  até  mesmo  prosperidade  (Rolim,  v.289  p.91;  “mérito”  no  128

v.313,  p.95) ​ .  No  entanto,  deve­se aproximar com cuidado Pródico e Hesíodo, pois no primeiro  a  aretê  já  possui  um  atributo moral, é o caminho para a Felicidade que deve ser escolhido por ser  129

o  certo  (o  Bem) ​ .  Já  Hesíodo   não  indica  nenhum  caminho  do  bem  abstrato,  nele  nunca  encontramos  o  “fazer  o  certo  pelo  certo”,  ao   contrário,  ele  sempre  apresenta  a  oposição   entre  riqueza  ou  miséria  para  justificar  as ações. A aretê é, portanto,  o  afinco necessário para enfrentar  o  labor  (ponos)  e  a  operosidade  nos  trabalhos  (SNELL,  2012,  p.252)  ­  operosidade  que  é  a   atenção  necessária  à  ordem  adequada  dos  trabalhos  (v.306).   Embora  ela  não  faça  ninguém mais  honrado,  evita  sua  ruína,  a  miséria  (​ κακότητα​ )130 ,  e,  o  que  é  mais  importante,  evita que alguém  busque  a  riqueza   através  da  injustiça  (destruidora  de  homens  e  de   poleis).  O  que  nos  interessa  destacar  dessa  passagem  é  que  a  aretê  está  inteiramente  contida  no  espaço  da  produção,  do  trabalho,  e  não  tem  nenhuma  participação  na  distribuição  como  tem  a  timé  de  Homero.  Mesmo 

 A escolha  não  está no  agon  narrado por Pródico mas  na fala do  personagem  Sócrates (​ XENOFONTE,  2009, p.127​ ).  127

128

  Evelyn­White   (1914,  Hes.  WD  274)  traduz  os  dois   termos  como  Maldade  (Badness)  e  Bondade  (Goodness).   M.L.  West  (1988,  p.45)  adota  a  solução  bastante  interesante  de  Inferioridade  (Inferiority)   e  Superioridade  (Superiority)  ­  já  no  verso  313  adota  “mérito”  (“worth”,  p.46).  Hélio  Jaguaribe  usa  competência  para  o  termo  aretê  (Jaguaribe,  Hélio  (org.),  A  democracia  grega.  Brasília:  Editora  da  Universidade de Brasília/Rio: Fundação Roberto Marinho, 1981 apud TRABULSI, 1983, p.120).   129

 Solmsen  (1995, pp.76­92) entende que o poema trata de operar uma reforma moral no homem grego e a  partir dessa chave analítica vê moral em absolutamente tudo no poema. Solmsen sugere uma pequena lista  bibliográfica sobre o termo aretê, ibdem, p.89, nt.51.  130

  Se  guardarmos  a  relação  entre  aretê  e  kakia  os  versos  471­472  são  significativos;  "organização  é  o  melhor para os  homens mortais, desorganização (​ κακοθημοσύνη​ ),  o  pior  (​ κακίστη​ )."  (WERNER, 2013b,   p.61). 

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que  a  aretê  ande  acompanhada  por  riqueza  e  renome  (​ κῦδος​ )  ela não  serve para exigir presentes  ou entrar como medida “de valor” na relação entre dois produtores quaisquer131.  A  única  forma  de   obter  fortuna  sem causar destruição é através do afinco necessário para   enfrentar  o  árduo  labor  (ponos)  e  da  operosidade  que mantém o trabalho  bem organizado (σοὶ δ᾽  132

ἔργα  φίλ᾽  ​ ἔστω  ​ μέτρια  ​ κοσμεῖν​ ,  v.306) ​ ,  em   uma  palavra,  a  Aretê.  Nos  versos  314  ao  316  Hesíodo  é  taxativo;  qualquer  que  seja  a  sorte (fortuna ou destino) de um homem ele deve afastar  seu ânimo insano (​ ἀεσίφρονα θυμὸν​ ) das posses alheias e voltá­lo ao trabalho. Quem procede de  outra  forma,  buscando   a  riqueza  através  do  roubo,  da  guerra  ou  da  política,  é  aquele  onde  a  “vontade  de  ganho  seduz  a  mente”  (v.323).  Citando  a  tradução  de  West  “o  tipo  de  coisa  que  ocorre  com  frequência  quando  o  lucro  [​ κέρδος​ ] ilude a mente dos homens, e a falta de vergonha  133

afasta  a  vergonha”  (1988,  p.46,  trad.  nossa;  vv.322­324) ​ .  Nestes  versos  Hesíodo  nos  dá  a  imagem  precisa da ganância, uma mente iludida pelo ganho e desprovida de vergonha (​ αἰδὼς​ ). E  para  compreender  essa  Vergonha  (​ αἰδὼς​ )  precisamos  observar  sua  contraposição  com a falta de   vergonha  (​ ἀναιδείη​ )  no  verso  324,  bem  como  suas  ocorrências  nos versos 317, 318 e 319. Uma  opção  para  traduzir  ​ αἰδὼς  é  “respeito”, o senso de si e  dos outros (LSJ), que é  muito próximo de  “vergonha”  quando  esta  não  se  confunde  com  um  sentimento  de  culpa  (com   uma  moralidade).  Quando  ​ αἰδὼς  é  visto  como  “respeito”  surge  uma  polaridade não simétrica, o senso que um  tem  sobre  si  mesmo  e  dos  outros  não  corresponde  necessariamente  ao  senso  que  os  outros  têm  de si  mesmos  e  desse  um.  O  respeito  (​ αἰδὼς​ )  é,  portanto, uma condição ambígua, um difícil limitante   131

 Séculos antes de  Xenofonte e antes mesmo de Hesíodo já encontramos  na Ilíada a presença  da escolha  entre dois  caminhos  na  vida.  A escolha  de Aquiles entre  um  vida  longa e  tranquila  ou  uma morte  jovem e  violenta  mas  coroada  de  glória   (imortalidade  do  nome)  não  possui  a   aretê  no  seu   centro,  mas  é  uma  escolha  guiada  por  um interesse  pessoal  pela fama e não por  uma moral  de bem.  Certamente  seu  nome  será  eternizado  não  por  sacrificar  uma  vida  longa  e  tranquila   mas  por  suas  vitórias   e  por   sua  aretê  na   batalha, sua coragem e excelência na guerra ­ até mesmo  a aretê de Heitor  é louvada acima do mal que ela  provoca aos próprios gregos.  132

  “organização  é  o  melhor  para  os  homens  mortais,   desorganização,  o  pior”,  vv.471­472  (WERNER,  2013b).  133

  A  tradução  do  grego  feita   por  West  difere  daquela  que  fizemos  no  título  dessa   seção,  mas  como  alertamos  na   nota  de  rodapé  116  trata­se   de  uma  tradução livre.  Na versão original de  West,  em inglês,  lê­se  “the   sort  of  thing  that  often  happens  when  profit  deludes  men’s  minds,  and  Shamelessness  drives  away Shame”. 

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na  relação  entre  os  homens.  Agir  com  ousadia  ou  com  inibição  é  parte  do  ​ αἰδὼς​ ,  duas  faces  de  uma  mesma  moeda​ .   Por  oposição,  a  falta  de  respeito  (​ ἀναιδείη​ )  não  é  a  ousadia  ­  um  senso  exagerado  de  si   mesmo  ou  reduzido  dos  outros  –  ou  seu  inverso,  a  inibição,  mas  sim  a  falta  de   senso  de  si  e  dos  outros,  a  falta  de  um  limite  na  relação com os demais134 . No verso 359 alguém  sem  respeito  (​ ἀναιδείηφι​ ),  sem  limites,  aparece  como  aquele  que  toma  para si o que não lhe foi  dado,  não  importando  se  se  trata  de  muito  ou  mesmo  de  pouco  –  por  qualquer  ganho  nega­se  o  outro por completo. Os versos 322­324 indicam então que o lucro ilude a mente e afasta qualquer  limite  individual  ou  com  os  outros  ­  pelo  ganho  mais  ninguém  importa.  Eis  a  maldita  fome  de  135

ouro (auri sacra fames)! O caso dos versos 317, 318 exigem recuperar Homero ​ :  αἰδὼς δ᾽ οὐκ ἀγαθὴ κεχρημένον ἄνδρα​  κομίζει (Hes. v.317)136   αἰδὼς δ᾽ οὐκ ἀγαθὴ κεχρημένῳ ἀνδρὶ ​ παρεῖναι. (Hom. Od. 17.347)    αἰδώς, ἥ τ᾽ ἄνδρας μέγα σίνεται ἠδ᾽ ὀνίνησιν​ . (Hes. v.318)  ὣς Ἀχιλεὺς ἔλεον μὲ ν ἀπώλεσεν, οὐδέ οἱ ​ αἰδὼς  γίγνεται, ​ ἥ τ᾽ ἄνδρας μέγα σίνεται ἠδ᾽ ὀνίνησι​ . (Hom. Il. 24.44­45) 

  Na  estrutura  e  nas  palavras  a  referência  salta  aos  olhos.  Vejamos  como  se relacionam os  versos. 

  Também  Teógnis   de  Mégara  diz algo  semelhante,  ἦ  δὴ νῦν  ​ αἰδὼς μὲ ν  ἐν  ἀνθρώποισιν  ὄλωλεν, αὐτὰ ρ  ἀναιδείη  γαῖαν  ἐπιστρέ φεται.  "Agora  inibição  está  perdida  entre  os  homens  e   a  falta  de vergonha  anda  sobre  a terra" [Now inhibition is lost among men and shamelessness roams over the land] (vv.647–648. LCL  258. pp.268­269, trad. nossa do inglês).  134

135

 Foi  Rolim  (2012,  p.95,  nt.26)  que nos chamou  a  atenção para o fato de o verso 318 ser uma referência  aos versos  44­45  do canto 2 da Ilíada. Já  Hays (1918, p.127) aponta também a relação  entre o verso 317 e  o verso 347 do canto 17 da Odisseia. A citações usam Homer, 1920 e Hesiod, 1914.  Também  o  verso  500 de  "Trabalhos e  Dias" tem  a mesma estrutura  alterando apenas "respeito" (αἰδὼς)  ​ por  "expectativa"  (ἐλπὶς);  "ἐλπὶς  δ᾽  οὐκ  ἀγαθὴ  κεχρημένον  ἄνδρα  κομίζει". A  semelhança entre  os versos  317 e 500  reforçam a  ideia  de  que o αἰδὼς é uma  relação externa  ao indivíduo sobre  a qual ele não possui  controle.  O  trabalho  bem  organizado   e  executado  (aretê)  garante  o  controle  do  indivíduo  sobre  suas  necessidades externas.  136

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O  primeiro  verso  (Hes.   Op.  v.317  e  Hom.  Od. 17.347) diz que vergonha/respeito, ​ αἰδὼς​ ,  não  é  boa  acompanhante  para  um  homem  necessitado.  No  contexto  da  passagem  na  Odisseia  essa  frase  é  usada  quando  Telêmaco diz ao seu escravo Eumeu que entregue um pedaço de pão a  um  maltrapilho  que  penetra  em  seu  palácio  durante  um  banquete.  A  frase  serve  como  um  conselho  que  Eumeu  deve   dar,  junto  com  o  pão,  ao  pobre homem que até aquele  momento nada  havia  pedido.  O  maltrapilho   agradece  o  pão  mas  põe­se a comer ao invés de mendigar, até que a  deusa  Atena  o  incitasse  a  suplicar  como  forma  de  conhecer  entre  os  homens  quais  os  justos  e  quais  os  ímpios.  Depois  de  encher  a  sacola  com  a  esmola  de  muitos  o  que segue é uma  troca  de  ofensas  entre  um  dos  convivas,   Antínoo,  e  o  suplicante,  de  onde  sai  ferido  no  ombro  o  infeliz  137

maltrapilho ​ .  O  ​ αἰδὼς  aqui   é  a  inibição,  o  excesso  de  freio,  pois  o  necessitado  não  deve  se  privar  de  pedir. No contexto do poema de Hesíodo vemos Perses em uma situação não muito  boa  (v.314),  endividado  e  próximo  da  pobreza  (v.404  e  v.647),  tentando  roubar  do  irmão  mais  uma   parte  da  herança  paterna,  gastando  o  pouco  que  tem  corrompendo  os  basileis  comedores  de  presentes.  Hesíodo  não  está  elogiando  a  miséria  do  pedinte  ou  o  senso de respeito do miserável,  está  recordando  Perses  de  que  depender  do  ​ αἰδὼς  é  coisa  complicada  para  um  homem  necessitado.  O  melhor  é  trabalhar  (v.314)  para  evitar  depender  do  ​ αἰδὼς​ ,  até  porque  Hesíodo  nada  lhe  dará  (vv.395­397).  O  verso  319  tem  sentido  semelhante  ao  dizer  que  a  inibição  acompanha  o  desafortunado,  sempre  se  privando  daquilo  que  deve  fazer,  enquanto  a  audácia  acompanha  o  afortunado,  tal  qual  a  aretê  acompanha  a  riqueza.  A  excelência  (​ ἀρετή​ )  e  a  coragem  em  fazer  as  coisas  (​ θάρσος​ ) acompanham aquele que trabalha, ao contrário,  aquele que  não trabalha fica exposto as dificuldades da inibição (​ αἰδὼς​ ).  O  segundo  verso  (Hes.  v.318  e  Hom.  Il.  24.44­45)  deixa  claro  o  quão  complicado  é  o  respeito/vergonha  (​ αἰδὼς​ ),  “vergonha,  ela  que  muito  lesa  e  beneficia  varões”.  Na  Ilíada  de  Homero  o  contexto desse verso é impactante, e dificilmente um grego desconheceria seu sentido.  O  verso  é  proferido  por  Apolo  aos   demais  deuses  do  Olimpo,  indignado  com  o  comportamento 

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 O  misterioso  pedinte é  o  próprio Odisseu disfarçado,  aquilo que  ele recebe como  esmola  é na verdade  proveniente do seu próprio patrimônio, que os pretendentes dilapidavam em inesgotáveis banquetes. 

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de  Aquiles  que,  por  toda  uma  noite,  arrasta  de  forma  ultrajante  o  cadáver  de  Heitor,  o  herói  troiano. De Aquiles ele diz:  tão destituído de humano sentir sem razoáveis propósitos  no coração abrigar como o leão cujo instinto selvagem  à força ingente associada e à indomável coragem o leva  a devastar os rebanhos dos homens a fim de saciar­se.  Toda a piedade falece ao Pelida falece­lhe ​ o senso  da reverência que é fonte de males e bens para os homens​ . 

(Hom. Il. C.24 vv.40­45, 2015)    Hayes  (1918,  p.127)  define  muito  bem   essa  passagem  como  sendo  a  ​ αναιδής  ­  absoluta  falta  de  respeito  ­   de  Aquiles.  Lembramos o verso 324 do poema de Hesíodo, quando a ganância  leva  ​ ἀναιδείη  (falta  de respeito) a afastar todo o ​ αἰδὼς (respeito), mas no caso de Aquiles é a ira  138

incurável  pela  morte  de  seu  companheiro  Pátroclo  que  produz  esse  afastamento ​ .  A  questão  é  mais  uma  vez  a  fragilidade  do  senso  de  respeito  (​ αἰδὼς​ ),  como  o  ânimo   insano  (​ ἀεσίφρονα  θυμὸν​ ,  v.315)  é  capaz  de  anulá­lo  por  completo.  Contra  a  ganância  desavergonhada  Hesíodo  exorta  Perses  ao  trabalho  (v.335),  não  porque  seja  o  moralmente  certo,  mas  porque  é  a  única  maneira de preservar o respeito.  O  ​ πόνος  (ponos,  labor/dor),  a  ​ ἀρετή  (aretê,  excelência/operosidade)  e  o  ​ αἰδὼς  (aidos,  respeito/vergonha)  são  todos  termos   que  ligam  o  trabalho  (​ ἔργον​ )  à  condição  de  limitante  da  riqueza  (​ πλούτῳ​ )  e  da  fortuna  (​ ὄλβον​ )139.  A  ​ ὕβρις  (húbris,  violência/desmedida),  a  ​ Κακία  (kakia,  miséria/fraqueza)  e  a  ​ ἀναιδείη  (anaidei,  falta  de  respeito/negação  do  outro)  são  todos  termos  que  ligam  aquela  “vontade  de  ganho  que  ilude  a  mente”  à  uma  busca  ilimitada  pela 

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 A diferença  com a ganância de  que Hesíodo fala pode ser confirmada  no seguinte verso da Ilíada: “sem  que esse ultraje indecente lhe traga nenhuma vantagem”, Hom. Il. C.24 v.52, 2015.  139

  já  vimos  que o labor (ponos) obriga  que os  trabalhos  (erga) se  estendam  no tempo, não  bastando um  único  dia  de trabalho para obter  o sustento,  mas  também  a  aretê limita  a  riqueza pela excelência e ordem  em  que  os  trabalhos  têm  de  ser  executados  ­  o  respeito/vergonha  conduz  o  homem  a  satisfazer  suas  necessidades  através  do  trabalho,  onde tomar a  riqueza de um outro leva a perda de respeito. O trabalho é  um  limitante  concreto  da  acumulação  e  não  uma  linha   de  subsistência   moral,  daí  que  o  aristocrata  que  acumula  pela pilhagem  de guerra  e corrupção  política não  conhecer limites concretos mas tão somente  os  morais. 

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riqueza,  mas  que  encontra  no  fim  apenas  a  destruição  –  “Não  lucres  de forma vil; lucros vis são  como desastres” (WERNER, 2012b, v.352).   Iniciamos  a  seção  com  Hesíodo  falando  das  várias  maneiras  de  buscar  a  riqueza;  o  trabalho,  o  roubo,  a  guerra  e  a  corrupção política – apenas as duas últimas dão origens a grandes  fortunas.  Mas  nós  invertemos  sua  ordem   expositiva,  essa  é  a  sua  conclusão. Na ordem certa, ele  primeiro  introduz  a   kakotita  e  a  aretê  e  logo  em seguida lança os versos “Este o melhor de todos  [​ πανάριστος​ ],  quem  por  si  tudo  apreender  ao  refletir  no  que  será  melhor,  depois  e   no   fim”  (WERNER,  2012b,  vv.293­294).  Em  seguida  admoesta  ao  trabalho  como  forma  de  enriquecer,  diz  que  o  trabalho  não  é  reprovável  e  afirma  que  este   é  o  melhor  em  qualquer  sorte  que  um  homem  se  encontre.  Então  diz  que  contar  com o respeito, seja de  si ou dos outros, é  algo sempre  complicado.  Só  aí  é  que  Hesíodo  apresenta  as  formas  destrutivas  de  buscar  a  riqueza  e  afirma  que  elas  ocorrem  quando  a  vontade de ganho ilude a mente e a falta de respeito afasta o respeito.  Bem  refletido,  o  que   será  melhor,  depois  e  no  fim,  é  controlar  o  ânimo  insano  da  única  forma  possível,  ou  seja,  trabalhando.  O  trabalho  (e  a  obediência  religiosa)  tornam  o coração e o ânimo  propícios  (ἵλαον  κραδίην  καὶ  θυμὸν  ἔχωσιν,  v.340)  para  “permutares  a  gleba  de  outros,  não  outro,  a  tua”  (v.341).  Recordemos  por  um  momento  a  profecia  apocalíptica  dos  versos  180  ao  201.  Findará  a  raça  de  ferro  quando  Respeito  e  Retaliação  (​ Αἰδὼς καὶ Νέμεσις), partindo para o  Olimpo,  abandonarem  os  homens  sem  defesas  contra  o  mal  (v.201).  Agora  também  sabemos  como  Respeito  (​ Αἰδὼς​ )  será  afastada  dos  homens...  quando  sem   trabalhar,  a  vontade  de  ganho  seduz a mente.  ἐν  γά ρ  τοι  πόλει  ὧδε  κακοψόγῳ  ἁνδά νει  οὐδέ ν·†ωσδετοσωσαιει†  πολλοὶ  ἀνολβότεροι.νῦν  δὲτὰτῶν       ἀγαθῶν  κακὰγίνεται     ἐσθλὰ κακοῖσιν  ἀνδρῶν·  γαίονται  δ᾿  ἐκτραπέ λοισι   νόμοις·αἰδὼς  μὲ ν  γὰ ρ  ὄλωλεν,  ἀναιδείη  δὲκαὶ     ὕβριςνικήσασα δίκην γῆν κατὰ  πᾶσαν ἔχει.  In  a city so given  to malicious faultfinding nothing pleases (the citizens); . . .  many  are  less  well  off.  Now  what  the  noble  consider   vices  are   deemed  virtues by  the  base, and they  rejoice in perverted ways (laws?). For respect is  lost and shameless outrage, having overcome justice, prevails in all the land. 

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Theognis, Elegiac Poems, vv.287–292. LCL 258, pp.214­215 140    

III.5. “a fim de permutares a gleba de outros, não outro, a tua”    Impossível  não  comentar  esse   verso  (v.341),  ele  traz  consigo  duas  das  mais  importantes  observações  sobre  a  sociedade  que  despontava  na  Grécia  Arcaica:  a  quebra  do  vínculo  natural  entre  homem  e  terra  e  a  cisão  entre  poder  político  e  poder  econômico.  A  democracia  grega  não  existiria  sem  esses  dois  fatores.  Não  desejamos,  e  nem  temos  os recursos  necessários,  para  resolver  um  assunto  dessa  dimensão  no  espaço  desse  texto.  Faremos  apenas  algumas  observações   sobre  a  importância  da  dissolução do kléros para a dinâmica econômica do  Arcaico.  O  kléros,  i.e.,  a  propriedade  da  terra  indivisível  e  inalienável  (WILL,  1965,  p.544),  teria  sido  durante  o  Geométrico  uma  forma  dominante  da  relação  entre  terra  e  trabalho.  O  problema  da  partilha  de  herança  e  a  permutabilidade  da  terra  deixam  claro  que  a  forma  tradicional  do  kléros  já  não  valia  mais  na  época  do poema. O processo histórico que levou a abolição do kléros  tradicional  nos  escapa141 ,  mas,  no  entanto,  podemos  analisar  algumas  de  suas  consequências  sociais.  A  primeira  delas  é  um  processo  de  concentração  da  terra  na  mão  da  aristocracia142   que  implicava  não  apenas  na  perda  da  terra  por  parte  dos  pequenos  (certamente  mais  atingidos)  e  médios  proprietários,  mas  na  separação  entre  trabalho  e  meios  de  realização  do  trabalho.  Isso  significa  que terra  e trabalho eram adquiridos separadamente, mediante processos mais ou menos  independentes.  Nesse  cenário  aquele  que  acumula  terras  necessita  encontrar  mão  de  obra  e  140

  "Em  uma  cidade  tão  dada  à  queixa  maliciosa  nada  agrada  (o  cidadão);  …  muitos  estão  em  uma  condição  pior.  Agora  o  que o  nobre  considera vício  é creditado  como  virtude  pelo  povo, e eles se alegram  em  perverter  caminhos (leis?). Pois  o  respeito  é perdido  e  a  desavergonhada ofensa, tendo  sobrepujado a  justiça, prevalece em toda terra.", trad. nossa do inglês.  141

  No  capítulo  2  apresentamos  nossa  opinião  contrária  aos  argumentos   que  defendem  o  crescimento  demográfico como sua causa.  142

 Ver notas de rodapé 58 e 59. 

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aquele  que  possui  mão  de  obra  disponível  está  em  busca  de  terras  ­  uma  relação  tanto  contraditória  quanto  complementar.  As  várias  formas  distintas  que  essa  relação  pode  assumir  dependem  de  um  complexo  de  determinações  sociais  sobre  as  quais  conhecemos  pouco.  O  que  sabemos  é  que  na  antiguidade  grega  essa  relação  assumiu  formas  como  a  de  escravidão  por  dívida  (e  de  origem  externa),  formas  de  servidão  e  arrendamento  ou  até  mesmo  formas  de  trabalho  assalariado   (theta)  e  pagamento  por  serviços  específicos  (misthos)143.  Esse  tema  é  central  para  a  compreensão  das  transformações  sociais  que  conduziram  ao  Período  Clássico.  O  fato  da  reorganização  da  propriedade  da  terra,  fundamental  na  reorganização  das  formas  de  trabalho  (relações  de  produção),  já  estar  presente em um poema do início do Arcaico não é mera  curiosidade  mas  mostra  que  esse  período,  com  suas  complexas  transformações  sociais,   não  foi  mero ensaio para o Clássico.  Do  ponto  de  vista  da  política  a   permutabilidade  da  terra aponta para uma autonomização  das  relações  de  propriedade.  Essa autonomização não  é apenas frente ao controle não econômico  da  aristocracia  mas  também  da própria comunidade. A distribuição da propriedade da terra passa  a  depender  do  trabalho  (e  de  sua  distribuição  em  formas  mais  complexas  de  organização)  e não  mais  de  relações  sociais  "extra­econômicas"  ou  das  necessidades  surgidas  da  manutenção  da  própria  comunidade  (o  que  consideramos  a  chave  econômica   para  a  compreensão  do  kléros).  Portanto,  se  por  um  lado  o  pequeno  ou  o  médio  proprietário  se  via  cada  vez  mais  livre   da  influência  política  dos basileis aristocratas ele também se via cada vez mais assediado pelo poder 

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  Aristóteles  fornece  uma  variedade  dessas formas  na Política  e na  Constituição de  Atenas.  Mesmo em  Hesíodo  é possível  ver  algumas  dessas formas, e.g., escravo (δμῶές, v.459, v.470, etc), carpinteiro (v.430)  e  o  trabalho  pago  na  forma  de   misthos  (μισθὸς,  v.370),   de  tetha  ou  eritos  (​ θῆτά  τ᾽  ἄοικον  ποιεῖσθαι καὶ  ἄτεκνον  ​ ἔριθον​ ,  v.605/v.602).   A  passagem  sugere  que  essas duas formas  de  trabalho,  tetha  e eritos,  se  assemelhavam  a alguma  forma  de servidão  já  que o  tetha  não deve possuir propriedade (ἄοικον, a+oikon)   e  a  eriton,  que  Werner traduz  por "criada",  não deve possuir filhos (ἄτεκνον,  a+téknon). Ao que tudo indica  tetha e  eriton trabalhavam em troca de abrigo e sustento, e a criança da  eriton é vista negativamente (como  um  bezerro, ὑπόπορτις)  seja porque  é  incapaz  de trabalhar  ou  porque  exige  cuidados  (ocupando parte do  trabalho  da  eriton  de  maneira  improdutiva).   Também  com  os  escravos  Hesíodo   demonstra preocupação  com   a  produtividade  do  trabalho  relacionando  a  idade  com  a   atenção  nos  trabalhos  (vv.441­447)  ­   a  mesma  preocupação  está  presente na  escolha  dos  materiais usados na  construção de  instrumentos e na  seleção dos animais de trabalho (vv.420­440). 

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econômico  do  grande  proprietário  (também  aristocrata).  Onde  antes  dominava  o  poder  político  sobre a propriedade agora é o poder econômico que domina sobre ambos.  A  separação  entre  poder  político  e  poder  econômico  é  ao  mesmo  tempo a transformação  do poder "extra­econômico" da terra em poder econômico ­ uma forma histórica de subsunção  do   trabalho  à  propriedade  privada  dos  meios  de  produção144 .  No  entanto,  essa  separação,  autonomização  e  domínio  da  economia não podem jamais se efetivar em formas sociais como na  Grécia  Antiga,  permanecendo  como  forças  tendenciais  dos  conflitos  políticos.  Essa  impossibilidade  não  decorre  apenas  da  ausência  de  um  mercado  autonomizado145 ,  muito  menos  da  ausência  de  uma  mentalidade  empresarial146,  mas  de   um  complexo  de  determinações  sociais  existentes  na  época 147.   Destacamos  duas  determinações  que  não  esgotam  o  assunto:   o   caráter  imóvel  da  riqueza  apoiada quase que integralmente na terra e a inexistência de outras relações  de  produção  capazes  de  subsumir  o  trabalho  em  escala  social  para  além da agricultura ­ as duas em  conjunto impedem tanto a existência de uma economia monetarizada quanto a universalização do  trabalho  pago.  Mas  se  tais  determinações  econômicas  são  centrais  para  compreendermos  a  144

  Trata­se  portanto  de   uma forma  aberta e  dinâmica*  de economia  agrícola  e  não  de uma  bucólica vida   econômica  doméstica  em  contraposição  a  uma  dinâmica  vida   moral,  religiosa,  social  e  etc.  [dinâmica  porque se autoreproduz, não como algo exterior à sociedade mas como parte sua].  145

 Essa separação  analítica  só é válida enquanto  não faz do mercado um agente autônomo cuja interação  com   outras  formas  reificadas  (sociedade  civil,  Estado,  etc)  ocorre   por  inputs  e  outputs.  A  circulação  é  apenas um momento da  economia,  forma  de  redistribuição  em  um  modo de  produção específico, e aquilo  que se  entende  por  sua  autonomização  é  apenas  a negação do todo em si  mesmo (crise e irracionalidade;  se a circulação se autonomizasse efetivamente uma economia se destruiria por si própria).  146

  Ou  mentalidade  produtivista  como  prefere  Finley  (2013,  pp.199­221).  As  correntes  weberianas  da  história  econômica  tomam   o  cálculo  racional  e  os  instrumentos  necessários  dessa  mentalidade  (e.g.,  mecanismos  de  formação  de  preços,  i.e.,  mercados)  como santo graal  de  sua metodologia.  Na  ausência  dessa mentalidade  e de  tais  instrumentos essas correntes têm apelado cada vez mais à visão funcionalista  da  troca e  do mercado (onde trocas fazem sociedades e não sociedades fazem  trocas) ­  em todos os casos  as relações de produção  são desprezadas.  A importância desses  instrumentos econômicos é inegável, mas  nem é exclusiva e nem precede o processo histórico do seu desenvolvimento.  147

  Isso  não  é uma  tese determinista,  não diz  que  a  existência  de  um  complexo  de determinações sociais  conduz  inevitavelmente  a  uma  formação  social  específica,  antes  o  contrário.  Necessidades  imanentes  de  uma  formação  social  específica  exigem  formas  desenvolvidas  de  certas  determinações  desse  complexo  (ex.  a  forma­dinheiro  do  valor  no  capitalismo).  Também  não se  trata  de uma  tese evolucionista porque  o  desenvolvimento   de  certas  determinações  de  um  complexo  não   implica  em  uma  superioridade  do   complexo, mas tão somente em distintas formas sociais. 

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impossibilidade  de  uma  separação  efetiva  entre  o  econômico  e  o  político,  elas  não  explicam  a  forma  que  a  tensão  entre  os  mesmos  assume  socialmente.  Para  tanto  é  necessário  observar  a  resistência  dos  pequenos  e  médios   proprietários  ao  processo  de  concentração  de  terras  pela  aristocracia.  Resistência  que  assumiu  formas  distintas  em  distintas  poleis  da  Hélade  e   que  levaram a emergência de configurações sociais tão variadas como Esparta ou Atenas.    III.6 A Oikonomia da vizinhança  o que vem do vizinho seja bem medido (v.349) 

  Consideramos  que  o  verso  341  (que  acabamos  de  analisar)  é  o  que  permite  ao  aedo  operar  uma  importante  mudança  de direção no poema. Hesíodo irá  a partir do verso 342 tratar de  relações  de   vizinhança,  i.e.,  de  relações  que  não  são  necessariamente conflituosas, como com os  basileis,  e  são  até  mesmo  necessárias  para  a  reprodução  dos  pequenos  e médios proprietários. A  fortuna  crítica  divide  o  poema  no  verso  383  onde  começam  os  ensinamentos  práticos  sobre  o  trabalho  agrícola  e  o  calendário  desses  trabalhos.  O  nosso  "corte  analítico" propõe algo distinto,  pensar  a  estrutura  do  poema  apoiado nas relações de classe. Se até o presente os versos opunham  a  produção  do  sustento  pelo  trabalho  à  riqueza  tomada  do  trabalho  alheio  pela  guerra  e  pela  política  o  que  é  possível  observar  nos  versos  seguintes  é  algo  muito  diverso.  Por  exemplo,  com  relação  aos   seus  vizinhos  Hesíodo  censura  o ganho que vem da troca que não  obedece a medida,  onde  o  intercâmbio   não  é apenas material, mas também de ajuda, favores, relações de parentesco  e  etc.  Das  relações  destrutivas  com  a  aristocracia  Hesíodo  passa  para  relações  de  interdependência  com  a  vizinhança.  Estas  não  são  mediadas  pela  violência  e  pelas  tortas  sentenças  dos  juízes,  mas  pela  equivalência  das  medidas  permutadas.   Medidas  que  não  estão  fundadas  na  diferença  de  poder,  respeito  ou  honra,  mas,  dentro  de  certos  limites,  na  impessoalidade  e  no  uso  segundo  necessidades  objetivas.  Essa  permuta  entre  vizinhos  não  se  orienta  para  a  produção  de  ganho  ­  lucrar  por  desmedida na troca é lucro vil e destrutivo (v.352) 

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­,  são  relações  diretas  entre  produtores  visando  principalmente  garantir  a  reprodução  desses  produtores  como  proprietários.  Uma  vez  que  Hesíodo  penetra  nas  relações  comuns  aos  de  uma  mesma  classe  é  que  o  trabalho  pode  ser  contido  no  interior  dessa  mesma  classe  e  observado  a  partir  do  oikos  ­  o  que  ele  faz  a  partir  do  verso  383.  Relações  moldadas  concretamente  pela  dinâmica  comum  da  produção  e  não  por  uma  hipotética  cultura  comum  que obedece apenas aos  caprichos de um mundo de abstrações.  O  poema,  a  partir  desse  ponto  (o  verso  341),  segue  além  do  objetivo  analítico  dessa  pesquisa.  Ao  tratar  das  relações  no  interior  de  uma  mesma  classe  e   não  mais  do  conflito  com  a  aristocracia  o  poema  abre  um  segundo  momento  de  pesquisa  sobre  as  relações  de  classe  na  antiguidade  grega.  Esse   segundo  momento  da  análise  é  necessária se quisermos compreender de  maneira  mais  integrada  e orgânica a dinâmica social  dessa antiguidade. Porém, o esforço exigido  para  continuar  esse  estudo não  é o da análise separada dos versos 342 em diante, mas um retorno  constante  às  relações  apresentadas  no  primeiro  momento  da análise. Rigorosamente, não se trata  de  separar  o  poema  em  duas  partes,  o  que  induziria  a  pensar  a  classe  dos  pequenos  e  médios  proprietários  isolada  das  relações  conflituosas  com  a  aristocracia,   ou   seja,  implicaria  na  concepção   dessas  classes  como  entes  singulares  com  existências  próprias,  separadas  e  independentes.  É  uma  tarefa  gigantesca  que  permanece  aberta  aos  futuros  pesquisadores  e  da  qual  desejamos  ser  apenas  mais  uma  contribuição.  Para  seguir  adiante  acreditamos  que  ainda  é  necessário  retornar  e  aprofundar  o  conhecimento  do  contexto  histórico  do  Arcaico,  avançar  no  debate  metodológico  e  desenvolver  uma  análise  mais  densa  dos  conflitos de classe apresentados  até o ponto do poema em que encerramos nossa análise.         

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Conclusão  Essa  pesquisa  não  desejou  retornar  no  tempo  atrás  das raízes do pensamento "ocidental",  não  perseguimos  estruturas  mentais,  conceitos  ou  categorias  do  intelecto.  Não  censuramos  aqueles  que  o fazem, nosso estudo é  complementar e não excludente  ­ o atrito é momento natural  e  insuperável  que  força  o  reencontro  daquilo  que  as  baias   acadêmicas  tentam  separar.  Da  nossa  parte,  procuramos   no   poema  de  Hesíodo  uma  possibilidade  de  reconstruir  as  tensões  políticas  e  as  relações  de  produção,  i.e.,  relações  de  classe,  na  Antiguidade  Grega.  O  poema  "Trabalhos  e  Dias"  oferece  uma  oportunidade  única  para  o  estudo  das  relações  sociais  entre  as  classes  proprietárias  na  Grécia  Arcaica,  embrião  de  importantes  conflitos  do  Período  Clássico.  Em  um  primeiro  momento  essa  pesquisa  pode  parecer  com  um  estudo  de  História,  mas  por  questões  de  rigor  metodológico  qualquer  historiador  saberá  imediatamente  que  este  não   é  o  caso.  Também,  esse  trabalho  rejeita  os  rumos  que  a  sociologia  contemporânea  vem   trilhando,  o  interesse  único  pelo  instante  reduz  na  sociologia  a  compreensão  crítica  dos  processos  históricos.  Quando   o   presente  torna­se  uma  singularidade temporal a sociedade torna­se um conceito abstrato absoluto  ­  insuperável  e,  portanto,   sem  crítica.  Mas  voltar  à  Grécia  Antiga  não   é  apenas  um  desagravo,  acreditamos  que  uma  compreensão  mais  ampla  das  relações  de   classe  exige  olhar  para  além  do  mundo  capitalista.  Marx,  Weber,  Durkheim,  Mauss,  etc,  nunca  tiveram  dúvida   da  importância  desses estudos.    SICOFANTE  Vou  ter de  suportar os insultos destes dois? Que indignidade! Eu, um homem  de bem e um patriota, sendo maltratado desta maneira!  HOMEM JUSTO  Você, patriota e homem de bem?  SICOFANTE  Sim, e como nenhum outro homem!  HOMEM JUSTO  Então vou interrogar você. Responda!  SICOFANTE  Sobre que assunto?  HOMEM JUSTO  Você é um trabalhador? 

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SICOFANTE  Você pensa que sou louco?  HOMEM JUSTO  Então é um negociante?  SICOFANTE  Sou, sim; pelo menos passo por negociante quando me convém.  HOMEM JUSTO  O que é você, afinal? Você aprendeu algum ofício?  SICOFANTE  Ofício? Eu? Não!  HOMEM JUSTO  Como você vivia, e de quê, se você não faz nada?  SICOFANTE  Fiscalizo os assuntos de Estado e os assuntos privados, todos eles.   

ARISTÓFANES, 2003, pp.31­32.                       

   

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