Contribuições para a análise de “Trabalhos e Dias”
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Aviso : O presente texto é a integra da monografia apresentada para a obtenção do título de bacharel em Ciências Sociais sem quaisquer alterações do texto aprovado. Portanto, possui os limitantes de investigação e exposição típicos de um graduando. As falhas analíticas e ausências bibliográficas (das quais não se pode responsabilizar outros alem do autor) talvez sejam compensadas pelo debate franco e aberto ou, quiçá, pelo esforço e enfase nas fontes primárias. Tudo aqui deve ser tomado cum grano salis.
O parecer oficial de avaliação aponta, com justiça, as seguintes falhas:
Conflito entre a estrutura do trabalho e o seu método de desenvolvimento. Ausência de base filológica ou historiográfica no confronto com a bibliografia. Falta de rigor e domínio da historiografia antiga e da história literária. Insuficiência na explicitação de pressupostos teóricos e metodológicos implicando no escamoteamento e distorção do “quadro” teórico das fontes secundárias.
Os autores secundários debatidos aqui, direta ou indiretamente, foram escolhidos por serem considerados relevantes durante a pesquisa. Relevantes por conteúdo e não por fama e sucesso. As críticas reconhecem contribuições desses trabalhos para as reflexões presentes e têm de ser consideradas como apontamentos para a leitura dos originais. Toda e qualquer grosseria e incompetência literária só depõem contra mim. Mas na ciência é assim; ninguém está autorizado a saltar um texto pela simples opinião de seus comentadores ἰδοῦ Ῥόδος, ἰδοῦ και πήδημα (aqui está Rodes, salta aqui). As críticas de traduções feitas aqui refletem a imaturidade de quem adentra o assunto e engatinha na língua quando a vontade submete a prudência. Mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa. Dito isso cabe lembrar que, ao contrário de uma tradição do direito, a lógica aqui não autoriza lançar fora a árvore toda em função do fruto podre. Certos acertos e verdades permanecem mesmo no interior de erros e mentiras… a dialética exige o movimento na unidade da contradição. É da vontade e da crença desse autor que mesmo com falhas declaradas e insuficiência teórica o presente texto recupera o debate por uma perspectiva incomum mas fértil. Pelo sim ou pelo não a síntese bibliográfica de fontes primárias deve interessar ao jovem pesquisador. Atenção às notas de rodapé! Att, Andre Vidal Viola Abril de 2016
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
Contribuições para a análise de “Trabalhos e Dias”. Aluno: Andre Vidal Viola Orientador: Joelson Gonçalves de Carvalho São Carlos 2015
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
Contribuições para a análise de “Trabalhos e Dias”. Aluno: Andre Vidal Viola Orientador: Joelson Gonçalves de Carvalho Monografia apresentada como requisito para conclusão de curso e obtenção do título de bacharel em Ciências Sociais.
São Carlos 2015
Agradecimentos Karl Heinrich Marx, por romper o casulo do cretinismo dominante, pela doçura com que amou a humanidade, por sua contribuição, voz e método na interminável resistência organizada dos explorados. Às pessoas anônimas, bilhões, que com o trabalho de formiga construíram a inimaginável Torre de Babel na qual vivemos. Ao pessoal do Perseus Digital Library ( http://www.perseus.tufts.edu/hopper/ ), que tornou o mundo grecoromano de fácil acesso. Não existe uma única página deste trabalho que não deva algo a eles. Ao meu orientador, Joelson, pela oportunidade, pelas aulas, por sacudir o marasmo das Ciências Sociais. Minha família... dedicação, paciência e amor por alguém incorrigível. Daniela Spinelli, por ser um raio no céu azul e não deixar pedra sobre pedra por onde passa… por ser aquilo que a humanidade deu pra chamar de Espírito. Aos que deram tudo, que são tudo e de quem tudo se tira pela húbris.
Resumo Essa pesquisa procurou analisar o poema "Trabalhos e Dias", de Hesíodo (séc. VII a.C.), com um enfoque e método diferentes da fortuna crítica. Não foi uma ideologia do trabalho ou do agrário o objeto da investigação, mas sim a forma concreta assumida pelo conflito entre a aristocracia dos grandes proprietários e os pequenos e médios produtores, ou seja, a luta de classes. Que a economia grega se apoiava firmemente no trabalho forçado é um fato inegável, mas isso não implica na redução de todas as formas de trabalho livre à uma única classe. Nas condições concretas da antiguidade grega as contradições internas ao modo de produção colocavam as classes proprietárias no centro dinâmico das relações de produção. Foi através dessa chave analítica que encontramos uma nova possibilidade de corte analítico do poema. Nossa investigação vai até o verso 341 (sobre a permuta da terra) entendendo que esses primeiros versos tratam de uma totalidade, as conflituosas relações de produção entre as classes proprietárias, e que a partir daí o poema segue internalizando as relações de produção primeiro na classe dos pequenos e médios proprietários até penetrar na unidade produtiva, o oikos. Acompanhar esse segundo momento do poema exigiria uma análise de fôlego que não cabe nesta pesquisa. Mesmo desses primeiros versos vale que o caráter exploratório desse trabalho impede que essa monografia seja conclusiva, esgote a análise ou a bibliografia sobre o tema. palavras chaves: Hesíodo, Grécia Antiga, Arcaico, Classes.
Sumário Introdução _______________________________________________ 01 Capítulo I. Contexto I.1 Autor ____________________________________________ 04 I.2 Obra _____________________________________________ 11 Capítulo II. Ensaio de História e Método Sobre o Arcaico II.1. História ________________________________________ 18 II.2. Classes ________________________________________ 30 Capítulo III. O poema III.1 Proémio e Duas Érides ___________________________________ 37 III.2 Prometeu Pandora e as cinco raças dos homens ______________ 49 III.3 E agora contarei uma fábula aos reis, sábios que eles sejam ____ 55 III.4 auri sacra fames _________________________________________ 61 III.5 a fim de permutares a gleba de outros, não outro, a tua ________ 71 III.6 A Oikonomia da vizinhança ________________________________ 74
Conclusão _____________________________________________ 76 Referência Bibliográfica __________________________________ 78
ἐκ γαίης γὰρ πάντα καὶ εἰς γῆν πάντα τελευτᾷ. Da terra tudo vem e na terra tudo termina. Xenófanes de Cólofon, CURFRAG.tlg0267.26 τὴν μὲν τῶν αὐτουργῶν αὐτοπωλικὴν διαιρουμένην, τὴν δὲ τὰ ἀλλότρια ἔργα μεταβαλλομένην μεταβλητικήν. Que uma das partes é a venda da própria produção , mas que a outra parte é a troca do trabalho de outros por meio de intercâmbio . Platão, Sofista, 223d
Introdução Muitos não gregos descrevem a Grécia como um cenário paradisíaco de praias joyeuses e hotéis com diárias estratosféricas. Mergulhar sob o sol de Santorini ou esquiar em Aráchova nas encostas do Monte Parnasso próximo as ruínas do Oráculo de Delfos? Ou ainda, meditar no Mosteiro de Dionísio na Península Calcídica ou fazer um hiking no maciço do Taigetos no sul do Peloponeso? A variedade de ofertas para o turista faz jus à geografia grega, mas para um hilota messênio o maciço do Taigetos era um ninho de assassinos "políticos" da Cripteia espartana. Centenas, se não milhares, de "persas" perderam a vida quando suas embarcações foram lançadas contra o rochoso Monte Atos onde atualmente fica o Mosteiro de Dionísio. Delfos… ora, Delfos… foi um centro de poder e corrupção política da aristocracia grega. Bruno Snell (2012, p.295) descobriu na Arcádia do poeta romano Virgílio a primeira “paisagem espiritual”, onde “a obra literária tornase autônoma, tornase um mundo em si, tornase absoluta”. Antes de Virgílio a Arcádia foi onde caiu o general tebano Epaminondas, não sem antes afundar consigo o domínio espartano sobre a Grécia. Como deve ter parecido idílico aos olhos de um hilota livre o vale de Mantinéia onde foi enterrado Epaminondas. Como devia ser horrível para um tebano, apenas três décadas após a morte do beotarca, pensar que ali jazia o homem que poderia ter salvo Tebas da fúria de Alexandre III da Macedônia, O Grande1. Snell nos oferece a geografia imaginária das Éclogas de Virgílio, nós oferecemos a famosa elegia à Epaminondas como foi resgatada pelo geógrafo grego Pausânias: Por meus conselhos foi Esparta despojada de sua glória, E a divina Messênia recebeu por fim seus filhos. Pelos braços de Tebas foi Megalópolis cercada com muros, E toda Grécia ganhou independência e liberdade. Desc. 9.15.6. (trad. nossa)
A elegia jamais se realizou, a Grécia nunca foi livre e independente. Esparta nunca mais se reergueu, mas também sua influência na Lacedemônia não desapareceu em Mantinéia. Ao invés da liberdade prometida a Beócia se lançou rapidamente na construção de um "imperialismo 1
A tragédia só fica completa com a história contada, no século I, por Dion Crisóstomo, o “Boca de Ouro”, onde Filipe II, pai de Alexandre III, recebeu na sua juventude lições de Epaminondas e teve Pelópidas, outro brilhante beotarca e general tebano, como amante, enquanto era refém na pólis de Tebas (Orat. XLIX. 5).
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tebano", bloqueado não pela mesquinhez ateniense mas pela horripilante destruição que os reis macedônios trouxeram durante sua expansão. Depois vieram os celtas, os romanos, o império bizantino, os otomanos, depois da Primeira Guerra Mundial a independência sob o fascismo de Metaxás, a colaboração com o Eixo durante a Segunda Guerra, a Guerra Civil de 19461949, uma monarquia sob a influência americana, a brutal ditadura militar dos anos 19671974 e vive atualmente sobre a ingerência e o assédio da E.U.. A história de invasões, guerras e destruição constante na Hélade tem não menos que trinta e cinco séculos, do micênico (séc. XVI a.C.) até os dias atuais. Sua localização geográfica entre a Europa e a Ásia Menor fez dela, assim como de todo o Oriente Médio, um eterno tabuleiro de guerra das potências "ocidentais". A região que se estende dos Bálcãs ao Irã é o Fênix, culpada e vítima, da nossa história de violência. Muitos "ocidentais" acreditam que a Grécia foi onde surgiu a forma mais evoluída de contrato social, e que esse serviu como berço dourado da razão humana. Mas o que esse berço teve de dourado foi uma aristocracia apoiada na miséria e na escravidão. O fundamento aristocrático da filosofia grega cabe em uma comédia do também aristocrata (um dos mais geniais ideólogos do elitismo) Aristófanes, "As Nuvens", escrita contra Sócrates. Se a filosofia era uma "profissão" perigosa como descreve tão bem Luciano Canfora (2002), marcada pela volatilidade do amor e do desprezo popular, por assassinatos, linchamentos, suicídios, condenações, desterros e o autoexílio, a culpa certamente não recai apenas na ignorância e dirigismo da "massa" popular essa sim uma das mais duradouras formas de exclusão e o bode expiatório perfeito da democracia. A filosofia é política, os filósofos sempre estiveram ligados a alguma classe, e na maioria das vezes a alguma classe dominante (nenhum filósofo grego do Clássico mereceu a "pecha" de humanista). Para concluir a "profanação" da tradição "ocidental" falta ainda falar da democracia. Pois bem, a democracia grega, assim com sua irmã mais nova,
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permitiu apagar da história o último círculo dos infernos; o amontoado fétido e miserável2 de escravos, servos e metecos que sustentam essa fantasia. Aqui jaz o alegre velho palhaço Protogenes, escravo de Clulius, que deu prazer a muitas e muitas pessoas com seus truques.3
Enfim, não estudamos a Grécia Antiga porque amamos um passado mítico mas porque odiamos o presente. // Por fim, uma breve explicação sobre a organização do texto. A relação entre os dois primeiros capítulos e o terceiro inverte a ordem da pesquisa, já que o poema é fonte documental privilegiada tanto da biografia de Hesíodo como da historiografia do período, i.e., a ordem da exposição não acompanha a ordem da investigação. O primeiro capítulo busca apresentar o aedo e sua obra dando ênfase para sua posição de classe, i.e., um agricultor entre os pequenos e médios proprietários. No segundo capítulo procuramos definir o cenário histórico do Arcaico por seu tensionamento entre o período Geométrico e o Clássico. Não se trata de uma história do Arcaico, mas sim de apontar alguns elementos que auxiliam na análise do poema. No terceiro capítulo fazemos a análise dos primeiros 341 versos do poema com o intuito de recuperar as oposições fundamentais entre a aristocracia dos basileis e a classe dos pequenos e médios proprietários. A escolha por esta organização dos capítulos não foi apenas didática mas também metodológica, pois permite explicitar e expandir algumas relações necessárias à analise do poema. 2
Novamente é Aristófanes, em "Os Cavaleiros", quem nos dá a descrição mais próxima do estado em que viviam os trabalhadores pobres, os mendigos e os "biscateiros" da Atenas do século V a.C. o horror da hilotagem espartana ou do trabalho nas minas jamais será conhecido. 3
Epitáfio de Protogenes, encontrado em um muro de Preturo, próximo a Amiternum, c.165–160 d.C.[?]. "Here is laid the jolly old clown Protogenes, slave of Clulius, who made many and many a delight for people by his fooling". CIL_12 .1861. Archaic Latin Inscriptions. Inscriptions Proper 1. Epitaphs (LOEB, LCL 359, p.11, tradução nossa), In: http://www.loebclassics.com/view/archaic_latin_inscriptions_i_inscriptions_proper_epitaphs/1940/pb_LCL35 9.11.xml?readMode=recto . Acesso em 07/11/2015.
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Capítulo I Contexto I.1 Autor Quanto à data de Hesíodo e Homero, depois de me ter esforçado grandemente por apurar a verdade com todo o rigor, não me aprouve escrevêlo, por saber quanto há de controverso nesta questão, sobretudo entre os críticos da epopeia meus contemporâneos. Pausânias, Desc. Gre., IX.30.3 (HESÍODO, 2005, p.7)
Não se sabe de fato se existiu um aedo chamado Hesíodo, natural de Ascra e que compôs no século VII a.C. dois dos mais importantes poemas da tradição arcaica. Essa é a primeira afirmação em quase todas as introduções biográficas sobre o poeta. O necessário para tornar sua existência uma certeza, ou pelo menos mais provável, seriam os registros contemporâneos de outros autores ou provas arqueológicas, como o trípode que o poeta alega ter ganhado em Cálcis por exemplo (vv.654657). No entanto, as evidências de sua existência não se encaixam em nenhuma dessas duas formas de registro histórico. Em parte esse silêncio contemporâneo pode ser explicado pelo fato do poeta pertencer a um período no qual ainda vigorava a tradição oral. Mesmo que a escrita já estivesse presente, tendo ressurgido provavelmente entre o final do século IX a.C. (Pereira in HESÍODO, 2005, p.8) e o início do século VIII a.C. (WEST, 1988, p.viii), o mais aceitável é que a divulgação de seu nome e seus poemas tenha sido feita oralmente por rapsodos. Também Hesíodo não cita outro aedo contemporâneo – assim como não faz nenhuma referência ao nome de seu antecessor Homero – e desconhecemos qualquer aedo que tenha se reivindicado contemporâneo seu. Se a primeira referência ao poeta deve ser considerada 4
o lendário epitáfio de Quércias de Orcômeno (séc. VII a.C.) , as possíveis paráfrases na poesia de 5
Alceu de Mitilene (séc. VII a.C.) ou a referência nominal de Xenófanes de Cólofon (séc. VI 6
a.C.) é algo aberto à discussões diversas. Certamente Hesíodo é anterior a Xenófanes e portanto 4
Paus. 9.38.10.
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e.g. Hes. Op. v.721 e Alceu fr.140 (LOEB142, p.407).
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Diogenes Laertius, Lives of Eminent Philosophers, IX.18 (também CURFRAG.tlg0267.11).
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tem de ser anterior ao século VI a.C.. Quanto aos achados arqueológicos e registros materiais 7
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como trípodes , alguma dedicatória ou marcação tumular , a distância no tempo torna remota as chances de sobrevivência. O que se considera como evidência biográfica de sua existência é, acima de tudo, o que o próprio aedo fornece como informação sobre a sua vida. Ao descrever sua vitória em um concurso de cantos durante os jogos funerários em homenagem ao herói Anfidamas de Cálcis, o aedo permite localizálo como contemporâneo da Guerra Lelantina entre Cálcis e Erétria, ocorrida na ilha de Eubeia no final do século VIII a.C. (cerca 700 a.C., Pereira in HESÍODO, 2005, p.16). Daí que o mais aceito seja que Hesíodo compôs durante o primeiro terço do século VII a.C. (West, 1988, p.vii). É ele também quem nos conta ser de Ascra (v.640), ao pé do monte Hélicon na Beócia onde apascentava cordeiros (Th., v.23), e que seu pai havia migrado de Cime na Eólia (v.636), no litoral da Ásia Menor (atual Turquia), fugindo de funesta pobreza (vv.637638). Por ser considerado o primeiro poeta a falar de si mesmo em seus versos é visto como importante expressão de uma individualidade emergente na cultura grega. Este também é o motivo pelo qual sabemos seu nome, “sim, então essas a Hesíodo [ Ἡσίοδον ] o belo canto ensinaram” (Th., v.22). Algumas outras passagens biográficas são fonte de interpretação e debate. Sobre o nome de seu pai o verso 299 já foi interpretado como “Perses, filho de Dios” mas 9
o aceito é “Perses de linhagem divina” – a confusão ocorre com o termo δῖον em “Πέρση, δῖον γένος”. O verso 271 sugere pelo menos um filho (e o verso 376 sugere não mais que um), mas é Seja o tripode que o próprio Hesíodo alega ter ganhado ou aquele do Certamen referido por Plutarco (Plut. Septem. 10) e de provável autoria do sofista Alcidamas no século IV a.C. (WEST, 1988, p.xx). A versão acabada do Certamen , i.e., aquela que vai além da disputa de versos entre Homero e Hesíodo, é certamente posterior ao sofista Alcidamas de quem chega mesmo a fazer referência (2005, p.155). Ana Elias Pinheiro localiza o texto após o século II d.C. (ibidem, p.140). 7
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Como os versos de Quércias de Orcômeno (sec. VII a.C.) inscritos no túmulo de Hesíodo (Paus. 9.38.10) – que o próprio Pausânias diz já não existir mais no seu tempo (sec. II d.C.). Os versos talvez sejam aqueles citados no Certamen (2005, p.155). Pausânias também cita uma placa de cobre, já bastante apagada pelo tempo, onde estaria inscrito o Erga (Paus. 9.31.4). 9
Assim traduz Werner (2013b); Ferreira (2005) mantém o sentido trocando apenas “linhagem” por “estirpe”; West (1988, p.45 e p.76) traduz como “of Zeus’ stock” e sugere que essa seja a reivindicação da família de uma linhagem divina. O que teria motivado a confusão seria a forma diou ( δίου , Dios) no lugar de dion ( δ ῖ ον , Zeus).
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bastante inconclusivo sobre o assunto e não se pode ir além da mais pura especulação. A existência de seu irmão, Perses, e de um litígio sobre a terra herdada do pai é a discussão mais importante porque trata diretamente do motivo do poema “Trabalhos e Dias”. Um dos argumentos favoráveis da veracidade desses fatos é a pouca atenção dada na caracterização de Perses, quando justamente o inverso seria esperado se este fosse um personagem inventado. Esse argumento por si só não é suficiente, e tem de enfrentar o fato do nome Perses ( Πέρση ) se aproximar do termo utilizado para “pilhagem” ( πέρσις , LSJ10 ), o que sintetiza seu papel no poema. No entanto, não consideramos que o poema trate de motivos pessoais, logo a importância da existência ou não de Perses, bem como da disputa pela herança, fica reduzida frente ao elemento didático do poema. Para todos os casos nós admitimos não apenas a veracidade dos dados biográficos mas também tomamos todos os versos como autênticos ignorando o importante debate sobre possíveis interpolações e versos de autoria estranha ao poeta11 . Fazemos isso pelos seguintes motivos: enquanto os debates biográficos não se resolvem preferimos ficar com a palavra do autor, mas também porque os artifícios e recursos que o autor mobiliza são parte da obra e, portanto, não podem ser excluídos da análise. Sobre as possíveis interpolações e 12
versos de autoria estranha acompanhamos a tradição sedimentada das edições de West , mais que isso não caberia na presente pesquisa.
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LSJ: LiddellScottJones GreekEnglish Lexicon. Consultado extensamente ao longo da pesquisa.
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A própria dedicatória do trípode para as musas do Hélicon é considerada por alguns como uma interpolação dos sacerdotes de Delfos para valorizar um festival ativo no período helênico e Romano (Lamberton in HESIOD, 1993, p.6). 12
Utilizada por Werner em sua edição bilingue que consultamos largamente (HESÍODO, 2013b, p.24). Outras duas edições bilíngues consultadas são Alessandro Rolim de Moura (HESÍODO, 2012) e Hugh EvelynWhite (HESÍODO, 1918). As modernas (séc. XX) edições gregas do poema são sempre devedoras do trabalho de Rzach (1902, 1913).
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Existem algumas lendas sobre a vida e a morte de Hesíodo. Na Suda encontramos a seguinte descrição: natural de Cime, foi levado ainda jovem para Ascra por seu pai Dios (Dio, 14
Dius; Δίου ) e sua mãe Pukimede (Picimede; Πυκιμήδης ) , seria parente de Homero e de 15
linhagem divina, descendente de Atlas . Ainda segundo a Suda teria nascido em 808 a.C. e morreu assassinado pelos irmãos Ântifo e Ctímeno que tomaram equivocadamente o poeta como 16
o sedutor da irmã . O Certamen conta uma história parecida mas acrescenta algumas informações e uma outra versão para a morte de Hesíodo. No Certamen , o poeta também é dado como filho de Dio e Picimede, seria parente de Homero mas sua linhagem divina viria de Apolo 17
. Em uma outra versão sobre a sua morte, ocorrida em Énoe na Lócrida, não teriam sido Ântifo
e Ctímeno, filhos de Ganíctor, os assassinos, mas Ganíctor e seu irmão Anfífanes e o motivo seria o mesmo – a desonra da irmã. Após o assassinato, os irmão teriam atirado o corpo de Hesíodo no mar, mas três dias depois ele teria retornado a Énoe transportado por golfinhos. Alí o seu corpo teria sido enterrado e Zeus fulminado os irmãos enquanto tentavam escapar até Creta. Na versão mais próxima daquela da Suda (que o Certamen atribui a Eratóstenes de Cirene) a irmã teria cometido suicídio, os irmãos assassinos foram sacrificados aos deuses pela intervenção de um adivinho e o corpo de Hesíodo levado para ser enterrado em Orcômeno na Beócia. Essas lendas não devem ser tomadas como meras curiosidades, pois o estudo dessas lendas ajuda a
A Suda é uma importante “enciclopédia” bizantina, datada do século X d.C., que apesar de uma série de imprecisões é considerada uma fonte valiosa de informações sobre a antiguidade na região do mediterrâneo. A entrada Ἡ σίοδος (η 583) é onde se encontram as informações sobre o poeta. In: http://www.stoa.org/solbin/search.pl?db=REAL&search_method=QUERY&login=guest&enlogin=guest& user_list=LIST&page_num=1&searchstr=eta,583&field=adlerhw_gr&num_per_page=1 . Acesso em 21/10/2015. 13
Provavelmente essa “informação” vem do historiador Éforo de Cime (séc. IV a.C.). Fonte: Mary R. Lefkowitz. The Lives of the Greek Poets. Bloomsbury Academic, 2013, p.8. O termo Πυκιμήδης (Pukimede) significa “mente judiciosa” (LSJ) e ao que parece Éforo teria inventado esse nome para a mãe de Hesíodo baseado no caráter didático da sua poesia. 14
Na Teogonia, Atlas é filho de Jápeto, logo é irmão de Prometeu. Assim essa versão da Suda cria um parentesco entre Hesíodo e Prometeu. 15
Bem antes da Suda , Pausânias (séc. II d.C.) reproduz essa mesma versão sem, no entanto, assumir a inocência do poeta (Paus. IX.31.6). 16
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Na tradição mitológica o deus Apolo está ligado a inspiração profética e artística.
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compreender a imagem que os gregos construíam de seus poetas. Embora atualmente o nome de Hesíodo não seja tão conhecido como o de Homero, na antiguidade grecoromana ambos os poetas eram considerados como da maior importância. Primeiro Xenófanes e depois Platão irão empreender uma “reforma moral do Olimpo” buscando escapar do comportamento 18
exageradamente humano que os dois poetas “fundadores” atribuíram aos deuses. Heródoto, mais interessado na “fundação” que na reforma teológica, diz em sua “História” (Hdt. 2.53, 2006): Durante muito tempo ignorouse a origem de cada deus, sua forma e natureza, e se todos eles sempre existiram. Homero e Hesíodo, que viveram quatrocentos anos antes de mim, foram os primeiros a descrever em versos a teogonia, a aludir aos sobrenomes dos deuses, ao seu culto e funções e a traçarlhes o retrato .
Nossa análise se apoia menos nessa biografia que na controversa posição de classe do poeta e na expressão dessa posição no seu poema. Defendemos que Hesíodo fazia parte de um grupo social específico com importância central em toda a antiguidade grega, aquele dos pequenos e médios proprietários. Novamente será “Trabalhos e Dias” o principal ponto de apoio para essa hipótese. Não é o caso de adiantar a análise, mas o agricultor que o poema narra, e com o qual Hesíodo se identifica, é aquele que contando com a ajuda de alguns escravos (e trabalho pago) não pode se privar de trabalhar ele próprio. Entre esses trabalhadores há pelo menos um que auxilia na manutenção do oikos, mas aqui também a manutenção depende do trabalho familiar (o cuidado com os instrumentos, vv.405409; o tear, v.779; acalmar os animais, vv.795797; inciar um cântaro, v.815, etc. O calendário dos dias entre os versos 765 e 821 é dirigido ao agricultor e sua família). Nitidamente falta no poema uma marca comum da aristocracia, qual seja, a figura do escravo administrador cuja importância é atestada por Aristóteles (Política I.2.23 [1255b3140], 2009, p.23; ou ainda Econômicos, 2011, p.11), ao contrário, Hesíodo entende que algumas funções administrativas são obrigações do proprietário 18
Ainda é bastante aceito que a estruturação do Panteão grego ganhou uma organicidade religiosa a partir dos Hinos Homéricos, dos dois poemas de Homero e da Teogonia de Hesíodo. Solmsen (1995, p.91) defende que “Trabalhos e Dias” de Hesíodo deu um lugar de destaque para a deusa Dike (Justiça) – algo que ele aponta como de importância central durante o Período Clássico.
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(vv.600603 e vv.765768). O poeta beócio reconhece apenas o trabalho como fonte de riqueza, negando tanto a atividade política da ágora, em um período no qual juízes e políticos eram os mesmos, quanto a pilhagem da guerra. O poema se apoia rigorosamente no trabalho concreto (não custa enfatizar) como necessidade material, ou seja, o trabalho visava produzir uma utilidade em acordo com as necessidades do próprio trabalhador e não um valor de troca a exceção no poema é a navegação comercial, mas esta tinha por finalidade cobrir dívidas e não orientar genericamente o trabalho19 . Seu argumento é bastante simples; aquele que não possui riqueza suficiente para se ausentar dos trabalhos tem de trabalhar trabalho sobre trabalho seguindo o calendário das estações. As duas exceções são o descanso de verão e os dias sagrados. Certamente não se trata de um rico proprietário de terras e escravos com uma confortável produção de excedentes. O risco de perder a produção e ter de apelar para o endividamento ou até mesmo para a permuta da terra acompanha o agricultor do poema. O comércio começa a aparecer como possível fonte de riqueza, mas ele ainda é marginal, preso não apenas ao excedente mas a situações específicas (e.g. cobrir dívidas), não existe a figura do comerciante pois o comércio é feito com o produto do seu próprio trabalho. Essa última afirmação pode encontrar algum desacordo com as biografias que falam do pai de Hesíodo como uma comerciante (West, 1988, p.ix). Em primeiro lugar a afirmação feita acima sobre a não existência do comerciante em tempo integral, como profissão, está limitada ao contexto do poema – sabemos que eles de fato já existiam até mesmo antes de Hesíodo (e.g.: é uma figura presente nas narrativas homéricas), a exclusão feita pelo aedo é, segundo entendemos, proposital. Por fim, não vejo nos versos 630640 a certeza de uma profissão, eles podem fazer referência a uma atividade esporádica feita apenas quando necessária – o que se encaixa mais com o poema e particularmente com o contexto da passagem sobre a navegação.
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A ausência de uma orientação genérica do trabalho para o mercado não deve ser confundida com a inexistência de troca econômica ou de relações sociais de trabalho. Sobre as relações sociais de trabalho recordamos que mesmo a unidade produtiva o oikos estando voltada para suas necessidades concretas, a realização dessas necessidades se apoiava amplamente no trabalho escravo. Sobre as diferentes trocas econômicas, voltadas para as necessidades concretas do oikos ou integralmente para a acumulação de valor de troca, ver a discussão feita por Aristóteles sobre a crematística natural e a contranatura em "Política".
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Não sabemos se Homero era ou não um aristocrata mas damos como certo que os seus poemas foram expressões dessa classe. Werner Jaeger (Paideia, cap, 1 e 2), quebrando uma visão comum de homogeneidade cultural da Grécia Arcaica, separa Homero e Hesíodo como expoentes de um ideal aristocrata e de um ideal rural respectivamente no entanto dá pouca atenção ao conflito por trás de tais ideais. As várias aproximações entre atividades militares e trabalhos específicos durante as narrativas de batalha na Ilíada sugerem que o domínio de algumas práticas agrícolas e artesanais eram tanto do conhecimento do aedo como de seu público aristocrata (Odisseu desafia o aristocrata Eurímaco nos trabalhos do campo, Od., 2014, p.561 vv.357376 c.XVIII). O trabalho, quando aparece, não é uma necessidade mas uma atividade esporádica e contingente; como por exemplo o leito nupcial feito por Odisseu (Od., 2014, p.693 v.197 c.XXIII), o detalhado fazer de uma jangada (Od., 2014, pg.157 vv.234262 c.V), ou o trabalho de Telemaco no pomar do avô (Od., 2014, p.725 vv.361364 c.XXIV). Se Homero não cantava para os aristocratas certamente cantava a aristocracia, seus personagens são os basileis da Hélade, ora em guerras, ora em assembleias, ora em festejos, jamais se encontram presos por uma rotina de trabalho. Já em Hesíodo o trabalho não é uma contingência, seus versos gnômicos não se dirigem aos basileis (embora também se dirija a eles, mas sempre repleto de críticas pouco disfarçadas), mas àqueles que como Perses têm de colocar trabalho sobre trabalho ou enfrentar a miséria horripilante. O aristocrata é o homem liberto do trabalho como necessidade (Odisseu pode se dar ao luxo de preferir a guerra ao trabalho, Od., 2014, pg.423 vv.223225 20
c.XIV) , mas sua autarquia21 tem necessariamente de ser suportada pelo trabalho alheio ao Não nos deixemos enganar pelo trabalho dos filhos de Aigyptios, este é um herói, ἥ ρως Α ἰ γύπτιος , mas não um aristocrata (Od., 2014, pg.39 vv.2123 c.II.). Pelo menos é da nossa opinião que a posição e a fala de Aigyptios durante a assembleia não é de um aristocrata. 20
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A autarquia a qual fazemos referência é aquela do trabalho, ou seja, a plena liberação do trabalho ou o trabalho integralmente realizado em meios de produção próprios. Como entendemos, a não coerção do trabalho à meios de produção alheios é o único conceito de autarquia que se pode retirar do poema “Trabalhos e Dias”. Tratar a autarquia como autosuficiência no consumo é perder de vista a centralidade do poema, i.e., a relação terratrabalho. Diferente de nós, Zurbach, por exemplo, faz durante sua análise do poema de Hesíodo uma diferenciação entre autarquia e autosuficiência: a primeira seria uma estratégia de troca que utiliza o excedente para obter algo que falta (DESCAT apud ZURBACH, 2009, p.27); e a segunda seria uma estratégia destinada a viver da própria produção (ZURBACH, 2009, p.27). Nossa opinião é que essa noção de autarquia de Descat e Zurbach é contrária a tradição grega (ver nota 70).
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mesmo tempo em que reproduz as bases sociais dessa forma de exploração. O aristocrata é antes de mais nada um senhor de escravos, mas a reprodução de sua condição de classe e, portanto, também a do escravo, tem uma base social muito mais ampla. Falaremos disso em lugar apropriado, por ora essa contraposição entre Hesíodo e Homero tem por objetivo apontar algumas diferenças entre a classe dos pequenos e médios proprietários e a classe dos grandes proprietários, a aristocracia dos basileis. Isso é necessário porque consideramos que a posição de classe de Hesíodo não pode ser deduzida simplesmente dos seus conhecimentos práticos sobre os 22
trabalhos agrícolas . Esse tipo de dedução induz, mesmo que involuntariamente, ao mais grave reducionismo no tratamento de classes sociais, ou seja, a classe como um conceito e definição 23
isolado cuja determinação não está na relação dialética com as demais. A contraposição feita aqui entre Hesíodo e Homero é apenas um primeiro momento dessa determinação. Sabemos, é claro, que nenhum dos dois aedos procurou definir classes, mas um dos principais objetivos dessa pesquisa foi buscar no poema algumas contradições concretas que dão forma as relações de classe. I.2 Obra Como faremos mais adiante a análise do poema o que cabe aqui são alguns breves comentários sobre a obra de Hesíodo. Uma série de poemas são atribuídos a sua autoria, parte deles foi perdida e um parte sobreviveu apenas através de fragmentos. O consenso é que o beócio 24
teria composto “Teogonia” e “Trabalhos e Dias”, muitos aceitam sua autoria para “O Escudo 22
Por exemplo como tenta fazer GOMES, 2007, p.42.
23
O termo “determinação” como utilizamos aqui nada tem em comum com a noção de determinismo. Ele deve ser pensado a partir dos processos que dão forma as diversas relações sociais, i.e., determinar algo é dar forma a esse algo. 24
"Os beócios que habitam próximo ao Helicon mantêm a tradição que Hesíodo escreveu apenas os Trabalhos, e mesmo deste eles rejeitam o prelúdio as Musas". “The Boeotians dwelling around Helicon hold
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de Héracles” e “Catálogo de Mulheres” (West não aceita e coloca os dois poemas no século VI 25
a.C., 1988, p.xix) . O poema que é aqui objeto de análise não tinha um título em sua origem, com o tempo convencionouse chamálo de Ἔργα καὶ Ἡμέραι (Erga kai Hēmerai; Pausânias se refere a ele apenas como Erga [Ἔργα]; ver nota de rodapé 24) e a abreviação largamente utilizada “Op.” deriva de seu título em latim “Opera et dies”. Para recompor o poema tal qual o conhecemos atualmente o filólogo Alois Rzach se utilizou no início do século XX de uma série de manuscritos medievais dos séculos X ao XIII, também West e Solmsen puderam fazer algumas comparações com alguns fragmentos do poema encontrados em papiros antigos dos séculos II a.C. ao III d.C., mas ainda assim devemos reconhecer que uma primeira versão 26
integral distante 1700 anos de Hesíodo torna o consenso impossível . Acreditase que o poema tenha sido originalmente composto através da improvisação oral (Rolim in HESÍODO, 2012, p.12), o que dá uma impressão confusa e desconexa em algumas passagens e leva a crer, equivocadamente, que o poema seja uma justaposição de temas sem 27
unicidade – tentaremos demonstrar na análise que essa é uma falsa impressão . Essa aparente quebra temática se reflete no fato de muitas edições do poema apresentarem separações e subtítulos no seu interior (e.g. HESÍODO, 2012). Não consideramos essa prática equivocada já que sua intenção é apenas auxiliar na “navegação” do poema, e alguma separação é inclusive inevitável para qualquer análise, apenas chamamos a atenção para o fato de que qualquer separação temática ou analítica do poema é artificial. Os versos foram compostos na métrica poética de hexâmetros datílicos, melhor adaptados para as técnicas de oralidade em grandes the tradition that Hesiod wrote nothing but the Works [ Ἔ ργα ], and even of this they reject the prelude to the Muses” (Paus. 9.31.4, trad, nossa). 25
O verso 828 que encerra os “Trabalhos e Dias” parece fazer uma alusão ao poema “Ornitomancia”, mas esse também não é atribuído ao poeta (Ferreira in HESÍODO, 2005, p.123, nt.98). 26
Rolim de Moura, de quem retiramos as informações acima, fornece uma lista bem mais detalhada dos manuscritos, papiros, citações, escólios e lemmata usados na montagem atual do poema, bem como uma explicação metodológica do tema (Rolim in HESÍODO, 2012, pp.3647). O conjunto de manuscritos que West se refere abarca os séculos X ao XVI e os fragmentos estão entre o I a.C e o VI (1988, p.xxiii). 27
Por um caminho e uma metodologia bastante diferente da nossa JeanPierre Vernant mostrou a unicidade estrutural do poema em “Le mythe hésiodique des races. Essai d'analyse structural”. In: Revue de l'histoire des religions, tome 157 n°1, 1960. pp. 2154.
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28
poemas como os de Homero e Hesíodo , em dialeto jônico (West, 1988, p.ix), embora o mais provável é que Hesíodo tivesse por dialeto “natural” o beócio (pertencente ao grupo do dialeto eólico). Diferente da tradição homérica, ou mesmo de seu primeiro poema Teogonia os Erga cantam um tema mais “mundano” e menos heroico. Os versos desse que é considerado o primeiro poema didático do Ocidente29 tratam de uma admoestação ao trabalho como a única forma adequada de enriquecimento, e é acompanhado por uma série de ensinamentos sobre o trabalho agrícola, a navegação comercial, a observância dos costumes e da religião. Seus ensinamentos dirigemse ao seu irmão Perses e aos basileis aristocratas que julgavam as contendas pessoais na ágora. No entanto, acreditamos que o poema tinha como alvo um público maior. A questão da audiência do público que escutava o canto do poema é central quando tratamos de poesia oral e do aedo. Embora a composição não estivesse voltada para a leitura 30
(WEST, 1988, p.viii) é improvável que o aedo ignorasse sua reprodução, tanto na forma de versos cantados pelo rapsodo quanto pelo público na forma de citações, admoestações, 31
ensinamentos ou sabedoria. No caso de Hesíodo, que certamente conhecia os épicos homéricos , 32
reproduzindo até mesmo alguns de seus versos (Op. vv.317318) , é razoável considerar que ele sabia, ou ao menos esperava, que o poema alcançaria um público maior e mais diverso que a audiência imediata. Entendemos que não apenas ele, mas também os outros aedos levavam isso em consideração durante a composição. Se sua audiência era majoritariamente composta por aristocratas – e se é que era , como é comum imaginar o público dos festivais onde cantavam os 28
A Ilíada e a Odisseia possuem cada um mais de 10 mil versos, já os dois poemas de Hesíodo possuem 1022 em Th. e 828 em Op.. 29
Os provérbios e a poesia de ensinamentos já estavam presentes entre os sumérios no terceiro milênio antes da nossa era (Lamberton in HESIOD, 1993, p.9). 30
West sugere que a presença da escrita já no período de Homero e Hesíodo possibilitava que os poemas fossem preservados de forma mais ou menos fixa – uma vantagem da qual os autores poderiam ter se utilizado. (1988, p.viii). 31
Se Hesído não conhecia diretamente a obra de Homero (West, 1988, pp.viiiix) ele certamente conhecia parte do corpus homérico, i.e., aquilo que mesmo não sendo de sua autoria veio a fazer parte da sua obra. 32
Analisamos esses versos na seção IV do Cap. 3 da presente monografia.
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aedos e rapsodos, o Certamen aponta também para uma presença “popular” durante algumas apresentações. Embora a comparação seja um instrumento com certa validade, as diferenças entre a estrutura social narrada por Homero e aquela narrada por Hesíodo têm de ser utilizadas com cuidado. O primeiro cuidado está em reconhecer que apesar de inserir uma série de elementos contemporâneos na estrutura social de poemas como a Ilíada e a Odisseia, Homero, procurou cantar um tempo antigo cujas recordações eram passadas através de tradições míticas. A tradição mítica não é uma forma de preencher os vazios do conhecimento de um passado recente (aproximadamente os três séculos que separam Homero da guerra de Troia), ela tem sua função própria, em grande parte o que preenche esses vazios é a especulação, a projeção racional (ainda que inconsciente) do presente sobre o passado. O que se considera como um vazio de conhecimento sobre uma história do passado pode nunca ter sido um vazio para uma estrutura mítica, e só aparecer como uma ausência de algo que deveria estar lá, como causa explicativa ou na estrutura lógica, a partir de uma narrativa histórica. O mito pode muitas vezes cumprir essa função, já que através de uma reorganização do presente é capaz de internalizálo em sua própria estrutura mítica. Na Ilíada e na Odisseia não são os mitos que se encaixam na história mas antes o inverso, ou, o que consideramos mais provável, a história desponta onde o mito já não encontrava espaço para as necessidades próprias da epopeia dos séculos IX a.C. e VIII a.C.. No entanto, mesmo que não tenha sido parte dessa pesquisa a análise acurada dos poemas homéricos, concordamos com a tradição33 que vê no poema elementos suficientes para que sua obra possa informar algo tanto da estrutura social da sociedade micênica quanto da sua própria época, o período arcaico. Tentamos, sempre que foi necessário, utilizar desse cuidado nas comparações.
33
Se acreditarmos em Plutarco (Plut. Lycur. 28) o primeiro legislador espartano, Licurgo (séc. VI a.C.), reconhecendo o caráter político e disciplinar da obra de Homero teria copiado os seus poemas na Jônia e divulgado estes na Grécia.
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Sobre o poema analisado ainda é importante destacar que “Trabalhos e Dias” é 34
considerado por alguns como a primeira reflexão econômica registrada no Ocidente . Esse foi o principal fator que influenciou a escolha dessa obra para a presente análise. Não à toa o poema figura no catálogo da editora Segesta como parte da coleção “Raízes do Pensamento Econômico” antecipando em 2.000 anos a segunda obra mais antiga da coleção, “Pequeno Tratado da 35
Primeira Invenção das Moedas” do francês Nicole Oresme (1355) . Obviamente existem outras obras com elementos de reflexão econômica nesse intervalo, damos como exemplo, apenas para ficar entre os gregos, o livro quinto da Ética a Nicômaco e várias passagens da Política, ambos de Aristóteles, várias passagens em As Leis de Platão e até mesmo as comédias de Aristófanes, particularmente o genial discurso da Pobreza na peça "Pluto" (onde tenta provar que a existência da riqueza é decorrente da própria existência da pobreza)36 . No entanto, desconheço qualquer pesquisador que considere o poema de Hesíodo como um tratado de análise econômica não existe nenhum motivo para discutir essa hipótese porque ela é inexistente. O objetivo de Hesíodo não foi sequer o de escrever uma Oikonomia, como fariam posteriormente Xenofonte e Aristóteles, ou um “manual” de administração doméstica. O que consideramos como reflexão econômica é antes de mais nada sua tentativa de compreender o trabalho como única origem da riqueza, riqueza essa que é limitada apenas ao que atualmente chamamos valor de uso. Mais uma
34
Infelizmente muitas abordagens tratam obstinadamente da escassez, da ganância, de uma propensão natural para a troca e de uma moralidade econômica (e.g.: Cosimo Perrotta [2003] The legacy of the past: ancient economic thought on wealth and development, The European Journal of the History of Economic Thought, 10:2, 177229; ou: Barry Gordon [1963] Aristotle and Hesiod: The Economic Problem in Greek Thought, Review of Social Economy, 21:2, 147156). 35
O poema “Trabalhos e Dias” na edição bilíngue de Rolim de Moura bem como as outras obras da coleção “Raízes do Pensamento Econômico” estão disponíveis gratuitamente e legalmente para download em: http://www.segestaeditora.com.br/pagesrpe/obraseditadas.php . Acesso em 24/10/2015. 36
Ernest N. Manning (2008, p.21) sustenta que a superação, a partir do pósguerra, da figura do camponês como forma econômica primitiva e em vias de desaparecer foi responsável em parte pela recuperação de Hesíodo e seu poema "Trabalhos e Dias". Com exceção de Aristófanes, que teria dado certa importância à figura do agricultor em suas peças, o resto dos autores gregos estudados pela história econômica concentraram seus argumentos no espaço urbano (asty), na aristocracia e no comércio. No entanto, isso pode ter sido exagerado pela leitura moderna destes autores.
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vez não desejamos antecipar a análise, o que só levaria a mais confusão sobre o tema, mas apenas apontar um elemento reconhecido da obra.
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Cap. II – Ensaio de História e Método sobre o Arcaico
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II.1 História Uma das características marcantes do Período Geométrico é a economia de subsistência visando a reprodução material da comunidade nuclear local, ou seja, havia pouca ou nenhuma atividade econômica voltada para fora da comunidade nuclear e pouca interferência externa na economia de subsistência (subsistência da comunidade mais que de seus indivíduos)37 . Esses traços são tão genéricos que podem conduzir equivocadamente a uma aproximação com o feudalismo. Entre uma multidão de fatores que diferenciam os dois períodos históricos destacamos a diferença na organização do trabalho na terra sequer havia uma distribuição de terras parecida com o feudo e a falta de um poder centralizado do tipo senhorial. A troca deve ter sido reduzida ao limite e integralmente contida no interior da comunidade, provavelmente em forma de simples redistribuição obedecendo a reprodução da ordem comunal (por ordem comunal não estamos supondo igualdade material). Se isso for verdade é razoável imaginar um agricultura rústica, sem instrumentos elaborados ou complexas partes metálicas (embora a “reciclagem” do bronze fosse presente ela era certamente limitada quantitativa e qualitativamente pelo desgaste do uso, perda na reciclagem e outros fatores diversos). O trabalho forçado, servil ou de escravos, se existente tinha de ter origem local, mas o mais provável é que grupos submetidos a alguma forma de servidão durante o Micênico tenham se tornado livres após sua queda. Quando falamos do Período Geométrico a ausência de fontes documentais e o baixo volume de registros arqueológicos sobre os fundamentos mais básicos de tais comunidades faz jus ao termo Idade das Trevas (Dark Age), mas é o atual estado de conhecimento sobre o período mais que qualquer ausência de vida material e cultural o que dá 37
Essa característica marcante dos Períodos ProtoGeométrico e Geométrico não ocorria em grau homogêneo por todo território. Locais de ocupação constante como Lefkandi, Atenas ou Creta possuem indícios arqueológicos de uma abertura mais precoce (séc. X a.C.). Também, nessa pesquisa, não observamos o diferencial histórico das comunidades gregas da Ásia Menor.
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sentido ao termo Trevas novas metodologias arqueológicas, como a arqueologia da paisagem, vêm mudando esse cenário desde meados da década de 1980 (e.g., SNODGRASS, 1983; BINTLIFF, 2005). Com efeito, não existe nenhuma sociedade livre de materialidade38 e de expressões culturais. O termo Trevas foi, no entanto, adotado para marcar o declínio relativo de uma rica e complexa sociedade palaciana do Período Micênico para um aglomerado de comunidades desconexas, fragmentadas e de baixa atividade econômica. Esse ponto de vista tem por finalidade contar a história da emergência do Período Clássico e trata o Geométrico como uma obstrução anormal e inexplicável dessa trajetória. Tudo indica, e a arqueologia vem apontando para isso, que a sociedade palaciana do Micênico levou com seu colapso a uma acentuada redução populacional, o desaparecimento da escrita micênica (batizada como Linear B) sem a substituição por nenhuma outra e o declínio das técnicas cerâmicas, agrícolas, em obras hidráulicas e de construções (públicas e privadas)39 . Por mais que o termo Trevas traga um sentido ideológico negativo essa ideologia não é mera invenção dos historiadores, o importante é ter em mente que o declínio é sempre referente a uma história que não é a do próprio Geométrico mas tem algum outro período como referência agora, se esse declínio é uma melhora ou piora moral não cabe à nenhuma historiografia decidir40 . O modelo, em traços muito gerais, com o qual iniciamos o parágrafo é apenas um modelo dentre tantos outros, todos eles tão hipotéticos quanto este. A contradição no interior dessa imagem apocalíptica é que, em algum momento durante o Geométrico o uso do ferro começou a substituir o bronze, e alguns atribuem a ele avanços 38
Materialidade não significa tecnologia mas sim as bases materiais de uma forma social qualquer; por exemplo, a área de caça onde um grupo de caçadores preparam uma tocaia é, enquanto meio de uma organização social, parte de sua materialidade. No caso do Período Geométrico a base material mais evidente é o meio socialmente organizado pelo e para o trabalho agrícola. 39
O impacto da redução populacional para o declínio das técnicas, principalmente de obras públicas, é quase impossível de medir, mas ele é, no entanto, central. Grandes obras hidráulicas do Micênico como a drenagem do lago Kopais na Beócia só foram possíveis com a mobilização de centenas, se não milhares, de trabalhadores da região sob o planejamento centralizado de Orcômeno. 40
Submeter a história a juízos absolutos não se assemelha em nada com a observação do desenvolvimento de necessidades imanentes às formas sociais que seguem, esse sim um método absolutamente legítimo da historiografia.
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agrícolas (GOMES, 2007, p.18) que permitiram inverter o declínio com um crescimento populacional e lançar as bases para a transição ao Período Arcaico. Essa visão é bastante unilateral, se a queda da sociedade palaciana não pode ser explicada por um único fator então a virada do Geométrico para o Arcaico também não deve se apoiar unicamente em uma mudança tecnológica na agricultura. Podemos supor, com alguma segurança, outros fatores importantes dessa virada. Por exemplo, a contribuição, bastante aceita, de invasores (sejam eles dóricos, povos do mar ou algum outro) no declínio do Micênico teria em algum momento se esgotado e dado lugar a formação de assentamentos permanentes desses invasores com relações mais estáveis (ou menos conflituosas) com as populações “autóctones”. A presença crescente do ferro e de outros achados arqueológicos indicam, em algum grau, uma retomada do comércio exterior (provavelmente no séc. X a.C.). Também, o surgimento no final do séc. IX a.C. (ou ainda, início do VIII a.C.) do alfabeto grego transformado do fenício41 aponta para um contato mais ativo com o exterior42. A redução de conflitos bélicos e uma maior estabilidade no tratamento entre as diversas comunidades permite relações mais duradoras com um território e a reorganização distributiva de trabalho e terra. A abertura e intensificação das trocas, não apenas entre as comunidades mas também com o mediterrâneo, impacta radicalmente tanto a cultura local como as possibilidades econômicas. O declínio mais ou menos comum a todo o leste do mediterrâneo durante os séculos XIII e XII a.C. ainda pede uma reflexão sobre a influência mútua na recuperação da região como um todo. Estes são alguns argumentos que complexificam a passagem entre os períodos, mas certamente existem muitos outros fatores que nos escapam e que devem ser pesados no processo histórico que deu origem ao Arcaico.
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Cabe aos especialistas discutir quais as contribuições da criação grega de um alfabeto fonético a partir do silábico fenício. Mas devemos abandonar qualquer ilusão de superioridade já que modelos silábicos e ideogramas não impediram outros povos de desenvolverem tanto sistemas eficientes de registro ou as mais variadas e ricas expressões artísticas. 42
Talvez iniciado entre a Ilha de Eubeia e a Ilha de Creta; hipótese reforçada tanto pelos achados de Lefkandi na Eubeia como pela inscrição em alfabeto grego na “Taça de Nestor” encontrada na colônia eubeia de Pithekoussai próxima a Nápoles na Itália e datada da segunda metade do século VIII a.C. outra inscrição de mesma data é o Vaso de Dipylon encontrado em Atenas. É extremamente significativo que Lefkandi e Atenas tenham sido ambos sítios de ocupação continuada durante o ProtoGeométrico e o Geométrico.
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Desconhecemos a forma política dominante do período Geométrico, mas todos os indícios levam a crer que a figura do basileus (singular: βασιλεύς ) foi ganhando centralidade desde a queda da sociedade palaciana do Micênico. Ao final do Geométrico e início do Arcaico já não restam dúvidas que os basileis (plural: βασιλεῖς ) são a aristocracia da sociedade emergente (Homero e Hesíodo são ambos testemunhas desse poder dos basileis). Essa aristocracia dos basileis se diferencia do Micênico pela ausência de um poder centralizado na figura do Wanax (Anax), os basileis não orbitam mais um monarca e, em partes importantes da Hélade, não observamos a concentração de poder na mão de um basileus mas antes em uma assembleia de basileis, i.e., o governo nas poleis emergentes era oligárquico (a Macedônia e o Epirus, por exemplo, têm histórias bem diferentes). Utilizamos aqui o termo oligarquia como referência ao governo dos aristocratas que retiravam seus poderes do monopólio de grandes pedaços de terra (grandeza relativa). No entanto, nem Homero e nem Hesíodo testemunharam a existência de poleis, ou pelo menos não com as feições que iriam assumir no séc. V a.C. e no Período Clássico, ou seja, não devemos nos enganar pela presença do termo na obra dos aedos. Com isso queremos destacar que o governo dos aristocratas não se confundia com o governo de um Estado, a polis da qual se refere Hesíodo não é aquela das instituições públicas voltadas para o “benefício” dos cidadãos mas uma koinonia ( κοινωνία , comunidade) de particulares (oikos) sob a interferência de basileis locais ou externos (é bem provável que os basileis do poema de Hesíodo fossem de Tespias e não da própria Ascra).
21
Em azul: expansão colonial grega no séc. VI a.C. (Fonte: Wikipedia).
O Período Arcaico foi também aquele que deu início ao processo de colonização grega, em um primeiro momento na região do Egeu, Oriente Próximo, Sicília e sul da Itália e depois na Líbia, o litoral sul da França, nordeste da Espanha e a região do Mar Negro as afirmações (e.g. GOMES, 2007, p.23) de que a emporion43 é posterior a apoikia44 podem ser relativizadas, ou seja, não marcam duas épocas distintas na colonização. Sobre essa gigantesca expansão grega não existe consenso do que teria motivado tal processo de colonização. Para alguns a explicação 43
ἐμπόριον era uma “colônia” que funcionava basicamente como entreposto comercial.
ἀποικία é o termo grego para colônia (LSJ) e é utilizado normalmente para designar um assentamento agrícola fixo distante da “polismãe”. Em termos grosseiros seria uma colônia de povoamento. 44
22
seria uma crise agrária causada pela escassez de terras férteis, para outros uma crise alimentar causada pelo aumento populacional, mas quase todos aceitam atualmente uma pluralidade de fatores crises políticas internas, conflitos bélicos externos, necessidade de metais, crescimento e maior dependência de redes comerciais, etc45 . O que nos interessa particularmente no processo de colonização é que ele exige um certo grau de organização política e econômica, ou seja, além dos fatores que empurravam para a colonização tem de ter existido condicionantes prévios que possibilitavam esse processo. Por colonização não entendemos a migração cotidiana de algumas famílias, como por exemplo o pai de Hesíodo, mas a fundação de poleis previamente planejadas na “metrópole”. Portanto, o processo de colonização grega nos alerta sobre dois fatores: poleis organizadas com tensões internas e externas já no início do Arcaico, ainda que não na forma típica do Clássico, e a heterogeneidade de organizações (condicionantes) e tensões (motivos) entre as poleis no território da Hélade.
45
Os termos interno e externo fazem referência as poleis e não necessariamente a Helade. Um exemplo de fator externo é a migração forçada de parte da população eubeia após a ocupação ateniense da ilha. Um exemplo de fator interno é a disputa de sucessão em Esparta entre os filhos de Anaxândrides II que teria levado Dorieu a uma série de fracassadas expedições colonizadoras (Hdt. 5.4246).
23
Décret concernant la fondation de la colonie de Bréa en Thrace, vers 445 (IG I³ 46) (Musée épigraphique d'Athènes). séc V a.C. (Fonte: Wikipedia).
A relação entre colônia e metrópole é outro tema complicado e do qual especulamos muito e sabemos pouco. Há um exagero em harmonizar essa relação apoiada prioritariamente na diferença entra a colonização grega antiga e a mercantil capitalista. Mas a concentração de esforços em apontar diferenças óbvias não contribui com nada de útil e serve apenas para fazer
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parecer inteligente e crítica uma literatura que é na verdade um vazio analítico. Insistir em cultos religiosos comuns e na presença de instituições políticas semelhantes é esconder que a organização política, econômica e social não pode ser a mesma quando uma população local é submetida a formas de trabalho forçado, caso de muitas das colônias não egeias, ou quando esse trabalho forçado é trazido de lugares distantes e diferentes, o caso mais comum nas poleis da Helade. Também é evidente que as colônias fora da região do Egeu tinham de lidar com populações autóctones para além das relações de trabalho forçado. Algumas das mais antigas colônias como Náucratis no Egito (séc. VII a.C.), e provavelmente Al Mina na Síria (séc. VIII a.C.) e Pithekoussai na Ischia napolitana (séc. VIII a.C.), eram concessões comerciais negociadas com populações autóctones ou mesmo com governos como no caso da referida Náucratis, um emporion concedido aos gregos pelo Faraó Psammetichus I no século VII a.C. (Hdt. 2.154). É difícil saber o grau de autonomia e independência das colônias, algo que devia variar muito em grau e forma, mas a busca de várias colônias em escapar da esfera de influência de suas metrópoles durante a Guerra do Peloponeso mostra que a suposta harmonia não passa de um romantismo46 . Os tópicos mais polêmicos sobre o Arcaico talvez sejam a “Crise Agrária” e o debate sobre classes sociais, principalmente o trabalho forçado, ambos intimamente relacionados. A “Crise Agrária” por um lado invoca diretamente a relação entre a propriedade da terra e a organização do trabalho agrícola e por outro um mecanismo econômico de escravização por dívida (não obrigatoriamente, como mostram a Lacedemônia, a Tessália e Creta). Ao invés de apresentar algumas hipóteses sobre suas causas consideramos imperativo apresentar a própria crise, e o que alguns consideram como consequência da crise será tratada aqui como a própria crise, já que consideramos o próprio período Clássico como sua consequência47 .
46
“A independência das colônias em relação às metrópoles é um fator preponderante para o bom relacionamento observado entre estas, que se identificavam por relações baseadas nas tradições e nos cultos”, GOMES, 2007, p.23. 47
Deixaremos de lado algumas teses “antropológicas” como o limite psicológico de convívio demográfico ou a questão endogâmica.
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A tese mais trabalhada sobre a Crise Agrária é a da escassez de terras por pressão demográfica. Segundo essa tese o acentuado aumento populacional durante o fim do Geométrico e o início do Arcaico teria levado a ocupação quase absoluta das terras férteis disponíveis e a partir daí seguiuse uma expansão colonial em busca de novas terras. Em conjunto com essa expansão colonial, a escassez produziria a ineficácia econômica da pequena propriedade em decorrência de uma fragmentação contínua por herança. A tese da Crise Agrária se apoia em uma teoria de Sistemas Agrários48 , fixando uma produtividade por área e o consumo de subsistência hipotético de uma família "média". Dessa forma ela deduz a área mínima necessária para alimentar uma família e produzir os insumos necessários para reproduzir o ciclo. Com o crescimento demográfico e a ocupação de todas as terras férteis não haveria novas terras para os filhos e a herança passaria a fragmentar a terra até o limite mínimo49 . Ainda que levássemos em conta que o aumento populacional ocorreu graças a inovações nas técnicas agrícolas a redução da área de um oikos geração após geração alcançaria em um dado momento um mínimo crítico. A lógica é extremamente simples, o ganho na produção por inovação não era contínuo enquanto o parcelamento da propriedade era. Esse eco malthusiano na historiografia antiga é dominante na “nova” arqueologia, ou seja, novos métodos submetidos a antigas teorias interpretativas conservadoras. O arquétipo dessa teoria é Atenas50 e isso basta para apontar uma inconsistência; quanto mais a terra era parcelada e se tornava incapaz de produzir a própria subsistência das famílias 48
Para uma visão histórica dos sistemas agrários ver Mazoyer e Roudart, 2010.
49
A tese funciona ao contrário do raciocínio normal, ela não verifica concretamente a densidade demográfica mas supõe que essa seja uma explicação válida para a colonização (busca por novas terras) e a partir daí calcula a população da época. Acreditamos que essa tese possui uma série de falhas, uma das mais graves é generalizar a economia de subsistência, se muito, válida apenas para os pequenos proprietários, supondo que a terra estava igualmente distribuída no limite (e desconsiderando, absurdamente, a produtividade diferencial da terra). Também, uma família com área de terra suficiente apenas para a alimentação precisava dar a própria terra como garantia pelo empréstimo de sementes, animais e instrumentos necessários ao novo ciclo claramente impossível de cobrir supondo produtividade e consumo constantes (mecanismo de concentração agravado pela existência de juros) , o que dificilmente poderia ser considerado como economia de subsistência pura e simples. 50
A polis de Atenas englobava toda a Ática como sua khora (“periferia”) e não apenas a asty (“urbe”) ateniense.
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maior era o comércio ateniense com o exterior. Como é possível produzir abaixo da subsistência (ou mesmo apenas para a subsistência) e ao mesmo tempo produzir excedente para o comércio externo? O excedente provinha dos grandes proprietários? Formalmente, i.e., na lógica de um modelo, isso seria possível. Bastaria que o montante produzido fosse inferior a uma hipotética linha de subsistência mas a apropriação privada fosse suficientemente desigual e já seria possível falar em um excedente privado51 . Na prática, o efeito concreto de tal condição social seria o oposto de uma sociedade em plena ascensão. Que existia uma apropriação privada desigual ninguém tem dúvida mas essa é a origem da pobreza (relativa e absoluta), que certamente teve um papel central na instabilidade política e nos processos de colonização do período. O que não existiu foi uma produção abaixo da linha de subsistência, como prova o permanente crescimento populacional (com raras exceções como o caso espartano e por motivos diversos). Foi o excedente agrícola quem suportou o crescimento “urbano” (asty), a emergência das poleis, o desenvolvimento de obras públicas, o patrocínio dos oráculos, os festivais e os jogos regionais e panhelênicos. Em resumo, tudo aquilo que se tem como imagem de uma “civilização avançada” cujas bases econômicas eram inquestionavelmente agrárias52. Não desejamos contestar que motivos econômicos marcaram a passagem do Geométrico para o Arcaico, nossa intenção é apenas desnaturalizar a pobreza e escapar dos determinismos técnicos tão fora de moda nas ciências sociais atual mas ainda insistentes em algumas historiografias da antiguidade. Esse problema não está circunscrito ao arquétipo ateniense. Se esse é o caso, se existia excedente para o comércio (ponto fundamental da passagem do Geométrico para o Arcaico e deste para o Clássico), então a crise não era decorrente de uma pressão demográfica sobre as escassas terras férteis, o problema era a concentração de terras, a escassez era induzida por relações de propriedade. Onde há em conjunto escassez e excedente tem de haver relações de 51
É óbvio que esse modelo, ou qualquer outro aproximado, deixa de lado as visões ingênuas de uma economia de subsistência pura. A ideia do oikos como unidade produtiva e núcleo da vida arcaica não deve esconder sua relação com o “exterior”, a polis, e nem a abertura cada vez mais acentuada destas para o “mundo” mediterrâneo. 52
Ninguém discute a importância das minas de Laurium (ou Laurion) para a economia e a política de Atenas, principalmente nos período de Pisístrato (séc. VI a.C.) e Temístocles (séc. V a.C.), mas ninguém nega o caráter agrário da Ática.
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classe já desenvolvidas, i.e., as relações de classe não são consequências dessa contradição da “oferta” ou ainda, a situação de classe não é uma situação de mercado como deseja certa corrente sociológica mas antes uma relação de produção em um modo de produção estabelecido. É urgente abandonar qualquer metodologia, para qualquer tempo histórico, que pense uma população em termos de consumo mas seja incapaz de pensála em termos de produção. Assim, a Crise Agrária foi a expressão, agravada durante os séculos VII e VI a.C., das contradições de um modo de produção específico. A emergência de tiranias “antiaristocráticas” em várias poleis gregas, a revolução “democrática” ateniense que se arrasta desde antes da “reforma” de Solon até depois da época de Clístenes, as duas primeiras Guerras Messênias que levaram a servidão hilota pelos espartanos na Lacedemônia (Paus. 3.3.2) são exemplos dos radicais processos de transformações sociais que marcaram o Arcaico. Essas transformações estiveram solidamente ligadas a novas formas sociais de organização do trabalho; o uso generalizado de trabalho escravo, a redução de populações inteiras a condição de servidão, a expansão das formas de trabalho pago (misthos [ μισθός ] ou thetes [ θῆτες ]), o deslocamento massivo de força de trabalho (e.g. AtenasEubeia, AscraTespias), processos de colonização (emporion e apoikia) e etc. Em resumo, a escassez de terras não foi a causa da crise mas foi parte da própria crise e o produto de relações conflituosas de classe. Mesmo aqueles que se opõem a uma análise centrada nas classes e preferem estamentos, ordens e status reconhecem a importância das formas de organização do trabalho em tais processos históricos: As sociedades antigas teriam passado de uma fase Arcaica marcada pela multiplicidade de status, formando um degradê da liberdade à escravidão com numerosas categorias intermediarias, para uma fase Clássica onde os status são reduzidos essencialmente a dois, escravidão e liberdade, depois para uma outra fase, a Antiguidade Tardia, quando retornariam a uma multiplicidade de status. Esta hipótese está na origem da ideia bastante difundida de que a escravidão e a liberdade andam de mão dadas. (ZURBACH, 2013, p.961, trad. nossa)53 "Les sociétés anciennes seraient passées d’une phase archaïque marquée par la multiplicité des statuts, formant un dégradé de la liberté à l’esclavage avec nombre de catégories intermédiaires, à une phase classique où les statuts se réduisent pour l’essentiel à deux, l’esclavage et la liberté, puis à une autre phase, 53
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O problema central de lidar com a polarização entre escravidão e liberdade é que, principalmente para o pensamento moderno, um termo tem fundamento concreto na economia e no trabalho enquanto o outro é uma abstração jurídica. Essa oposição remete a Aristófanes de Bizâncio (séc. III a.C.) e foi escolhida por M. Finley para repensar a sociedade grega antiga como espectro entre o escravo e o homem livre54 . A partir dessa oposição, e da análise feita por Finley (com forte influência weberiana), o que se seguiu foi um hábito de tratar a escravidão não mais como uma forma social das relações de produção mas como uma relação de dominação entre indivíduos. Essa mudança metodológica não se apoia em nenhuma nova descoberta historiográfica ou arqueológica sobre a antiguidade grega mas apenas no rechaço, acentuado a partir de 1980, do marxismo e na ascensão meteórica do individualismo metodológico entre as ciências sociais55. De nossa parte preferimos pensar a liberdade para os gregos a partir da noção de autarquia, as fontes textuais clássicas reforçam essa abordagem para o tema. Por sua vez, a autarquia grega era rigorosamente associada ao trabalho agrícola e à propriedade dos meios necessários para a realização do trabalho, sendo a terra o mais importante de todos acompanhados imediatamente do escravo e da mulher (como instrumento de auxílio do trabalho o escravo não se confunde com um trabalho específico, algo que Finley parece desconsiderar). Isso não deve refletir uma escolha arbitrária, baseada em modismos metodológicos ou em preferências ideológicas pessoais, mas tem de ser coerente com os fundamentos concretos da análise no caso da presente pesquisa, fontes documentais do período. De maneira alguma estamos negando a validade de abordagens "extraeconômicas" do tema, pois, de fato, nenhuma relação social pode ser reduzida unicamente as suas determinações econômicas mais imediatas. l’Antiquité tardive, où l’on serait revenu à une multiplicité de statuts. Cette hypothèse est à l’origine de l’idée très répandue que l’esclavage et la liberté marchent main dans la main". 54
μεταξύ ελευθέρων και δούλων; entre livres e escravos ([p.233], M. I. Finley. Between Slavery and Freedom. Comparative Studies in Society and History, Vol. 6, No. 3 (Apr., 1964), pp. 233249). 55
Essa acensão meteórica tem fundamentos históricos na própria década de 1980 e não em uma suposta superioridade metodológica demonstrada por argumentos cientificamente neutros. Aqueles que procuram defender essa "virada" como uma superação da velha polaridade entre agência e estrutura, motivada por uma evolução interna das ciências sociais, fazem apenas o velho jogo político disfarçado de ciência.
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Nossa intenção é chamar a atenção para uma ideologia antieconômica que ora se recusa a reconhecer a presença da economia nos fenômenos sociais e ora, quando já não pode mais contornar sua presença, reserva a ela um lugar secundário ou marginal. II.2 Classes Todo o Estado se compõe de três classes de cidadãos: os que são muito ricos, os que são muito pobres e aqueles que estão em uma posição intermédia com uns e outros. Arist. Pol. 1295b; IV.IX.3; 2009, p.140.
Essa frase de Aristóteles, embora bastante criticada, permanece extremamente viva no senso comum até os dias atuais. Isso se deve em parte pela simplicidade de sua lógica; dois extremos e um meio. A empiricidade dessa lógica é uma outra parte dessa popularidade; a imediata diferença dos extremos e a complexa variedade do que não é nem um nem outro. A validade metodológica dos dualismos parece se apoiar largamente em sua potência de determinar, por negação simples, um terceiro. Parece contraditório que a força dos dualismos esteja em determinar uma terceira parte, mas tal aparência se dissolve quando consideramos que essa terceira parte tem por substância o dualismo original nenhuma imagem escapa ao jogo de sobreposição entre o claro e o escuro. Deixando de lado o aspecto puramente formal desse dualismo encontramos na citação de Aristóteles alguns elementos históricos (e substanciais) explícitos: a presença do Estado inseparavelmente relacionada a presença de cidadãos que se diferenciam por critérios objetivos (e não por linhagens parentais, filiação a um grupo ou seita religiosa ou pertencimento a uma categoria jurídica). Aristóteles não é nem o primeiro e nem o último a perceber essa inseparabilidade entre política e diferenciação econômica, ou seja, os fundamentos econômicos do Estado Estado este que não é reduzido a condição de corpo administrativo ou governo, mas
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é o lócus dos conflitos sociais. Dizemos lócus dos conflitos e não da solução dos conflitos seja porque ao negociar os conflitos ele os reproduz ao invés de superálos ou porque ele mesmo aparece como forma de dominação política do conflito. Em ambos os casos a natureza do Estado é a da reprodução dos conflitos e não de sua superação. Ao longo de toda história a superação de uma forma do conflito por outra exigiu mudanças na própria forma do Estado e, pelo mesmo motivo, uma determinada forma de Estado sempre se revelou como obstáculo para a superação do conflito em qualquer de suas formas. No caso da Grécia Arcaica é impossível separar esses conflitos da emergência de tiranias, da democracia e das Constituições. No entanto, a frase de Aristóteles não trata propriamente de classes mas sim das frações sociais segundo seus interesses políticos apoiados na desigualdade econômica. Grosso modo, a passagem faz referência ao conflito entre aqueles que desejam utilizar do Estado para tomar o patrimônio dos ricos, ou seja, os pobres, e aqueles que desejam utilizar do Estado em benefício próprio, ou seja, os ricos56 . O filósofo estagirita se utiliza desse fracionamento em busca de uma Constituição ideal e para tanto naturaliza essas frações sociais, em nenhum momento está pensando em revoluções nos modos de produção que possam superar tal fracionamento. Não cabe aqui discutir a filosofia política aristotélica, o que desejamos com a citação é ilustrar a presença inequívoca de tensões políticas com origem econômica na antiguidade grega. Faremos outra citação, mas agora para ilustrar que suas reflexões econômicas não estavam reduzidas aos interesses subjetivos de uns e outros ou a capacidade de acessar bens no mercado: No que se refere à propriedade [ κτήσεως ], a primeira ocupação [ πρώτη ἐπιμέλεια ] é a que vem de acordo com a natureza [ φύσιν ]. Ora, segundo a natureza, a agricultura tem a prioridade; depois, estão as artes que extraem as riquezas do solo , como a atividade mineira e outras do mesmo gênero. A agricultura [γεωργικὴ] detém a primazia, pois respeita a justiça; na verdade, nada retira ao homem, seja com o seu consentimento, como no comércio [καπηλεία] ou no trabalho assalariado [μισθαρνικαί], seja contra sua vontade, conforme ocorre nas lides guerreiras [πολεμικαί] .
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Dito dessa forma (e não estamos acusando Aristóteles de ter dito algo parecido) o Estado aparece como um ente reificado, com existência própria separada da sociedade, e disputado por frações sociais com diferentes interesses políticos. Essa reificação é uma fantasia moderna com raízes no Iluminismo que entende o Estado como objetivação da razão em uma forma burocráticolegal.
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Aristóteles, Econômicos, 2007, p.7. [1343a2530] (grifo nosso).
Durante a análise do poema de Hesíodo veremos uma clara aproximação com essas duas citações. Aproximação que não deve ser exagerada, é verdade, mas que ainda assim evidencia um eixo comum de tensões na sociedade grega seja do início do Arcaico ou do fim do Clássico. A primeira delas consiste na incompatibilidade de interesses entre frações econômicas da sociedade e no uso da política em benefício próprio por parte da aristocracia, no caso de Hesíodo 57
, e de uma oligarquia ou democracia (tirania da demos) no caso de Aristóteles. A segunda
aproximação é a primazia da agricultura por ser esta uma forma de riqueza produzida e não retirada de um outro (o que parece ainda mais evidente no Arcaico de Hesíodo que no Clássico de Aristóteles). O principal meio de produção (usando uma terminologia moderna) reconhecido pelos gregos da antiguidade era a terra (o que permanece válido em termos gerais mesmo durante o Clássico, quando algumas grandes fortunas nasceram do comércio e da mineração). Daí a diferenciação dos trabalhos ser vinculada à terra e das riqueza por suas origens, i.e., pelos próprios trabalhos diferenciados (não há riqueza abstrata onde falta o trabalho abstrato). Se a política é parte importante para a reprodução de desigualdades econômicas ela não é a origem de tais desigualdades. Com isso desejamos enfatizar que entre os gregos a riqueza não era a acumulação de uma forma abstrata de valor, a atual formadinheiro, mas a acumulação dos dois meios de produção primordiais, terra e trabalho. Apenas no modo de produção atual, o capitalismo, é que o dinheiro assume um papel central na economia, qual seja, o de forma abstrata das relações de produção como capital monetário (riqueza móvel).
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O nosso entendimento é que para Hesíodo é impossível à qualquer não aristocrata utilizar a política em benefício próprio. Não porque ele não possua os meios para corromper ou adquirir privilégios políticos, menos ainda por qualquer superioridade moral do trabalho, mas porque a política nada produzindo não é uma forma de sustento viável para aqueles que precisam trabalhar. Já o aristocrata, retirando seu sustento da grande propriedade e do maior número de escravos, não precisa trabalhar e pode, portanto, dominar o espaço da política. Esse será exatamente o mesmo argumento desenvolvido por Aristóteles em sua Constituição ideal para negar a cidadania ativa ( πολίτας ) àquele que trabalha a terra ( γεωργοὺς ) (Aristot. Pol. 7.1328b40). Vêse como ideologias de classe podem aparecer como reflexos invertidos de uma realidade concreta.
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Enquanto a riqueza esteve presa quase que exclusivamente à terra a aristocracia, os grandes proprietários, seriam dominantes politicamente. Na época de Hesíodo, portanto, a reprodução das condições de classe do pequeno e médio proprietário era também a reprodução da aristocracia (reproduzir o uso da terra como fonte de poder político, militar e econômico e, o mais importante, domínio sobre o trabalho do não proprietário). No entanto, aí encontramos também a origem do tensionamento de classes, a disputa por e contra a acumulação da terra (e do trabalho forçado), e a fraqueza política da aristocracia que não conseguia levar a termo o monopólio da terra (algo que o hoplita tornará inviável por completo). Que a aristocracia avançava sobre a terra dos pequenos e médios agricultores não resta dúvida. A lei solônica58 do século VI a.C. na Ática, o forte governo oligárquico de Tebas na Beócia ou as guerras na Lacedemônia que reduziram povos inteiros a condição de servidão deixam pouca margem para outras hipóteses. Mais ainda, a escravidão por dívida que cresceu entre o século VII a.C. e VI a.C. é evidência de que a acumulação de terras vinha acompanhada da acumulação de trabalho forçado acumular terra sem gente para trabalhar nela seria um esforço inútil. Essa dinâmica econômica era o principal fator de reprodução da classe aristocrata, e não um suposto poder estamental fundado em linhagens heroicas – poder que era radicalmente negado pelos proprietários não aristocratas, como atesta a guerra civil que levou a produção das leis solônicas 59
, a degola dos ricos em Megara60 ou o avanço de Téspias sobre Ascra (BINTLIFF, 1999, p.49).
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e.g. σεισάχθεια, seisachtheia, leis de abolição da servidão por dívida. Antes dela o devedor ao não pagar perdia a terra e ficava preso ao seu novo proprietário, o credor, na condição de servidão conhecida como hektemoroi, ἑκτήμοροι, i.e., aquele que paga ⅙ da produção. Sobre as leis de Solon ver Aristot. Const. Ath. 6.1 e 7.3. 59
"Para o ateniense a Constituição era em todos os aspectos oligárquica, e de fato os pobre eles mesmos e também suas esposas e filhos eram na realidade escravos dos ricos; e eles eram chamados Clientes, e arrendatários de uma sexta parte (pois essa era a renda que pagavam pela terra dos homens ricos onde eles plantavam, e toda região estava em poucas mãos), e se alguma vez eles falhassem em pagar a renda, eles mesmos e seus filhos ficavam passíveis de prisão; e todo o empréstimo era assegurado com a pessoa do devedor até o tempo de Solon: foi ele quem primeiro tornouse chefe do povo. Assim a coisa mais grave e cruel no estado dos assuntos públicos para as massas era sua escravidão; não apenas, mas também estavam descontentes com todo resto, pois se encontravam virtualmente sem parte em coisa alguma. (Arist. Const. Ath. 2.23, trad. nossa). Sendo esse o sistema na Constituição, e os muitos sendo escravizados pelos poucos, o povo se levantou contra os notáveis. Sendo a luta partidária violenta e permanecendo as partes organizadas em oposição uma à outra por muito tempo, eles conjuntamente escolheram Solon como árbitro e Arconte, e confiaram o governo a ele" (Aristot. Const. Ath. 5.12, trad.
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Mas como já ressaltamos, isso não implica em uma negação absoluta de uma classe frente a outra pois ambas reproduzem não apenas as suas condições de classe mas também das demais. As relações entre terra e trabalho devem ser observadas como produto da dinâmica de classes, dos mecanismos de sua reprodução e a origem do seu poder61. Já dissemos antes que um dos objetivos dessa pesquisa foi procurar alguns contornos concretos das relações de classe, a forma que tais relações assumem, no poema de Hesíodo. Daí que não se deva esperar dessa monografia nem definições das classes sociais da antiguidade grega (até por completo desacordo com qualquer metodologia que estude classes sociais por definições conceituais) e nem mesmo um tratamento mais aprofundado ou exaustivo do tema. Ao contrário, buscamos em Hesíodo uma oportunidade de entrar na questão do debate metodológico, central para as ciências sociais, sobre classes em formações históricas não capitalistas. Por ora, desejamos apenas destacar dois pontos (inseparáveis entre si) que consideramos de extrema importância para a compreensão sobre as classes na antiguidade grega: um deles trata da propriedade da terra como centralidade da dinâmica social e do conflito de classes na Grécia Antiga; o outro trata da oposição central na sociedade grega entre trabalho forçado e trabalho livre (deixando de lado aquela abstração de "homens livres"), onde o primeiro é o fundamento da reprodução do segundo. Assim, entendemos que a dinâmica social grega tem de ser procurada nossa)". [“For the Athenian constitution was in all respects oligarchical, and in fact the poor themselves and also their wives and children were actually in slavery to the rich; and they were called Clients [ πελάται ], and Sixthparttenants [ ἑκτήμοροι ] (for that was the rent they paid for the rich men's land which they farmed, and the whole of the country was in few hands), and if they ever failed to pay their rents, they themselves and their children were liable to arrest; and all borrowing was on the security of the debtors' persons down to the time of Solon: it was he who first became head of the People. Thus the most grievous and bitter thing in the state of public affairs for the masses was their slavery [ δουλεύειν ]; not but what they were discontented also about everything else, for they found themselves virtually without a share in anything.” (Aristot. Const. Ath. 2.23). “Such being the system in the constitution, and the many being enslaved to the few, the people rose against the notables. The party struggle being violent and the parties remaining arrayed in opposition to one another for a long time, they jointly chose Solon as arbitrator and Archon, and entrusted the government to him” (Aristot. Const. Ath. 5.12)]. 60
Arist. Pol. 1305a2030 (V.IV.5).
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Arist. Pol. 1319a520 (VI.II.56). Uma lista com exemplos desse tema aparece em Zurbach (2009, p.37, nt.66); “Aristote, Politique , 1319a 614 ; 1265b 1216 ; 1266b 1424 (comprenant la loi de Solon fr. 66 Ruschenbusch) ; 1274b 25”.
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nos conflitos pela propriedade da terra mas que estando a reprodução concreta de todas as classes proprietárias vinculada ao trabalho forçado (em suas diversas formas) este constitui um fator determinante das relações sociais, entre as classes, na antiguidade. Sócrates — De cada um dos indivíduos que possuem muitos escravos na cidade, pois eles são semelhantes aos tiranos no seguinte… Exercem o comando sobre muitos, e a diferença está em que os escravos do tirano formam uma multidão. Glauco — É essa a diferença. Sócrates — Sabes que esses indivíduos vivem tranquilamente e não temem seus servidores? Glauco — Ora, o que temeriam? Sócrates — Nada. Falei. Mas sabes por qual razão? Glauco — Sim, porque toda a cidade corre em auxílio de cada um de seus homens. Sócrates — Respondeste bem, disse eu. Mas e agora? Se um deus tirasse da cidade um só homem que tenha cinquenta escravos ou mais, junto com a mulher e filhos, e os colocasse com todos os seus bens e servidores num deserto em que nenhum homem livre iria socorrêlos, imaginas como e quanto, por si, pelos filhos e pela esposa, ele temeria a morte na mão dos servidores? Glauco — Sentiria medo de tudo, acho eu, disse ele. Sócrates — Não seria forçado a adular a alguns dos escravos, a fazerlhes muitas promessas e a libertálos sem necessidade, revelandose a si próprio como adulador dos seus escravos? Glauco — Seria forçado a agir assim, disse, ou a morrer. Sócrates — E então? Se também o deus instalasse ao redor de sua propriedade muitos vizinhos que não suportassem que um homem pretendesse ser o senhor de outrem, mas, caso topassem com alguém com tais pretensões, imporiam penalidades extremas? Glauco — Creio que a sua infelicidade, disse eu, seria ainda maior, ao sentirse cercado por todos os seus inimigos. Platão, Rep., IX.578d579b; 2006, pp.358359.
Esse diálogo também ajuda a dissipar confusões entre o que é luta de classes, fator social constante, com processo revolucionário, evento. Não é um argumento válido negar a existência de uma classe, ou da luta de classes, pela ausência de revoluções. O evento, a revolução no interior da luta de classes, depende de fatores objetivos tais como organização mínima e condições concretas de superação política e econômica da forma social vigente. Daí que o
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movimento histórico da Grécia Antiga esteja ancorado nos pequenos e médios proprietários de terra e não nos escravos e por esse mesmo motivo é que a escravidão dos próprios membros da polis desmoronou antes mesmo de se efetivar. É corretíssima a noção de que a oposição fundamental na antiguidade grega era aquela entre trabalho forçado e trabalho livre (ou livres do trabalho como os aristocratas) justamente porque todas as classes sociais livres da Grécia estavam radicalmente apoiadas no trabalho forçado para se reproduzirem. Nesse cenário as condições de superação da escravidão eram praticamente nulas se não totalmente nulas. Mas daí não se tira que todos os homens livres pertenciam a uma única classe ou que os escravos não resistiam como podiam à escravidão a rebelião constante dos hilotas, a fuga dos 20.000 durante a ocupação espartana de Atenas ou até mesmo a morte como forma de libertação62. Para nossa infelicidade Hesíodo não tenciona a escravidão em seu poema. Certamente a forma natural como ela era vista pelas classes proprietárias ajuda a explicar essa ausência, mas também, e talvez esse seja o principal motivo, porque o foco do aedo é o conflito com os basileis aristocratas conflito no qual a escravidão, ao contrário de um contraste, é o elemento comum.
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"Debita libertas iuveni mihi lege negata / morte immatura reddita perpetua est." [CIL X 4917]; epitáfio de um escravo romano (vilicus) morto aos 25 anos como os seguintes dizeres "a devida liberdade negada pela lei na juventude / a morte prematura tornou perpétua" (CROIX, 1981, p.174, trad. nossa).
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Capítulo III O Poema III.1 Proémio e Duas Érides Não afirmarei falsamente que me destes a arte, ó Apolo, nenhuma voz de um pássaro celeste me aconselhou, eu jamais avistei Clio ou suas irmãs enquanto apascentava rebanhos, ó Ascra, em teus vales: Experiência incitou esse trabalho: ouve o poeta experiente: eu canto a verdade: ó Vênus, assiste minha sorte! Ovídio , Ars Amatoria63 Combati o bom combate, acabei a carreira, guardei a fé. Desde agora, a coroa da justiça me está guardada, a qual o Senhor, justo juiz, me dará naquele dia; e não somente a mim, mas também a todos os que amarem a sua vinda. 2 Timóteo 4:78
O que pretendemos nesse capítulo é algo bastante diverso da fortuna crítica discutida no primeiro capítulo. A tradição analítica no entorno de “Os Trabalhos e os Dias” é a do estudo sistemático de passagens, aprofundamento de tópicos e de eruditos trabalhos filológicos. O que já foi vertido em tinta apenas no estudo jurídico do poema seria suficiente para empalidecer, em quantidade, não em qualidade, as mais de cinco mil páginas dos “Comentários sobre Aristóteles” escritos por São Tomás de Aquino. Um exemplo de erudição filológica “recente” é o trabalho de W. J. Verdenius, “ A Commentary of Hesiod Works and Days, vv. 1382”, de 1985, onde o "Nor will I falsely say you gave me the art, Apollo, no voice from a heavenly bird gives me advice, I never caught sight of Clio or Clio’s sisters while herding the flocks, Ascra, in your valleys: Experience prompts this work: listen to the expert poet: I sing true: Venus, help my venture!" ( Publius Ovidius Naso , Ars Amatoria, p.123, trad. nossa). 63
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classicista holandês discute, verso por verso, alguns termos gregos quase à exaustão. Nosso tratamento é tão mais superficial quanto geral, o esforço tem como objetivo principal concatenar posições de classe, relações entre produtor e meios de produção e a inseparabilidade analítica entre interior e exterior da unidade produtiva o oikos . Os versos do poema não autorizam, nos limites da ciência, nada além de exageros especulativos. Mas é exatamente isso que torna “Os Trabalhos e os Dias” uma inesgotável fonte de análises acadêmicas e um objeto de pesquisa eternamente original. É um engano esperar neutralidade em qualquer trabalho analítico, aqui não é diferente. Ao invés de disfarçar os juízos por trás de um linguajar científico deixamos que eles se revelassem abertamente, assim como o voto de Panedes no Certamen entre Hesíodo e Homero 65
. Ora ao ver que, apesar de a cidade se envolver em frequentes dissensões [ στασιάζουσαν ], alguns dos cidadãos, por apatia, se compraziam com o acaso, promulgou uma lei a eles dirigida: “Quem, estando a cidade em dissensão, não pegar em armas por nenhum dos partidos, tornarseá atimos [ ἄτιμον , sem timé] e não tomará parte na vida da cidade”. Aristot. Const. Ath. 8.5 (LEÃO, 2002, p.28)
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Apesar do título, o livro não comenta o poema mas funciona, antes, como um importante instrumento de auxílio, bem ao estilo do classicismo, para a sua análise. Para um trabalho parecido, ver a dissertação para obtenção do título de PhD na University of Chicago escrita por Heber Michel Hays, 1918. Utilizamos, com muito mais regularidade, o dicionário sensível ao contexto LSJ (várias vezes citado pelo próprio Verdenius) e o de termos Middle Liddell disponíveis no site Perseus. Durante essa narrativa ficcional Hesíodo vence Homero em um competição ( Certamen , ou também Agon ) de cantos. Panedes, irmão de Anfidamante, para quem os jogos funerários eram dedicados, justifica seu voto contrário à vontade popular “dizendo que era justo que vencesse aquele que incitava ao trabalho do campo e à paz, não aquele que descrevia combates e mortes” (2005, p.154). 65
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Hesíodo começa amparando a verdade de suas sentenças na inspiração das Musas , portadoras de um conhecimento sobre a ordem divina da natureza que recai sempre na vontade de Zeus. O aedo não possui o Iluminismo e nem precisa dele, para sua gnose o divino basta, sua intenção é didática e versa sobre a prática. Ou seja, Hesíodo não reflete sobre a verdade dos seus conhecimentos como se estes fossem o produto de uma cabeça pensante. O conhecimento do Cosmo é externo e objetivo e não um fenômeno, modelo ou teoria. Para os atuais padrões da ciência isto é inadmissível, sem uma prévia “massagem” metodológica qualquer propedêutica é dogma e ingenuidade. O que o "sujeito hesiódico" coloca para si como objeto de reflexão é a transmissão desse saber e o que fazer com ele. Mas o aedo gnóstico não é um técnico, é um artista, e isso significa que sua reflexão crítica se encontra no produto final de sua obra de arte. Já dissemos que o poeta versa sobre a prática, e descreve aqui e ali uma ou outra técnica, muito rústica aos olhos modernos e certamente do conhecimento de seu público. Mas também dissemos que sua intenção é didática, e o que Hesíodo deseja ensinar não é o jungir dos bois. Qual a relação entre técnica e didática? Essa pergunta vai muito além da presente análise e, por ora, nos contentaremos com uma breve discussão sobre o saber fazer e o saber ensinar. Nenhum dos dois existe desprovido de reflexão. A poesia didática é uma forma expositiva (inspirada pelas Musas e executada pelo aedo) que intenta fazer com que alguém compreenda 68
algo . Hesíodo não ensina como proceder nos trabalhos agrícolas mas sim porque fazêlos e A tradução feita por José Ribeiro Ferreira (HESÍODO, 2005) de ἐ τήτυμα (v.10) como “verdade” é acompanhada por Hugh EvelinWhite (HESIOD, 1914) que verte o termo grego como “true” e também por Alessandro Rolim de Moura (HESÍODO, 2012). Porém, não é adotada por Werner (HESÍODO, 2013b) que prefere o termo “genuíno”. Em Teogonia (v.28) a verdade proclamada pelas Musas é ἀ ληθέα . A verdade ( ἀ ληθέα ) cantada pelas Musas e o discurso genuíno ( ἐ τήτυμα ) de Hesíodo não são, de fato, a mesma coisa e por isso preferimos a tradução de Werner que as demais. No entanto, essa diferença, cuja a importância consideraremos mais a frente, não altera a fonte do conhecimento transmitido pelo aedo, como fica evidente na passagem sobre a navegação (vv.660662). 66
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A localização geográfica das Musas na Piéria, região da Macedônia grega próxima ao Monte Olimpo, e não em Hélicon na Ascra de Hesíodo, deu origem a uma discussão sobre a autoria do proémio (Paus. 9.31.4). No entanto, embora dedique o proémio da Teogonia as Musas do Hélicon estas são as mesmas nove Musas do Olimpo paridas por Mnemosine na região da Piéria (Hes. Th. vv.2225;5362). 68
Isso não implica em que todo o poeta didático tenha sucesso no seu ensinamento, ou ainda que tenha a qualidade de um Hesíodo ou de um Ovídio. Não reconhecemos a Teogonia como poesia didática, mas também os hinos e a épica, com sua ação de dar nome as coisas e eventos do mundo é amplamente aceita
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porque fazêlos segundo uma ordem e um tempo. Daí que muitas vezes a poesia didática seja vista como poesia moral; o porquê, não raro, se transforma rapidamente em um juízo que separa o que é do que deve ser. Eis a causa pela qual importa menos justificar o conhecimento por sua origem divina que justificálo por suas consequências práticas (e éticas). Hesíodo não se limita a transmitir o conhecimento soprado pelas musas, por exemplo quando navegar, mas deseja que seus ouvintes saibam o motivo e o fim de tal conhecimento. “O melhor de todos ( πανάριστος ) é aquele que pensa por si, compreendendo o que em seguida e no fim será melhor” (vv.293294). Portanto, saber ensinar, ser didático, é também saber o porquê se ensina e dessa forma explicar o porquê de saber fazer algo para que o aprendiz pense por si próprio, compreendendo o que em 69
seguida e no fim será melhor. Sem isso não existe a autarquia , o controle sobre si próprio, conceito caro aos gregos da antiguidade atualmente muito confundido com o conceito abstrato 70
de liberdade . Portanto, uma das primeiras condições da poesia didática, a existência da “constelação professoraluno” (VOLK in TREVIZAM, 2014, p.38), é que aedo e ouvinte sejam cientes de si. A emergência de uma reflexão sobre a própria subjetividade não era no período arcaico uma exclusividade da poesia didática, mas também estava presente no “Eu” da poesia lírica. Um delicioso exemplo é fornecido por Plutarco que recupera os versos do poeta Arquíloco de Paros (séc. VII a.C.): O escudo abandonei porque foi preciso, pobre armadura inculpável! Próximo a uma moita, alegra agora algum dos Saios, mas eu me salvei. O que me importa esse escudo?
como “préfilosofia” (seja porque o nome, conceito, é condição para a reflexão de algo, ou porque o conceituar, dar nome, é o produto particularizante de um momento reflexivo). 69
Ou ainda o ὄ λβον, olbon, fortuna em sentido amplo, para além do material.
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Pura confusão, a autarquia grega excluía o assalariado (thete) e era limitada àqueles que possuíam os meios imediatos (sem mediação necessária), leiase terra, para satisfazer suas necessidades materiais. Obviamente excluía também escravos e servos, e não raro comerciantes. Embora a exclusão dos comerciantes, ricos ou pobres, pudesse se apoiar na não propriedade da terra os argumentos podem ser muito mais complexos. Aristóteles, de forma absolutamente genial e precursora, observa que a atividade de aquisição de um valor de troca que ignore o valor de uso (crematística não natural) leva a uma potencial acumulação ilimitada, e, portanto, não existe uma finalidade própria a ser satisfeita (Política, livro I).
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Que vá amaldiçoado. Outro arranjo, tão bom quanto.
Arquíloco não estava ensinando ninguém a fugir da batalha e abandonar os companheiros, mas essa forma de subjetividade era exageradamente subversiva e inaceitável para a disciplina espartana, e o poeta foi banido da polis enquanto tentava visitála. No entanto, não trouxemos Arquíloco para perto de Hesíodo apenas como um recurso anedótico, a intensão é contrapor duas expressões de subjetividade em suas respectivas formas literárias. Segundo Bruno Snell (2012, pp.5579) é com a lírica que o pensamento grego inicia a longa jornada que liberta o homem da opressão dos deuses e da natureza. Para romper com essas cadeias da opressão o “eu lírico” tem de se separar do “eu orgânico”, cisão entre corpo e espírito. O exemplo talvez mais marcante que Snell oferece é o seguinte verso da poetisa Safo de Lesbos, “Alguém dirá que da negra terra os cavaleiros são a coisa mais bela, outro que os soldados ou os navios, e eu, o que o coração, amando, deseja”. Mas Snell exagera a lírica ao mesmo tempo em que reduz os versos de Hesíodo à “simples arma numa contenda judiciária” (2012, p.66), e ele 72
faz isso porque é obcecado por uma interioridade autônoma ao exterior mundano . A inexistência de um aprendiz na poesia lírica faz com que os versos apareçam como autojustificativa, como justiça particular, de uma ação mundana (a vaidade de Safo quer seduzir, a covardia de Arquíloco quer salvarse a si próprio). Se o “Eu” lírico se separa do “Eu” orgânico eles precisam retornar um no outro para se efetivar como “Eu” subjetivo, ou seja, como ação de resto, Snell é pura abstração. Nem a poesia lírica e nem a didática têm como objetivo a vontade de saber puro. O que difere Hesíodo e seu poema didático é a presença do aprendiz, aqui o poeta
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“The shield I left because I must, poor blameless armament! beside a bush, gives joy now to some Saian, but myself I have saved. What care I for that shield? It shall go with a curse. I'll get me another e'en as good” (trad. nossa). Em, Elegy and Iambus, vol. II. with an English Translation by. J. M. Edmonds. Cambridge, MA. Harvard University Press. London. William Heinemann Ltd. 1931. [2.21.2] In: http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus%3Atext%3A2008.01.0480%3Avolume%3D2%3At ext%3D21%3Asection%3D2 . Snell (2012, p.61) oferece uma tradução que esconde o motivo da ação infame do poeta, salvarse ( α ὐ τ ὸ ν δ' ἔ κ μ' ἐ σάωσα , fr.5 West). 72
Sua obsessão desconhece qualquer limite! Em outro artigo (SNELL, 2012, p.287310) ele faz da Arcádia das Éclogas do poeta romano Virgílio a primeira “paisagem espiritual”, onde “a obra literária tornase autônoma, tornase um mundo em si, tornase absoluta” (ibdem, p.295).
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não pode fazer de sua justiça uma justiça particular, seus valores têm de ser universais. Daí que ele invoque as Musas para garantir um discurso genuíno, ἐτήτυμα (ver nota 66), onde as sentenças não estejam entortadas por interesses pessoais. É algo inegável que os valores universais apresentados por Hesíodo estejam apoiados na ética e na religião. O erro está em acreditar que estejam apoiados apenas nisso. Nossa intenção é demonstrar ao longo da análise que a justiça de Hesíodo é algo visível, possível de ser observada com os olhos, nas consequências concretas de cada ação humana. Lembremos que Hesíodo não pune, apenas ensina proferindo aquilo que é genuíno em um discurso, quem pune é Zeus, olhando e ouvindo ele endireita sentenças com a justiça (enviando Horcos, a Punição, ou ainda Juramento, toda vez que a Justiça é desrespeitada). Se o discurso de Hesíodo é genuíno e Zeus pune todo aquele que entorta a justiça como ele criou, então nenhum homem, nenhum grupo social, nenhum basileu aristocrata, pode proferir sentenças livremente. A primeira condição do proémio de Hesíodo é que a justiça não pertence aos homens, estes só emitem sentenças (erradas em grande parte). Ela é tão universal quanto Zeus, e com o fim da raça dos heróis, todos os 73
homens estão igualmente distantes de Zeus . A Justiça, Diké ( Δίκη ), exige uma atitude de comunhão com a ordem do mundo, e não é o fundamento de uma autoridade humana, de uma 74
hierarquia entre os homens. Em última instância, a ordem natural, obra do demiurgo Zeus , se encontra acima da lei dos homens e a desautoriza. Resumindo, Hesíodo não reconhece a 75
autoridade do aristocrata, do sacerdote ou da ágora nos assuntos relativos à propriedade. Para
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A justiça não precisa considerar todos os homens iguais, ela apenas ignora na sua universalidade toda e qualquer particularidade. 74
Não estamos mais na Teogonia, os elementos mitológicos do poema “Os Trabalhos e os Dias” se referem sempre à posição do homem na ordem do cosmos onde Zeus é o demiurgo privilegiado. 75
Ao que tudo indica Hesíodo desconhecia a democracia, em nenhum momento ele vê a ágora como um espaço da razão, onde a lei pode, através da argumentação gnóstica, ecoar a sentença genuína. Na ágora, onde se decide o apelo de Perses, estão presentes somente os basileis (comedores de presentes). Nossa hipótese é que na época de Hesíodo a aristocracia era incapaz de impor sua autoridade sobre os proprietários sem agravar o conflito entra as classes.
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tais assuntos existe uma sentença reta, genuína, o que torna a mediação de um terceiro desnecessária a sentença tem de ser justa em si mesma e, portanto, universal. Essa universalidade pode ser vista como uma alienação da moral dos costumes em uma ética transcendental (mitológica ou religiosa). Mas Hesíodo ainda que tenha conhecido essa universalidade as sentenças genuínas através das Musas, faz dela algo que pode ser alcançado tanto por Perses, o grande tolo Perses ( μέγα νήπιε Πέρση ), quanto por qualquer 76
ouvinteaprendiz , utilizandose unicamente do ensinamento, de uma razão expositiva, e não de um ritual, seita ou revelação. Essa racionalização dos costumes em universalidade é certamente uma reflexão crítica. Mas por mais instigante que seja esse racionalismo, na prática ele servia 77
concretamente como negação da autoridade aristocrata. Em toda a história , a universalização constitui um momento de emancipação frente às estruturas sociais de uma classe particular a universalidade desaparece junto com o caráter progressista do movimento histórico. “[Zeus] com justiça endireita sentenças tu; já eu, a Perses o que é genuíno poria num discurso” (HESÍODO, 2013, vv.910). Tratase, portanto, de endireitar sentenças que se 78
entortaram durante uma disputa com Perses . Mas a disputa não existe no mundo como uma só e sim como duas Érides ( Ἐρίδων ; Disputas, Lutas): uma favorece a guerra e a discórdia, é venerada, pela vontade dos imortais, ainda que mereça reprovação; a outra é boa ( ἀγαθὴ ), pois desperta para o trabalho até mesmo o inapto (vv.1120). Com estas duas Érides, Hesíodo, separa o mundo social ( locus dos conflitos humanos) pondo de um lado a guerra e a discórdia, armas e 79
política , e do outro o sustento ( βίος ἐπηετανὸς , v.31), autodeterminação material da vida, posto 76
Até mesmo por um basileus sábio (vv.202212). É uma oposição importante; aprender o universal é algo possível ao tolo Perses e ao basileus sábio. Quem está excluído desse conhecimento é aquele cujo coração, ou a mente, se encontra dominado pela ganância. 77
Para evitar polêmicas inúteis enfatizamos que a frase trata da história de sociedades de classe.
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É interessante notar que até esse momento nada se sabe de Perses, menos ainda que este seja irmão do poeta. O nome Perses ( Πέρση ) se aproxima da palavra grega para pilhagem ( πέρσις ) ( sacking, LSJ; HESÍODO, 2013, p.31), o que leva a crer que Hesíodo esteja fazendo um jogo de palavras com o que vem a seguir; a pilhagem, reprovável mas venerada, da primeira Éris, e, a “pilhagem” injusta, da segunda Éris. 79
“não te afaste o coração do trabalho a Luta que deseja o mal, para te quedares, fascinado, a escutar querelas na ágora” (vv.2829).
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por Zeus nas raízes da terra ( γαίης ἐν ῥίζῃσι , v.19). Em apenas 41 versos o poeta reduz o basileus aristocrata a uma força destruidora, improdutiva, reprovável, que só é aceita por ser essa 80
uma sádica ( κακόχαρτος , v.28) vontade dos imortais. Na ágora, Hesíodo, vê apenas o roubo (v.34 e v.38). Em contraposição com esse mundo encontramos a terra, de onde o homem tira seu sustento através do trabalho. De fato, é preciso arrancar com fadiga e suor a vida da terra, bem ali onde Zeus com raiva em seu juízo enterrou escondido ( ἔκρυψε , v.47) o sustento como castigo pelas artimanhas de Prometeu. O sustento é uma luta, uma disputa, uma Éris se assim não fosse bastaria um único dia para obter o sustento de um ano (v.4344). Mas como um homem pode saber que essa Éris é a melhor? Vendo rico o vizinho por seu trabalho, vendo a riqueza, concreta, 81
como produto do trabalho, concreto… vizinho inveja ( ζηλοῖ ) vizinho, oleiro ressente ( κοτέει ) oleiro, o artesão ao artesão, o pedinte guarda rancor ( φθονέει ) do pedinte e o aedo do aedo (vv.2526). E o que ocorre com aquele que, estimulado pela outra Éris, procura buscar seu sustento na ágora mirando bens alheios? O que ganha aqui perde lá, quando tiver de alimentar os basileus comedores de presentes ( βασιλῆας δωροφάγους ). “Não te será possível segunda vez
Também a inveja sádica ( ζ ῆ λος [...] κακόχαρτος ) reinará sobre a terra quando Respeito e Retaliação* ( Α ἰ δ ὼ ς κα ὶ Νέμεσις ) abandonarem os homens (vv.195200) passagem da profecia apocalíptica dos versos 180 ao 201. A profecia se fez como previsto, a economia moderna conhece apenas a inveja sádica. [* a tradução de Νέμεσις como “Indignação” feita por Werner, embora correta, não condiz com as exigências concretas do poema, onde não basta a Indignação para preservar a medida da justiça, é necessário que essa indignação se apresente em sua forma concreta como Retaliação ( divine Retribution , LSJ)]. 80
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Não há uma única forma de inveja assim como não há uma única forma de disputa (ver nota 80). Alguns comentadores (e.g. ZARECKI, 2007, p.9) sugerem a boa Disputa, e a inveja por ela estimulada, como uma competição entre os homens pelo sustento. Isso só é admissível enquanto não se confunde com a tese absurda de que Hesíodo introduz a noção de escassez como centralidade da vida econômica (GORDON, 1963, p.149). Um vizinho não cobiça redistribuir, em seu benefício e contra o de seu vizinho, uma quantia estática de riqueza (essa é a má Éris censurada por Hesíodo). Não se trata de distribuição mas de produção, e Hesíodo supõe a disponibilidade do trabalho e dos meios necessários para sua realização. Embora a riqueza, o sustento, apareça no poema como dádiva dos deuses, e o que cabe ao trabalho seja somente colhêla, seria ridículo supor que o aedo limitasse a dádiva de Deméter ou de Zeus. A escassez é algo que definitivamente não passa pela cabeça do poeta beócio. As tentativas de atribuir uma naturalidade à escassez são de um cinismo torturante! Defendem a escassez “ natural ” aqueles que detêm o monopólio social dos meios de produção, i.e., aqueles que excluem socialmente o acesso do trabalhador aos meios de realização do seu trabalho.
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agir desse modo” (vv.3435). Perses sabe disso porque retorna outra vez, mas agora pobre e endividado (v.404 e v.647), tentando roubar o resto de gleba ( κλῆρον ) que pertence a Hesíodo. Nada produzem a assembleia na ágora ou a luta na guerra, a riqueza que vem destas atividades é apenas a pilhagem das posses de outrem ( κτήμασ᾽ ἐπ᾽ ἀλλοτρίοις , v.34). 82
Retornaremos algumas vezes ao tema da riqueza. Por ora diremos que a riqueza é certamente concreta pois é o produto do trabalho. Não de um trabalho qualquer, mas daquele que pertence à um certo tipo específico de trabalhador porque este o conhece e tem os meios necessários de realizálo. De que adiantaria o carpinteiro invejar o agricultor sendo incapaz de 83
emular sua atividade produtiva. Por certo, o basileus em sua condição de aristocrata não inveja nenhum trabalhador, quanto menos emula seus trabalhos – como já vimos, seu lugar é na ágora comendo presentes. Mas eles são assim por serem tolos ( νήπιοι) que “não sabem quão maior é a 84
metade que o todo nem quão grande valia há na malva e no asfódelo” (v.4041) . Os comentadores dessa passagem tornaramna bastante confusa. Lafer (1996, p.25, nt.5), apoiado em Vernant (2002, p.74), sugere que a malva e o asfódelo faziam parte de uma dieta mística que permitia ao sábio Epimênedes separar a alma do corpo, Werner (2013b, p.25) fala de 85
uma mística órficopitagórica, Ferreira (2005, p.93, nt.12) usando West sugere que a passagem
A riqueza a qual nos referimos aqui é aquela fartura ( ἄ φενος ) almejada ao verse o rico ( πλούσιον ) dos versos 2124. O termo utilizado para “rico” deriva de πλο ῦ τος(ν) , que é também o nome do deus da riqueza chamado Pluto, filho de Deméter, deusa da agricultura. Hesíodo nos conta na Teogonia (2013a, vv.969974) que “Deméter a Pluto gerou, diva entre as deusas, (...) em pousio com três sulcos, na fértil região de Creta, (...) quem ao acaso encontra [Pluto], e alcança suas mãos, a esse torna rico [ ἄ φενος , fartura], e lhe dá grande fortuna [ ὄ λβον , afortunado]”. 82
Emular e invejar são duas formas de verter o termo grego ζηλο ῖ (LSJ). Aristóteles captura bem esse sentido de disputa e de inveja/emulação quando utiliza essa passagem do poema para ilustar a oposição interna* entre tirania e democracia; onde a pimeira é a forma final da segunda (Arist. Pol. 1312b15). [*a oposição se dá entre mesmos, ou um é a forma superada do outro]. Para outra discussão sobre a passagem ver Dio Chrysostom, Discourses, 77. 83
Preferimos usar a tradução de Werner (2013b, vv.4041). A escolha por verter ὄ νειαρ como “valia” é delicada e sugerimos “proveito” (LSJ; MOURA, 2012). 84
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O comentário de West (1988, p.75, trad. nossa) diz o seguinte "malva e asfódelo: os mais baratos e simples dos comestíveis. Mesmo essa pobre refeição é melhor que uma mesa cheia que depende da desonestidade" [“mallow and asphodel: the cheapest and plainest of comestibles. Even such poor fare is
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é um elogio da pobreza honesta, Camila Oliveira, cuja dissertação de mestrado é devotada para explicar o verso 40, entende que a questão do todo e do meio trata da atribuição de sentido a uma medida pelo trabalho, “é a conquista de valor, que é a participação na articulação do todo” (2008, p.86) o argumento da autora está amparado na lógica e na linguagem e não deve ser confundido com uma leitura marxiana do poema (tratase de um valor que surge do indivíduo e não socialmente). Se Hesíodo estivesse elogiando a pobreza honesta ele jamais teria escrito o poema que agora analisamos, o cristianismo dessa interpretação de Ferreira chega a ser tocante. Por mais tentador que seja o argumento de Oliveira ele extrapola em muito o poema. E que raios há de místico na passagem em que ele acusa os basileis de dividirem injustamente sua herança? Nada indica que Hesíodo estava preocupado em recomendar uma dieta mística para tornar sábios os basileis. Moura (2012, p.44) e EvelynWhite (1914, p.5) são mais contidos e suas notas 86
esclarecem apenas que a malva e o asfódelo eram parte de uma dieta frugal, simples mas proveitosa. Moura ainda relembra uma máxima grega amplamente aceita, “a justiça reside no 87
meio termo” . No verso 39 o aedo fala da injustiça na divisão da herança feita pelos basileis devoradores de presentes, o que para nós indica que os versos 40 e 41 simplesmente reafirmam que os basileis não possuem medida nem na justiça nem na comida (possível metáfora dos presentes). Eis o que sabemos até agora, e não é pouco:
better than a loaded table that depends on dishonesty”]. Não nos parece que isso seja um elogio da pobreza honesta, embora seja uma condenação da riqueza desonesta. 86
Sobre o asfódelo diz Theophrastus (sec.IV a.C.), "Ele proporciona muitas coisas úteis como alimento: o talo é comestível quando frito, a semente quando torrada, e acima de tudo a raiz quando cortada em figo; de fato, como diz Hesíodo, a planta é extremamente proveitosa" [“It provides many things useful for food: the stalk is edible when fried, the seed when roasted, and above all the root when cut up with figs; in fact, as Hesiod says, the plant is extremely profitable”] (LOEB Enquiry into plant, V.II, p.129, trad. nossa). 87
É claro que não havia na Grécia Antiga uma única “lei” de herança, mas a máxima não visava apenas a herança. Também, e esse é o argumento principal, na Ascra de Hesíodo os filhos dividiam a herança, o que é bastante óbvio dada a disputa com Perses ou também a recomendação no verso 376, “Possa um único filho herdar a casa paterna”.
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O aedo que canta o poema didático reconhece a origem externa dos saberes que deseja ensinar, i.e., o que ele sabe não é particular a nenhum indivíduo e, portanto, não é subjetivo88 – ao contrário dos versos de Ovídio que abrem essa sessão a objetividade não vem da experiência (Ars Amatoria, p.123). O que ele sabe é a própria ordem do mundo, algo que ele conheceu através das Musas e cantou na forma descritiva de um catálogo em sua Teogonia – que nesse caso é também uma cosmogonia. No entanto, agora como poeta didático esse caráter descritivo tem de transformarse em algo diverso, tem de dar lugar a uma prática desse conhecimento. Essa prática só é possível porque o conhecimento é objetivo, universal e normativo e pode, portanto, tornarse meio para um fim – ser objeto para uma ação reflexiva. Hesíodo não é apenas o primeiro poeta didático, mas é também aquele que explicita seu fundamento último, “o melhor de todos é aquele que pensa por si, compreendendo o que em seguida e no fim será melhor” (vv.293294). A subjetividade não está, portanto, na relativização do mundo, em ontologias particulares, mas na capacidade de transformálo em objeto para si através da compreensão das 89
normas do cosmos . Não é transformar o mundo em objeto de compreensão, em uma atitude puramente contemplativa aquilo que Snell, equivocadamente, comemora na lírica grega , mas transformálo em objeto para si através do conhecimento objetivo do mundo. Ou seja, utilizarse do mundo para produzir a si próprio, emanciparse da natureza e tornarse sujeito a poesia didática, para provocar Snell, comemora a práxis. O que estamos falando aqui é completamente oposto à ideia de separação entre corpo e espírito, cisão absoluta de um sujeito abstrato. O "sujeito hesiódico" tem apenas o mundo para produzirse a si próprio, e, portanto, o seu autoproduto é absolutamente mundano e imanente. Antes da emergência do sujeito abstrato da 88
Subjetivo não é, no poema, o conhecimento de algo mas o que fazer, e porque fazêlo, segundo algo que se conhece. A objetividade do conhecimento é o que permite antecipar as consequências das ações (e.g., o destino da polis injusta e o da polis justa, ou ainda, a escolha entre aretê e kakia). 89
O cosmos é o todo normativo, uma totalidade ordenada, o seu conhecimento é na verdade o conhecimento de sua normatividade, da sua ordem. A própria cosmogonia não é outra coisa que o conhecimento da passagem do todo indeterminado até a determinação do todo. O Caos primordial da Teogonia não é a ausência de ordem no universo, mas a ausência de determinação, de forma, é a partir deste que surgem as primeiras formas, Gaia e Tártaro, que moldam o espaço. Seguemse, Eros, força que impede a dissolução das formas o retorno ao indeterminado , e a Noite, que por determinação negativa gerou Dia, ambas formas que inseparáveis moldam o tempo.
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filosofia, limitado apenas por sua razão, todo o sujeito era limitado pelo concreto ou pelo teológico. Tendo em mente que os deuses gregos são parte constituinte do mundo (se não forem sua totalidade) é natural que para Hesíodo a observância das normas religiosas seja tão relevante quanto a obediência as estações do ano ambas constituem o concreto com que o homem se autoproduz. Hesíodo não faz concessão a ordem social dos basileis, como deixa claro em sua fábula do rouxinol e do falcão (vv.202212) essa ordem social não é natural entre os homens (ou deixou de ser com a raça de ferro) e o natural na Grécia Antiga envolve sempre o divino mas um produto da força (que pertence apenas a ordem do mundo animal, não humano). Não é o momento de tratarmos esse aspecto do poema, mas faremos uma breve observação já que ela é 90
necessária; os escravos, e até determinado ponto as mulheres , são tratados pelo aedo não como sujeitos, mas como objetos para si quase uma natureza inanimada, algo que só não se realiza 91
efetivamente pelo trabalho . O que se apresentava para Hesíodo como um obstáculo para a emancipação de seu sujeito (de classe) eram os basileis aristocratas, e não mulheres e escravos. E aqui entramos finalmente na parte mitológica do poema. O homem do poema de Hesíodo não encontrou no mundo concreto um caminho fácil para sua reprodução e autoprodução, em muito o mundo lhe parece hostil. Novamente, esta hostilidade é parte objetiva do mundo, é uma condição dada, ou imposta, pelo demiurgo com a qual o sujeito tem de lidar é uma adversidade, uma luta, uma disputa. Para tanto é preciso compreender "o que em seguida e no fim será melhor”. No mundo não existe apenas uma luta ( Éris ), mas duas. Uma delas vive apenas entre os homens, é a guerra e a discórdia, e deve ser reprovada, embora não possa ser abolida já que é objetiva (vontade dos imortais). A outra é melhor, vive entre os homens e as raízes da terra, é a luta pelo sustento, pela vida ( βίος ), e pode ser mais que a subsistência, até mesmo afortunada, como descreve o poeta no charmoso
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O poema trata muito pouco da reprodução moral dos sujeitos para que as mulheres apareçam com toda a complexidade de relações sobre as quais sua participação era central para a sociedade grega. Trataremos superficialmente desse assunto nos versos em que ele é tematizado (ver aqui por exemplo as notas 120 e 122). 91
A escravidão na antiguidade grega é assunto complicado e foi tratado em separado.
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piquenique de verão (vv.582596). Embora alguns tolos acreditem poder disputar essa luta na ágora, essa Éris só se dobra pelo trabalho fatigante. Aquele que não é tolo, vendo o vizinho rico pelo trabalho, sentese instigado a trabalhar. Dissipando qualquer possível confusão enfatizamos que o aedo não faz nenhum elogio do trabalho, mas sim, e apenas, da vida que ele proporciona. Essa condição do homem, a boa Éris, é objetiva, universal e insuperável para ela não existem desvios ou atalhos.
III.2 Prometeu, Pandora e as cinco raças dos homens We came to the land of the Cyclops race, arrogant lawless beings who leave their livelihoods to the deathless gods and never use their own hands to sow or plough…They have no assemblies to debate in, they have no ancestral ordinances; they live in arching caves on the tops of hills, and the head of each family heeds no other, but makes his own ordinances for wife and children. Homer, Odyssey, IX.113124.
Em “Os Trabalhos e os Dias” o mito já aparece interpretado, ele já se tornou objeto de reflexão e ao contrário de uma descrição de eventos ele é condição para uma ação reflexiva. A primeira reflexão sobre o mito que Hesíodo faz é aquela sobre as duas Érides, e serve para dividir o mundo conflituoso dos homens em dois, aquele entre os homens e aquele entre os 92
homens e a natureza . Essa segunda Éris é predominante em todo o poema e coloca o trabalho ( ergon ) como mediação central entre o homem e seu sustento. Agora, como o trabalho ( ergon ), autoprodução do homem que transforma o mundo em vida, passa a ser o esforço extenuante, o
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A diferença com Homero (e.g. Iliada, IV.439445) ou com sua obra anterior, Teogonia, de uma Éris para duas Érides, é a marca criadora do poeta (ποιέω, criar). Hesíodo transforma a tradição para ajustála à sua exposição.
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labor do trabalho fisiológico ( ponos ) ? Nem toda ação é desprazerosa, nem toda ação é fastidiosa. Certamente, o aedo não reclamaria de beber o vinho biblino à sombra de uma pedra. Os cinco versos (vv.4246) que servem de prelúdio ao mito de Prometeu merecem maior atenção. O argumento de Hesíodo é simples; se os deuses não tivessem ocultado o sustento dos homens ( βίον ἀνθρώποισιν ) bastaria um único dia de trabalho fácil ( ῥηιδίως… ἤματι ἐργάσσαιο ) para ter o bastante por um ano. O último verso dessa passagem é qualquer coisa menos simples. Quem melhor traduz esse verso é Lafer (1996), “trabalhos de bois e incansáveis mulas se perderiam” ( ἔργα βοῶν δ᾽ ἀπόλοιτο καὶ ἡμιόνων ταλαεργῶν , v.46, grifo nosso). O poeta diz literalmente que sem o trabalho humano o trabalho dos animais seria destruído ( ἀπόλοιτο ). Oliveira (2008, pp.8081) percebe a importância desse verso e, para ela, o fato de que os animais trabalhem, mas que sem o trabalho humano esse trabalho seja perdido, é sinal de que caberia ao homem dar sentido ao trabalho animal a partir do sentido do seu próprio trabalho, ou seja, o fazer dos homens proporciona aos animais um poder fazer, este por sua vez está limitado ao que pode cada animal (utilizando o verso 454 ela estende o argumento também aos instrumentos de trabalho). Não fica claro se Oliveira está tratando o “dar sentido ao trabalho” como aquele pôr teleológico que Lukács, e antes dele Marx, tanto enfatizam como algo humano (Ontologia II, cap.I.1) e se fossemos arriscar diríamos que não. Para nós, Hesíodo não atribui nenhum trabalho aos bois e mulas, mas apenas a condição de instrumentos de trabalho. Oliveira não quer concordar com isso porque considera essa instrumentalização um modernismo, uma versão moderna de homem dominando a natureza. Mas isso é um raciocínio mistificado e de ponta cabeça.
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Um erro comum no tratamento dos termos é o seguinte: “Ergon (o trabalho criativo, cujo esforço dignifica o homem) e Ponos (a labuta sofrida, extenuante)”, em Renato Nunes Bittencourt, “O valor sagrado do trabalho em Hesíodo”, p.81. Bittencourt apela para os comentários de Arendt, mas a diferenciação feita por ela é absolutamente forçada em Hesíodo. No poema, erga e ponos podem não ser iguais mas são inseparáveis (o homem não é reduzido a subsistência e o algo mais de seu ser não vem da atividade contemplativa mas dos erga em condição de ponos). Resumindo, no poema o ponos é uma condição dos erga e não uma oposição entre o moral e o degradante.
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A negação do domínio do homem sobre a natureza exige a crítica de uma razão iluminista, mas nem o domínio, que exige consciência da instrumentalização, nem sua negação, que exige a crítica da consciência, eram uma questão para Hesíodo. No entanto, se o agricultor beócio não tinha a consciência de si como uma razão que domina a natureza, não se conclui por isso que relações instrumentalizadas com a natureza não estavam postas concretamente. A natureza não está dada para o homem, ele tem de tomála segundo sua carência obedecendo tanto à legalidade objetiva do mundo quanto as relações técnicas do trabalho concreto ele tem de transformar a natureza segundo suas necessidades (momento incontornável da posse) para perpetuarse como um ser natural (de uma natureza transformada). A “crítica crítica” não pode 94
abolir, fora da ideia, a posse da natureza como momento próprio do trabalho . Quando o boi pasta ele não está trabalhando, é o não trabalho, igual ao leme depositado sobre a fumaça, i.e., quando não é instrumento de trabalho humano não possui nenhum trabalho. O verso diz pouco, mas diz algo importante; só é trabalho a atividade produtora de vida humana, o Ergon é exclusividade dos deuses e dos homens. Sem o trabalho dos homens não há trabalho dos bois, ou do leme, o trabalho deles desaparece, é destruído (claro, a exceção é quando os deuses fazem as coisas trabalharem; e.g. quando Hefestos traz a vida, da ânima, para sua oficina; Escudo de Aquiles, Hom. Il. XVIII.468473). A alternativa de traduzir “erga” ( ἔργα) como “feitos” (os fazeres) e ἀπόλοιτο como “findaria”, ou “perderia”, é válida, mas em nada altera o nosso argumento e facilmente induz conclusões equivocadas. Quando o fazer de um boi não é um feito para o homem ele é um fazer perdido, inútil embora não seja para o próprio boi. Só é trabalho ( ἔργον ) aquilo que, sendo feito pelo boi, resulta em sustento para o homem. O trabalho humano não atribui “sentido” ao “trabalho do boi”, ele converte concretamente o fazer inútil do boi em trabalho humano, em resultado concreto e útil. Acreditamos que o próprio verso traz um termo esclarecedor, o ταλαεργῶν das mulas, ou seja, serem suporte do trabalho ( τλάω + έργον ,
Não é a posse que é moralmente discutível mas a abstração generalizada da natureza em valor de troca – o que torna sua posse não apenas permanente mas sua acumulação necessariamente ilimitada. No entanto, permanecer no plano da discussão moral vale o mesmo que nada. 94
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95
suportar/submeterse ao trabalho, ou ainda, perdurar no trabalho) . Enfim, o trabalho humano torna o boi, o leme, a natureza, matérias de sua autoprodução e objetos para si. Ainda que Hesíodo não o soubesse, o que ele nos diz é que o trabalho humaniza a natureza. Insistimos, isso não é tornar a natureza um objeto para o pensamento humano, mas tornar a natureza concretamente um produto do homem e o homem um algo constituído dessa própria natureza transformada. No contexto da passagem, e da obra como um todo, o trabalho aparece como a atividade que traz ao mundo dos homens o sustento, os meios de vida (vida além da subsistência). Essa atividade é necessária aos homens desde sempre, antes e depois dos deuses esconderem o sustento. No hipotético mundo sem castigo do verso 43 o que muda é que o trabalho é fácil e dura apenas um dia por ano, o trabalho (ergon) não é o castigo, o castigo é o doloroso labor 96
(ponos) . Isso é o que confirma tanto o mito de Prometeu quanto o mito das cinco raças, o 97
mundo antes de Pandora e antes da raça de ferro . O doloroso labor (ponos) é a condição do trabalho após Pandora, e é exatamente isso que a sequência dos versos procura mostrar. Sem Pandora o trabalho (ergon) era fácil, é somente depois da abertura da jarra, quando o sustento é
95
É o que Lafer traduz por “incansáveis” e Werner por “robustas”. Nossa intenção não é questionar a tradução mas explicar o termo no contexto do verso. “A troco de penas , vendemnos os deuses tudo quanto há de bom”, Xenofonte atribui essa máxima a Epicarmo, comediógrafo do início do século V a.C., provavelmente de Siracusa (2009, p.121). No original, “τ ῶ ν πόνων πωλο ῦ σιν ἡ μ ῖ ν πάντα τ ἀ γάθ ᾽ ο ἱ θεοί”, (Xen. Mem. II.1.20). 96
97
Como exposição da condição humana Hesíodo se utiliza tanto do evento – Pandora – como do processo – “queda” das raças. Não há necessidade alguma de localizar o tempo de um mito no de outro. Em qualquer caso o mito ocorre sempre em um tempo indeterminado e culmina em uma origem inalcançável. Em Homero, apesar dos inúmeros exemplos de degradação entre uma geração e outra – principalmente a perda de força , a linhagem semidivína dos basileis é invocada a todo momento. Para Hesíodo, o fim da raça dos heróis e o surgimento da raça de ferro dissolve essa continuidade das linhagens enquanto Pandora universaliza a condição humana. Toda a tradição mitológica coloca os heróis em um tempo pósPandora, o próprio Hesíodo conta que Héracles* libertou Prometeu de seu castigo (Teogonia, vv.526531), o que condiz com o constante sacrifício e sofrimento dos heróis, mas tudo isso veio a termo com o fim dessa raça. [*Aproveitamos a oportunidade para sugerir que Héracles não executa doze trabalhos mas sim batalhas , Άθλοι του Ηρακλή].
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escondido e alcançálo exige esforço, que o termo labor ( πόνοιο , πόνων πόνος , ponos) aparece no poema (v.91 e v.113). Lembremos que o sustento é dado pelos deuses, principalmente por Deméter, e que a 98
riqueza é natural e não um produto do trabalho , a natureza fornece tudo o que é útil, o trabalho antes de Pandora tinha apenas de colhêla, agora tem de lutar por ela. O trabalho não é uma atividade produtora de riquezas, mas uma atividade produtora do próprio homem, que com a “queda” das raças e as artimanhas de Prometeu tornouse uma atividade fisiologicamente extenuante o milagre do parto não é isento de dores. Existe uma infinidade de análises do mito de Prometeu ou das cinco raças dos homens, versando sobre os mais diferentes temas e assuntos. Para nós, o que cabia dizer aqui já foi dito. O trabalho não nasce com Pandora ou com a raça de ferro, ele se transforma. Como atividade produtora do próprio homem, as transformações do trabalho são também transformações do próprio homem. Daí a autoprodução do homem ter mudado sua qualidade, e não apenas sua quantidade. Durante a raça de ouro, quando afastados do labor ( ἄτερ τε πόνων, v.113) cabia aos 99
homens, voluntária e tranquilamente, repartirem os frutos dos trabalhos (ROLIM, 2012, v.119) , a vida social era ocupada por festejos ( θαλίῃσι , v.115). Na sequência vieram os mimados (nutridos pelas mães) e eternamente infantis (pois morriam jovens) homens de prata, estes viviam apenas para a violência ( ὕβριν , v.134) recíproca, e assim pouco tempo vivam. Depois, raça de bronze, com grande força ( μεγάλη δὲβίη , v.148) e mãos intocáveis, feita de bronze, com casas de bronze, armas de bronze e com o bronze trabalhavam ( χαλκῷ δ᾽ εἰργάζοντο ) 100
porque não comiam pão ( οὐδέ τι σῖτον ἤσθιον , vv.146147.) , se ocupavam apenas da guerra sangrenta ( Ἄρηος ἔργ ᾽ ἔμελεν, trabalhos de Ares, vv.145146) e nela se acabaram (v.152). Outra 98
No melhor estilo “quasefisiocrata” certamente bem mais afins com o pensamento hesiódico do que os neoclássicos. No entanto, o trabalho (ergon) não viza produzir o sustento do homem mais o próprio homem. Apenas na sua forma abstrata, na formavalor, é que o trabalho ao invés de autoproduzir o homem passa a produzir também, e centralmente, riqueza abstrata (formadinheiro). 99
ο ἳ δ ᾽ ἐ θελημο ὶ ἥ συχοι ἔ ργ ᾽ ἐ νέμοντο σ ὺ ν ἐ σθλο ῖ σιν πολέεσσιν .
100
West (1988, p.75) entende desse verso que os homens da raça de bronze se alimentavam daquilo que cresce selvagem e complementavam essa alimentação com carne. Discordamos dessa interpretação.
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melhor, a linhagem dos heróis, destruíramse uns aos outros nas guerras de Tebas e de Tróia. Finalmente a raça de ferro, onde nasceu Hesíodo, entregue à fadiga, à agonia e aos duros tormentos. Essa última raça, que também é a nossa, já não pode mais viver em festejos, ou se ocupar com a violência reciproca, nem com a guerra sangrenta ou com a heroica, pois condenada ao labor extenuante tem de trabalhar para retirar pelo suor o sustento da terra. Essa raça não terá destino diferente das outras, porque com tortas sentenças o mau prejudicará o homem melhor (v.193) até que Respeito e Retaliação, partindo para o Olimpo, abandonem os homens sem defesas contra o mal (v.201). Não é a pouca fé na humanidade que nos interessa destacar no poema, mas sim que a condição do trabalho extenuante e prolongado (ponos) coloca ele, o trabalho (ergon), no centro da vida individual. Apenas neste mundo, depois de Pandora e com a raça de ferro, é que o oikos, como local de trabalho, tornase o centro da vida social (relações de vizinhança). Os cantos épicos do passado estão desautorizados, Hesíodo rompe com a tradição homérica que sustenta a elite arcaica, e o seu poema canta apenas o presente hesiódico – até 101
mesmo seus mitos terminam invariavelmente no nosso tempo . A ordem expositiva do poema é precisa e sua unidade temática é patente, contradizendo algumas análises que tratam o poema como uma colagem de temas e tópicos descontinuados (WERNER, 2013b, p.12). Nisso incorrem com regularidade aquelas análises estruturais dos 102
mitos feitas a la e contra Vernant que simplesmente arrancam à fórceps passagens inteiras do contexto da obra. Não se trata de uma oposição ao método, sua possível validade está, de fato, no mito, mas não se confunde com a obra, onde o mito é utilizado em um objetivo, se não maior, ao 103
menos diferente . Começamos com o trabalho, continuamos com o trabalho e seguiremos com 101
A mesma “oposição” temporal aparecerá no Período Clássico entre a comédia e a tragédia.
102
Püschel dedica um artigo para mostrar como Vernant ajuda a devolver a unicidade interna do poema. O sucesso de Vernant é inegável para aquilo que ele se propõe, encontrar uma unidade estrutural e lógica no poema. Mas o que se segue é lastimável quando sua análise serve para outros tragarem o poema inteiro para o interior da estrutura mental do mito. A referência do artigo é PÜSCHEL, R.. “Sintaxe poética de Os Trabalhos e os Dias”. Sinergia, São Paulo, v. 11, n. 2, p. 176181, jul./dez. 2010. 103
E não dizemos isso contra Vernant mas com Vernant; "Mas Hesíodo repensou o tema mítico em seu conjunto em função de suas próprias preocupações. Nós devemos, portanto, tomar a história como se apresenta no contexto dos Trabalhos e Dias, e nos questionar qual é, sob essa forma, seu significado" [“Mais Hésiode a repensé le thème mythique dans son ensemble en fonction de ses préoccupations
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o trabalho como tema central. É importante ressaltar isso porque agora o poema parece dar um salto rumo à justiça e à ética. Nada mais natural, uma vez que a ordem social não se funda mais na força ou na honra (idealmente para o nosso poeta) é preciso refundála em um princípio de justiça que se oponha radicalmente ao uso desmedido da força. O termo desmedida, que em grego é húbris ( ὕϐρις ), já foi visto anteriormente no poema e também tem o sentido de “violência” (até porque essa é o uso desmedido da força) mas ganhará uma importância significativa na passagem seguinte. Justiça ( Δίκη ) e desmedida ( ὕϐρις ) ganham forma por oposição. Na presença de boa Éris, Disputa, justa é a certa medida das coisas, quando o meio é 104
maior do que o todo (v.40) . III.3 "E agora contarei uma fábula aos reis, sábios que eles sejam" (v.202). No entanto, em seu desejo de provocálo, ele disse: "Mas tome Hesíodo, Alexander; você o julga como de pouca importância como poeta?" "Não, eu não", ele respondeu, "mas de toda a importância, embora não para reis e generais, eu suponho." "Bem, então, para quem?" E Alexander respondeu com um sorriso: "Para pastores, carpinteiros, e agricultores". Dio Chrysostom, Discourses II.8, trad. nossa105
Sem querer julgar até onde vai o amor entre irmãos, por vezes é difícil acreditar que toda essa energia criativa de Hesíodo seja desperdiçada em um péssimo fulano como Perses. Eis que
propres. Nous devons donc prendre le récit tel qu'il se présente dans le contexte des Travaux et des Jours, et nous demander quelle est, sous cette forme, sa signification”] (1960, p.24, trad. nossa). Apesar desse acordo nossa análise não segue a dele. 104
Seja lá o que for esse meio, dada uma proporção aritmética ou geométrica (justiça corretiva ou distributiva. Aristot. Nic. Eth. V). Também estamos cientes que Hesíodo recomenda retribuir sempre mais, o que não altera em nada sua fórmula de justiça já que o “mais” exige o “meio” como medida (vv.349351). 105
"Nevertheless, in his desire to arouse him, he said, "But take Hesiod, Alexander; do you judge him of little account as a poet?" "Nay, not I," he replied, "but of every account, though not for kings and generals, I suppose." "Well, then, for whom?" And Alexander answered with a smile: "For shepherds, carpenters, and farmers". Diálogo entre Alexandre III, o Grande, e seu pai Filipe II.
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agora o poeta beócio quer falar para os basileis mesmo que eles já saibam (como se até agora ele não estivesse falando) tamanha presunção para um frágil aedo. Para tudo o que se segue é 106
preciso guardar com atenção os versos 274279 : Oh Perses, tu essas coisas em tua mente lança, ouve Justiça e a força [ βίης ] de todo esquece. Essa norma [ νόμον ] para os homens o Cronida ordenou, para peixes, feras e aladas aves se entredevorarem, pois Justiça não está entre eles. Aos homens deu Justiça, que de longe o melhor é
Com exceção das raças de ouro e de ferro todas as demais foram dominadas pela violência ( ὕβριν ) e pela força ( βίης ), mas como vimos as coisas mudaram com a chegada do trabalho extenuante (ponos), e, embora seja amargo o nosso destino, enquanto estiverem entre nós Respeito e Retaliação haverá defesa contra o mal. A fábula (de onde se tira sempre uma lição, normalmente chamada moral da história) que Hesíodo dirige aos basileis (vv.202212) trata de um rouxinol cantor ( ἀοιδὸν ) cuja sorte se encontra nas garras de um falcão mais forte seria impossível ser mais explícito. Esse tema talvez não fosse novo e certamente corria entre os gregos como um dito popular. O fabulista Esopo, ele próprio provavelmente um escravo trácio 107
do século VI a.C. , tem uma versão dessa fábula que reaparece em várias versões desde a Idade 108
Média até La Fontaine : Um falcão que estava caçando um coelho pousou no ninho de uma rouxinol, lá encontrando alguns filhotes. Quando a rouxinol voltou, ela implorou ao falcão para poupar os filhotes. O falcão disse, "eu vou conceder o seu pedido, se você me cantar uma bela canção". Mesmo reunindo toda a sua coragem, a rouxinol ainda tremia de medo. Aterrorizada, ela começou a cantar, mas sua canção estava repleta de aflição. O falcão que cercava seus filhotes exclamou: "Essa não é uma bela canção!" Ele então apanhou um dos filhotes e o engoliu. Enquanto isso, um caçador de pássaros se aproximou 106
Quem nos chamou a atenção para a relação entre esses versos e a fábula foi Annie Bonnafé em Le rossignol et la justice en pleurs (Hésiode, Travaux 203212). In: Bulletin de l'Association Guillaume Budé, n°3, octobre 1983. pp. 260264). Para a citação utilizamos WERNER, 2013b. 107
Herodotus, The Histories, Hdt. 2.134.
108
A lição da fábula de La Fontaine (IX.18) está expressa em seu último verso, “uma barriga vazia não tem ouvidos”.
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por trás e furtivamente levantou seu laço: o falcão foi pego na pegajosa armadilha e caiu no chão. 109
Aesopica, Perry 567, trad. nossa
Essa versão de Esopo é considerada apócrifa, mas sua lição há sempre um terceiro mais forte – se aproxima daquela de Hesíodo. A fábula narrada por Hesíodo parece ter como lição o verso 210 onde diz “Insensato é quem quer medirse com os mais fortes” (ROLIM, 2012), mas, devolvendo a fábula ao seu contexto este verso chega a soar irônico. Com efeito, o poeta e seu irmão não devem se bater com os basileis mais poderosos, o que causa um estranho efeito de inversão no discurso. Enquanto se dirige aos basileis parece estar falando com seu irmão Perses e em seguida quando se dirige ao seu irmão Perses parece estar falando com os basileis (vv.213218, WERNER, 2013b): Oh Perses, escuta Justiça e não fomentes Violência (ὕβριν): violência é nociva no mortal miserável, e nem o nobre é capaz de fácil suportála, mas a ela sucumbe ao topar desastres. Caminho distinto de percorrer é mais forte, o rumo ao justo: Justiça (Δίκη) sobrepuja Violência (Ὕβριος) ao se consumar; e após sofrer o tolo aprende.
A Era onde governava a força e a violência é passado, mais forte agora é a Justiça. Talvez um tolo ainda não saiba disso mas aprenderá sofrendo, seja ele um miserável como Perses ou um nobre basileus. E se a Justiça é mais forte então o verso 210 pode ser compreendido por qualquer um que não sendo tolo é um basileus sábio; “ Insensato é quem quer medirse com os mais fortes ”. Mas o poeta não se contenta em apenas acusar de tolo aquele que governa pela força e 109
"A hawk who was hunting a rabbit alighted in a nightingale's nest and found her baby chicks there. When the nightingale returned, she begged the hawk to spare the chicks. The hawk said, 'I will grant your request, if you sing me a pretty song.' Even though she mustered all her courage, the nightingale trembled with fear. Stricken with terror, she started to sing but her song was full of grief. The hawk who had seized her chicks exclaimed, 'That is not a very nice song!' He then snatched up one of the chicks and swallowed it. Meanwhile, a bird catcher approached from behind and stealthily raised his snare: the hawk was caught in the sticky birdlime and fell to the ground". ("The nightingale, the hawk and the bird catcher” In Aesop's Fables. A new translation by Laura Gibbs. Oxford University Press (World's Classics): Oxford, 2002). No Index, Perry 4 da Aesopica a fábula repete quase na integra a versão de Hesíodo.
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pela violência acima da Justiça e da ordem de Zeus (recordemos, aquela do mundo pósPandora), com um sarcasmo destruidor ele acusa quem vive sem a norma ( νόμον ) de Zeus, como as raças governadas pela força, de viverem como animais! (vv.274279). O que poderia ser mais irônico que um poetacantor, um aedo frágil como um rouxinol, chamando os fortes basileis comedores de presentes de animais? Fazendo isso pedindo que sejam sábios para compreender a fábula que tem por aparente lição “Insensato é quem quer medirse com os mais fortes”. A época de Hesíodo, o período arcaico, é aquela onde começa a ganhar centralidade a ideia do bárbaro como aquele que vive sem o governo de uma norma medindose uns com os outros unicamente pela força – algo que ninguém na Hélade gostaria de ser. A noção de bárbaro irá assumir o lugar de 110
differentia specifica entre os gregos e o resto do mundo . O que teria passado pela cabeça do 111
poeta beócio ao ouvir o canto homérico onde Odisseu afirma: I did not care about farm work, nor the frugal home life of those who would bring up children. My delight was in ships, fighting, javelins, and arrows things that most men shudder to think of; but one man likes one thing and another another, and this was what I was most naturally inclined to. Hom. Od. 14.3 ; vv.221228 c.XIV, 1919. 112
Embora não seja em nada semelhante a um espartano, como seria Tirteu , é Hesíodo, ou melhor, seu “modelo social e político”, quem melhor explica a dinâmica daquela polis. Para viver absolutamente livre do trabalho em uma comunidade de homoioi ( ὅμοιοι ; os iguais espartanos), o cidadão de Esparta tem de viver integralmente pela força, usando a violência para reduzir todo um povo a servidão da hilotagem. Daí é perfeitamente compreensível que os homoioi espartanos tivessem o hábito de renovar oficialmente, ano após ano, a declaração de guerra contra sua própria força de trabalho! (CROIX, 1981, p.149). Não estamos dizendo que
110
Arist. Pol. VII.2.57; 1324b329.
111
Obviamente estamos nos utilizando de retórica. Hesíodo não pensaria nada, já que Odisseu é do tempo da raça dos heróis. Outra “curiosidade” nessa passagem é que nela já está o “Eu que prefere”, em um épico anterior a lírica. 112
Arist. Pol. 1306b35 (L.V.cap.6).
58
Hesíodo reprovaria os lacedemônios pelo uso do trabalho forçado, ele mesmo não demonstra qualquer simpatia por seus escravos. O que dizemos aqui é que através do poeta é possível perceber que na antiga Hélade o não trabalho se equivale à guerra constante – já citamos antes o diálogo de Platão onde a pólis aparece como mobilização constante para a reprodução do 113
trabalho forçado . Faremos um último desvio literário antes de voltar aos Erga . Aquele que nos acompanha é novamente Esopo, mas no lugar do falcão quem tem agora o rouxinol em suas garras é um trabalhador: Durante as noites de verão um certo trabalhador ia se deitar ouvindo a canção de um rouxinol. Tão satisfeito com aquilo ele estava que na noite seguinte preparou uma armadilha e capturou o rouxinol. "Agora que eu te peguei", exclamou ele, "você cantará sempre para mim". "Nós rouxinóis nunca cantamos em uma gaiola." disse o pássaro. "Então eu vou te comer", disse o trabalhador. "Eu sempre ouvi dizer que um rouxinol com torradas é um petisco saboroso". "Não, não me mate", disse o Rouxinol, "mas deixeme livre e eu vou te dizer três coisas muito mais valiosas do que o meu pobre corpo". O trabalhador então soltou o pássaro, e ele voou até o galho de uma árvore e disse: "Nunca acredite na promessa de um cativo; essa é uma das coisa". Então, novamente: "mantenha o que você tem. E o terceiro conselho é: não lastime sobre o que está perdido para sempre". E então o pássaro cantor voou para longe. 114
Aesopica, Jacobs 58, trad. nossa
Já apontamos que Hesíodo retorna sempre ao concreto, após tantos versos mitológicos é hora do aedo mostrar a diferença entre uma polis justa e uma injusta. Na polis justa, onde os basileis não entortam sentenças em benefício próprio, i.e., naquela onde os basileis não 113
Platão, Rep. IX.578d.
114
"A Labourer lay listening to a Nightingale's song throughout the summer night. So pleased was he with it that the next night he set a trap for it and captured it. "Now that I have caught thee," he cried, "thou shalt always sing to me". "We Nightingales never sing in a cage." said the bird. "Then I'll eat thee." said the Labourer. "I have always heard say that a nightingale on toast is dainty morsel". "Nay, kill me not," said the Nightingale; "but let me free, and I'll tell thee three things far better worth than my poor body." The Labourer let him loose, and he flew up to a branch of a tree and said: "Never believe a captive's promise; that's one thing. Then again: Keep what you have. And third piece of advice is: Sorrow not over what is lost forever." Then the songbird flew away". “The Labourer and the Nightingale” In : The Fables of Aesop, by Joseph Jacobs with illustrations by Richard Heighway (1894).
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governam pela força, jamais a guerra funesta lhes decreta Zeus, jamais aos homens de reta justiça acompanha a Fome, o sustento é abundante e em festejos gozam os frutos do árduo trabalho – já sabemos que mesmo a terra (Gaia) muito ofertando, o trabalho árduo é necessário para dela retirar o sustento abundante (vv.225237). Em resumo, quando os basileis não interferem na ordem de Zeus o árduo trabalho colhe livremente o que a terra fértil oferece. Na polis injusta pagam todos pela húbris ( ὕϐρις) de um só. Nela, se arruínam as fazendas/casas ( οἶκοι , oikoi, v.244), segue a fome e a peste, em guerras perdem seus exércitos e quando 115
desesperados se lançam ao mar, alí o Cronida destrói suas embarcações (vv.238247). Paga todo um povo ( δῆμος ) pela iniquidade dos basileisis ( ἀτασθαλίας βασιλέων , vv.260261). Agora nem eu próprio desejaria ser justo entre os homens nem sequer o meu filho, visto que é mal ser homem justo, se recebe melhor justiça o homem mais injusto. (vv.270272, FERREIRA, 2005).
Por ser condicional é que a justiça de Hesíodo funciona ou degenera, uma polis injusta mesmo em uma única parte produz cidadãos injustos em totalidade. Já que citamos Homero, estamos falando de Húbris e Diké e em breve falaremos de Timé ( τιμή , honra), é importante fazer uma ressalva. Embora por princípios bastante distintos daqueles de Hesíodo, também em Homero a húbris (desmedida) individual arrasta todos os homens para um destino comum – aqui, no entanto, tratase de não medir adequadamente a timé de um outro. Na Ilíada, Agamemnon é injusto ao não medir a timé de Aquiles (tomandolhe Briseida), causando o prolongamento da guerra de Tróia e grandes desgraças; na Odisseia, os pretendentes de Penelope diminuem a sua timé (devorando seu patrimônio ao invés de ofertar presentes), o que não apenas destrói muitas linhagens entre os basileis de Ítaca como por pouco não conduz a uma gerra total na ilha. O inverso também está presente em Homero: na Ilíada, restaurar a timé entre os gregos é a peça central nos jogos funerários de Pátroclo; na Odisseia, reconhecer a timé dos adversários durante os jogos de Alcíno na ilha de Esquéria (ou Feácia, atual Corfu) é o que leva Odisseu para casa, e 115
O verso pode tanto fazer referência ao comércio atrás de alimentos quanto àqueles que partem em busca de novas terras, como o próprio pai de Hesíodo (quem sabe até mesmo fundar colônias).
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o reconhecimento da timé dos demais basileis de Ítaca é o que impede sua destruição total. No entanto, em Homero a medida certa é sempre aquela da timé e o trabalho não tem nenhuma função. 116
III.4 auri sacra fames ou “quando a vontade de ganho seduz a mente ” Quanto à riqueza, não há um limite claro definido para o homem; para os que têm hoje as maiores riquezas entre nós, estes têm duas vezes a ânsia que os outros têm; e quem pode satisfazer todos? Certamente nossas posses tornamse loucura, e uma ruína se revela logo além, quando um homem tem agora e um outro então, sempre que Zeus a envia em sua miséria. The Elegiac Poems of Theognis of Megara, Book 1, 227232, trad. nossa117
O poeta inicia aqui (v.286) as recomendações e sentenças sobre o trabalho (dirigidas ao grande tolo Perses; μέγα νήπιε Πέρση ). Embora Hesíodo abra com a já bastante conhecida máxima que opõe o caminho fácil da miséria ao áspero caminho da riqueza, a introdução de alguns termos como aretê ( ἀρετή ) e aidos ( αἰδὼς ) complicam sobremaneira a análise. Até o final dessa subseção não estamos interessados na correspondência entre uma palavra em português e um termo grego, o que nos interessa é o sentido dos versos. A primeira relação complicada é aquela entre trabalho e Excelência; isso é como Werner (2013b) traduz ἀρετή , outros traduzem como Mérito e é exatamente isso que queremos evitar (2005, v.289). O problema da tradução de aretê como “Mérito” é o mesmo que de sua tradução por “Virtude” para textos anteriores ao século V a.C., ou seja, a ideia de medida do merecimento de um homem e de
116
Livre tradução nossa do verso 323, ε ὖ τ ᾽ ἂ ν δ ὴ κέρδος νόον ἐ ξαπατήσ ῃ .
" As for wealth, there's no end set clear for man; for such as have today the greatest riches among us, these have twice the eagerness that others have; and who can satisfy all? 'Tis sure our possessions turn to folly, and a ruin is revealed thereout, which one man hath now and another then, whenever it be that Zeus send it him in his misery ". 117
61
seu valor moral (sua inclinação para fazer o bem e o bom)118. A tradição concorda sobra a inexistência de um sentido moral do termo aretê até o século V a.C. (SNELL, 2012, p.167 e pp.251252; HESÍODO, 2005, p.103, nt.42). A aretê, Excelência, aparece em Hesíodo como algo externo ao homem e que tem de ser alcançado com suor ( ἱδρῶτα , v.289), ela também não é a riqueza ou o renome, pois renome e aretê acompanham à riqueza ( πλούτῳ δ᾽ ἀρετὴ καὶ κῦδος ὀπηδεῖ, v.313). A noção moral de aretê, ou seja, aquilo que entendemos como uma leitura equivocada do poema, é o que produz a opinião comum de uma moral do trabalho em Hesíodo. “Trabalho não é reprovável para ninguém, reprovável é não trabalhar” (ἔργον δ᾽ οὐδὲν ὄνειδος , ἀεργίη δέ τ᾽ 119
ὄνειδος . v.311, trad. nossa) não implica que o trabalho aumente a dignidade do homem, mas apenas que não trabalhar é motivo de reprovação. Quem não trabalha é detestado por mortais e imortais (v.303), quem trabalha é mais querido por mortais e imortais (v.309310). Por que? Porque quem não trabalha vive do trabalho de outrem, assim como a metáfora dos zangões nos 120
versos 304306 (e Teogonia, v.594602) , e Hesíodo já deixou suficientemente claro que essa forma de injustiça leva a destruição de homens e de poleis. Daí não se tira que alguém possa prejudicar um suplicante (v.327) ou reprovar um homem por sua pobreza (vv.717718), o reprovável é aquele que sem trabalhar procura tomar os bens ( χρήματα ) alheios, ou adquirir grande fortuna ( μέγαν ὄλβον ) pela força das mãos ( χερσὶ βίῃ ) ou saquear por meio da língua ( γλώσσης ληίσσεται ) (vv.320322). Vale a pena destacar que nessa passagem Hesíodo separa o 118
O termo aretê podia ser usado de diversas maneiras. Para Teógnis de Mégara a aretê que ele buscava era ser feliz e querido pelos deuses imortais, εὐδαίμων εἴην καὶ θεοῖς φίλος ἀθανά τοισιν, Κύρν᾿· ἀρετῆς δ᾿ ἄλλης οὐδεμιῆς ἔραμαι. (vv.653654, LCL 258. p.268). 119
Na tradução do grego para o inglês de West (1988, p.46) o verso aparece como “Work is not reproach, but not working is a reproach”. 120
Nessa passagem da Teogonia a metáfora é utilizada para falar da mulher como parceira de feitos aflitivos, que, como o zangão faz com a abelha, se alimenta do trabalho do homem sem produzir alimentos ela mesma. Hesíodo não ignora que a mulher trabalha (vv.6364 e v.405), até mesmo reconhecendo sua importância, ele apenas não reconhece nenhum estatuto de igualdade desses trabalhos – mas isso decorre dele não reconhecer um estatuto de igualdade entre homens e mulheres. Em tudo a mulher aparece como ambiguidade, uma forma de fornecer o mal pelo bem a mulher é um bem que traz consigo o mal (Teogonia, v.585 e v.602; Trabalhos e Dias vv.5758). O nome Pandora faz referência àquela que é portadora de todas as dádivas (vv.8081).
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roubo, furto de patrimônio alheio, no verso 320, da grande fortuna obtida pela força das mãos ou 121
por meio da língua. Em ambos os casos (força e palavra) apenas a guerra e a política podem dar origem as grandes fortunas e é razoável imaginar isso como mais um ataque do poeta aos basileis – é abstrair do bom senso acreditar que grandes fortunas venham de pequenos golpes na praça. Resumindo, o trabalho não é uma virtude, o roubo, a pilhagem e a política corrupta é que são desonrosas – quando não desastrosas. A comparação feita por Hesíodo é com aquele que faz algum mal ao suplicante, ofende órfãos, briga com o pai ancião ou que pratica atos impróprios 122
com a esposa do irmão. Em todos os casos a ação ocorre contra pessoas vulneráveis . Se trabalhar é como não bater no pai ancião então dificilmente isso tornaria alguém honrado. Isso não é suficiente para superar as leituras moralistas do poema mas serve ao propósito dessa monografia. Retornando à aretê, entendemos que se trata da qualidade do trabalho, a maneira como ele é executado e o compromisso que se tem com ele. O simples aumento quantitativo dos trabalhos (erga) é o labor (ponos), a aretê coloca uma determinação qualitativa nos trabalhos que é sua execução adequada e ordenada (v.306). A aretê se vê no resultado a riqueza , mas não se confunde com esse resultado pois acompanha o mesmo. A aretê é fazer um trabalho com excelência, mesmo que ele seja um labor doloroso (ponos) e exija suor ( ἱδρῶτα ). Aliás, é justamente pelo ponos que o trabalho pede aretê , “Ó covarde, não procures o que é macio, não
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Odisseu é a personificação daquele que sabe usar da força e da palavra para vencer os desafios. Porém, o dom da palavra é quase inseparável da arte de enganar o adversário. O caso mais ambíguo é o da tragédia de Sófocles, “Filoctetes”, onde Odisseu busca a qualquer custo, pela força ou através de mentiras, recuperar o arco de Héracles que se encontra com Filoctetes – recuperar o arco de forma “honesta” é a única alternativa que não passa por sua cabeça. 122
Fica claro nessa passagem que Hesíodo considera a mulher vulnerável, seja por sua fraqueza de “espírito” (caráter, ou desejo irrefreável) ou por ser considerada fisicamente mais fraca que o homem. A tradição grega reserva Eros apenas ao amor entre homens, entre homens e mulheres intervém apenas Afrodite. Também no mito de Pandora, tanto na Teogonia como nos Trabalhos e Dias, dos deuses que participam da sua criação temos Afrodite mas não temos Eros. Mudar essa tradição será como desatar o nó górdio, tarefa a que se propõe Plutarco em seu “Diálogo Sobre o Amor”. No entanto, Plutarco sugere que na prática as coisas não funcionavam bem assim (2009, p.57). Não nos deixemos enganar! Plutarco não defende uma igualdade entre homens e mulheres, seu desejo é unicamente aumentar a dignidade (e importância social) da família introduzindo Eros nessa relação.
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vás ficar com o que é duro” (XENOFONTE, 2009, p.121122) . Para quem deseja o macio, o 124
suave ( μαλακὰ ) , o caminho é o duro trabalho árduo. No verso 289 aretê aparece em contraposição com kakotita ( κακότητα ) no verso 287, e essa oposição entre aretê ( Ἀρετὴ ) e 125
kakia ( Κακία ) é regular na tradição grega . Uma das referência mais famosas dessa oposição é o mito de Héracles contado por Pródico e que Xenofonte recupera (Memoráveis II.1.2134, 2009, p.121127). Nesse mito, Héracles, chegando à adolescência, se encontra indeciso sobre o seu futuro e resolve procurar um lugar tranquilo para refletir sobre qual caminho o levará à 126
felicidade ( εὐδαιμονία ), o que segue é um típico agon . Enquanto Héracles pensava aparecem duas mulheres, Aretê e Kakia, a primeira de aspecto digno, postura recatada e singelamente ornamentada, e a segunda de aspecto mole, se vestindo de modo a exibir sua juventude e maquiada para parecer o que não era. Kakia promete um caminho mais agradável e fácil, repleto de prazeres e livre de dificuldades, chamando a si própria de Felicidade ( Εὐδαιμονίαν ) enquanto seus inimigos chamamna de Maldade ( Κακίαν ). Responde então Aretê dizendo: Não te vou enganar com introduções sobre prazer; vou, sim, expor a verdade [ἀληθείας] sobre a qual os deuses estabeleceram quanto existe. De quantas coisas boas [ἀγαθῶν] e belas [καλῶν] existem, nenhuma deram os deuses ao homem sem dor [πόνου] e sem cuidado [ἐπιμελείας] (...) se queres que a terra te dê frutos em abundância, terás de cuidar a terra; se julgares que te é necessário enriquecer criando gado, terás de te preocupar com esse gado ; se ambicionas tornarte poderoso através da guerra e queres ser capaz de libertar os teus amigos e subjugar os teus inimigos, terás de aprender as artes da guerra, junto de aqueles que as conhecem, e praticálas de modo a poderes fazer uso delas quando o necessitares. Se queres que o teu corpo seja forte, tens de o habituar a submeterse à inteligência e exercitálo com esforço e suor [πόνοις καὶ ἱδρῶτι]. XENOFONTE, 2009, pp.124125; Memorabilia . 2.1.28.
Epicarmo, ver nota 96. No original, “ ὦ πονηρέ, μ ὴ τ ὰ μαλακ ὰ μ ῶ σο, μ ὴ τ ὰ σκλήρ ᾽ ἔ χ ῃ ς” (Xen. Mem. II.1.20). 123
Ao que parece o comediógrafo deseja fazer uma ironia usando o campo semântico de μαλακ ὰ que envolve tanto a noção de maciez e suavidade quanto de afeminado e covarde. 124
Outros exemplos são Ἀ ρετ ὴ e Κακία no trabalho de escravos (ARISTÓTELES. Econômicos. 2011, p.12) e Ἀ ρετ ὴ e Κακία nas definições de qualidade e movimento (ARISTÓTELES. Metafísica. 5.1020b). 125
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Disputa verbal, um debate, que permite resolver um dilema e, assim, desobstruir uma ação.
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Como esperado, no final do agon Héracles escolhe seguir o caminho da Aretê . Em seu poema, Hesíodo, também aponta dois caminhos; o da κακότητα , que a maioria dos tradutores verte como Miséria, e o da aretê, traduzido como Excelência (Werner, 2013b; Lafer, 1996), Mérito (Ferreira, 2005), Virtude e até mesmo prosperidade (Rolim, v.289 p.91; “mérito” no 128
v.313, p.95) . No entanto, devese aproximar com cuidado Pródico e Hesíodo, pois no primeiro a aretê já possui um atributo moral, é o caminho para a Felicidade que deve ser escolhido por ser 129
o certo (o Bem) . Já Hesíodo não indica nenhum caminho do bem abstrato, nele nunca encontramos o “fazer o certo pelo certo”, ao contrário, ele sempre apresenta a oposição entre riqueza ou miséria para justificar as ações. A aretê é, portanto, o afinco necessário para enfrentar o labor (ponos) e a operosidade nos trabalhos (SNELL, 2012, p.252) operosidade que é a atenção necessária à ordem adequada dos trabalhos (v.306). Embora ela não faça ninguém mais honrado, evita sua ruína, a miséria ( κακότητα )130 , e, o que é mais importante, evita que alguém busque a riqueza através da injustiça (destruidora de homens e de poleis). O que nos interessa destacar dessa passagem é que a aretê está inteiramente contida no espaço da produção, do trabalho, e não tem nenhuma participação na distribuição como tem a timé de Homero. Mesmo
A escolha não está no agon narrado por Pródico mas na fala do personagem Sócrates ( XENOFONTE, 2009, p.127 ). 127
128
EvelynWhite (1914, Hes. WD 274) traduz os dois termos como Maldade (Badness) e Bondade (Goodness). M.L. West (1988, p.45) adota a solução bastante interesante de Inferioridade (Inferiority) e Superioridade (Superiority) já no verso 313 adota “mérito” (“worth”, p.46). Hélio Jaguaribe usa competência para o termo aretê (Jaguaribe, Hélio (org.), A democracia grega. Brasília: Editora da Universidade de Brasília/Rio: Fundação Roberto Marinho, 1981 apud TRABULSI, 1983, p.120). 129
Solmsen (1995, pp.7692) entende que o poema trata de operar uma reforma moral no homem grego e a partir dessa chave analítica vê moral em absolutamente tudo no poema. Solmsen sugere uma pequena lista bibliográfica sobre o termo aretê, ibdem, p.89, nt.51. 130
Se guardarmos a relação entre aretê e kakia os versos 471472 são significativos; "organização é o melhor para os homens mortais, desorganização ( κακοθημοσύνη ), o pior ( κακίστη )." (WERNER, 2013b, p.61).
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que a aretê ande acompanhada por riqueza e renome ( κῦδος ) ela não serve para exigir presentes ou entrar como medida “de valor” na relação entre dois produtores quaisquer131. A única forma de obter fortuna sem causar destruição é através do afinco necessário para enfrentar o árduo labor (ponos) e da operosidade que mantém o trabalho bem organizado (σοὶ δ᾽ 132
ἔργα φίλ᾽ ἔστω μέτρια κοσμεῖν , v.306) , em uma palavra, a Aretê. Nos versos 314 ao 316 Hesíodo é taxativo; qualquer que seja a sorte (fortuna ou destino) de um homem ele deve afastar seu ânimo insano ( ἀεσίφρονα θυμὸν ) das posses alheias e voltálo ao trabalho. Quem procede de outra forma, buscando a riqueza através do roubo, da guerra ou da política, é aquele onde a “vontade de ganho seduz a mente” (v.323). Citando a tradução de West “o tipo de coisa que ocorre com frequência quando o lucro [ κέρδος ] ilude a mente dos homens, e a falta de vergonha 133
afasta a vergonha” (1988, p.46, trad. nossa; vv.322324) . Nestes versos Hesíodo nos dá a imagem precisa da ganância, uma mente iludida pelo ganho e desprovida de vergonha ( αἰδὼς ). E para compreender essa Vergonha ( αἰδὼς ) precisamos observar sua contraposição com a falta de vergonha ( ἀναιδείη ) no verso 324, bem como suas ocorrências nos versos 317, 318 e 319. Uma opção para traduzir αἰδὼς é “respeito”, o senso de si e dos outros (LSJ), que é muito próximo de “vergonha” quando esta não se confunde com um sentimento de culpa (com uma moralidade). Quando αἰδὼς é visto como “respeito” surge uma polaridade não simétrica, o senso que um tem sobre si mesmo e dos outros não corresponde necessariamente ao senso que os outros têm de si mesmos e desse um. O respeito ( αἰδὼς ) é, portanto, uma condição ambígua, um difícil limitante 131
Séculos antes de Xenofonte e antes mesmo de Hesíodo já encontramos na Ilíada a presença da escolha entre dois caminhos na vida. A escolha de Aquiles entre um vida longa e tranquila ou uma morte jovem e violenta mas coroada de glória (imortalidade do nome) não possui a aretê no seu centro, mas é uma escolha guiada por um interesse pessoal pela fama e não por uma moral de bem. Certamente seu nome será eternizado não por sacrificar uma vida longa e tranquila mas por suas vitórias e por sua aretê na batalha, sua coragem e excelência na guerra até mesmo a aretê de Heitor é louvada acima do mal que ela provoca aos próprios gregos. 132
“organização é o melhor para os homens mortais, desorganização, o pior”, vv.471472 (WERNER, 2013b). 133
A tradução do grego feita por West difere daquela que fizemos no título dessa seção, mas como alertamos na nota de rodapé 116 tratase de uma tradução livre. Na versão original de West, em inglês, lêse “the sort of thing that often happens when profit deludes men’s minds, and Shamelessness drives away Shame”.
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na relação entre os homens. Agir com ousadia ou com inibição é parte do αἰδὼς , duas faces de uma mesma moeda . Por oposição, a falta de respeito ( ἀναιδείη ) não é a ousadia um senso exagerado de si mesmo ou reduzido dos outros – ou seu inverso, a inibição, mas sim a falta de senso de si e dos outros, a falta de um limite na relação com os demais134 . No verso 359 alguém sem respeito ( ἀναιδείηφι ), sem limites, aparece como aquele que toma para si o que não lhe foi dado, não importando se se trata de muito ou mesmo de pouco – por qualquer ganho negase o outro por completo. Os versos 322324 indicam então que o lucro ilude a mente e afasta qualquer limite individual ou com os outros pelo ganho mais ninguém importa. Eis a maldita fome de 135
ouro (auri sacra fames)! O caso dos versos 317, 318 exigem recuperar Homero : αἰδὼς δ᾽ οὐκ ἀγαθὴ κεχρημένον ἄνδρα κομίζει (Hes. v.317)136 αἰδὼς δ᾽ οὐκ ἀγαθὴ κεχρημένῳ ἀνδρὶ παρεῖναι. (Hom. Od. 17.347) αἰδώς, ἥ τ᾽ ἄνδρας μέγα σίνεται ἠδ᾽ ὀνίνησιν . (Hes. v.318) ὣς Ἀχιλεὺς ἔλεον μὲ ν ἀπώλεσεν, οὐδέ οἱ αἰδὼς γίγνεται, ἥ τ᾽ ἄνδρας μέγα σίνεται ἠδ᾽ ὀνίνησι . (Hom. Il. 24.4445)
Na estrutura e nas palavras a referência salta aos olhos. Vejamos como se relacionam os versos.
Também Teógnis de Mégara diz algo semelhante, ἦ δὴ νῦν αἰδὼς μὲ ν ἐν ἀνθρώποισιν ὄλωλεν, αὐτὰ ρ ἀναιδείη γαῖαν ἐπιστρέ φεται. "Agora inibição está perdida entre os homens e a falta de vergonha anda sobre a terra" [Now inhibition is lost among men and shamelessness roams over the land] (vv.647–648. LCL 258. pp.268269, trad. nossa do inglês). 134
135
Foi Rolim (2012, p.95, nt.26) que nos chamou a atenção para o fato de o verso 318 ser uma referência aos versos 4445 do canto 2 da Ilíada. Já Hays (1918, p.127) aponta também a relação entre o verso 317 e o verso 347 do canto 17 da Odisseia. A citações usam Homer, 1920 e Hesiod, 1914. Também o verso 500 de "Trabalhos e Dias" tem a mesma estrutura alterando apenas "respeito" (αἰδὼς) por "expectativa" (ἐλπὶς); "ἐλπὶς δ᾽ οὐκ ἀγαθὴ κεχρημένον ἄνδρα κομίζει". A semelhança entre os versos 317 e 500 reforçam a ideia de que o αἰδὼς é uma relação externa ao indivíduo sobre a qual ele não possui controle. O trabalho bem organizado e executado (aretê) garante o controle do indivíduo sobre suas necessidades externas. 136
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O primeiro verso (Hes. Op. v.317 e Hom. Od. 17.347) diz que vergonha/respeito, αἰδὼς , não é boa acompanhante para um homem necessitado. No contexto da passagem na Odisseia essa frase é usada quando Telêmaco diz ao seu escravo Eumeu que entregue um pedaço de pão a um maltrapilho que penetra em seu palácio durante um banquete. A frase serve como um conselho que Eumeu deve dar, junto com o pão, ao pobre homem que até aquele momento nada havia pedido. O maltrapilho agradece o pão mas põese a comer ao invés de mendigar, até que a deusa Atena o incitasse a suplicar como forma de conhecer entre os homens quais os justos e quais os ímpios. Depois de encher a sacola com a esmola de muitos o que segue é uma troca de ofensas entre um dos convivas, Antínoo, e o suplicante, de onde sai ferido no ombro o infeliz 137
maltrapilho . O αἰδὼς aqui é a inibição, o excesso de freio, pois o necessitado não deve se privar de pedir. No contexto do poema de Hesíodo vemos Perses em uma situação não muito boa (v.314), endividado e próximo da pobreza (v.404 e v.647), tentando roubar do irmão mais uma parte da herança paterna, gastando o pouco que tem corrompendo os basileis comedores de presentes. Hesíodo não está elogiando a miséria do pedinte ou o senso de respeito do miserável, está recordando Perses de que depender do αἰδὼς é coisa complicada para um homem necessitado. O melhor é trabalhar (v.314) para evitar depender do αἰδὼς , até porque Hesíodo nada lhe dará (vv.395397). O verso 319 tem sentido semelhante ao dizer que a inibição acompanha o desafortunado, sempre se privando daquilo que deve fazer, enquanto a audácia acompanha o afortunado, tal qual a aretê acompanha a riqueza. A excelência ( ἀρετή ) e a coragem em fazer as coisas ( θάρσος ) acompanham aquele que trabalha, ao contrário, aquele que não trabalha fica exposto as dificuldades da inibição ( αἰδὼς ). O segundo verso (Hes. v.318 e Hom. Il. 24.4445) deixa claro o quão complicado é o respeito/vergonha ( αἰδὼς ), “vergonha, ela que muito lesa e beneficia varões”. Na Ilíada de Homero o contexto desse verso é impactante, e dificilmente um grego desconheceria seu sentido. O verso é proferido por Apolo aos demais deuses do Olimpo, indignado com o comportamento
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O misterioso pedinte é o próprio Odisseu disfarçado, aquilo que ele recebe como esmola é na verdade proveniente do seu próprio patrimônio, que os pretendentes dilapidavam em inesgotáveis banquetes.
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de Aquiles que, por toda uma noite, arrasta de forma ultrajante o cadáver de Heitor, o herói troiano. De Aquiles ele diz: tão destituído de humano sentir sem razoáveis propósitos no coração abrigar como o leão cujo instinto selvagem à força ingente associada e à indomável coragem o leva a devastar os rebanhos dos homens a fim de saciarse. Toda a piedade falece ao Pelida falecelhe o senso da reverência que é fonte de males e bens para os homens .
(Hom. Il. C.24 vv.4045, 2015) Hayes (1918, p.127) define muito bem essa passagem como sendo a αναιδής absoluta falta de respeito de Aquiles. Lembramos o verso 324 do poema de Hesíodo, quando a ganância leva ἀναιδείη (falta de respeito) a afastar todo o αἰδὼς (respeito), mas no caso de Aquiles é a ira 138
incurável pela morte de seu companheiro Pátroclo que produz esse afastamento . A questão é mais uma vez a fragilidade do senso de respeito ( αἰδὼς ), como o ânimo insano ( ἀεσίφρονα θυμὸν , v.315) é capaz de anulálo por completo. Contra a ganância desavergonhada Hesíodo exorta Perses ao trabalho (v.335), não porque seja o moralmente certo, mas porque é a única maneira de preservar o respeito. O πόνος (ponos, labor/dor), a ἀρετή (aretê, excelência/operosidade) e o αἰδὼς (aidos, respeito/vergonha) são todos termos que ligam o trabalho ( ἔργον ) à condição de limitante da riqueza ( πλούτῳ ) e da fortuna ( ὄλβον )139. A ὕβρις (húbris, violência/desmedida), a Κακία (kakia, miséria/fraqueza) e a ἀναιδείη (anaidei, falta de respeito/negação do outro) são todos termos que ligam aquela “vontade de ganho que ilude a mente” à uma busca ilimitada pela
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A diferença com a ganância de que Hesíodo fala pode ser confirmada no seguinte verso da Ilíada: “sem que esse ultraje indecente lhe traga nenhuma vantagem”, Hom. Il. C.24 v.52, 2015. 139
já vimos que o labor (ponos) obriga que os trabalhos (erga) se estendam no tempo, não bastando um único dia de trabalho para obter o sustento, mas também a aretê limita a riqueza pela excelência e ordem em que os trabalhos têm de ser executados o respeito/vergonha conduz o homem a satisfazer suas necessidades através do trabalho, onde tomar a riqueza de um outro leva a perda de respeito. O trabalho é um limitante concreto da acumulação e não uma linha de subsistência moral, daí que o aristocrata que acumula pela pilhagem de guerra e corrupção política não conhecer limites concretos mas tão somente os morais.
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riqueza, mas que encontra no fim apenas a destruição – “Não lucres de forma vil; lucros vis são como desastres” (WERNER, 2012b, v.352). Iniciamos a seção com Hesíodo falando das várias maneiras de buscar a riqueza; o trabalho, o roubo, a guerra e a corrupção política – apenas as duas últimas dão origens a grandes fortunas. Mas nós invertemos sua ordem expositiva, essa é a sua conclusão. Na ordem certa, ele primeiro introduz a kakotita e a aretê e logo em seguida lança os versos “Este o melhor de todos [ πανάριστος ], quem por si tudo apreender ao refletir no que será melhor, depois e no fim” (WERNER, 2012b, vv.293294). Em seguida admoesta ao trabalho como forma de enriquecer, diz que o trabalho não é reprovável e afirma que este é o melhor em qualquer sorte que um homem se encontre. Então diz que contar com o respeito, seja de si ou dos outros, é algo sempre complicado. Só aí é que Hesíodo apresenta as formas destrutivas de buscar a riqueza e afirma que elas ocorrem quando a vontade de ganho ilude a mente e a falta de respeito afasta o respeito. Bem refletido, o que será melhor, depois e no fim, é controlar o ânimo insano da única forma possível, ou seja, trabalhando. O trabalho (e a obediência religiosa) tornam o coração e o ânimo propícios (ἵλαον κραδίην καὶ θυμὸν ἔχωσιν, v.340) para “permutares a gleba de outros, não outro, a tua” (v.341). Recordemos por um momento a profecia apocalíptica dos versos 180 ao 201. Findará a raça de ferro quando Respeito e Retaliação ( Αἰδὼς καὶ Νέμεσις), partindo para o Olimpo, abandonarem os homens sem defesas contra o mal (v.201). Agora também sabemos como Respeito ( Αἰδὼς ) será afastada dos homens... quando sem trabalhar, a vontade de ganho seduz a mente. ἐν γά ρ τοι πόλει ὧδε κακοψόγῳ ἁνδά νει οὐδέ ν·†ωσδετοσωσαιει† πολλοὶ ἀνολβότεροι.νῦν δὲτὰτῶν ἀγαθῶν κακὰγίνεται ἐσθλὰ κακοῖσιν ἀνδρῶν· γαίονται δ᾿ ἐκτραπέ λοισι νόμοις·αἰδὼς μὲ ν γὰ ρ ὄλωλεν, ἀναιδείη δὲκαὶ ὕβριςνικήσασα δίκην γῆν κατὰ πᾶσαν ἔχει. In a city so given to malicious faultfinding nothing pleases (the citizens); . . . many are less well off. Now what the noble consider vices are deemed virtues by the base, and they rejoice in perverted ways (laws?). For respect is lost and shameless outrage, having overcome justice, prevails in all the land.
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Theognis, Elegiac Poems, vv.287–292. LCL 258, pp.214215 140
III.5. “a fim de permutares a gleba de outros, não outro, a tua” Impossível não comentar esse verso (v.341), ele traz consigo duas das mais importantes observações sobre a sociedade que despontava na Grécia Arcaica: a quebra do vínculo natural entre homem e terra e a cisão entre poder político e poder econômico. A democracia grega não existiria sem esses dois fatores. Não desejamos, e nem temos os recursos necessários, para resolver um assunto dessa dimensão no espaço desse texto. Faremos apenas algumas observações sobre a importância da dissolução do kléros para a dinâmica econômica do Arcaico. O kléros, i.e., a propriedade da terra indivisível e inalienável (WILL, 1965, p.544), teria sido durante o Geométrico uma forma dominante da relação entre terra e trabalho. O problema da partilha de herança e a permutabilidade da terra deixam claro que a forma tradicional do kléros já não valia mais na época do poema. O processo histórico que levou a abolição do kléros tradicional nos escapa141 , mas, no entanto, podemos analisar algumas de suas consequências sociais. A primeira delas é um processo de concentração da terra na mão da aristocracia142 que implicava não apenas na perda da terra por parte dos pequenos (certamente mais atingidos) e médios proprietários, mas na separação entre trabalho e meios de realização do trabalho. Isso significa que terra e trabalho eram adquiridos separadamente, mediante processos mais ou menos independentes. Nesse cenário aquele que acumula terras necessita encontrar mão de obra e 140
"Em uma cidade tão dada à queixa maliciosa nada agrada (o cidadão); … muitos estão em uma condição pior. Agora o que o nobre considera vício é creditado como virtude pelo povo, e eles se alegram em perverter caminhos (leis?). Pois o respeito é perdido e a desavergonhada ofensa, tendo sobrepujado a justiça, prevalece em toda terra.", trad. nossa do inglês. 141
No capítulo 2 apresentamos nossa opinião contrária aos argumentos que defendem o crescimento demográfico como sua causa. 142
Ver notas de rodapé 58 e 59.
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aquele que possui mão de obra disponível está em busca de terras uma relação tanto contraditória quanto complementar. As várias formas distintas que essa relação pode assumir dependem de um complexo de determinações sociais sobre as quais conhecemos pouco. O que sabemos é que na antiguidade grega essa relação assumiu formas como a de escravidão por dívida (e de origem externa), formas de servidão e arrendamento ou até mesmo formas de trabalho assalariado (theta) e pagamento por serviços específicos (misthos)143. Esse tema é central para a compreensão das transformações sociais que conduziram ao Período Clássico. O fato da reorganização da propriedade da terra, fundamental na reorganização das formas de trabalho (relações de produção), já estar presente em um poema do início do Arcaico não é mera curiosidade mas mostra que esse período, com suas complexas transformações sociais, não foi mero ensaio para o Clássico. Do ponto de vista da política a permutabilidade da terra aponta para uma autonomização das relações de propriedade. Essa autonomização não é apenas frente ao controle não econômico da aristocracia mas também da própria comunidade. A distribuição da propriedade da terra passa a depender do trabalho (e de sua distribuição em formas mais complexas de organização) e não mais de relações sociais "extraeconômicas" ou das necessidades surgidas da manutenção da própria comunidade (o que consideramos a chave econômica para a compreensão do kléros). Portanto, se por um lado o pequeno ou o médio proprietário se via cada vez mais livre da influência política dos basileis aristocratas ele também se via cada vez mais assediado pelo poder
143
Aristóteles fornece uma variedade dessas formas na Política e na Constituição de Atenas. Mesmo em Hesíodo é possível ver algumas dessas formas, e.g., escravo (δμῶές, v.459, v.470, etc), carpinteiro (v.430) e o trabalho pago na forma de misthos (μισθὸς, v.370), de tetha ou eritos ( θῆτά τ᾽ ἄοικον ποιεῖσθαι καὶ ἄτεκνον ἔριθον , v.605/v.602). A passagem sugere que essas duas formas de trabalho, tetha e eritos, se assemelhavam a alguma forma de servidão já que o tetha não deve possuir propriedade (ἄοικον, a+oikon) e a eriton, que Werner traduz por "criada", não deve possuir filhos (ἄτεκνον, a+téknon). Ao que tudo indica tetha e eriton trabalhavam em troca de abrigo e sustento, e a criança da eriton é vista negativamente (como um bezerro, ὑπόπορτις) seja porque é incapaz de trabalhar ou porque exige cuidados (ocupando parte do trabalho da eriton de maneira improdutiva). Também com os escravos Hesíodo demonstra preocupação com a produtividade do trabalho relacionando a idade com a atenção nos trabalhos (vv.441447) a mesma preocupação está presente na escolha dos materiais usados na construção de instrumentos e na seleção dos animais de trabalho (vv.420440).
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econômico do grande proprietário (também aristocrata). Onde antes dominava o poder político sobre a propriedade agora é o poder econômico que domina sobre ambos. A separação entre poder político e poder econômico é ao mesmo tempo a transformação do poder "extraeconômico" da terra em poder econômico uma forma histórica de subsunção do trabalho à propriedade privada dos meios de produção144 . No entanto, essa separação, autonomização e domínio da economia não podem jamais se efetivar em formas sociais como na Grécia Antiga, permanecendo como forças tendenciais dos conflitos políticos. Essa impossibilidade não decorre apenas da ausência de um mercado autonomizado145 , muito menos da ausência de uma mentalidade empresarial146, mas de um complexo de determinações sociais existentes na época 147. Destacamos duas determinações que não esgotam o assunto: o caráter imóvel da riqueza apoiada quase que integralmente na terra e a inexistência de outras relações de produção capazes de subsumir o trabalho em escala social para além da agricultura as duas em conjunto impedem tanto a existência de uma economia monetarizada quanto a universalização do trabalho pago. Mas se tais determinações econômicas são centrais para compreendermos a 144
Tratase portanto de uma forma aberta e dinâmica* de economia agrícola e não de uma bucólica vida econômica doméstica em contraposição a uma dinâmica vida moral, religiosa, social e etc. [dinâmica porque se autoreproduz, não como algo exterior à sociedade mas como parte sua]. 145
Essa separação analítica só é válida enquanto não faz do mercado um agente autônomo cuja interação com outras formas reificadas (sociedade civil, Estado, etc) ocorre por inputs e outputs. A circulação é apenas um momento da economia, forma de redistribuição em um modo de produção específico, e aquilo que se entende por sua autonomização é apenas a negação do todo em si mesmo (crise e irracionalidade; se a circulação se autonomizasse efetivamente uma economia se destruiria por si própria). 146
Ou mentalidade produtivista como prefere Finley (2013, pp.199221). As correntes weberianas da história econômica tomam o cálculo racional e os instrumentos necessários dessa mentalidade (e.g., mecanismos de formação de preços, i.e., mercados) como santo graal de sua metodologia. Na ausência dessa mentalidade e de tais instrumentos essas correntes têm apelado cada vez mais à visão funcionalista da troca e do mercado (onde trocas fazem sociedades e não sociedades fazem trocas) em todos os casos as relações de produção são desprezadas. A importância desses instrumentos econômicos é inegável, mas nem é exclusiva e nem precede o processo histórico do seu desenvolvimento. 147
Isso não é uma tese determinista, não diz que a existência de um complexo de determinações sociais conduz inevitavelmente a uma formação social específica, antes o contrário. Necessidades imanentes de uma formação social específica exigem formas desenvolvidas de certas determinações desse complexo (ex. a formadinheiro do valor no capitalismo). Também não se trata de uma tese evolucionista porque o desenvolvimento de certas determinações de um complexo não implica em uma superioridade do complexo, mas tão somente em distintas formas sociais.
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impossibilidade de uma separação efetiva entre o econômico e o político, elas não explicam a forma que a tensão entre os mesmos assume socialmente. Para tanto é necessário observar a resistência dos pequenos e médios proprietários ao processo de concentração de terras pela aristocracia. Resistência que assumiu formas distintas em distintas poleis da Hélade e que levaram a emergência de configurações sociais tão variadas como Esparta ou Atenas. III.6 A Oikonomia da vizinhança o que vem do vizinho seja bem medido (v.349)
Consideramos que o verso 341 (que acabamos de analisar) é o que permite ao aedo operar uma importante mudança de direção no poema. Hesíodo irá a partir do verso 342 tratar de relações de vizinhança, i.e., de relações que não são necessariamente conflituosas, como com os basileis, e são até mesmo necessárias para a reprodução dos pequenos e médios proprietários. A fortuna crítica divide o poema no verso 383 onde começam os ensinamentos práticos sobre o trabalho agrícola e o calendário desses trabalhos. O nosso "corte analítico" propõe algo distinto, pensar a estrutura do poema apoiado nas relações de classe. Se até o presente os versos opunham a produção do sustento pelo trabalho à riqueza tomada do trabalho alheio pela guerra e pela política o que é possível observar nos versos seguintes é algo muito diverso. Por exemplo, com relação aos seus vizinhos Hesíodo censura o ganho que vem da troca que não obedece a medida, onde o intercâmbio não é apenas material, mas também de ajuda, favores, relações de parentesco e etc. Das relações destrutivas com a aristocracia Hesíodo passa para relações de interdependência com a vizinhança. Estas não são mediadas pela violência e pelas tortas sentenças dos juízes, mas pela equivalência das medidas permutadas. Medidas que não estão fundadas na diferença de poder, respeito ou honra, mas, dentro de certos limites, na impessoalidade e no uso segundo necessidades objetivas. Essa permuta entre vizinhos não se orienta para a produção de ganho lucrar por desmedida na troca é lucro vil e destrutivo (v.352)
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, são relações diretas entre produtores visando principalmente garantir a reprodução desses produtores como proprietários. Uma vez que Hesíodo penetra nas relações comuns aos de uma mesma classe é que o trabalho pode ser contido no interior dessa mesma classe e observado a partir do oikos o que ele faz a partir do verso 383. Relações moldadas concretamente pela dinâmica comum da produção e não por uma hipotética cultura comum que obedece apenas aos caprichos de um mundo de abstrações. O poema, a partir desse ponto (o verso 341), segue além do objetivo analítico dessa pesquisa. Ao tratar das relações no interior de uma mesma classe e não mais do conflito com a aristocracia o poema abre um segundo momento de pesquisa sobre as relações de classe na antiguidade grega. Esse segundo momento da análise é necessária se quisermos compreender de maneira mais integrada e orgânica a dinâmica social dessa antiguidade. Porém, o esforço exigido para continuar esse estudo não é o da análise separada dos versos 342 em diante, mas um retorno constante às relações apresentadas no primeiro momento da análise. Rigorosamente, não se trata de separar o poema em duas partes, o que induziria a pensar a classe dos pequenos e médios proprietários isolada das relações conflituosas com a aristocracia, ou seja, implicaria na concepção dessas classes como entes singulares com existências próprias, separadas e independentes. É uma tarefa gigantesca que permanece aberta aos futuros pesquisadores e da qual desejamos ser apenas mais uma contribuição. Para seguir adiante acreditamos que ainda é necessário retornar e aprofundar o conhecimento do contexto histórico do Arcaico, avançar no debate metodológico e desenvolver uma análise mais densa dos conflitos de classe apresentados até o ponto do poema em que encerramos nossa análise.
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Conclusão Essa pesquisa não desejou retornar no tempo atrás das raízes do pensamento "ocidental", não perseguimos estruturas mentais, conceitos ou categorias do intelecto. Não censuramos aqueles que o fazem, nosso estudo é complementar e não excludente o atrito é momento natural e insuperável que força o reencontro daquilo que as baias acadêmicas tentam separar. Da nossa parte, procuramos no poema de Hesíodo uma possibilidade de reconstruir as tensões políticas e as relações de produção, i.e., relações de classe, na Antiguidade Grega. O poema "Trabalhos e Dias" oferece uma oportunidade única para o estudo das relações sociais entre as classes proprietárias na Grécia Arcaica, embrião de importantes conflitos do Período Clássico. Em um primeiro momento essa pesquisa pode parecer com um estudo de História, mas por questões de rigor metodológico qualquer historiador saberá imediatamente que este não é o caso. Também, esse trabalho rejeita os rumos que a sociologia contemporânea vem trilhando, o interesse único pelo instante reduz na sociologia a compreensão crítica dos processos históricos. Quando o presente tornase uma singularidade temporal a sociedade tornase um conceito abstrato absoluto insuperável e, portanto, sem crítica. Mas voltar à Grécia Antiga não é apenas um desagravo, acreditamos que uma compreensão mais ampla das relações de classe exige olhar para além do mundo capitalista. Marx, Weber, Durkheim, Mauss, etc, nunca tiveram dúvida da importância desses estudos. SICOFANTE Vou ter de suportar os insultos destes dois? Que indignidade! Eu, um homem de bem e um patriota, sendo maltratado desta maneira! HOMEM JUSTO Você, patriota e homem de bem? SICOFANTE Sim, e como nenhum outro homem! HOMEM JUSTO Então vou interrogar você. Responda! SICOFANTE Sobre que assunto? HOMEM JUSTO Você é um trabalhador?
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SICOFANTE Você pensa que sou louco? HOMEM JUSTO Então é um negociante? SICOFANTE Sou, sim; pelo menos passo por negociante quando me convém. HOMEM JUSTO O que é você, afinal? Você aprendeu algum ofício? SICOFANTE Ofício? Eu? Não! HOMEM JUSTO Como você vivia, e de quê, se você não faz nada? SICOFANTE Fiscalizo os assuntos de Estado e os assuntos privados, todos eles.
ARISTÓFANES, 2003, pp.3132.
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