Contributos historiográficos para uma ideia de lusofonia

May 31, 2017 | Autor: Regina Pires Brito | Categoria: Historical Linguistics, Historiography, The Lusophone World, Lusofonia, Culturas Lusofonas, Lusofonia Studies
Share Embed


Descrição do Produto

___________________________________________________________________________

Universidade Presbiteriana Mackenzie

Contributos historiográficos para uma ideia de lusofonia*

 

  

Regina Pires de Brito

Lusophone Studies has been the focus of recent interest in the Brazilian academia. Also, considering the debates about the concept and relevance of the topic "Lusophony", this article presents the documentation collected fragments from different sources (historical, philological, literary, linguistic), belonging to different periods and contexts. This is part of larger research that intends to reconstruct, even partially, a historical and historiographical path of Lusophony theme, important for the dissemination and understanding of the idea of "Lusophony" in the current context. Keywords: Lusophony; Linguistic Historiography; Lusophone Studies; Portuguese Language

1.

Preliminares

Este artigo traz parte de pesquisa em curso, fundamentada na Historiografia Linguística e nos Estudos Lusófonos, objetivando traçar o percurso histórico de textos (de natureza vária) que auxiliem no processo de constituição da ideia de lusofonia - conceito em construção e tema polêmico em muitos círculos. Para tanto, o recorte aqui apresentado de alguns dos documentos que vimos coletando obedece à ordenação cronológica, com breves descrições e comentários, seguindo a orientação de Altman (1998: 24) para a atividade historiográfica, que espera “[...] compreender os movimentos em história da ciência, presume [...] uma atividade de seleção, de ordenação, reconstrução e interpretação dos fatos relevantes [...] para o quadro de reflexão que constrói o historiógrafo”. Em etapa posterior do projeto, o conjunto de textos será tratado conforme os princípios propostos por Koerner (2014) — contextualização, imanência e adequação. Os Estudos Lusófonos, inseridos nos Cultural Studies, debruçam-se sobre distintos aspectos (linguístico, artístico, cultural, econômico, geopolítico etc.) do cenário * Investigação desenvolvida no âmbito do Grupo de Pesquisa CNPq “Cultura e identidade linguística na lusofonia”, sob liderança de Regina Brito e Neusa Bastos. __________________________________________________________________________________________ C. Assunção, G. Fernandes, R. Kemmler (eds.): Tradition and Innovation in the History of Linguistics, 39–47 © Copyright 2016 by Nodus Publikationen, Münster. ISBN 978–3–89323–021–1

Regina Pires de Brito ___________________________________________________________________________

 

  

plural e assimétrico que constitui o chamado espaço da lusofonia, e têm despertado crescente interesse em muitas áreas do conhecimento, especialmente a partir de meados dos anos 80, em estudos vinculados a áreas como economia, política, sociopedagogia, sociologia da cultura, crítica literária e linguística galaico-portuguesa, dentre outras. Esse interesse pode justificar o fato de a palavra Lusofonia ser de registro formal recente nos dicionários. Embora haja registro de utilização da palavra “lusofonia” na década de 50, palavras “lusofonia” e “lusófono” não constam da primeira edição do Novo Dicionário da Língua Portuguesa, de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, publicado em 1975, que registra “luso, luso-africano e luso-brasileiro” (p. 862). Entretanto, na segunda edição revisada e ampliada datada de 1986, ao lado dessas formas, figuram: lusofonia [de lusófono + -ia]. S.f. adoção da língua portuguesa como língua de cultura ou língua franca por quem não a tem como vernácula; tal ocorre, por exemplo, em vários países de colonização portuguesa. lusófono [de luso+fono]. Adjetivo e substantivo masculino diz-se de, ou indivíduo ou povo que fala o português (Aurélio 1986: 1053). Apesar desse estatuto “dicionarizado” verificado apenas há três décadas, frequentemente, a ideia de lusofonia remete ao período das grandes navegações (séc. XV e XVI) e, portanto, também à expansão, à dominação e à colonização portuguesas em diferentes pontos do globo nos séculos subsequentes. É desta via que se retira sua noção mais divulgada: o de abranger os países de língua portuguesa. Numa conceituação um pouco mais alargada, aplica-se o termo lusófono aos indivíduos que têm em comum a língua portuguesa e que partilham elementos culturais e históricos. Entretanto, à exceção do Brasil — cuja independência ocorre em 1822 — Angola (11.11.1975), Cabo Verde (05.07.1975), Guiné-Bissau (24.09.1973), Moçambique (15.06.1975), São Tomé e Príncipe (12.07.1975) e Timor-Leste (28.11.1975) somente alcançam a independência mais de século e meio depois disso, seguindo-se, na maior parte desses países, por longo período de guerra civil (e, no caso timorense, de período sob domínio indonésio). A lusofonia, nesses contextos, acaba por evocar um prolongamento simbólico da dominação da época colonial, colocando Portugal como centro desse conceito e os demais países numa posição periférica (Brito 2013). Esse fator histórico ajuda a entender porque, do ponto de vista das ex-colônias portuguesas (em especial as africanas), é difícil dissociar o passado histórico colonial do sentido que a palavra evoca: no plano etimológico, o substantivo abstrato Lusofonia liga-se à “Lusitânia”, província romana pertencente à Hispânia, habitada pelos Lusitanos: a forma luso, do latim lusu, remete a lusitano, português, relativo a Portugal e a forma (de origem grega) fon relaciona-se a som, voz, palavra, língua. (Brito 2013). Desse modo, no plano histórico, podemos apontar como marco da “lusofonia” a expansão marítima portuguesa, que espalhou e difundiu pelo mundo sua língua e cultura, graças à atuação de missionários e colonos. Nesse sentido, conforme Hernandez (2005: 504-5), Portugal seria uma nação que “incorporava a ideia de império; um país com vocação para a missão civilizatória ‘a ponto de dispersar seu corpo e sua alma pelo mundo inteiro”. ___________________________________________________________________________ – 40 –

Contributos historiográficos para uma ideia de lusofonia ___________________________________________________________________________

2.

Dos textos para o conceito: uma trajetória

Prognostica O Author Os Males De Portugal, Canta Suas Glorias Com A Acclamação Do Rei Encuberto. LXVIII. Forte nome he Portugal, Um nome tão excellente, He Rei do cabo poente, Sobre todos principal. Não se acha vosso igual Rei de tal merecimento: Naõ se acha, segun sento, Do Poente ao Oriental.

LXX. Portugal tem a bandeira Com cinco Quinas no meio, E segundo vejo, e creio, Este he a cabecêira, E porá sua cimeira, Que em Calvario lhe foi dada, E será Rei de manada Que vem de longa carreira.

LXXIII.

 

  

Parte da resistência que se observa hoje em diferentes meios quanto ao uso da palavra “lusofonia” explica-se pela ligação com o imaginário português, fundado em elementos como (cf. Hernandez 2005: 504-5): sentimento de isolamento e fragilidade em relação à Europa; no Mito do Eldorado e no Mito da Herança Sagrada — que se explicita, no caso português, com o Mito do Quinto Império. Como preconizadores deste último, que alimenta o ideário lusófono (sobretudo na sua faceta melancólica e saudosista), referimos, a seguir, alguns fragmentos de obras que integram o material compilado. — As profecias de Gonçalo Anes Bandarra (1500?–1556), com suas Trovas, editadas por D. João de Castro, cuja primeira edição surge em Paris com o título Profecias de Bandarra, Sapateiro de Trancoso. Inspiradas em profecias atribuídas a S. Isidoro, por meio de coplas de Pedro de Frias, as trovas “que compoz no anno de 1540 pouco mais ou menos, forão sempre tão recebidas, e celebradas, que não necessitão de maiores abonações que as do tempo que tanto as accredita”, exemplificadas a seguir:

Serão os Reis concorrentes, Quatro serão, e naõ mais; Todos quatro principaes Do Levante ao Poente. Os outros Reis mui contentes De o verem Imperador, E havido por Senhor Naõ por dadivas, nem presentes.

(Bandarra 2007: 21)

— Obras do Padre Antonio Vieira (1608–1697), por exemplo, em Esperanças de Portugal (1659), carta dirigida a André Fernandes (bispo do Japão), em que Vieira comenta as trovas de Bandarra. Este escrito é considerado um esboço de teorização do projeto messiânico do Quinto Império, sustentando a ideia da ressurreição de D. João IV e apresentando-o como “instrumento de Deus” para a consumação do Império Universal. O texto é considerado um “anteprojeto” de História do Futuro (obra iniciada em 1649 e que permaneceu inacabada), onde Vieira apresenta a exegese bíblica, que servirá como base do mito do Quinto Império, identificando-o como Império Religioso e Universal: Chamamos Império Quinto ao novo e futuro que mostrará o discurso desta nossa História; o qual se há de seguir ao Império Romano na mesma forma de sucessão em que o Romano se seguiu ao Grego, o Grego ao Persa e o Persa ao Assírio. [...] É conclusão, e de fé, que este Quinto Império de que falamos, anunciado e prometido ___________________________________________________________________________ – 41 –

Regina Pires de Brito ___________________________________________________________________________ pelos profetas, é o Império de Cristo e dos cristãos […] é Império da Terra e na Terra […] espiritual no governo, espiritual no uso, nas expressões e no exercício […] Em qualquer tempo futuro será sempre espiritual. (Vieira 1953: 38,56).

 

  

— Textos de Fernando Pessoa (1888–1935), como em Mensagem e n’O Livro do Desassossego. Como Vieira, Pessoa acredita ser o português um novo império civilizacional: o “Quinto Império”, um espaço cultural de domínio da língua portuguesa. Em entrevista a Alves Martins, na Revista Portuguesa (Pessoa 1986: 703-704), diria, em 1923: “O Quinto Império. O futuro de Portugal – que não calculo, mas sei – está escrito já, para quem saiba lê-lo, nas trovas do Bandarra, e também nas quadras de Nostradamus. Esse futuro é sermos tudo.”. — Produções de Agostinho da Silva (1906–1994), por exemplo, as reunidas em Agostinho da Silva – Dispersos (obra coligida por Paulo Esteves Borges, em 1988), em que destaca:

(...) Deveremos promover uma cultura geral pluriforme, em que estejam nítidas, bem marcadas, todas as especificidades de cada uma das culturas dos diferentes países, e dentro desses países, as culturas das suas religiões, e dentro das religiões as culturas individuais de cada homem. (1988: 195) Em Um Fernando Pessoa, de 1959, ao falar da concepção de Quinto Império para o poeta, Agostinho da Silva assinala a necessidade de um destino partilhado entre os espaços de língua portuguesa:

É por esse Império, que nem ele nem os seus companheiros têm a coragem ou a força ou a hora de construir, porque numa história movida por Deus tudo vem a ser o mesmo; é por esse Império, que não tem lugar marcado nos mapas porque vive no sorriso, no olhar, nos sonhos dos meninos; é por esse Império, que se tornará consciente ou inconsciente a nós, como se torna consciente ou inconsciente a uma criança o que, dormindo, a faz sorrir; é por esse Império, que só poderá surgir quando Portugal, sacrificando-se como Nação, apenas for um dos elementos de uma comunidade de língua portuguesa; é por esse Império, que já foi aurora de realidade e que hoje é apenas o cavo passo que se escuta em palácios desertos, que Fernando Pessoa pensa, escreve, concebe génios, sofre recolhido e ignorado morre. (grifos nossos) (Silva 1988: 90-91).

Remetendo a vários temas (como aos mitos fundadores da nacionalidade e à identidade portuguesa, ao destino grandioso de Portugal, aos descobrimentos e à expansão marítima, ao processo colonizatório, etc.), a associação destes escritos ao conceito de lusofonia parece justificar parte da recusa à utilização do termo. Na verdade, conjeturamos que a rejeição ao emprego do vocábulo pode, em certa medida, estar atrelada a um olhar parcial e reducionista que direciona, predominantemente, a lusofonia para a construção do sentimento de lusitanidade ou, melhor, de portugalidade. Fato é que a edificação da nacionalidade e da identidade portuguesa passa, necessariamente, por essas elaborações e re-elaborações simbólicas, mas não só: também a lusofonia, inegavelmente gerada pelos portugueses e de sua incursão pelos mares, tem nesses pensamentos sua gênese. Por exemplo, da teorização decorrente do mito do Quinto Império deve-se levar para a constituição da imagem de lusofonia a estruturação que, sem dúvida, a geografia da expansão marítima portuguesa representa. Assim, ___________________________________________________________________________ – 42 –

Contributos historiográficos para uma ideia de lusofonia ___________________________________________________________________________

 

  

é inegável o que a história registra acerca das descobertas portuguesas e dos domínios pelo mundo, primeiro movimento de disseminação da língua e cultura portuguesas – movimento que se assemelharia à globalização. Referimos também, como significativos para uma visão historiográfica do conceito de lusofonia, os projetos de fixação de uma unidade linguístico-cultural dos países e comunidades de língua portuguesa. Para nomear alguns dos brasileiros que representam esse pensamento, citamos: Sílvio Romero (1851–1914), com O elemento português, de 1902. O filólogo recomendava que, na base da língua e tradições portuguesas que são raízes do Brasil, e inspirado no exemplo inglês, se organizasse um bloco linguístico, político e cultural, obstando a recolonização de potências imperialistas e racistas européias (o que, em certa medida se configurou, quase um século depois, em 1996, com a constituição da CPLP — Comunidade dos Países de Língua Portuguesa): (…) Sim, meus senhores: Não é isto uma utopia, nem é um sonho a aliança do Brasil e Portugal, como não será um delírio ver no futuro o Império Português de África unido ao Império Português da América, estimulado pelo espírito da pequena terra de Europa que foi berço de ambos. Portugal «que transplantou para aqui a nossa língua (...) teve o intuito superior de aliar-se às raças que encontrou no país, consideradas por ele fundamentalmente colaboradoras e amigas, e às quais, dando-lhes a língua, equiparou a si (...). Bastaria o facto extraordinário, único, inapreciável, transcendente da língua para marcar ao português o lugar que ele ocupa em nossa vida (…) Ela só por si, na era presente, serve para individualizar a nacionalidade. (Romero 1902: 11).

Barbosa Lima Sobrinho (1897–2000), com A língua portuguesa e a unidade do Brasil, de 1958. Esta obra — escrita não por um filólogo, nem linguista, mas por um advogado, jornalista, ensaísta, historiador e político — traz reflexões que convergem para a ideia de “unidade na diversidade”, intrínseca à imagem que temos da lusofonia:

Há que pensar num idioma que não seja monopólio de portugueses e brasileiros (...) nenhuma nação do mundo lusofônico pode ter a pretensão pueril de querer ditar normas e usos linguísticos às demais. No caso, o que todas as nações devem fazer é proceder ao conhecimento das diferenças, sempre em busca de uma unidade superior. Até porque a norma culta da língua comum estará sempre onde houver o desenvolvimento de cultura e civilizações como hoje ninguém ignora. Sem outras palavras, todas as nações do mundo lusofônico falam a mesma língua, mas cada uma a seu modo. (Sobrinho 1958: 117)

O filólogo Celso Cunha (1917–1989), em Uma política do idioma, de 1964, que, na mesma perspectiva de Barbosa Lima Sobrinho, defende a necessidade da adoção de uma política linguística que preze pela unidade, respeitando a diversidade: Será admissível a hipótese de que Portugal nos cedeu a utilização do idioma e, por isso, dele deve ter sempre o controle normativo? [...]

Será que os colonizadores perderam a propriedade da língua por se haverem expatriado? Ou por acaso seus filhos, nascido em terra americana, falavam uma língua que, sendo a de seus pais e a que haviam aprendido com o leite das suas ___________________________________________________________________________ – 43 –

Regina Pires de Brito ___________________________________________________________________________

 

  

mães, não lhes era mais própria porque a sua propriedade a tiveram registrada os que permaneceram em Portugal? E os filhos dos primeiros crioulos não falavam também uma língua própria, pois que falavam a língua de seus pais? Chega-se assim à evidência de que para a g teração atual de brasileiros, de cabo-verdianos, angolanos, etc., o português é uma língua tão própria, exatamente tão própria, como para os portugueses. E, em certos pontos, por razões justificáveis na România Nova, a língua se manteve mais estável do que na antiga Metrópole. [...] Essa república do português não tem uma capital demarcada. Não está em Lisboa, nem em Coimbra; não está em Brasília, nem no Rio de Janeiro. A capital da língua portuguesa está onde estiver o meridiano da cultura. (Cunha 1964: 34, 38)

As considerações anteriores concorrem com a imagem da legitimidade de um ideal lusófono, ou seja, de uma lusofonia possível, admissível e que só pode ser significativa quando compreendida, (con)sentida e vivida como uma comunidade sem hierarquias, pautada na igualdade, mas garantindo as identidades. Essa abordagem fora, de certo modo recomendada, em 1986, nas Diretrizes para o Aperfeiçoamento do Ensino/Aprendizagem da Língua Portuguesa, do Ministério da Educação do Brasil, texto elaborado pelos filólogos Celso Cunha, Celso Luft e Edgar Renault: A emergência de variedades linguísticas postulou a existência de duas ou mais normas cultas dentro de uma mesma língua de cultura. É o que ocorre com o nosso idioma no Brasil, em Portugal, em Angola, em Moçambique, em Cabo Verde, na Guiné-Bissau e em São Tomé e Príncipe. O conceito de língua culta, conexo ao de norma culta não coincide, pois, com o de língua de cultura. As línguas de cultura oferecem uma feição universalista aos seus milhões de usuários, cada um dos quais pode preservar, ao mesmo tempo, usos nacionais, locais, regionais, setoriais, profissionais. (1986: 5)

Com esse mesmo objetivo, estudiosos como Antonio Houaiss (1915–1999), com suas Sugestões para uma política de língua, de 1960, e Sílvio Elia (1913–1998), com A língua portuguesa no mundo, de 1989, também integram, dentre outros, o corpus com que estamos trabalhando. Ademais, para traçar o percurso desejado, a investigação não pode ficar no eixo Portugal-Brasil, por isso o estudo da imagem da lusofonia nos demais espaços onde se tem a língua portuguesa como oficial é imprescindível. Assim, neste momento, por exemplo, a pesquisa coletou, de Moçambique, além de várias entradas literárias (como Mia Couto e Craveirinha), produções de linguistas como Armando Jorge Lopes, Gregório Firmino, Pérpetua Gonçalves e de jornalistas como Eduardo Namburete. De Timor-Leste, diversos textos do linguista Benjamim CorteReal, do estudioso Luís Costa e dos escritores Luís Cardoso e Xanana Gusmão. Dos demais países de oficialidade da língua portuguesa, o material encontra-se em fase de recolha para posterior seleção e organização. Além disso, não se pode limitar o espaço da lusofonia ao que a oficialidade dos estados nacionais demarca: assim, a pesquisa também procurará, mais adiante, contribuições de autores de comunidades espalhadas pelo mundo e que constituem a “diáspora lusa” e localidades em que, se bem que nomeiem o português como língua de “uso”, na verdade, ela seja pouco utilizada, como Macau, Goa, Diu, Damão e Malaca. Naturalmente, também autores galegos compõem o material para estudo, contando, por exemplo, com textos de Antonio Gil, ___________________________________________________________________________ – 44 –

Contributos historiográficos para uma ideia de lusofonia ___________________________________________________________________________

Roberto Samartim, José-Martinho Montero Santalha e Guerra da Cal – lembrando que a lusofonia é inconcebível sem a inclusão da Galiza, como acentua Eduardo Lourenço:

3.

 

  

[...] como imaginar o espaço lusófono, e na medida em que ele é o horizonte onde inscrevemos a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, sem incluir nele a Galiza? [...] dado o contexto histórico-político da península a que pertencemos, não se estranhou que a Galiza não tenha estado presente e fosse incluída na nova comunidade de referência lusófona a que se deseja dar, além da vida formal, vitalidade e futuro. Mas isso significa, pelo menos, que o espaço da lusofonia e o da comunidade de referência lusófona não coincidem. (2001: 178)

Outras ponderações

Com efeito, esta viagem que combina linguagem, geografia e história, parte da concepção de que a lusofonia só pode fazer sentido quando compreendida, (con)sentida e (con)vivida como uma comunidade sem hierarquias, pautada na igualdade, como também aponta o linguista José Luiz Fiorin:

Para que a lusofonia seja um espaço simbólico significativo para seus habitantes, é preciso que seja um espaço em que todas as variantes linguísticas sejam, respeitosamente, tratadas em pé de igualdade. [...] Evidentemente, a lusofonia tem origem em Portugal e isso é preciso reconhecer. No entanto, o que se espera na construção do espaço enunciativo lusófono é a comunidade dos iguais, que têm a mesma origem. Defender a idéia de uma lusofonia significativa representa, pelo menos, buscar uma integração entre unidade/variedade, reconhecendo que são muitos os “proprietários” da Língua Portuguesa e assumindo a noção de diversidade/pluralidade cultural como característica inerente ao conceito - isso caso não se pretenda correr o risco de a Lusofonia abdicar de um significado simbólico real e de se constituir num espaço do discurso vazio de um jargão político sem sentido (Fiorin 2006: 46).

É, pois, num contexto geograficamente disperso, multi e pluricultural, de co-existêndia de diferentes sistemas linguísticos (as línguas todas com as quais o português transita no cotidiano angolano, brasileiro, cabo-verdiano, guineense, moçambicano, português, santomense, timorense – só para mencionar os espaços de sua oficialidade) e de diversas normas do português, que é possível pensar/sonhar a língua e a identidade lusófonas. Assim, a lusofonia legitima-se somente quando a entendemos múltipla e quando nela distintas vozes são reconhecidas e respeitadas. Claro é, também, (como frisa Fiorin, 2006), que não se pode enxergar a lusofonia apenas como um espaço dos usuários do português, pois se toda língua tem uma função simbólica e um papel político, assim também a Lusofonia precisa ser pensada. Neste aspecto, conforme Moisés Martins, [...] a lusofonia só poderá entender-se como espaço de cultura. E como espaço de cultura, a lusofonia não pode deixar de nos remeter para aquilo que podemos chamar o indicador fundamental da realidade antropológica, ou seja, para o indicador de humanização, que é o território imaginário de paisagens, tradições e língua, que da lusofonia se reclama, e que é enfim o território dos arquétipos culturais, um inconsciente colectivo lusófono, um fundo mítico de que se alimentam sonhos. (Martins 2006:56) ___________________________________________________________________________ – 45 –

Regina Pires de Brito ___________________________________________________________________________

 

  

Muitas ressalvas são feitas acerca do emprego do termo – especialmente por conta de discursos de tom nostálgico associados a um neocolonialismo ou vinculados a um sentimento de “Portugalidade” por conta do étimo “luso” que nele se explicita. No entanto, se a designação ainda não desfruta de consenso, nem se pôde libertar de fantasmas e desconfortos, também não se tem, ainda, outra denominação que dê conta de traduzir a multiplicidade de traços culturais que, por razões históricas, associam os países de língua oficial portuguesa e muitas comunidades na diáspora que, na diversidade que as caracterizam, têm a língua portuguesa como elemento partilhado. A “lusofonia” tanto carrega uma noção etimológica intrínseca e inevitável e uma histórica construída, quanto é um processo dinâmico e ativo, marcado pela heterogeneidade espacial (que é também social, demográfica, política, econômica...) e pela aproximação cultural, mediadas por uma língua, que se enriquece pela diversidade de ser uma e de se ver múltipla, acentuada pelos contatos com outros sistemas, que o traçado geográfico e as implicações da história propiciaram. Certo é, também, que uma concepção de lusofonia legítima e viável não se pode confundir com sentimentos individuais de nacionalidade: a lusofonia que vale a pena não pode ser sinônimo de “portugalidade”, “brasilidade”, “moçambicanidade”, “angolanidade”... Deste modo, reconhece-se, por exemplo, o Português Europeu e o Português Brasileiro (e os muitos falares dentro de cada um), da mesma forma que já se publicam estudos sobre o Português Moçambicano, o português em/de Angola, os crioulos de Cabo Verde, Guiné-Bissau e de São Tomé e Príncipe e o português de Timor-Leste: “se queremos dar algum sentido à galáxia lusófona, temos de vivê-la, na medida do possível, como inextricavelmente portuguesa, brasileira, angolana, moçambicana, cabo-verdiana ou são-tomense” – como já acentuava Eduardo Lourenço em 2001 (p. 112). Por fim, a lusofonia deve prever e assumir, sempre, a inter-relação da língua portuguesa com os demais sistemas linguísticos e culturais dos espaços onde se faz presente. Somente o fluxo linguístico, o entrelaçar de usos, o partilhar das histórias comuns e das particulares, a valorização das variedades e o respeito mútuo são capazes de conferir à lusofonia tanto um conceito “definido”, quanto a constituição de uma realidade significativa. Não restam dúvidas, portanto, de que a pluralidade de sensações e de sentimentos que a evocação da palavra provoca necessita do conhecimento e do (auto) reconhecimento da imagem histórico-cultural de cada um desses espaços da chamada “comunidade lusófona”, justificando a pertinência do tipo de investigação em que nos engajamos.

___________________________________________________________________________ – 46 –

Contributos historiográficos para uma ideia de lusofonia ___________________________________________________________________________

Referências

 

  

Altman, Cristina. 1998. Pesquisa Linguística no Brasil (1500-1889). São Paulo: Humanitas, FFL/CH/ USP. Bandarra, Gonçalo Anes. 2007. The Project Gutenberg EBook of Trovas do Bandarra, by Gonçalo Anes Bandarra. Produção: Pedro Saborano. On-line: http://www.gutenberg.org/cache/epub/20581 /pg20581.html (último acesso: 8 de fevereiro de 2016). Brito, Regina Pires de. 2013. Língua e identidade no universo da lusofonia. Aspectos de Timor-Leste e Moçambique. São Paulo: Terracota. Cristóvão, Fernando. 2008. Da lusitanidade à lusofonia. Coimbra: Almedina. Cunha, Celso. 1964. Uma política do idioma. Rio de Janeiro: São José. Elia, Silvio. 1989. A língua portuguesa no mundo. São Paulo: Ática. Ferreira, Aurélio Buarque de Holanda. 1975. Novo dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. Ferreira, Aurélio Buarque de Holanda. 1986. Novo dicionário da Língua Portuguesa. 2ª. Ed. Revista e ampliada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. Fiorin, José Luiz. 2006. “A lusofonia como espaço linguístico”. Língua Portuguesa: reflexões lusófonas. org. por Neusa Barbosa Bastos, 25-48. São Paulo: EDUC. Hernandez, Leila Leite. 2005. A África na sala de aula: visita à história contemporânea. São Paulo: Selo Negro. Houaiss, Antônio. 1960. Sugestões para uma política de língua. Rio de Janeiro: MEC, Instituto Nacional do Livro. Koerner, E.F.K. 2014. Quatro décadas de historiografia linguística: estudos selecionados. Seleção e edição de textos de Rolf Kemmler e Cristina Altman (Coleção Linguística, 11). Vila Real: Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro; Centro de Estudos em Letras, 45-63. Lourenço, Eduardo. 2001 [1999] A nau de Ícaro. São Paulo: Companhia das Letras. Martins, Moisés de Lemos. 2006. ‘Lusofonia e luso-tropicalismo, equívocos e possibilidades de dois conceitos hiper-identitários’, Língua Portuguesa: reflexões lusófonas. org. por Neusa Barbosa Bastos, 49-62. São Paulo: EDUC. Pessoa, Fernando. 1986. Obras. Vol. III. Introdução, organização, biobibliografia e notas de António Quadros, 703-704. Porto: Lello & Irmão Editores. Renault, Edgard, Celso Cunha & Celso Pedro Luft. 1986. Diretrizes para o Aperfeiçoamento do Ensino / Aprendizagem da Língua Portuguesa. Brasília: MEC. Romero, Sílvio. 1902. O Elemento Português. Lisboa: Typographia da Companhia Nacional Editora. Silva, Agostinho da. 1988. Um Fernando Pessoa. 2. ed. Lisboa: Guimarães. Silva, Agostinho da. 1988. Dispersos. Lisboa: ICALP. Sobrinho, Barbosa Lima. 2000[1958]. A língua portuguesa e a unidade do Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. Vieira, Antônio. 1953. História do Futuro. Obras Escolhidas. Lisboa: Sá da Costa.

___________________________________________________________________________ – 47 –

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.