Controle judicial de políticas públicas em relação ao direito fundamental à saúde

May 23, 2017 | Autor: J. Cardoso | Categoria: Human Rights, Public policies, Health and Human Rights
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O controle judicial das políticas públicas em relação ao direito fundamental à saúde José Claudemir Bezerra Cardoso – Mestre em Direito pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL), advogado, professor das disciplinas direitos humanos, direito constitucional, direito do consumidor e direito das sucessões na SEUNE. RESUMO: Este artigo tem por objetivo abordar a possibilidade do controle judicial de políticas públicas relativas ao direito à saúde. Para tanto, serão utilizados diversos conceitos de Direito Constitucional para delimitar o conteúdo essencial do direito fundamental à saúde, segundo uma perspectiva ampla dos direitos fundamentais, onde o direito à saúde consiste em uma garantia constitucional de aplicação imediata por parte do Legislador, bem como da Administração Pública. Também serão utilizados argumentos que reforcem a necessidade de que o direito à saúde possa ser aplicado a diversos contextos, obedecendo às limitações de ordem orçamentária e de estrutura do Estado na execução das condições mínimas do direito fundamental em questão, para que possa ser assegurado a todos ao menos o mínimo existencial necessário à consecução do princípio da dignidade humana. Palavras-chave: Saúde - Políticas Públicas - Controle Judicial. ABSTRACT: This article has for objective to approach the possibility of the judicial control of relative public policies to the right to the health. For in such a way, diverse concepts of Constitutional Law will be used to delimit the essential content of the basic right to the health, according to an ample perspective of the human rights, where the right to the health consists of a constitutional guarantee of immediate application on the part of the Legislator, as well as of the Public Administration. Also arguments will be used that reinforce the necessity of that the right to the health can be applied the diverse contexts, obeying the limitations of budgetary order and structure of the State in the execution of the minimum conditions of the basic right in question, so that the least can be assured to everybody the necessary existential minimum to the achievement of the principle of the dignity human being. Keywords: Health - Public policies - Judicial control. Introdução A realidade constitucional brasileira vem, nos últimos anos, reconhecendo um catálogo cada vez maior de direitos individuais e coletivos que se enquadram no perfil dos direitos fundamentais. Os direitos sociais, que surgiram no ordenamento jurídico brasileiro no texto constitucional de 1934, foram também consagrados, além de ampliados pela Constituição de 1988 num contexto em que estes direitos surgem em caráter dúplice, onde, de um lado, exercem a função clássica de direitos dos cidadãos a exigir, por parte do Estado, uma prestação positiva, de ações governamentais voltadas à efetivação de tais prerrogativas. Por

outro lado, surgem nesse mesmo contexto como direitos que obrigam o Estado a concretizar as políticas públicas necessárias à implementação dos direitos sociais, especialmente aqueles que denotam o sentido de necessidades mínimas ao atendimento do princípio da dignidade humana. Como direitos ligados à ideia de igualdade, e também à ideia de solidariedade e humanização das relações sociais, os direitos sociais se configuram cada vez mais como necessários à assistência social das classes desfavorecidas. Daí surge a importância do tema a ser abordado neste trabalho, o da aplicação efetiva do direito à saúde, como direito fundamental social, por meio do controle judicial das políticas públicas. Porém a intenção a ser explicitada nas próximas páginas não tem o intuito de propiciar, como muitos autores costumam ressaltar, uma possível juridicização da política. Isso não faz parte dos objetivos deste trabalho. O que aqui se buscará será a apresentação de possibilidades (saliente-se, de casos excepcionais) em que os juízes, munidos dos mecanismos de controle decorrentes dos princípios da separação de Poderes e do controle dos atos dos demais Poderes pelo Judiciário, possam aplicar, em caso de omissão da execução de políticas públicas por parte do Executivo, ou de omissão, por parte do Legislativo, da elaboração e promulgação de leis necessárias à delimitação de alguns direitos que possuem cláusula constitucional de remissão a leis infraconstitucionais. Neste mesmo contexto, também estão incluídas situações graves e urgentes de pessoas que, no caso do direito à saúde, necessitam de tratamentos ou medicamentos essenciais que o Estado, por algum motivo, não forneceu, e que são essenciais à sobrevivência daquele indivíduo. Estes são alguns dos muitos problemas que podem ser levantados em relação aos direitos fundamentais sociais, aqui especificamente em relação ao direito à saúde. Inicialmente, aprofundando a discussão sobre a aplicação imediata dos direitos sociais será traçado, na primeira parte deste artigo, o perfil evolutivo dos direitos sociais no contexto do ordenamento jurídico brasileiro, desde que estes eram considerados meras normas programáticas até a consideração atual, porém ainda não pacífica, de que os direitos sociais devem ter aplicação imediata. Na segunda parte será abordada a possibilidade de controle das políticas públicas em relação ao direito à saúde, onde será delimitado o que se pode denominar de núcleo essencial do direito fundamental à saúde. Também será ressaltado em que casos será possível a atuação do juiz no controle sobre as políticas do Estado no momento da concretização do direito à saúde, de acordo com a limitação, de um lado, do mínimo existencial, e de outro, de ordem econômico-orçamentária decorrente da reserva do possível. 1.

O direito fundamental à saúde como norma aplicável direta e imediatamente.

1.1 A Constituição de 1988 e a aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais sociais Após o início da vigência da Constituição Federal de 1988, os direitos fundamentais passaram a ser além de devidamente reconhecidos, também efetivados no ordenamento jurídico constitucional brasileiro. Porém, essa concepção não foi aceita tão rapidamente assim pelos aplicadores do direito posto, mesmo com a previsão, desde a redação original, do artigo 5º, §1º, que prevê a aplicação imediata dos direitos e garantias fundamentais. Preparados para lidar somente com questões resolúveis por meio da subsunção dos fatos jurídicos às prescrições normativas, os aplicadores do Direito, que até então mal aplicavam às contendas os preceitos dos direitos de liberdade, interpretaram a regra constitucional acima descrita da forma mais restrita possível, como sempre foi feita a interpretação das leis e dos códigos. Mas poucos se deram conta de que o advento da

Constituição de 1988 trouxe outro panorama à interpretação do Direito e das funções do Estado. A Constituição deixou de ser apenas a lei que consagrava a separação de poderes e delimitava as funções do Estado para se tornar a Lei Fundamental do país (FARIA. 2005, p.99,100). Tal fenômeno consistiu na consideração da Constituição como a lei de maior grau hierárquico no ordenamento jurídico, da qual todas as demais teriam que se subordinar àquela na aplicação de seus preceitos. Com um texto carregado de princípios e regras bastante abrangentes em relação ao reconhecimento de vários direitos individuais e coletivos, a Constituição de 1988 trouxe essa mudança de panorama para a aplicação efetiva dos direitos fundamentais no Brasil. Desde então, a Constituição deixou de ser uma mera “carta de bem intencionadas recomendações” (SANCHÍS, 2007, p. 231) para se tornar uma norma com força cogente tal que obriga o Estado e os cidadãos a agir conforme os seus ditames. É nessa ocasião que as normas sobre direitos fundamentais deixam de ser analisadas exclusivamente do ponto de vista de metas e programas a ser cumpridos pelo Estado, mas sem previsão nenhuma de efetivação, para que se tornem normas de eficácia direta e imediata em relação à execução de políticas públicas que venham a efetivar tais direitos. Porém, apenas mudou-se com essa evolução constitucional o cerne da discussão sobre a eficácia dos direitos fundamentais (CUNHA JÚNIOR, 2015, p.524). Quanto aos clássicos direitos de primeira dimensão, pouco a pouco se foi formando posição pacífica na doutrina e na jurisprudência de que tais normas, em virtude do citado dispositivo constitucional, teriam aplicação imediata. Porém a discussão passa a ser agora em relação ao grau de eficácia dos demais direitos que não estão no catálogo do artigo 5º da Constituição Federal. São os direitos sociais, num primeiro momento, vindo em seguida outros direitos de ordem coletiva ou mesmo difusa. Porém, para os objetivos traçados para este trabalho, cabe-nos abordar apenas a discussão teórica acerca dos direitos sociais. 1.1.1 Interpretação restritiva do artigo 5º, §1º, da Constituição de 1988. Como vem se desenvolvendo até agora a discussão, os direitos fundamentais sociais sempre foram considerados, até a Constituição de 1988, como normas de eficácia limitada, em virtude de seu conteúdo programático. Somente com o advento da nova Lei Fundamental brasileira é que a concepção de direitos sociais recebeu a tendência de mudança introduzida pela nova ordem jurídica. Nesse contexto, com a inclusão dos direitos sociais no catálogo dos direitos e garantias fundamentais, tornou-se necessário delimitar qual seria a forma de efetivação desses direitos, se eles continuariam vinculados à atuação positiva do Estado por meio de leis promulgadas e políticas públicas executáveis, ou se tais normas poderiam ser aplicadas sem depender de qualquer intervenção dos Poderes estatais que não o Judiciário em caso de omissão na prestação positiva do direito. Foi por essa discussão que houve a necessidade de delimitar qual seria o alcance do art. 5º, § 1º, da Constituição de 1988. Para a parte mais conservadora da doutrina de Direito Constitucional, ainda fortemente influenciada pela visão centralista da prevalência das leis positivas dos códigos em relação às normas abstratas das constituições, o alcance do dispositivo referido seria restrito, abrangendo apenas os direitos fundamentais expressamente delimitados ao longo dos incisos do artigo referido (FERREIRA FILHO apud CUNHA JÚNIOR, 2015, p.520,521). Aos demais direitos, em especial aos sociais, restaria a clássica determinação de que estes são regras de conteúdo programático, estando sempre vinculados à atuação do Legislativo e do Executivo para a criação e a execução das políticas públicas, não possuindo o

cidadão, porém, qualquer direito a reivindicar as posturas positivas a ser praticadas pelo Estado para a efetivação de tais direitos (MORO, 2001, p.71-73). Tal postura hoje já não mais se coaduna aos objetivos perquiridos pelo legislador constitucional de 1988. Em uma sociedade pautada pela prática das relações sociais segundo um regime democrático em que a justiça social é um dos princípios fundamentais da Constituição, não reconhecer aos direitos sociais o alcance do dispositivo expresso do artigo 5º, § 1º representa o não reconhecimento destes direitos fundamentais. Seria como se as concepções tradicionais de direitos sociais levassem a uma “desconstitucionalização operada pela própria Constituição”, vinculando-os a meros programas de governo que mudam de acordo com os humores e as negociações políticas daqueles que exercem o poder no país (SANCHÍS, 2007, p.231). Pelos motivos apresentados adiante, essa situação de não reconhecimento do caráter de aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais, aos poucos, vai se tornando insustentável. 1.1.2 Interpretação ampliativa do artigo 5º, §1º, da Constituição de 1988. A Constituição de 1988 foi criada no intuito de promover a democracia, bem como de atender, dentre outros, aos imperativos de justiça social e da dignidade humana (BARCELLOS, 2008, passim). E a justiça social somente se configura com a implementação de políticas que venham a diminuir as desigualdades. Porém tal diminuição somente é possível se a igualdade prevista no ordenamento jurídico traspassar a concepção de igualdade perante a lei. A igualdade, para que se possa atender aos imperativos da justiça social, tem de se configurar como igualdade através da lei (KRELL, 2002, p.19). A Constituição, nesse sentido, deve ser interpretada de forma ampliativa, seguindo-se a três argumentos principais: primeiro, devido ao fato de que a Constituição possui, em geral, regras e princípios de caráter abstrato, o que torna bastante complexa a operação de torná-los aplicáveis restritivamente; segundo, pelo fato de que a distinção entre as dimensões de direitos fundamentais nunca foi de conteúdo, mas tão somente de grau, o que torna a distinção entre direitos individuais e sociais mera questão conceptual, mas não de distinção hierárquica de direitos (ALEXY, 2008, passim); terceiro, em decorrência das duas primeiras justificativas, o art. 5º, § 1º se refere ao catálogo de direitos fundamentais inseridos em todo o Título II (artigos 5º a 17), e não somente ao Capítulo I (art. 5º), por isso deve ser entendido de forma ampla, de maneira tal que abarque todas as dimensões dos direitos fundamentais e não somente os direitos fundamentais de liberdade, expressos nos incisos do referido artigo. Se tal interpretação do parágrafo referido acima fosse inviável, estar-se-ia negando a existência de princípios implícitos ao contexto da Constituição de 1988, o que se configuraria em clara violação ao dispositivo seguinte, o art. 5º, § 2º, que determina que também sejam reconhecidos direitos fundamentais que estejam no contexto da Constituição (ou seja, direitos fundamentais implícitos). Dessa forma, o próprio texto constitucional brasileiro delimitou a forma de interpretação dos direitos fundamentais sociais numa perspectiva bastante ampla, sob o ponto de vista de que estes também devem ser aplicáveis imediatamente, independente de qualquer intervenção legislativa ou de qualquer previsão de política pública que venha a ser executada pelo Estado. Nesse sentido, pois, as normas de direito fundamental social consistem em normas que vinculam diretamente o agir do Estado ao cumprimento dos preceitos fundamentais em relação à implementação e desenvolvimento de políticas públicas que venham a atender às necessidades básicas da população (CUNHA JÚNIOR, 2015, p.525). Como princípios e regras de caráter cogente, em decorrência da característica ínsita às normas de direito à saúde de aplicabilidade imediata, o não exercício das prestações positivas que o Estado está obrigado a efetuar deve trazer consequências jurídicas ao Poder Público

inadimplente. Porém, como não existem normas constitucionais que estabeleçam punições ao inadimplemento dos executores das políticas, discute-se a possibilidade de que o Judiciário, com base nos meios processuais idôneos já existentes, efetue o controle da execução ou da elaboração das políticas públicas com relação ao direito à saúde. 1.2 A saúde como direito fundamental social Na visão de Alexy, os direitos fundamentais são os elementos essenciais do ordenamento jurídico. Porém tais direitos, como direitos do homem, possuem um grau de validade universal, independentemente de sua positivação. Tais direitos existem como exigências para cada ordenamento jurídico. Tais exigências tornaram-se vinculativas juridicamente desde a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1948 (ALEXY, 2008, p.55). Nessa esteira, o referido autor delimita os direitos sociais como direitos à prestação de algo que o indivíduo, se tivesse meios financeiros suficientes e se houvesse suficiente oferta no mercado poderia obter também através de meios particulares. A partir de então, tais direitos passaram a ser exigíveis a toda a ordem jurídica, seja ela no âmbito constitucional, seja no âmbito das leis infraconstitucionais. E as constituições, em caso específico, passaram desde então a adotar os catálogos de direitos fundamentais, que podem, em determinados casos, vir a colidir entre si ou contra regras (ALEXY, 2008, p. 499,512). Neste contexto, o direito à saúde surge como um dos direitos básicos a ser implementados e garantidos efetivamente pelo Poder Público em qualquer uma de suas esferas, seja com relação ao Executivo, ou mesmo em relação ao Legislativo (CUNHA JÚNIOR, 2015, p.525). Os postulados normativos do artigo 6º, bem como as regras constitucionais dos artigos 196 e seguintes da Constituição revelam um caráter de direito a prestações positivas por parte do Estado em atender às necessidades básicas da população, em todos os níveis sociais, especialmente para aqueles que não têm condições de usufruir os serviços de natureza privada, custosos e difíceis de ser mantidos por pessoas que têm escassos recursos financeiros destinados à sua sobrevivência. Este direito tem caráter dúplice, sendo de caráter individual, no sentido de garantia da promoção do bem-estar físico, mental e social de cada pessoa, e difuso, no sentido de assegurar a todos um ambiente sadio e sem perigo de qualquer malefício à saúde (RAMOS, 2015, p.648). Diferentemente de outros direitos de natureza social, tais como o direito à educação básica, por exemplo, o Judiciário terá como atuar de forma coercitiva em ordem a determinar o fornecimento da prestação da saúde em caso de ineficiência na execução, por parte da Administração, das políticas públicas necessárias à plena realização das condições básicas de saúde, que devem ser oferecidas à população como corolário expresso do princípio da dignidade humana (BARCELLOS, 2008, p.304). Essas possibilidades de colisão surgem como verdadeiras dificuldades à concretização de um verdadeiro “mínimo existencial” para a saúde. Na análise de cada caso específico, o juiz aduz ao seu entendimento toda a carga de valores psicológicos e sociais que ele carrega, ou seja, toda a sua experiência empírica, aliada à apreciação das contendas segundo o que está disposto no texto normativo constitucional (BARCELLOS, 2008, p.305). Ao decidir o caso, contudo, o juiz também deve se ater aos cânones tradicionais de direito, aos métodos interpretativos, bem como deve estar ciente de que existem limites de ordem mínima e máxima à aplicação efetiva de tais direitos. Tais limitações consistem no mínimo existencial, num primeiro plano, e na visão da reserva do possível, em um segundo momento, analisando-se, assim, as possibilidades fáticas e jurídicas da execução de tais direitos (BARCELLOS, 2008, p.261,309).

Por essa acepção, poder-se-ia fazer o contraponto em relação a tais limitações como de ordem mínima e máxima. Mínima no sentido de delimitação de um complexo essencial de direitos a ser garantidos pelo Estado a todos os cidadãos, como forma de provimento a uma situação elementar de dignidade, enquanto seria máxima no sentido de limitações de natureza econômica e financeira por parte do Poder Público, que por vezes se torna impossibilitado de prover os direitos fundamentais sociais em detrimento a outros direitos e outras prioridades surgidas segundo o contexto histórico, político e social vivenciado na sociedade (ALEXY, 2008, p.502). Seguindo o entendimento pelo qual o direito à saúde poderia se configurar como um direito a um mínimo existencial, por muitas vezes o administrador público poderá se ver obrigado a fazer verdadeiras escolhas trágicas, quando o direito particular de um indivíduo, para ser reconhecido, tenha que sacrificar o direito de outra pessoa que esteja inclusive em situação de enfermidade pior que aquela que teve seu direito atendido judicialmente (BARCELLOS, 2008, p.309,310), (SARLET, 2004, p. 307). Tal disparidade é inconcebível num Estado Democrático de Direito, mas é o que infelizmente ocorre na prática. Com o objetivo precípuo de se evitar ao máximo que tais situações desagregadoras do conceito de dignidade da pessoa humana ocorram, deve-se buscar a solução mais adequada a cada caso, para que nenhum direito seja afastado totalmente de sua efetiva aplicação, mas que ambos possam ser aplicados concorrentemente, buscando-se a máxima eficácia possível para cada um deles. É na ponderação, pois, que o juiz deve buscar a solução mais plausível para a solução do caso difícil (ALEXY, 2008, p.503). Nesse contexto, o direito à saúde assume a figura de corolário do princípio da dignidade da pessoa humana, como também se torna o meio básico de garantia do direito à vida, pois se as condições fundantes de saúde não forem garantidas pelo Estado, tal decisão pode ser considerada como a configuração de uma verdadeira sentença de morte onde o único “crime” cometido pelo cidadão foi o de não ter nenhuma condição de obter o atendimento de saúde necessário à sua sobrevivência, sem nenhuma possibilidade de defesa, nem muito menos de responsabilização daqueles que foram responsáveis pelo crime, já que os culpados por tal absurdo estarão resguardados pelas condições de anonimato do Estado (SARLET, 2004, p.322). É considerando-se o direito à saúde sob tal perspectiva que será feita adiante a análise acerca da possibilidade de controle, por parte do Judiciário, das políticas públicas necessárias à efetivação do direito fundamental à saúde, baseado no conceito ampliativo ao qual foi dado ao parágrafo 1º do artigo 5º da Constituição Federal de 1988. 2. O controle judicial das políticas públicas relacionadas ao direito à saúde 2.1 O controle judicial das políticas públicas em relação à implementação do direito à saúde. O controle judicial das políticas públicas relacionadas ao direito à saúde se configura como um controle voltado à garantia de que o Estado deve possuir total vinculação às metas e programas estabelecidos no texto normativo constitucional. Tais programas são os estabelecidos no sistema de regras e princípios dispostos no artigo 6º e nos artigos 196 a 200 da Constituição de 1988. Nesse sentido, não haveria espaço para que o legislador ou mesmo a Administração se abstivesse de garantir a efetivação de tais direitos, em relação ao seu mínimo existencial, por meio da criação e execução de instrumentos que pudessem prover a saúde a todo o povo, não somente àqueles que possuem capacidade financeira para usufruir de tais prerrogativas (MIYAMOTO; COURA, 2015, p.84,85).

O papel do Judiciário, deste modo, deve firmar posição, por meio da sentença, no sentido de criar uma obrigação específica para que a Administração Pública cumpra de alguma forma a meta governamental positivada no ordenamento constitucional (APPIO, 2008, p.150). Tal controle pode ser realizado antes mesmo que a política pública venha a existir, podendo o juiz determinar a obrigação de criação de uma lei destinada a regular aquela determinada situação jurídica por meio do Legislativo, quando as necessidades básicas de saúde devam ser atendidas por meio de regra jurídica específica destinada a dar força de obrigatoriedade àquela ação estatal. Ou então, no caso de já existir a norma prevendo a realização de tal programa social de saúde, o Judiciário pode prolatar sentença em ordem a prover, de forma coercitiva, a execução daquele serviço público essencial ao cidadão que não obteve acesso pelos meios normais (APPIO, 2008, p.160). Desta forma se realizaria o controle judicial das políticas públicas numa visão mais ampla, onde não só a execução, mas também a própria implementação das políticas públicas viriam a ser condicionadas a uma postura ativa a ser exercida pelo magistrado na análise dos casos levados a juízo. Esta posição, logicamente, não está imune a críticas. E estas se configuram especialmente sob o argumento de que o Judiciário, atuando dessa forma, estaria extrapolando as suas atribuições dentro da função respectiva na separação de Poderes em um Estado democrático. Estaria por si só configurada uma situação em que se abriria margem aos decisionismos que podem mais prejudicar do que auxiliar a efetivação das políticas de saúde, bem como falta legitimidade democrática ao Poder Judiciário em relação à interferência em atribuições específicas dos demais Poderes. Essas seriam, grosso modo, as críticas de ordem geral relacionadas a essa espécie de controle (BARCELLOS, 2006, p.24), (APPIO, 2008, p.151,152). As críticas de ordem específica estão conectadas às limitações inerentes à atividade jurisdicional em face de uma sociedade democrática. Nesse sentido, o juiz, bem como os outros representantes dos Poderes estatais encontram-se vinculados na mesma medida à Constituição, o que torna a atuação discricionária do Poder Executivo conforme os ditames da lei, e numa perspectiva maior, conforme o disposto na Lei Fundamental do país. A ideia de controle da formulação de políticas públicas, desta sorte, traria implícita a crise de confiança no atual sistema democrático vigente, fruto de várias décadas onde a sociedade não conviveu com liberdades para si e liberdades de atuação cedidas àqueles que representam a população nos Poderes Executivo e Legislativo (APPIO, 2008, p.154). Busca-se, por esse entendimento, dirimir as desigualdades sociais por meio de sentenças que viriam a controlar os atos e disposições inerentes aos demais Poderes, numa nítida invasão de competências e desvirtuação da igualdade de atribuições entre os entes que compõem o Estado. A regulação ampla das políticas públicas, nesse sentido, esvaziaria as competências do legislador e do administrador, concentrando as funções do Estado apenas no Judiciário (APPIO, 2008, p.154,155). Assim, o Judiciário seria algo como um “superpoder”, onde ao juiz caberia eleger as prioridades políticas de aplicação dos direitos à saúde, porém sem que este tenha poderes sobre as limitações de ordem orçamentária inerentes à execução e realização dessas políticas públicas. Seria, dessa forma, um tipo de decisionismo sem nenhuma possibilidade de concretização, já que, ao final, o Legislativo e o Executivo acabariam por desobedecer às decisões em razão de limitação ou impossibilidade financeira de cumprimento das ordens emanadas do Poder Judiciário. Nesse sentido, os juízes mais atrapalhariam do que auxiliaram a consecução da dignidade e da justiça social por meio da utilização do arcabouço normativo (APPIO, 2008, p.156), (BARCELLOS, 2008, p.307).

Entretanto, diante da inércia ou omissão comprovada do Estado em prover políticas públicas de acesso à saúde, por meio do Executivo ou do Legislativo, é inadmissível que seja usado o argumento da reserva do possível para não prover tal direito. Este tem sido o entendimento cada vez mais consolidado nos tribunais brasileiros, que, em verdade, configura o resultado de um verdadeiro movimento global de não admissão da negação de direitos em virtude da insuficiência ou má distribuição de recursos públicos (SARLET, et. al., 2014, p.594, 595). Neste sentido, o próprio Supremo Tribunal Federal já vem adotando, há anos, este entendimento, tal como será visto ao final deste artigo. Porém, deve-se salientar a dificuldade prática de efetivação deste tipo de decisão no Brasil, já que o Poder Legislativo não costuma acatar à risca as decisões do Judiciário, em virtude principalmente do argumento da separação e da consequente independência entre os Poderes. Vislumbrada a acepção mais ampla do controle judicial das políticas públicas, será feita a abordagem da acepção estrita do controle judicial das políticas públicas em matéria de saúde, que diz respeito ao controle apenas dos atos de execução das políticas públicas. 2.2 O controle judicial em relação à execução de políticas públicas voltadas para a saúde Diferentemente da primeira forma de controle abordada acima, a forma relativa à execução dá menos poderes de intervenção ao Judiciário no que concerne ao controle das políticas públicas relativas à saúde. Neste caso, ao Judiciário será cabível apenas a apreciação de políticas públicas que já existem em virtude de leis ou mesmo dos mandamentos constitucionais que especificam a realização de tais programas. A função de controle se conforma então como verificação das condutas praticadas, por parte do Estado, de natureza comissiva, porém relacionada à aplicação ineficaz de recursos públicos ou à ineficiência na prestação efetiva dessa política, ou em relação à inércia, por parte do Executivo, em aplicar os recursos já destinados por lei para a execução de determinada política pública, como as verbas destinadas ao atendimento ambulatorial ou de emergência, por exemplo (APPIO, 2008, p.167). Nesses casos, o Judiciário, quando provocado pelas partes interessadas, pode prolatar sentença destinada a compelir o Estado a realizar a execução de determinada política pública, visando à satisfação das necessidades de uma coletividade prejudicada pela inércia ou incompetência administrativa, ou, em casos determinados pelas circunstâncias fáticas e jurídicas, determinar também a execução de atos que venham a prover os direitos básicos de saúde a apenas uma pessoa ou a um grupo de indivíduos que necessite de forma urgente obter medicamentos ou realizar tratamentos ou procedimentos cirúrgicos dos quais sua vida e dignidade dependam (BARCELLOS, 2008, p.304). Por esse entendimento, o juiz somente poderá agir de forma ativa em relação aos atos dos demais Poderes quando for o caso de inexecução ou execução deficiente dos serviços públicos de saúde a partir do momento em que existe a lei e a dotação orçamentária destinada à concretização daquela política pública. Nesses casos, é patente a violação do direito fundamental à saúde e perfeitamente cabível a participação do juiz nesse processo, a fim de exercer o controle constitucional previsto de que haja o controle do Judiciário em relação aos demais Poderes, porém sem que sejam extrapoladas as competências do Judiciário em relação à aplicação das leis em relação aos atos da Administração (APPIO, 2008, p.168). Muito já se discutiu, nesse sentido, sobre quais ações constitucionais seriam cabíveis à falta de implementação das políticas públicas relacionadas ao direito à saúde. Num primeiro momento, o mandado de injunção foi citado como ação destinada a compelir o Estado a executar as políticas voltadas à saúde. Porém, no contexto atual, o Supremo Tribunal Federal se recusa a deferir a possibilidade de que tal ação venha a ser o meio jurisdicional destinado a

limitar a atuação da Administração, especialmente por meio da justificativa de que tais atribuições estariam extrapolando a esfera de controle judicial, tornando as decisões judiciais nesse sentido uma verdadeira “tirania” jurisdicional em relação à discricionariedade administrativa. Enquanto isso, boa parte da doutrina, tentando solucionar tal controvérsia, busca, por meio da propositura de novos meios processuais, a judiciabilidade das condutas da Administração. Para Lima Júnior, seria necessária a propositura de uma ação destinada ao cumprimento das metas sociais por parte dos governos em todas as esferas. Tal ação, denominada “ação de cumprimento de compromisso social”, teria por objeto solucionar a falta de efetivação dos direitos sociais à propositura e a todo um rito particular destinado a obrigar a Administração, por meio da sentença, a cumprir as metas e programas sociais destinados especificamente ao cumprimento desses direitos (LIMA JÚNIOR, 2001, p.122-124). No entanto, no contexto atual, esta ação se tornaria praticamente inviável, em virtude de que a inserção de qualquer nova ação processual, para ser instituída no ordenamento jurídico necessita de lei para que possa vir a produzir efeitos, o que, neste caso, não foi sequer objeto do projeto do Novo Código de Processo Civil que entrará em vigor em 2016. Além do mais, não há a necessidade de novas ações processuais quando o próprio sistema de Direito Constitucional permite que ações e remédios jurídicos existentes possam ser utilizados em ordem a propor a efetivação judicial dos direitos fundamentais. Por essa concepção, as ações constitucionais destinadas à defesa dos direitos individuais e coletivos são também perfeitamente cabíveis ao amparo do direito fundamental à saúde. O mandado de segurança e a ação civil pública, por esse enfoque, possuem especial pertinência. No caso do mandado de segurança é perfeitamente cabível a sua utilização quando interesses individuais venham a ser molestados pela inexecução ou execução ineficaz do direito à saúde. Para Krell, o mandado de segurança é cabível quando já existe a implementação do serviço público necessário à satisfação do direito fundamental social, porém o Estado não o executa. Tal situação pode ocorrer, e.g., quando há a recusa do Estado em atender a paciente doente, mesmo existindo leitos sobrando nos hospitais, ou mesmo nos casos de medicamentos para doenças de difícil tratamento, como a AIDS, onde o Estado se nega a fornecer tais remédios por questões de economia e finanças públicas. Nesses casos, os Tribunais superiores e o Supremo Tribunal Federal vêm admitindo a pertinência de tal ação na defesa dos interesses individuais dos cidadãos necessitados desses serviços públicos (KRELL, 2002, p.32), (SARLET, et. al., 2014, p.593), (MENDES; BRANCO, 2014, p.650). A ação civil pública também tem sido admitida pelos tribunais em caso de desatendimento das condições básicas de saúde à população, no contexto dos interesses da coletividade. E nesse ponto a atuação do Ministério Público tem sido de vital importância para a efetivação desse controle. Por meio da Lei nº 7.347/85, o órgão ministerial deve efetuar a defesa dos direitos denominados difusos, conectados diretamente à atuação positiva do Estado frente à execução dos direitos relativos à saúde (KRELL, 2002, p.104). Desse modo, o Ministério Público deve surgir como verdadeiro mediador no conflito entre os direitos de ordem social, oponíveis ao Estado por serem garantia da igualdade e da dignidade de todos os cidadãos, em detrimento às questões de política financeira da Administração, que tem de obedecer aos preceitos estabelecidos nas leis orçamentárias, bem como deve ter sua atuação financeira vinculada aos dispositivos da Lei de Responsabilidade Fiscal (KRELL, 2002, p.104). Além da ação civil pública, o Ministério Público pode também se utilizar de meios inerentes à sua esfera própria de atuação para buscar o controle das políticas públicas voltadas à saúde. Assim, destacam-se especialmente as possibilidades de que sejam propostos inquéritos civis, recomendações ou também os termos de ajustamento de conduta destinados a buscar, junto ao Estado, a efetivação dos direitos sociais num padrão mínimo necessário à

sobrevivência digna dos cidadãos. Essa função, destarte, também pode ser ampliada aos Estados membros, em virtude da subordinação de todos também às determinações principiológicas e normativas da Constituição (KRELL, 2002, p.105,106). Assim, será cabível, no plano individual, o ajuizamento de mandado de segurança, bem como no plano dos direitos difusos será possível o ajuizamento de ações civis públicas, ou mesmo no âmbito extrajudicial o Ministério Público pode exercer, segundo suas atribuições, a mediação dos conflitos com resultantes procedimentos de compromissos concretos do Estado em implementar as medidas necessárias à realização do conteúdo mínimo vital dos direitos fundamentais relativos à saúde. A seguir, será feita a análise, em breve resumo, de casos emblemáticos levados ao Supremo Tribunal Federal, ao Superior Tribunal de Justiça e ao Tribunal de Justiça de Alagoas referentes ao tema abordado neste artigo. 2.3 Posicionamentos do Supremo Tribunal Federal, Superior Tribunal de Justiça e Tribunal de Justiça de Alagoas. Para corroborar o entendimento disposto neste artigo, serão apresentados alguns acórdãos que já permitiram o controle judicial das políticas públicas em relação ao direito à saúde. Para tanto, foram pesquisados acórdãos do Supremo Tribunal Federal, Superior Tribunal de Justiça e Tribunal de Justiça de Alagoas. Em decisão proferida no Supremo Tribunal Federal em agosto de 2013 em sede de agravo regimental ao recurso extraordinário nº 668.722, acompanhando os demais ministros o voto do ministro Dias Toffoli, relator do processo, decidiu-se que há obrigação solidária entre o estado do Rio Grande do Sul e o município de Cachoeira do Sul para o fornecimento de fraldas descartáveis a paciente que sofre de paralisia cerebral. Em seu voto, o ministro Dias Toffoli ressaltou que já é entendimento pacificado no tribunal citado em relação ao controle judicial sobre determinadas políticas da Administração Pública, que deve ocorrer em casos excepcionais, tal como no caso da saúde, para que se garanta, em maior medida, o princípio da dignidade da pessoa humana (BRASIL, 2013, p.9). Em outra decisão proferida pela mesma Corte constitucional, em sede de agravo regimental ao agravo de instrumento nº 759.543, julgado em dezembro de 2013, acompanhando os demais ministros o voto do relator, Celso de Mello, decidiu-se, inicialmente, pela competência tanto do Ministério Público para pleitear mediante ação civil pública o direito fundamental à saúde, bem como pela possibilidade do Poder Judiciário determinar a implementação de política pública voltada a garantir o direito citado, por ser de natureza essencial, nos casos de omissão ou ineficiência da Administração Pública (BRASIL, 2013, p.7). Quanto à judicialização de políticas públicas relativas ao direito à saúde, o ministro Celso de Mello confirmou entendimento já construído por ele próprio no julgamento da ação de descumprimento de preceito fundamental nº 45, ao estabelecer a competência do Judiciário para “atuar no controle e intervenção de políticas públicas, quando configurada hipótese de abusividade governamental” (BRASIL, 2013, p.10). No entanto, Celso de Mello deixou claro que não é função do Judiciário formular a política pública, já que esta competência cabe precipuamente ao Executivo e ao Legislativo. Porém: (...) Impende assinalar, contudo, que a incumbência de fazer implementar políticas públicas fundadas na Constituição poderá atribuir-se, ainda que excepcionalmente , ao Judiciário, se e quando os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos político-jurídicos que sobre eles incidem em caráter vinculante, vierem a comprometer, com tal comportamento, a eficácia e a integridade de direitos

individuais e/ou coletivos impregnados de estatura constitucional, como sucede na espécie ora em exame (BRASIL, 2013, p.12).

A decisão do Supremo Tribunal Federal, neste caso, confirmou a decisão originária do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro que obrigou o município do Rio de Janeiro a implementar políticas para melhoria dos serviços de saúde do hospital Souza Aguiar, incluindo alocação de médicos e estabelecendo a fixação do prazo de um ano, contado a partir da aprovação da lei orçamentária anual do município, para que as devidas providências fossem adotadas pela Administração local (BRASIL, 2013, p.13). Como consequência da adoção deste posicionamento, o ministro Celso de Mello aduziu, em relação ao argumento utilizado pelo município a respeito da reserva do possível: (...) Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da “reserva do possível” – ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível – não pode ser invocada, pelo Município, com a finalidade de exonerar-se, dolosamente, do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade. Tratando-se de típico direito de prestação positiva, que se subsume ao conceito de liberdade real ou concreta, a proteção à saúde – que compreende todas as prerrogativas, individuais ou coletivas, referidas na Constituição da República (notadamente em seu art. 196) – tem por fundamento regra constitucional cuja densidade normativa não permite que, em torno da efetiva realização de tal comando, o Poder Público disponha de um amplo espaço de discricionariedade que lhe enseje maior grau de liberdade de conformação, e de cujo exercício possa resultar, paradoxalmente, com base em simples alegação de mera conveniência e/ou oportunidade, a nulificação mesma dessa prerrogativa essencial (BRASIL, 2013, p.16).

Desta maneira, o ministro Celso de Mello estabeleceu, ao ponderar os interesses em jogo no processo, a prevalência do direito à saúde frente ao interesse público de caráter secundário e meramente financeiro do município do Rio de Janeiro, apesar de que esta posição acabou, no entender do magistrado, consistindo em verdadeira “escolha trágica” (BRASIL, 2013, p.17). Em relação ao Superior Tribunal de Justiça, a grande maioria das ações que lá são apreciadas trata do fornecimento de medicamentos, de tratamentos ou procedimentos cirúrgicos que podem ou não ser oferecidos pelo SUS (Sistema Único de Saúde). No caso do recurso especial nº 1.544.681, julgado em decisão monocrática em julho de 2015 pelo relator, ministro Herman Benjamin, ordenou-se que o estado de Pernambuco fornecesse a paciente portador de neoplasia renal medicamento não oferecido pelo SUS. Neste julgado, foi confirmada a situação de gravidade da doença do paciente, bem como a necessidade de fornecimento do medicamento Sutent (Sunitinibe), por ser o único meio eficaz ao combate da enfermidade mencionada (BRASIL, 2015, p.1). No entender do ministro Herman Benjamin: (...) 6.Não há, com o deferimento judicial de fornecimento de remédio para a parte autora qualquer afronta aos princípios da impessoalidade e isonomia, tampouco o risco de ocasionar efeitos nefastos para os demais beneficiários do serviço público de saúde. O administrador público não pode recusar-se a fornecer um medicamento comprovadamente indispensável à vida do requerente, usando como argumento a sua excessiva onerosidade, ainda mais sendo este o seu dever. 7. Constitui mera formalidade a ausência do medicamento no Programa de Dispersão de Medicamentos em Caráter Excepcional, em lista prévia, não podendo, por si só, ser obstáculo ao fornecimento gratuito de medicamento necessário para o tratamento da saúde do apelado, portador de doença gravíssima (BRASIL, 2015, p.2).

Desta forma, o ministro relator desconsiderou o argumento da reserva do possível e confirmou a obrigação do estado de Pernambuco, no caso em análise, a fornecer o medicamento, mesmo que não esteja previsto no programa de referência do SUS, como forma de garantir o direito à vida e, consequentemente, o direito à saúde do paciente.

Seguindo entendimento semelhante, a ministra Regina Helena Costa, em decisão monocrática proferida em sede de agravo em recurso especial nº 714.606, julgado em agosto de 2015, confirmou o acórdão do recurso especial agravado no sentido de estabelecer a responsabilidade solidária entre a União, o estado do Rio Grande do Norte e o município de Mossoró para custear a cirurgia de paciente portadora de obstrução do colédoco e que necessita submeter-se a cirurgia de colangiopancreatografia endoscópica retrógrada, procedimento que visa evitar a cirrose biliar e de caráter essencial a garantir a vida e a saúde da paciente (BRASIL, 2015, p.1). Neste caso, estabeleceu-se multa diária no valor de mil reais para o caso de descumprimento da decisão judicial, em virtude da gravidade e da urgência do caso, confirmando a ministra Regina Helena Costa a natureza razoável e proporcional da astreinte ao denegar o agravo interposto pela União (BRASIL, 2015, p.2). Decisões com posicionamentos semelhantes também são encontradas em julgados do Tribunal de Justiça de Alagoas. Em um caso ilustrativo, nos autos da apelação cível de nº 25.334, julgada em agosto de 2015 pela 2ª Câmara Cível e decidida de forma unânime, seguindo o voto da relatora, desembargadora Elisabeth Carvalho Nascimento, foi confirmada a obrigação do município de Maceió em fornecer a paciente submetido a cirurgia de colostomia de sigmoide colchão específico para o período pós-operatório, no valor de mil e duzentos reais (BRASIL, 2015, p.3). No caso em questão, a desembargadora relatora ressaltou que, por ser caso de responsabilidade solidária, o paciente poderia ingressar com ação contra qualquer ente federativo, sendo inviável, assim, o litisconsórcio passivo dos demais entes responsáveis, como arguido pelo município de Maceió. Também não encontrou guarida o argumento da reserva do possível, já que, no entendimento da relatora, a responsabilidade do ente estatal não somente é de fornecer “qualquer tratamento, mas o mais adequado e eficaz” (BRASIL, 2015, p.5, 6). Além disso, também foi confirmada a imposição de multa periódica ao município de Maceió, caso a decisão seja descumprida pelo ente público: (...) Assim, com o desígnio de assegurar o direito à saúde da parte e, por conseguinte, concretizar os preceitos fundamentais consignados na Carta Federal, o magistrado tem o poder/dever de aplicar as astreintes, como a única solução a ser realizada para elidir a inércia do ente público em implementar a decisão judicial (BRASIL, 2015, p.10).

Deste modo, no caso em questão, a 2ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Alagoas confirmou entendimento bastante semelhante ao citado acima pelo Superior Tribunal de Justiça, bem como corrobora o entendimento já consagrado pelo Supremo Tribunal Federal no sentido de admitir o controle judicial sobre as políticas públicas de saúde, especialmente no que diz respeito à Administração Pública. Conclusão A partir do que foi apresentado ao longo deste artigo, vislumbra-se que o Poder Judiciário, numa visão mais ligada à realidade atual de uma sociedade multifacetada e desigual como a brasileira, deve adotar uma postura ativa frente às situações de insensibilidade administrativa em não implantar, ou mesmo de implementar de forma insuficiente as políticas públicas relacionadas ao direito fundamental à saúde. Porém, o que se observa na prática dos tribunais pátrios é a diuturna batalha entre o Estado, que quase nunca considera as demandas individuais como relevantes à consideração de um direito fundamental à saúde, frente a um indivíduo que por muitas vezes não reúne condições financeiras suficientes a adquirir medicamentos ou a realizar tratamentos complexos de doenças crônicas.

Atualmente o principal problema da efetivação dos direitos fundamentais já não se configura mais como uma dificuldade relativa à aceitação desses direitos como normas aplicáveis independentemente da vontade do legislador, mas sim de verdadeira sensibilidade, por parte dos administradores, bem como dos aplicadores do Direito, em resolver os problemas de todos aqueles que precisam de que o mínimo vital do direito à saúde venha a ser garantido. Para tanto, contudo, não é necessário que novas leis ou novos instrumentos processuais venham a ser configurados para a efetivação do direito à saúde. A ação civil pública, como demonstrado acima, já é admitida de maneira praticamente pacificada pelo Supremo Tribunal Federal quanto a questões relativas ao direito à saúde, bem como o mandado de injunção poderia ser utilizado, segundo a visão mais ampla do controle judicial, a fim de obrigar também o Legislativo a criar leis no sentido de implantar as diretrizes públicas necessárias à positivação de mais direitos à saúde. Esta é também uma questão também de eleição de prioridades políticas, onde quase sempre na realidade brasileira os administradores deslocam as verbas destinadas aos direitos sociais para outros fins. Em âmbito federal, estadual ou municipal, estas verbas são destinadas ao pagamento de dívidas públicas exorbitantes, já que cerca de metade de tudo o que é arrecadado no país é destinado ao pagamento de dívida externa e à acumulação de reservas para que se construa o tão endeusado superávit primário, em nome da credibilidade econômica internacional. Em momentos de crise, como o atual, esta infeliz política torna-se ainda mais nítida, através dos já conhecidos mecanismos de ajuste fiscal. Toda esta situação de inversão de prioridades, onde o financeiro prevalece sobre o humano, não será modificada enquanto os valores hoje prevalentes na sociedade patrimonialista não forem superados pelos valores inerentes a uma sociedade muito mais humana e solidária. Enquanto isto não ocorre, o direito fundamental à saúde continuará encontrando sérias dificuldades para ser efetivamente aplicado pelo Poder Público. Em suma: enquanto a preocupação principal do Estado brasileiro for o patrimônio, a arrecadação fiscal e o acúmulo de riquezas em detrimento ao atendimento das necessidades básicas dos cidadãos, será sempre necessária a intervenção judicial para assegurar a real implementação das políticas públicas. Referências ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais (trad. Virgílio Afonso da Silva). São Paulo: Malheiros, 2008. _______ . Constitucionalismo discursivo (trad. Luís Afonso Heck). Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. APPIO, Eduardo. Controle judicial das políticas públicas no Brasil. 1. ed., 5ª reimpressão, Curitiba: Juruá, 2008. BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade humana. 2. ed., revista e ampliada, Rio de Janeiro: Renovar, 2008. _______ . Neoconstitucionalismo, direitos fundamentais e controle das políticas públicas. Revista diálogo jurídico, 15 v., Salvador, 2007. ________ . Constitucionalização das políticas públicas em matéria de direitos fundamentais: o controle político-social e o controle jurídico no espaço democrático. Revista de direito do estado, ano 1, nº 3, julho/setembro 2006. BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Agravo regimental no agravo de instrumento nº 759.543 da 2ª Turma, Brasília, DF, 17 de dezembro de 2013. Ampliação e melhoria no atendimento à população no hospital municipal Souza Aguiar. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/, número 5112209. Acesso em: 28 ago. 2015.

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