Convergências entre o romance Incidente em Antares e o filme A casa dos espíritos

June 19, 2017 | Autor: Marcelo Levit | Categoria: Literature, Intertextuality, Rereading and Intertextuality, Literatura, Intertextualidad, Intertextos
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VERÍSSIMO, 1995, p. 60-61
Ibid., p. 66
Ibid., p. 82-83
Ibid., p. 139
Ibid., p. 186-187
VERÍSSIMO, 1995, p. 724
Ibid., p. 724
Ibid., p. 727
Ibid., p. 729
A CASA…, 1993, 1:33:55
Ibid., 1:39:30
Ibid., 1:56:00
Ibid., 1:45:10
Ibid., 1:47:03
Ibid., 2:03:00
Ibid., 1:58:00 e 2:06:00
As noções de fantástico, mágico e maravilhoso não se restringem ao universo artístico e são usadas indiscriminadamente na comunicação cotidiana, como se fossem sinônimos. Por outro lado, no campo da literatura, ainda que se tenha tentado, não se conseguiu estabelecer um critério demarcatório objetivo que permitisse identificar e catalogar as obras segundo cada uma dessas denominações. (FOLLAIN DE FIGUEIREDO, 2013a, p. 24)
VERÍSSIMO, 1995, p. 7-8
VERÍSSIMO, 1995, p. 344-345
Ibid., p. 361
Ibid., p. 362
Ibid., p 426-427
VERÍSSIMO, 1995, p. 428
A CASA…, 1993, 00:05:29
Ibid., 00:06:28
Ibid., 00:37:00
Ibid., 01:41:19
Ibid., 01:05:20
A CASA…, 1993, 00:03:54
Ibid., 00:29:30
VERÍSSIMO, 1995, p. 8-14
Ibid., p. 14-15
Ibid., p. 197; 438-444; 657-664
Ibid., p. 223-284
Ibid., p. 388-396; 492-494; 518-519
Ibid., p. 187; 205-213
Ibid., p. 8
VERÍSSIMO, 1995,, p. 388
Ibid., p. 438-439
A CASA…, 1993, 0:02:00
Ibid., 0:03:02
Ibid., 0:56:20
Ibid., 2:15:39
VERÍSSIMO, 1995, p. 715
VERÍSSIMO, 1995, p. 695
A CASA…, 1993, 2:15:30
"conservadorismo", in iDicionário Aulete: online, 2008. Disponível em Acesso em: 28 jun. 2014.
VERÍSSIMO, 1995, p. 88
Ibid., p. 71
Ibid., p. 74
A CASA…, 1993, 1:04:30
VERÍSSIMO, 1995, p. 336
A CASA…, 1993, 1:01:56
Ibid., 1:04:22
VERÍSSIMO, 1995, p. 155-156
A CASA…, 1993, 1:39:30
VERÍSSIMO, 1995, p. 710-711
VERÍSSIMO, 1995, p. 280
Ibid., p. 144
A CASA..., 1:47:03
16

Marcelo Levit
Literatura Brasileira



Instituto Superior en Lenguas Vivas - Juan Ramón Fernández
CARREIRA: Tradutorado em Português

Trabalho integrador
sobre a
intertextualidade


Convergências entre o romance
Incidente em Antares e o filme A casa dos espíritos





NOME: Marcelo Levit
DISCIPLINA: Literatura Brasileira
PROFESSORA: Caroline Pfeifer
1ro quadrimestre de 2014












O objetivo deste trabalho é analisar as relações de intertextualidade que se apresentam no romance Incidente em Antares (1995), do escritor brasileiro Erico Veríssimo, e no filme A casa dos espíritos (1993), do diretor danes Bille August, cujo roteiro é uma adaptação do livro homônimo (1982) da autora chilena Isabel Allende.
O estudo se circunscreve aos seguintes traços comuns:
Fatos históricos com valor testemunhal;
Elementos do realismo maravilhoso;
Metaliteratura como recurso narrativo; e
Ideologemas indicadores do conservadorismo.
Primeiramente, serão brindados os conceitos teóricos sobre a intertextualidade. A seguir, se darão as sinopses das obras nomeadas, para logo continuar com o desenvolvimento do estudo propriamente dito, para finalizar com a conclusão do trabalho.



Convergências entre
Incidente em Antares e A casa dos espíritos


O presente trabalho tem por objetivo assinalar as relações intertextuais entre o romance "Incidente em Antares", do escritor brasileiro Érico Veríssimo, e o filme "A casa dos espíritos", dirigido pelo danes Bille August, cujo roteiro é uma adaptação do livro homônimo de Isabel Allende.
Essas relações intertextuais são evidenciadas pela existência de alguns traços comuns entre as duas obras, como ser certos temas ou caráteres narrativos. No entanto, isso não tem que ser confundido com influencias, mas como a existência de certas condições históricas e culturais, presentes em determinada região e época, que condicionam as expressões artísticas.
Como essa finalidade, são apresentados os traços comuns no referente a:
Fatos históricos com valor testemunhal;
Elementos do realismo maravilhoso;
Metaliteratura como recurso narrativo; e
Ideologemas indicadores do conservadorismo.
Porém, prévio à descrição dessas relações intertextuais, é conveniente definir alguns conceitos teóricos sobre a intertextualidade.

Intertextualidade
Para desenvolver este tema nos baseamos na teoria da intertextualidade segundo foi conceitualizada por Barthes e na noção de ideologema definida por Julia Kristeva.
Barthes explica a intertextualidade como:

La intertextualidad, condición de todo texto cualquiera que sea, no se reduce evidentemente a un problema de fuentes o de influencias. […] Epistemolágicamente, el concepto de intertexto es lo que aporta a la teoría del texto el volumen de la socialidade: es todo el lenguaje, anterior y contemporáneo, que llega al texto no según la vía de una filiación identificable, de una imitación voluntaria, sino según la vía de diseminación (imagen que asegura al texto el estatuto no de una reproducción, sino de una productividad). (Em VILLALOBOS ALPÍZAR, 2003, p. 140)

Para uma melhor compreensão desse conceito, Iván Villalobos (Cf. 2003, p. 137) explica que o termo intertextual faz referencia a uma relação de reciprocidade entre os textos, isto é, uma relação entre eles, num espaço que transcende o texto como unidade fechada:

El texto no existe por sí mismo, sino en cuanto forma parte de otros textos, en tanto es el entre texto de otros textos. En este punto, citamos a Barthes: "La intertextualidad en la que está inserto todo texto, ya que él mismo es el entretexto de otro texto…"
[…]
No sólo todos los textos anteriores forman parte del intertexto latente de todo texto, sino también el conjunto de los códigos y sistemas que operan esos textos, es decir, su dimensión estructural y estructurante.
(VILLALOBOS, 2003, p. 138)

Por sua vez, para Julia Kristeva (1984, p. 12) a intertextualidade está baseada na noção de ideologema, termo definido por ela como:

[...] aquela função intertextual que podemos ler "materializada" nos vários níveis da estrutura de cada texto, e que se estende ao longo de todo o seu trajeto, dando-lhe as suas coordenadas históricas e sociais [...] A aceitação de um texto como ideologema determina a própria atitude de uma semiologia que, estudando o texto como intertextualidade, o pensa, pois, na (nos textos da) sociedade e na história.

Com esse critério, todo texto literário está constituído por ideologemas que se evidenciam na forma em que são caraterizados os personagens, seu falar, suas atitudes, deste modo dão conta do modelo de vida e da sociedade que representam.
Esse conceito é esclarecido por Carlos Altamirano e Beatriz Sarlo (1993, p. 54) da seguinte maneira:

El ideologema es la representación, en la ideología de un sujeto, de una práctica, una experiencia, un sentimiento social. El ideologema articula los contenidos de la conciencia social, posibilitando su circulación, su comunicación y su manifestación discursiva en, por ejemplo, las obras literarias. Son ideologemas los que entran como contenidos de las representaciones literarias, porque la vida social no puede pasar a la literatura sin la intermediación de estas unidades discursivas.

Baseado nesses conceitos teóricos, é que são despontadas as relações intertextuais existentes em ambas as obras analisadas.
Sinopses
Incidente em Antares, publicado em 1971, é o último romance de Érico Veríssimo. Com um sentido visivelmente político, este romance sintetiza, de um lado, o curso sócio-político do Brasil contemporâneo; de outro, faz um fantástico julgamento dos vivos por parte de sete mortos insepultos.
A obra, ambientada na fictícia cidade de Antares, no Rio Grande do Sul, conta a história das sucessivas gerações dos clãs Vacariano e Campolongo, e suas continuas lutas pela primazia do poder local, desde 1830 até 1964. Todo isso misturado com dados da realidade histórica do Brasil, em que os acontecimentos e vaivéns políticos e sociais constituem o palco onde se sustenta toda a obra.
Entretanto, além de todos esses acontecimentos históricos e sucessos fictícios, mas verossímeis, um incidente sobrenatural, que dá nome à obra, altera a vida cotidiana da cidade numa sexta-feira, 13 de dezembro de 1963.
O incidente em questão se origina, como uma consequência não esperada, por uma greve geral declarada pelos trabalhadores de Antares. Entre eles os coveiros que se recusam a enterrar os mortos. Por isso, sete defuntos insepultos reclamam pela sua situação e ameaçam ficar apodrecendo na praça principal até serem enterrados.
Por sua vez, o filme A casa dos espíritos (1993), cujo título original é The House of the Spirits, está baseado no primeiro romance da escritora chilena (1982).
O argumento descreve a história da família Trueba ao longo de três gerações, cujas vivencias se ligam com fatos de caráter social e político do Chile, nos primeiros setenta anos do século XX.
Esteban Trueba se torna, depois de trabalhar afanosamente, num próspero fazendeiro. Na sua propriedade rural, ele é o patrão que subordina a toda pessoa considerada socialmente inferior e cuja dominação não é apenas social, mas também sexual.
Assentado no seu domínio, Esteban decide casar-se com Clara del Valle, quem tem dons sobrenaturais de clarividência e telecinesia, a par de poder comunicar-se com espíritos.
Do casal nasce Blanca, quem enfrenta o pai por manter um relacionamento com Pedro, um camponês com ideias socialistas.
Os conflitos familiares dos Trueba se veem emaranhados com os sucessivos acontecimentos que dominam a cena política do Chile. O aumento das reivindicações sociais resulta no triunfo eleitoral do partido socialista. A seguir, uma conspiração conservadora deriva no golpe de estado de 1973 por parte dos militares, e a decorrente repressão politica.

Fatos históricos com valor testemunhal
Como foi adiantado nas sinopses, nas duas obras se mistura ficção com fatos históricos reais.
Dessa maneira, são revividos no romance de Veríssimo numerosos episódios da vida politica brasileira que estão inseridos no dia-a-dia dos personagens. A modo de exemplo se apresentam os seguintes trechos:
Quando em novembro de 1926 chegou a Antares a notícia de que Getúlio Vargas havia sido feito Ministro da Fazenda do gabinete de Washington Luís, que sucedera Artur Bernardes na presidência da República [...]

Quando em 1934 o Brasil adotou uma nova Constituição e Getúlio Vargas foi eleito Presidente da República pela Assembléia Constituinte [...]

[...] em outubro de 1945 [...] o Exército havia forçado Getúlio Vargas a renunciar. [Logo após] o Gen. Goes Monteiro justificava o golpe de Estado, assumindo plena responsabilidade por ele.

Em 1955 o P.S.D. e o P.T.B. elegeram Juscelíno Kubitschek de Oliveira Presidente e João Belchior Goulart Vice-Presidente da República.

No dia 7 de setembro de 1961 o Dr. João Belchior Goulart prestava juramento como Presidente da República e o Brasil adotava o regime parlamentar.

É assim como, ao longo do livro, é possível ver como se foram encadeando os elos que definiram a história brasileira até chegar ao golpe de estado de março de 1964, que depôs o presidente João Goulart e instaura a ditadura militar, assim como suas sequelas.
Acusado de comunista, Goulart, popularmente chamado de Jango, teve que enfrentar uma forte campanha da oposição, além de numerosas greves e agitações originadas como consequência da má situação econômica. (GASPARETTO Jr., 2010)
Em março de 1964, as forças armadas, juntos com políticos de direita e o governo norte-americano, e com apoio da igreja católica, perpetraram o golpe de estado (GASPARETTO Jr., 2010). As suas implicações –suspensão dos direitos trabalhistas, perseguição e assassinato político- também se refletem na obra de Veríssimo:
Lucas Lesma [...] compôs para o seu jornal um artigo [...] no qual, entre elogios à revolução vitoriosa, escreveu: "Agora que as greves estão felizmente proibidas por lei, reina a maior harmonia entre patrões e empregados, e os sindicatos e os trabalhadores não vão mais ser usados, como acontecia no governo deposto, como instrumentos de política partidária, nem como fatores de desordem social" .

Entretanto, aqueles que o regime considerava opositores eram perseguidos e tinham que emigrar ou simplesmente "desapareciam":
Caçado pela polícia do novo governo, Geminiano Ramos uma noite atravessou o rio às pressas, na lancha do Romero, e ambos pediram asilo na Argentina .

[...] o Prof. Martim Francisco Terra que, expurgado com vários outros colegas da sua universidade, emigrara para o Chile .

Os dedicados guardas municipais [...] abriram fogo contra um estudante que, com broxa e piche, tinha começado a pintar um palavrão num muro [...] Na calçada, no lugar em que o rapaz caiu, ficou uma larga mancha de sangue enegrecido [...]

De forma similar, na larga metragem de Bille August os fatos históricos se inserem na vida da família Trueba e detonam a partir da contenda eleitoral pela presidência do Chile entre o Partido Conservador e o Frente Popular.
A diferença do romance brasileiro em que, segundo a nota do autor, "[...] as pessoas e os lugares que na realidade existem ou existiram, são designados pelos seus nomes verdadeiros", no filme não é mencionada nenhuma personalidade histórica, mas todo indica que o presidente eleito é Salvador Allende ( BIBLIOTECA NACIONAL DE CHILE, s.f.).
Na tevê, um noticiarista anuncia a vitória do Frente Popular. Os conservadores foram derrotados após estar no poder por mais de uma geração.
Todavia, a direita conservadora planeja derribar o governo legitimo. Com esse propósito, tenta incrementar o descontento da população produzindo desabastecimentos de mercadorias, coopta os militares e procura o apoio dos Estados Unidos.
Em alguns trechos do filme aparecem situações que dão conta desses fatos:
Na véspera de Natal, Blanca responde à queixa de seu pai pela falta de comida, roupa, sapatos e outras mercadorias, que ele sabia quem estava por trás das greves e que todo o mundo sabia que isso era uma sabotagem ao governo socialista..
Na cena em que Trueba exige uma explicação pela detenção de Blanca, ele confessa ao militar que o recebe que foram os conservadores os que estabeleceram contato com os generais e o vínculo com os americanos para propiciar o golpe de estado, além de garantir com seu próprio dinheiro e reputação as armas utilizadas.
Finalmente, toda essa estratégia planejada pela direita chilena deriva no golpe que derroca o governo socialista (El 11-S, 2013). Os militares dominam a cena, tanques, aviões de combate e soldados invadem a cidade, o exercito toma posse da situação, enquanto milhares de civis são apanhados e privados da liberdade.
O noticiário informa que o governo eleito democraticamente está sendo atacado pelos militares. Por sua vez, o Partido Conservador dá seu apoio ao golpe, e afirma que assumirá o governo quando os militares tiverem imposto ordem no país. Uma coisa é certa: o país está sendo controlado pelas Forças Armadas.
Considerados opositores ao novo regime, Pedro e Blanca são perseguidos. Pouco tempo depois, ele consegue refugiar-se na embaixada de Canada, mas ela é aprisionada e cruelmente torturada.

Elementos do realismo maravilhoso
O realismo maravilhoso, também denominado fantástico ou mágico, é explicado por Follain de Figueiredo (2013b, p. 19) como a vertente da ficção latino-americana na qual "[...] tudo é possível: os elementos sobrenaturais não provocam maiores reações nem nas personagens nem no leitor". Para a professora, esse gênero:
[...] consistiu numa afirmação identitária da América Latina e, ao mesmo tempo, numa revisão crítica da modernidade ocidental. O "maravilhoso" foi interpretado como elemento identificador da cultura latino-americana, como traço característico que a distinguia do mundo europeu. (2013b, p. 17)

Daí a importância de conhecer o contexto cultural para entender a natureza deste gênero narrativo, pois:
[...] o realismo mágico floresceu com esplendor na literatura latino-americana dos anos sessenta e setenta, enraizado nas discrepâncias surgidas entre cultura da tecnologia e cultura da superstição, e em um momento em que o auge das ditaduras políticas converteu a palavra numa ferramenta infinitamente apreciada e manipulável. (UFRGS, 2000)

Conforme isso e comparando os processos históricos do Brasil e do Chile, é possível reconhecer que as duas narrativas foram criadas em circunstâncias sócio-políticas similares, as que definitivamente determinaram as respectivas escritas dos autores.
Nas sinopses estão descritos os elementos sobrenaturais das duas estórias. Embora sejam de diferente natureza, a presença do fantástico é assumida com total naturalidade e se situa no mesmo plano da realidade cotidiana. De forma tal, que o conceito do real se amplia para dar lugar a uma realidade mágica, assumida como normal: os espíritos passeiam pelos quartos e os mortos se despedem de seus seres queridos, enquanto convivem com os vivos influindo suas existências.
No romance de Veríssimo, o realismo maravilhoso se manifesta a partir da segunda parte do livro, quando o "incidente" propriamente dito acontece. Ainda que, no início antecipe o teor "fantástico" do ocorrido na sexta-feira, 13 de dezembro de 1963:
[...] tão fantásticos foram esses acontecimentos, que o Pe. Gerôncio chegou a exclamar, dentro de seu templo, que aquilo era o começo do Juízo Final.

Porém, é a partir do momento em que os mortos insepultos foram acordando que o elemento fantástico toma conta da narrativa:
Os olhos dela estavam abertos, seus lábios começaram a mover-se e deles saiu primeiro um ronco e depois estas palavras, nítidas: "Senhor, em vossas mãos entrego a minha alma".
[...]
Agora, estendida no seu esquife, D. Quitéria está de olhos abertos e parece contemplar um pedaço do firmamento da madrugada.

Esse fato extraordinário irrompe no cotidiano, como parte do mundo natural, de tal sorte que um dos defuntos:
[...] olha atentamente na direção da cidade, murmura:
– Já repararam? Não se vê nenhuma luzinha em Antares... Nem nas ruas nem nas janelas.
[..]
– Ah! – exclama Barcelona de repente, dando uma palmada na própria testa. – Já sei... Está tudo claro. A greve continua...

E esse morto esclarece o motivo pelo qual estavam insepultos:
[...] Pedi a palavra e sugeri que metessem os coveiros na greve geral e que não permitissem nenhum sepultamento no cemitério enquanto os patrões não dessem ganho de causa aos operários. Agora tudo está explicado!

Nesse contexto de normalidade, os sete defuntos decidem descer do cemitério à cidade de Antares para reclamar pelo seu direito a ser sepultados.
E com igual naturalidade, cada um dos mortos terá conversas com diferentes pessoas com quem mantinham algum tipo de relacionamento em vida – filhos, esposa, amigos, conhecidos etc. Até mesmo, alguns deles ficaram esperando o encontro, como é o caso da Rosinha que se arruma especialmente para a ocasião:
Quando lhe vêm contar que Erotildes voltou à cidade na companhia de outros seis defuntos insepultos, Rosinha pensa assim: "Aposto que ela vem me visitar..." Mas não diz nada a ninguém. Veste o seu melhor vestido, calça os seus sapatos menos velhos, pinta-se e – tudo isso feito – senta-se na cama de ferro que ambas por muito tempo partilharam [...]

Quando a Erotilde chega ao quarto da sua amiga mantem o seguinte dialogo:
– Como vais?
– Mais ou menos. E tu?
– Morta.
– Como foi que voltaste?
– Não sei. Mas o Dr. Cícero está providenciando pra enterrar a gente. O advogado, te lembras? E tu sabes quem está no nosso grupo? Uma grã-fina, a D. Quitéria Campo-largo. Imagina só que chique!
Rosinha sacode a cabeça lentamente, imaginando... Depois baixa os olhos e murmura:
– Tu me desculpas por eu ter ficado com o teu vestido, as tuas meias, o teu sapato... e as outras bugigangas?
– Ora, que bobagem! Defunto não precisa mais dessas coisas.
– Tu não te ofendes se eu espalhar um pouco de perfume?
– Ora! Não me importo. Sei que estou fedendo. Mas que é que tu queres? Morta há quase três dias... Ou dois? Nem me lembro.

De maneira similar, A casa dos espíritos também incursiona no realismo mágico, embora apresente algumas diferenças com respeito ao romance brasileiro: o elemento fantástico está ligado principalmente a uma das protagonistas principais, Clara, e manifesta-se ao longo de toda a história, desde sua infância até mesmo depois de morta.
Clara tem o dom da clarividência e da telecinesia, além de poder comunicar-se com os espíritos. Suas faculdades sobrenaturais são aceitas pela comunidade com total naturalidade, e não obstante seus pais tentassem mante-las em segredo, todo mundo sabia delas e consultavam-na, clandestinamente, para pedir conselho.
A seguir, alguns exemplos:
Clarividência
Clara podia responder consultas sobre o futuro, mas também experimentava visões de acontecimentos futuros involuntárias, como quando a morte da irmã ou o acidente fatal dos pais .
Comunicação com espíritos
Clara sempre esteve em contato com os espíritos do além. Numa ocasião, Clara começa a sentir frio e certo desconforto, para surpresa de todos os presentes, Férula, a irmã de Esteban, apresenta-se, sem falar beija a testa de Clara e vai embora tão silenciosamente como apareceu. Clara diz, entre soluços, "Férula morreu".
Telecinesia
Quando Esteban se apresenta para pedir a mão de Rosa, Clara, ainda uma criança, se entretém movendo com a sua mente um vaso com flores. Sem demostrar estranheza alguma, Esteban pega o vaso em movimento para evitar sua caída ao chão.
Muitos anos depois e em plena lua de mel, Clara eleva uma mesinha só com olha-la, nesse momento seu marido a retorna a seu lugar, como quem concerta a travessura de uma criança.

Metaliteratura como recurso narrativo
Helder Macedo (1993, p. 199) afirma que há uma:
[...] crescente tendência para memorialismo, autobiogra a e cção convergirem em romances e novelas que chamam atenção para a sua própria natureza e processos de composição, ou seja, que incluem as estratégias de auto-referenciação textual – quando não intertextual – a que se convencionou chamar de 'metaliteratura'.

Em Incidente em Antares, os fatos são relatados por um narrador onisciente e onipresente. Contudo, ao longo do romance, faz uso dos escritos de diversos personagens. Entre eles há documentos históricos como o diário de viagem de Gaston Gontran d'Auberville e a carta do Padre Juan Bautista Otero; também estão os diários intimos do Padre Pedro-Paulo e do Prof. Martim Francisco Terra; artigos jornalisticos de Lucas Faia; e fragmentos da "obra intitulada Anatomia duma cidade gaúcha de fronteira, da autoria dum grupo de professores e alunos do Centro de Pesquisas Sociais, da Universidade do Rio Grande do Sul".
A modo de exemplo, se transcrevem os seguintes trechos:
[...] Escreveu o ilustre cientista [Gaston Gontran d'Auberville ] em seu diário de viagem :
24 de abril. – Cruzamos esta manhã o Rio Uruguai, numa balsa, e entramos em território do Brasil. [...]

Essa marcha dos mortos [...] seria descrita [...] por Lucas Faia: Foi na última sexta-feira 13 deste cálido e, já agora, trágico dezembro. O dia amanheceu luminoso, de céu limpo e translúcido [...]

Do diário íntimo do Pe. Pedro-Paulo :
13 de dezembro. Cinco e quinze da tarde. Confusão de espírito ante os fantásticos acontecimentos do dia. [...]

De modo similar, no filme, a narradora, Blanca, se baseia no diário de sua mãe para contar a história da sua família.
No princípio, Blanca explica que a sua mãe escreveu seus cadernos "de guardar a vida" para poder seguir o transcurso do tempo.
Desde criança, Clara escrevia tudo, segundo ela para poder ver as coisas em sua dimensão real. E é escrevendo no seu caderno como a menina aparece na cena em que Esteban vá a pedir a mão da sua irmã Rosa.
Em outra ocasião, Clara, já adulta, está escrevendo seu diário quando o marido a interrompe para tentar congraçar-se depois de brigar com ela.
Já no final do filme, vemos a Blanca folheando os cadernos da mãe enquanto refletia sobre a inutilidade da vingança e sobre que o mais importante de tudo é a vida mesma.
Além de ser utilizada a metaliteratura como estratégia de composição nas duas obras, também transmite uma mensagem que, a modo de moral, encerra um ensinamento: a história deve ser escrita para que não seja esquecida e poder aprender dela para não repetir os erros do passado.
É importante ressaltar o papel que joga a escritura nas duas obras como ferramenta para manter viva a memória e contrapesar a intenção, própria dos regímenes autoritários, de silenciar a verdade crítica.
É por isso mesmo que o professor Martim Francisco disse a seus amigos quando se despedia:
– Acho que no Brasil devemos ser pessimistas a prazo curto e otimistas a prazo longo. Até mais ver, Pedro-Paulo! Até março, Xisto! Escrevam! Escrevam! (grifo nosso)

Esse pedido é um claro e desesperado intento por remediar os efeitos da chamada "Operação Borracha", cujo objetivo era "[...] apagar esse fato não só dos anais de Antares como também da memória de seus habitantes."
E assim, como Martim Francisco redige seus diários íntimos, Clara escreve seus cadernos de vida, Com a mesma intenção com que de que sirvam para resgatar as coisas do passado e ajudem a sobreviver ao próprio espanto.

Ideologemas indicadores do conservadorismo
Ambas as estórias, concebidas durante regimes autoritários, manifestam uma severa crítica à repressão das ditaduras.
Atravessadas por um forte conteúdo político e crítica social, cada uma das obras encerra um grande leque de ideologemas que caracterizam diversas posições ideológicas.
De todos os ideologemas presentes nas duas obras, analisa-se aquele que representa as ideias ou atitudes próprias do conservadorismo, isto é, de quem postula a defesa da manutenção dos valores tradicionais da moral, dos costumes, da autoridade estabelecida:
Em Antares, quem melhor representa os conservadores é "[...] o Cel. Tibério Vacariano, flor do patriciado rural de Antares [...]". É o típico fazendeiro que não admite que ninguém o contradissesse, tanto assim que trata todo mundo como a seus peões que baixam a cabeça e o obedecem:
[...] Tibério punha-se a caminho do Rio Grande do Sul, de Antares e das suas terras, onde tornava a ser o estancieiro, o patrão, o homem que manda, desmanda e grita.

No filme, seu equivalente é Esteban Trueba, quem trata aos trabalhadores da fazenda com a mesma severidade. Como todo "patrão", ele considera que os camponeses são como crianças que necessitam serem cuidados por alguém e tratados com mão de ferro, pois essa é a única linguagem que entendem.
Os dois fazendeiros não duvidam em usar a força das armas para impor seu poder:
[O] Cel. Vacariano [...] propôs voltar para a cidade, reunir os seus "caboclos", armá-los, tornar à esplanada e romper as fileiras proletárias usando da maior violência possível, "pra que isso sirva de escarmento a esses bandidos comunistas".

Também Trueba se mostra disposto a utilizar a força para manter sua autoridade. Como na cena em que ele se topa com o Pedro exortando aos camponeses para lutar pelos seus direitos. Perante semelhante situação, o patrão os ameaça com um rifle para que voltarem ao trabalho e termina açoitando o Pedro por seu desaforo.
Em outra ocasião, Trueba, lembrando essa situação, assevera que houvesse matado o Pedro aí mesmo.
Outra particularidade dos conservadores é a sua atitude aguerrida para resguardar suas propriedades caso estiverem ameaçadas pela intervenção do governo.
Para mostrar sua determinação, o Cel. Vacariano afirma que:
[...] enquanto eu estiver vivo, hei de espernear, gritar, queimar até o último cartucho defendendo o que me pertence, o que herdei de meu pai (tanto terras e títulos e gado, como tradições) [...] Ninguém põe a mão no que é meu sem a minha licença. Não aceito essas idéias modernas de socialismo, comunismo e sei lá quê mais.

Por sua vez, Trueba receia que o governo socialista aproprie sua fazenda e a entregue ao povo, para prevenir isso acha conveniente fazer alguma coisa e depressa. Ao igual que o coronel gaúcho, o senador não dispensa o uso a força para defender sua propriedade, mas ele reclama a intervenção dos militares para que instaurem a ordem no país.
Esse mesmo tipo de ordem imposta pelos militares é a reclamada pelo Cnel. Vacariano quando diz:
– As Forças Armadas, moço, um dia vão apertar os parafusos frouxos deste país. Precisamos, antes de mais nada, de ordem.


Como podemos avaliar, tudo isso traz à colação a propensão desses grupos conservadores para aliar-se com as forças armadas para derrocar os governos populares:
– O velho Tibério (ele próprio me confessou isso claramente) é a favor duma ditadura militar como último recurso para salvar o que ele chama de "democracia brasileira".

De fato, tanto o fazendeiro chileno como seu colega brasileiro aderem à desejada intervenção militar:
Quando chegou a Antares a notícia de que as Forças Armadas, sob o comando do Ministro da Guerra, tinham acabado de dar um golpe de Estado, Tibério Vacariano exultou, saiu para a rua, fez um comício mirim na praça, e bravateou durante o chimarrão das dez. O país estava salvo!

Trueba também festeja a caída do governo democrático. Sentado sozinho na sala, frente da tevê, o jornalista informa que as Forças Armadas estavam perpetrando um golpe de estado. Sorridente, abre uma garrafa de champanha e brinda pelo triunfo.

Conclusão

A análise comparativa destas obras nos permite observar uma série de traços comuns, tanto no formato narrativo quanto na maneira de retratar a sociedade, como ser a inclusão de fatos históricos para encenar a ficção, elementos sobrenaturais para recriar uma realidade maravilhosa e, finalmente, a estratégia narrativa da metaliteratura a modo de moral. Tudo isso põe em destaque as relações intertextuais que se estabelecem entre os dois discursos examinados.
Outra questão interessante de destacar é maneira como são expostas a violência e a opressão vividas sob governos ditatoriais, embora se situem em momentos e lugares distintos, dá conta do engajamento político de seus criadores e revela como, ainda sendo obras de diferente natureza, se aproximam de modo apreciável.



REFERENCIAS

A CASA dos espíritos. Diretor: Bille August. Produção: Intérpretes: Jeremy Irons, Meryl Streep, Antonio Banderas, Wynona Rider e outros. [S.l.]: 1993 online (143 min). Dublado ao português. Baseado no romance "La casa de los espíritus" de Isabel Allende. Disponível em: Acesso em: 7 jun. 2014
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