Conversas no Café Vol. II - Uma seleção de entrevistas do Café Colombo

May 26, 2017 | Autor: E. Ferreira Filho | Categoria: Political Science, Literatura, Economia, Jornalismo, Comunicação Social, Entrevista
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CONVERSAS NO CAFÉ ENTREVISTAS V O L. I I

EDUARDO CESAR MAIA, RENATO LIMA E THIAGO CORRÊA ORGANIZADORES

CONVERSAS NO CAFÉ ENTREVISTAS V O L. I I

© 2015 Café Colombo Edição Eduardo Cesar Maia Apresentação Renato Lima Pesquisa, seleção e produção Equipe do Café Colombo: Eduardo Cesar Maia, Ketinaldo José, Mano Ferreira, Marcelo Sandes, Marcelo Correia, Renato Lima, Thiago Corrêa Revisão Artur A. de Ataíde Transcrição do áudio Mano Ferreira Capa/Diagramação/Arte final Luiz Arrais

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Lins, Álvaro, 1912-1970 Sete escritores do Nordeste / Álvaro Lins ; Eduardo Cesar Maia (org.). – Recife : Cepe, 2015. 140p. 1. Escritores brasileiros – Crítica e interpretação. 2. Literatura brasileira – História e crítica. 3. Crítica literária. I. Maia, Eduardo Cesar. II. Título.

CDU 869.0(81).09 CDD B869.09 PeR – BPE 15-08 ISBN: 978-85-7858-258-6

Impresso no Brasil 2014 Foi feito o depósito legal

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO por Renato Lima ............................................................................

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LITERATURA & CULTURA SÉRGIO RODRIGUES Os leitores perderam a inocência .................................................. DANIEL GALERA A costura de relatos reais e imaginários ....................................... RICARDO LÍSIAS A linha tênue entre o real e o ficcional ........................................... RAIMUNDO CARRERO Tangolomango e o renascimento da crítica ................................... SIDNEY ROCHA O escritor e a construção de uma obra ......................................... SAMARONE LIMA A ilha, o visitante e um relato da decadência ............................... MIRÓ DA MURIBECA Um cronista criador de imagens poéticas ..................................... EVERARDO NORÕES Joaquim Cardozo, o “homem-universo” ...................................... VALÉRIA TORRES DA COSTA E SILVA Gilberto Freyre e a identidade nacional ........................................

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ANCO MÁRCIO TENÓRIO VIEIRA Um best-seller do século XIX ganha nova edição ........................ FRED NAVARRO As variações da linguagem e os modos de vida ........................... RENATO PHAELANTE O Recife através da música popular ............................................... TARCÍSIO PEREIRA Nascimento, apogeu e declínio da Livro 7 ....................................

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FILOSOFIA (INTERMEZZO) EDUARDO GIANNETTI Notas de uma (intensa) vida intelectual ....................................... ALFREDO MARCOS Uma filosofia da ciência para nosso tempo ..................................

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POLÍTICA, ECONOMIA & SOCIEDADE ROBERTO MAGALHÃES Memórias políticas de um conservador ....................................... BRUNO SPECK Como pagar por eleições competitivas? ....................................... SÉRGIO LAZZARINI Reflexões sobre o Leviatã do nosso tempo ................................... SÍLVIO MEIRA Invenção, inovação e mercado de ideias ...................................... ROBERTO DA MATTA Dados antropológicos do trânsito brasileiro ................................ LAURENTINO GOMES Um país em que tudo se copia .......................................................

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APRESENTAÇÃO Por Renato Lima

Uma dúzia de anos e quase 600 entrevistas. Caríssimo leitor, você não imagina o trabalho que é selecionar, dentre as centenas de horas de gravação, as 21 entrevistas que compõem este segundo volume do Conversas no Café. Garimpar entre tantos nomes relevantes não foi um processo fácil, tal a qualidade desse universo de autores e pensadores que a equipe do Café vem entrevistando desde agosto de 2002. Um livro é muito pouco – precisaríamos de volumes para encher uma estante daquelas em que cabe uma enciclopédia Barsa, que nem sei se ainda é editada nesses tempos de Wikipédia. Se o mundo digital elimina a escassez, a impressão impõe um limite físico. De forma que tivemos que adotar alguns critérios para esta seleção que agora chega às suas mãos. O Conversas no Café – Volume II traz uma amostra balanceada dos temas, autores e tópicos abordados no “seu programa de livros e ideias”. O mundo da literatura e da cultura sempre foi o nosso carro-chefe na Rádio Universitária e na internet, mas nunca deixamos de conversar (e polemizar) sobre economia, política, história ou filosofia. Sendo assim, esta edição reúne os ingredientes que fazem do Café Colombo um programa tão especial: umas pitadas de prosa e poesia, receitas do mundo econômico, um pouco do óleo amargo da política e uma cachaça envelhecida para nos lembrar do poder depurador da história. Tudo misturado e degustado semanalmente, sempre aos domingos, a partir das 14h. Para melhor localizar o nosso leitor em meio a tantos temas, dividimos o livro em três blocos – não sem alguma arbitrariedade, reconhecemos,

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já que muitos dos assuntos se interpenetram. No primeiro, “Literatura & Cultura”, temos poetas, romancistas e pesquisadores que, ao falarem da sua própria obra ou sobre outros escritores, também abordam temas relacionados ao mundo das artes de modo geral. Esse é o caso do romancista Sérgio Rodrigues, que reflete sobre o mundo e as relações familiares a partir de um tema fundamental da cultura brasileira, o futebol. Ou do escritor paulista Ricardo Lísias, autor de uma literatura que mistura elementos marcadamente autobiográficos com a liberdade da invenção ficcional, aproximando-se de um gênero que muitos críticos e teóricos contemporâneos classificam como “autoficção” – categoria que ele explica e rechaça em nossa entrevista. Ou ainda do veterano poeta e escritor Everardo Norões, recentemente agraciado com o prêmio Portugal Telecom na categoria Contos e Crônicas, mas que em nossa entrevista falou especificamente do lugar de Joaquim Cardozo no Modernismo brasileiro, logo após o lançamento das Obras completas do poeta-engenheiro, das quais Norões foi o organizador. Não apenas acadêmicos ou escritores premiados fazem a pauta do Café Colombo. Sempre demos espaço para autores iniciantes e também para a chamada “poesia marginal”, aqui representada por Miró da Muribeca. Miró, que sempre produziu poemas, mas só recentemente teve uma edição consagradora em livro, prefere mesmo é declamar a sua obra nas ruas do Recife, como ele próprio diz em nossa entrevista: “Quando eu entro em cena, eu arrebento... Eu acho que minha poesia falada é melhor do que o livro, porque eu vou na verve”. Esse trecho nos faz lembrar que uma grande vantagem de manter um programa de rádio sobre livros é o imenso arquivo de áudio que temos construído, disponível em www. cafecolombo.com.br. Lá você pode conferir a entonação e o ritmo de cada autor ao recitar seus textos ou refletir sobre a sua obra. Dentro da mesma categoria, “Literatura & Cultura”, seguimos com uma grande diversidade de temas e abordagens: Fred Navarro com seu Dicionário do Nordeste; Renato Phaelante e a história da música popular no Recife; e, terminando o bloco, uma entrevista marcada pela nostalgia de uma época importante para a vida intelectual recifense: o período de funcionamento da saudosa livraria Livro 7, recordado por seu fundador e proprietário, Tarcísio Pereira. 8

Na segunda parte do livro, que batizamos de “Intermezzo”, selecionamos duas entrevistas sobre filosofia com dois nomes de peso: o filósofo da ciência espanhol Alfredo Marcos, catedrático da Universidade de Valladolid, que tem obras publicadas em diversos idiomas e é referência internacional em sua área; e o intelectual polímata brasileiro Eduardo Giannetti da Fonseca, que comenta o seu Livro das citações, e tece reflexões próprias a partir de frases recolhidas de grandes pensadores. No último bloco, que denominamos “Política, Economia & Sociedade”, trazemos entrevistas com especialistas em temas por vezes mais áridos do que a literatura – mesmo que seja a de um Graciliano Ramos –, mas não menos importantes para a sociedade, tais como o financiamento de campanha ou a intervenção estatal na economia e suas consequências. Aqui, abordamos desde o muito popular, como os livros de história do escritor Laurentino Gomes, um dos maiores best-sellers do país, e que falou ao Café sobre seus livros 1822 e 1808, até autores mais técnicos e estritamente acadêmicos, como é o caso dos professores Sérgio Lazzarini, administrador de empresas, e Bruno Speck, cientista político. Passando da academia para a administração pública, o ex-prefeito e ex-governador Roberto Magalhães fala com enorme franqueza da sua vida pública, incluindo os malfadados episódios que lhe impuseram um alto ônus político. Dr. Roberto, como é conhecido, pode reconhecer virtudes no passar do tempo, como diz o subtítulo de suas memórias, mas deixa uma pista de que as atitudes que lhe chegaram a custar mesmo uma reeleição – tida como garantida – têm sua origem na formação rígida e “eminentemente sertaneja de pais que nasceram no século XIX”. Formação que lhe incutiu valores como o de que é preferível matar e renunciar à própria vida do que viver desonrado, o que revela uma tensão entre a racionalidade contemporânea e a moral de um tempo passado, um conflito que ainda é perceptível na pungente entrevista de Dr. Roberto ao Café Colombo, verdadeiro documento histórico. Outra lição de vida, mas agora olhando os desafios do século XXI, é dada pelo sempre provocador e visionário Sílvio Meira, que trata aqui sobre inovação e negócios empreendedores. Para ele, “toda boa empresa é uma boa escola”. Ele recomenda: “Se você está trabalhando num lugar e não aprende pelo menos uma coisa nova, você está desconstruindo a sua 9

biografia, o seu currículo. Você está se deixando sem alternativas. É a pior coisa que um ser humano pode fazer: passar o resto da vida num trabalho porque não sabe fazer nenhuma outra coisa”. Por essa breve apresentação, já dá para ver que a equipe do Café está numa boa empreitada: temas tão diversos e conversas com pessoas tão interessantes fazem da nossa reunião semanal de pauta um grande esforço de aprendizado coletivo. Dessas entrevistas participou uma equipe que inclui ainda Marcelo Sandes, Eduardo Cesar Maia, Ketinaldo José, Thiago Corrêa, Mano Ferreira e Marcelo Correia. As entrevistas foram gravadas nos estúdios da Universitária FM, em eventos literários, via Skype ou mesmo no exterior, como nas universidades de Illinois e no MIT, nos Estados Unidos, e também na Universidade de Salamanca, na Espanha. O peso da distância geográfica, que por vezes nos obriga a ficar longe – com trabalhos em outras cidades ou mestrados e doutorados no exterior –, também proporciona acesso a mais fontes e novas conversas, diversidade refletida nesta obra. Todo esse trabalho só foi possível pela ajuda – pessoal e institucional – que recebemos ao longo dos anos. Sem poder citar todos que colocaram açúcar neste café, deixamos os nossos agradecimentos aos autores entrevistados, aos colegas da Universitária FM, à Fundarpe e ao programa Funcultura pelo apoio. Deixamos um agradecimento especial a Raimundo Carrero, Cristiano Ramos e Renata Santana, que fizeram e fazem parte de nossa história. Na preparação deste livro, foram fundamentais as colaborações de Luiz Arrais, responsável pelo projeto gráfico, e de Artur A. de Ataíde, revisor e conselheiro editorial. Assim como fazemos todos os domingos, trazendo o melhor dos livros e ideias aos ouvintes, esperamos que você, agora como leitor, aprecie esta antologia. A matéria-prima é tão boa que, fazendo-se uma seleção aleatória de todo o material, método favorito dos cientistas sociais, talvez ficasse igualmente bom. Olha aí uma ideia para o Conversas no Café – Volume III, já em preparação.

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LITERATURA & CULTURA

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BEL PEDROSA/DIVULGAÇÃO

S É R G I O RODRIGUES Os leitores perderam a inocência

O escritor e jornalista mineiro Sérgio Rodrigues foi o vencedor, com o livro O drible (Companhia das Letras), da categoria Romance e da categoria principal do Prêmio Portugal Telecom de Literatura 2014. E foi justamente essa obra premiada o tema desta nossa conversa no Café Colombo, que foi ao ar em setembro de 2014. Na entrevista, Sérgio explica estratégias narrativas utilizadas no romance, comenta as possibilidades de enxergar no futebol pistas para a compreensão da vida social brasileira, observa o papel da memória em sua literatura e fala das semelhanças que existem entre O drible e seu livro anterior, Elza, a garota.

Café Colombo – Para começar a conversa gostaria de mencionar a cena que abre o livro, a descrição do lance do gol perdido de Pelé contra o Uruguai na Copa de 1970. Queria que você falasse um pouco sobre o processo de escrita dessa cena. Sérgio Rodrigues – O que o personagem faz, de ficar revendo a cena indefinidamente no vídeo, pausando, voltando, adiantando, botando em câmera lenta etc., eu também fiz. Provavelmente muito mais vezes do que ele mesmo fez. A ideia ali era pegar uma cena emblemática, dessas que marcam a história do futebol, e não exatamente desconstruir, mas apresentá-la sob uma luz diferente. No caso, é justamente a lentidão, o tempo que aquilo leva para transcorrer. É uma cena que dura poucos segundos no tempo histórico e que no tempo do romance se estende por quase 11 páginas. Não foi algo calculado quando eu estava escrevendo o romance, mas acredito que aquela foi a forma que eu encontrei de entrar no mundo do futebol, que é um mundo muito fechado, como o de todos os esportes. São narrativas muito fechadas, prontas, autossuficientes. Talvez até seja essa uma das razões para isso que se diz, que a literatura brasileira fala pouco sobre futebol. A linguagem do futebol é muito fechada, e aquela cena é daquelas que os nossos olhos já se cansaram de ver. Para entrar nela e dar um novo sentido, ou me apropriar literariamente da cena, usei esse recurso de esticar o tempo até ele ficar irreconhecível. É também um modo de passar do tempo histórico para o tempo do mito. A sensação de que aquilo é um

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tempo circular, que vai ficar girando para sempre e não vai acabar nunca. Por que essa cena e não outra? Diria que ela acabou se impondo; eu não tive muito que escolher entre várias, porque para mim ela é talvez a mais marcante. Eu era criança e vi a Copa de 1970 em primeira mão, ao vivo, mas não diria que eu me lembro dessa primeira vez, porque é muito difícil separar as milhares de vezes que a gente reviu esse drible, o famoso gol que Pelé não fez, com o drible de corpo, da vaca, sem tocar na bola. Uma jogada genial que não resultou em gol, e o fato de não ter sido gol faz essa jogada ficar ainda mais provocante. Quase como se a gente, de tanto rever a cena, fosse capaz de um dia fazer a bola entrar. É uma cena que se impôs. Ela abre o romance e fecha o romance, porque é retomada lá na frente. Mas não foi escrita nessa ordem. Esse capítulo surgiu lá pelo meio do processo de escrever O drible, e, na edição, eu acabei puxando, porque acho que aquela cena é muito emblemática do modo como o futebol é tratado dentro do livro, e também como uma metáfora dos dribles que os personagens dão uns nos outros, e que o próprio livro dá no leitor. Eu queria que tudo isso fosse simbolizado por essa cena. Outro momento do futebol que você usa é a semifinal da Copa de 1958… É a semifinal contra a França. Tem uma série de lances bisonhos que você vai narrando, e depois o personagem diz que aquele foi um dos maiores jogos da história do futebol. E você usa isso como uma metáfora para mostrar o que é a vida, o que acontece entre esses grandes momentos. Você acha que o futebol é um caminho possível para se pensar o mundo? Eu acho que sim. Esse personagem do Murilo Filho, o velho cronista esportivo, que é um dos principais do livro – já que a história central é a relação dele com o filho, motivo pelo qual podemos dizer que O drible é um drama de família, mais do que um livro sobre futebol –, é um personagem completamente apaixonado por futebol, um cronista

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que viveu os tempos áureos do futebol brasileiro e fica tentando transformar o futebol em explicação para a vida, para o Brasil. Ele tenta sem conseguir muito, sem ser muito convincente. Acho então que O drible acaba tratando desse discurso que usa o futebol para explicar as coisas, mas tratando de forma crítica, porque as coisas não são tão simples assim, a vida é irredutível ao jogo. Tem um momento em que ele diz, nas reflexões meio loucas, quando o filho pensa que ele está ficando gagá, que o futebol pode ser um espelho da vida, mas a recíproca, por alguma razão que nós não compreendemos bem, não é verdadeira. Acho que essa coisa do futebol como emblema do Brasil é velha, meio cansada e cheia de clichês, mas isso não quer dizer que seja completamente falsa. O futebol é uma das vidas mesmo da cultura brasileira e da formação da identidade brasileira. Mas acho que precisamos ter muito cuidado com os clichês que cercam essa coisa do “país do futebol”. E o livro tenta refletir sobre isso de um modo crítico. Não nega que isso seja possível, mas também não aceita passivamente esse discurso. Acho que essas cenas, tanto a do drible inicial quanto a da semifinal da Copa de 1958, funcionam como uma metáfora do próprio livro, do processo de revisita ao passado. E isso me lembra uma passagem do seu livro anterior, Elza, a garota, em que você cita um livro de Freud para falar que o retorno ao passado é sempre uma interpretação. Pois é. Também não foi uma coisa intencional, mas depois que eu estava com O drible pronto percebi o quanto o livro tem em comum com o Elza. Essa coisa do velho conversando com uma pessoa mais jovem, da minha geração, e contando sua versão da história, suas memórias. O Murilo Filho é muito parecido com o Xerxes. Essa posição do velho que conta a história para uma pessoa mais jovem, e essa história é a versão dele, e não é a verdade, mas é uma verdade. E no caso do Murilo Filho não é nem necessariamente uma verdade, mas uma trapaça, um modo de dizer e, ao mesmo tempo, ocultar coisas. O caso do Xerxes também é muito curioso. Parece que virou uma espécie de obsessão, e não sei dizer muito bem de onde isso vem. Só tenho cer-

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teza de que no próximo livro eu vou tomar muito cuidado para não ter nenhum velho, porque daqui a pouco vão dizer que eu estou me repetindo. Mas eu acho fascinante essa coisa de como a memória constrói a história. A história é uma construção do que a gente lembra e esquece, que pode ser consciente, mas sempre também tem muito de inconsciente. Mas as histórias – não só a História – sempre trabalham com uma reconstrução, seja do passado, da memória, da imaginação ou do sonho, de uma maneira que não é inocente. Quem narra, por que narra, aonde esse cara quer chegar, aonde a história vai nos levar, o que está por trás etc. Acho que são questões muito atuais da literatura, principalmente. Pelo menos o modo como eu leio hoje – e acho que é uma coisa do nosso tempo – é um modo desconfiado. Que narrador é esse? O que ele está querendo dizer? Por que ele está contando essa coisa de uma forma e não de outra? Acho que nós perdemos a inocência enquanto leitores. Talvez isso tenha acontecido no modernismo. Até então parecia que se contavam histórias pelo simples prazer de se contar histórias. Tanto que o narrador onisciente, que entra na cabeça de todo mundo e explica tudo, se tornou uma coisa que hoje em dia é praticamente exclusiva do passado. É muito difícil escrever um livro hoje que tenha esse tipo de narrador sem soar totalmente ingênuo. Talvez seja até um grande desafio, justamente porque é uma coisa difícil de fazer. Mas o fato é que não se faz muito isso. O ponto de vista, hoje, é sempre mais limitado. Pode ser um narrador em terceira pessoa, mas está sempre acompanhando um personagem. Sempre acontecem coisas que o narrador não sabe. Mas acho que é isto: tenho certo fascínio por essa fronteira turva, meio borrada, entre a memória e a invenção, o quanto nós estamos inventando o passado quando contamos alguma coisa. No livro aparecem alguns personagens históricos, como Nelson Rodrigues e Mário Filho. Até que ponto é possível trabalhar com pessoas reais numa obra de ficção? Que cuidados precisam ser tomados?

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Eu acho que o cuidado maior é com a honestidade. O Nelson e o Mário Filho aparecem ali. Não são personagens fundamentais, mas compõem o cenário, dão o tom de uma época. Eu sei bastante da história deles para saber que não estou traindo o Nelson Rodrigues histórico, no meu livro. Também não é uma biografia. É um recurso de que eu gosto muito, que se pode chamar de tipicamente pós-moderno. Eu lembro um livro do Don DeLillo, Submundo: ele faz um capítulo de abertura com uma longa descrição de uma partida de beisebol, em que ele vai na plateia e acompanha o Frank Sinatra, que está assistindo ao jogo numa cabine vip. E o Frank Sinatra fala, bebe, xinga… Aquilo não é uma apuração. Ele imaginou o Frank Sinatra naquela situação. Talvez ele até tenha a informação de que o Frank Sinatra foi naquele jogo, já que está falando de um jogo que realmente existiu. Mas ele não estava lá tomando notas. Ele usou o Frank Sinatra como personagem público para dar um tom pseudodocumental. E esse capítulo é extremamente apaixonante, a melhor coisa do livro. No meu caso, o Mário e o Nelson são importantes para o livro – não os personagens, mas o que eles representam. Eu acho que O drible conversa tanto com um quanto com outro. O Mário, porque é autor do maior livro do futebol brasileiro, O negro no futebol brasileiro, que foi uma inspiração enorme; e o Nelson, pelo cronista esportivo que ele foi, e também pelas peças de teatro dele, pelo mundo doentio, as tragédias exageradas, os melodramas, que de alguma forma também existem em O drible. É um clima que traduz muito uma sensibilidade brasileira, da família careta brasileira e todas as podridões que tem por baixo disso. Não acho que tenha nada de gratuito na presença deles. Não tive nenhuma dúvida ou receio de colocá-los como personagens – foi um grande prazer. Por ser um livro contado através de memórias, você acaba passando por várias épocas do Rio de Janeiro e do Brasil. Como é esse processo de ambientação nessas diferentes épocas? Esse livro me tomou muito tempo para escrever, e a grande dificuldade foi justamente a construção desse painel de épocas, porque é uma história que começa em 1950 e vem até hoje. Quando eu comecei, não

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tinha ainda condições técnicas de escrever o livro que eu queria. Eu tive que fazer outros livros nesse meio tempo, para exercitar e aprender sobre o processo de fazer um romance, de modo que eu pudesse fazer um livro que cobrisse esse arco de tempo tão amplo. Cada momento teve um desafio diferente. Com as coisas que eu vivi, como a parte do Neto, foi muito fácil, porque aquilo é da minha geração. Um cara que nasceu nos anos 1960, foi criado em plena ditadura, e chega à idade adulta quando vêm a redemocratização, os anos 1980, a onda do rock brasileiro, aquela coisa de que todo mundo tinha que ter uma banda (eu mesmo tive). A parte do Neto foi mole – uma coisa de ficar recuperando um tempo que era meu mesmo. Já a juventude do pai no Rio de Janeiro no início dos anos 1960, uma época lendária, provavelmente a melhor que o Rio já teve e terá, vem de leitura, de música e de filme, até porque é uma época muito cantada, muito falada, em prosa e verso. E tem muito de imaginação também, até porque não fiz uma pesquisa tão intensa assim. A coisa não é exatamente documental, mas acho que está captado o clima de uma época. E o futebol também é o pano de fundo disso tudo. Eu queria mostrar dois mundos, o do pai e o do filho, e o quanto eles são diferentes, e o quanto o Rio de Janeiro se transformou da juventude do pai até a juventude do filho, com uma ditadura no meio sendo o divisor de águas dessa história. ***

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DIVULGAÇÃO

D A N I E L G A L E R A A costura de relatos reais e imaginários

Nossa entrevista com o premiado escritor Daniel Galera, realizada em setembro de 2013, girou em torno de seu quarto romance, Barba ensopada de sangue, publicado em 2012 pela editora Companhia das Letras. O livro conta a história de um homem que, após o suicídio do pai, resolve se mudar para a praia de Garopaba, no litoral de Santa Catarina, onde começa a investigar o mistério que envolve a morte de seu avô. Na obra, ele retrata o isolamento geográfico e psicológico de um professor de educação física que aos poucos vai reconstruindo a sua identidade. Em nossa conversa, Galera detalha o processo de construção de seu romance e revela que, apesar da pesquisa prévia e da preparação meticulosa, “uma boa porção desse trabalho de criar uma história acontece na base da intuição e do improviso”.

Café Colombo – No fim de Barba ensopada de sangue há uma notinha. Nela, você agradece ao seu pai, dizendo que foi ele quem lhe contou a história que deu origem ao livro. Qual foi esse estopim dito pelo seu pai? Daniel Galera – De fato, no final do livro há um agradecimento a duas pessoas, e uma delas é meu pai, por ter me contado a história de onde veio todo o resto. Eu sabia que fazendo o agradecimento no fim, com esses termos, correria o risco de que os leitores achassem que esse livro é baseado numa história real, que aconteceu com meu pai ou com alguém que ele conhecia, e que chegou à minha vida de alguma maneira. Não é verdade. O fato é que a história – fictícia – desse romance foi desenvolvida aos poucos com base num acontecimento que eu não sei se é real. É uma história que meu pai realmente me contou, do assassinato de uma pessoa na cidade de Garopaba, que teria acontecido nos anos 1970. No livro, o assassinato acontece nos anos 1960. Ele me contou a história quando eu era pequeno, devia ser pré-adolescente. Garopaba, para quem não sabe, é uma cidade de praia no litoral de Santa Catarina, muito pequena – hoje eles têm em torno de 15 mil habitantes –, que se desenvolveu em torno de uma vila de pescadores, onde tinha uma estação baleeira. É uma região muito bonita, muito mesmo. Meu pai veraneava nessa praia nos anos 1970 – antes de eu nascer –, e a gente foi para lá algumas vezes quando eu era criança, em férias e feriados. Ele me disse que, em uma das viagens que fez para lá, e em que acam-

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pou com a minha mãe, um morador contou que, cerca de um mês antes, haviam matado uma pessoa num dos bailes dominicais tradicionais que havia na cidade, algo que é bem típico de cidades pequenas. Basicamente, tinha um cara que era encrenqueiro, causava problemas na comunidade, e a presença da polícia lá ainda era muito pequena, o que levava as pessoas a tentar resolver as coisas à sua própria maneira, com as próprias mãos. Então, como muita gente queria se livrar desse cara, apagaram a luz no meio do baile e algumas pessoas foram lá e o esfaquearam. Um minuto depois, ligaram a luz e ele estava morto. A polícia veio em algum momento, todo mundo ficou com o mesmo discurso de que não tinha como se identificar o assassino, porque estava sem luz, e ficou claro que todos haviam combinado anteriormente e não tinha como condenar ninguém, porque ou se prendia a cidade inteira ou ninguém. E ficou por isso mesmo: o cara foi enterrado em algum lugar e acabou-se a história. Ele me contou isso quando eu era pequeno e, por algum motivo, eu guardei essa história; me lembrava dela de vez em quando. Ocorreu que eu próprio, em 2008, fui morar em Garopaba. Morei um ano e meio lá. Não fui com a ideia desse livro. Até imaginava que escreveria alguma coisa a partir da experiência de viver num lugar como aquele, mas eu não tinha a ideia do livro. Achava até que escreveria alguma coisa de não ficção, um ensaio ou algo do tipo; estava com a cabeça aberta para encontrar um assunto. Mas, assim que eu cheguei, lembrei-me da história, até porque eu morei na vila histórica de Garopaba, o cenário do relato. Agora, se a história é verdade ou não, a gente nunca vai saber. Eu olhei à minha volta, morando no meio da comunidade de pescadores, e pensei: está aí o estopim para algo: um conto, um romance… Esse foi o embrião mesmo de todo esse livro, de 400 páginas. No fim, a história nem é sobre isso. Esse é um elemento importante da história, mas a história na verdade é sobre outro personagem, um professor de educação física que se muda para lá já em 2008. Eu fiquei imaginando quem seria essa pessoa que havia morrido dessa forma e tive a ideia de transformá-la no avô do protagonista. Então o transformei num gaúcho meio maluco, que havia saído do interior do Rio Grande do Sul para Garopaba nos anos

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1960; e era essa figura que arranjava problemas na comunidade, e que talvez tenha sido assassinada – o que não se sabe no início do livro. O personagem, quando se muda – por vários motivos que o livro vai desvendando ao longo da narrativa –, fica muito obcecado com a história do avô, especialmente depois que o pai dele se mata; e começa a investigar a história. Esse foi o argumento inicial do romance, que veio dessa historinha. Uma coisa interessante é que, para esse livro, que é muito descritivo, eu pesquisei muito, desde o cenário até a vida local dos nativos, o turismo, a economia da cidade, que muda conforme a estação do ano. Aproveitei o fato de estar morando lá para pesquisar muito, conversar com as pessoas, ver com meus próprios olhos cada lugar que ia descrever; fotografei, entrevistei gente que tinha a ver com os assuntos que eu queria tratar. Pesquisei muito a fundo, sem pressa, mas a única coisa que eu nunca investiguei foi a história do assassinato. Nunca fui atrás disso de propósito. Em primeiro lugar, eu suspeitava que, caso tivesse acontecido, esse assunto devia ser um tabu, e, eventualmente, ao chegar lá levantando a história, eu poderia ser hostilizado como o próprio personagem do livro foi. Mas o motivo principal é que eu queria que essa história continuasse sendo um mistério para mim. Eu não queria descobrir o que havia acontecido, porque ia perder um pouco da graça para mim mesmo, de usar aquilo como um mistério que movia toda a narrativa. O livro começa com um capítulo em que você faz uma inversão cronológica. O primeiro capítulo, de três páginas, é uma ação que acontece depois de todo o livro. Queria que você falasse um pouco sobre isso, sobre a estrutura da narrativa. Na verdade, quando o leitor começa o livro e lê esse prólogo, não dá para entender exatamente o que acontece ali. Dá para entender o que está sendo narrado, mas não tem como acessar o significado daquilo. Eu sabia disso, poderia ter colocado o trecho ao fim, mas fiz de propósito. Nos estágios iniciais, quando eu estava pensando na estrutura do romance, esse prólogo era algo dos capítulos finais. O livro terminaria no futuro. O último capítulo aconteceria muitos anos depois de quan-

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do ele de fato se encerra. Quando eu comecei a escrever esse romance eu já sabia muito bem o que ia fazer, tinha montado um cronograma da história, uma tabela separada por meses, com o que acontecia em cada momento, mas algumas coisas não estavam certas. Tinha algumas ideias para o final, mas no processo foi mudando muito o planejamento. Uma coisa que eu queria que permeasse toda a história era essa sensação da transmissão dos mitos familiares. O avô dele, que teria sido assassinado, se tornou uma espécie de lenda local, que parece maior que a vida. Contam histórias sobre ele que são supersticiosas, que parecem impossíveis – como mergulhar e ficar 5 minutos embaixo d’água. No caso do avô, ele se tornou também uma espécie de tabu, como se ele fosse uma assombração e falar dele trouxesse má sorte, algo do tipo. É um tipo de lenda local que se encontra muito ao conversar com pessoas de cidades pequenas. Há sempre essas figuras do passado, recente ou remoto, que viram fictícias, meio míticas, e carregam um trauma da comunidade, algo culturalmente importante. Uma brincadeira que eu queria fazer no romance era a de que, no processo de investigação sobre os fatos que transformaram o avô nessa figura mítica, o próprio protagonista acabasse passando por um processo semelhante ao do avô sem perceber – e o leitor também não percebe de início, e talvez comece a perceber em algum momento ao longo da história. A gente só tem certeza de que isso também aconteceu com ele próprio ao fim, quando ele morre e tem um velório simbólico, porque o corpo dele não é encontrado. Quando o sobrinho vai atrás dele, percebe-se que a relação dele com o tio é a mesma que o personagem teve com a figura do avô durante toda a história que a gente acabou de ler. A sacada foi um pouco essa, e essa estratégia só veio no final do processo de escrita, que tomou quatro anos de trabalho. Foi bem no finalzinho, mas eu já tinha a intenção de mostrar de alguma forma que o personagem, esse professor de educação física, também seria lembrado no futuro, em Garopaba, como um cara meio mítico. Mas a gente acompanha a história dele ao longo do livro e vê que ele é um cara banal, comum, sem ambição nenhuma, com uma vida normal, sem nenhuma intenção de se trans-

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formar numa figura desse tipo, apenas preocupado com os interesses diários dele, numa vida extremamente simples. Minha tese, então, é que a maioria dessas figuras locais, míticas, na verdade – se tivéssemos a possibilidade de acompanhar como foi de fato a vida dessas pessoas, veríamos que elas não fizeram nada demais. Até por conta dessa inversão cronológica, a história ganha um sentido “trágico”, porque você sabe que o personagem vai morrer já no prólogo. Você concorda? Eu nunca pensei nos termos de uma relação com a tragédia clássica, embora eu ache que dê para fazer alguns paralelos como você fez. Eu não gosto de destino, não acho que seja questão de destino. Um tema que estava me interessando muito na época – continua me interessando –, e que tentei colocar na história, é a questão do determinismo em oposição ao livre arbítrio. Até que ponto a gente tem escolhas ou as coisas acontecem porque têm que acontecer assim? Isso é um tema interessante de investigar porque permeia não só a filosofia e a literatura, como também a física e campos como a neurociência. É um assunto obviamente milenar, não é nada novo, mas parece que há perspectivas novas sobre isso hoje em dia. É impressionante como, nos escritos atuais de neurociência, encontramos a mesma questão: no dia a dia estamos escolhendo o que fazer a cada segundo ou as nossas ações são somente resultado da nossa interação com o ambiente, da forma como nossas moléculas estão interagindo com o resto, levando-nos a uma atitude específica? É possível buscar isso na literatura, na filosofia, na tragédia. Acho que é um tema muito forte e abrangente que eu queria botar no livro. Eu brinco um pouco com isso, porque não tenho uma posição definitiva e clara que eu possa defender sobre o tema. A pergunta me interessa, e o livro faz essa pergunta o tempo todo. No diálogo final com a Viviane, no último capítulo, eles falam disso abertamente, com visões bem diferentes uma da outra. O protagonista do livro é um cara com formação cultural bastante limitada, nunca leu um livro na vida, mas tem internamente esses questionamentos e só não sabe como elaborar. Já a namorada dele é intelectualizada, leu muita literatura e

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filosofia, e eles ficam debatendo sobre isso. Ela acha que as pessoas têm escolha, sim, e ele, na condição não erudita dele, sem saber expressar, acha o contrário, que a gente vai fazer o que fez e pronto. Mas eu acho que isso é diferente de destino, que teria outra característica filosófica, o fatalismo, que diz que as coisas já estão escritas. É diferente de dizer que as leis que regem o mundo são deterministas, mas o que acontece não está escrito, com as coisas acontecendo dinamicamente; e a gente, ao olhar para trás, pode ter a sensação de que poderia ter tomado outras escolhas, mas só em retrospecto; na hora, nunca, porque estamos sob a influência das mesmas leis que fazem a água derramar. O destino supõe que há algo escrito, a se cumprir, e eu não gosto, acho que esse é um passo que nos afasta da verdade, seja ela qual for. Acho que a verdade está mais perto de uma coisa que acontece só no presente, sem ter nada escrito. No entanto, se formos suficientemente atentos, podemos fazer apostas bastante embasadas sobre como as coisas vão acontecer. Esse personagem tem a particularidade de ser muito atento a detalhes por causa da condição neurológica que tem, de não conseguir reconhecer o rosto das pessoas. Como isso é um problema muito grave para ele desde que nasceu, até por questões sociais, ele está acostumado a prestar atenção em outros detalhes das pessoas e dos ambientes para conseguir lembrar quem é quem. Quando ele conhece alguém, olha para as mãos, para a roupa, para um detalhe no cabelo, para o tipo de brinco que usa, para a circunstância em que conheceu aquela pessoa etc. A brincadeira está aí: esse personagem, por ser mais atento, consciente dos detalhezinhos de tudo, estaria mais munido para fazer essas apostas embasadas sobre o que provavelmente vai acontecer no futuro, e ele sabe disso, sente, e acha que é meio louco por causa disso. Por isso é que ele faz essas anotações. Tem uma hora no livro em que ele está conversando com um amigo e tem um insight, e diz que vai morrer afogado, mesmo sem saber exatamente como. E como ele já havia sentido em outra circunstância da vida dele, ele escreve isso num papel e pede para um amigo assinar, porque, quando acontecer, ele quer poder provar, já que, se só disser que já sabia no futuro, seria desacreditado. Ele quer demonstrar que tem essas intuições muito fortes;

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mas não é que exista um destino, é que ele estaria mais atento a essa trama de causa e efeito, ela, sim, determinista, que rege tudo, inclusive os seres humanos. Essa é a justificativa e o fundamento mais filosófico, mas eu tento não carregar tanto na história e fazer com que nas ações e nos personagens isso aflore. Embora eles falem explicitamente a respeito em alguns diálogos, eu não queria que isso pesasse tanto. Queria mais que representassem a ideia do que tratassem dela explicitamente. O protagonista, ao ir para Garopaba como o avô, está tentando ser outra pessoa? Eu discordo disso. Acho que, ao se mudar para lá e fazer toda essa pesquisa em torno do avô dele, conhecer a cidade e as outras pessoas, ele não está sendo outra pessoa, está sendo mais ele mesmo do que jamais teve oportunidade de ser. Em algumas conversas privadas sobre o livro ou em debates públicos, às vezes comentam que acontecem muitas coisas ruins com o personagem desse livro; perguntam por que eu carreguei tanto nessas frustrações dele. É engraçado quando me dizem isso porque eu não o vejo assim; vejo o contrário. Esse livro é o processo de uma pessoa encontrando seu lugar. No final, a Viviane diz para ele que deve ser a única pessoa a enxergar que ele está feliz de fato ali, sem mentir para si mesmo. De fato, ela é a única pessoa que enxerga isso, e por isso o vínculo entre eles é tão grande, porque ela é quem mais o compreende até hoje. Ele não está mal lá, não está fugindo, não está traumatizado com a morte do pai ou com o fim do relacionamento dele, não está assombrado pelo avô. Ele está levando a vida que sempre quis levar, e não havia descoberto, ele mesmo, aquilo. Então, não acho que seja a história de alguém tentando ser outra pessoa, mas a de alguém que, inadvertidamente, por causa de uma pista deixada pelo pai, vai encontrando seu lugar certo no mundo, onde se sente mais à vontade e mais realizado, o que não é sinônimo de felicidade. Felicidade é um conceito muito fraco para se tratar de uma vida plena. É muito interessante como você constrói essa personagem através de um mosaico. A personalidade dele vai mudando de acordo

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com a situação e de acordo com as pessoas que fazem parte de sua vida... Eu acho que toda pessoa é um mosaico, nesse sentido. Interagindo com pessoas diferentes, nós efetivamente somos pessoas diferentes. Como esse personagem tinha que ser muito desenvolvido, porque são 400 páginas vistas da perspectiva desse cara num ritmo quase diário – porque eu narro a existência dele durante nove meses, com poucos dias sendo pulados –, era inevitável que eu trouxesse à tona várias facetas dele. É possível apresentar uma ou duas facetas de um coadjuvante ou de um personagem quando se têm 3 ou 4 protagonistas, mas no caso desse, se ele não aparentasse ser tão complexo quanto as pessoas, seria esse um livro perdido, porque estaria baseado em um personagem unidimensional tentando carregar uma história de 400 páginas. De fato, eu tentei elaborar bem a postura dele em cada um desses momentos, e tudo isso vai se somando para constituir a imagem final do personagem, que só existe ao fim do livro. Mas há um padrão, e eu acho que isso foi mais marcante no personagem. A maneira como ele se comporta com as namoradas – a Adália e a Jasmim – fica mais clara quando a gente conhece a Viviane no fim, e ele mesmo acaba falando dela. A gente percebe como a atitude dele com as duas outras é influenciada por esse romance mais longo, que durou sete anos, teve um fim traumático e mudou a relação dele com a família. Tudo isso só se compreende no fim, e a gente entende por que ele fica tão fascinado pela Jasmim, porque a Viviane era uma mulher superintelectualizada, e, apesar de saber que aquilo era uma bronca para ele, ele se sente atraído exatamente por aquilo. Isso é parte do jogo para criar um personagem complexo sem ao mesmo tempo cair num psicologismo descritivo, que precisasse dizer algo como: “e então o nadador, que era um homem que se sentia atraído por mulheres intelectualizadas...” Eu acho essa uma maneira pobre de narrar. Dependendo do que se está escrevendo, faz sentido usar um recurso assim, mas me parece meio pobre. O ideal é criar situações que vão se conectando aos poucos para o leitor, para que isso não precise ser dito de forma explícita. Acho que a sua observação, então, tem mais

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a ver com esse objetivo de criar um personagem redondo, em que as situações descritas vão compondo a complexidade e a identidade dele. No livro, o personagem se sente um estrangeiro entre os moradores locais. Você também se sentia um estranho diante dos outros enquanto morou lá? A desavença entre gaúchos e pescadores de Garopaba é real – histórica –, mas hoje em dia é algo bem mais resolvido. Garopaba era uma colônia de pescadores na costa catarinense que foi de certa forma colonizada por gaúchos desde os anos 1960, no sentido de que muitos gaúchos começaram a se mudar para lá por motivos diversos, desde surfistas até médicos, advogados, idealistas que queriam ter uma vida na praia e foram se mudando para lá. Essas pessoas – descendentes de alemães e italianos e vindos de uma cultura urbana – começaram a comprar terra, construir casa, abrir negócio etc. Houve um choque e os gaúchos começaram a tomar conta da cidade e a se impor. Ali você tinha uma vida de praia que não mudava muito, de pessoas que não estavam vislumbrando o potencial econômico do turismo e diversos outros potenciais econômicos que são explorados hoje em dia, e essa turma de gaúchos tomou esses espaços. Ao mesmo tempo que foi bom, porque a cidade cresceu, ficou mais rica e se diversificou, evidentemente isso gerou muitos conflitos ao longo dessas décadas. Quando as coisas começam a entrar para o âmbito do dinheiro, do poder e da propriedade, criam-se conflitos sociais. Até hoje há uma coisa um pouco ambígua. Não é que os gaúchos sejam hostilizados, mas há um resquício cultural que marca um pouco essa relação. Hoje em dia a presença de gaúchos em Garopaba é muito forte – não sei uma estatística oficial –, mas, nas épocas de verão e temporadas turísticas, desembarcam cerca de 150 mil, 200 mil gaúchos; ao mesmo tempo, a comunidade de pescadores ainda existe, é uma vila tombada, e os caras vivem como sempre viveram. Essa tensão é algo que eu levei para o livro e que tentei explorar narrativamente e ficcionalmente. Achei interessante transformar o cara assassinado nos anos 1960 num gaúcho exatamente por isso. Inventei que um dos motivos que o levaram a ser hostilizado foi

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sua característica de ser um gaúcho grosso, com um trato diferente, de interior, que achava legal mostrar a faca em qualquer discussão e que acabou sendo malvisto. Essa condição histórica é real, mas hoje em dia não tem nada a ver – eu não fui hostilizado. Deve haver conflito em outros âmbitos, em questões de disputa econômica, de propriedade. Mas para um cara como eu, que fui lá morar e ficar na minha, isso não existe. Nem para turistas. Eles recebem muito bem as pessoas. Você documenta a transformação daquele vilarejo de pescadores, seus mitos e valores, a pesca de baleia, a decadência da indústria da pesca e a ascensão do turismo. A ficção seria uma forma de ligar esses pontos que você vai escolhendo e costurando? É uma ótima definição do meu método de trabalho. A gente imagina que, quando um escritor está escrevendo uma história desse tipo, está consciente de todas as conexões e coisas do gênero. Na verdade, tem uma boa porção desse trabalho, de criar uma história assim, que funciona na base da intuição e do improviso – não é calculado. Eu mesmo percebi diversas dessas conexões só na hora em que fui escrever, embora muitas delas eu tenha planejado antes. Eu fiquei um ano e meio só anotando para esse livro, então algumas coisas foram previstas, mas ao escrever se vai modificando completamente o que estava anotado, e muitas delas eu próprio só percebo que existiam na hora de escrever. Às vezes, nem na hora de escrever também. Quando eu estava relendo, revisando o meu próprio livro, notei coisas que não tinha percebido enquanto escrevia. Hoje em dia quando eu falo com leitores que perceberam coisas que eu próprio não vi, vejo que há uma quantidade ainda maior de pontes e relações que se podem fazer. São maneiras de interpretar que não foram planejadas, mas que fazem sentido. Acho que literatura interessante é a que deixa muitos rios e buracos para que pontes sejam resolvidas. Acho que resolver tudo, quando um livro é muito esquematizado e clinicamente planejado, elimina os acidentes geográficos que o leitor complementa. Eu tento escrever assim sempre, deixando caminhos para interpretar e fazer ligações. É uma disposição geral quando eu estou fazendo ficção.

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Uma das coisas mais interessantes do livro está nos diálogos. Em muitos livros, a fala dos personagens fica muito engessada, pouco natural. Em Barba, cada um tem uma voz própria. Como você alcançou isso? Diálogo é uma das coisas mais difíceis; é preciso ler diálogo e praticar diálogo. Eu tenho uma regra, que é bastante elementar: o diálogo verossímil não é igual ao diálogo da vida real. É muito parecido, mas não é igual. O grande desafio é descobrir qual é essa diferença, porque o diálogo que é muito diferente do que aconteceria na vida real evidentemente soa falso. Uma transcrição real do que as pessoas diriam também soa falso. Se eu gravar uma conversa entre duas pessoas que são muito parecidas com meus personagens e transcrever essa conversa para a literatura vai soar forçado. Existe um ajuste fino que torna aquilo verossímil como prosa de ficção, e é uma distância pequena, mas totalmente fatal, que você tem que dominar. Quando eu leio diálogos bons, tento ver o que o cara fez. O que tem aqui que é quase real e torna isso literariamente grande, que faz funcionar? Então eu fico atento, como leitor, para tentar aprender assim. Também tem uma coisa nesse livro, que é o uso do diálogo direto sem nenhuma indicação de diálogo direto. Não tem travessão, não tem aspas. Não tem sinais gráficos dizendo que agora o narrador parou e o personagem está falando. Quando a gente decide fazer assim, toda uma série de técnicas e escolhas se impõe também, porque é preciso escrever de um jeito que o leitor tenha dados para saber quem está falando em cada momento, e que essa frase é uma fala ou pensamento de alguém, e não do narrador. Eu acho que essa abolição dos sinais gráficos força um pouco a construção de diálogos mais naturais. Um cara que é muito bom nisso é o Cormac McCarthy, assim como o David Foster Wallace, dos quais eu gosto muito. ***

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DIVULGAÇÃO

R I C A R DO L Í S I A S A linha tênue entre o real e o ficcional

O Café Colombo conversou em fevereiro de 2014 com o escritor Ricardo Lísias, escolhido pela revista britânica Granta como um dos melhores escritores jovens brasileiros, além de ter sido vencedor e finalista de diversos prêmios literários. Nesta entrevista, ele fala do livro Divórcio, e de O céu dos suicidas. “Sobretudo Divórcio causou uma série muito grande de mal-entendidos”, revelou, argumentando que a sua obra não faz parte da categoria da autoficção. “Muitos dos aspectos autobiográficos do romance não são autobiográficos. É uma vida minha realmente inventada”, diz.

Café Colombo – Assim como em O céu dos suicidas, seu livro anterior, você partiu de um problema pessoal para escrever Divórcio, seu último romance. Enquanto até O livro dos mandarins o seu interesse parecia mais focado nos jogos de linguagem e temas políticos e econômicos, os últimos livros vieram mais pelo caminho da autoficção. Houve uma mudança de rumo na sua obra? Ricardo Lísias – Entendo a pergunta, mas eu acho que não houve exatamente uma mudança assim tão grande. Inclusive até alguns críticos escreveram sobre uma continuidade dos livros anteriores em relação a esses livros. O que na verdade eu mudei, em parte – porque eu já tinha feito isso antes –, foi o foco narrativo. Os livros passaram a ser em primeira pessoa e trabalharam algumas questões sobre representação literária. O que acabou acontecendo é que, sobretudo no último livro, houve um sucesso muito inesperado e também uma repercussão muito grande, e diversas questões de fora da obra acabaram se incorporando e tomando um pouco conta de parte da recepção. Mas eu andei estudando até essa definição de autoficção, e eu acho que, na verdade, os meus livros não se enquadram no que chamam de autoficção, porque nenhum dos dois livros conta absolutamente nada de algo que eu tenha vivido – a não ser que seja, como eu já disse outras vezes, por ter sido o ponto de partida desses livros algo traumático e pessoal. Mas é só o ponto de partida, porque são dois livros de ficção. O romance Divórcio, sobretudo, causou uma quantidade muito grande de mal-en-

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tendidos. Vou dar o exemplo de um deles: o romance Divórcio conta de um narrador que começa uma corrida de rua depois de sofrer um trauma; eu, pessoalmente, corro, participo de corrida de rua e treino desde 1999, com intermitências – em alguns momentos eu parei, em outros eu voltei –, mas não há uma relação direta entre esse escritor e o narrador do livro. O que caracterizaria uma autoficção? Pelo que eu entendi do que estudei, sobretudo do que se chama a definição francesa do termo, que é a definição mais importante, é quando o autor faz acompanhar do próprio texto uma espécie de aparato construído por ele mesmo em que ele assume e dá a conhecer ao público que ele viveu tudo aquilo que está escrito. Ou seja, que o livro é uma representação da própria experiência, com elementos ficcionais bastante pequenos. Essa é a definição francesa, que começa com um escritor que se chama Serge Doubrovsky. Lá mesmo, ele causou uma enorme confusão e bastante polêmica porque vários teóricos, na mesma hora, responderam a ele afirmando a impossibilidade do que ele estava dizendo, que é uma coisa em que eu também acredito. Eu não acho que a literatura, ou mesmo a palavra escrita, tem a capacidade de transmitir a realidade. Eu não acho que exista essa possibilidade. Então eu acho que essa questão já está bastante matizada desde o início, é uma coisa bem difícil. E o meu livro foi classificado como autoficção por um grupo de leitores, mas para outro grupo de leitores essa hipótese ficou inclusive bastante afastada. Na preparação desta entrevista, além do livro, eu cheguei a ler algumas entrevistas que você deu e resenhas que saíram sobre o livro, e essa questão da confusão entre o real e a ficção é bem presente, pelas perguntas que lhe fazem e pelas respostas. Isso é um indício de certo desconhecimento, de a gente não conseguir separar o que é o real e o que é a ficção? A redação do livro propositadamente coloca essas questões, mas eu acho que o que parece claro no texto – e isso ficou claro numa série de

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leituras – é que é impossível você chegar a qualquer conclusão sobre o que seria o real e sobre o que seria o ficcional. E o que sobra dessa operação é o texto literário. Isso é o que fazia parte do meu projeto. No livro O céu dos suicidas isso ficou claro, mas em Divórcio, que é muito mais polêmico – e eu evidentemente fiz de propósito; é como se depois de O céu dos suicidas eu quisesse, para usar uma metáfora comum, dobrar a aposta –, eu tornei isso muito mais radical. O que ocorreu foi que um grupo de leitores percebeu essa confusão e de fato concluiu pelo aspecto literário, mas outro público (e isso aconteceu sobretudo no início das leituras, porque o livro saiu já tem sete meses) recusou esse aspecto de ficcionalidade – o que acho bastante interessante, porque quem é responsável pela leitura dos textos não é o autor, é o leitor, e o leitor aciona uma série de procedimentos, de mecanismos e de ferramentas que fazem parte dele. Eu acho que o romance Divórcio suscitou nas pessoas uma série de reações, mas que dizem respeito às pessoas – aliás, nem sequer ao livro. Quando o personagem começa a investigar a história do avô, começam a aparecer as fotografias, que são pessoais, da sua família. O que você achou de inserir essas fotografias? Na verdade, as fotografias, para mim, serviam um pouco para aumentar essa questão de colocar a verossimilhança sempre em jogo. Mas eu queria dizer uma coisa curiosa: muitos dos aspectos autobiográficos do romance não são autobiográficos, é uma vida minha realmente inventada. Evidentemente que as fotos são verdadeiras, mas a história daquelas fotos é uma história manipulada. Eu não vejo problema nenhum em dizer isso. Em algumas entrevistas que eu dei, isso era perguntado e eu tentava realmente dizer: “olha, não tem nada disso, são coisas muito pequenas que estão no livro”. Ou seja, dizendo com clareza: as pessoas não vão encontrar a minha vida se elas lerem o livro Divórcio. Isso por dois motivos: o fraco é que eu não acredito que ninguém encontre a vida de ninguém lendo qualquer coisa; acho que a vida é uma coisa e a narrativa dela é outra coisa que não é a vida – afinal de contas, é uma narrativa. E no caso do romance Divórcio eu

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posso dizer com muito mais clareza: a minha vida não está descrita naquele romance, como, aliás, não está descrita em O céu dos suicidas, porque, ainda que eu tenha vivido um trauma pessoal que foi o ponto de partida também daquele romance, a minha reação ao trauma é absolutamente distinta da reação descrita no livro. Realmente são textos literários. Eu acho que quando o romance saiu essa confusão foi muito grande, mas eu acho que hoje, sete meses depois, apesar de o romance ainda estar chamando realmente muita atenção, isso já está debelado. No Facebook, você disse que o livro não foi proibido. Que história foi essa? Eu recebi até agora – você pode achar incrível, mas é fato, porque tudo acontece por e-mail, e eu tenho todos eles guardados – nove pedidos de entrevista, até o presente momento, para que eu explicasse o que eu estava sentindo com a proibição do meu livro. Quer dizer... Isso é uma coisa absolutamente incrível, em primeiro lugar, porque o meu livro nunca foi proibido, nem nunca sofreu nenhum tipo de questionamento judicial, de nenhuma ordem. Já é impressionante que as pessoas façam uma suposição dessas, e, depois, parece claro que, antes de as pessoas virem me procurar para fazerem a pergunta sobre o que eu sinto a respeito, elas deviam checar se o livro tinha mesmo sido proibido. Mas elas não fazem isso... O que ocorre é uma coisa factual: o romance Divórcio, e eu também, nós somos vítimas de uma espécie de boataria que é impressionante. É algo que, no começo, me assustava, mas agora eu acho anedótica essa situação. Sobretudo no meio do jornalismo e, sobretudo, no meio do jornalismo paulistano. São coisas das mais impressionantes... Uma delas é essa: o livro foi proibido, enquanto ele não foi, nem vai ser, já que não existe razão alguma... O livro inclusive foi resenhado numa associação de advogados; não existe essa possibilidade e nunca se aventou essa possibilidade. Mas às vezes eu recebo esses pedidos de entrevista. Algumas vezes a pessoa chega à livraria, não acha o livro e, porque ela não achou o livro, acha que o livro foi proibido. Ela nunca presume que simplesmente acabou, e o livro está tendo, de fato, uma vendagem muito acima da média da lite-

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ratura brasileira contemporânea. Por isso às vezes eu fico incomodado. A primeira vez que recebi essa solicitação eu fiquei muito assustado. Eu pensei: “proibiram o meu livro. E agora?!”. Quando eu fui ver não tinha sido proibido nada, então eu respondi dizendo: “olha, por favor, talvez fosse melhor checar antes de me procurar...”, e a pessoa ficou nervosa. Hoje em dia eu nem respondo mais. Eu falo isso em público porque é uma situação muito difícil, então eu queria dizer que essa questão, de inventar que o meu livro foi proibido, na verdade ilustra um fato que também tem no meu livro, que é o seguinte: um grupo específico de pessoas colocou na cabeça que o meu livro simplesmente é uma descrição fria e factual da minha vida e não há o que tire isso da cabeça das pessoas. Eu não tenho meios, por exemplo... Quer dizer, eu tenho meios, eu não fiz isso no livro por razão óbvia, mas eu tenho fotos em que eu apareço correndo no ano 2000 ou 2002; eu poderia falar “olha aqui”, mas se eu mostro uma foto ou arrumo pessoas que digam “olha, a gente corria junto”, não vai adiantar. Eu percebi já que não vai adiantar, o que é uma coisa que me assusta um pouco, porque é um tipo de imprensa, um tipo de mídia que produz uma verdade independentemente de qualquer coisa. Eu acho isso assustador... A criação literária foi para você, principalmente nos dois últimos livros, um processo terapêutico, de superação e de tentativa de se acertar? Eu não diria exatamente que foi um processo terapêutico, mas eu diria que reproduz um processo terapêutico. Eu diria que há, de fato, uma tentativa de construção artística que, em determinados momentos, pode ser relacionada e reconhecida como um processo terapêutico. Eu posso dar outro exemplo: esses dois livros – mais Divórcio do que O céu dos suicidas – começaram a ser indicados em vários consultórios de psicologia e psicanálise, foram discutidos em vários seminários de psicanálise, começaram a interessar a esse grupo de leitores também, então eu acho que tem uma ligação. Agora, com relação a um processo psíquico que fosse particular ao próprio autor, de fato há nesses dois romances, mas eu acho que toda obra de arte de alguma forma envolve

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algum tipo de reconstrução, do artista, que tem relação com alguma organização psíquica, ainda que não seja propriamente curativa. Então eu acho que, respondendo dessas duas formas, você tem razão. Além do plano discursivo, em que você trata mesmo do problema, da deficiência, você usa uma imagem que eu acho linda: “o seu corpo perdeu a pele, está em carne viva”. Você trata desse sofrimento no plano discursivo, mas também trata no plano da forma, através de repetições, de voltas ao mesmo tema... A fragmentação do texto talvez também seja um indício disso. Onde foi que você pesquisou? Chegou a ir atrás de textos de Freud, como Luto e melancolia? Foi atrás de estudos da memória, que falam sobre trauma? Sim. Ainda que eu tenha feito algumas leituras diretamente relacionadas à construção do livro, eu leio Freud já há bastante tempo, então isso já está muito impregnado. Já fui muito impregnado por esses textos, como também por vários textos do século XX que discutem a questão da memória e também da representação, então eu acho que já é uma coisa que vem dos livros anteriores. Eu já tinha um trabalho anterior bastante forte nesse aspecto. No romance O livro dos mandarins, ainda que seja uma coisa – como você disse no início – de certa maneira distinta, há algumas questões sobre representação, como, por exemplo, a questão do nome da personagem, que em momento algum consegue ser caracterizado. Há uma dificuldade muito grande de caracterização, muito embora naquele caso – de O livro dos mandarins – os traumas sejam todos tratados como se fossem quase piada, com um tom quase anedótico. Enquanto, nos dois últimos livros, isso não ocorre de nenhuma maneira – ainda que eu encontre o humor no romance Divórcio, que eu acho engraçado em alguns trechos, mas não é todo mundo que acha. De toda forma, o próprio humor está colocado em outros pontos. Talvez uma passagem que mostra esse humor em Divórcio seja o momento em que você descreve as características dos “bem-sucedidos”. Exatamente, esse é um deles. Os momentos em que se descreve, por exemplo, a fofoca. Porque o livro Divórcio – e isso foi pouco discutido,

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acho que somente nos textos críticos mais longos – é um livro também sobre fofoca, sobre coisas que vão se espalhando sem nenhum controle. E eu acho, inclusive, que a corrida serve como um contraponto, porque ela é uma coisa que se espalha, mas com um controle. Ela é controlada, tem um percurso, um início, com marcadores de espaço e de tempo, vai acabar e a gente sabe onde. A fofoca, não; a gente não sabe nunca aonde vai chegar. Tanto que o narrador, em um determinado momento, fala: “agora eu preciso me livrar disso, preciso sair desse circuito”, e aí ele continua só no circuito da corrida mesmo. Antes de o livro ser publicado, ele apareceu de certa forma em três outros contos: A corrida, O divórcio e Meus três Marcelos, que você publicou na Piauí e em uma edição artesanal. Qual o papel desses contos para o desenvolvimento do romance? Ao escrever esses contos, você já tinha em mente o livro, tinha um rascunho do livro? Sim, exato. Sem dúvida, eles foram uma espécie de... Como eu posso dizer? Eles não foram rascunhos, porque eles são pensados para funcionar realmente como contos, mas eu posso dizer que eles foram preparadores, em primeiro lugar, porque a repercussão desses textos já foi muito grande – e aí eu percebi que havia, realmente, uma necessidade de tratar o assunto com mais calma, com textos mais longos. Isso em primeiro lugar. Depois, neles há uma série de preparadores e marcadores formais que eu ia testando e observando para ver como funcionavam. Eu já tinha feito isso com os livros anteriores – em O céu dos suicidas eu publiquei alguns pequenos extratos em certos veículos, mas bem menores, com menos expressividade; e nos outros livros eu havia feito isso, mas não publicava. Eu resolvi publicar esses porque eu achei que era possível, mas eles são, realmente, como você disse, espécies de marcadores, coisas desse gênero. Outra questão em relação à forma do livro é a alternância dos tempos. Quando eu estava preparando as perguntas, me lembrei de O filho eterno, do Tezza, em que ele trabalha futuro e presente, fa-

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zendo essa variação. No Divórcio também tem essa brincadeira: ora você fala do presente, quase na hora de o personagem encontrar o diário da ex-mulher; depois fala numa perspectiva do futuro, já comentando, analisando aqueles fatos e escrevendo o próprio livro; aí comenta a publicação de um próprio trecho do livro e há uma brincadeira em que você vai somando várias camadas de tempo, mas que não é uma simples mudança de tempo verbal. Quando você fala do presente parece que é mais visceral, parece que o narrador talvez esteja mais sentido, e depois ele já começa a perceber outros assuntos, vem essa questão dos bem-sucedidos, ele começa a analisar como um jornalismo, com certa distância. Quais foram os cuidados que você teve para trabalhar com isso? Antes de responder, eu queria dizer que tenho uma grande admiração por esse romance que você citou do Cristovão Tezza, que até em determinados momentos me serviu como – não posso dizer fonte, nem inspiração, mas como uma referência. Esse me parece um texto bastante marcante da literatura brasileira contemporânea. Eu acho que, na verdade, os marcadores de tempo funcionam mesmo como você descreveu: os textos no presente pretendem trazer muito o narrador para bem próximo do leitor, tentar fazer com que as experiências dos dois fiquem bastante próximas, enquanto em outros momentos o descolamento acontece para oferecer uma espécie de reflexão. No livro não é o tempo inteiro que o narrador reflete, nem é o tempo inteiro que ele está com raiva. Na verdade, o que ele está tendo são variações de reação; reações variadas o tempo todo. Por isso eu também precisava variar a estrutura sintática, verbal e às vezes até a vocabular. Inclusive, eu tentei colocar, mais para o final do livro, algumas coisas que talvez tornassem o livro um pouco cansativo, como alguns aspectos de metaliteratura. Isso foi também pensado para causar no leitor uma espécie de sensação de cansaço, justamente porque a corrida está acabando e, no final da corrida, a gente está bem mais cansado do que está no início – isso é óbvio, evidente... Então eu tentei fazer também algum tipo de tratamento nesse plano do discurso.

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Alguns personagens são ironicamente chamados de “os bem-sucedidos”. E, a partir deles, você esboça uma espécie de “teoria” sobre a corrosão da moral e da ética por um viés econômico, da vontade de se dar bem. De certa forma, também, isso talvez seja uma ligação com os seus interesses anteriores, de O livro dos mandarins. Isso é um indício de retomada da sua obra com interesse em questões políticas e econômicas? Sim, sem dúvida nenhuma. Eu acho que tem ali uma ligação muito grande. Eu acho também que, nesses momentos, o livro Divórcio também tem o seu aspecto de humor, daquela coisa das mesas falsificáveis... Tem uma coisa muito divertida em relação a isso: o narrador faz uma série de brincadeiras com a catedral de Notre-Dame, e eu recebi várias mensagens dizendo coisas como: “poxa vida, eu achei lá tão bonito, gostei tanto e agora tenho vergonha de entrar...”. Eu recebi várias mensagens assim e acho que é engraçado... Porque eu também já entrei na Notre-Dame... O problema não é exatamente esse, a questão é o que você pensa quando você se acha melhor do que as pessoas que só podem entrar na igreja da Praça da Sé, por exemplo. É realmente, como você disse, uma tentativa de mapeamento de certo caráter, e eu acho que isso deu certo, porque o que causou de raiva não está escrito em lugar nenhum... Esse tipo de repercussão violenta com relação a esse tipo de coisa significa que a crítica chegou a algum lugar. Agora, deixando claro, por favor: eu sou a favor de as pessoas irem à Catedral de Notre-Dame! [risos] No Metropolitan, que eu também cito no livro, eu nunca fui, mas pretendo ir... Pelo fato de a ex-mulher do personagem ser uma jornalista, o livro também trata muito do jornalismo. No aspecto crítico, ele bate muito forte em algumas ferramentas desse meio, que seriam o off, que é quando o jornalista usa uma declaração sem dizer qual é a fonte, e também a relação de cumplicidade com as fontes – porque uma fonte, se revela um segredo, tem algum interesse de que esse segredo seja revelado. Queria que você comentasse um pouco sobre essa questão.

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É uma coisa que também me causou uma quantidade grande de raivas, muito embora eu queira dizer também uma coisa importante: realmente muitos jornalistas gostaram do meu livro. E inclusive elogiaram publicamente; não é só uma questão de boataria. Muito embora outros... O que acontece: um determinado grupo, que não é grande, de jornalistas que vêm, sobretudo, de meios muito poderosos... Eu não vou ficar fazendo caça às bruxas em nenhuma hipótese, não quero colocar ninguém na fogueira, mas eu posso elogiar... O jornal O Globo, por exemplo, deu um tratamento muito digno e correto ao meu livro: simplesmente o enviou para um resenhista, um crítico especializado, dizer o que ele achava e publicou. Mas houve um grupo de jornalistas que se sentiu profundamente quase violentado ou incomodado... Mas a gente que lê Freud sabe é que se sentiram identificados, porque, se você não se sente identificado, a coisa não vai fazer você ter uma grande reação... Mas realmente eu digo claramente: esse negócio de off até agora é uma coisa que eu não consigo compreender como pode ocorrer. Vou dar um exemplo simples: se a pessoa não precisa identificar qual é a origem da informação dela, o que faz com que essa pessoa não invente a informação? Basta ela dizer: “bom, é uma fonte...”. Aí as pessoas podem dizer: “bom, é o lugar do jornalista, a competência dele, a reputação dele que está em jogo...”. Mas reputação hoje em dia é uma coisa muito relativa. A quantidade de coisas que a gente vai lendo e vendo é muito grande, complexa, então eu realmente não consigo... Posso dar outro exemplo: a justiça não aceita denúncia anônima, não aceita prova sem que a origem dela esteja claramente comprovada. Então isso me deixou muito espantando, realmente, entre outras questões. Não passa um dia em que a gente leia o jornal e não tenha frases como a seguinte: “tem dito a pessoas próximas”, “o político X tem dito a amigos”, “o candidato Y afirmou a assessores”... Não diz o nome do assessor, não diz quem são as pessoas próximas. Na linha seguinte, o texto abre aspas. As aspas, a gente sabe claramente, significam “falou isso mesmo, literalmente”... Mas se a fala vem de terceiros, ela já não poderia estar entre aspas. Quer dizer, você está atribuindo a uma pessoa a fala que na verdade outra pessoa disse que a pessoa X falou. Eu

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acho isso inadmissível, acho isso algo impossível de ser [levado a sério]. Eu não entendo como isso ocorra, mas ocorre, sim, com bastante frequência, com muita tranquilidade, e pessoas são jogadas na fogueira sem a menor [cerimônia]. As coisas vão acontecendo da maneira mais negligente, e isso me impressiona bastante. ***

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MARCOS CHINA

RAIMUNDO C A R R E R O Tangolomango e o renascimento da crítica

Um dos autores mais reconhecidos e premiados de Pernambuco, Raimundo Carrero, que já esteve diversas vezes no Café Colombo, desta vez nos fala sobre o romance Tangolomango, lançado pela Editora Record. Na obra, Carrero resgata a personagem Guilhermina, que já havia aparecido em O amor não tem bons sentimentos, lançado em 2008. Tangolomango foi o primeiro romance escrito após o AVC sofrido pelo escritor. O livro narra um dia na vida de Guilhermina, e se passa durante o Carnaval recifense. Nesta conversa, gravada em maio de 2013, Carrero fala de seus personagens, da escrita e também de polêmicas surgidas em relação à apreciação crítica da obra.

Café Colombo – Vamos começar contextualizando Tangolomango. Ele integra o tríptico chamado “Comigo a natureza enlouqueceu”, composto por Seria uma sombria noite secreta e o ainda inédito Lamalagata, que tem uma pronúncia difícil. Como se fala? Raimundo Carrero – Basta lembrar assim “a gata má”: la-mala-gata. Na verdade, é uma palavra que eu inventei para unir a Tangolomango. Como é um tríptico, eu criei essa outra palavra, que se aproxima do título único que é Tangolomango. E esse tríptico tem uma relação forte com “Quarteto áspero”, outro conjunto da sua obra que trabalha com os mesmos personagens. Queria que você explicasse, para começar, o que diferencia esses dois projetos, o “Quarteto áspero” e o “Comigo a natureza enlouqueceu”. É verdade. Bem, o “Quarteto” parte de Maçã agreste e traça um quadro mais, digamos, pessoal e social dos personagens. O tríptico nasce na imagem, na pintura e escultura, quando há três quadros com três imagens diferenciadas, em que a do centro é considerada padrão por lançar luz à da esquerda e à da direita. Não é obrigatoriamente uma sequência. No quarteto, a sequência existe. Mas no “Comigo a natureza enlouqueceu”, o tríptico, tem uma imagem central – que é Tangolomango – movida pelos temas que vão aparecer e pela figura central da narrativa, que é tia Guilhermina. Em primeiro lugar, à esquerda, está

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Seria uma sombria noite secreta, que é meu romance anterior, e à direita está Lamalagata, que vai fechar o tríptico. Suas obras têm títulos bastante interessantes. Como é esse processo de criação do título? Isso lhe consome muito tempo, você passa muito tempo pensando nisso? Consome. Uma das críticas que se faz a mim é que meus títulos são poéticos ou provocativos, não narrativos. É como eu penso a função do título. Não adianta me criticar por isso, porque é o que eu quero. Se você botar um título que carimba a narrativa, você antecipa ao leitor o que vai acontecer e tira dele o que tem de melhor, que é a surpresa e o estranhamento. É o momento em que o narrador pega o leitor pelo pescoço e o conduz. Por isso que meus títulos são sempre assim, provocativos ou poéticos, não exatamente narrativos. Faz parte, portanto, da técnica que eu uso para narrar. E o que significa tangolomango? Tangolomango é uma palavra africana que significa muvuca, confusão, carnaval. Daí nasce toda a narrativa, que foi preparada a partir do Carnaval desde o seu título: Tangolomango: ritual das paixões desse mundo; portanto, é um título que expressa a narrativa. E por quê? Porque dentro do romance eu busquei colocar – embora seja um romance curto, de 128 páginas – vários temas, não digo todos porque seria uma pretensão extraordinária (embora um autor tenha que ser pretensioso), que podem aparecer durante o Carnaval, durante um desfile. Podem aparecer vários movimentos políticos e sociais... Isso está nos blocos de que você fala, não é? Os blocos compõem esse grande quadro teatral que eu chamo de teatro de rua. O Carnaval favorece esse grande encontro de vários movimentos políticos, sociais, econômicos, todos. Surpreende quando a crítica pega detalhes de palavras ou frases e esquece o que é mais importante, que é o tratamento geral, o acabamento da obra. Você pode ver que tia Guilhermina passa por momentos terríveis, desde o momento em que

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ela sai de casa. Se o crítico prestar atenção, o Carnaval seria, por assim dizer, uma fantasia dela. Ela vai andando como todos nós, e, enquanto anda, pensa, imagina, fantasia, delira. O Carnaval dela é mais um delírio, uma fantasia, do que propriamente uma narrativa existencial. A tia Guilhermina já é uma personagem retomada… Basicamente de O amor não tem bons sentimentos. Ela vem na sombra e aparentemente esquecida porque ela é vista na casa dela como uma mulher modelo. Logo cedo ela saiu da cidade dela, veio para o Recife e se comportou como uma funcionária pública tradicional… Burocrática… Qualificada, trabalhadora, quieta, discreta, humilde. E, no entanto, fervendo interiormente. Quando nasce Mateus, que precisava de uma mãe que cuidasse dele, porque a família tinha um problema de depravação incestuosa entre eles – mãe que gera filho de outro filho, irmãs e irmãos que se relacionam sexualmente –, ela assume esse papel, já que era modelo na família, a pessoa mais correta… No final, há uma cena em que ela demonstra que ela vive organizadamente, corretamente. Lápis no lugar de lápis, botão no lugar de botão, carimbo no lugar de carimbo. Ela vive organizadamente, embora interiormente não fosse nada daquilo, fosse apenas exteriormente. Depois, quando ela envelheceu, explodiu. Ela foi criar Mateus e se apaixonou pelo personagem, a partir da criancinha até o homem. Quando ela começa a falar de Mateus, fala do homem, não do menino. Há momentos em que ela se refere ao menino, mas porque na relação dela o menino seria sempre menino, por quem ela se apaixonou, em quem ela dava banho, e, naturalmente, havia toques enquanto estavam juntos. Essa foi a ideia que eu quis passar de tia Guilhermina. E como começa o despertar dela, como uma pessoa burocrática se solta daquela maneira? Ela começa a falar dela mesma, a mostrar que desde o momento em que começou a dar banho nele, nu, ele se tornou uma espécie de objeto

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sexual para ela. Com isso ela foi aflorando e começando a brincar com ele, mas sempre mantendo aquela posição tradicional, conservadora. Ela dizia: “o sangue não trai”, que significava: “não vou avançar nos toques, vou só tocar nele”. E ele ironizava muito ela. Tem uma frase que é, na verdade, irônica: “vamos, tia, vamos”, porque ele percebeu logo, desde criança, que o grande tormento dela era dar banho nele, porque ele era um objeto sexual que ela tocava, pegava, e não podia fazer nada – não porque não pudesse, mas porque ela não queria, ela rejeitava como a figura religiosa que não queria pecar, basicamente. A questão dela é só com o menino, nunca nem teve contato com homens. Tinha uma cena no livro que eu queria desenvolver, mas achei que estava ficando longo demais e deixei. Seria uma cena onde ela descobre que Mateus era amigo de guerrilheiros, um deles vai para a casa dela se esconder e ela se apaixona pelo guerrilheiro. Eu preferi tirar porque queria manter tia Guilhermina apaixonada só pelo Mateus, porque se eu colocasse outra figura poderia comprometer a figura dela, correta, digna e conservadora. Você diz que entre seus livros não há necessariamente uma ideia de sequência, até por conta da ideia do tríptico, mas ao mesmo tempo a tia Guilhermina revela uma coerência entre O amor não tem bons sentimentos e Tangolomango. A gente pode dizer que é a mesma personagem? É a mesma personagem, porque lá é o livro de Mateus. Mateus fala em primeira pessoa e se refere à tia Guilhermina. Ele dizia: “os seios de tia Guilhermina são divinos”. Lá, ele se confessava apaixonado por ela. Aqui, é o ponto de vista da tia Guilhermina, ela se confessa apaixonada por ele. São as mesmas pessoas vistas de pontos diferentes. Queria que você falasse um pouco a respeito da técnica empregada neste romance. Você se refere a um “cubismo literário”. De que se trata? Em primeiro lugar, eu tenho que tratar, naturalmente, dos narradores. Os narradores são a parte essencial da narrativa. Eu lancei mão de

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um narrador que tem desaparecido no Brasil, apesar de que no resto do mundo não é assim: o narrador onisciente, falastrão, conversador. Para fazer isso, eu usei a falsa terceira pessoa, que é muito rica porque, como é falsa, é uma terceira pessoa com efeito de primeira. A diferença é que, na técnica da primeira pessoa, você é mais concentrado, trabalha mais no close. E, na terceira pessoa, você trabalha mais em ângulo aberto, como uma grande angular da fotografia. Trabalhando nesse sentido, eu pude fazer com que, na verdade, o narrador principal da narrativa seja a tia Guilhermina – ninguém fala mais do que ela. Fiz isso através de outra técnica que eu chamo de “olhar e ouvido do personagem”. Tanto é verdade que eu oscilo entre a narrativa da memória (que é o ouvido), a narrativa do olhar e também a da crônica. Para ter a liberdade de me soltar na narrativa e inclusive dizer o que queria, usei um terceiro narrador, que é a voz de Mateus lendo as crônicas pernambucanas, que falam dos carnavais, maracatus, caboclinhos. É aí que entra a figura do narrador cronista, que na verdade é Mateus. O que eu queria era atingir um efeito que Flaubert chama de “burburinho”. Eu não queria a narrativa pura e simples, queria o burburinho, a circulação das vozes, mesmo quando tivesse que ser ruim. Como aquela cena famosa de Madame Bovary na feira, em que eles estão na carruagem… Eu até separei aqui: os chamados comícios agrícolas. Vargas Llosa tem um estudo muito bom sobre isso... É por isso que eu me apaixono. Nos meus livros, se você procurar um texto arrumado, bonito e organizado, não vai achar. Porque aqui não tem um texto, tem vozes circulando – ainda que a voz seja por vezes indecente, feia, horrível. Ainda que eu tenha que usar o pretérito perfeito, porque o pretérito perfeito funciona muito bem como uma espécie de arpejo na música. Quem conhece música sabe dessas coisas todas. Então eu escrevi como se fosse um frevo, com um movimento de introdução, quando ela aparece no presente do indicativo – porque o presente do indicativo é afirmativo, é forte. Depois ela

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começa a soltar a fantasia dela, o delírio – pode ser que nada tenha acontecido, seja só o delírio dela. Tanto que eu não tirei a narrativa dela em nenhum minuto. A epígrafe de Vargas Llosa que você usa já fala muito sobre isso, o discurso interno que atua como um filtro. O narrador está sempre na intimidade do personagem, nunca no mundo exterior. Deste, o que nos chega, chega filtrado, diluído, utilizado pela sensibilidade daqueles seres; jamais diretamente. Quer dizer, narrador e personagem são a mesma coisa. Foi a técnica que eu usei. Mas o que eu quero que o leitor note, no livro, é que se trata de um romance de personagem. Eu foco no personagem. Quero que o leitor trabalhe com tia Guilhermina. Esses outros aspectos acho que ficam mais para mim e para o crítico que tem boa vontade de investigar. Eu percebi que alguns críticos foram perto, mas – ou porque não entenderam ou porque não quiseram perder tempo com o livro – evitaram falar. Antes de entrar nesse episódio da crítica, quero saber outra coisa interessante: Tangolomango vai virar um frevo? Já é um frevo. Está sendo gravado. Falei com Rogério Andrade, que é um compositor de frevo pernambucano, mais jovem, e pedi para ele fazer um frevo, que, aliás, ficou muito bom. Chama-se “É Tangolomango, meu bem”, e diz assim: “Vem cá, vem cá, vem cá, eu vou no Tangolomango, eu vou lhe beijar”, é o refrão. Em primeira mão para o Café Colombo [risos]. Em primeira mão! Uma das minhas ideias quando comecei a trabalhar é que o livro fosse um musical da melodia pernambucana. Eu tenho vontade de levar o frevo e o maracatu para o palco. Aliás, já comecei a escrever a adaptação, com tia Guilhermina e o universo dela, o maracatu, o caboclinho, o frevo... Na verdade, um grande musical pernambucano com a música de nossa cidade no que tem de mais forte e vigoroso. Vamos ver se dá certo…

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Como é o Carrero folião? Na verdade, eu só fui folião na adolescência. Depois, eu era mais observador. No Carnaval, eu passei por um momento de muito trabalho porque eu era chefe de reportagem do Diario de Pernambuco, e trabalhava durante o Carnaval todo, mas não só como repórter, também como observador. Também porque, como o Carnaval era todo no centro da cidade, eu ia para a sacada do Diario de Pernambuco e ficava vendo aquilo, às vezes descia e andava na cidade. Era um carnaval muito triste. Aliás, teve um crítico que disse isso, com uma frase que eu nunca entendi: “não há nexo entre o personagem triste, melancólico, e o Carnaval”. Por que não há nexo? Qual é o problema de ter no Carnaval um personagem triste? O carnaval é triste. “Vou beijar-te agora, não me leve a mal, hoje é Carnaval”, e depois “Ôoô, saudade. Saudade tão grande...” É nostálgico… E o Pierrot é sempre choroso. Um dos símbolos do Carnaval são o Pierrot e a Colombina. Quando um crítico diz isso, eu creio que isso não é crítica, é pitaco. Pitaco é uma coisa muito diferente de crítica, é uma pessoa que não entende de romance e dá um pitaco. Então vamos entrar neste tema. Um crítico daqui, Cristiano Ramos, escreveu um artigo a respeito do livro destacando pontos positivos e alguns pontos que ele considera negativos. Em seguida, pelas redes sociais, veio a resposta de Carrero, e teve início um debate, em que outras pessoas se envolveram, gerando uma grande repercussão. Como foi sua percepção disso? Como você considerou o artigo dele? Quando eu vi o artigo, eu me preocupei em dar uma resposta leal, porque o Cristiano é uma pessoa correta, leal e sincera; não faria uma crítica batendo brabo em Tangolomango só porque quisesse; ele fez porque sentiu necessidade. É claro que eu acho que Tangolomango bateu na alma dele, mas ele disse: “Carrero fez uma besteira, por que publicou esse livro?”. Mas não é por aí. Eu acho que, com toda sinceridade e lealdade dele, ele usou um método que não é um método ideal para a análise do meu romance, o método formal, das frases vaidosas, muito

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arrumadinhas, preparadas. Mas eu não queria isso, eu queria me aproximar mais do Céline [Louis-Ferdinand Céline, escritor francês] e dessa cena de que falamos ainda agora, dos comícios agrícolas de Flaubert. Há uma carta de Flaubert para uma amiga, Louise Colet, dizendo que ele escreveu o capítulo captando mais os movimentos, o burburinho da feira, e não exatamente um relato textual. Que fosse mais “ouvido”. Era isso que eu queria: Carnaval não é para falar, é para ouvir. Minha tentativa foi certamente essa. Então, algumas frases desagradaram Cristiano, pelo ouvido dele em relação à frase convencional, formal. Mas eu não me ofendi, nem tentei ofendê-lo. Parece que ele ficou magoado com algumas coisas, mas eu acho que Cristiano se ofendeu inutilmente, porque o que eu tentei foi responder e esclarecer algumas perguntas que ficaram soltas no ar, que não ficaram claras. Eu acho honesta e sinceramente que um autor não deve responder, mas não é por desprezo ao crítico, é até por respeito, porque se você disser a ele: “não é assim, é assim”, ele diz: “mas eu entendi assim”, e pronto. O que ele entendeu é o que vale, não o que eu escrevi. Se ele não entendeu, eu não escrevi bem, não fui claro em meu projeto. Só isso. Uma coisa interessante, independentemente da forma da crítica, é justamente esse novo fenômeno das redes sociais e como isso dá uma repercussão diferente, além da possibilidade de o público, que também não é crítico, se envolver nessa discussão. O que você achou disso, desse desenvolvimento? Não precisa nem tratar do caso concretamente, mas dessa possibilidade de uma intervenção mais direta do público leitor. Eu achei curioso, porque o público leitor historicamente nunca teve chance de dizer nada. Nem do que gostou, nem do que não gostou, do que achou ruim ou achou bom. Geralmente, o leitor gosta ou acha ruim e fica calado porque não tem o espaço. Alguns leitores, em alguns momentos, em alguns jornais, escreveram cartas à redação dizendo o que achavam, mas no caso do Facebook é mais interessante porque o leitor se manifesta. É claro que ele se manifesta com a paixão de leitor, não está preocupado com as técnicas, só quer dizer se gostou ou não

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gostou. Então eu acho o Facebook uma ferramenta profundamente democrática, porque o leitor pela primeira vez na história tem a possibilidade de dar a sua opinião diretamente ao autor. E o autor tem como ouvir o leitor. É claro que a opinião técnica interessa profundamente e é correta, mas é claro também que a opinião do leitor é igualmente correta, porque é o que ele sente. É isso que eu digo. E não adianta dizer depois “não foi isso que eu fiz, eu fiz assim”. Se o leitor não gostou é porque não gostou. E se não gostou é porque não funcionou. Então, é claro que se deve levar isso em consideração. Agora, há críticos e críticos. Há os que escrevem com lealdade e sinceridade, caso de Cristiano, que foi correto. Até coloquei no Facebook: não achei que ele fosse desleal, achei que ele foi equivocado. É outra coisa. Do mesmo jeito que ele achou que você se equivocou também. Claro, é tanto direito dele quanto é direito meu. Está no âmbito da opinião. Não tem como fechar as possibilidades. Mas eu também vi críticos importantes do país apontarem defeitos sem nenhum cabimento. O primeiro chama-se Luís Augusto Fischer, da Folha de São Paulo. Primeiro ele elogia o romance largamente, depois parece que ele achou que estava elogiando demais e começou a criticar. Acho que ele se assustou consigo mesmo, porque disse coisas esquisitíssimas. Uma foi que não via nexo entre um personagem melancólico e o Carnaval. Outra é que devia ser uma tragédia e eu escrevi um romance burguês. Eu não me propus a escrever tragédia, ele precisa observar a que eu me propus. Outra, que eu tinha um peso muito grande de Érico Veríssimo e Jorge Amado, no que ele está profundamente equivocado. Se tem um autor brasileiro do qual eu tenho um peso no que gosto de escrever, e de que sinto a influência, é Ariano Suassuna: o restante são autores com os quais não me preocupo, nem leitor sou. Eu sou leitor de Jorge Amado como todo brasileiro é, um leitor à vontade, sem espírito de crítica. Érico Veríssimo também. Esse, na verdade, eu acho muito ruim. Ele começou a escrever uma obra boa já na velhice,

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mas O tempo e o vento é uma obra questionável, por exemplo. E eu não tenho o menor interesse em ser um Érico ou um Jorge Amado. Se eu quisesse ser alguém, seria um Ariano, cuja literatura me agrada muito pela qualidade literária, pelo padrão de escrita e também pela visão de mundo. É assim que acho que o crítico erra, quando quer dar lições ao escritor. Ou seja, o escritor tem um objetivo, tem um projeto pessoal, e o crítico quer que o autor tenha outro projeto? Teve uma crítica de que gostei, que é claramente mais favorável, embora tenha dito uma frase contundente: “Para este leitor, não atingiu o nível de excelência”. Ele diz muito bem que o Recife que está no texto não é um Recife cartão-postal. Ótimo. Depois, ele diz que o livro é atemporal. Isso é um elogio, porque o romance quis ser isso mesmo, atemporal, além do tempo. Nem o Carnaval de 1990, nem o de 1930, nem o de 2010. Independentemente de questões concretas e pessoais, você não sente que nos últimos tempos, talvez nos últimos cinco anos, houve uma retomada da atividade crítica no Brasil, no sentido de o crítico se colocar mais pessoalmente em relação às obras? Passamos um tempo muito grande com o estilo de crítica-resenha, muito simplória… Sim. É porque primeiro era uma imitação americana. Quando nos Estados Unidos resolveram acabar com os suplementos literários, criaram a resenha, que não é exatamente uma crítica, é mais uma informação, uma sinopse do livro. Ali o crítico não tem necessidade de dar uma opinião. Então esse movimento que está acontecendo – se é que está – não é positivo? Acho muito positivo e muito bom. A única coisa que eu acho problemática é quando o crítico quer dar lições. Eu vi uma entrevista muito boa que saiu agora no Suplemento Pernambuco de José Castello, que dizia, entre outras coisas, isto: o crítico não pode se colocar na posição de juiz da obra, “isso presta, isso não presta”. Ele deve se colocar na posição de leitor privilegiado, muito bem-informado e tecnicamente

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preparado. Porque nós tivemos momentos difíceis na crítica brasileira. Inicialmente ela era mais impressionista, ligada à opinião política e social do crítico. Depois, com o advento da oficina literária de Afrânio Coutinho e da crítica universitária, passou a ser muito rigorosa no sentido da técnica. Alguns nem se preocupavam com o romance, mas somente com a técnica. Depois, quando a crítica universitária perdeu força nos jornais, a crítica ficou perdida. Não sabia se era impressionista ou técnica. Ficou um pouco de cada coisa. Ultimamente ficou, como você disse, mais pessoal, no sentido de ver a obra através do gosto, não só estético, mas pessoal mesmo, de leitor que gosta de ler. A crítica da Folha de São Paulo, de Luís Augusto Fischer, toca nisso: “como leitor, eu não gostei”. Então pronto, problema dele. Deixou de ser um problema do próprio leitor de jornal. ***

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DIVULGAÇÃO

S I D N E Y R O C H A O escritor e a construção de uma obra

O lançamento do livro de contos O destino das metáforas, publicado pela Editora Iluminuras, foi o mote para esta conversa com o escritor e editor Sidney Rocha, em março de 2012. Na entrevista, ele falou sobre sua trajetória literária de mais de 30 anos, sobre literatura contemporânea, sobre seu trabalho com edição de livros, sua relação com a crítica literária, entre outros temas. Para Sidney Rocha, que é cearense radicado em Pernambuco, e autor também do livro de contos Matriuska e do romance Sofia, “Ninguém sai incólume de uma boa leitura”.

Café Colombo – Para iniciar nossa conversa, o que são as metáforas em sua literatura? Sidney Rocha – O destino das metáforas parte de uma coisa muito pontual na minha obra, a ideia da morte. Isso vem perseguindo não somente os grandes temas na minha obra, mas também os pequenos temas. A metáfora, especialmente nesse livro, tem a ver com os conceitos de amor e morte, que são as grandes metáforas e os grandes temas da literatura universal. Para mim, do ponto de vista da linguagem – não só como figura de linguagem, mas como fonte para construção das visões de mundo – a metáfora é uma das coisas que mais impressionam hoje. A minha obra está permeada desses conceitos. Existe uma ligação entre os seus últimos livros? Eles fazem parte de uma série, que partem de uma mesma ideia? Que relação eles podem ter? Na verdade, existe. Eu não venho trabalhando com a construção de um livro, mas com a construção de uma obra. Talvez pela incapacidade de esgotar determinado tema em mim, o amor e a morte, ou os conceitos básicos da tragédia – ponto no qual me refiro ao mundo grego e todo o imaginário clássico, com o ressurgimento da tragédia. Isso vem se repetindo desde o meu primeiro romance, Sofia, e eu venho construindo com certo aprimoramento uma sequência de pelo menos cinco livros, uma trilogia de romances e outros dois livros de contos

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que se inserem nesse mesmo pensamento: O destino das metáforas e Matriuska. É muito acertado dizer que há, nisso, uma sequência. É a construção de uma obra. Você sugere que a leitura do livro seja uma espécie de queda de um arranha-céu, o que me lembrou até a imagem de abertura de um filme francês chamado O ódio, em que um cara vai caindo de um edifício e, a cada andar que passa, vai dizendo “até agora tudo bem”; mas o importante não é a queda, é a aterrissagem… É exatamente isso. Impressionante que, enquanto eu estava escrevendo Matriuska, me veio também essa imagem da queda. Mas o mais importante nisso, que engloba um pouco o que eu penso da literatura contemporânea, é formar um melhor leitor. Eu mesmo prefiro não ter um leitor comum, mas um leitor mais experimentado. E a leitura se manifesta para mim como um trabalho árduo. As pessoas pensam que ler é coisa fácil. Mas por que as pessoas não leem tanto hoje em dia? Porque exige um trabalho… A sua obra exige do leitor? Exige. Em Matriuska isso fica bem claro: eu exijo que o leitor tenha certa atenção, ao criar alguns percalços, até mesmo no ritmo, na construção da música que há dentro de cada um dos contos, na ligação que há entre um conto e outro – de modo que há até quem diga que não se trata de um livro de contos, mas de um pequeno romance. Lógico que isso é uma metáfora dentro da metáfora, porque eu não estava preocupado com gênero nesse caso. Do ponto de vista desse mergulho, é certo dizer que ninguém sai incólume, sem sequelas, de uma boa leitura. Se Matriuska é a queda, O destino das metáforas é uma levitação? Sim. A queda, de um ponto de vista religioso, fala da paixão, do sagrado e do doentio no amor e na morte, esses conceitos absolutamente religiosos. Eu diria que O destino das metáforas é uma espécie de ascensão. Em Matriuska, o universo está circunscrito a um universo feminino; em O destino das metáforas você vê o mundo masculino mais

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aflorado – as relações de virtude e amizade principalmente. Portanto, há sim um declínio e uma ascensão nesses dois livros de contos. Já que os temas se comunicam e se permeiam em todos os seus livros, como é que os personagens estabelecem paralelos? Ou não existem paralelos entre eles? Eu acho que, por exemplo, em Matriuska, não há “os” personagens, há “a” personagem. Talvez o que a gente não entenda pelo eterno feminino. Há uma coisa chamada “a grande mãe”, que é um arquétipo jungiano. A minha preocupação não é com “os” personagens, mas com “a” personagem, essa coisa mais mítica, numa tentativa de universalizar os temas cotidianos. Eu não estou inventando nada, Joyce fez isso muito melhor do que eu. Não adianta eu perseguir o mundo contemporâneo mais do que o cotidiano. Não se trata de grandes personagens, mas de um grande personagem, um grande arquétipo – no caso feminino, da Matriuska, e no caso das virtudes, em O destino das metáforas. No romance há outras tipificações e mitificações também. O local em que você nasceu tem alguma influência direta na sua obra e na sua concepção de literatura? Graciliano falava uma coisa interessante: “o Sertão é todo lugar e é lugar nenhum também”. Eu não sei. Eu não acredito que a geografia influencie tanto na obra de um autor. Eu acho que você pode construir sua obra em qualquer lugar. Lógico que os elementos culturais influenciam muito, mas a tentativa é ser outro. É muito fácil escrever sobre tristeza quando se está triste. É muito mais complicado escrever sobre tristeza quando se está alegre ou sobre alegria quando se está de fato triste. Eu acredito que seja necessário ao autor desenvolver uma outra persona para criar melhor. As relações parentais, geográficas etc., nem sempre são o mais importante para mim. Quais os autores contemporâneos que você tem lido e com quais deles você estabelece um diálogo na sua literatura? Eu leio muita literatura contemporânea. Hoje eu leio mais a litera-

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tura contemporânea do que a clássica, muito embora não possamos esquecer jamais de lê-los. Hoje me influencia muito a literatura norte -americana. Don DeLillo é um dos mais importantes. Norman Mailer, do ponto de vista do realismo que ele alcança, me impressiona bastante. E o Roberto Bolaño certamente marcou a minha vida; embora as repetições de tema não me agradem, a narrativa dele me agrada. O que a gente vê, principalmente na literatura brasileira hoje, é uma repetição muito fácil de padrões. Eu acho que a literatura contemporânea brasileira sofre hoje do que sofreu, nos anos 1980, a literatura americana, de tentar criar temas que interessam ao mercado. O autor está um pouco desaparecendo no Brasil enquanto aparecem muito mais as tendências de mercado. Mas acho que, no geral, o DeLillo e o Bolaño me influenciam bastante. Você acha que também existe uma má influência das teorias acadêmicas sobre a criação literária hoje em dia? O mercado, por um lado, pasteuriza a escolha de temas e maneiras de escrever; e, por outro lado, haveria uma tendência de obedecer a determinadas teorias? Acho que você tem toda razão. Muitos autores hoje se sentem bastante lisonjeados (e não deixa de ser uma lisonja, claro) quando um acadêmico se declina sobre a obra dele, principalmente o escritor contemporâneo. Muitos escritores hoje trabalham especialmente para fazer coro ao academicismo, às academias. Isso é muito comum, até mesmo porque, com a democratização da educação, as pessoas conseguem ter muito mais acesso às universidades, mestrados e doutorados. Criou-se uma casta das academias legitimando a literatura. Isso é uma coisa muito estranha porque tinha que ser exatamente o contrário. Como Sidney Rocha se posicionaria entre esses dois polos? Eu sou um escritor. Eu não tenho fundamentação acadêmica. Eu sou um leitor, especialmente, e acredito que a literatura seja mais criação e imaginação do que interpretação. Eu me posiciono do lado de cá da moeda, de alguém que tenta criar algo, que não tenta inventar coisa nenhuma, mas que tenta dar o máximo possível a temperatura correta

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aos textos e romances. Não tenho posicionamento ideológico – não sou contra nem a favor das academias –, mas sou a favor de uma literatura espontânea, legítima, e não submissa às de tendência de mercado, nem ao que os editores estejam querendo que você escreva, o que para mim é menos importante. Você citou alguns autores contemporâneos, mas nenhum brasileiro. Que autores brasileiros contemporâneos você lê e recomenda? Eu li recentemente Os Malaquias, de Andrea Del Fuego. Falei até para ela sobre o livro, certa vez. De repente, assim, eu não consigo elencar bem, porque há autores que eu leio e de que não necessariamente gosto – e por essa razão também não me influenciam. Embora alguns autores ruins terminem também por influenciar a gente. Flaubert lia especialmente autores ruins. Quer aprender a escrever, querido? Vá ler autor ruim, porque você sabe exatamente o que não deve fazer [risos]. Mas a gente encontra muitos autores brasileiros bons. Além de escritor, você também é editor. Como é a sua relação com quem edita seus livros? Você fica muito no pé, ou a relação é boa? Como editor, eu tenho um princípio básico: autor bom é autor morto. Não há coisa pior do que autor enchendo o saco, principalmente porque isso me faz lembrar Heine. Ele dizia o seguinte: “Por que a gente não constrói mais catedrais góticas como construía antes? Porque hoje nós vivemos num mundo moderno das opiniões, e para construir uma catedral gótica é necessário mais do que opinião, é necessário convicção”. Hoje nós vivemos no mundo das doxas, das opiniões. Não tem coisa pior do que leitor dando pitaco sobre o seu livro. Eu sempre desejei que eles estivessem todos mortos. Os autores vivos que eu editei, eu os considerava mortos – só assim eu conseguia fazer meu trabalho. No caso da Editora Iluminuras, a gente tem uma ligação muito aberta – eu e o Samuel. Uma das coisas no nosso acordo comercial foi que eu não queria intervir na forma de editar, porque ele faz isso há 20 anos e faz melhor do que eu. Nós tivemos uma relação muito boa e aberta. Lógico que ele me dava muitos cortes, porque mesmo sendo

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editor eu ainda encho muito o saco. Mas ele dá os cortes devidos, não é fácil ser editado por Samuel. E em relação à crítica, em algum momento você já se sentiu injustiçado? Você acha que a crítica hoje cumpre um papel importante? Eu não me sinto injustiçado pela crítica porque eu sequer existo para a crítica. Às vezes você pode fazer uma pergunta dessa e o ouvinte ficar pensando que o cara é superimportante e tal, mas não é bem isso porque, de fato, o trabalho de um autor, a meu ver, só começa a funcionar mesmo quando alcança outro tipo de leitura. A crítica dos jornais e a crítica acadêmica até me tratam muitíssimo bem. Meus livros têm sido muito bem aceitos e resenhados tanto nos principais jornais do país, como o Estadão, a Folha, quanto nos programas de crítica literária. Esses dois últimos, especialmente, O destino das metáforas e Matriuska, foram muito bem recebidos, não é? Muito bem recebidos, muito bem resenhados também no Sul do país e até fora. Mas acho que o alcance do autor é outro ainda. Acho que o autor só acontece de verdade quando começa a atingir um leitorado mais jovem, nas escolas etc., e eu persigo muito mais esse leitor do que o leitor especializado, porque há muito livro por aí. Há um engarrafamento de livros por aí. Então você pode ser facilmente confundido. Você se transforma em “o escritor da semana”. E na outra semana você já não é nem mais escritor. Eu não me iludo muito com isso, embora a crítica tenha sempre dado bons resultados ou falado muito bem do meu livro. Eu fico feliz de falarem. Mas ao mesmo tempo, no início da conversa, você falava da necessidade de ter um leitor atento. Esse leitor atento não é exatamente o que se vai conseguir de imediato nas escolas, com uma reprodução desenfreada do seu livro nas bancas escolares, não é verdade? É verdade em parte, porque quando eu falo do leitor atento não me refiro ao leitor especializado. Você pega, por exemplo, o Matriuska: acho que é um livro fundamental para as escolas, porque nesse livro eu

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aboli completamente as maiúsculas do texto, criei um ritmo diferente, musical mesmo. Para que você tenha uma ideia, em relação a esse livro e ao caso das minúsculas, que a crítica sempre apontou como uma das questões formais do livro, o Valter Hugo Mãe, em Portugal, fez isso um ano depois e Saramago disse que ele tinha inventado uma língua [risos]. Então, eu inventei antes! Eu falo para esse tipo de leitor. Não é o leitor fácil, mas também não precisa ser o leitor especializado. Eu não escrevo para a crítica especializada, eu tento criar de verdade essa atenção, que o cara tropece de fato numa palavra e pergunte por que ela está ali. Uma coisa que acontece muito na vida literária é a criação, às vezes artificial, às vezes natural, de expressões polêmicas. Você participou de uma coleção chamada Geração 00. Conta um pouco como foi e por que foi gerada uma polêmica. É verdade. Uma pergunta que fizeram antes, acho que tem a ver com esse tema, sobre se a geografia influenciava na minha obra; acho que posso juntar essas duas respostas para, enquanto enrolo você, responder sobre a Geração 00. O Nelson de Oliveira, crítico literário, polemista, doutor em letras pela USP, tinha feito, antes, duas outras antologias onde ele apontava os caminhos da nova literatura. O Nelson é um especialista na literatura contemporânea, além de ser autor também. É difícil ser crítico da literatura contemporânea, porque é um bicho se movendo, meio ameba. Não está formado, você não sabe como vai ficar isso… Exato. Enquanto outros uspianos, principalmente os marxistas da USP, não entendem bem esse movimento das massas da literatura contemporânea, o Nelson criou de novo outra antologia e me colocou lá entre os 21 melhores ficcionistas brasileiros. Colocou a mim e o Walther Moreira Santos, também aqui de Pernambuco. Quando o Nelson me convidou, foi baseado no livro Matriuska, sobre o qual ele tinha escrito uma resenha para o Estadão. Ele me convidou e eu fiquei calado, porque queria fazer um experimento dentro do experimento do

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Nelson. Ou seja, eu escrevo há 30 anos. Por qual razão eu sou um autor novo? Você é novo a partir de uma nova geografia? É a geografia que define quando você é novo? É o grande centro que define quando você é novo? Eu quis brincar um pouco com esse conceito polêmico, do que é o novo, dentro do velho. Se alguém que escreve há 30 anos (lógico que eu não sou um autor que publique muito, porque eu passei uns 15 anos sem publicar). O que é que legitima a sua participação numa geração tal e não em outra? Você pega, por exemplo, a literatura contemporânea argentina, que eu também leio bastante, e ela é feita especialmente de autores mais velhos. Aqui, há uma espécie de inversão, há uma espécie de perseguição terrível à idade do escritor, ao limite dos 30 anos. Isso deve servir para os cartórios e notários, mas não para literatura. Eu disse notários, hein? Com o “N” [risos]. ***

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SAMARONE L I M A A ilha, o visitante e um relato da decadência

O escritor, poeta e jornalista Samarone Lima, autor de livros como Tempo de vidro, A praça azul e, mais recentemente, O aquário desenterrado, nasceu no Crato-CE, em 1969, e veio para o Recife em 1987. Em 2009, após uma viagem a Cuba, Samarone publicou o livro Viagem ao crepúsculo, em que narra sua experiência na ilha de Fidel Castro. Segundo o autor, surpreendentemente, “os cubanos não falam sobre a revolução, não é um tema. Não falam de Fidel Castro, e ninguém está preocupado com Che Guevara”. O livro foi um dos finalistas do Prêmio Jabuti na categoria Reportagem, e foi sobre ele que conversamos no Café Colombo, em setembro de 2009.

Café Colombo – Vou começar lendo um trecho do seu livro que diz: “Logo que cheguei a Havana, a Revolução era linda no papel, nos livros, nos artigos que lia no Brasil, especialmente nos dos intelectuais de esquerda. Na vida real, era bem diferente”. Você realmente acreditava na propaganda esquerdista sobre Cuba? Samarone Lima – Eu tinha uma grande pulga atrás da orelha... Tinha muitas dúvidas sobre esses índices sociais tão maravilhosos, tão bonitos e tão perfeitos. E me intrigava essa história da manutenção das lideranças, do Fidel e do núcleo revolucionário, durante tanto tempo. Acho que 50 anos é uma vida inteira. Havia muitos artigos de Frei Betto, de alguns intelectuais de esquerda, que exaltavam firmemente, como se uma coisa compensasse a outra. Mas eu fui aberto a conhecer. Se o que tivesse encontrado lá tivesse confirmado essas informações, números de bem-estar mediano, certamente eu teria retratado no livro. No livro você diz que chegou lá disposto a ouvir. É. Na verdade, eu não viajei a Cuba com o objetivo de escrever um livro sobre o sistema cubano ou sobre a vida dos cubanos. Eu fui para conhecer e achava que seria interessante conhecer antes da morte de Fidel, porque ele era um fim de um ciclo. É um crepúsculo… Sim, na verdade o nome só surgiu depois, quando eu voltei, e escrevi

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a primeira versão. Flavia Suassuna leu e disse: “isso é uma viagem ao crepúsculo”. Quando eu cheguei, logo nos primeiros dias, eu não sabia que havia uma necessidade compulsiva dos cubanos de falarem sobre a vida. Se você se aproxima deles e faz uma amizade mínima, eles imediatamente querem contar como vivem, quais as dificuldades, o sofrimento. Acho que é fruto de uma impossibilidade de falar publicamente. É um sistema fechado, não é? É. O que aconteceu foi que eu comecei a escrever, à noite, as coisas que tinha escutado durante o dia. Tenho essa mania de bloquinhos, sempre anoto coisas. Quando eu enchi um caderno em poucos dias, percebi que havia alguma coisa acontecendo. Eu também não fazia perguntas. Eles podiam falar o maior absurdo, uma coisa terrível do sistema de saúde, e eu ficava meio calado. E então eles, todos os cubanos que conheci, faziam imediatamente a pergunta: mas você sabe por que isso? E eles mesmos respondiam. Então foi muito interessante porque eu não precisei usar a ferramenta principal do jornalismo, que é a pergunta. Você estava se sentindo já patrulhado, lá? “Não vou perguntar nada, vou só escutar”? Não. Acho que foi um jeito de fazer o livro. Eu não queria realmente ficar indo fazer entrevista. Eu não agendei, não marquei nada. As coisas foram chegando, bem naturalmente. Como eles queriam muito falar, e eu estava lá para escutar, as coisas fluíram. Se eu tivesse chegado lá como jornalista, identificado como um jornalista brasileiro escrevendo um livro sobre Cuba, acho que não teria escutado nem 10% do que escutei. Você relata que chegava perto das paradas de ônibus, ouvindo as conversas, observando… Da hora em que eu acordava até a hora em que ia dormir, tudo era informação. Eu comprava uma edição do Granma, que era o jornal oficial, e ali estava toda uma carga ideológica de informação. Durante o mês em que lá fiquei, comprei todas as edições do Granma possíveis.

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Não tem, no jornal inteiro, uma só notícia ruim. Não li no jornal nenhuma notícia de assassinato, roubo, coisas da vida. O mesmo com a televisão cubana: passam as mesmas notícias de manhã, de tarde, e à noite. Não tem notícia ruim. Eu comprava o jornal para ler as notícias. São sempre notícias boas, o regime está sempre indo bem, inovando em alguma coisa. Mas como eu estava vivendo nas casas dos cubanos, que passam imensas dificuldades, o que o jornal dizia era uma coisa, mas o que eu via no cotidiano era outra realidade. Os cubanos acreditam nos jornais? Uma das coisas que mais me chamou atenção foi o seguinte: os cubanos não falam sobre a Revolução, não é um tema. Não falam de Fidel Castro, e ninguém está preocupado com Che Guevara. É alheio? É uma coisa que é do Estado cubano. O Estado cubano faz propaganda massiva da Revolução. Tem outdoors em todo canto, celebrando a Revolução. Mas as pessoas estão preocupadas em conseguir alimento, uma coisa melhor, deixar a vida menos sofrida. Em um mês que passei lá – e conheci muita gente –, espontaneamente apenas três pessoas falaram bem do regime e exaltaram Fidel Castro. Eu acho que isso revela muita coisa. Também porque muitos outros, nas entrelinhas, sugeriram que alguma coisa vai mudar quando ele morrer. Mas até o “ele”, eles não citam o nome. Essa defesa de Fidel ficou a cargo dos mais velhos ou dos mais jovens? Um foi um senhor que encontrei na parada de ônibus. Ele andava até com uma pastinha onde havia um discurso em homenagem ao companheiro Fidel. E um casal que conheci, pais de duas amigas. Percebi, pela convivência – após ter ido umas três vezes na casa deles –, que o senhor, o pai das meninas, tinha sido militar. Ele pertenceu ao núcleo da Revolução, e a esposa era ligada ao Estado de alguma forma na área de saúde, mas não identifiquei exatamente. Enfim, foi uma grande surpresa,

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porque nas conversas ninguém fala de Fidel: se adoeceu, onde está... A história é outra, e acho que isso foi meio surpreendente para mim. Quais foram os momentos mais difíceis que você vivenciou? Uma coisa que foi muito difícil foi andar sozinho pelas ruas de Havana, porque sempre viajei nesse sistema de mochileiro, com uma mochila pequena nas costas e água mineral, andando e conhecendo os lugares. E eu era identificado como turista, porque os cubanos não usam barba, nem cabelo grande. Aquela ideia dos revolucionários barbudos é uma coisa que está só no imaginário. Teve até uma exposição lá, enquanto eu estava, chamada “Os Barbudos”. Mas os cubanos não usam barba, é muito difícil você encontrar uma pessoa barbuda ou cabeluda. Então eu, alto, cabeludo, de barba e bigode, era identificado imediatamente como turista. O turista é visto como alguém que pode dar lucro. O turista tem dólar. Isso foi um inferno e me deixou muito triste, porque você, depois de 50 anos de Revolução, espera encontrar pessoas para conversar sobre literatura, sobre música... A história da mentalidade mesmo, da Revolução. E eu fui importunado diariamente, enquanto ia andando. É o golpe das horas, você descreve. Exato. Alguém perguntava as horas, você dizia. E foi muito ruim, porque eu andava nos cantos e vinham oferecer rum, charutos, chicas etc. Havia horas em que eu queria sentar num canto, ler ou escrever um pouco, e sempre, em cinco minutos, chegava uma figura para puxar assunto. Eu acho que isso revela um problema do país. O turismo virou a grande moeda, a grande fonte de riqueza. É um turismo em massa, com carradas de turistas chegando todos os dias. É o dinheiro do turista que se busca. É muito diferente ficar hospedado na casa de cubanos, convivendo com eles e conhecendo a realidade, do que ficar no hotel. São dois países. O setor hoteleiro é muito organizado, os hotéis são impecáveis, as pessoas que atendem têm outra cara, são pessoas geralmente mais brancas. Uma coisa que me impressionou também é que os cubanos não podem entrar nos hotéis.

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É proibido? É proibido. Esse circuito de hotel, ônibus, foto, registro, ônibus, próximo ponto turístico, tira foto, registra… Ele gera uma renda para ilha. É, essa é a fonte de renda. Como foi sua experiência em relação às duas moedas cubanas? Antes de viajar eu não li nada, não fiz pesquisas na internet. Eu não queria chegar lá sabendo das coisas. Assim que cheguei lá, descobri que havia duas moedas. O peso conversível, que é fortíssimo, vale 24 vezes o peso cubano, que é a moeda dos cubanos (os salários são em pesos cubanos). Se você não entende essa regra, é complicado, porque você pode usar o peso conversível para pagar algo em peso cubano e pagar 24 vezes mais. No primeiro dia, paguei uma cacetada, porque fiz uma compra que valia 8 pesos cubanos e paguei 8 pesos conversíveis num livro. Os cubanos que me receberam na casa deles bolaram de rir, porque eles quiseram me explicar e eu não prestei atenção. Se você viaja para Cuba com muito dólar no bolso e um bom pacote turístico, é a coisa mais linda do mundo. É tudo maravilhoso, são hotéis de luxo, restaurantes maravilhosos. Como é em quase todo lugar se você viajar com dinheiro e for conhecer só as coisas boas… Exatamente, mas lá você vê um país, só que tem outro lá embaixo. Como você explica a permanência do mito romântico em relação à vida em Cuba? Acho que tem um fato importante do ponto de vista geográfico; trata-se de uma ilha. E virou uma ilha no sentido mais amplo e simbólico. Você vê que todas essas manifestações no Irã [referência à Primavera Árabe] passaram pela internet, pelo twitter, milhares de pessoas se comunicaram por esses novos meios. Mas na ilha os cubanos não têm acesso à internet. É claro que uma minoria tem. Eu usei internet clan-

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destina lá. Pelo relato dos cubanos, o período em que a União Soviética passou a não dar mais ajuda ao regime foi completamente devastador. Acho que ainda vão escrever sobre esse período como uma das coisas mais cruéis, de muita fome, de faltar tudo. E o regime segurou isso, com uma repressão grande, com a prisão de muita gente. É uma combinação de fatores. Não existem pontes com o mundo e o regime se fechou. Eu realmente não sei o que vai acontecer nos próximos anos. Como é ver tanta gente dita inteligente defender um regime desses? Bom, eu estou tendo um retorno interessante de pessoas de esquerda que já leram e me mandaram emails belíssimos, dizendo que se emocionaram; gente que chorou, dizendo que há outras formas de se pensar revoluções, e outros caminhos. Eu estou muito contente com esse retorno inicial de pessoas que eu pensava que iam abrir uma briga ideológica. No livro, tento ser o mais honesto possível, relatando o que eu vi. Quer dizer, pode ser que outro jornalista vá e encontre outra realidade, outro cotidiano, mas o que tem, depois de 50 anos, não é nada feliz. Fica até difícil dizer que é um livro sobre Cuba, porque parece que os cubanos são uma coisa e outra é Cuba. É... Um grande amigo meu, que é franciscano, pediu para que eu comprasse uma boina daquelas com a estrelinha para ele. Vocês acreditam que, na reta final, eu cheguei a entrar em duas ou três lojas que vendem Che Guevara – que é um produto comercial –, olhei, perguntei o preço – eram cinco pesos convertidos –, mas não consegui comprar, porque era como se eu tivesse trazendo uma informação que não era compatível. Era apenas um produto comercial, entende? E quando eu voltei assim, acho que ele percebeu e não me cobrou essa boina. Ele comprou outra aqui no centro da cidade. E bem mais barata. ***

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M I R Ó D A MURIBECA Um cronista criador de imagens poéticas

Uma das figuras mais importantes da literatura contemporânea em nosso estado, Miró da Muribeca fala, nesta entrevista, sobre sua vida e sua poesia, com destaque para o livro Miró até agora, que foi publicado pela Interpoética. Como diz o próprio título, o livro reúne toda a obra já publicada por Miró, trazendo os poemas das onze claquetes já lançadas pelo autor. Classificado muitas vezes como “poeta marginal” – ainda que o título seja polêmico entre os estudiosos e os próprios autores –, Miró se destaca pelo caráter performático de sua arte: “Eu acho que minha poesia falada é melhor do que o livro, porque eu vou na verve”. Nossa entrevista foi realizada em dezembro de 2013.

Café Colombo – Como surgiu a ideia dessa obra que reúne toda sua produção até aqui? Miró – Na verdade, quem planejou o livro foi o Sennor Ramos com a Cida Pedrosa. Eles fazem um trabalho muito importante hoje na literatura da vanguarda, dessa coisa que aflora. O que me deixou feliz é que o livro veio comigo vivo ainda. Pernambuco tem a mania de só homenagear os poetas mortos e, no meu caso, eles fizeram meu livro e eu tenho 53 anos, vindo da periferia, de Casa Amarela, Muribeca, Ibura. Esse é um livro importante. Eu tenho que agradecer, porque alguns poetas não conseguiram isso, como Erickson Luna, Chico Espinhara. Eu me sinto feliz agora de poder ir pra São Paulo e poder vender 200 livros de uma vez só, dentro de um código de oralidade. Me sinto feliz com o Miró de agora, porque eu pensava que não ia ter isso até eu existir ainda. Você chegou a participar da seleção dos poemas ou o livro foi construído exatamente do jeito que eram as claquetes, do jeito que você já tinha lançado? Não, eu e Sennor fizemos um trabalho muito interessante. Alguns poemas eu tirei, porque eram datados e não tinham mais graça. Sennor foi uma pessoa muito sincera comigo, de olhar o livro devagarzinho e tal. Mas eu acho que o mais importante foi ter feito o livro. Minha mãe dizia: “faça alguma coisa, meu filho, e se der errado você tem que fazer

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mesmo”. E esse livro agora em São Paulo foi o maior sucesso; aqui também estou vendendo, tomando minha cerveja com ele, comendo com ele e hoje eu vivo da minha poesia. O livro ficou lindo, o governo bancou. Wellington de Melo foi uma figura muito interessante nesse processo; na Fundarpe, também Fernando Duarte, que é uma das pessoas mais interessantes dessa cidade, e que me disse: “Miró até agora vai ser o nome desse livro”. Eu me sinto honrado por ser um poeta da cidade e ter um livro agora, vivo. Me sinto honrado e não tenho nada a reclamar, só algumas coisas de edição, mas o importante é minha poesia estar em São Paulo, Porto Alegre, Minas Gerais; isso pra mim é muito bom. Você tem percebido mudanças na maneira como as pessoas encaram você e sua obra a partir desse livro? Porque antes você lançava seus poemas através de claquetinhos, de caderninhos. Você acha que o livro dá uma importância maior? Sim. O reconhecimento é maior; agora as pessoas olham pra mim e dizem: “finalmente, Miró, agora você é um poeta”. Gilberto Gil uma vez, quando a gente se apresentou junto lá em Bezerros, disse: “você não tem nenhum livro que fique em pé?”. Agora eu tenho um livro que fica em pé. Aí Gilberto Gil disse: “Ah, seus livros são brochas?”. Aí agora eu tenho um livro que fica em pé; queria dar a Gilberto Gil esse livro, porque agora tenho um livro que fica em pé. Toda minha obra. Pra mim, nunca o Diario de Pernambuco tinha dado página inteira. E eles me deram uma página inteira lá, porque perceberam. O cara lê e me vê importante. Eu acho que estou melhor, sim, em relação à imprensa. Alguns não gostam de mim, mas é normal. Eu acho que o Diario, o Jornal do Commercio, a Folha me deu metade da página, porque é um livro, pelo governo… Vou lhe dizer uma coisa, cara; uma mulher me disse: “finalmente você lançou um livro”, ela me disse na minha cara: “finalmente, senhor, o senhor lançou um livro”. Isso pra mim já é fundamental, como um poeta da periferia, de falar das coisas do mundo, de escrever sobre isso. Eu escrevo o que o arquiteto entende. Agora, o que é preciso na humanidade é entender essa coisa de soslaio, de saber que “olha, eu não vou ver isso, mas o poeta vê”.

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Miró, como você vê seu momento hoje na literatura? Você se acha reconhecido? Isso eu pergunto porque no dia do lançamento, no Espaço Pasárgada, eu conversei com Cida, e Cida ficou falando que era impressionante o seu carisma, que você reuniu um pessoal que geralmente nunca está em lançamentos de livros, em eventos de literatura, que não frequenta essa tipo de universo, mas que estava ali para prestigiar, para vê-lo e pegar um autógrafo. De certa forma o livro está contribuindo para esse reconhecimento? Eu acho que o livro está. Mas acho que melhor do que o livro é quando eu falo minha poesia. As pessoas que gostam, são fãs, gostam de quando eu falo. Eu acho que eu tenho – Drummond falava isso – o diabo, que me deu a poesia. Eu acho que quando eu falo é melhor do que meu livro. Quando eu entro em cena, eu arrebento. Eu levo para o coração de quem tá ouvindo uma coisa maior. Acontece uma coisa na minha poesia, um cara me falou e nunca vou esquecer isso: “eu nunca comprei um livro, mas hoje eu vou comprar só porque você falou”. Eu acho que minha poesia falada é melhor do que o livro, porque eu vou na verve. Eu digo às pessoas: “Dona Eleonora, que chupa rola e que a polícia mete o pau, na Bomba do Hemetério mataram mais um”. O cara se sente perto do que eu estou falando, ele pensa: “eita, porra, o cara falou isso!”. “Mataram mais um nas bandas do Coque”, e o cara conhece o Coque. Eu sou um cronista, eu não sou poeta. Eu sou um cronista com imagens poéticas. Minha poesia chega junto do cara do Coque, da Bomba do Hemetério, da Linha do Tiro, e o cara vai absorvendo. Porque eu estou falando a linguagem dele, eu não sou intelectual, não fico fazendo firula. Quando eu falo, toco o coração do cara, quando eu falo: “Elza caga na rua, no largo de Santa Cecília”, “não limpa a pinta, nem sequer morreu ainda”. Quando eu digo: “merece um tiro quem inventou a bala!”, cada um vai entender, seja médico, analista, antropólogo, ou a puta que pariu; o cara vai ter que entender. Minha crônica é isso. Minha mãe dizia: “você não é poeta”, porque eu não escrevia muitas coisas sobre Deus e tal. Então eu disse: “tá bom, minha mãe, tá bom, eu vou fazer um poema sobre Deus”. Depois eu liguei pra ela, de Fortaleza, e disse: “mãe, fiz um poema sobre Deus: Deus é grande e o diabo

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tem um metro e oitenta”; ela desligou o telefone. Eu não sou anarquista, eu sou alegrista. Eu gosto de desmontar o sujeito que está do meu lado. O sujeito que, com poesia, se dispense da realidade. E minha mãe não gostava da minha poesia. Ela dizia: “você não tem dinheiro”, e hoje eu tenho dinheiro. Você já comentou que se inspirou na música de Gilberto Gil e de Roberto Carlos, e nos poemas de Drummond... Mas como surgiu a ideia de transformar poesia em performance? Você teve algum modelo? Não, eu comecei a recitar meus poemas quando Manuca, um cara de Juazeiro da Bahia, me deu coragem para recitar. Ele me levou a Juazeiro para lançar meu primeiro livro lá, em 1985. Manuca era um performático. Na verdade, eu só falava poesia sem ninguém, e Manuca foi a primeira pessoa que eu vi falando poesia na rua, e costumo dizer que peguei carona com ele com minha própria gasolina. Manuca era um poeta que me levou pra rua; tinha uma carroça e colocou os livros dentro: fomos pra Juazeiro. Eu pirei com Manuca e quis falar poema como ele. Quando eu vi Manuca abrindo os braços, falando, um cara magro, e eu um negrão forte – na época eu era forte e tinha um cabelo como Djavan. Ele me levou em todas as rádios de Juazeiro e Petrolina, lançou meu livro. E o Manuca fazia o chamado “Chá das cinco”, com todo mundo tomando chá de cogumelo. Era uma loucura. Maconha. Não era uma desgraça, era uma coisa de bem. Aí eu disse: “eu não sei falar poesia na rua”, e no dia lá da inauguração do meu livro, dia 27 de março, que era dia do teatro, ele me chamou lá: “Agora, pessoal, com vocês, um negão, do Recife, poeta pernambucano”. E eu subi lá, na época tinha um cego que era cotó e mijava na cara das pessoas, e ficava uma mancha, aí eu fiz uma frase, e tinha dito pra ele que não falava poesia. Então eu fiz assim: “meu amor, meu amor, você não vai acreditar, hoje a gente não pode mais namorar; você não vai acreditar, onde o cotó acabou de mijar”. E ele falou assim: “olha, seu filho da puta, você não falou que não falava poesia?”. E a praça foi ao delírio. Então Petrolina, na verdade, foi o primeiro lugar, junto com Juazeiro, que me deu pontes pra vida; não foi o Recife. Eu fui embora pra São Paulo, enchi o

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motor de ar. Eu não sabia falar poesia, mas, depois que vi o Manuca falando, eu pirei. Ele disse: “Miró, vamos embora pra São Paulo”. Meu sonho não era ir pra São Paulo; meu sonho era ir pro Rio de Janeiro, pro Flamengo, porque eu jogava bola pra caralho. Eu nunca pensei em ir pra São Paulo, aí cheguei lá e pirei, em Campo Limpo, Ana Rosa. Pirei mesmo, da coisa verossímil, da eletricidade da cidade. Como diz Raul, “inocente, puro e besta”, pirei. Me apaixonei por São Paulo e até hoje gosto. São Paulo na verdade tem a cabeça na coisa urbana, na miséria, do homem perdido nas ruas, e, como cronista, eu pirei com São Paulo. Você se considera um poeta biográfico? Não sei. Agora, sim, porque estou com mais de meio século de vida. Me considero, hoje, um cronista que tenho minha história. Posso morrer ontem, como no prefácio de Wilson Freire. Na verdade, o nome do livro seria Eu pensei que ia morrer ontem. E aí Fernando Duarte mudou pra Miró até agora. Eu me sinto agora reconhecido no Recife, no Brasil; você agora me chama pra entrevista. Me sinto feliz. Sinto que quem não aguentava vai ter que aguentar. Sobre minhas crônicas, muita gente reagia dizendo que não aguentava isso. Vão ter que aguentar. Drummond dizia isso. “Deus, por que me deixaste sozinho sem saber que era Deus?” A cada hora você pode errar. A minha crônica agora me dá uma felicidade. “Aquele ali é o Miró”, mesmo quem não gosta de mim. “Miró, que escreveu aquela merda, aquele poema sobre a Eleonora, sobre a polícia.” Acho que hoje tenho um trabalho de cronista na cabeça das pessoas, tenho fãs, tenho amigos. Inclusive a coisa mais importante da minha vida é que hoje eu tenho amigos com a minha poesia. Eu tenho hoje pessoas que me amam pela minha poesia e nem me conhecem; quando me veem me dão um abraço. Conseguir isso no Brasil, um país em que ninguém lê, pra mim é uma alegria imensa. E poder pegar um táxi hoje e poder voltar pra casa e comer com meu dinheiro, com minha poesia, isso é que é importante pra mim agora. Com meu dinheiro, com minha poesia, com meu dinheiro. Mãe, num país em que ninguém lê. Isso pra mim é importante demais!

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Já são quase trinta anos de poesia e hoje você mantém uma produção regular. Variavam de um a três anos os intervalos entre uma claquete e outra, mas teve um intervalo de 10 anos entre Flagrante deleito e Quebra à esquerda, quebra à Direita e vai em frente. O que aconteceu nesse período? Eu me apaixonei por uma mulher; depois ela me largou. A Edileuza. Eu me separei, fiquei mal, fui pra Fortaleza, escrevi dois livros sobre coisas de Fortaleza mesmo, como os trabalhadores de lá. Mas havia uma boemia intensa, saudades de Edileuza. Ela morava em Muribeca e eu fiquei com uma pessoa que não amava, mas ela me amava. Eu escrevia sempre, porque sou um cronista, sobre coisas da rua. Mas não tinha muita coisa; foi o período mais desinteressante da minha literatura e eu não gosto tanto. E você decidiu não publicar? É… Depois eu resolvi voltar pra casa, pra minha ex-mulher, que é Edileuza. Mas não deu certo, eu fui embora pra São Paulo e descambei pra não escrever nada; ficava só olhando o ônibus, mas não tinha nada de bom, nada que eu gostasse. O Flagrante deleito é um livro porque tinha que fazer, mas não é um livro que eu gosto. Tem alguns poemas aqui e ali que acho interessantes, pelas imagens, mas não consegui escrever. Estava com saudades de Edileuza e tinha deixado Márcia, que era de Fortaleza. Eu errei com ela, então nessa época não escrevi muito e fui pra São Paulo, mas em São Paulo eu consegui escrever de novo. São Paulo foi a cidade que mais me entusiasmou a escrever a solidão do ser humano. Mas os livros em Fortaleza não foram tão bons, eu reconheço. Nesse processo de organização do livro e seleção dos poemas, você percebeu diferenças na maneira como você constrói sua poesia antes e agora? Sinto. Quem descobriu o azul anil era mais lirista: Drummond, Maurício Silva. Depois, com a coisa da polícia no dia 26 de agosto de 1984, a polícia me arrastou por aqui… Eu fiquei mais verossímil, minha poesia virou mais denunciativa. “São 24 horas em 24 ônibus levando 24

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pessoas, fazendo coisas solitárias. 5 soldados espancando 5 pivetes, filhos sem pai e órfãos de pão. 5 horas e 1 minuto, vivendo na ponte, no meio da cidade. 6 horas, o Recife reza e eu peço pra Ave Maria”. Antes falava do meu coração, de Drummond. Embora Drummond seja verossímil, tem uns poemas pesados. Depois que a polícia me prendeu eu fiquei mais escroto. Disse: “agora vou dizer na cara deles”. Eu acho que a polícia, o desgoverno, me fez ser outro poeta; quando bateram na minha cara, deram um chute nos meus rins, eu virei outro poeta. Nesse momento eu perdi o lirismo. Eu digo lá que “as calçadas de São Paulo não suportam o peso de tantos bêbados”. Tá aí o meu lado verossímil, de resistência humana, de um homem cair na calçada e não se levantar lá em Campo Limpo. A polícia, ao me dar porrada na cara, me fez ver o mundo com outro olhar, com outra missão. Agora eu vou vomitar. Tanto que minha mãe disse: “Aconteceu alguma coisa?”. Eu disse: “não, mãe”, mas aconteceu, sim. Depois que a polícia deu em mim, minha poesia ficou mais clara, mais esperta. Agora é comigo; vou dizer pra eles que não preciso ir lá na polícia pra denunciar, vou falar com as palavras. É “ilusão de ética”, “flagrante deleito”... Começou a virar uma brincadeira com a violência. Eu queria dizer: “feliz flagrante, quem fala muito não atira”, “merece um tiro quem inventou a bala”. Eu comecei a usar a não violência, a minha poesia começou a usar o contrário do desamor. Como você equilibra o humor com essa vertente mais voltada para o social, para a denúncia? Eu não sei ainda como é. Meu pai era dançarino. Meu pai comeu minha mãe e eu nasci na escola do Carnaval, na Madeira do Rosarinho. Eu acho que talvez até eu tenha o gene do meu pai, por ser dançarino. Aqui e ali eu vou tirar uma onda, eu me considero um alegrista. Acho que meu pai era um escroto, um desses canalhas da Madeira do Rosarinho, que transava com minha mãe e minha mãe gostou dele. Eu acho que eu virei um cara desses, de tirar onda com tudo que tava acontecendo ao meu redor. Uma vez minha ex-mulher, Edileuza, estava olhando pra um cara lindo, um negrão bonito, descendo, e eu de ressaca. Ele descendo e ela olhando pra ele na escada. Ela olhava pra ele

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com tesão: “oh, se eu pego esse negão!”. Era o olhar dela. E eu olhando pra ela: “se fosse Brooke Shields, se fosse Maitê Proença, eu também não olharia?”. Fiquei pensando: “deixa olhar, não briga, não briga, não vai pro Cotel por causa disso”, aí fiquei olhando pra ela, olhando. Ela perguntou: “que foi, meu amor?”. E eu disse: “nada”. Então ela me flagrou, eu olhando pra ela, ela olhando pro negão lindo. Aí eu escrevi esse: “H2love, H2love, não tinha mais como esconder, não tinha mais como esconder. Era o cara da água a passar, e ela ficar toda molhada. Delícia”. Minha poesia, minha crônica. Eu fiz um poema, não briguei, não fui pro Cotel. Vou me despedir com um poema bem pequenininho: “Eu ando tão esquecido de mim, eu ando tão esquecido de mim. Que ontem a noite, ao chegar em casa, coloquei a roupa na cama e fui dormir dentro do guarda-roupa”. ***

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LUIZ ARRAIS

EVERARDO N O R Õ E S Joaquim Cardozo, o “homemuniverso”

O poeta e escritor Everardo Norões – recentemente agraciado por seu livro Entre moscas com o prêmio Portugal Telecom 2014, na categoria Contos/Crônicas – foi o responsável pela organização das Obras Completas de Joaquim Cardozo, publicadas pela Editora Nova Aguilar em 2010. Nesta entrevista, realizada pouco antes do lançamento, Norões defende que “o rigor característico da matemática está presente em toda a obra de Joaquim Cardozo”, e apresenta a vida e a obra do poeta e engenheiro pernambucano. Para ele, Cardozo é um dos últimos grandes humanistas da cultura brasileira, além de ser uma figura central em nosso modernismo.

Café Colombo – Como você classificaria a obra poética de Joaquim Cardozo dentro do contexto modernista brasileiro? Everardo Norões – Na apresentação que fiz da obra de Joaquim Cardozo, publicada pela editora Nova Aguilar, em coedição com a editora Massangana, mencionei que já no seu primeiro poema, “As Alvarengas”, publicado em 1924, na Revista do Norte, ele já inovara em todos os sentidos, tanto do ponto de vista do tratamento da temática regional como na utilização de novos recursos formais. A análise desse poema foi feita pelo crítico Fernando Py, que identificou como inovações a utilização da adjetivação dos substantivos e a inversão de categorias gramaticais. De fato, toda a poesia de Joaquim Cardozo deve ser observada como resultante de um contínuo processo de renovação. Ele era um homem aberto não apenas às experiências poéticas, mas a todas as conquistas da inteligência humana. É por isso que o chamei de homem-universo. Joaquim Cardozo pode ser considerado um de nossos últimos grandes humanistas. Em que nível se deu o contato dele com os expoentes do modernismo literário brasileiro? Em 1923, Joaquim Cardozo esteve no Rio de Janeiro durante cerca de três meses, onde assistiu à primeira exposição do pintor Di Cavalcanti. Não há registro de que tenha tido outros contatos. Depois, regressou ao Recife, reencontrou seu amigo Benedito Monteiro, estabe-

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leceu contato com José Maria de Albuquerque e Melo (da importante Revista do Norte) e com o poeta Ascenso Ferreira, tornou-se assíduo frequentador da Esquina Lafayette, local predileto da boêmia literária. Permaneceu no Recife até 1939, quando foi expulso durante o governo de Agamenon Magalhães. Mas Pernambuco tinha, de certa forma, seu próprio movimento “modernista”, do qual o próprio Joaquim Cardozo fazia parte, juntamente com intelectuais como Gilberto Freyre, José Maria de Albuquerque Melo, Vicente do Rego Monteiro, Cícero Dias, Ascenso Ferreira e outros. Além disso, Joaquim Cardozo era poliglota (consta que conhecia cerca de 15 línguas) e tinha acesso a revistas e livros estrangeiros, o que lhe permitia acompanhar de perto tudo o que acontecia no mundo em matéria de vanguarda. Em sua opinião, quais seriam os motivos para que a obra de J. Cardozo não esteja nos cânones oficiais brasileiros? Joaquim Cardozo nunca cuidou da divulgação de sua obra poética, nem de seus trabalhos de engenheiro calculista, que não foram poucos. Quase todos os seus livros foram editados por iniciativa de terceiros. Também na arquitetura brasileira, apesar de ser bem considerado entre seus pares, o nome dele é relativamente pouco lembrado. Ora, a arquitetura moderna brasileira certamente teria dado um passo bem menor, se não tivesse contado com a genialidade de Joaquim Cardozo. No entanto, quem visita o conjunto da Pampulha, em Belo Horizonte, observa que seu nome é pouco citado nos créditos. Para pessoas como ele, o reconhecimento nunca é imediato. Além disso, obras de vanguarda, como as obras de autoria de Joaquim Cardozo, na poesia como na matemática, às vezes precisam de tempo para serem assimiladas pelas novas gerações. Como Cardozo concebia a relação entre poesia e matemática? Era dessa relação que derivava seu rigor poético? O rigor característico da matemática está presente em toda a obra de Joaquim Cardozo. A relação entre a física e a poesia é um dos aspectos de seu longo poema “Trivium”. A ligação entre sua poesia e a mate-

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mática provavelmente ainda será objeto de pesquisas mais profundas. Para que isso aconteça, seria oportuno reunir a biblioteca de Joaquim Cardozo, que ele, em vida, doou à Universidade Federal de Pernambuco, e cujos livros estão hoje dispersos entre as bibliotecas dos vários departamentos da Universidade. É importante essa reunião para a compreensão do conhecimento de Joaquim Cardozo, porque em sua obra é impossível dissociar matemática, poesia, filosofia, teatro e linguística. Joaquim Cardozo publicou um único conto, “Brassávola”. Qual o valor dessa pequena obra e de que forma ela se relaciona com o resto da sua produção artística? “Brassávola” foi seu único conto publicado. Mas foi possível reunir 12 contos escritos por Joaquim Cardozo. Existe uma relação do conto “Brassávola”, e dos outros contos dele, com a sua poesia. É o que considero a conjugação do onírico e do real numa equação poética perfeita, que é uma das características fundamentais de sua obra. Por exemplo, o “trem”, personagem central de seu “longo e lento poema sobre o destino e situação espiritual da espécie humana”, como escreveu Maria da Paz Ribeiro Dantas sobre “Trivium”, é o mesmo trem da narrativa “Na estação”. A leitura de suas narrativas ajuda a compreender o sentido de sua poesia. Em Joaquim Cardozo tudo se completa. A relação entre Cardozo e Oscar Niemeyer foi descrita pelo jurista Evandro Lins e Silva como uma simbiose perfeita, “um encontro entre o Rio Negro e o Solimões”. Quais foram os frutos desse encontro? Os maiores frutos do encontro entre Niemeyer e Joaquim Cardozo são o conjunto da Pampulha, em Belo Horizonte, e Brasília. Joaquim Cardozo considerava a Pampulha o segundo grande movimento da arquitetura moderna brasileira. De fato, foi a partir do êxito do projeto da Pampulha que a equipe de Niemeyer foi solicitada, pelo então presidente Juscelino, a conceber Brasília. No entanto, antes de conhecer Niemeyer, Joaquim Cardozo já havia participado do primeiro movimento da arquitetura moderna no Brasil, na década de 30, ocorrido em Pernambuco. Esse movimento tinha à frente o arquiteto Luís Nunes,

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e dele também fazia parte Burle-Marx, que projetou quase todos os grandes jardins do Recife. Joaquim Cardozo esteve presente em todas as etapas importantes da arquitetura moderna do Brasil. Qual a participação de Joaquim Cardozo no projeto de Brasília? Entre os projetos mais complexos que calculou podem ser citados os edifícios do Congresso e da Catedral de Brasília. O ensaio do professor e arquiteto pernambucano Geraldo Santana, intitulado Presença de Joaquim Cardozo na arquitetura brasileira, inserido na fortuna crítica da obra de Joaquim Cardozo, que será brevemente lançada, é uma brilhante exposição sobre a importância de sua participação na construção de Brasília e em outros projetos importantes. Como Cardozo lidou com o episódio do desabamento no Pavilhão da Gameleira (do qual foi calculista), que matou muitos operários, em fevereiro de 1971, em Minas Gerais? Sobre o episódio da Gameleira, o depoimento mais comovente sobre Joaquim Cardozo é o de Evandro Lins e Silva, que foi seu advogado no processo e era um dos juristas mais brilhantes do Brasil. Ele escreveu que o destino o unira a Joaquim Cardozo numa hora de ansiedade, tormentos e aflições. Joaquim Cardozo, segundo ele, era homem sem malícia, frágil, que não estava preparado para enfrentar “a perfídia e a astúcia de adversários sem escrúpulos, nos embates desgastantes de um procedimento legal”. O episódio da Gameleira foi, sem dúvida, o início do fim do grande poeta. Paradoxalmente, concorreu, também, para formar em torno de Joaquim Cardozo e de sua obra uma espécie de corrente que acabou por tornar ainda mais vivo o seu legado de homem-universo: corrente da qual fizeram parte Pelópidas Silveira, Paulo Cardozo, Geraldo Santana, Audálio Alves, Paulo Bruscky, Maria da Paz Ribeiro Dantas, Maria do Carmo Pontes Lyra, José Mário Rodrigues, César Leal, João Denys Araújo Leite e Fernando Py, entre outros. ***

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V A L É R I A TORRES DA COSTA E SILVA Gilberto Freyre e a identidade nacional

A formação da identidade e da cultura brasileira, a trajetória intelectual de Gilberto Freyre e a crítica ao “paulistocentrismo agudo” na historiografia brasileira são alguns dos tópicos comentados por Valéria Torres da Costa e Silva nesta entrevista, realizada em junho de 2008. A pesquisadora acabara de lançar, na ocasião, o livro A modernidade nos trópicos – Gilberto Freyre e os debates em torno do nacional, baseado em sua tese de doutorado. Valéria é uma crítica do discurso multiculturalista, surgido nos Estados Unidos e que, segundo ela, só faz sentido numa sociedade como a norte-americana, etnicamente bipolarizada. Para o Brasil, ela considera que a adoção do multiculturalismo como valor é um retrocesso, uma negação da contribuição intelectual de Gilberto Freyre. Graduada em ciências sociais pela UFPE, Valéria é doutora pela Universidade da Califórnia (Berkeley).

Café Colombo – Qual é a contribuição de Gilberto Freyre para a chamada “identidade nacional”, para a ideia de Brasil que temos hoje? Valéria Torres – Em minha pesquisa, busquei os artigos de recepção de Casa grande & senzala – publicados em 1934, porque o livro saiu no final de 1933 –, e a palavra mais utilizada para defini-lo é “revolução”. Então, é um livro que, realmente, tem grande impacto e que muda os rumos do debate sobre o “nacional”. Não é que Gilberto Freyre tenha tirado todos os argumentos dele da cartola; havia um ambiente criado a partir, sobretudo, do Movimento Modernista, que eu acho que era favorável e que apontava na direção de uma mudança na forma como se pensava o Brasil. Freyre foi fundamental porque ele reabilita, de certa forma, a nossa herança negra e torna possível a eleição do mestiço ou da mestiçagem como um valor nacional. Essa ideia se propagou de tal maneira que hoje é o mito por meio do qual nós, brasileiros, nos vemos. Esse discurso foi incorporado pelas pessoas. Quando Casa Grande & Senzala foi lançado, as teses racialistas ainda eram fortes... Essas teses ainda eram o paradigma geral, e o próprio Gilberto Freyre vai pensar dentro desse modelo durante uma parte da vida. Eram poucos os intelectuais que pensavam o Brasil fora dessa categoria de raça, que estava em vigor – a raça como fator explicativo da

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sociedade brasileira, no sentido “biológico”, da “inferioridade” da raça negra e da raça indígena, e do peso que isso representava na nossa formação nacional; de como isso era um impedimento importante para o desenvolvimento, a modernização e a chamada “civilização do país”. Há um debate hoje no Brasil a respeito do multiculturalismo, principalmente no que diz respeito a políticas públicas, como no caso das cotas raciais. Como fica isso frente à defesa da miscigenação de Freyre? Em termos de uma elite intelectual e política, tem havido um movimento contrário a essa coisa da mestiçagem como um valor nacional, sobretudo a partir década de 1990, quando toda essa crítica ao chamado “mito da democracia racial” acaba se transformando em política pública. Políticas pautadas pelas ideias multiculturalistas em oposição ao discurso da mestiçagem. E você acha que essas políticas e ideias são um retrocesso? Sim. Eu me alinho a intelectuais como Demétrio Magnoli e Antônio Risério, que estão tentando argumentar que esse discurso do multiculturalismo, embora pareça muito interessante e sedutor – porque dá uma impressão de uma coisa mais democrática –, é um discurso que, tal como o da mestiçagem, tem um local de emissão. O argumento desses autores, com os quais eu concordo, é o de que esse discurso foi articulado, sobretudo, a partir dos Estados Unidos, que têm uma realidade muito diferente da nossa: uma cultura híbrida, mestiça, na qual brasileiros de todos os estratos, todas as tonalidades de pele, se reconhecem. Então, se temos uma tradição histórica, uma vivência de valorização de elementos de diferentes origens, por que não procuramos solucionar problemas como o racismo e a desigualdade racial dentro da nossa própria tradição, em lugar de buscar modelos importados, que são muito questionáveis em termos de resultados práticos para resolver ou minimizar questões de desigualdade racial? Você acredita que, no Brasil, existe uma democracia racial? Nós certamente não vivemos numa democracia racial, mas ela poderia ser a nossa utopia, o nosso norte. E a gente tem muito mais

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condição de chegar a uma democracia racial do que sociedades como a norte-americana, ou a da África do Sul. O que Gilberto Freyre nos vai dizer é que fomos formados por uma sociedade escravocrata – um regime que, em princípio, pela sua própria composição, mantém separados os senhores e os escravos, portanto, negros e brancos, já que estamos falando de uma escravidão racial. Então, essas duas metades da sociedade brasileira deveriam, por toda a lógica do sistema escravocrata, ter ficado separadas. No entanto, houve uma série de processos, devido a fatores de várias naturezas – inclusive do pouco contingente de mulheres brancas –, que fizeram com que essas duas metades acabassem estabelecendo relações de muita intimidade. Havia forças atuando em sentidos diferentes, umas no sentido de separar, de manter essas metades separadas, e outras forças atuaram no sentido de aproximá-las. Foram criados espaços de promiscuidade entre a casa-grande e a senzala, e foi nesses espaços que se gerou uma cultura extremamente rica, híbrida, que é a cultura brasileira. A economia separava, mas o desejo unia? Exatamente. Criou-se se daí uma cultura que tem como principal característica uma espécie de tendência ou de abertura para a diferença. Todas as culturas têm algum nível de permeabilidade, sempre. Algumas têm um nível maior de aceitação de influências externas, de elementos estranhos; e outras, menos. Gilberto Freyre argumentou o seguinte: “A cultura brasileira é muito permeável, e o que caracteriza essa cultura é sua plasticidade”. Ou seja, um alto grau de permeabilidade e uma autodisposição para incorporar e equilibrar esses elementos estranhos dentro da sua própria dinâmica. Em Casa grande & senzala, ele vai mostrando como se formou essa cultura híbrida, porque o interessante na obra é justamente o “&” que liga a casa-grande à senzala. É o olhar sobre a intimidade que vai permitir a construção dessa grande interpretação do Brasil. A visão de uma sociedade não europeia, porque nesses espaços de promiscuidade é que a herança africana e a indígena vão conseguir, na verdade, dar uma grande contribuição à formação desse todo nacional.

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Como você compara o modernismo em São Paulo com o modernismo em Pernambuco, levando em conta as personalidades dos líderes Mario de Andrade e Gilberto Freyre? Esse é um caso interessante. Sem dúvida, Mario de Andrade foi um grande líder intelectual. Escrevia a respeito de tudo de importante que era feito no Brasil. Curiosamente, ele não tem uma linha, pelo menos que eu tenha encontrado, falando sobre Gilberto Freyre, embora tivesse, na biblioteca dele, os livros do pernambucano. É muito curioso esse silêncio de Mario de Andrade em relação a Freyre. Eles se viam com muito estranhamento. A historiografia cultural brasileira sofre de um “paulistocentrismo” agudo. Quando falamos em movimento modernista, todo mundo pensa imediatamente em São Paulo; outros movimentos, como o que aconteceu aqui no Nordeste, são chamados de “movimentos regionalistas”. O que chamamos de regionalismo, que aconteceu no Nordeste, e, sobretudo, no Recife, também foi um movimento de renovação de ideias e da forma dos processos artísticos. Acabou sendo chamado de “regionalismo” muito por contraposição ao que a gente convencionou chamar de “modernismo paulista”. Mas, na verdade, esses movimentos são convergentes. O movimento modernista, em linhas gerais, aconteceu como uma espécie de reação ao processo de modernização, como foi também na Europa e nos Estados Unidos. Em São Paulo, a primeira reação a esse processo foi de entusiasmo, de celebração da urbe, da cidade, da velocidade, do cinema etc. Aqui, no Nordeste, a primeira atitude frente a esse processo de mudança foi de uma reação nostálgica; ou seja, em vez de celebrar a urbe, há uma resposta no sentido de uma nostalgia do mundo que vai se perdendo, das tradições, inclusive da própria cidade que vai sendo transformada – e aquilo que vai se perdendo no processo de modernização é objeto de atenção desses artistas nordestinos. Eles têm essa diferença inicial, mas depois esses movimentos vão convergindo, e eu acho que Gilberto Freyre e Mario de Andrade também vão. Até porque São Paulo vai superar essa fase de entusiasmo com a cidade e vai voltar os olhos para o passado, para a tradição. Em Gilberto Freyre, por sua vez, as ideias se desenvolvem muito mais no sentido de superar uma

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visão propriamente local ou regional. Há um imenso esforço, entre os anos 1920 e Casa grande & senzala, para ampliar a envergadura do olhar dele sobre o Brasil, que antes era mais focado nas questões do Recife e do Nordeste. Por que Gilberto Freyre assumiu o rótulo de “regionalista”? É uma pena isso, mas ele aceita o rótulo. Na década de 1920, Freyre vai dizer que esse é um movimento regionalista “ao seu modo modernista”, inclusive porque ele tinha vivido no exterior e bebido diretamente nas fontes das vanguardas europeias e americanas – que não é a leitura que a historiografia cultural nossa faz, segundo a qual teria havido aqui simplesmente uma resposta às provocações de São Paulo. ***

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ANCO MÁRCIO T E N Ó R I O V I E I R A Um best-seller do século XIX ganha nova edição

Publicada pela primeira vez em 1886, A emparedada da Rua Nova, obra do escritor recifense Carneiro Vilela, ganhou sua 5ª edição, desta vez pela Companhia Editora de Pernambuco (Cepe). Para falar sobre o livro, conversamos em outubro de 2013 com o professor da pós-graduação em Letras da Universidade Federal de Pernambuco Anco Márcio Tenório Vieira, que assina o prefácio da nova edição. Segundo o pesquisador, a A emparedada “é o melhor romance-folhetim escrito no Brasil no século XIX. Ele seria um grande romance-folhetim em qualquer lugar do mundo. E se nada disso bastasse, ele ainda tem um painel do cotidiano do Recife, da vida social, da maneira como as pessoas falavam, da vida religiosa, das procissões, das festas, da maneira como as pessoas amavam”.

Café Colombo – Como foi a recepção de A emparedada da Rua Nova na época de sua primeira publicação? Anco Márcio – Eu não sei dizer como foi a recepção da obra na época porque não existem estudos sobre isso. O que eu posso dizer através de indícios é que, quando você lê os jornais do século XIX e do princípio do século XX que traziam os folhetins – muitas vezes você tinha dois ou três folhetins no mesmo jornal –, é possível perceber que alguns não chegam até o final, são interrompidos, provavelmente porque não tiveram nenhum apelo junto ao público leitor. A emparedada chama a atenção porque ficou quase três anos “em cartaz”, semanalmente, saindo durante três anos. Ora, se ela conseguiu, durante três anos, reter a atenção do leitor, ocupando um espaço nobre do jornal, então parece que a repercussão foi muito boa. E me parece que é aí que se cria o imaginário de A emparedada. A primeira edição da obra – de 1886, se não estou enganado – deve ter tido mil exemplares, que era o comum da época. O grande sucesso de A emparedada, quando ela entra no imaginário dos pernambucanos, parece vir com essa edição de 1909, no Jornal Pequeno. É aí que ela entra no imaginário. Então ela entra como folhetim? Como folhetim. O que ocorre nesse período? Carneiro Vilela teve um AVC. Ele vivia daquilo que escrevia, com exceção de um ou outro periodozinho em que foi juiz no Rio Grande do Norte ou trabalhou na

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justiça em Niterói, coisa de um ano ou menos. Carneiro Vilela só vivia daquilo que escrevia. Segundo Mário Melo, ele chegava a escrever três ou quatro coisas ao mesmo tempo, simultaneamente. Eu só vejo no Brasil algo parecido com o nosso Nelson Rodrigues. Nelson fazia isso. Ele escrevia, no mesmo dia, uma novela, a crônica diária, a crônica do futebol, e, ao mesmo tempo, estava escrevendo uma peça de teatro ou um romance. Carneiro Vilela também fazia isso. É muito comum você pegar um jornal em que Carneiro Vilela trabalhava e encontrar dois ou três artigos dele com temas completamente diversos. Tem uma novela, tem uma crônica, tem um artigo. Então, esse homem que vivia de construir gaiolas – isso foi outra profissão dele –, numa casa muito modesta em Afogados, se vê abatido por um AVC. Assim é que você entende porque um romance que havia sido escrito em 1886 agora é desmembrado e publicado semanalmente em forma de folhetim. É um caso estranho, porque geralmente um livro era veiculado no jornal, e depois se recolhia para o livro. Acontece com A emparedada o inverso; a obra é publicada em livro e depois é desmembrada e publicada em folhetim. E sai em folhetim porque ele não pode escrever durante esse período, e é esse folhetim que vai dando uma rendazinha para ele sobreviver. Quando ele se recupera do AVC – tem uma crônica muito interessante, se não me engano de Mário Melo, que dizia: “lá vai Carneiro Vilela para a redação, já recuperado do AVC, puxando uma perna, com um lado paralisado. Quem olhava assim pensava que era um velhinho pacato, incapaz de qualquer virulência verbal, e ninguém sabe que ali ia um dos pensamentos mais críticos da nossa sociedade”. Então, quando ele volta e se reestabelece desse AVC, ele volta a escrever, e após uns dois ou três anos ele morre. Entre essas versões publicadas em formato de folhetim e de livro existem diferenças? Não, até porque ele não tinha como fazer a diferença. Já estava publicado. E nenhum editor meteu a mão?

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Não, ninguém meteu a mão. É engraçado porque ele escrevia sempre para folhetim. Inclusive, alguém já comentou: “mas, no livro, os capítulos têm mais ou menos o mesmo número de páginas”. Isso acontece muito no folhetim. Quando você estuda a literatura do século XIX, você descobre que uma obra foi folhetim quando você se depara com ela e percebe, por exemplo, que cada capítulo tem dez páginas. Sempre dez. Era o limite do jornal... O cara tinha aquela quantidade de páginas e escrevia aquilo ali no jornal. Quando ele recolhia, o livro ficava com aquela sequência, com o número praticamente igual de páginas. Falando nisso, que características do folhetim, além dessa, você encontra no livro de Carneiro Vilela? Observem o seguinte: nem tudo, só porque foi publicado em jornal, era romance em folhetim, porque às vezes se faz uma confusão, dizendo-se, por exemplo, que Machado também escreveu folhetim. Não; de fato, Machado começou escrevendo Memórias póstumas de Brás Cubas para jornal. Quando chegou à metade, foi suspenso. Machado então recolheu esse material, passou mais um ano e meio retrabalhando, e publicou Memórias póstumas, inclusive com a alteração de nomes de personagens. Nem tudo que era publicado em jornal era romance em folhetim. Romance em folhetim possui uma forma específica. Uma delas é esse gancho de um capítulo para o outro, a necessidade de criar capítulos que precisem de uma sequência – e essa forma é muito bem utilizada até hoje por nossas novelas televisivas, que terminam sempre com um ganchozinho para o capítulo posterior. Algum tipo de mistério que precisa ser elucidado também é característico do romance-folhetim. Outra coisa importante era um traço um tanto rocambolesco, de criar situações que eram completamente falsas. Você criava certas expectativas e situações que sinalizavam para a elucidação de alguma coisa; depois se resolvia aquela situação e ela não elucidava nada. É como se fosse uma série de pequenas histórias paralelas que ocorriam ao lado do núcleo central para que a história continuasse funcionando.

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Essa é uma particularidade do romance-folhetim. Era isso que fazia a história ser espichada durante semanas, até anos. O que chama atenção, no caso de Carneiro Vilela, é que, por ele ter escrito para o livro, não existe esse tipo de procedimento. Não há nenhuma informação em A emparedada que seja uma situação artificial que ele tenha criado para enganar o leitor e espichar a novela, e que não tenha nenhuma consequência na história. Todos os signos que são colocados ao longo do livro, quando se chega ao final, ficam amarrados. Inclusive, o romance começa com um assassinato e termina com outro assassinato. E você vê a ligação entre esses dois acontecimentos, bem como de tudo que ocorre entre um e outro. Os reconhecimentos, os sinais, as peripécias que ocorriam com muita frequência no romance-folhetim, apenas para que a história rendesse, não acontecem em Carneiro Vilela. Isto é importante: Carneiro Vilela escreve um romance-folhetim que não se utiliza desse tipo de técnica. Mas ele se utiliza de uma técnica muito importante do romance-folhetim, que é terminar o capítulo colocando uma deixa para o capítulo seguinte. Quando eu li A emparedada, por exemplo, terminei em dois dias porque não conseguia parar de ler. Acho que ninguém consegue parar de ler. Chega um momento em que o mistério é tão grande… É um romance policial que não se consegue parar de ler. Nesse sentido, o papel do narrador parece ser fundamental em A emparedada, porque ele é um tipo de narrador que não se encontra hoje, na literatura contemporânea. Hoje em dia o narrador quase some. Ou se é em primeira pessoa ou ele acompanha determinado personagem. No caso de A emparedada, ele circula. Queria que você falasse um pouco do papel desse narrador. Ele é um narrador na terceira pessoa. O que chama atenção talvez tenha a ver com a geração de Carneiro Vilela: não podemos esquecer que ele é filho do realismo-naturalismo da Escola do Recife, por onde entrou o cientificismo no Brasil; há duas instituições que são as receptoras do cientificismo no Brasil, a Faculdade de Medicina da Bahia, por onde entra o lado mais biológico, dos tipos humanos etc.; e a parte

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mais cultural, que vai entrar pela Faculdade do Recife, com o darwinismo social, o determinismo, o evolucionismo e o positivismo. É em cima dessas teses que vai se calçar o narrador realista-naturalista, o que é engraçado, porque o narrador dessa corrente tende a abordar a realidade da maneira mais objetiva possível – esse era o pressuposto. A invenção, então, era uma característica dos românticos, que eram subjetivos, emocionais. Como o escritor realista-naturalista era quase um cientista – e estou dizendo realista-naturalista porque, quando o realismo chega ao Brasil (já existia na década de 1850, na França, com Flaubert), já chega junto com o naturalismo, de maneira que a gente não consegue diferenciar se uma obra é naturalista ou realista, já que as duas características se fundem no romance publicado no Brasil a partir dos anos 1880. Se você observar os escritores realistas-naturalistas no Brasil, eles procuram manter certa isenção. Tentam, porque aqui e acolá você percebe que eles se inscrevem no texto e têm a sua opinião. Nem que seja na maneira como ele vai organizar o texto. Vamos pegar, por exemplo, o caso de Bom crioulo, do Adolfo Caminha. Você percebe que, no final, o negro é punido, mas o rapazinho que era o amante do negro, loirinho de olhos azuis, se converte ao heterossexualismo. É convertido por uma senhora. Quer dizer, o branco é salvo desse desvio, desse pecado contra a natureza; mas o negro, que teria uma predisposição para isso, é punido. O discurso se dá no próprio desenvolvimento da ação, na maneira como a ação se resolve. Em Carneiro Vilela é interessante porque talvez o lado cronista dele, que passou a vida inteira tendo opinião sobre tudo – e ele tinha opinião sobre realmente tudo, do palito de fósforo ao papa, da criação de peixe à gaiola de galinha, não havia assunto sobre o qual ele não tivesse opinião. Você percebe que, quando escreve o romance, ele não se contenta, ele não se coloca numa posição de isenção. Por exemplo, quando fala do catolicismo, ele não consegue se conter. Ele só não chama o catolicismo de bonito: esculhamba com a Igreja. Assim também com a política, como se fazia na época, e com certos comportamentos sociais. É como se ele abrisse grandes parênteses na obra para fazer esses comentários.

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Isso através do narrador mesmo? Através do narrador mesmo, mas você percebe que ali ele deixa de ser o narrador para ser Carneiro Vilela, porque quem vem lendo Carneiro Vilela percebe que é ele. Claro que é ele o tempo todo, mas há essa diferenciação, segundo a qual você poderia ter um narrador que pudesse, talvez, abstrair sua opinião. No caso dele, não. É uma grande particularidade da obra dele, apesar de toda aquela estrutura do realismo-naturalismo e daquelas teorias todas que estão ali na obra dele. Você percebe que ele não se contenta, e não é um narrador isento. Ele se inscreve, ele dá opinião – e são as mesmas opiniões que ele vem dando em suas crônicas e artigos no jornal. O interesse que o livro despertou ficou restrito a Pernambuco, ao Nordeste, ou ele teve êxito em outros lugares do país? Não, eu não tenho conhecimento de que tenha ultrapassado as fronteiras de Pernambuco. Eu tentei inclusive levantar, para o prefácio dessa nova edição, o nome de Carneiro Vilela na grande crítica da época, Araripe Júnior, José Veríssimo, Machado de Assis, Sílvio Romero – que o conheceu –, mas você percebe que ele não é citado por ninguém, a não ser por Sílvio Romero na História da literatura brasileira, e mesmo assim de maneira muito genérica. Ele o menciona seis vezes nas mil e tantas páginas que compõem o livro, e todas as vezes de maneira completamente genérica, inclusive sem citar nenhuma obra sua, apenas o seu nome. Acredito que Carneiro Vilela não ultrapassou as nossas fronteiras; mesmo quando ele morou no Rio de Janeiro, parece que não conseguiu construir uma vida social. Mas isso não é estranho, porque ele também não tinha muito disso aqui. Pelas crônicas dele, pelas brigas que ele fazia, pelos senões que ele tinha em relação a todo mundo, ele não era muito de vida social; provavelmente por isso também não teve essa vida social no Rio de Janeiro. Agora, ele era um fenômeno da província? Era sim. Alguns livros dele eram editados e oferecidos como presente pelos jornais, por exemplo, para quem fizesse assinatura. Uma maneira de atrair o leitor para fazer assinatura do jornal era dizer que você ganharia o livro de Carneiro Vilela. Como ele publicou muito, é

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bastante comum ler nos jornais do século XIX – Jornal Pequeno, Jornal do Recife, A Província, Diario de Pernambuco –, volta e meia, uma notícia dizendo: “Àqueles que fizerem assinatura temos como oferta livros do Carneiro Vilela”. É um indício de que essa era uma estratégia que dava certo, tanto é que foi repetida por vários jornais anos seguidos. Se essa fórmula funcionava, então se tratava de um best-seller local. Não é à toa que ele era disputado pelos jornais. Tanto é que ele foi o primeiro presidente da Academia Pernambucana de Letras e foi fundamental para sua criação. Por causa dele é que a Academia Pernambucana de Letras não foi a primeira do Brasil, não é? É. Na verdade, parece que não seria a primeira do Brasil. Seria a primeira estadual do Brasil – ou provincial, como se chamava na época. Mas ele brigou tanto com as pessoas, que foram protelando, e terminou a do Ceará surgindo primeiro. Se você ler, inclusive, o discurso que ele faz na abertura da Academia, ele diz quais são as linhas da instituição – e são muito interessantes. Essa ideia de reedição de obras de autores pernambucanos, criação de bibliotecas, renovação de acervo. É um discurso muito moderno. Existe uma tensão entre ficção e realidade nesse livro. Falam que algumas coisas talvez possam ter sido reais. Queria que você falasse um pouco sobre isso. Acho que esse mito que se cria, de que a história teria sido real, quem o cria é o próprio Carneiro Vilela. E onde é que você vai encontrar isso? Encontramos em dois momentos do romance. Primeiro, que ele começa com um assassinato e uma descrição do jornal, que ele transcreve. De fato, essa matéria existe. Se você for ao jornal da época, na data em que está dizendo, no Diario de Pernambuco, existe a matéria. Então isso é verdadeiro. Só que ele escreve esse livro em 1886. O fato ocorreu, se não me engano, em 1865, 21 anos antes. Qual é o fato?

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É um corpo que aparece, de um homem branco, no Engenho Suassuna, em Jaboatão. A primeira coisa que se lê no romance é esse corpo que aparece no Engenho Suassuna, em Jaboatão. E não é o corpo de uma pessoa qualquer, mas o de um homem branco, e claramente se percebe que é um estrangeiro, porque é um tipo de branco que não é o branco nacional. Alguns colocam que seria polonês – levantam essa hipótese. Esse é o primeiro passo. Como esse fato vai ter uma importância dentro da história, dentro da ação, é como se ele desse veracidade. Para concluir, quando o narrador chega ao penúltimo capítulo, diz: “essa história me foi contada durante o período em que eu morei no Rio de Janeiro” – e ele morou realmente no Rio de Janeiro – “por uma ex-escrava da família X” – que é a principal família da história. Ou seja: eu ouvi essa história e estou agora contando para vocês. É óbvio que a empregada, ele vai dizer, contou a história do que se passava dentro da casa, porque ela era uma escrava, ela não vivia na rua. Então você diz: “e as histórias que se passam em outros lugares?”, aí ele queria fantasiar, entra a fantasia dele; mas é engraçado esse recurso, porque é como se desse credibilidade, mas ao mesmo tempo é uma brincadeira, porque o que ele faz é dizer que não está contando o caso como o caso foi, mas como lhe contaram. Eu estou contando o caso de alguém que me relatou esse fato vinte anos atrás; esse alguém é uma negra analfabeta que está relatando um fato que guardou na memória. Esses dois recursos – o documental, que de fato procede, porque houve essa morte, e essa estratégia de dizer que se está recontando uma história que foi contada por alguém que foi testemunha ocular, mas que não é um branco, e é uma negra, uma escrava, o que no século XIX diminui sua credibilidade – criam esse mito de que, de fato, a história aconteceu, mas daí para que isso realmente seja verdade... Trata-se de uma grande lenda. Quer dizer, ele criou, a partir de um romance, um mito local. São poucas as ocasiões, na história da literatura, de obras que criaram mitos. Um exemplo é Romeu e Julieta. Se você for à Itália, na cidade em que se passa a história, vai ter alguém dizendo: “aqui morou Romeu, aqui morou Julieta”, mas é claro que isso é mentira. É pura invenção. São poucos os textos que vêm alargar o real, de modo que as pessoas

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pensem que aquilo de fato aconteceu. Para mim, o que ele fez foi uma grande brincadeira de recurso narrativo – ele brinca com o leitor, com essa questão de “conto o fato não como o fato foi, mas como me contaram”. Isso é que cria essa credibilidade e esse mito de A emparedada. É possível encontrar algum paralelo entre o Recife descrito por Carneiro Vilela e o Recife de hoje? Quando você lê romances do século XIX, você já percebe muitos aspectos e traços de costumes que prevalecem até hoje. Você vai encontrar o cotidiano, as relações interpessoais, certos mandonismos, a sujeira da rua, nosso hábito de jogar as coisas, que se jogavam do sobrado e hoje se jogam do prédio, sem ninguém estar vendo. Tudo isso, a fofoca, a desconfiança, que acho que é uma coisa muito própria da cidade do Recife, onde se cria uma desconfiança entre as pessoas, certo “pé atrás”. Isso se dá por conta das insurreições de 1817 e 1824, porque nesses momentos você vê pela primeira vez que as grandes famílias pernambucanas se dividem. Você vê primo acusando primo. O primo vai ser morto, levado ao fuzilamento, porque o outro denunciou. Depois disso, quando a sociedade se recompõe, nunca mais se recompõe a mesma credibilidade que as pessoas da elite tinham entre elas. Recife tem uma coisa estranha porque tem uma elite dividida: ela desconfia dela mesma. Isso é interessante, e para mim surge nesse período. Essa desconfiança nas relações se encontram até hoje, e estão lá na obra de Carneiro Vilela. O que o leitor atual pode encontrar de instigante na literatura de Carneiro Vilela e, principalmente, em A emparedada da Rua Nova? Eu sou suspeito porque eu gosto de romance policial, e acho que este é um dos melhores romances do gênero escrito no século XIX. Além disso, acho que é o melhor romance-folhetim escrito no Brasil no século XIX. Ele seria um grande romance-folhetim em qualquer lugar do mundo. E se nada disso bastasse, ele ainda tem um painel do cotidiano do Recife, da vida social, da maneira como as pessoas falavam, da vida religiosa, das procissões, das festas, da maneira como as pessoas ama-

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vam. Há, por exemplo, uma passagem em que ele diz que na Praça da República, quando a luz do Teatro Santa Isabel e do Palácio do Governo se apagavam, os casais de enamorados se aproximavam, no escuro, para namorar. Ou seja, fazer sexo. O falar da vida do outro... A Ponte de Ferro da Boa Vista tinha uns banquinhos onde as pessoas sentavam depois de sete da noite, para ficar vendo quem passava ou não; dependendo do horário, para falar mal. Todos esses hábitos do cotidiano do Recife dão um ótimo tratado de sociologia cotidiana para quem é estudioso, seja para quem é de história, antropologia ou sociologia. Além de ser um romance muito bem-escrito, muito bem-narrado. Por isso eu acho que sempre vai ser lido e sempre vai ser estudado. Se o cara gosta de Edgar Allan Poe, se gosta de romance policial, se gosta de Balzac, vai gostar do livro e vai achar uma obra de boa qualidade. ***

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MARTINA NAVARRO

F R E D N AVA R R O As variações da linguagem e os modos de vida

O jornalista pernambucano Fred Navarro esteve no Café Colombo em fevereiro de 2014 falando sobre o seu Dicionário do Nordeste, publicado pela Companhia Editora de Pernambuco – Cepe, em 2013. A obra reúne mais de 10 mil verbetes oriundos da região. Navarro saiu do Recife aos 27 anos e desde 1982 mora em São Paulo, o que o fez perceber com ainda mais realce a riqueza de matizes do vocabulário brasileiro, especialmente do Nordeste. Nesta entrevista, ele detalha o meticuloso processo de pesquisa e checagem, que levou mais de 20 anos e resultou nessa obra de 711 páginas. A introdução do livro é feita pelo professor Evanildo Bechara. Navarro é ainda autor de Assim falava Lampião.

Café Colombo – O fato de você morar em São Paulo há muito tempo o levou de alguma forma a prestar mais atenção ao sotaque, às diversas formas de falar e às especificidades de cada lugar? Fred Navarro – Eu acho que foi decisivo, porque são termos e expressões que eu sempre usei a minha vida inteira até os 27 anos, quando saí do Recife, mas que só ganharam destaque para mim quando me mudei para cá, para São Paulo, em 1982. O Brasil tem idades geográficas muito grandes e muito heterogêneas. Eu vivo dizendo que a cultura gaúcha em nada se parece com a mato-grossense ou acriana. A língua portuguesa é o elo comum, mas são regiões geograficamente extensas, que admitem variações de linguagem, vestuário, costume, vocabulário, tudo. Essa riqueza vocabular do Nordeste, que sempre foi parte integrante de mim enquanto morei aí, ao me mudar para São Paulo, ganhou um realce, um destaque, que eu não imaginava. Ao usar essas palavras e expressões e conferir o estranhamento das pessoas daqui, percebi que havia um terreno a ser explorado, de checar realmente a origem, o uso corrente desses termos usados na nossa região. Conforme você ia percebendo que o pessoal estranhava, você ia anotando. Além de ser uma brincadeira inicial, isso acabou virando um trabalho. Como se deu essa busca pelas palavras, pelo significado delas? No começo foi coleção. Papel, caderneta, uma pasta. Eu ia anotando e um belo dia tinha mais de uma gaveta cheia de anotações, de rabis-

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cos, coisas para checar e conferir. Logo que eu cheguei aqui, ao conversar com alguns amigos jornalistas e publicitários sobre a ideia desse livro, a reação era uma gargalhada. Todo mundo dizia: “Eu conheço uns 20 jornalistas nordestinos que estão escrevendo esse livro”. Muitos começaram, mas, como eu digo na minha nota ao leitor, trata-se de um labirinto. É fácil entrar e mais fácil ainda se perder. É um trabalho muito exaustivo, tanto que me tomou duas décadas. Muita coisa parece que é do Nordeste, mas não é. Eu cito, ao final do volume, quase 300 termos que não entraram porque eu não pude comprovar a origem ou o uso corrente na região Nordeste. Posso citar, de memória, “baixar a crista”, que muita gente acha que é uma expressão nordestina e não é, porque isso se fala no Brasil inteiro, no Rio Grande do Sul, em Manaus etc. “Banzo”, que é um sinônimo de saudade, muita gente acha que é da cultura nordestina, mas os negros trouxeram a palavra para o Brasil inteiro. Ela é registrada em toda a literatura brasileira; você encontra até mesmo em José de Alencar e Machado de Assis. “Bucho furado”, expressão para quem fala demais, muita gente acha que é nordestina também. “Abafado” é outra: é usada em Minas, em Goiás, em Brasília. É um trabalho enorme checar realmente essa origem e ao mesmo tempo procurar citações de uso corrente, investigar a nossa vasta literatura de cordel no Nordeste inteiro, nossa música popular, o teatro de Ariano Suassuna, a música de Tom Zé, a poesia de Torquato Neto, as invenções de Patativa do Assaré e de tantos cantadores populares nordestinos, como Bráulio Tavares. Ou seja, eu fui atrás, em toda a nossa cultura popular nordestina, de citações e exemplos para ancorar. Uma coisa que eu gosto de falar, para concluir essa resposta, é que existe um verbo na Bahia chamado “domingar”, que não se usa em lugar nenhum do Nordeste, só na Bahia, e que significa “passear na praia no domingo com a família”. Por exemplo: “Vou domingar com a minha namorada” quer dizer ir passar a tarde do domingo na praia. Acho muito engraçada essa expressão. É um verbo que as pessoas na Bahia usam no dia a dia, mas não consta de nenhum dicionário. Mas, ao ir buscar em fontes da cultura popular, encontrei registros em Tom Zé, em Gilberto Gil, em Jorge Amado. Quer dizer, é um verbo que não só é de uso cotidia-

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no, como também está amplamente registrado na literatura e na música popular baiana, discordando da autoridade clássica do dicionário. Depois que você descobre um termo, qual é o caminho até conseguir comprovar a autenticidade e descobrir se realmente é do Nordeste, se realmente existe? É uma sequência de checagens. Eu digo que é um trabalho jornalístico de cunho investigativo, porque você não pode acreditar nas primeiras impressões, precisa checar e rechecar. A primeira fonte são os dicionários tradicionais. Eu usei o Houaiss, o Aurélio e o dicionário da Academia Brasileira de Letras. Eu tive praticamente que escanear esses três dicionários, página por página. É engraçado, porque muita gente não sabe, mas esses dicionários têm o nome de um autor, mas são compostos por uma equipe ampla de pesquisadores. É um trabalho multitarefa. No Aurélio, se não me engano, são 125 só pesquisadores. Tem área de cinema, área literária etc. Nesses dicionários, quando conseguem identificar o estado, fica lá bem claro com uma sigla. Quando não conseguem identificar o estado, colocam a região. Quando não conseguem identificar a origem de jeito nenhum, eles colocam como brasileirismo. Ou seja, entre os brasileirismos, há vários que são do Nordeste e eles não conseguiram checar. Nesses casos eu deixo bem claro que concluí discordando dos dicionários. É brasileirismo para eles, mas eu tenho amplas provas de que é um termo nordestino. São vários casos. Eu cito caso a caso nos verbetes. Às vezes, o Aurélio diz uma coisa e o Houaiss diz outra: o Aurélio diz que um termo é de Alagoas, da Bahia e de Sergipe, enquanto o Houaiss diz que é só da Bahia. Nesses casos, eu sou a favor da maioria. Nos casos em que havia dúvida, eu coloquei sempre estendendo o sentido de uso da expressão. Porque não é por acaso que eles colocam esses estados, algum tipo de comprovação eles têm. Depois eu chequei tudo isso com o dicionário da Academia Brasileira de Letras, que inclusive é coordenado pelo professor Evanildo Bechara, que fez a introdução do meu livro. É um excelente dicionário, mas pouca gente o conhece. Às vezes, eu ia atrás de uma expressão ou de outra e acabava achando algo sobre

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uma terceira. Foi um trabalho de arquitetura muito delicada, porque quando se mexe em um detalhe se mexe em outro. Meu livro é cheio de referências cruzadas. “Ficar no caritó”, por exemplo – quando a moça não casa e fica na casa dos pais –, é um verbete que remete a várias fontes. Levando em conta esse trabalho de cruzar informações e só colocar coisas que eu pude comprovar, não é a toa que essas 300 expressões tenham ficado de fora. Eu procurava uma letra de Tom Zé que eu lembrava ter uma palavra nordestina, exclusiva do Nordeste, e aí encontrava quatro outras novas no mesmo disco. Então, incorporava essas quatro e ia atrás de informações sobre elas. Umas eu achava que eram nordestinas e não eram, outras eu achava que não eram e eram. Tem muita coisa que é de Minas. O caso Minas Gerais é engraçado, porque há uma fronteira muito grande com a Bahia. No dicionário eu também incluí algumas citações de Guimarães Rosa, que é mineiro. É uma das poucas exceções, porque você não consegue diferenciar a linguagem do mineiro do norte da linguagem do baiano do sul. É a mesma expressão – exatamente a mesma linguagem. Mas muitas expressões que não são da região do norte de Minas, que são de outras partes do estado, também chegam ao Sertão da Bahia. “Azuretado”, por exemplo, que é muito usado no Recife e na Paraíba, e significa nervoso, estressado, é uma expressão tipicamente mineira, do sul de Minas, que chegou à Bahia e se espalhou pelo Nordeste, mas não é uma expressão nordestina. Deu muito trabalho separar o joio do trigo. O Dicionário do Nordeste também é fruto de um trabalho anterior seu, publicado como Assim falava Lampião. Qual a diferença entre essa primeira versão e o Dicionário do Nordeste que foi publicado agora? Ah, são tantas diferenças. Eu considero outro livro. O Assim falava Lampião era um projeto que eu tinha para esse livro de agora. Eu trabalhava nessa época para uma editora em São Paulo, onde eu era revisor e editor de capas, e mostrei para os editores o meu projeto. Eles ficaram fascinados, era uma coisa inédita, quiseram publicar. Eu pedi um tempo, dei uma forma, mas aquilo não resultou em um dicionário.

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Tanto que o título ficou Assim falava Lampião. Eu me recusei a chamá-lo de dicionário. Era um glossário ou um vocabulário. Não tinha tantas expressões; eram somente vocábulos, termos isolados, pouquíssimas expressões. Na linguística existe uma corrente que diz que é possível entender um povo a partir da língua, com a quantidade de termos que são utilizados para determinada atividade. A partir desse trabalho de coleta e estudo que resultou no Dicionário do Nordeste, você acha possível traçar algumas características da região? E, mais ainda, observar diferenças culturais de estado para estado? Sem dúvida nenhuma. A linguagem que se fala na fronteira oeste do Maranhão com o Pará não tem nada a ver com a linguagem do sertanejo baiano. Os termos indígenas predominam, assim como no Pará inteiro, com aquela proximidade da região amazônica… O Maranhão, na verdade, tem metade amazônica e metade sertaneja. Então, dentro do Maranhão mesmo você encontra diferenças. Há diferenças significativas também entre as linguagens faladas nas capitais e no interior. O pescador não fala a mesma língua do vaqueiro. Entre quem fala em Recife e em Petrolina, mesmo sendo do mesmo estrato social, há termos, entonações e sotaques diferentes. Há casos e mais casos. Uma expressão muito comum em Recife e Maceió, “o cão chupando manga”, se refere a uma pessoa que é muito boa no que faz. Ao mesmo tempo, em São Paulo, significa uma pessoa muito feia – ninguém em São Paulo conhece no sentido que se usa no Recife. E no Rio Grande do Norte significa uma pessoa vendida, mau-caráter. Quer dizer, a mesmíssima expressão, em três lugares, têm diferenças fundamentais de sentido. Outro exemplo é aquela grade que se usa nas locomotivas para retirar detritos da estrada de ferro, parecida com aquele fogão rústico, de madeira. Por algum motivo que eu não entendo, em Alagoas se chama aquilo de “rasga-gato”. Mas ao mesmo tempo a expressão “rasga-gato” também se refere a um tira-gosto. Ou seja, até no mesmo lugar uma expressão pode ter sentidos bem diferentes. Quando colocamos em perspectiva a dimensão geográfica, precisamos lembrar que de Porto

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Alegre a Manaus se atravessa praticamente uma Europa inteira, com exceção da Rússia. É óbvio que um país com essas dimensões iria gerar grandes diferenças regionais. Se você colocar um matuto, no bom sentido, do Maranhão ou da Paraíba, junto de um matuto do Paraná, um trabalhador da terra vermelha, acho que eles levariam uns dez minutos para entender que falam a mesma língua. Porque os sotaques, as gírias, a entonação e até o vocabulário são muito diferentes, mas obviamente mantêm o português como base comum. Essas diferenças são criativas, fazem parte da diversidade brasileira e acho que só enriquecem o nosso país. Pena que sejam tão esquecidas e pouco estudadas – é algo que eu lamento. ***

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R E N A T O PHAELANTE O Recife através da música popular

O Café Colombo conversou em junho de 2008 com o radialista e pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj) Renato Phaelante, sobre o livro O Recife na música popular brasileira. Phaelante atua na coordenadoria de som e imagem da Fundação Joaquim Nabuco e na direção e apresentação do programa Memória da Nossa Gente, veiculado pela Universitária FM. Nesse livro, ele entrelaça a história discográfica brasileira e os seus episódios de saudações ao Recife. Phaelante também é autor de A música do cangaço, Capiba é frevo, meu bem, Humor e sátira na MPB, Habitação – um tema na discografia da MPB.

Café Colombo – Vamos começar nossa conversa pela história discográfica. Como o disco chegou ao Brasil e, em particular, a Pernambuco? Renato Phaelante – Você sabe que as pessoas mais abastadas viajavam e traziam discos do sul e do estrangeiro. Nessa época eram lançadas as radiolas, e assim foi se desenvolvendo a indústria do disco no Recife, mas ela começou comercialmente com o Fred Figner, que é uma figura que lançou no Rio de Janeiro, depois, a Casa Edson, que pegava o que havia de mais importante na música, registrava e distribuía para o Brasil. O Fred Figner, vocês vão ver nesse livro, consegue fazer uma porção de praças nas quais o disco começa a penetrar no início do século XX. Chega até Manaus... Chega até Manaus, uma coisa realmente maravilhosa porque ele consegue, além de levar o disco, captar a possibilidade artística das regiões em que a sua empresa funciona. Essa coisa virou um intercâmbio, iam pessoas de lá para cá para gravar. Nós tivemos, por exemplo, o Cadete, um homem que anunciava na Casa Edson, e várias outras figuras do Nordeste que passaram a fazer parte desse trabalho da Casa Edson do Rio de Janeiro, do Fred Figner. Quando o Recife surgiu pela primeira vez na discografia brasileira? No Recife, começa com a vinda de companhias de teatro de revista

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do sul do país que traziam suas músicas características. Quando havia necessidade de que a montagem chegasse mais perto da comunidade recifense – dos hábitos daqui –, eles levantavam o que estava acontecendo, o que era de atração política, social, ditos populares etc., e aí solicitavam a compositores locais da época que fizessem música para aquelas peças. Ou seja, eles tiravam aquela música que vinha com uma imagem carioca ou do Sudeste e colocavam uma coisa mais nordestina. Às vezes, isso ganhava tamanha importância e sucesso que eles levavam junto com a companhia aquela “modificação”. Assim, o Nordeste começou a fazer parte da música popular brasileira. Por meio do teatro... Sim, por meio do teatro e dos conjuntos que acompanhavam as revistas. Turunas da Mauriceia, Bambas do Nordeste e Bambas do Norte, por exemplo. Você também sustenta no livro que, a partir da década de 1940, com exceção do Rio de Janeiro, até então capital do Brasil, o Recife era a cidade mais citada nas composições, em especial em razão de um olhar sobre o Carnaval. Quais seriam os outros motivos? As pontes, a paisagem, a vida boêmia do Recife... A cidade tem uma tradição boêmia que atravessa séculos, e literária também. É berço de grandes figuras da literatura brasileira, e a poesia musical caminha paralelamente. Os grandes poetas faziam letras para música. Valdemar de Oliveira, por exemplo, médico e compositor, botou muita música em letras de Ascenso Ferreira. Eustórgio Wanderley, que era um jovem jornalista, também colocou muitas letras em música e muita música em letras. Foi o primeiro compositor nordestino na discografia brasileira. Ele e Abdon Lira fizeram, inclusive, uma canção chamada “Bico da Chaleira”, que era um tanto monótona, mas foi sucesso no Carnaval de 1912 no Rio de Janeiro. Porque não havia música carnavalesca, não havia aquele ritmo quente. Eram aquelas marchas lentas que eram músicas de Carnaval. E ele, Eustórgio, junto com o Abdon Lira, foram os primeiros criadores. João Pernambuco fez sucesso no Rio de Janeiro

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com uma música chamada “Cabocla de Caxangá”, que foi sucesso no Carnaval de 1913. Não é engraçado? É engraçado porque nessa época, nos Estados Unidos, não havia sequer os Big Bands, que eram de uma música mais forte e frenética. É, só começaram a surgir no final dos anos 1930. Inclusive o Capiba fez uma jazz band aqui. Você está falando dos Carnavais de 1912 e 1913. O frevo ainda não tinha pegado fogo? Pois é, o frevo era ainda marcha. Ainda não tinha essa característica que tem hoje, e que começou a surgir somente dos anos 1920 para os anos 1930. Mas, como eu ia dizendo, a música carnavalesca até então não existia. Ela tinha sido um sucesso, então tocavam no Carnaval, mas não porque fosse feita para o Carnaval. No início do processo de consolidação do Recife na discografia brasileira, quem foi mais marcante: Capiba, Antonio Maria ou Nelson Ferreira? Veja bem, no âmbito nacional, sem dúvidas, foi Antonio Maria. Ao lado de outros talentos da música regional e da vida artística, ele se deslocou para o Rio de Janeiro, com Fernando Lobo e alguns outros nordestinos. Essa plêiade de figuras do rádio naturalmente levava com ela a cultura nordestina. Levava, para o rádio, os talentos nordestinos e fazia com que a música nordestina fosse mais bem-vista. Então, as empresas de disco começaram a gravá-la. Nacionalmente, também se constitui como uma figura muito importante o Nelson Ferreira, que fez a festa brasileira durante os anos 1950. Em 1957, por exemplo, o Carnaval foi animado por “Evocação”, de Nelson Ferreira, o que o tornava conhecido nacionalmente. Antes ainda, em 1920 e pouco, ele havia lançado “Borboleta não é ave”, uma música que se torna famosa no Brasil inteiro. Em 1930, surge Capiba, com “Recife, cidade lendária”, e outras músicas que se tornaram sucesso na discografia brasileira. Eram compositores que vendiam muitos discos, realmente.

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Mas Antonio Maria, digamos, criou uma rota, principalmente por meio do Carnaval, para colocar o Recife no cenário nacional. Colocou em evidência. Ele fez três frevos famosos: “N.º 1 do Recife”, “N.º 2 do Recife” e “N.º 3 do Recife”, que até hoje são gravados. É interessante a gente relembrar um pouco essa história, como você faz no trabalho, porque em todos os Carnavais essas músicas são resgatadas, mas há uma nova geração de foliões que vai brincar o Carnaval e nem sempre imagina que há todo esse background, essa história… Assim como “Voltei Recife”. “Voltei Recife”, de Luiz Bandeira, também foi gravada nos anos 1950, no mesmo período dessas de Antonio Maria. Inclusive muita gente pensava que essa música, na época, era de Antonio Maria, pelas características da melodia e da letra, mas era de Luiz Bandeira. Depois foi regravada, fez até campanha política de Joaquim Francisco alguns anos atrás. E foi lançada nessa versão que a consagrou em 1958… Exatamente, há muito tempo. Recife e Olinda sempre tiveram um histórico de rivalidades. Qual das duas cidades tem mais músicas, Olinda ou Recife? Recife. Mas Olinda possui todos aqueles blocos carnavalescos, agremiações… Em músicas gravadas, quem tem bem mais é o Recife. Aliás, nesse livro, além da retrospectiva de algumas letras que eu considero importantes, tem também uma discografia, mais adiante, onde levanto músicas que não estão destrinchadas em suas letras, mas fazem parte das discografias. Tem cerca de 100 outras músicas, de Edgard Moraes, Romero Amorim, Alvanir Marinho, Fernando Azevedo, Lourival Oliveira, e por aí vai. O Recife é, sem dúvida, a cidade brasileira que foi mais difundida na discografia.

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A gente percebe que essa discografia está intimamente associada ao ritmo do frevo. É, sem dúvida. O Mangue Beat, depois, rompe um pouco com essa tradição, trazendo um ritmo diferente para falar sobre o Recife? Ele utilizou o Recife como o tema, porque o Recife é uma cidade geograficamente nascida do mangue, e ainda continua dentro do mangue. Chico Science explorou isso muito bem: o Recife das palafitas, o Recife dos caranguejos, vivendo e sobrevivendo dentro do mangue. Essa faceta do Recife pobre que existe desde a abolição dos escravos. ***

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T A R C Í S I O P E R E I R A Nascimento, apogeu e declínio da Livro 7

O livreiro e editor Tarcísio Pereira ficou famoso à frente da saudosa Livro 7, que nos anos 1980 chegou a figurar no Guinness Book como a “maior livraria do Brasil”. Nesta entrevista, de junho de 2013, ele relembra a agitada cena cultural que existia ao redor daquele espaço, muito frequentado por artistas e intelectuais. Entre os casos marcantes relatados por Tarcísio, está a noite de autógrafos de Sidney Sheldon, famoso escritor de best-sellers policiais, “uma figurinha simpaticíssima”, segundo ele. Ele fala ainda da influência política da livraria, que vendia várias obras então proibidas, que eram trazidas diretamente da Europa – o que acabou fazendo com que ele fosse visado pelos aparatos de segurança da época da ditadura militar.

Café Colombo – Hoje em dia se fala que uma livraria não é um espaço apenas para vender livros, mas um espaço de convivência. Você já fazia isso na década de 1970? Tarcísio Pereira – Já, naturalmente essa visão de que a livraria não é somente um espaço comercial já vem de muito tempo – como, por exemplo, no Rio de Janeiro, a livraria São José –, mas eu precisava trazer isso para Recife. Comecei naquela época, quando havia um ambiente muito forte de repressão, a trazer livros de política, mas era uma atividade muito escondida, então eu precisava ter atrações para trazer o público até a livraria. Primeiro, quando eu inaugurei, já consegui uma matéria no jornal onde Celso Marconi dizia: “abre uma nova livraria no Recife, que permite trazer grandes atrações”. Como eu disse, havia toda a repressão, e eu precisava mostrar uma cara nova para a livraria no Recife. As pessoas estranhavam porque não havia balcão, o cliente chegava e ficava à vontade. Ou seja, já era um sistema de self-service. A livraria era pequenininha, não tinha 20 m². Como disse, eu trazia muito livro político – naquela época o Brasil não podia publicar livros de esquerda – de Portugal, da Espanha, da Argentina. Dessa forma, o público e o meio acadêmico começaram a descobrir o espaço. Também investi em eventos, para atrair não só o público específico, mas o público de modo geral. O que eu fazia? Na época não havia tanto televisão, então eu fazia exibição de Super 8. E usava a parede do prédio, porque na livraria não tinha espaço. Fazia,

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então, no corredor do edificio Amaraji. O síndico, naturalmente, não gostava, porque eu usava todo o corredor do prédio. E exibia filmes de Jomard Muniz de Britto, de Celso Marconi, de Fernando Spencer e de vários cineastas daqui de Pernambuco. Fazíamos também, naquela época, torneios de xadrez, sempre aos sábados pela manhã, além de exposições de obras de arte. Começamos também com sessões de autógrafos, que foi algo que marcou muito a Livro 7 em nossos 28 anos de história. Um autor nosso que me ajudou muito, trazendo prestígio à livraria com a sua constância, foi Hermilo Borba Filho, que sempre estava conosco. Ele dizia que a livraria era tão pequena que o cliente entrava, escolhia os livros com a mão para trás, saía, tirava o dinheiro do bolso e voltava, porque não tinha espaço nem para tirar o dinheiro do bolso. E a livraria começou a crescer... Depois de dois anos, se a livraria já era pequena, o aumento do público a deixou menor ainda, então aluguei outra sala, botei uma porta e liguei uma à outra. Mas, com quatro anos, surgiu o casarão, quando houve um crescimento muito grande. O casarão tinha doze salas. Eu já tinha esse público de cultura comigo, então quis levar o público para um espaço onde ele encontrasse outros elementos, como discos, uma galeria de arte etc. E esse foi o casarão, um sucesso durante quatro anos, porque, depois disso, mais uma vez a livraria ficou apertada. Assim chegamos à nossa terceira fase, a do galpão. Apareceu a disponibilidade de alugar um galpão grande juntinho do casarão, então eu movi a livraria para lá. Era um espaço enorme; quando você entrava, sentia aquele impacto. Eram 60 mil títulos. Nesse galpão eu comecei a fazer os lançamentos. E foi nessa época que se criou a história de que a Livro 7 passou a ser a maior livraria do Brasil? Ela realmente entrou no Guinness book quando eu comprei o outro terreno, da Rua do Riachuelo, em 1986, e juntei a Riachuelo com a Sete de Setembro. Foi quando o Guinness colocou a Livro 7 como a maior

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livraria do Brasil. Era realmente uma livraria muito grande. Nós tínhamos uma regra de que, em princípio, nós podíamos trazer qualquer livro. As pessoas, quando queriam um livro, pensavam: “se eu for à Livro 7, eu encontro”, e todo mundo passou a reproduzir esse discurso, o que nos aumentou a responsabilidade. Eu trazia livro de qualquer lugar, o cliente reservava e eu não deixava cliente sem livro. Funcionava muito bem, e os eventos de lançamento eram muito frequentados. Nós tínhamos, no mínimo, dois lançamentos por semana. Hoje, em qualquer espaço de evento, você tem a curadoria, mas eu não tinha essa coisa. Quem escrevia tinha seu espaço na Livro 7. Se escreve, é autor, e quem vai julgar é o público: eu tinha a obrigação de lançar. Lançava desde autores novos, inexperientes, desconhecidos, até o Sidney Sheldon. Como foi esse famoso lançamento de Sidney Sheldon? O Sheldon foi uma loucura, foi o mais ambicioso lançamento que eu já fiz. Eu ia muito a feiras de livro mundo afora. Eu estava em Frankfurt quando conheci a agente de Sidney Sheldon; comentamos que ele vendia muito no Brasil, e que eu poderia fazer uma série de noites de autógrafo. Ela achou interessante porque ele nunca tinha vindo à América Latina, e ficou de passar a ideia para ver sua receptividade. Em poucos dias, me liga Sérgio Machado, dono da Editora Record. “Você andou mexendo com Sidney Sheldon, foi? Andou catucando?”. Eu disse: “Olhe, eu andei sugerindo ao agente literário que ele deveria vir ao Brasil”. E ele disse: “E não é o que Sheldon aceitou?”. Então, fomos organizar. A gente fez uma programação em que ele viria para a América Latina, começando por Buenos Aires, depois Montevidéu, Porto Alegre, São Paulo, Rio de Janeiro e Recife. Comecei a divulgar: saiu nos jornais, televisão, rádio, a coisa toda. Ele chegou à América Latina, e foi para Buenos Aires, Montevidéu e Porto Alegre, mas disse que infelizmente não poderia mais vir ao Recife, porque havia achado a região muito violenta, e não queria se arriscar a vir ao Nordeste. Quem me disse foi o editor, lamentando muito meu esforço (ele estava vindo ao Brasil por uma sugestão minha), mas disse que não daria mais. Minha reação foi buscar uma solução: que ele vinha, ele vinha. Como já tinha

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muita matéria nos jornais, xeroquei tudo aquilo, liguei para um ex-funcionário meu que morava em São Paulo, que falava inglês melhor que eu, e disse: “Olha, estou mandando por fax para você todas as matérias que saíram sobre a vinda de Sidney Sheldon ao Recife; você vai ao lançamento e, quando chegar sua vez de falar com Sheldon, apresenta o nosso projeto aqui no Recife, fala de tudo o que já se trabalhou para a presença dele aqui”. Então ele mostrou, conversou muito com Sidney Sheldon, disse que era a maior livraria do Brasil, que ele não poderia deixar de fazer isso, que havia um público que adorava os seus livros. E Sheldon começou a se sensibilizar. No dia seguinte pela manhã já me liga Sérgio Machado: “Sheldon me disse que pode ir ao Recife. Disse que se ele não fosse seria chato para o público dele”. Ele viria para o Recife em um voo comercial normal, chegaria às 17h, faria uma coletiva, começaria o lançamento às 19h e voltaria num voo às 21h30, mas que precisava ser num jatinho; não podia ser em voo comercial. Eu não sabia quanto era o jatinho, mas disse: “está fechado o negócio”. Liguei para a empresa daqui, contratei um viajante, liguei para a editora, fizemos a composição desses custos. Quando ele chegou ao Recife, viu na Barão de Souza Leão muitas faixas em inglês para ele; ele leu e achou muito simpático. Quando você faz uma produção com um autor famoso, tudo fica mais fácil. A imprensa ajuda mais, as empresas ficam mais receptivas para ajudar no lançamento. Eu consegui um bom whisky, consegui a suíte presidencial do Recife Palace, consegui salgadinhos muito bons com uma empresa de Boa Viagem, consegui a segurança do evento com a Nordeste Segurança de Valores, enfim, todo mundo ajudou no lançamento. O Detran fez uma operação para o trânsito da rua também. Ele chegou à livraria umas 18h30, e a imprensa já estava toda lá, televisão, rádio, jornal etc. Ele foi muito simpático, junto com a esposa. O espaço também ficou muito bem-organizado. Tirei todos os carros do estacionamento, coloquei quatro postos de venda, dois mais próximos e dois já chegando na calçada. Sheldon vibrava. Olhava e dizia: “It’s wonderful!”. A mulher dele se levantou duas vezes para filmar a fila. Era um negócio de índio, mas ela filmava e ficava maravilhada. Para terminar, quando deu 21h e pouca, 21h20, ele viu que a fila não

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diminuía e perguntou: “quando eu vou parar?”. Ele percebeu que a fila não terminava nunca, então se levantou e foi autografar na própria fila. Quando terminou, fomos ao aeroporto e já estava lá o jatinho com o motor ligado – coisa de cinema mesmo. Vendemos em torno de 940 livros, um dos maiores volumes do Brasil. Foram 940 livros novos, e ele não fazia nenhum texto de dedicatória não, era só a assinatura. Foi uma figura simpaticíssima. Paulo Bruscky chegou a fazer umas performances artísticas na Livro 7. Você se lembra de alguma? Lembro! Paulo inventou uma corrida de cágados. A corrida era só uma motivação; o fundamental era a pintura acima dos cágados. Ele fazia o exercício na pracinha, mas não tinha a premiação. Eu digo: “eu dou”. Ele chegou lá, deu prêmio a uma menina que ganhou. Mas ele fazia cada uma para mexer com o tempo da repressão... Era a semana da asa, e ele inventou de fazer um bocado de aviãozinho de papel; juntou umas dez pessoas e foi para a ponte. Veja a sacanagem. No lugar de ficar do lado de cá da ponte, onde o vento era favorável e o aviãozinho iria com o vento, ele foi para o lado de lá, onde o avião levantava voo e caia no rio. O mais gozado é que ele pegou uma jarra de água que se usa muito no interior e, no fundo da jarra, colocou um espelho dentro. Do lado de fora, ele pintou uma jarra bem bonitinha e escreveu:“lixo”. A pessoa chegava na livraria e pensava: “nunca vi um depósito de lixo tão bonito assim, tão pintado”, então a pessoa ia olhar lá dentro e, quando olhava, era a cara dela que estava no lixo. Era um gozador. A Livro 7 chegou a ser visada pelo governo, teve algum problema com a ditadura? Sim, teve na primeira fase e principalmente na fase do casarão. Era uma apreensão: sempre que chegava um carro do exército a gente pensava: “pronto, vai ser agora”. Eu convivi sempre com as pessoas do jornalismo, e alguns chegavam para mim e diziam: “Tarcísio, viaje no final de semana, saia do Recife ou vão o pegar”. Eu dizia: “rapaz, eu não vou sair. Eles não vão fechar a Livro 7, não vão chegar a esse ponto”.

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Realmente, era uma coisa que não tinha cabimento, teria uma repercussão muito grande. Mas eu cheguei a dar depoimento umas seis ou sete vezes. Depois eu até perguntei: “Mas por que vocês vêm logo aqui, hein?”, e disseram: “Porque a gente sabe que se tiver o livro aqui, vai ser aí”. Então, eu ia sempre dar depoimentos, mas preso eu nunca fui não, nem sofri nenhuma tortura física. Num lançamento de Marcos Freire, por exemplo, que era uma liderança, uma figura que empolgava, venderam-se, numa noite, quase 500 livros. Estavam lá todos os políticos de esquerda e você via, do outro lado da rua, pessoas fotografando. Diziam que eram jornalistas, mas eu conhecia todos os jornalistas. É claro que era a polícia. Toda vez que se fala na Geração de 65, o seu nome acaba sendo citado, porque você também abria espaço para esse pessoal na livraria. Queria que você falasse um pouco sobre essa relação. Dessa geração eu tive grandes amigos, e a maior parte é viva até hoje. Eu tive uma ideia recente, já como editor, de começar a publicar toda a Geração de 65. Estou fazendo uma antologia de Pernambuco. Já tem nomes como José Mário Rodrigues, Ângelo Monteiro, Domingos Alexandre. Essa geração viveu praticamente dentro da livraria. A minha ideia é fazer uma antologia do melhor que cada um da Geração de 65 escreveu. Esse é meu projeto. Não dá para dizer quando eu termino esse projeto, porque naturalmente vai depender de cada autor. Eu pretendo publicar entre doze a treze títulos. É uma geração que realmente marcou a minha vida, e toda a história da livraria está misturada com a da Geração de 65. Alguns deles foram do Ginásio Pernambucano, e eu também. Infelizmente, o mentor faleceu, que foi César Leal, que estava sempre conosco. É uma geração que marcou a literatura de Pernambuco e do Brasil, e também a história da Livro 7. São bons poetas e grandes amigos. E sobre o declínio da Livro 7, foi uma mudança de tendência do mercado mesmo, não é? Sim, surgiram os shoppings, e também o centro entrou em decadência. Basta dizer que, logo após encerrar a Livro 7, encerraram também

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a Síntese e a Saraiva. Essa é uma prova de que não era um problema só da Livro 7, mas do mercado. As três maiores livrarias estavam juntas, perto uma da outra. Eram as três maiores do Recife naquela época, e com pouco mais de um ano houve isso. Havia também o famoso Garcia Lacan, lojas de discos, restaurantes; pelo centro havia também os cinemas São Luís, Trianon, Art Palacio, Moderno, do Parque. Enfim, havia tudo ali perto, bem como a Faculdade de Direito. Mas com a decadência do centro, lojas fechando, centro sujo, inseguro, sem estacionamento… Tudo isso foi contribuindo para o final da Livro 7. Eu fiz o possível para segurar, mas chega um momento em que não dá para ficar dando murro em ponta de faca. E o livro que você está escrevendo? É certo que o título vai ser Nos tempos da Livro 7? São 50 histórias curtas. São causos, como dizia Paulo Cavalcanti. Histórias de eventos, comportamento de escritores, causos pitorescos, de minhas viagens, clientes que me ajudavam na fiscalização quando alguém queria desapropriar... Tem casos muito engraçados, mas são histórias curtas. A proposta é essa. A princípio, eu pensei em fazer uma história da Livro 7, mas quando eu vi em casa a quantidade de recortes de jornal e revistas sobre a história da livraria, percebi que era coisa para historiador. Então, quis ficar na memória, fui procurando na mente, fiz umas anotações, e está caminhando. ***

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FILOSOFIA {INTERMEZZO}

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E D U A R D O GIANNETTI Notas de uma (intensa) vida intelectual

O filósofo e economista Eduardo Giannetti da Fonseca esteve no Recife durante o 6.º Festival Recifense de Literatura, em setembro de 2008, e conversou com o Café Colombo no auditório da Livraria Saraiva, durante o lançamento do seu O livro das citações, publicado pela Companhia das Letras. Na entrevista, entre muitos temas, Giannetti fez uma crítica importante à produção filosófica feita pela academia no Brasil: “Eu acho que nos meios universitários hoje as pessoas fazem muito mais exegese e interpretação de autores do que pensam por conta própria, especialmente no que diz respeito à filosofia. O Brasil tem mais – ou quase só – história da filosofia”. Eduardo Giannetti é autor de diversos livros e artigos, tendo ganhado dois prêmios Jabuti: em 1994, com o livro Vícios privados, benefícios públicos? (Cia. das Letras, 1993), e em 1995, com As partes & o todo (Siciliano, 1995).

Café Colombo – Vamos começar esse bate-papo sabendo o seguinte: você leu tudo isso mesmo que é citado no seu livro? Eduardo Giannetti – Eu li, e eu li bem mais do que isso – isso aqui é uma fração pequenininha do que eu venho lendo, só que não foi ontem nem anteontem que eu comecei. Eu comecei esse trabalho aqui (sem saber que o faria, remando de costas para o meu objetivo) 30 anos atrás. Eu tinha mais ou menos a idade de vocês (é, eu já tive essa idade), e percebi que, quando eu estudava para a faculdade, lia os livros e ficava muito frustrado porque pouco tempo depois eu já não lembrava muito bem o que eu tinha lido. Tentava recuperar na mente o que tinha assimilado e me dava conta de que era pouco. Isso foi me deixando muito incomodado e resolvi fazer uma autodisciplina: tudo que eu lesse que me motivasse e me despertasse certo interesse ou certa admiração eu ia ter que anotar por escrito, ou parafraseando ou reproduzindo trechos que me parecessem memoráveis. E fiz isso sistematicamente ao longo de 30 anos. É lógico que àquela altura eu nunca imaginei que lá na frente, um dia, eu faria um livro das citações, mas quando eu estava escrevendo Felicidade, em 2001, estava muito aquecido nas minhas anotações, em cadernos, e caiu a ficha: poxa, tenho material suficiente aqui para organizar em assuntos e fazer coleções de citações em torno de assuntos... Eu posso começar com uma coleção, que será o meu prefácio, sobre a inutilidade dos prefácios. Foi uma das coisas que imediatamente me ocorreu:

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meu prefácio vai ser uma coleção de citações sobre a inutilidade dos prefácios. E aí eu comecei a elaborar os temas que eu gostaria de reunir no livro das citações, e aqueles para os quais eu tinha uma coleção que eu considerava capaz de sustentar um capítulo do livro. Acabaram resultando 36 capítulos, ou seja, há 36 temas e, para cada um deles, uma coleção de citações encadeadas, que são resultado de uma leitura que eu venho fazendo nesses 30 anos a partir dos mais diferentes campos do conhecimento. Isso aqui, eu diria então, é uma fração muito pequena do que eu anotei, é o que eu achei que dava para organizar no que eu espero que não seja apenas uma coletânea de títulos e frases espirituosas, mas seja uma coleção estruturada de passagens em que uma dialoga com a outra. Eu procurei fazer que cada citação dialogasse com a anterior e com a posterior. Então eu fui reunindo os temas, e os 36 assuntos estão aí. A fluidez com que você organizou essas várias citações deixa a impressão de que Eduardo Giannetti “falou com a boca dos outros”. Uma parte sempre dialoga com a seguinte, tanto no começo, no prefácio, quanto no final. O livro é muito bem-amarrado e parece que você consegue exprimir tudo o que você quer a partir dos outros. Você teve essa intenção? Sobre o meu critério para selecionar essas passagens eu devo dizer que não concordo com tudo o que eu cito. Tem algumas passagens de que eu frontalmente discordo – inclusive, algumas contradizem frontalmente a anterior ou a posterior, então eu não posso concordar com tudo. Agora, o critério que eu usei foi o seguinte: uma passagem, para estar no livro, tem que me passar uma sensação de beleza, de expressividade e de admiração. Eu não coloquei nenhuma citação aqui que não me despertasse quase que uma ponta de inveja por eu não tê-la escrito. É um pouco aquela citação que eu faço do Sêneca: “o que quer que um outro disser bem, é meu”, mesmo que eu não concorde. “Que outros se jactem das páginas que têm escrito. A mim me orgulham as que eu tenho lido.” É uma citação do Borges que eu acho que reflete bem também o espírito do livro.

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O prazer da escrita é maior que o da leitura? Essa é uma grande pergunta. Eu acho que o prazer da escrita é uma coisa que vem com o aquecimento do trabalho, para mim pelo menos – outras pessoas devem ter uma experiência completamente diferente da minha. No início é muito penoso, até o momento em que o trenzinho sai da estação e você pega o tom da coisa, vislumbra mais ou menos o caminho que você quer seguir. A partir desse momento, é um prazer, realmente; eu diria até superior ao da leitura, nos seus melhores momentos. Mas ele tem que ser encontrado e trabalhado. O caminho até ele não é um caminho normalmente fácil para mim. Qual seria o pensador mais citado nesse livro? Seria Nietzsche? Ah, não tenho a menor dúvida. Quando eu terminei o livro, aproveitando as vantagens da tecnologia, eu resolvi fazer umas estatísticas de autores. Na hora em que fiz a contagem do Nietzsche, fiquei com vergonha. Eu falei: tem demais, não pode ser! Uma vergonha... Aí eu vi um dilema: será que eu vou cortar, só porque eu me envergonhei? Ou será que eu vou respeitar o que foi a minha escolha sem essa preocupação? E eu optei pela segunda alternativa. Eu acho que não era justificável cortar só porque eu me surpreendi e senti certo constrangimento. Realmente tem uma overdose de Nietzsche aqui, mas até porque... Ele é um excelente frasista... É! O trabalho dele se presta muito a uma reprodução nesse formato. Seria muito difícil fazer isso com Kant, Hegel e outros autores, mas Nietzsche já tem um grau de acabamento literário que realmente pede para ser citado, e não é à toa que ele frequenta com tanta desproporção as páginas desse livro. Agora eu queria esclarecer também que não é qualquer Nietzsche. Ele é um dos autores que tenho estudado há décadas, e a quem não me canso de voltar. O Nietzsche que hoje me impressiona – e que depois que eu me aprofundei um pouco no estudo de sua obra começou a me impressionar cada vez mais – é o chamado Nietzsche iluminista, autor de três livros: Humano, demasiado humano; Au-

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rora; e Gaia ciência. Eu não vejo no Nietzsche jovem, ainda muito sob a influência do Wagner e do Schopenhauer, e nem no Nietzsche do delírio, que é o Nietzsche de depois do Gaia ciência, quando começa o Zaratustra etc., a mesma qualidade, a mesma acuidade de análise e percepção que encontro no Nietzsche intermediário, que é autor dessas três obras que eu considero realmente únicas, no século XIX pelo menos. “Há abundância de comentários e escassez de autores”, ou seja, muitos interpretam, mas poucos escrevem. Você concorda com isso? Ah, eu concordo. Eu acho que nos meios universitários hoje as pessoas fazem muito mais exegese e interpretação de autores do que pensam por conta própria, especialmente no que diz respeito à filosofia. O Brasil tem mais – ou quase só – história da filosofia. Você não encontra autores que pensam com independência, por sua conta e risco, as grandes questões da filosofia; você encontra exegetas, que fazem interpretações, análises, histórias da filosofia. Eu acho que isso é um problema, uma espécie de academicismo, de escolasticismo que facilita um pouco o trâmite universitário – porque é muito mais difícil analisar uma obra original do que um comentário –, mas há uma perda. Eu comecei a me dar conta disso quando passei um período longo na Inglaterra, e eu me dei conta de que o que eu estudava como filosofia no Brasil eles lá não considerariam no departamento de filosofia; seria uma outra coisa, como “História das ideias”. Em filosofia, eram filósofos que pensavam diretamente sobre problemas. Tem um grande filósofo americano, talvez o maior filósofo em língua inglesa vivo, chamado Thomas Nagel, que tem um livro de introdução à filosofia no qual ele não cita um único filósofo: ele delineia um problema e propõe uma reflexão. É lógico que essa reflexão incorpora o pensamento do passado, mas é uma reflexão que parte dele. É uma maneira que eu acho muito interessante de trabalhar filosofia: pensar diretamente os problemas. Mário de Andrade tem uma frase que não entrou no livro, mas poderia entrar: “o vício ocupacional do intelectual brasileiro é o comentário sedentário de doutrinas alheias”. A gente precisa tomar cuidado com isso.

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Qual o seu objetivo principal ao publicar um livro de citações? Este livro foi escrito com o intuito de provocar o público jovem universitário a ir atrás desses autores e se interessar por eles. A minha maior utopia de autor, ao publicar essa obra, é despertar nos jovens o apetite por mais: que eles se deparem com passagens que chamem a atenção, que até se deslumbrem, e fiquem curiosos para saber de onde saiu isso, quem é esse escritor que intriga, que desperta a vontade de conhecer. Então, eu entendo esse livro como uma espécie de antessala, um aperitivo para o prato principal, que seria a leitura dos originais. Como professor universitário há mais de 20 anos, eu tenho uma sensação muito forte de que está cada vez mais difícil conseguir fazer com que os jovens leiam concentradamente os clássicos. E não é só minha essa percepção, ela é compartilhada pelos meus colegas em vários departamentos, em várias faculdades. A nova tecnologia, o estilo de vida, o bombardeio de estímulos que o jovem recebe ao longo de um dia vão tornando cada vez mais exíguo o espaço interno dele para uma leitura reflexiva, que exige uma postura de distanciamento, de concentração, de estar realmente focado naquilo que está sendo feito. Esse livro é parte de uma guerrilha com esse público jovem universitário que está se distanciando cada vez mais da experiência do contato com o pensamento dos clássicos da tradição humana, da tradição ocidental principalmente, em filosofia, economia etc. Então, se esse livro tem alguma razão de existir, se for cumprir algum papel nesse jogo, seria exatamente o que você falou: despertar na mente dos jovens pelo menos a curiosidade por esses autores e por essas obras que são citadas. Há uma frase de São Jerônimo que se relaciona com algo que a gente discute muito em economia. Ele diz: “Toda riqueza provém do pecado. Ninguém pode ganhar sem que alguém perca. Se o pecado não foi cometido pelo atual proprietário da riqueza, então a riqueza é produto do pecado cometido por seus antepassados”. É muito comum na nossa tradição católica essa vergonha de acumular riqueza, assim como o empreendedorismo não é uma coisa bem-vista, o que provém muito dessa visão da economia como um jogo de soma

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zero, na qual se entende que “se tem alguém ganhando é porque tem alguém perdendo”. Queria que você comentasse um pouco isso, já que essa visão ainda é muito presente no Brasil... Tem dois capítulos que eu acho que têm mais a dizer ao Brasil. Dois capítulos em que, embora não haja a presença de autores brasileiros, os pensamentos reunidos falam muito de perto para nós. Um deles é “A civilização entristece”. Muitos filósofos, economistas e pensadores apontando para uma espécie de trade off, pra usar o jargão dos economistas: à medida que se avança no eixo do processo civilizatório, vai se esgarçando certa alegria de viver, vai se perdendo certa afetividade, certa espontaneidade, certo prazer na vida. É o que o John Stuart Mill chama, numa passagem curiosa, “os lugares onde o mero existir é um prazer”. Imagina alguém escrever isso! O processo civilizatório minou a base dessa experiência de que a mera existência possa ser prazerosa. Você requer justificações, lógica, segurança etc. Eu acho que esse capítulo tem muito a nos dizer – e o Brasil é uma espécie de contraponto a isso, porque o meu entendimento é que o projeto utópico brasileiro seria conquistar as benesses da civilização sem o custo implícito que é o mal-estar na civilização, para usar o Freud. Seria a civilização sem o mal-estar. É lógico que a esse sonho corresponde um pesadelo, ou seja, nós que buscamos a civilização sem mal-estar podemos terminar com o mal-estar sem a civilização. Pode acontecer e seria terrível. Eu acho que tem essa dualidade. E há o outro capítulo, que foi o que mais me deu alegria de fazer. Chama-se “Efeitos morais e intelectuais dos trópicos”. O que ocorre com o ser humano submetido aos excessos de luz, calor e exuberância da natureza tropical? É quase inacreditável o que certos pensadores fantasiaram a respeito da condição humana no mundo tropical. Vamos ao Montesquieu, O espírito das leis: “O calor do clima pode ser tão excessivo que o corpo perde todo o vigor. A prostração alcança, dessa maneira, até mesmo o espírito. Nenhuma curiosidade ou nobreza de propósito, nenhum sentimento generoso. Todas as inclinações se tornam passivas e a preguiça se confunde com a felicidade”. Olha que coisa curiosa o diálogo disso com um filósofo francês do século XVII,

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chamado Fontenelle, que tem o livro Diálogo sobre a pluralidade dos mundos, em que um filósofo conversa com uma marquesa, uma aristocrata francesa, sobre o sistema solar e sobre a constituição dos planetas. A certa altura, nesse diálogo (que eu acho muito pitoresco), o filósofo diz: “É certo, disse eu” – o filósofo – “à Marquesa” – curiosa sobre como é a vida nos outros mundos do sistema solar – “que Vênus gira em volta de si mesma, mas não se sabe quanto tempo leva e, portanto, nem a duração dos seus dias. Quanto aos anos, não duram mais do que cerca de oito meses, que é o tempo que leva para dar a volta em torno ao sol. O clima em Vênus é muito propício aos amores. Vênus está mais perto do sol e recebe luz mais viva e mais calor. Está a quase dois terços da distância entre o céu e a Terra. – Agora vejo, interrompeu a marquesa, como são os habitantes de Vênus: eles se parecem com os mouros de Granada, povo moreno, tisnado pelo sol, pleno de espírito e ardor, sempre amoroso, fazendo versos, amando a música, todos os dias inventando festas, danças e torneios. – Permiti que vos diga, madame” – responde o filósofo à marquesa – “que não conheceis muito bem os habitantes de Vênus. Nossos mouros de Granada, ao lado deles, não passariam de lapões e groenlandeses pela frieza e estupidez. Mas como serão os habitantes de Mercúrio?” – agora vai esquentar! – “Estão duas vezes mais perto do sol do que nós! Devem ser loucos de tanta vivacidade! Creio que não têm memória, não mais do que a maioria dos negros” – nossa... – “Nunca tecem reflexões sobre coisa alguma, agem apenas a esmo e por repelões. Por fim, creio que é em Mercúrio que ficam os manicômios do universo”. Aí vem o Kant e diz que quanto mais perto o local de moradia em relação ao sol, menos aprimorado intelectual e moralmente é o ser humano. A isso ele dá um caráter de lei científica, e por aí vai; tem Hegel, tem Marx… Sim! O Marx está nessa linhagem. Eu não vou ler agora porque já li demais. Ah, e o Marx? Vamos ao Marx. Esses alemães leram muito um cara que veio aos trópicos, o Alexander von Humboldt, que fez descrições realmente im-

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pressionantes e que marcou todos eles. Mas o Marx diz o seguinte: “O modo de produção capitalista pressupõe o domínio do homem sobre a natureza. Uma natureza excessivamente pródiga mantém o homem preso a ela como uma criança sustentada por andadeiras” – vocês já viram aquelas crianças que ficam sustentadas por cordões? – “ela não lhe impõe a necessidade de desenvolver-se. A pátria do capital não é o clima tropical, com sua vegetação exuberante, mas a zona temperada”. Ou seja: o mundo tropical mantém o homem infantilizado, como se fosse uma criança sustentada por andadeiras. Por isso o capitalismo não surgiu nos trópicos, mas na zona temperada. Há um único músico popular brasileiro que eu incluí no livro das citações, porque a essa eu não resisti. É o Noel Rosa, que está nesse mesmo capítulo. “O orvalho vem caindo. Minha terra dá banana e aipim, meu trabalho é encontrar quem descasque por mim.” No capítulo “A vida plena e o medo de ser feliz”, chama a atenção a frase de George Bernard Shaw: “Existem duas tragédias na vida. Uma é não conquistar o que seu coração deseja. A outra é conquistar”. Você tem um livro Felicidade, um diálogo platônico de um grupo de amigos conversando sobre o tema... É, essa citação pertence a uma linhagem, é uma espécie de cluster. Tem muitas citações na mesma região e dizendo coisas muito parecidas. A minha preferida não é a do Shaw, é a do Oscar Wilde. “Quando os deuses querem nos punir eles atendem às nossas preces.” O que está por trás disso? Uma ideia econômica: o bem que você mais valoriza é aquele que lhe falta; no momento em que você o conquista, ele perde o atrativo, perde o valor. O que o Wilde está dizendo é que, quando os deuses querem nos punir, eles mostram como era desprovido de valor tudo aquilo que nós almejávamos e desejávamos. É um movimento muito comum na vida humana, superestimar o valor daquilo de que você carece. Esses autores, nessa linhagem de citações, estão fazendo o mesmo alerta: cuidado com aquilo que você deseja e com aquilo por que você reza. É o medo de ser feliz.

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É o que no popular também se diz, em “a grama do vizinho é sempre mais verde”. Verdade. Essa não está no livro, mas é da mesma linhagem. [risos] Há outra citação no livro que fala sobre a mania de citar, e também do perigo envolvido nisso: “Envenenar com a própria peçonha o mais inocente dos pensamentos”. Esse é o perigo de se usar de forma equivocada ou com interesse apenas no seu próprio conceito uma citação que não tem necessariamente ligação ou verdade com aquilo que você mesmo diz. Existe certo vício – é quase uma coceira – para quem trabalha com ideias. Você está sempre buscando palavras que reforcem, nas palavras do autor, aquilo que você quer atribuir a ele. E tem um capítulo inteiro, “Interpretação dos clássicos”, em que eu reproduzo comentadores relatando sequências enormes de interpretações encontradas que foram feitas sobre o mesmo autor. Eu acho que a citação pode ser usada de maneira inteligente e com certa parcimônia, mas a proliferação das citações e o uso das citações, como qualquer coisa na vida, podem ser abusos também. Eu confesso certa incontinência para citar. ***

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A L F R E D O M A R C O S Uma filosofia da ciência para o nosso tempo

Nesta entrevista, realizada em 2013, o filósofo espanhol Alfredo Marcos, nascido em León, em 1961, apresenta os fundamentos históricos e filosóficos de uma concepção ampliada de ciência, e mostra como funciona, na prática, sua aplicação concreta em diferentes âmbitos: comunicação da ciência, investigação clínica, política ambiental, poética da ciência etc. Alfredo Marcos, que é doutor em filosofia pela Universidade de Barcelona e catedrático de Filosofia da Ciência da Universidade de Valladolid, é autor de Pierre Duhem – La filosofía de la ciencia en sus orígenes (Barcelona, 1988), Aristóteles y otros animales (Barcelona, 1996), Hacia una filosofía de la ciencia amplia (Madrid, 2000), El testamento de Aristóteles (León, 2000), Filosofía de la ciencia – Nuevas dimensiones (México, 2010).

Café Colombo – Em Ciencia y acción: una filosofía práctica de la ciencia, você apresenta uma visão da ciência como ação humana e convida a uma compreensão ampliada em relação ao conhecimento científico. Em que consiste sua perspectiva? Alfredo Marcos – Costuma-se pensar que a ciência é principalmente aquilo que aparece nos livros e nos artigos, as palavras e as fórmulas. Mas, atrás desses resultados há muitas ações humanas. Gente que observa, que ensina, que calcula, que viaja, que dialoga, que imagina e cria… A ciência é composta pelos resultados, mas também pelo conjunto de ações humanas que os produzem. Os filósofos da ciência durante muitos anos estiveram cegos ante esta realidade; observavam somente os resultados da ciência, suas teorias, mas não queriam ver as ações, as práticas científicas. Por isso, a filosofia da ciência era muito incompleta. Mas há aproximadamente duas décadas ela vem se ampliando muito. Agora se incluem também reflexões éticas, políticas, poéticas, pedagógicas, retóricas, comunicacionais… Ao pensar a ciência como ação humana, a filosofia da ciência se abriu a um novo mundo de questões. A ideia que as pessoas comuns têm da ciência costuma estar equivocada? Há duas imagens muito errôneas e bastante comuns da ciência: a imagem cientificista, segundo a qual a ciência é o único modo de se

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obter conhecimento e a única esperança de bem-estar para a humanidade; e a imagem anticientífica, segundo a qual a ciência é a fonte de todos os nossos males. O cientificismo causou muito danos, e produziu expectativas falsas. Depois veio a decepção e, após a decepção, a atitude anticientífica. Assim, portanto, o cientificismo conduz à anticiência. As ideias que temos da ciência nos vêm dadas através do sistema educacional, através de algumas obras de literatura e cinema, e através dos meios de comunicação. Nessas três frentes, devem ser melhoradas as técnicas comunicativas e os conteúdos. Devem ser evitadas as imagens simplistas e exageradas da ciência. É preciso humanizar a imagem da ciência. É preciso tratar a ciência como uma parte mais da ação humana, como tratamos a arte, o esporte ou a religião. Merece respeito por suas conquistas, e deve ser observada de modo crítico, como fazemos com as demais atividades humanas. Bertrand Russel dizia que aquilo que o homem busca realmente não é o conhecimento, mas a certeza. O grande projeto da filosofia e da ciência modernas, relacionado diretamente com a busca da certeza, fracassou? Um dos projetos característicos da modernidade foi justamente a busca da certeza, já desde Descartes. Sim, esse projeto fracassou. Hoje sabemos que mesmo nosso melhor conhecimento contém doses de incerteza. Não há método que garanta a certeza do conhecimento, tampouco o método científico. Temos que aprender a viver com isso. Neste panorama pós-moderno, a ciência e a filosofia são, ambas, fontes de conhecimento respeitáveis, e não são as únicas. Relacionam-se em pé de igualdade. Dialogam. Mantém uma atitude de respeito mútuo. Isso significa que também fracassou o projeto neopositivista de reduzir a filosofia a uma mera análise linguística da ciência. Karl Popper e Thomas Kuhn produziram uma mudança profunda em nossa forma de pensar. Eles nos ensinaram que a certeza é inalcançável, e que a ciência é ação humana e, como tal, submete-se à mesma falibilidade que o resto das ações humanas. Se a ciência já não se identifica com o conhecimento certo, como pretenderam os modernos, é porque já estamos em

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um contexto de ciência pós-moderno. A nova atitude de humildade intelectual, a nova consciência de incerteza e de falibilidade, pertence a uma atmosfera intelectual distinta da que se respirava nos tempos modernos, nos tempos do “orgulho da razão”. É preciso repensar o conceito de racionalidade? Sim, certamente. Devemos abandonar o conceito logicista e algorítmico de racionalidade. Ser racional não consiste em seguir um algoritmo ou um método. Por essa via se chega ao absurdo de localizar a racionalidade lá onde é prescindível a presença humana. Tampouco nos serve hoje uma ideia meramente instrumental do racional, segundo a qual ser racional consiste em encontrar os meios apropriados para qualquer fim, seja este bom ou mau. Por esse caminho se pode atribuir racionalidade inclusive ao maior dos criminosos. Eu endosso um conceito de racionalidade prudencial. Ser racional consiste em ser prudente, quer dizer, em orientar cada uma de minhas ações de modo sensato em direção a uma vida boa. O fim tem que ser este: a vida boa, a felicidade humana. De outro modo a ação não será racional. Claro que a ciência faz importantes contribuições nesse sentido, mas não tem o monopólio do racional, apoiando-se antes ela mesma na sensatez, na prudência, no senso comum. Qual a diferença entre verdade e certeza? Se eu digo que agora está chovendo em Manaus e resulta que sim, que está chovendo em Manaus, então o que eu disse é verdade. Corresponde-se com os fatos. Mas o afirmei sem estar absolutamente seguro. Minha afirmação pode ser verdadeira, mas careço de certeza. E, ao contrário, posso afirmar com perfeita convicção algo que resulte ser falso. A verdade exige correspondência entre o que penso ou digo e a realidade. A certeza é um estado subjetivo de segurança, que não serve nem como definição nem como critério de verdade, ainda que possa servir como sintoma. Descartes preferia a certeza à verdade; Popper, o contrário. A consciência atual da incerteza nos exige que modulemos a confiança coletiva na ciência. Nunca será uma confiança cega, mas crí-

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tica. Os cientistas, como o resto dos humanos, merecem confiança às vezes, e outras vezes, não. Nossa responsabilidade ineludível consiste em distinguir a partir da prudência. O positivismo lógico repudiava radicalmente o uso da linguagem metafórica no âmbito filosófico e científico. Para você, qual é o papel da metáfora na ciência? A ciência requer criatividade e imaginação em quase todas as suas fases. Ela se parece mais à arte do que costumamos acreditar. E eu diria que a forma normal de criatividade na ciência é a metaforização. Contudo, uma vez produzida a metáfora, os caminhos da arte e da ciência divergem. O artista se lançará na busca de outra metáfora nova, enquanto o cientista buscará obter todas as consequências possíveis daquela que criou. A dicotomia entre linguagem metafórica e linguagem literal não é correta nem iluminadora. Toda nossa linguagem é metafórica em maior ou menor grau. As metáforas têm sua própria vida, e ao longo da mesma podem ir se convertendo em linguagem convencional. Assim, portanto, a distinção correta é a que se estabelece entre linguagem metafórica e linguagem convencional. E é uma mera distinção de grau. Isso afeta a ciência. Alguns pensaram que a ciência era o território da linguagem literal, enquanto a arte ou a metafísica empregavam linguagem metafórica. Não é assim. A ciência, como a arte ou a filosofia, cria metáforas. E as boas metáforas podem ir se convertendo gradualmente em convenções. Em Ciencia y acción você desenvolve o conceito de “descobrimento criativo”. Você acha que essa ideia poderia ser utilizada no âmbito da crítica de arte e, mais particularmente, na crítica literária? Descobrir e criar são normalmente considerados termos antitéticos. Ou descobrimos o que existe ou criamos o que antes não existia. No entanto, eu creio que sejam compatíveis. A natureza faz descobrimentos criativos constantemente. Quando faz brotar uma planta de uma semente, descobre diante de nós todas as potencialidades que havia na semente, que estavam nela como possibilidade. Descobre-as criativa-

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mente, atualizando-as, e põe ante nossa vista o talo, as folhas, as flores e frutos. Nós também fazemos descobrimentos criativos. Por exemplo, na força do vapor há muitas possibilidades. Com a máquina de vapor as atualizamos e as descobrimos criativamente. E não só a técnica, também a arte faz descobrimentos criativos. Podemos entender a arte como uma exploração de espaços de possibilidade, de possibilidades reais, mas não evidentes, que só são descobertas, só saem à luz, graças ao gênio e ao trabalho criativo do artista. Acontece assim nas artes plásticas e cênicas tanto como na música ou literatura. O conceito de “descobrimento criativo”, ou seu sinônimo, “verdade prática”, pode ser muito potente nas mãos da crítica de arte e, em particular, da crítica literária. A crítica poderá dar ênfase aos espaços de possibilidade que abre a obra de arte, em seu valor não somente estético, mas também epistêmico (na realidade ambos andam juntos), em sua capacidade de pôr ante nossos olhos, para nos fazer viver como em ato, o possível. O âmbito da moral deve ser considerado na filosofia da ciência? Evidentemente, no momento em que vemos a ciência como ação humana, os problemas morais se colocam diante de nós. A ciência, em todas as suas fases, desde a investigação até o ensino e a aplicação, deve ser realizada conforme parâmetros morais adequados, levando sempre em conta de um modo muito especial a dignidade das pessoas. A ética da ciência é, portanto, parte imprescindível da filosofia da ciência. Como toda atividade humana, a ciência deve estar guiada pela prudência. Ou, dizendo de outra maneira, deve estar orientada pela sensatez, pelo senso comum. As ações científicas devem se inscrever no conjunto da vida humana de modo que conduzam ao que os clássicos chamaram “vida boa” ou felicidade. O conceito aristotélico de prudência (do grego phronesis) é imprescindível hoje em dia. Necessitamos dela para evitar o movimento pendular que já nos levou desde as luzes da orgulhosa razão até as sombras do niilismo. Essa tese não é nada original. Autores como Hans-Georg Gadamer ou Hans Jonas já nos haviam alertado há décadas. E espero que mais gente vá se somando.

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Qual é a atitude mais prudente em relação ao tão debatido problema das mudanças climáticas? O mais urgente é mitigar as pressões ideológicas que rodeiam essa questão. Alguns cientistas, inclusive, chegaram a maquiar dados para pressionar mais a população mediante o alarmismo. É importante também evitar o complexo de culpa que está se instalando na população. Toda a questão da mudança climática está rodeada de incertezas. Não sabemos a que ritmo está se produzindo, não sabemos com segurança as causas, não sabemos com certeza quais serão suas consequências, nem sabemos que resultados terão as medidas que se tomem. Tampouco sabemos como evoluirão nossas tecnologias – as de produção energética e as de recaptação de gás carbônico, por exemplo. Deve-se aceitar que nos movemos em um oceano de incertezas. Nesta situação o mais prudente é atuar contra a mudança climática, sim, mas na medida em que ditas atuações não estrangulem o desenvolvimento nem suponham uma carga intolerável para a população. Por exemplo, parece aconselhável uma leve redução das emissões de gases de efeito estufa, assim como a ênfase na investigação sobre energias não emissoras. Que tipo de preparo filosófico e científico o aluno de jornalismo deve receber na universidade para enfrentar temas como esses e divulgá-los da melhor maneira possível? Creio que o jornalista científico deve receber uma formação em duas frentes. Em primeiro lugar, deve ser capaz de entender a ciência. Quer dizer, deve entender os textos científicos e as atividades executadas pelos agentes da ciência. Isso inclui um nível intermediário de formação científica e certos conhecimentos de filosofia, história e sociologia da ciência. Por outro lado, ele tem que receber a formação de comunicador. Quer dizer, deve assumir a deontologia e as técnicas retóricas próprias do jornalista. Isso inclui a visão crítica e a necessidade de averiguar as fontes. Também na ciência existe a necessidade de contrastar as informações e comparar fontes. Por isso, o jornalista deve trabalhar em frentes: na fidelidade aos conteúdos científicos e na eficácia de sua comunicação ao público. É uma questão de equilíbrios, nenhum dos

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dois valores pode ser desprezado. A filosofia da ciência, num nível elementar, deve ser parte da formação do jornalista científico. Os filósofos da ciência nos ensinaram que a ciência é atividade humana e social.  O jornalista que aprende isso sabe que tem que informar não somente sobre os resultados e conquistas da ciência, mas também sobre os processos e, inclusive, sobre os fracassos (há investigações fracassadas em que foi investido muito dinheiro de todos). Nenhum jornalista esportivo se conformaria em comunicar só os resultados dos eventos. É preciso informar também sobre o processo, sobre os eventos mesmos. No jornalismo científico é a mesma coisa. Por outro lado, a filosofia da ciência atual ensina que a ciência não fornece certezas absolutas e definitivas. O jornalista que aprende isso tratará a informação científica da mesma forma crítica com que trata a informação política, contrastará as informações, comparará as fontes. Além disso, o jornalista científico com certa formação filosófica saberá que é necessário e legítimo fazer jornalismo científico de opinião. A filosofia da ciência, portanto, pode fazer valiosas contribuições ao jornalismo científico. Pode-se dizer que você propõe uma nova visão humanista da ciência? Durante algum tempo se pensou que a vida humana deveria se tornar mais científica. Isso nos daria uma melhor visão do mundo e um maior bem-estar. Em certa medida, é assim, ninguém poderia negar. A ciência nos ensinou muito e melhorou nossas vidas. Mas também é certo que o conhecimento científico tem seus limites próprios, e não serve, por exemplo, para abordar questões de grande importância relacionadas com o bem e o mal, com a beleza ou com o sentido da vida, para citar algumas. Não são defeitos da ciência – atenção –, são simplesmente seus limites próprios. Por outro lado, no que diz respeito ao bem-estar, a história nos mostra que houve progressos, mas também que foram criados novos problemas. Creio que o balanço é positivo, mas isso não nos deve impedir de ver os problemas gerados pela aplicação da ciência. Nem todos os problemas do ser humano, epistêmicos e práticos, solucionam-se a partir da ciência. A ciência, inclusive, pode

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gerar distorções epistêmicas e problemas práticos. Um modo de evitá-los consiste em recordar sempre e em cada momento que a ciência é somente uma a mais entre as atividades humanas. Ela deve dialogar com os demais âmbitos da vida humana e respeitá-los. Em resumo, se a tarefa moderna foi fazer a vida humana mais científica, nossa tarefa como pós-modernos consiste em humanizar a ciência. ***

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POLÍTICA, ECONOMIA & S O CI EDADE

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R O B E R T O MAGA LHÃ E S Memórias políticas de um conservador

Nascido em 1933, no município de Canguaretama-RN, Roberto Magalhães foi governador de Pernambuco de 1983 a 1986 e prefeito do Recife entre os anos de 1997 e 2000, além de ter ocupado o cargo de deputado federal por quatro legislaturas. No livro Memórias – as virtudes do tempo, o político reflete sobre sua vida, a família, a política e o Brasil. A obra narra a vida de Magalhães desde as raízes rurais no Sertão até a trajetória política e jurídica que trilhou na capital pernambucana. De forma muito franca, o político falou com naturalidade ao Café Colombo, em janeiro de 2013, sobre as várias polêmicas em que se envolveu, e disse que sua maneira de agir está de acordo com sua rigorosa – e conservadora – formação familiar: “Eu tive uma educação eminentemente sertaneja. E sertaneja de pais que nasceram no século XIX”.

Café Colombo – Seu livro traz vários ensinamentos para o público em geral e, particularmente, para jovens que aspiram à vida pública, à carreira política. Como surgiu a ideia de escrever esse livro, e o que o leitor deve esperar? Roberto Magalhães – A sugestão partiu principalmente de minha esposa. Eu fui o primeiro governador eleito pelo voto direto depois de 1964, em 1982, e assumi em 1983. Enfrentei aquela oposição muito vigorosa do PMDB e, depois, de um modo que eu diria, muitas vezes, cruel, do PT. Evidentemente, vivi choques e controvérsias... Então eu precisava escrever, precisava apresentar as minhas versões para o entendimento da história e dos fatos que ocorreram. Depois eu pensava também nos meus filhos, mas, sobretudo, nos meus netos e também nos eleitores, porque, imagine, eu tive 16 anos de mandato como deputado federal (mas só exerci 14, porque, tendo sido eleito prefeito do Recife, tive que renunciar a dois, para assumir o cargo). E imagine que, nos dois primeiros, eu tive votos do interior com o apoio de prefeitos ou de lideranças, mas nos dois últimos mandatos eu não tive um prefeito sequer me apoiando. Porque custa caro… É caro comprar as bases, não é? É. Quanto custa uma banca de vereadores? Vamos dizer que o prefeito não queira nada do deputado – se bem que ele vai ter que querer porque, se você tem um município, você tem obrigação de participar

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da eleição para prefeito, da sua reeleição… Eu não tive isso nas duas últimas vezes. Só o voto urbano, voto de opinião… É. Então, por tudo isso, resolvi escrever. Foi uma experiência muito gratificante, apesar de penosa, porque eu tinha que dizer muita coisa, mas eu tinha que dizer de uma maneira sintética. Esse livro tem 350 páginas (se tivesse 500 ninguém ia nem abrir). Eu costumo dizer: “olhe, faça o seguinte, leia o sumário, que é muito detalhado, e então vocês vão escolhendo as partes de vida”. E [a organização] não é nem pelas partes da minha vida, mas pelos cargos que ocupei, pelas lições que eu tive, pelos episódios políticos mais importantes em que eu me envolvi. E também aproveito para falar um pouco de minhas principais obras. O senhor fala muito da sua origem, e que a sua formação o ajudou a moldar os valores que, para o bem ou para o mal, formaram o seu temperamento, as suas qualidades e o que seus adversários consideravam seus defeitos. Como essa origem e esses valores afetaram sua trajetória política? Eu tive uma educação eminentemente sertaneja. E sertaneja de pais que nasceram no século XIX. Claro que os filhos todos nasceram no século XX, mas nasceram lá. A educação era muito rigorosa, sobretudo na questão da honra pessoal. Isso na política é uma coisa difícil de conciliar, daí eu ter tido aquela reação, dada a provocação que fizeram na minha eleição para prefeito. Houve também o episódio da banana... Eu perdi a eleição ali. Atravessaram a jamanta e o governador estava ao meu lado, Jarbas Vasconcelos. Mas isso não é o pior… E o caso do Jornal do Commercio… Não, não é isso não. É o seguinte: é que, além de fazer isso, mandaram a canalha; digamos assim, a canalha.

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O senhor no debate falou “uma patota”... É uma patota, mas é uma canalha. Mandaram o que tinha de pior no PT para nos provocar. Eu estava com minha mulher e mandei meu pessoal descer na tapa. Eles apanharam, apanharam muito, mas muitos correram. E, no final, a gente tem que tomar um whisky, porque você não aguenta uma passeata debaixo de sol, duas ou três horas, sem tomar um whiskyzinho. É o que Lula sempre diz também… [risos] Olha, eu bebo muito moderadamente. O senador Armando Monteiro diz que eu sou a pessoa que ele conhece que mais gosta de whisky, mas que bebe pouquíssimo. Porque eu gosto da bebida, mas não de ficar bêbado. Quando muito aquela “euforia”, e só. Naquela ocasião, a revolta da agressão levou àquela situação. Agora, tudo aquilo rigorosamente planejado. Quando eu cheguei para entrar na caminhonete, estava assim de jornalistas, moças, mulheres. Eu pensei: “opa, esse não é o meu carro”. Tenho tantos anos de política, eu nunca fiz uma passeata com jornalista junto. Não existe isso, porque ali a gente tem franca intimidade, para tomar whisky, para fazer comentários sem nenhuma limitação, e ali só deve ter gente íntima. O entourage da campanha. Sim, o entourage. Então, para não mandar descer jornalista, eu disse: “eu vou para a outra, Jarbas fica com vocês aí e eu vou para a outra, vou pegar a outra caminhonete”. “Não, não, a gente sai”, resolveram sair. Já era para registrar as coisas que não tinham sido. A outra foi pior, sob certos aspectos. Naquela todo mundo achava que eu tinha posto fora a campanha. A outra foi pior no seguinte sentido: aquelas criações de Brennand que estão ali no porto, no Marco Zero… O Parque das Esculturas. Exatamente, sobre os arrecifes. Então, o que aconteceu? Inventaram que a minha mulher, sendo protestante, tinha me levado a sabotar o projeto, quando, na realidade, eu levei o projeto completo, com Jarbas, para

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o Ministro da Cultura, para pedir urgência na aprovação. De todo ele. E mais: cansei de assinar, com Jarbas, ofícios solicitando recursos para aquela obra. Porque foi uma iniciativa de um grupo de pernambucanos liderados por Gustavo Krause, pelo ex-secretário de planejamento do governo, o arquiteto Paulo Roberto. E então o Brennand começou nos jornais etc. Fez uma carta que não era para ninguém, uma carta aberta acusando sabotagem. E não se dirigiu a mim. Então um dia o Zé Paulo Cavalcanti, pelo telefone, falou: “Roberto, você não sabe o que está acontecendo aí na rua não?”. Eu disse “O que é?”. “Esse problema, da obra de Brennand.” “Rapaz, não tenho nada a ver com isso não, só fiz ajudar.” “Você está enganado, você é o grande responsável. A vida é na rua. Vá para qualquer bar ou restaurante e você verá que você é vítima.” Então, lá no debate… O sangue subiu à cabeça? Claro, mas fui lá para o debate, fiz a defesa e um pronunciamento dizendo o seguinte: a partir de hoje, o jornalista que fizer qualquer crítica à minha mulher vai ter que se entender comigo, de homem para homem. Ali eu tomei uma decisão. E você, quando toma uma decisão dessas… Pois bem, você vê, na política, a sorte e o azar. As coisas vinham para mim, eu não ia atrás delas. Mas, às vezes, acontecia também o contrário, eu também tinha falta de sorte. Aí, o que acontece? Eu vou saindo de casa, chega lá um amigo meu e um secretário da prefeitura. “Olha, está tudo bem, os jornais eu já li, não tem nada demais...” Repare: é o tipo da coisa que um amigo não faz: “Olha, tem uma matéria assim, assim e assim, aqui no jornal, mas tem outra lá, uma nota...” Eu achava que a “alma danada” disso era Carlos Wilson, junto com um jornalista, que eu não vou dizer o nome, ligado a Brennand. Eu saí disposto a tudo de casa. Aí, repare também o acaso: procurei saber onde ele morava. Fui lá e disseram: “ah, não está morando mais aqui não; ele é assessor de imprensa de Inocêncio Oliveira”. Eu sabia quem era, mas estava em outro canto. Aí eu me frustrei; ia desmoralizado, desmoralizado. Estava disposto a tudo. Embora matar um homem daquele não engrandecesse ninguém, por mais razões que eu tivesse. Um homem de muitos defeitos, muitos. Então desisti desse tête-à-tête e, então, fui

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para um almoço no Palácio. Quando saí do almoço, resolvi [ir ao jornal]. Veja você: ali o revólver não tinha nada a ver com o jornalista. Jamais mataria aquele, ele não tinha feito nada que justificasse matá-lo. Orismar [Orismar Rodrigues, colunista do Jornal do Commercio, falecido em 2007]? Sim, Orismar. Eu pedi para chamá-lo. O editor assistiu, o Ivanildo [Ivanildo Sampaio, Diretor de Redação do Jornal do Commercio]. Eu disse: “Olha, você continua dando nota, eu vi hoje. Qual é a sua idade?”. “56” – ou era 58. “Tá bom, você já tem muitos anos de vida, agora cesse com isso de fazer provocações à minha mulher, de ter essa conduta, porque você pode até viver menos...” Um susto só, né? Jamais atiraria nele. Aí você me pergunta: “por que não deixou o revólver no carro?”. Porque ele ficava no sexto andar e havia muitos seguranças. Isso tudo para explicar a origem da minha educação sertaneja... Eu preferia sair morto do que agarrado, carregado por seguranças. Preferia atirar morrendo; não saía vivo de lá. Enfim, foi uma besteira, mas rendeu o cansaço emocional de dois meses ou mais saindo páginas e páginas nos jornais com notas contra mim, em solidariedade ao jornalista. Todas as entidades jornalísticas que você possa imaginar que existam no Brasil. Todas, todas, todas. Mas o senhor reconhece que… Eu errei, eu digo no livro. E fui julgado. Tinha um programa na TV Cultura, até com um jornalista que respeito muito… Alberto Dines. Sim, e eu fui julgado. Inclusive o presidente do sindicato dos jornalistas votou comigo. O Rossini… Qual foi o fundamento? “Ele não teve o direito de ser ouvido, nem lhe deram direito de defesa.” Eu não fui entrevistado por nenhum jornal sobre isso.

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Como o senhor avalia a relação do senhor com a imprensa? Todo político costuma reclamar... É o seguinte. A minha relação com a imprensa em Brasília era ótima, porque lá é outro clima, lá estamos o Brasil inteiro. As questões pessoais importam menos, tanto que você faz amigos entre os adversários. E aqui... Era boa... Boa... Era boa, porque eu sempre fui muito transparente, então gostavam de mim. Mesmo que não fosse exatamente por simpatia. O senhor sempre dava boas entrevistas. Dava matéria, dizia coisa que ninguém dizia... E aí, o que aconteceu? Quando chegava eleição, era guerra total. Porque todo jornalista era contra o status quo, aí não tinha jeito. Era à vera. A gente conversou sobre a sua formação pessoal, do caráter, dessa sua natureza sertaneja, mas também é rica e interessante a sua formação intelectual. O senhor pode dizer como se deu essa formação, que livros o influenciaram? Eu falo isso aqui [no livro]. Digo que quando criança a minha principal diversão foi a leitura. Falo inclusive dos livros de Narizinho... Monteiro Lobato... É, quaisquer livros que chegavam às minhas mãos, compatíveis com minha idade e meu interesse… Depois, aquela literatura de gibi, essas coisas, numa fase da Guerra. O senhor conta muita coisa sobre a Guerra. Conto, porque a minha geração foi ligadíssima nisso. A Segunda Guerra para vocês é como a Primeira Guerra para mim. Meu pai era um sertanejo que não estudou, veio para o Recife para isso – iria fazer um exame no Ginásio Pernambucano –, mas se encantou com a vida noturna do Recife. Aí o pai dele disse: “volta; se não passou, não tem mais estudo”. Apesar disso, ele era muito inteligente, gostava muito de música, ouvia Wagner, conhecia muito de ópera, Beethoven. E lia. Ele

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comprava os livros e lia; quando ele acabava o livro e largava, eu lia. Assim, li a obra quase toda de Jorge Amado, José Lins do Rego... Você cita também Joaquim Cardozo, João Cabral, Manuel Bandeira... Sim, eu faço uma homenagem, porque eu acho que Recife é a cidade brasileira mais cantada pelos poetas. Mas, voltando a minha formação: eu não fui ser engenheiro porque era ruim em matemática; mas tenho uma admiração enorme pela matemática; é a ciência mais importante sobre a qual o homem se debruçou, porque ela trata de quase tudo. Aí o senhor segue as ciências jurídicas... Sim. Eu tive uma vida, enquanto filho de sertanejos, privilegiada. Meu pai era funcionário público e vivia sendo transferido para lá e para cá. Nasci no Rio Grande do Norte e vim com dois meses para cá, mas sempre me considerei pernambucano. Quando eu era governador, um deputado apresentou um projeto de cidadania pernambucana para mim; e eu lhe disse: “tire essa porcaria porque eu não preciso não”. Eu não botei essa história [no livro] para não ferir o deputado, porque ele está em Garanhuns. Queria fazer uma pergunta sobre o que justifica sua entrada na política, e um pouco sobre sua formação intelectual. O senhor fala que foi muito influenciado pela Segunda Guerra, quando havia no Pós-Guerra grandes lideranças políticas do mundo democrático: Churchill, De Gaulle... E hoje estão faltando [lideranças]... Apesar de que eu estou acabando de ler um livro, que meu filho indicou, que é sobre as negociações entre americanos e ingleses, as estratégias, os projetos e, consequentemente, as escolhas das ações militares. Rapaz, era uma briga. Stálin ficava mais distante, era uma briga que ia acontecer no futuro, mas já tinham as suas diferenças. Uma coisa, entre nós: eu sabia que a participação da União Soviética tinha sido muito importante para a vitória, mas depois desse livro eu digo que foi decisiva. Sem ela, não teriam derrotado a Alemanha. Hoje eu digo isso.

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Com o Pós-Guerra, há uma divisão no Ocidente sobre como tratar a União Soviética. Uma parte das lideranças... Antes! Antes já haviam começado a discutir... Mas nessa época, de grandes lideranças políticas internacionais... Sim, mas sobre os livros que foram importantes para mim, alguns eu cito aí [no livro]. Tem um livro antigo, que para encontrar no sebo tem que procurar muito: Bandeirantes e pioneiros, de Vianna Moog. Saiu uma nova edição recente pela José Olympio. Esse livro foi tão importante para mim! Porque ele faz um paralelo entre os Estados Unidos e o Brasil quanto ao desenvolvimento. É interessante ele mostrar as diferenciações, quais foram os principais fatores. Então ele mostra que, nos Estados Unidos, tudo foi favorável: o clima, a terra, a topografia, o relevo do território. A começar pela própria ocupação pelos puritanos, que não vieram para explorar, não mandaram para cá presos, bandidos, nem nada. Vieram para ocupar, não para explorar. Mas o Brasil ficou aqui; até D. João VI era só exploração. Com D. João VI começou a melhorar porque isso aqui passou a ser até vice-reinado. Ele diz mais o seguinte: quando foi preciso, e chegou a hora de o americano se interiorizar para o Oeste, surgiu o ouro na Califórnia. Bem, mas então esse livro é realmente fundamental. Outro livro muito importante é Casa-grande & senzala, e Sobrados & mucambos. Um é sobre a formação, a vida do português, a colonização etc. E o outro é sobre a vida na cidade no século XVII para XVIII, então você fica com uma visão do Brasil muito boa... Escrevia bem o Gilberto, não é? Escrevia muito bem. Uma coisa que eu disse uma vez numa entrevista: “quem não conhece história não pode fazer política; é meio cego, é caolho”. Olha, são tantos os livros importantes que eu li que fica difícil. Eu li, por exemplo, sobre a Segunda Guerra Mundial, todos os livros importantes do Pós-Guerra, das grandes figuras. Memórias de esperança, de De Gaulle – que, aliás, nesse livro, não aparece, só

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aparece para ser criticado. Ninguém gostava de uma coisa assim, e eles também não consideravam que a França tivesse um papel no final da Guerra. Só não digo que foi um grande ausente porque pelo menos se lembraram dele para criticar. Tem alguma dessas figuras importantes, nacional ou internacional, que influenciou a sua trajetória política, como um exemplo? Olha, o político brasileiro que eu mais admiro é Getúlio Vargas. Aí é que vem a importância da história. Antes de Getúlio, você tinha a Velha República, que foi a parte do Brasil que eu procurei estudar, a década de 1930. E você não pode estudar a década de 1930 sem estudar a Velha República, que é anterior. Então o Brasil era o quê? O Brasil era um país da aristocracia e a classe operária era muito explorada. No campo, eu tenho o testemunho do Padre Olímpio de Melo, que é meu tio. Eu não boto isso no livro, porque tenho muito amigo usineiro – pelo menos tinha, porque agora, sem política... É, porque quando você está no poder, é amigo. Depois, quando deputado, eu não fazia lobby, então não era um deputado muito procurado por esse pessoal da economia do estado, no sentido empresarial. Só pelos amigos mesmo... Então é o seguinte: ele contou que no 3.º Congresso Eucarístico Nacional, que aconteceu aqui no 13 de maio, o Cardeal Leite veio a Pernambuco e foi com o Padre Olímpio, meu tio – acho até que sei qual é [o usineiro], mas não vou dizer nunca – para um almoço. Quando ele voltava lá da mata, disse: “Olímpio, estranhei uma coisa: não vi os empregados da usina, os operários”. Ele disse: “Cardeal, o senhor não viu, nem poderia ver, porque eles se vestem com o pano da sacaria, do açúcar, e os que não andam descalços andam de tamancos”. Eu nunca mais me esqueci disso. Então era esse o Brasil: a classe operária não tinha expressão política – até porque a política era digna de pena. E a classe média também não tinha. A classe média começou a ascender muito lentamente, através de estudo, do bacharelado, de outras profissões liberais. Então o que sucedeu, com Getúlio, é que a classe média passou a ter importância. A classe operária teve a CLT e a classe média começou a existir politicamente. Uma porta larga da clas-

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se média, de que Gilberto Freyre eu acho que não fala, entra na política. Porque é a classe média que se elege deputada, se elege senadora e passa a ter um standard de vida de político. Pelo menos quando podia, tinha dinheiro para fazer viagem, ir para a Europa. Para fazer justiça a Gilberto, tinha um capítulo da ascensão do bacharel e do mulato, em Sobrados & mucambos. Mas olha, lá nas diferenças entre Estados Unidos e Brasil está também a questão da religião. Seguindo a explicação weberiana... E que é verdadeira, eu não tenho dúvidas. Como você vê o Brasil do futuro, dos seus netos? No momento, com preocupação. Eu sei que não tenho muitos anos de vida e tenho netos que variam de nove meses a doze anos. Eu não posso fazer ideia do mundo que eles vão viver, mas acho que o Brasil, para se livrar do que está aí... Veja o caso dessas prefeituras: tem prefeito que fechou a prefeitura, onde só se entra com um levantamento; certamente tem que pedir uma auditoria... Veja o que está acontecendo: o mensalão foi, realmente, um sistema de corrupção que nunca se via antes no Brasil, intimamente ligado ao poder e com uma finalidade que era o dinheiro, mas o dinheiro para quê? Para fraudar a democracia! Na medida em que você compra um partido e quer dar um ministério em troca de apoio, sem que tenha havido uma afinidade qualquer no passado, é uma compra, você está comprando. Mas a corrupção enquanto corrupção é muito maior do que vocês podem pensar. A grande mudança desses últimos tempos é que os ladrões sempre existiram na política e no congresso, mas não eram a maioria. E nem digo que sejam, mas eles não tinham a audácia de serem líderes. Hoje, hoje, hoje... Líderes... Tenha paciência! Entre os piores tem alguns que são muito importantes, inclusive dentro de partidos importantes. Já falei demais. ***

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B R U N O S P E C K Como pagar por eleições competitivas?

Professor de ciência política da USP, Bruno Speck conversou com o Café Colombo, em fevereiro de 2014, sobre um assunto que tem gerado discussões intensas no Brasil: o financiamento de campanha. Speck é especialista em temas como transparência, corrupção e financiamento de campanhas políticas, em suas variadas formas. Foi também cofundador da ONG Transparência Brasil. Para ele, “É muito fácil o Supremo dizer que financiamento privado por empresas é contra a constituição. Mas é mais difícil para o Congresso achar uma solução para providenciar recursos suficientes para campanhas competitivas”. Nesta entrevista, Speck explica ainda os diferentes modelos usados ao redor do mundo para custear campanhas políticas e suas consequências – a tão nociva corrupção, entre elas.

Café Colombo – Para começar a conversa, eu gostaria de fazer uma pergunta teórica: existe um modelo que pode ser apontado como ideal para o financiamento de campanha? E, se esse modelo existe, qual o país que se aproximaria mais dele? Bruno Speck – Eu creio que não existe um modelo ideal. Existe muito idealismo em relação ao debate sobre financiamento de campanha. O sonho seria ter um financiamento que viesse das pessoas físicas, dos cidadãos engajados, e que esse financiamento não ultrapassasse certos limites, não envolvesse valores muito altos. Idealmente esse é o modelo, com o financiamento de pequenos valores pelos cidadãos. Seria um modelo que traria menos problemas para a democracia, com um sinal positivo para o enraizamento dos partidos, fazendo com que eles precisassem ter apoio da população. Infelizmente, esse modelo ideal não é aplicado em nenhum país dentre as democracias modernas. Esse modelo não consegue trazer recursos suficientes para bancar os gastos dos partidos e cobrir os custos de uma campanha. A partir daí, entramos numa área problemática: de onde pode vir o dinheiro se essas fontes tradicionais não são suficientes? É quando precisamos discutir outras fontes, como empresas, o que é sempre complicado. O ideal democrático pergunta: o que uma empresa tem a ver com o processo democrático? Por que uma empresa deveria influenciar o processo eleitoral? E entramos também na discussão sobre valores mais altos. Se cidadãos doam, por exemplo, 100 mil reais, valores muito altos, têm uma influ-

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ência muito grande na política. A questão é: isso seria legítimo? Diante do ideal democrático, em que cada cidadão deve ter um peso igual, cada um deveria ter a mesma chance de influenciar o processo eleitoral, e essa lógica se aplica também no âmbito do financiamento. As doações muito altas vindas de cidadãos também são um problema. Temos aí uma questão normativa, sobre como deveria ser o processo eleitoral; e uma questão empírica, sobre como acontece. Você é um cientista social, trabalha exaustivamente com dados empíricos. Em outras oportunidades, você já se manifestou contra o financiamento totalmente público de campanha. A sua posição é normativa ou empírica, sobre essa questão? Ela é normativa, porque eu creio que o financiamento privado não é totalmente negativo. Ele tem esse aspecto de mostrar que o partido tem apoio na sociedade. E também não tenho uma posição normativa tão clara contra o financiamento por parte das empresas, porque as empresas também representam segmentos econômicos, e, por outro lado, os partidos que recebem financiamento de segmentos econômicos, de grupos de interesse, também respondem a esses grupos de interesse. Isso cria uma “responsividade” dos partidos junto a setores da sociedade. Acho que não há só aspectos negativos no financiamento privado, portanto. Por outro lado, penso que o financiamento público também não é uma solução fácil de adotar porque, a partir do momento em que você aloca recursos, é preciso um critério de justiça. A partir do primeiro centavo que se aloca, é preciso justificar porque um recebe e outro não recebe. Esse critério de justiça não é muito fácil de definir. Nós poderíamos dizer, por exemplo, que todos os candidatos têm o mesmo direito de ter acesso aos recursos públicos. Ou nós podemos dizer que aqueles candidatos de partidos que têm algum histórico e comprovaram que são importantes, que representam setores ou segmentos significativos do eleitorado, deveriam ter mais acesso aos recursos. Ou nós poderíamos inventar outras fórmulas – e essa história começa a ficar interessante –, que devolvem ao cidadão alguma influência sobre a alocação dos recursos públicos. Então, em termos concretos, há paí-

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ses que dividem ou distribuem os recursos públicos igualmente entre todos os candidatos, mas isso só funciona se, antes, existe um sistema partidário que consegue pré-selecioná-los. Eu não posso financiar 20 candidatos para uma eleição presidencial, mas posso financiar dois. É o sistema dos Estados Unidos. Após as primárias, nas eleições gerais, eles oferecem financiamento público – de cerca de 100 milhões de dólares – para cada um dos dois candidatos que foram pré-selecionados. É um modelo interessante. A Colômbia também tem um modelo parecido. O segundo modelo de distribuição de recursos públicos é o que está em vigor no Brasil: alocar os recursos proporcionalmente ao sucesso eleitoral no passado. No meu entender, esse modelo é bom se não é um modelo exclusivo. É razoável dar mais recursos – e, no caso brasileiro, mais espaço no horário eleitoral gratuito – aos partidos consolidados, conhecidos, e menos aos partidos menores. O problema, a meu ver, começa quando essa é a fonte exclusiva de financiamento. Porque, se eu sistematicamente financio mais aquele que teve mais sucesso no passado, eu congelo o sistema partidário e crio uma reprodução da mesma proporção de votos para a próxima eleição. Ou seja, você enviesa o sistema para beneficiar quem já está no poder... Exatamente, eu o fortaleço. E se um partido se torna mais forte ou dominante, é um sistema quase irreversível. Nesse momento, talvez isso funcione, mas se há uma dinâmica de crescimento de um partido ou de um grupo de partidos que está no governo, eles terão mais chances de ganhar a eleição. Dito de outra forma, eu vejo um problema de falta de mercado político quando todos os recursos são distribuídos exclusivamente com base no sucesso que houve no passado. Ou seja, um dos riscos do financiamento exclusivamente público alocado de acordo com a representação na eleição passada é o de que os partidos que foram bem-sucedidos na eleição passada tenham uma vantagem muito forte em eleições futuras, mesmo quando já não representam mais a vontade da população.

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Exatamente. Mas há soluções para alocar o financiamento dos recursos públicos de forma alternativa. Infelizmente a discussão no Brasil se tornou muito polarizada em torno das aparentemente duas únicas opções. Uma seria introduzir o financiamento público exclusivo, outra seria deixar como está. Eu acho que tem alternativas. Por exemplo, a alocação dos recursos públicos pode devolver parte da decisão sobre quem recebe o fundo partidário ao cidadão. Uma forma seria com um sistema que está em vigor nas eleições primárias dos Estados Unidos, de matching funds, um sistema de fundos complementares. Funciona da seguinte forma: o cidadão que doa 100 reais ou um candidato que recebe essa doação receberá outros 100 reais do fundo partidário. Com isso eu crio um mercado. Eu dou um incentivo para o partido buscar pequenas doações. Porque tipicamente esses fundos complementares, esse sistema de matching funds, são vinculados a um teto máximo. O Estado só cofinancia pequenas doações. Então isso é um pouco a volta àquele sistema do qual falei no início, de pequenas doações. Essa é uma forma de coparticipação do cidadão na alocação dos recursos do fundo partidário. A posição que hoje a OAB e outras entidades estão defendendo, de criar um fundo exclusivamente público de financiamento de campanha, dadas as configurações atuais, tenderia a concentrar o poder entre aqueles já representados? A ação direta de inconstitucionalidade, na verdade, não aponta soluções. Ela aponta o problema envolvido no financiamento privado. A decisão do judiciário vai ter um impacto enorme, se sair no sentido que os primeiros votos indicam. Só para lembrar: em dezembro [de 2013], o Supremo começou a votação. Dos 11 ministros, quatro votaram a favor da proibição do financiamento privado. Eles não indicam, no entanto, qual seria a solução. Uma decisão do judiciário pode, digamos, se dar ao luxo de navegar nesses mares idealistas e dizer: “olha, o financiamento privado não é bom”. Os políticos e o poder legislativo estão navegando em outros mares, eles precisam não só apontar problemas, mas também achar soluções. Então é muito fácil o Supremo

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dizer que o financiamento privado por empresas é contra a constituição, mas é mais difícil para o Congresso, depois, achar uma solução que providencie recursos suficientes para se ter campanhas competitivas. Vamos imaginar outra situação: imagine que o financiamento privado por empresas fosse proibido e não houvesse outros recursos. O que aconteceria? A consequência não é que todos os candidatos teriam a mesma chance porque todos teriam poucos recursos. Quem sairá com vantagem é o incumbente, ou seja, aquele que já está no poder, porque sabemos que eles precisam de menos recursos. As análises que fizemos, comparando quem está no poder com o desafiante, mostram claramente que o desafiante precisa dos recursos, e quem está no poder precisa menos, porque este já está na mídia e possui outros meios de propagar sua mensagem e se comunicar com o eleitor. Ele tem outras vantagens. Há uma clara desvantagem para o desafiador. Não ter dinheiro na política, por consequência, torna o processo eleitoral menos competitivo, e os desafiadores vão ter mais trabalho para levar ao cidadão a informação de que alguém está concorrendo além do deputado que já está no mandato. Isso tem graves consequências. Não ter dinheiro na política não é uma solução, pois torna o processo eleitoral menos competitivo. Uma discussão em ciência política se refere às causas desse processo de crise de representatividade que leva à corrupção da ordem institucional. O Brasil tem um sistema bastante particular, o chamado voto em lista aberta com representação proporcional, em um sistema presidencialista e com vários partidos. Tradicionalmente, dizia-se que essa configuração não dava certo, que era instável e levaria a retrocessos democráticos. Depois, ao longo dos anos, foi se consolidando uma ideia de que isso pode dar certo, de que existe uma coisa chamada presidencialismo de coalizão – o presidente tem instrumentos para poder fazer uma base de suporte. Só que os custos desse apoio serão, possivelmente, o aumento da máquina pú-

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blica, nomeações com critérios partidários, distribuição de cargos e favores, distribuição de verbas para apoios, e isso seria uma das fontes para a corrupção. Como o senhor se posiciona nesse debate? Esse é um debate que envolve muitos fatores, muitas ideias velhas e muitas pesquisas novas. É difícil cobrir toda a área, mas primeiro eu diria que eu cresci na Alemanha em um sistema não de presidencialismo de coalizão, mas parlamentar, em que as coalizões e distribuições de cargos aos aliados eram mais normais. As coligações talvez tenham – e têm –, nesse sistema parlamentar, mais coerência ideológica. Mas isso também está se desfazendo na Alemanha, onde há seis partidos agora e, com poucas exceções, quase todos fariam alianças com todos. Aplicando isso ao caso brasileiro, eu não vejo como tão dramática a situação. Quer dizer, o número de partidos é bem maior, mas não vejo como tão dramática a situação de fazer coalizões, de vincular essas coligações e apoios políticos a cargos. A pesquisa [da ciência política] não mostrou claramente onde se daria a influência específica dessas condições de cargos sobre a probabilidade de ter mais ou menos corrupção. A suspeita é que essas coligações que não tenham fundamento ideológico seriam mais enviesadas e correriam mais risco de gerar abusos da função pública, mas de fato eu não conheço pesquisas específicas que mostrem essa correlação. Mas, voltando um pouco à questão do financiamento da política, eu vejo que o financiamento também tem um papel importante para forjar essas coligações, porque cada vez mais recursos vão vir a partir dos partidos para os candidatos. Quer dizer, uma das formas de o partido político condicionar o seu candidato é receber os recursos não diretamente da empresa para o candidato, mas incentivar a empresa a doar recursos para o partido, e o partido depois transferir esses recursos ao candidato. Esse volume está crescendo. Na eleição de 2010, as empresas doaram em torno de 30% de todos os recursos não diretamente aos candidatos, mas via partido político aos candidatos. E na eleição de 2012 esse percentual cresceu para 50%. Ou seja, cada vez mais os partidos usam os recursos do financiamento da política para influenciar os seus candidatos, para estreitar o laço entre o candidato e o partido.

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O senhor tocou na questão das pesquisas empíricas sobre corrupção. Uma das fontes das pesquisas internacionais é o Índice de Percepção de Corrupção desenvolvido pela Transparência Internacional, entidade na qual o senhor já trabalhou. Uma das críticas a esses índices de percepção é que eles são baseados em entrevistas com empresários e, algumas vezes, em pesquisas representativas de toda a população. Alguns estudiosos, como Andrew Schrank, acham que eles são enviesados para uma percepção do que é boa governança, e não necessariamente fazem uma mensuração objetiva de corrupção. Como o senhor se posiciona nesse debate? Eu acho que o índice de percepção da corrupção é um bom instrumento para chamar a atenção do público em geral para o problema da corrupção. Ele é um péssimo instrumento para medir a corrupção, e é pior ainda para acompanhar políticas de combate à corrupção. Por que ele é um bom instrumento para chamar a atenção? Porque ele é consideravelmente barato. O índice de percepção da corrupção não levanta nenhum dado próprio, somente compila dados de outras fontes e coloca numa única escala. Enquanto outras pesquisas focam só determinados países e regiões, com aspectos específicos, esse índice faz uma compilação cuja composição é muito difícil de entender e explicar, mas com a vantagem de alcançar um público muito grande. Ele é divulgado anualmente e tem um grande impacto. Sob esse ponto de vista, eu considero um excelente instrumento para chamar a atenção da mídia e do público em geral para o problema da corrupção. Ele não é um bom indicador para medir a corrupção porque não sabemos exatamente o que ele mede. Não sabemos se ele mede a corrupção legislativa ou no executivo. O mero fato de publicar uma nota por país já é uma redução absurda da complexidade do fenômeno da corrupção. Isso fica muito claro no caso brasileiro. O que exatamente significa uma nota 3,7 ou 5,8 dada ao Brasil nesse índice? Ele fala de governo federal, estadual, municipal, de legislativo, de licitações, de corrupção policial? É uma redução da complexidade da corrupção. Não é, enfim, um bom medidor. Existem outros índices também produzidos e publicados em parte pela Transparência, em parte por outros órgãos, que são interessan-

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tes. Um dos mais interessantes é o International Crime Victims Survey [pesquisa internacional com vítimas de crimes]. Ele também se baseia em pesquisas com cidadãos, mas ele pergunta se a pessoa passou, nos últimos dois anos, por alguma experiência ou caso concreto de corrupção. Que eu saiba, a pesquisa mais abrangente foi feita no México, em três momentos diferentes, cada uma entrevistando 20 mil cidadãos, de todos os estados. Eles eram perguntados sobre a experiência de corrupção com 20 serviços públicos diferentes. Então, com essa desagregação do problema, você consegue ter uma melhor noção a respeito de se realmente a incidência de corrupção é mais alta ou mais baixa em um estado em comparação com o outro, ou em relação a um serviço público em comparação com outro. ***

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S É R G I O LAZZARINI O Leviatã do nosso tempo

Em março de 2014, Sérgio Lazzarini, professor titular do Insper, conversou com o Café Colombo sobre a obra Reinventando o capitalismo de Estado – O Leviatã nos negócios, Brasil e além, publicada nos Estados Unidos pela editora da Universidade de Harvard, e que sairá brevemente também no Brasil pela Companhia das Letras. A obra foi escrita em parceria com o historiador econômico Aldo Musacchio, que é professor da Harvard Business School. Lazzarini, que é Ph.D. em Administração pela Washington University, também é autor de Capitalismo de laços (2011), e fala nesta entrevista sobre as diferentes formas de participação do Estado na economia, bem como de suas consequências.

Café Colombo – Em Reinventando o capitalismo de Estado vocês propõem uma nova tipologia para entender a participação do Estado na economia. Que tipologia é essa? Sérgio Lazzarini – Essa tipologia nos surgiu a partir do que vemos no mundo em geral, mas também aprendendo muito com o que aconteceu no Brasil. A gente vê discussões na mídia e na literatura sobre o setor privado versus o setor público (as estatais). Muitas vezes as pessoas, mesmo nos Estados Unidos, quando pensam em estatais, lembram da empresa de correios, dinossáurica e ineficiente, mas, na verdade, o próprio capitalismo de Estado sofreu alterações ao longo do tempo em vários países. Muitas empresas que antes eram basicamente estatais, departamentos de Estado, se tornaram empresas negociadas em bolsa, com conselhos independentes. Mesmo na China esse movimento foi muito forte, com gestores que recebem em função do resultado da empresa. Esse é o modelo que nós chamamos de Estado Leviatã. Nele, o estado, como investidor majoritário, controla essas empresas, mas há investidores privados que entram, já que a empresa está em bolsa e se pode investir nela. E temos o modelo que chamamos de Leviatã Minoritário, quando o governo não é o grande controlador da empresa, mas participa de negócios em que investidores privados são os controladores. Isso se dá a partir de vários mecanismos. No Brasil, fazemos uma conexão com o livro anterior, o Capitalismo de laços, no qual mostramos esse processo. No Brasil, a gente reforçou esse modelo

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do Leviatã Minoritário a partir da participação do governo em muitas empresas via BNDES e fundos de pensão de estatais. Não só com participação acionária, mas também com participação em crédito. O BNDES e vários outros fundos de bancos públicos têm uma participação muito importante no crédito das empresas. Esses novos modelos que surgiram adicionam mais nuances nessa discussão sobre público e privado, porque na verdade há modelos em que o público e o privado estão entrelaçados, e a questão é analisar o que está acontecendo nesses novos modelos e perceber em que condições eles serão mais favoráveis ao desenvolvimento, ou menos favoráveis. Antes de entrar na discussão contemporânea, o livro de vocês tem um alcance histórico fascinante. Traça as diferentes formas de participação estatal na economia ao longo do tempo e mostra que, de certa forma, isso se deu de forma acidental no Brasil. Começava dando garantia a projetos que, quando fracassavam, entravam para o Estado. Como você analisa ao longo do tempo o aumento da participação do Estado na economia no Brasil? Isso. Até mais ou menos 1930, até o período da Primeira República, realmente foi um crescimento do Estado um pouco acidental, pegando grandes empresas de trens que na verdade não acabaram bem. Posteriormente tivemos Vargas, que dá um impulso à criação de grandes empresas estatais. Na verdade, para promover setores industriais diversos – eletricidade, aço, e assim por diante. As chamadas indústrias de base… É. Mas as pessoas também pensam que foi com Vargas que nós tivemos o pico do estadismo no Brasil. Não foi. Foi durante o regime militar, principalmente depois de 1969. Nós tivemos um aumento muito grande de empresas estatais, em função da própria característica do governo militar, que advogava por mais intervenção direta, mas também em função da autonomia que algumas estatais tiveram. Nós tivemos um fenômeno muito curioso; basicamente, a construção de um império de conglomerados estatais que acabaram ficando muito grandes.

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Eram tentáculos. Começava-se uma empresa, como a Vale, para fazer uma coisa, mas depois ela abria uma subsidiária… Exatamente. E vai embora entrando em outros negócios. Essa expansão, associada ao desejo do governo militar, na transição para a democracia, de querer controlar preços diretamente de produtos e serviços ao consumidor, e à crise que ocorreu no final da década de 1970, notadamente no setor de petróleo, que nos atingiu fortemente, causou um colapso desse sistema no sentido de que várias estatais acabaram tendo prejuízo. No começo da década de 1990, metade das estatais estava perdendo dinheiro. Isso causou um colapso no sistema e a gente sabe o que ocorreu: as privatizações da década de 1990. Quer dizer, o governo queria segurar a inflação e fazia isso segurando os preços, não deixando que as empresas fossem lá e aumentassem. Ao fazer isso, limitava a capacidade de expansão da empresa, já que ela não podia investir, e também tirava do próprio caixa. A gente tinha situações esdrúxulas: todo mundo, por exemplo, querendo comprar telefone e o sistema Telebrás não tinha telefone para vender. Em Pernambuco, nós tínhamos a nada heroica Telpe: você comprava caro as ações e ainda tinha uma linha de muito baixa qualidade... Eu conto essas coisas para alunos de graduação que não passaram por isso, e eles não acreditam que se pagavam dois mil dólares por uma linha telefônica; obviamente não se tinha celular nem nada. Então chegamos ao processo de privatização. Nessa época, os sindicatos, a CUT, o PSTU diziam que o Brasil estava se vendendo. Eram o consenso de Washington e os banqueiros tirando o patrimônio brasileiro. Mas, em Capitalismo de laços, você mostra que esse processo de privatizações não fez o Estado diminuir a sua mão na economia. Teve uma mudança, mas ele não se ausentou. Exatamente. Você teve essa mudança, do Estado controlando grandes empresas para um Estado irradiado num número impressionante de empresas em diversos setores da economia. Como eu tinha dito, isso ocorre principalmente a partir das participações do BNDES e fundos

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de pensão de estatais, que geram a consolidação do que chamamos no livro de o modelo do Leviatã Minoritário. Muita gente ainda quer que a Vale seja reestatizada, mas as pessoas que estão protestando para isso sequer olharam para a composição acionária da Vale, porque, somando BNDES e fundos de pensão, que são ligados ao Estado, há mais de 60% das ações com direito a voto. Então, no fundo, a Vale, que foi privatizada, não foi necessariamente privatizada. Nós temos no Brasil esse modelo bastante intrigante, o do Estado minoritário. E também se encontra isso em vários outros países do mundo, só que isso vai ocorrer com várias formas e cores diferentes. Se você for à Índia, é a partir de aplicações em empresas de seguros. Se você for a Singapura, é um fundo soberano do país. E por aí vai. Em cada país há uma forma diferente de o Estado participar, mas o Estado minoritário continua bastante presente. Em um importante capítulo do livro, vocês analisam a governança corporativa e o desempenho de empresas de petróleo. A gente vê como a Pemex do México é fortemente controlada pelo poder político e tem uma eficiência muito baixa. Em contraste, tem a norueguesa Statoil, na qual o governo não pode nem indicar o presidente. A Petrobrás estaria mais próxima da Statoil do que da Pemex, pelo menos é o que se diz. Ainda assim, mesmo com ações na bolsa e toda a transparência, com órgão regulatório e parceiros internacionais, o governo usou a mão pesada para perseguir os seus próprios interesses. E esse é um caso do governo como um Leviatã majoritário. Isso não mostra um pouco o limite dessas outras formas de tentar controlar a mão pesada do governo? Sem dúvida. Esses modelos estão longe de ser a solução ideal. Eles têm muitas disfunções e, para que funcionem, é preciso ter um conjunto de pré-condições institucionais do país. A Petrobrás, de fato, parece que podemos dizer estar mais perto da Statoil do que da Pemex. Ela é listada em bolsa, tem conselho, balanços auditados… O problema é que, já desde o governo Lula, há uma tendência mais forte de usar as estatais em geral para controlar preços. E isso se intensificou no governo Dilma. Não só com a Petrobrás, mas com bancos públicos e usinas elétricas. Você segura

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o preço da gasolina, que precisava ser reajustado, causando um problema no caixa da Petrobrás, que precisa investir. E, obviamente, a Petrobrás tem outros investidores minoritários, inclusive trabalhadores que compraram ações da empresa com seu FGTS. Acontece que o investimento caiu muito, e a percepção de confiança também. O que faltou aí? Um pouco mais de condição institucional para evitar essa intervenção direta. Comparando com o modelo norueguês, lá há uma agência reguladora muito forte, independente, que dita as cartas. E não é só: há também o executivo, além de várias outras peças que impedem que o governo, em si, vá lá e queira mandar diretamente. Nós sabemos, em ciência política, que ter pesos e contrapesos numa democracia é muito importante. No Brasil, temos até algum arcabouço institucional, mas as agências reguladoras, por exemplo, acabaram perdendo poder. E, no setor de petróleo, trata-se de um caso particular. Isso criou ambiente para uma intervenção direta do governo na Petrobrás, e também em outras estatais. A gente falou agora dos limites desse modelo do Leviatã enquanto acionista majoritário. E em relação a investidor minoritário? Existe um bom argumento de que o Estado pode investir em companhias onde há um retorno social maior que o retorno privado. Pode ajudar startups, por exemplo – empresas que precisam desse primeiro empurrão para poder dar certo. Essa é uma argumentação comum de quem defende política industrial. Como você se posiciona nesse debate? No nosso livro há um capítulo discutindo exatamente essa questão. A gente até tem evidências de que esse efeito positivo pode ocorrer. Tivemos uma empresa muito importante, por exemplo, a Aracruz, que depois sofreu uma fusão e se tornou uma empresa muito competitiva na área de papel e celulose. O BNDES foi fundamental na parte de ancorar investimentos iniciais em plantas industriais, na parte de florestas, genética etc. Mas isso ocorreu num período, antes da virada do século, em que nós tínhamos restrições de capital bem mais fortes. Nós passamos por várias crises. Posteriormente, o Brasil cresceu bastante, o mercado de capitais se desenvolveu e o papel de um banco de desen-

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volvimento como o BNDES fica mais difícil, no sentido de que várias empresas que estão no país têm possibilidade de crescer usando outras formas de captação, inclusive no setor privado. Agora, nesta situação atual, é difícil de justificar o BNDES financiando um grande grupo, uma grande empresa, que pode, por exemplo, captar no exterior e pegar outras fontes de financiamento. O que temos visto é que o banco não tem colocado um pé no freio nisso – tem sistematicamente apoiado projetos dos mais diversos setores, alguns até lucrativos, mas que em tese poderiam ser financiados de outra forma. Esse não é o papel de um banco de desenvolvimento. Eu digo que a principal crítica ao modelo de Leviatã Minoritário que estamos levantando é essa questão da falta de critério que os governos têm ao colocar recursos em determinadas empresas, sem dizer ou mostrar claramente o que esse capital público está gerando em termos de benefícios sociais. Outro economista especialista no assunto, Mansueto Almeida, afirma que o BNDES começou a fazer uma política de ajuda a campeões nacionais; e isso tem um custo que não é discutido com a sociedade. Seria perfeitamente legítimo ter esse tipo de política se esse custo fosse claro e a sociedade decidisse se iria arcar com isso... Exatamente. É preciso ter mais transparência de critérios. Por que eu estou colocando 18 bilhões de reais num setor de frigorífico no lugar de outras coisas que eu poderia apoiar? Nesse caso, por exemplo, foi patrocinada uma junção de empresas que acabou tirando margem dos fornecedores. E dos consumidores! Em setores concentrados você tem esses efeitos. Ao criar essas grandes empresas como o BNDES quis, há também esses efeitos negativos na competição, que causam impacto negativo no consumidor final. Pois é. Quem é o grande beneficiado disso, além dos acionistas principais? Até quem não gosta de carne fica falando bem de carne agora… O nosso Roberto Carlos... [risos]

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Você acredita que esse modelo de uso intensivo de estatais e crédito público pode se sustentar ou, inevitavelmente, em 2015 ou 2016, nós vamos chegar a um momento em que os custos desse modelo serão tão grandes que quem vier ocupar a presidência vai ter que repensar? Eu acho que nós já estamos no limite. Há várias travas ocorrendo já. Por exemplo, a nossa dívida bruta cresceu bastante, a ponto de lançar um sinal amarelo nas agências de classificação de risco. E grande parte do aumento da dívida bruta é fruto exatamente do governo emprestando dinheiro para o BNDES e outros bancos públicos para aumentarem suas operações de crédito. Nós chegamos a um limite, e o governo precisa conter isso porque há um risco claro de rebaixamento da nossa nota de crédito. A outra coisa é que o próprio BNDES precisa manter uma posição saudável de empréstimos sobre os ativos que o banco tem. O próprio banco chegou ao seu limite. O governo está ciente disso; há a perspectiva de uma redução ou talvez de uma mudança no papel do BNDES para, por exemplo, projetos de infraestrutura – o que seria bom. Só que eu me pergunto, às vezes, por que apoiar um projeto como uma concessão de aeroporto? Só como exemplo: por que apoiar com tantos recursos uma concessão de aeroporto, que é um projeto altamente lucrativo? Eu acho que pode haver financiamento privado, e que o banco público não está buscando a devida seletividade nas suas aplicações. Era preciso comparar projeto “A” e projeto “B”: quais os impactos sociais do projeto “A” versus os do projeto “B”? O empresário do projeto “A” poderia captar o recurso de outra forma se comparado com o do projeto “B”? É preciso fazer essa análise de acordo com alguns critérios. Na verdade, não estamos inventando a roda. Isso é literatura mais do que conhecida para teoria de banco de desenvolvimento. ***

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S Í L V I O M E I R A Invenção, inovação e mercado de ideias

Sílvio Meira, que é professor titular aposentado da UFPE e atualmente dá aulas na FGV-RJ, ocupou o cargo de cientista-chefe do C.E.S.A.R por 12 anos e foi um dos fundadores do Porto Digital. Esta conversa, gravada em Cambridge, MA, em março de 2013, teve como tema central seu livro Novos negócios inovadores de crescimento empreendedor no Brasil. Graças a uma estadia como fellow no Berkman Center for Internet & Society, da Universidade de Harvard, ele pôde parar um pouco sua rotina atribulada de palestras e mentorias para escrever sobre o conhecimento acumulado em mais de 30 anos lidando com inovação e empreendedorismo. Sílvio Meira fala aqui sobre alguns dos desafios do Brasil, conta histórias de fracasso e de sucesso e explica o que a conectividade do mundo representa para o futuro das cidades e dos países.

Café Colombo – Logo no começo do livro, você faz uma advertência: não se trata de uma obra para quem está procurando autoajuda sobre inovação e empreendedorismo, ou caminhos rápidos e fáceis para construir negócios inovadores. Quem você imagina como público para esse livro? Silvio Meira – Todo mundo que estiver realmente preocupado em entender quais são as perguntas que devem ser feitas, muito mais do que quais são as respostas prontas para perguntas que não existem sobre o processo de criação de um novo negócio. Um novo negócio não significa necessariamente uma nova empresa; pode ser um novo produto de uma empresa existente, um novo curso numa universidade, uma nova cadeira dentro de um curso, o lançamento de uma peça de roupa, uma mudança no processo de fazer pão numa padaria. Esse mercado das ideias sobre essas coisas, no Brasil e em boa parte do mundo, está contaminado com fórmulas prontas – geralmente importadas dos Estados Unidos, que possui um contexto de mercado completamente diferente do Brasil – sobre como é que se fazem determinadas coisas. Fórmulas que não necessariamente podem ser aplicadas… Eu fiz como o Chacrinha, meu conterrâneo. Eu não vim para simplificar, vim para complicar. Acho que é isso que é preciso. As pessoas precisam saber que é difícil, porque é difícil. Mas há, dentro da dificuldade, um conjunto de métodos e processos para se fazer bem

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as perguntas dentro de um arcabouço onde é possível encontrar respostas. Quais seriam as principais perguntas sobre empreendedorismo e inovação em que o leitor desse livro vai ficar pensando mais intensamente após a leitura? A primeira delas: será que eu quero empreender mesmo? Tem uma febre global de incentivo ao empreendedorismo que acaba gerando um empreendedorismo de baixo impacto. O que é isso? É o cara que sai do trabalho dele, mas no fundo acaba criando um negócio que o “remunera” mais ou menos, tanto em reconhecimento quanto em renda, da mesma forma que o trabalho remunerava. Se é para ter esse tipo de empreendedorismo, talvez seja melhor ficar trabalhando em algum lugar, porque dá muito mais trabalho efetivamente e há muito menos retorno, proporcionalmente ao trabalho. A segunda pergunta, dado que se decidiu empreender, é sobre quais são as condições para empreender no Brasil. O Brasil é um país esquisito, cheio de regras esquisitas, cheio de complicações, um dos últimos lugares na América Latina do ponto de vista dos melhores países para empreender. Se dividirmos os países do mundo em três terços, o Brasil está no terceiro terço das condições para empreendedorismo, no fundo do poço, depois de Uganda. Uma vez que se decide empreender, portanto, é preciso enfrentar a complexidade ou a “complicação Brasil”, como eu prefiro dizer. A terceira pergunta, passadas as primeiras, é o que eu vou fazer aqui e como eu vou fazer. Ou seja, em primeiro lugar, eu quero empreender porque quero fazer algo mais do que simplesmente ter um trabalho. Dois: preciso entender as dificuldades que existem para se empreender no Brasil – e saber se, ainda dentro desse contexto difícil, eu continuo querendo empreender. E, terceiro, como eu posso empreender. Sim, o que fazer? Como a pessoa vai definir um produto, um processo, um serviço, um mercado? Quem ela vai entender? Quem ela vai

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atender a partir desse entendimento? Porque é preciso haver entendimento para criar um atendimento. As pessoas – muitas pessoas que eu conheço no Brasil, inclusive em mercados muito sofisticados, de alta tecnologia – começam com a vaga ideia de que elas criaram uma solução para alguém. Isso é um atendimento. Eu vou atender certa demanda potencial de mercado. Mas essa pessoa tentou entender antes o que estava acontecendo? Se ela não entendeu e definiu, por um conjunto de vertentes de mercado, cadeias de problemas, cadeias de renda que estão disponíveis para investir na solução para aquele problema, você pode acabar criando um atendimento no qual não existe um entendimento. E aí, no fim, você se pergunta por que deu errado se você fez tudo certo. Mas você, antes, não descobriu se tinha cliente para você. Tem um animal no mercado chamado cliente, que é uma pessoa que está disposta a tirar uma parte do dinheiro do bolso dele para entregar, para você resolver um problema dele. Se você não trouxer esse cara para o seu atendimento, você não tem um negócio. Chama a atenção, no livro, a maneira como você fala sobre o processo de inovação no C.E.S.A.R, apresentando uma forma de direcionar e organizar o caos criativo. Como é possível dar essa ordem ao caos? Existe processo no caos criativo. Primeiro, ele não é tão caótico assim, e pode ser sistematizado. E como é que se sistematiza o caos? Você cria um conjunto de estruturas – tanto conceituais quanto de métodos e ferramentas – que você usa para analisar quais são os problemas que quer resolver, para criar e analisar potenciais soluções para esse problema e analisar a viabilidade dessas propostas. É difícil fazer essa solução? A gente sabe fazer, do ponto de vista das tecnologias existentes? É preciso desenvolver alguma tecnologia para isso? Independentemente de se desenvolver uma tecnologia para isso ou não, qual o custo dessa tecnologia? Esse custo é alto o suficiente para, quando for gerar benefício, não ter ninguém para pagar a obra? A gente tem que eliminar metade do mercado, 75% do mercado, ou a gente pode criar mercado com essa tecnologia?

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A partir daí, descobrindo quais são os problemas e idealizando as potenciais soluções desses problemas, vem a fase de desenvolvimento de protótipos para verificar se você está indo na direção certa. Outro problema que esse processo de inovação do C.E.S.A.R ataca é que as pessoas começam a desenvolver soluções para os problemas sem passar por uma fase em que elas testam, com mercados menores, com subconjuntos específicos das soluções que elas têm, se aquela proposta resolve efetivamente o problema a que ela se propõe solucionar – e se é o suficiente para as pessoas usarem aquela solução. O fato de existir uma solução para um problema meu não garante que eu vá utilizá-la. Imagine que nós criássemos uma máquina automática de dar banho nas pessoas, um lava-jato pessoal, que você instala no banheiro, entra dentro dele, ele fecha e você sai de lá seco e limpinho. Se a gente fizer essa empresa e botar esse negócio no mercado, já imaginou a quantidade de pessoas que vai comprar isso? Um negócio que chafurda você todinho, o seca e o entrega pronto do outro lado? Isso é uma ideia absolutamente fantástica, mas tem mercado? O que esse processo de inovação do C.E.S.A.R procura responder nesse caso? Primeiramente, como se aumenta a eficiência ou eficácia de um banho? Como resolver esse problema? Com que conjunto de ideias? Como você toma banho? Como se dá banho nas pessoas? Depois se faz um protótipo, se avalia isso, se redesenha a ideia original. Às vezes a solução efetiva de um problema que gera bilhões de dólares para empresas passa por dezenas de interações dessas. Desde sair modificando qual o problema e o mercado até modificar qual o produto e como é que ele é entregue. Qual o projeto no qual você entrou com a maior certeza de que daria certo, mas acabou não sendo bem-sucedido no mercado? E qual você imaginou que não teria futuro algum e depois se revelou bem-sucedido? O projeto em que eu entrei com a maior certeza de que daria certo no mercado, e que depois entrou em colapso total, foi a Newstorm. A Newstorm era uma empresa que fazia um software chamado Notitia.

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Eu era sócio e arquiteto-chefe desse negócio. E a gente pegou, de cara, um problema de publicar o No., que foi uma das maiores revistas eletrônicas do Brasil na virada do século, e a Veja. No auge da Newstorm, ela publicava mais de 100 veículos online, e era competidor para grandes plataformas globais de software que faziam publicação de portais na internet. E ela deu completamente errado... Mutatis mutandis, era como se fosse um Wordpress? É, era um Wordpress da época. Para você ter uma ideia, esse grupo tinha o melhor conjunto – não o maior, mas o melhor – de arquitetos, engenheiros e programadores que eu já vi na minha vida até hoje trabalhando juntos, independentemente de qualquer outro grupo com que já trabalhei. Era um grupo extremamente coeso, competente, só tinha fera. Desde o começo, eu era o vendedor do negócio, mostrava a solução, demonstrava, levava aos lugares. Mas a gente colapsou porque estava muito à frente da janela de mercado e porque nós cometemos erros fundamentais, parte dos quais está relatada nesse livro, na atração e na intervenção de investidores na companhia. Nós trouxemos um investidor espetacular, mas que não entendia nada do negócio. E, depois, fizemos uma fusão com uma companhia muito boa, mas completamente diferente da nossa. O resultado foi uma catástrofe imediata. Essa foi a em que eu entrei achando que ia dar absolutamente certo, em que a gente ia imprimir dinheiro, e deu absolutamente errado. A em que eu entrei achando que ia dar errado e deu certo é o próprio C.E.S.A.R. Ele era quase uma inviabilidade: um instituto de inovação na periferia, extremamente sofisticado, que ganhou por duas vezes o Prêmio Finep de Inovação, um prêmio nacional. A gente nunca imaginou que ia chegar lá. O C.E.S.A.R hoje, na realidade, é uma rede de institutos – tem um em Sorocaba, um em Curitiba, uma filial do C.E.S.A.R-Recife em Brasília e uma instituição própria no Recife. É o maior instituto independente do Brasil no momento. Tem mais de 500 pessoas e vai completar 17 anos agora em maio. Há muito tempo que não participo da gestão, da criação da estratégia etc., mas tem pessoas extremamente dedicadas garantindo que tenha estratégia, planejamen-

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to e competência. É uma instituição que ficou completamente independente de mim, dos fundadores, e se tornou um exemplo para institutos de inovação no Brasil. No começo, quando a gente deu a partida, só via problema em todo canto. Toda semana a gente achava que ia fechar. E passamos os três primeiros anos achando, toda semana, que ia fechar. Sempre tinha uma razão para fechar e a gente não desistia. Mas eu garanto a você que os primeiros mil dias do C.E.S.A.R foram mil dias de desespero. Mas hoje ele é reconhecido internacionalmente. Não é difícil, por exemplo, achar hoje alguém aqui em Harvard ou no MIT que conhece o C.E.S.A.R. É um fornecedor de grandes empresas globais; trabalha hoje para o mundo inteiro. Talvez o segredo desse sucesso seja uma coisa que você afirma no livro: “toda boa empresa é uma boa escola”. E você continua, numa frase que achei muito interessante, dizendo que “negócios onde não se aprende o tempo todo, em tempos de economia do conhecimento, estão a caminho do grande cemitério das corporações, onde cada lápide tem o seu CNPJ”. E esse grande cemitério é tanto nacional, brasileiro, quanto internacional. Tem os casos da Pan Am, da Mesbla, da Gurgel, grandes empresas em certo momento, mas que aparentemente ficaram estagnadas em seus mercados... Aqui nos Estados Unidos, na minha área de computação, tem o caso da DEC [Digital Equipment Corporation]. Na década de 1980, era a empresa que ia tomar conta da computação do mundo. Tem a Sun Microsystems, da década de 1990. Eu estive, em 1996, na Sun, e tive a certeza absoluta de que ela ia dominar o mundo; que ia acabar, sozinha, com a Microsoft e a Apple. E ela faliu e foi comprada pela Oracle. O que ela não percebeu? É que, apesar do slogan dela, de que o computador era rede – ou seja, a nova forma de programar era programar rede –, ela não saiu para fazer computadores que fossem parte da rede, tão fáceis de programar como vieram a ser os computadores genéricos na rede. Meus alunos costumam me perguntar: “o que é um bom trabalho?”. Primeiro, eu digo que não há bons empregos, há bons trabalhos. Se você está trabalhando num lugar e não aprende pelo menos uma coisa

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nova, você está desconstruindo a sua biografia, o seu currículo. Você está se deixando sem alternativas. É a pior coisa que um ser humano pode fazer: passar o resto da vida num trabalho porque não sabe fazer nenhuma outra coisa. E, eventualmente – por não estar aprendendo nada, e como o trabalho está sempre mudando –, não vai saber fazer nem o próprio trabalho. E então tem que se sustentar no emprego politicamente, seja em um emprego público ou privado. Isso é uma catástrofe para todo mundo. Não é só uma catástrofe pessoal, é uma catástrofe humana, porque nós gastamos uma quantidade imensa de energia e recursos para formar um ser humano. Na obra também se fala sobre as restrições estruturais ao crescimento brasileiro, tanto a questão burocrática como questões de fundo, como investimento em educação. Você fala em problemas de hardware e de software: que metáforas são essas? Eu tenho advogado há décadas no sentido de que soluções para problemas estruturais são necessariamente estruturais. Não há solução conjuntural para um problema estrutural. O que significa isso? Não adianta tentar atacar um subconjunto pequeno dos problemas da educação brasileira sem atacar o problema da educação como um todo. Nós precisamos de escolas em tempo integral, isso é parte do software, mas parte do hardware também, porque nós precisamos de mais prédios nas escolas. Para ter mais prédios, mais bem-mantidos, com melhores laboratórios, talvez a gente precise de mais investimentos. Ou talvez a gente só precise melhorar o desempenho do investimento existente, porque há uma perda muito alta. Mas uma coisa é certa: quando a gente olha para a educação no Brasil, o problema está no conteúdo – o que nós estamos ensinando – e na forma – como nós estamos ensinando. A educação brasileira, historicamente, tem professores que não são preparados para ensinar o que ensinam, e alunos despreparados para tentar entender o que estão aprendendo. ***

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R O B E R T O D A M A T T A Dados antropológicos do trânsito brasileiro

O Café Colombo conversou, em novembro de 2010, com o antropólogo Roberto da Matta sobre o livro Fé em Deus e pé na tábua – ou como e por que o trânsito enlouquece no Brasil (Editora Rocco). Nesta entrevista Da Matta fala sobre como o trânsito revela particularidades culturais, como as diferenças entre a sociedade dos Estados Unidos (país em que ele fez doutorado e deu aulas por 17 anos) e a do Brasil. Além disso, foram debatidos temas como as políticas de cota racial e os problemas do Estado brasileiro, particularmente a corrupção. Segundo Da Matta, aqui, “o Estado até agora funcionou contra a sociedade. Nós pagamos os impostos, esses caras pegam os impostos e não investem”. A entrevista foi gravada nos Estados Unidos, aproveitando a visita do professor Da Matta pela Universidade de Illinois, em Urbana-Champaign.

Café Colombo – Estamos numa cidade universitária onde trânsito não é problema. Inclusive, há vários cruzamentos em que não é necessário semáforo; existe uma placa mandando parar e todos os carros param, e segue primeiro aquele que chegou primeiro. Esse tipo de cooperação imediata, negociada, funcionaria no Brasil? Roberto da Matta – Eu também faço essa pergunta para mim mesmo, desde que vim aos Estados Unidos pela primeira vez, em 1973, quando eu não tinha carro, mas já dirigia no Brasil. Eu via essas interseções full stop, em que todo mundo para e atravessa por ordem de chegada, ou seja, usando o princípio mais democrático, mais liberal e mais simples que existe. E eu sempre pensei que, no Brasil, seria praticamente impossível acontecer, a não ser que se fizesse uma campanha – porque tudo na vida é impossível e possível – muito bem-dirigida. É uma coisa que haverá no Espírito Santo, num programa que eu estou coordenando junto com o Detran. É uma coisa que Brasília conseguiu: criar uma cultura de respeitar a faixa de trânsito. Dizem que está se deteriorando, mas conseguiu. O problema não é a lei, mas a aplicação da lei. Quer dizer, você precisa saber que para aquela lei, todo sábado ou domingo, tem um guarda naquele lugar, e uma circulação, como acontece aqui nos EUA. Ontem, por exemplo, eu fui jantar com quatro professores, após uma conferência no departamento

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de antropologia. Uma professora estacionou e não botou as moedinhas, e foi notificada. Então, a polícia vigia, monitora. Isso a gente não tem no Brasil. O que tem é a chamada blitz, em que a polícia de repente aparece, mas dia sim, dia não. Pode passar três meses sem aparecer. Aqui você tem um monitoramento constante do representante da lei. No Brasil, acharia muito difícil estabelecer esses stop signs, de o cara parar na esquina. Seriam batidas de cinco em cinco minutos, porque o sujeito não ia com a cara do outro, ia achar que o outro está rindo para ele de uma maneira esquisita. Essas coisas de brasileiro. Ia ter briga para saber quem parou primeiro, se o outro avançou… É possível que funcionasse com uma boa campanha, dizendo que aquela seria a primeira cidade a civilizar o trânsito no país. O pessoal se sentiria orgulhoso e a ideia poderia dar certo. Depende da inteligência da campanha. É só o brasileiro que tem esse hábito específico no trânsito? No Peru, por exemplo, ninguém dá sinal, é uma coisa terrível. Eu acho que há um problema com os países ibéricos, países em que a classe média entrega tudo para o Estado fazer. A gente oscila: quando fica no equilíbrio entre Estado e sociedade, que é o caso do Brasil hoje, a gente está numa disputa para saber se nós seremos responsáveis por alguma coisa. O trânsito é interessante como um trabalho de reflexão sobre democracia e igualitarismo, porque leva a uma situação estruturalmente igualitária. Não há como fazer distinções no trânsito. No trânsito, todo mundo é igual. O que há de situação de abuso é o sujeito não obedecer a regras. E as regras no trânsito são impessoais, o que para nós é um problema. Se você botar um guarda, as pessoas obedecem razoavelmente. Se você tirar o guarda e botar um sinal, já começa a gambiarra, a bandalha, o sujeito acha que pode ultrapassar o outro. Outra coisa, que é mais grave ainda, é a cabeça hierarquizada das pessoas, que eu acho que ocorre na América Latina inteira, mas é preciso fazer uma pesquisa para saber os graus, em que medidas você

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tem semelhanças e diferenças. O caso do Brasil talvez seja o caso mais extremo, porque nós somos uma sociedade em que tivemos escravos. Veja o grau de desdém que os motoristas têm em relação aos pedestres. Na cabeça do brasileiro, quem está dentro do veículo é superior a quem está a pé. Aqui, é o contrário: superior é quem esta a pé. O sujeito que dirige, quando pega a carteira, tem um privilégio que o Estado está dando a ele, que lhe permite dirigir um automóvel. Ele não tira uma carteira de motorista, ele recebe uma licença. É a diferença entre carteira, que é um certificado, e uma licença para dirigir, que o Estado dá e pode revogar a qualquer momento. Isso é mais complicado, essa obediência ao pedestre, o respeito pelo outro. No Brasil, quando você entra no automóvel, fecha a porta e aquilo vira sua “casa”, você fica alucinado. É assim que as pessoas dirigem no Recife ou em Niterói, onde eu moro no Rio de Janeiro. A agressividade é muito grande. Isso dificulta também a popularização da bicicleta como meio de locomoção. E os ciclistas, por sua vez, como também são brasileiros, não obedecem a sinal nenhum. Ciclistas andam na contramão, porque são inocentes. É como se a bicicleta também não fosse capaz de machucar uma pessoa. E você sabe que um atropelamento de bicicleta em alta velocidade pode até levar um camarada para o hospital, se não matá-lo. O pedestre, por sua vez, também não obedece. Você constrói passagens, e eles não as... As passarelas, não? Sempre passam por baixo… Estou chamando atenção no livro para a necessidade de se fazer uma campanha, que obviamente precisa envolver secretários de Estado, governadores, se não o próprio mandatário principal da nação, para mostrar que existe um interesse da sociedade no sentido de melhorar essa área. O nosso trânsito fala muito do nosso grau de cordialidade, civilidade, respeito pelo próximo, obediência e internalização de regras.

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O senhor já escreveu muito sobre o “jeitinho brasileiro”, inclusive participou de uma série da TV Futura sobre o assunto. É possível ser moderno e ter instituições sólidas cultivando esse jeitinho, ou a modernidade vai ter que desencantar, usando Weber, o jeitinho brasileiro? Não, eu acho que é possível. Os Estados Unidos foram o primeiro país que aplicou o sistema republicano no planeta, e eles continuam soltando fogos de artifício, de vez em quando tem quadrilha, dançam rodeio, há uma série de instituições que são tradicionais nos Estados Unidos. Mas a ideia de jeitinho, de que há a regra, mas é possível relativizar por um motivo pessoal… Aqui também se têm alguns bypasses. Você sabe que tem uma estrada secundária em que você não paga o pedágio, aqui também se faz isso. O que não se pode fazer é transformar o desvio, o rompimento da norma, num valor. Como a gente diz no Brasil, o sujeito que segue a regra é o bobão. O superior não segue a regra. Isso não pode; isso é muito complicado porque o sistema político brasileiro hoje é o mais atrasado em relação a essas regras. Obedece-se às regras, por exemplo, na economia: se você não paga seu cartão de crédito, você perde o cartão e vai perder o crédito. A punição é imediata. A punição é imediata, mas no sistema político não é. O sistema político é o mais suscetível aos interesses pessoais. Nomeia-se o filho do amigo, o sobrinho do parente... Veja o caso daquela moça, a Erenice [Erenice Guerra, ex-assessora de Dilma], que nomeou o filho... Criam a sua própria Bolsa Família… Sim, porque a família é uma instituição importante no Brasil, tem as suas regras, suas demandas. Outro ensaísta e sociólogo brasileiro, Gilberto Freyre, considerava-se um gênio (e, abaixo dele, no Brasil, só Aleijadinho). Você, que é um estudioso da obra dele, considera isso verdade? E fazendo uma

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provocação: depois de Freyre, você se considera o ensaísta que mais compreendeu as características do povo brasileiro? Assim você me colocou numa sinuca de bico. Se ficar o bicho pega, se correr o bicho come. O Gilberto tinha realmente essa consciência da sua própria excelência, o que é uma coisa positiva. Não vou dizer que é negativo; isso só é um problema da psicologia do Gilberto Freyre. Agora, qual é a semelhança que existe entre o meu trabalho e o de Gilberto Freyre? Obviamente, ele teve uma formação antropológica que foi muito prematura no caso do Brasil. A antropologia cultural, de Franz Boas. Sim, o Franz Boas, que era um antropólogo cultural e, assim, observava o cotidiano. Há uma série de observações desse tipo nos livros de Gilberto Freyre, embora os livros tenham grandes temas, como a formação da família brasileira, a formação do patriarcado, a decadência do patriarcado, a tentativa de criar uma ordem republicana etc. Embora você tenha livros voltados para instituições que são, digamos, privilegiadas – o caso da família, do patriarcado, da república –, você tem, na escrita do Gilberto Freyre, uma série de observações sobre o cotidiano das pessoas. Sobre a mulher, sobre o homem… Receita de bolo… Em vários livros ele fala da culinária, da vida adocicada, desse açúcar que permitiu, de certo modo, amaciar as cruezas, as crueldades e até mesmo a violência, sempre muito grande, de uma sociedade escravocrata, principal ponto dele. Você tem muitas áreas de encontro, dobradiças. Nesse sentido, guardando as proporções da genialidade dele e da minha mediocridade, tem semelhanças, porque eu também fiz uma trajetória estudando jogo do bicho, Carnaval, comida, comportamento, festas populares, fazendo alguma crítica literária de terceira categoria, tentando descobrir a questão do sujeito que renuncia ao mundo, essa visão que até hoje existe na política brasileira, do político enquanto o camarada que está num grande sacrifício de virar governador e virava um ladrão, para roubar tudo.

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Na metade da década de 1980, você lançou uma obra sobre a questão, tão debatida até nossos dias, da identidade brasileira: O que faz do Brasil Brasil. E hoje, já é diferente? O Brasil ainda tem que procurar uma identidade? Não, o Brasil não tem que procurar uma identidade; o Brasil tem que escolher de que lado está. Se vai continuar achando que desobedecer a sinal de trânsito, não pagar empréstimo, entrar no governo para nomear parente, virar governador para ficar bebendo coquetel todo dia e não cuidar de nada, não vigiar nada, não visitar sequer um bairro pobre quando esse bairro é atingido por uma enchente ou calamidade… Se é isso, ou se ele quer uma sociedade em que o Estado funcione para as pessoas e não contra elas, porque até agora o Estado funciona contra a sociedade. Nós pagamos impostos, os caras pegam os impostos e não investem na sociedade, porque investem nos amigos, nomeiam parentes para altos cargos, cargos especiais, e até estipulam o salário. O que a gente quer? Aí está o problema da classe média, mesmo. O problema é nosso. É dizer que agora é nossa vez, mas nós não vamos usar a nossa vez como as outras pessoas usaram, nós vamos usar realmente esse dinheiro para construir, acumular e outra coisa importante: não desmanchar o que os outros fizeram. O senhor acredita que estamos avançando ou retrocedendo? Estamos avançando. Pensando no exemplo do Tiririca, que fez a campanha “pior do que tá não fica”, ou “está aqui meu pai, minha mãe, vim aqui mostrar, porque tá todo mundo mostrando a família para ganhar voto”. Ele colocou várias coisas desse gênero, de modo escrachado, e foi referendado... Mas isso é pior do que a campanha que o Plínio [Plínio de Arruda Sampaio, ex-candidato à presidência pelo PSOL] fez, dizendo que está tudo errado? Dizendo que tem que limitar a propriedade rural em dez mil hectares para cada um, ou seja, que o agronegócio deve ser destruído?

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Mas o Tiririca teve mais voto que Plínio. Eu sei, mas isso é diferente da campanha que o PT fazia, com aquela menina de Alagoas, a senadora Heloísa Helena? Ela fazia campanha dizendo que tudo que estava aí era uma porcaria. Ou a Marilena Chauí, que dizia: “vai comemorar o quê com 500 anos”? Isso é diferente do que o Tiririca faz? Esse é o primeiro ponto. Segundo: dizem que ele é analfabeto. Faz um ditado com os membros do Congresso Nacional e com alguns funcionários da Presidência da República. Pega o presidente e faz um ditado com ele; vê se ele passa o Tiririca. Vê quem é o mais ignorante. Quer dizer, são coisas brasileiras. Em todo sistema político aparecem canalhas, analfabetos, sujeitos falsos. O problema não é o Tiririca; é quem elegeu o Tiririca. Não é o sistema político; o sistema político é aberto. Você pode votar num hipopótamo, num rinoceronte ou num burro... Isso fala muito menos do burro e muito mais de quem está votando nele, que são os grandes burros, os grandes analfabetos. Em uma de suas apresentações aqui na universidade você afirmou que “only foreigners make good questions”, ou seja, só os estrangeiros fazem as boas perguntas. O fato de ter vivido boa parte de sua vida aqui nos Estados Unidos o permite olhar a cultura brasileira com mais distanciamento, mas ao mesmo tempo ser parte integrante dela? Com certeza. Acho que isso é outra semelhança que ocorre entre o meu trabalho na época em que comecei a escrever – o que já faz tempo – e o do Gilberto Freyre. Não foi à toa que Freyre foi capaz de conceber tanta coisa em relação ao Brasil, graças à educação dele a partir de seus treze anos… Quando ele foi para o Colégio Americano Batista (um colégio americano), depois foi estudar em Baylor [universidade batista no Texas], depois Columbia... Quer dizer, uma visão americana. O Gilberto Freyre já tinha uma crítica da modernidade americana, modernidade igualitária etc., antes de voltar ao Brasil. Ele tinha um pé atrás em relação a determinadas

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soluções que ele sabe que são fáceis demais. Você não muda um país por lei. Ele esteve aqui e, apesar de ver que os Estados Unidos têm muita coisa interessante, viu também o linchamento de um menino negro. No Texas, não foi? Sim. Ele também viu a dificuldade de se ter no Brasil um sistema universitário como o americano, que é uma coisa realmente de deixar a boca aberta. Instituições em que as pessoas estão para pensar, para discutir da maneira mais aberta e democrática possível, e que são instituições privadas. A Universidade de Illinois, na qual estamos, pertence ao Estado, mas os estudantes pagam. O Estado só entra com 20% de todo o orçamento da universidade, que tem que captar investimentos em pesquisa e tudo o mais. E os alunos também dão dinheiro. Esse Lemann Institute [instituto de estudos brasileiros da Universidade de Illinois, fundado a partir de doações do empresário Jorge Paulo Lemann], que me trouxe aqui, por exemplo. Isso é uma coisa completamente ausente no Brasil, onde as próprias elites acham, como também os pobres, que o Estado é quem tem obrigação de dar tudo. Sim, mas o Estado vai tirar o dinheiro de onde, de Marte? Ele tem que tirar dinheiro da sociedade, para depois pôr na sociedade e gerenciar. Mas uma universidade dessa precisa ser gerenciada com o maior esmero. Isso a gente não tem no Brasil; isso falta. Nesse ponto, quem é estrangeiro percebe melhor. Por outro lado, quem é estrangeiro aqui tem mais facilidade para perceber que os americanos são mais calados, que têm suas dificuldades emocionais... Esse negócio de ser todo mundo “durinho”: dá a impressão de que eles estão marchando… Mas, ao mesmo tempo, você percebe mais respeito pelo próximo, respeito aos sinais, os motoristas param para você atravessar a rua, sobretudo se for um camarada de idade, como é o meu caso. Tudo isso tem os prós e contras. Mas a gente observa melhor, porque o viajante é o estranho, o outsider, a pessoa que tem o olhar diferente. Ele não está usando os óculos, o filtro que pertence àquela sociedade.

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Você acredita que o brasileiro médio tem pouco conhecimento sobre a sociedade americana? Acho que isso tem mudado um pouco, mas continua. Difícil você encontrar um país que tenha essa força, essa potência que têm os Estados Unidos, em todos os níveis, não só econômico, mas também militar. É algo muito grande, muito poderoso; embora tenham uma dívida crescente, eles estão se recuperando. Há alguns sinais visíveis de certa decadência, certo desânimo, uma falta de energia… Eles não são os mesmos que eu conheci em 1963, 1970 ou em 1990. E tem essas guerras todas, que tiram energia. São sangrias, não só em termos financeiros, mas em termos humanos, porque as pessoas morrem. Perder um filho é ruim; perder um filho numa guerra é pior ainda. Duas questões hoje muito debatidas no Brasil são o multiculturalismo e as políticas de cotas. Como o senhor se posiciona a respeito desses temas? Eu não vejo oposição entre meritocracia e cotas. Eu acho que a cota é contemplar a meritocracia para os grupos que, em virtude de fatores históricos de preconceito, ideologia e opressão econômica, ficaram retardatárias. O que eu acho é que não podem ser programas perpétuos, eternos... Mas você tem que contemplar determinadas pessoas. Por exemplo, um deficiente físico, num país que sempre teve preconceito com qualquer pessoa que fosse diferente. É difícil, ele ficava excluído. A sociedade pode, então, permitir que se privilegiem essas pessoas, para que elas realizem certas coisas durante certo período. Depois, você coloca isso dentro dos eixos, o programa sai, e essas pessoas passam a ser “normais”. É o que eu acho que deve acontecer em relação às etnias, os negros, os índios. Eu realmente fiquei cansado aqui nos Estados Unidos de observar os ministérios, no Brasil, e não haver nenhum negro. Os amigos americanos me perguntam que democracia racial é essa, em que não aparece negro – só aparece em futebol. No corpo diplomático brasileiro não tem um negro; todos os cônsules e todos os embaixadores são brancos. Se você vê uma fotografia do Ministério das Relações Exteriores, não há um

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negro, mas quando aparece violência, é violência contra um negro. Eu vi várias vezes até na televisão daqui, e ficava revoltado. Então, realmente, eu sou favorável ao sistema de cotas. Tem muitos colegas meus que dizem que sou maluco, mas tudo bem... Você acha então que a trajetória dos Estados Unidos, que implantaram o sistema de cotas e depois o derrubaram, é uma boa trajetória? Inclusive, alguns negros americanos não aceitaram as cotas, não quiseram isso, porque eles achavam que tinham condições de competir com qualquer branco. Mas isso não está imerso no sistema econômico brasileiro, porque o sistema econômico americano integrou esses negros às universidades a partir de 1961, 1962, quando eu estava aqui na minha primeira temporada americana. Foi a grande revolução dos civil rights. Nós teríamos que fazer um civil rights no Brasil, que incluísse isso e que também forçasse os dirigentes brasileiros a obedecer às leis – coisa que não existe no Brasil. ***

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L AU R E N T I N O G O M E S Um país em que tudo se copia

Após mais de três anos na lista dos mais vendidos com a obra 1808, que trata da fuga da família real portuguesa para o Brasil, Laurentino Gomes conseguiu subir ao topo do ranking de best-sellers novamente com 1822, um livro-reportagem que trata do período da Independência Brasileira. Em dezembro de 2010, o autor esteve no Café Colombo para falar sobre o impacto de suas obras no mercado editorial e os desafios de escrever com fluidez e sem vícios acadêmicos sobre a história do Brasil. Laurentino Gomes trabalhou como repórter e editor do Estadão e da Revista Veja. Foi ainda diretor da Editora Abril e, com 1808, ganhou prêmios da Câmara Brasileira do Livro e da Academia Brasileira de Letras.

Café Colombo – Em seu livro 1822, você começa, com certo ar de provocação e deboche, dizendo que naquela época parecia improvável que o Brasil se tornasse independente. Por quê? Laurentino Gomes – Eu abro o capítulo dizendo que quem observasse o Brasil em 1821, na véspera da Independência, teria sérias dúvidas a respeito da sua viabilidade como nação soberana, integrada e independente, porque os problemas eram maiores do que as soluções. O Brasil tinha 90% da população analfabeta, havia uma grande concentração de propriedade e de riqueza. Portanto, não havia povo na Independência do Brasil, no sentido de uma entidade capaz de participar politicamente. As províncias eram rivais e isoladas. O país estava falido porque, ao voltar para Portugal, em 1821, D. João havia raspado os cofres e levado tudo para Portugal. Então, a maior chance, caso o Brasil tivesse ido por uma via republicana, era que os chefes locais – as elites locais – entrassem numa guerra civil, entre si. Nessa hipótese, o Brasil poderia se fragmentar, em dois ou três países independentes. Havia outra ameaça, mais grave ainda, de uma guerra étnica entre escravos e brancos. De cada três brasileiros, um era escravo, e era uma população muito pobre, carente de tudo, à margem de qualquer oportunidade na sociedade brasileira. Então, a possibilidade de que os escravos se rebelassem – como havia acontecido no Haiti em 1818 – era muito grande. No Haiti, quando os escravos tomaram conhecimento da Revolução Francesa, acharam que aquela Declaração Universal dos Direitos do Ho-

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mem valia para eles também, e trucidaram os brancos. Houve um banho de sangue. O medo de que isso se repetisse aqui era muito grande. O Brasil, em 1822, se mantém como um país integrado, não se divide, por uma solução diferente, exótica na América, que era um arranjo de monarquia constitucional, com o poder nas mãos de D. Pedro I. Naturalmente alguns personagens ao redor de D. Pedro foram decisivos no encaminhamento dessa monarquia constitucional. Um deles foi José Bonifácio. Queria que você detalhasse um pouco o papel que ele teve, assim como também o da Imperatriz Leopoldina, nessa solução constitucional de país que surgiu em 1822. José Bonifácio era um homem muito experiente. Na época da Independência, ele tinha 59 anos, dos quais tinha vivido 36 na Europa; era um grande mineralogista, tinha sido professor em Coimbra, tinha visto a Revolução Francesa nas ruas de Paris. Portanto, ele sabia exatamente o que eram as massas com reivindicações políticas sem o controle das instituições, ele sabia do perigo disso. Quando ele chegou ao Brasil, notou que esse país grande, diverso, com realidades regionais, culturais e étnicas tão diferentes, poderia se fragmentar numa guerra civil ou étnica, caso se encaminhasse por uma solução republicana. Então é dele que emerge, às margens do Ipiranga, o arranjo de uma monarquia constitucional com o poder centrado no imperador Pedro I. Ou seja, ele é o artífice da Independência, o mentor intelectual do D. Pedro. É interessante porque ele passa para a história como um homem muito austero e sisudo, o Patriarca da Independência, mas na verdade ele era muito mais interessante do que isso. Era boêmio, bom de copo, dançava lundu em cima da mesa até de madrugada… Você chega a compará-lo a Thomas Jefferson… Exatamente. Eu o comparo com Thomas Jefferson, com algumas vantagens em favor do José Bonifácio. Ele era mais experiente que o Thomas Jefferson, e mais divertido. Jefferson era um cara muito chato, um advogado sisudo, sujeito sem nenhum humor. Enquanto o José Bonifácio era um bom piadista, um bom poeta. Diziam que era muito

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divertido participar de uma reunião com ele. E tinha ainda outra vantagem: ele era antiescravagista, enquanto o Jefferson foi traficante de escravos. Eu diria que José Bonifácio só teve um problema: nascer no Brasil. Se ele tivesse nascido nos Estados Unidos, hoje seria uma das maiores celebridades da história. Além de ser um cientista, não é? Ele tinha trabalhos na área de pedras, de mineração… Sim! Ele foi um grande cientista, descreveu 12 tipos de mineral. O personagem central da obra é D. Pedro I, e eu posso dizer que você até o constrói de forma generosa. Queria que você comentasse se essa minha percepção é adequada, embora você reconheça as contradições, as fraquezas e, de certa forma, até o pouco rigor intelectual dele. Eu diria que D. Pedro sofreu um processo de desconstrução na história. É engraçado. Acho que ele tem um papel simbólico importante, é o herdeiro da coroa de Portugal que fica aqui, lidera o processo de independência, mas era muito jovem, tinha apenas 22 anos. Em 1821, ele escreve uma carta curiosíssima ao pai, em que ele diz assim: “Pai, por tudo de mais sagrado que há nesse mundo, me dispensa desse emprego”. “Me tira dessa!” É curioso você notar o herdeiro da coroa de Portugal pedindo dispensa do emprego. Mas ele logo se encanta com a possibilidade de ser o primeiro imperador do Brasil e lidera a Independência. Era um homem muito contraditório: tinha um discurso liberal, lia os enciclopedistas franceses, admirava Napoleão Bonaparte e tinha uma índole muito autoritária. Ele fechou uma constituinte, outorgou uma constituição por sua própria conta. Era um grande aventureiro, romântico, e teve mais de 20 amantes conhecidas. Tudo isso – os escândalos da sua vida pessoal e a prática autoritária do poder – acabou contribuindo para a sua perda de popularidade, de modo que o D. Pedro vai embora do Brasil em 1831 e passa rapidamente de herói à vilão da Independência.

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Você acredita que nossa percepção histórica atual sobre o significado do Grito da Independência se transformou muito em relação à interpretação oficial dos antigos livros de história? A história é uma disciplina que me encanta porque muda o tempo todo. Os personagens e acontecimentos estão congelados no passado e não mudam mais, mas a história continua mudando. Ou por informações novas que os historiadores encontrem nos arquivos ou pela forma como nós olhamos para o passado. Há uma construção em cima da história. E a Independência é um caso típico. Você tem o quadro do Pedro Américo que não é uma cena real, é uma alegoria, uma celebração da Independência do Brasil. Ele foi encomendado pelo imperador Pedro II, já na véspera da Proclamação da República, e celebra um feito da Monarquia – o Grito do Ipiranga –, mas nada do que tem ali é verdadeiro. D. Pedro não estava vestido como príncipe real, estava como um tropeiro; ele não cavalgava um cavalo alazão, estava numa mula de carga; os Dragões da Independência não existiam ainda... E uma coisa curiosa é que D. Pedro estava com dor de barriga: havia comido uma coisa que lhe havia feito mal em Santos. Tem uma testemunha do Grito, o Coronel Marcondes, que diz que de tempos em tempos ele apeava da montaria para prover-se. Eu diria, então, que a verdadeira cena da Independência é mais brasileira, mais real, mais bucólica, do que o quadro do Pedro Américo, mas ainda assim importantíssima. Pedro Américo que, aliás, foi acusado depois de plágio. Exatamente. O quadro de Pedro Américo é muito parecido com outra pintura que está no museu Metropolitan, de Nova Iorque, e celebra uma batalha de Napoleão em Friedland, do pintor francês Jean-Louis Meissonier. Toda a distribuição dos elementos é idêntica. O Pedro Américo estudou detalhadamente o quadro do Meissonier, mas em momento algum ele se refere ao quadro do pintor francês no memorial descritivo do quadro. Então fica a suspeita de que a principal cena da Independência do Brasil foi um plágio. Neste país em que tudo se copia, até a cena da Independência provavelmente foi copiada.

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É normal que, quando a gente começa a estudar a história, também faça um exercício que a academia já faz, com um rigor metodológico, que é de história especulativa, o famoso “se...”. Você faz isso em seus livros? Em história é muito difícil fazer conjecturas porque qualquer peça que mexesse no passado faria desabar todo o conjunto. Se você muda um personagem ou um acontecimento, todo o resto é afetado. Mas é claro que é fascinante imaginar se D. João, por exemplo, não tivesse vindo ao Brasil. Nesse caso, provavelmente, a Independência viria talvez até mais cedo, mas de uma forma republicana. Foi o que aconteceu na América Espanhola. Quer dizer, a presença da coroa portuguesa no Brasil, que manteve o Brasil unido, impediu a fragmentação territorial e sustentou a monarquia por mais 60 anos, cercada de repúblicas por todos os lados. Se D. João não tivesse vindo, haveria um vácuo de poder na Independência do Brasil e os chefes locais mergulhariam provavelmente numa guerra civil republicana. Nesse caso, o Brasil se dividiria em dois, três ou quatro países independentes. É muito difícil dizer se isso seria melhor ou pior. É possível falar num Brasil unido, de dimensões continentais, e hoje isso é uma vantagem no mundo globalizado, em que tamanho populacional, de mercado, conta. Mas talvez a gente tivesse uma constelação de países de língua portuguesa mais homogêneos, mais fáceis de governar. O Brasil paga um preço alto por sua integridade territorial. Nesse país, que é muito complexo e muito diverso, o presidente precisa tomar decisões que valham para Caxias do Sul e para Tabatinga, no Amazonas. Quem foi o “escocês louco”? O escocês louco por dinheiro é um herói maldito da Independência do Brasil, o Almirante Thomas Alexander Cochrane. Ele foi um herói da guerra contra Napoleão, foi eleito para o parlamento britânico e se envolveu num escândalo na bolsa de valores de Londres. Foi preso, passou um ano na cadeia, fugiu e foi contratado como mercenário para fazer as guerras de independência no Chile, no Peru, no Brasil e depois na Grécia. É interessante porque a participação do Lorde Cochrane na

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guerra da Independência foi fundamental para a expulsão dos portugueses do Norte e Nordeste, só que ele saqueou a cidade de São Luís do Maranhão e roubou um navio brasileiro, a fragata Ipiranga. Ele queria dinheiro, e D. Pedro não tinha recurso para pagar o que ele imaginava merecer, então ele saqueou a capital do Maranhão e roubou um navio. É engraçado porque, embora ele seja o fundador da marinha brasileira – o primeiro almirante brasileiro –, nunca teve um navio batizado com seu nome em toda a história da marinha brasileira, porque ele é simultaneamente herói e vilão da Independência, e é virtualmente desconhecido de quase todos os brasileiros. Se você perguntar para uma criança, que estudou a história da Independência, quem foi o Lorde Cochrane, ninguém nunca ouviu falar. Mas ele é, legitimamente, um herói da Independência Brasileira, só que um herói às avessas, porque era um mercenário. Gostaria que você falasse sobre a proposta que surgiu na Confederação do Equador, e sobre qual foi a reação do governo central para combatê-la. Pernambuco abrigava nessa época um forte projeto federalista, então é um erro dizer que Pernambuco era separatista. Pernambuco era federalista. Tanto em 1817 quanto em 1824, havia em Pernambuco o desejo de que as províncias fossem mais autônomas: que tivessem o seu próprio orçamento, sua própria força militar, seus tribunais, sua assembleia, seu tesouro, mas isso se opunha ao projeto de centralização, primeiro, de D. João VI; depois, de José Bonifácio e D. Pedro I. Pernambuco então se rebela, em 1817, num movimento claramente republicano. E paga um preço: perde o território de Alagoas. Depois, em 1824, Pernambuco se rebela porque D. Pedro havia rompido um pacto construído em 1822, que era o Pacto de Constituição. Ou seja, D. Pedro assumiria o trono como imperador constitucional, portanto teria uma lei que limitaria os seus poderes. O D. Pedro acabou dissolvendo a constituinte em novembro de 1823 e outorgando, sozinho, uma constituição. Frei Caneca, então, diz o seguinte: está desfeito o pacto que unia as províncias, agora cada uma segue o seu caminho.

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Há novamente uma rebelião, com o apoio da Paraíba, do Rio Grande do Norte e especialmente do Ceará, e D. Pedro reprime duramente a Confederação do Equador. Frei Caneca é executado aqui no Forte das Cinco Pontas. E Pernambuco paga um preço de novo, perdendo a Comarca do São Francisco para a Bahia. E de certa forma é o que desenha o estado de Pernambuco hoje, com a perda de Alagoas e da Comarca… Exatamente. Eu digo no meu livro que nenhum estado pagou um preço tão alto pelas rebeliões que liderou nesse período. Pernambuco perdeu dois terços do seu território. Ele começou em 1817 com 278 mil km² e terminou com 98 mil km², que é a sua dimensão territorial atual. A perda do território foi a punição pelas rebeliões que os pernambucanos lideraram nesse período. De 1808 e 1822 para cá já são quase quatro anos na lista dos mais vendidos – um sucesso absoluto de vendas. Era preciso que um jornalista chegasse para poder colocar a história de volta na lista dos mais vendidos? A minha contribuição é de linguagem. Eu acho o seguinte: os historiadores geralmente, quando se dedicam à pesquisa, têm em mente uma banca examinadora de mestrado ou doutorado, o que rende uma linguagem técnica, voltada para os pares. Essas pessoas dominam os mesmos jargões, decifram essa mesma linguagem e a usam para a validação dos seus estudos acadêmicos. O jornalista não passa por esse sistema de validação. Quando ele vai escrever um livro ou uma matéria de jornal ou revista, tem em mente um público mais amplo, então precisa ser mais didático na linguagem, ou as pessoas não vão entender o que ele escreve. O que eu faço, hoje, é um trabalho de divulgação científica. Eu não estou competindo, e, principalmente, eu não quero desqualificar o trabalho dos historiadores. Pelo contrário: eu bebo na fonte dos historiadores. São eles que fornecem as informações que eu uso nos meus livros. O que eu faço é decodificar, decifrar essa linguagem num texto de forma mais divertida e mais leve.

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Há também um projeto editorial, uma estrutura da obra, que ajuda nesse sentido, não é? Sim. Não é só o texto. Tem uma experiência de editor. Eu fui por 30 anos editor de jornais e revistas. Então eu sei, por exemplo, como apresentar, como fazer uma capa de revista. Por isso é que eu uso essa linguagem provocativa nas capas do meu livro, como a rainha louca, o juiz medroso, o homem sábio, a princesa triste. Ou seja, eu estou o tempo todo tentando capturar a atenção de um leitor que provavelmente não leria sobre história do Brasil se eu usasse uma linguagem mais neutra, mais acadêmica. A forma de organizar o livro também, de organizar o texto, distribuir os capítulos, as ilustrações. A forma como o livro é editado é uma forma jornalística. Por isso que eu chamo o livro de “livro-reportagem”. Ou seja, eu estou aplicando nos livros o que eu aprendi como editor. É verdade que ainda falta um livro para completar uma trilogia de datas? Sim. Eu quero fechar uma trilogia de datas no século XIX que explicam a construção do Brasil de hoje. Na verdade, a construção do Estado brasileiro. 1808, com a chegada da Corte, com a transformação de uma colônia atrasada, ignorante, isolada e proibida, num país que prepara o seu caminho para a independência, que só acontece em 1822. Ali, o Brasil se torna uma flor exótica nas Américas, uma monarquia cercada de repúblicas por todos os lados, até uma real ruptura no processo político, em 1889. Eu quero fechar essa trilogia contando o que foi o Segundo Reinado e a Proclamação da República. ***

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