Cooperação em saúde nas fronteiras: os entes subnacionais e o desenvolvimento do SIS-Fronteira

June 16, 2017 | Autor: Márcio Scherma | Categoria: Borders and Frontiers, Fronteras, Borders and Borderlands
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Capítulo 6 COOPERAÇÃO EM SAÚDE NAS FRONTEIRAS: os entes subnacionais e o desenvolvimento do SIS-Fronteira Márcio Augusto Scherma* Sara Solange Alves Ferraz**

TEORIAS, COOPERAÇÃO E INTEGRAÇÃO Quando do surgimento do estudo acadêmico das relações internacionais, o liberalismo foi a primeira corrente de pensamento a ganhar força. O liberalismo baseou sua visão das relações entre Estados no pensamento de autores clássicos, tais como Immanuel Kant e Hugo Grotius. O pressuposto mais importante, para esta escola, é que o ser humano é racional e que, a partir desta racionalidade, as relações sociais seriam transformadas gradualmente em benefício da própria humanidade, acabando com as mazelas que afligem o mundo, inclusive com as guerras. * **

Professor do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal da Grande Dourados. Doutor em Relações Internacionais pela UNICAMP. Graduada em Relações Internacionais pelo Centro Universitário IESB/DF.

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Desta forma, os mecanismos que podem representar o progresso da sociedade internacional anárquica até uma forma mais regulada em direção à paz, recebem atenção especial. Como exemplos, temos o direito internacional e as organizações internacionais. A partir do pós–Primeira Guerra Mundial, as ideias liberais que tiveram o presidente americano Woodrow Wilson como principal expoente, tomam conta do pensamento sobre as relações internacionais, e chegam a materializar-se, como no caso da Liga das Nações. A crise dos anos 30 e a Segunda Guerra colocam em xeque o poder pacificador destas organizações, e a ordem bipolar da Guerra Fria deixa em segundo plano as tentativas de cooperação entre os países. Nesta realidade conflituosa, tem grande crédito a visão realista acerca das relações internacionais. Assim, dentre as correntes teóricas utilizadas como instrumentos de análise para as relações internacionais, o realismo torna-se a teoria preponderante, uma vez que permite compreender as relações de uma época marcada por grandes conflitos, em que o papel do Estado esteve centrado na manutenção de poder como forma de garantir a sua própria sobrevivência Na discussão sobre garantia desta sobrevivência, a perspectiva realista considera os Estados como a unidade fundamental de análise, uma vez que após a Paz de Westphalia, estes são os entes soberanos responsáveis por exercer a diplomacia, tratar sobre assuntos de guerra, assim como tratar de impedi-las, fazendo uso principalmente de tratados firmados entre Estados. Ao definir o Estado como um ator racional, o realismo defende que este, por meio de seus formuladores de política, é capaz de definir objetivos alcançáveis, de maneira a maximizar os resultados positivos que visem o interesse nacional. Como consequência, “o processo político era visto como uma luta pelo poder, e a primazia era dada a assuntos relacionados ao uso da capacidade militar e sua influência sobre a estruturação da ordem mundial” (CASTRO, 2001, p. 19),

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fazendo com que a discussão sobre a política internacional se tornasse sinônimo de discussão de assuntos de segurança internacional. Atrelada a essa discussão, esta passa a ser fator determinante do debate teórico realista, como principal fomentadora da paz e estabilidade da segurança internacional, tornando-se a questão mais importante no debate internacional dentro da visão realista. A visão realista foi bastante eficaz em explicar a realidade durante a bipolaridade da Guerra Fria, e justamente por isso, a teoria ocupou o posto central na disciplina de Relações Internacionais durante este período. Entretanto, a internacionalização da economia, que vinha já ocorrendo, tornou possível que considerações outras, privilegiando novos vetores, adquirissem força explicativa, e ganhassem importância frente às explicações realistas. Paralelamente, outros atores, além dos Estados (como as Organizações Não-Governamentais/ONGs, mídia e opinião pública etc), passaram a desempenhar papel significativo, chocando-se contra o pressuposto estatocêntrico do realismo. Assim, as mudanças que emergem com maior força, sobretudo a partir da década de 1970, levam a uma reestruturação das teorias liberais nas relações internacionais. Motivada por explicar a cooperação crescente no mundo, a crítica dos liberais ao realismo inclui, ainda o fato de que, para os últimos, os Estados (atores racionais) não discutem a possibilidade de cooperação. Atrelada ao liberalismo, a Teoria da interdependência destaca a dependência mútua entre os atores, em situações nas quais ocorrem efeitos recíprocos entre países ou entre atores em diferentes países, e é capaz de compreender a atuação de novos atores no processo decisório, sem excluir a importância e o papel do Estado. “Interdependence, most simply defined, means mutual dependence. Interdependence in world politics refers to situations characterized by reciprocal effects among countries or among actors in different countries. These effects often result from international transactions - flows of money, goods, people and messages across international boundaries” (KEOHANE;NYE, 2001: 07).

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No mundo interdependente, a união de forças para aumentar poder e competir em escala global também passa a ser um fenômeno recorrente. O estabelecimento de regimes internacionais e de blocos econômicos é decorrente dessas novas necessidades. Os países buscariam parcerias para aumentar seu poder e se prevenir frente às implicações da interdependência. Desse modo, para os neoliberais, uma política de poder na era da interdependência passa pela integração. Seja pelo pertencimento a blocos econômicos ou a regimes transnacionais, a cooperação pode ser uma maneira de angariar maior poder de barganha no sistema internacional. Nesse contexto, surgem novas perspectivas como a teoria funcionalista, que busca explicar processos de integração como os que deram origem à União Europeia. Acompanhando o desenvolvimento das teorias de integração regional, a base do funcionalismo está em uma sociedade internacional proporcionada pela criação das organizações internacionais e sua influência no progresso (Arenal, 2002). O funcionalismo, então, ganha espaço nessa discussão, uma vez que questiona o papel do Estado como suficiente para suprir as necessidades da humanidade, uma vez que como unidade política dominante no cenário internacional, tem sua jurisdição limitada ao seu território, enquanto que essas necessidades ultrapassam as fronteiras. Conforme afirmaram Mariano e Mariano (2002, p. 55), ao ultrapassar as fronteiras, “tendo como ponto de partida a iniciativa burocrático-estatal, o processo iria se esparramando (spillover) para a sociedade, criando uma dinâmica de reações, demandas e respostas,” de maneira que torna-se fundamental para a tomada de decisões a atuação de novos atores como grupos de interesses da sociedade e atores subnacionais. Novamente segundo os autores: [...]A sociedade não se limita apenas a respeitar os acordos feitos entre os governos, buscando formas de melhor intervir e participar das

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negociações. Esse interesse proporciona ao processo de integração uma dinâmica própria, tornando-o menos dependente da vontade política dos governos. O spillover supõe a existência do núcleo funcional com capacidade autônoma de provocar estímulos integracionistas, incorporando, ao longo do tempo, novos atores e setores relevantes. Esse fenômeno ocorre quando políticos e elites percebem que a integração pode produzir mais benefícios econômicos do que sacrifícios e tentam por isso influenciar suas instituições centrais. O núcleo funcional atrai apoio e amplia o processo ao passar para os políticos e para as elites dominantes essa percepção positiva da cooperação (MARIANO; MARIANO, 2002,p. 55)

Os neofuncionalistas partem do pressuposto de que a integração regional é impulsionada pelos atores estatais que formariam o núcleo funcional e, posteriormente, o efeito spillover seria inevitável ao processo, alcançando a sociedade e criando uma dinâmica própria de reações, demandas e respostas.

A PARADIPLOMACIA E A COOPERAÇÃO O efeito de “transbordamento” que afetaria as relações internacionais, iniciado por um processo de cooperação que pudesse alcançar a integração de maneira intensa, teria como percurso natural a descentralização, entendida como a transferência de poder central para os níveis subnacionais de governo. O termo “paradiplomacia”, que surge em meados de 1980, passa a abordar então a atuação dos entes subnacionais no cenário internacional, tendo como base a chamada cooperação descentralizada, ou, nas palavras de Bueno (2012, p. 6), as “atividades, ações e programas de intercâmbio e cooperação que se estabeleçam entre — e sob a iniciativa de — atores subnacionais constituintes de dois ou mais diferentes estados nacionais”. Um ente subnacional é uma organização formal com limites territoriais, população e funções definidas. Conforme apontou Montecinos (2005, p. 74) “(...) o estado subnacional pode ser visto como um conjunto de elementos interdependentes, que integram e fazem a alocação de valores em dada sociedade”. Ao mesmo tempo, o ente subnacional é integrante

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de um sistema mais amplo, o nacional, que o limita e influencia nessa função. Entendemos que essa esfera estatal está inserida em um sistema mais abrangente, sendo, portanto, subsistema político que contribui para a realização dos objetivos daquele. Ao mesmo tempo em que a esfera subnacional garante o funcionamento do sistema como um todo servindo à população sob sua jurisdição, não é reconhecida, entretanto, como um ator válido no direito internacional, tendo a necessidade de ser representada pelo Estado ao qual está submetida. Pensando na integração regional, as regiões de fronteira podem ser consideradas como o primeiro nível de integração com os países vizinhos. Nessas regiões, a integração é fenômeno inexorável, pois ali ocorre em seu cotidiano operacional: no convívio do dia a dia, entre pessoas, empresas, fluxos financeiros, culturais e simbólicos. Assim, a cooperação subnacional tem se tornado essencial para as relações nas fronteiras, uma vez que, pela proximidade terrestre e facilidade de acesso, alguns assuntos exigem a atuação conjunta dos representantes subnacionais que vivenciam a realidade fronteiriça. O poder central, pela distância, e muitas vezes, pela lógica centralizadora que ainda rege as relações intraestatais no Brasil, restringe a autonomia desses entes, tornando lento esse processo de cooperação entre seus vizinhos,. Mas devido ao crescimento de seu papel no processo decisório, tem fomentado as discussões em busca de soluções para as relações entre fronteiras, principalmente.

ENTENDENDO AS RELAÇÕES ENTRE FRONTEIRAS DO BRASIL Para analisarmos o conceito de fronteira, é preciso recorrer à geopolítica, disciplina que tem trabalhado com maior afinco o tema, e que, portanto, tem sido a fonte conceitual para muitos acadêmicos e policy makers. Em primeiro lugar, é importante não confundir os conceitos de limites e fronteiras. Quanto ao primeiro, Machado (1998, p.42) destaca que:

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A palavra limite, de origem latina, foi criada para designar o fim daquilo que mantém coesa uma unidade político-territorial, ou seja, sua ligação interna. Essa conotação política foi reforçada pelo moderno conceito de Estado, onde a soberania corresponde a um processo absoluto de territorialização.

O conceito de fronteira - derivado de front - por sua vez, indica “o que está na frente”. Para Miyamoto (1995, p. 170), “as fronteiras, por sua vez, não são linhas imóveis; elas são consideradas zonas entre um e outro país. Os limites estão, portanto, nelas contidos. O sueco Kjéllen apresenta ponto de vista organicista a respeito do Estado e das fronteiras. Para o autor, o Estado é como um “organismo vivo”. Assim, ele compara analogamente as fronteiras do Estado à epiderme de um corpo vivo - é ela que recebe e transmite em primeira mão todas as manifestações de poder emitidas ou dirigidas ao “cérebro” estatal - destinadas ou vindas do exterior. Como epiderme, a fronteira, ao mesmo tempo em que separa os ambientes interno e externo, é o locus das trocas entre ambos. A partir dessa lógica, alguns autores enxergam a existência de uma faixa de fronteira, ou seja, um espaço territorial de transição, no qual convivem, ainda, características físicas, políticas e sociais de ambos os lados. No Brasil, a legislação utiliza o critério de faixa de fronteira. Miyamoto (1995) apresenta uma evolução do tratamento jurídico que define a extensão da faixa de fronteira, desde a Constituição de 1891 à Lei n. 6.634/79, que definiu-a como um território de 150 quilômetros a partir da linha limítrofe. Mattos também aponta números acerca da faixa da fronteira: O Brasil ocupa 8.514.876,599 km² de área, o equivalente a cerca de 47% de todo território sul-americano, sendo o quinto maior país do mundo em área descontínua. Geograficamente, uma de suas características principais é a vasta extensão de suas fronteiras, que totalizam 23.086 km, dos quais 15.791 km de fronteira terrestre e 7.367 km de fronteiras marítimas (MEIRA MATTOS, 1990).

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O país tem fronteiras com nove países sul-americanos e com a Guiana francesa. Apenas dois países sul-americanos não fazem fronteira com o Brasil: Equador e Chile. A região conhecida como “faixa de fronteira” brasileira é uma faixa de 150 km de largura ao longo dos 15.719 km da nossa fronteira terrestre, abarcando 11 Unidades da Federação e 588 municípios. Nesta região vivem aproximadamente 10 milhões de habitantes (BRASIL, 2009). A fronteira brasileira é resultante de um processo histórico que tem por base a preocupação do Estado com a garantia de sua soberania e independência nacional desde os tempos da Colônia. Historicamente, o país tem demonstrado interesse pela região que envolve a fronteira, ao buscar identificá-la como faixa de fronteira, e como tal, dotada de complexidade e peculiaridades que a tornam especial em relação ao restante do país.(BRASIL, 2010a, p. 11)

Ao tornar-se parte da estratégia de segurança e posteriormente de defesa nacional (Furtado, 2013), como estratégia de controle do território e devido às causalidades como principal fonte de ações ilegais devidas ao fácil acesso, o foco estatal para a região passa a trabalhar principalmente em cima da defesa do território contra as possíveis ameaças externas e garantia de segurança da população (BRASIL, 2008). Ao trabalhar com foco na segurança nacional, alguns setores necessários para garantir a cidadania de uma população, passaram a funcionar de maneira secundária, como o desenvolvimento econômico social de toda a região, que tem como principal fonte de desenvolvimento local, economia baseada na agricultura, no extrativismo, na pecuária e na silvicultura, além da indústria, dependendo da região (BRASIL, 2009). Como a densidade econômica varia de acordo com a produção regional, assim como a suscetibilidade à indústria, a maioria dos municípios de fronteira esta categorizada em microrregiões de economias estagnadas ou menor desenvolvimento relativo, tendo sua variação entre as economias dinâmicas e de baixa renda, raramente estando entre as microrregiões de alta renda. Relacionado a esse fator econômico, é possível citar um dos principais problemas da interação fronteiriça que é a estagnação econômica

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local acompanhada pela falta de empregos e a baixa qualificação profissional dos trabalhadores da região. O reconhecimento da fronteira como locus ímpar, bem como a nova realidade material - sobretudo a partir da intensificação da integração regional no cone sul da América com o Mercosul - influenciaram na formulação de políticas brasileiras para a região de fronteira. Sinais nesse sentido já aparecem durante o segundo governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso, do qual faziam parte programas como “Desenvolvimento integrado e sustentável da região da grande fronteira do Mercosul” e “Desenvolvimento social da faixa de fronteira”. Estes programas reconhecem que se trata de uma área tradicionalmente relegada a segundo plano nas políticas nacionais e que, justamente por isso, apresentava um desenvolvimento socio-econômico mais baixo. No governo Lula da Silva, essa tendência ganha força, e no PPA 2004-2007 é criado um programa específico para a faixa de fronteira brasileira, o PDFF (Programa de Desenvolvimento da Faixa de Fronteira). O programa (BRASIL, 2009, p. 10) prevê “O fortalecimento das regiões de fronteira e de seus subespaços, envolvendo a Amazônia, a região central e o Mercosul configura-se como uma oportunidade de adquirir a competitividade necessária para o desenvolvimento sustentável integrado com os países da América do Sul” . As diretrizes básicas do Programa são: “Definição de estratégias respeitando a diversidade da região; associação da soberania com uma perspectiva de desenvolvimento e integração da América do Sul; fortalecimento das condições de cidadania para a população local e organização da sociedade civil; articulação do programa com a nova Política de Desenvolvimento Regional.”

Questão relativas à saúde inserem-se no eixo “fortalecimento das condições de cidadania para a população local” . Importante salientar que, em se tratando das fronteiras brasileiras, a saúde ainda é um desafio, tanto para controle epidemiológico como para o acesso à população

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fronteiriça. Historicamente, as fronteiras brasileiras têm se tornado canal para a transmissão de doenças das quais temos pouco controle e que podem impactar, principalmente, a população local, sem excluir o risco de um impacto nacional. Quanto ao acesso à saúde, o Sistema Único de Saúde (SUS) tem se tornado referência para os países vizinhos pelo seu caráter universal. Ao alinhar essa universalidade ao aumento do fluxo de pessoas, somado ao fato de que grande parte dos municípios brasileiros na região são considerados de maior desenvolvimento relativo, não é difícil encontrar hospitais e postos de saúde na fronteira sobrecarregados com o atendimento.

FRONTEIRA E SAÚDE NA AMÉRICA DO SUL: O SIS-FRONTEIRA Nos anos recentes, a utilização dos serviços de saúde brasileiros por cidadãos dos países vizinhos, tem se tornado uma preocupação cada vez maior para as autoridades envolvidas, na medida em que o aumento da demanda pode, potencialmente, contribuir para uma sobrecarga do já deficiente sistema público de saúde nessas localidades. Segundo Rodrigues Jr e Saldanha (2013, p. 13) O fluxo migratório entre os países da América Latina sugere, na proporção em que se observa cada vez mais aguda a sua participação, como componente do aparente colapso do setor da saúde pública brasileira, uma questão de difícil solução: levar a atenção à saúde de maneira a não vulnerar o sistema de gestão local.

A situação chegou a esse ponto devido às próprias características da fronteira: ainda que seja uma região que separa dois sistemas político-jurídico-sociais distintos, a proximidade geográfica acaba por aproximar aqueles que legalmente estão separados. A princípio, são movimentos regionais, como os demais - é a especificidade da região de fronteira que torna a situação mais problemática. Este problema ocorre sempre que existe um diferencial entre os serviços dos dois lados da fronteira. É natural que os cidadãos

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fronteiriços busquem ser atendidos onde o serviço é melhor, mais barato (ou gratuito), ou ainda quando não existe oferta do seu lado Em questão de infraestrutura, o desafio trata-se da desarticulação entre as cidades fronteiriças, fazendo com que haja duplicidade de serviços em determinados locais em detrimento de outras regiões com falta de serviços de saúde, apontando para a necessidade de um sistema que integre os dois países, além da falta de recursos. Assim, uma maior articulação entre o Brasil e os países vizinhos surgiu da necessidade de se desenvolver políticas específicas para a região. Isso permitiu a criação de um sistema que funcionasse como complementar ao Serviço Único de Saúde (SUS), que apesar de vigorar com base na universalidade do acesso à saúde, tratou inicialmente das fronteiras somente como alvo da vigilância sanitária. Nesse contexto, o Sistema Integrado de Saúde das Fronteiras (SIS-Fronteira) foi criado em 20051 na intenção de possibilitar maior integração nas ações de saúde e “contribuir para a organização e o fortalecimento dos sistemas locais de saúde” (BRASIL, 2010b, p. 4) dos municípios de fronteira. Essa necessidade foi percebida a partir dos estudos coordenados pelo Ministério da Integração Nacional, que mostraram a superlotação como um dos principais problemas da saúde nas fronteiras. Vale lembrar que os municípios brasileiros recebem repasses financeiros para a área de saúde de acordo com seu contingente populacional. Na região de fronteira, muitos estrangeiros acabam sendo atendidos pelo sistema de saúde brasileiro, e estes não são contabilizados para o repasse de recursos, que se torna, por conseguinte, insuficiente. Entendeu-se, então, que o referido problema poderia ser minimizado pela criação de um sistema que possibilitasse a compreensão plena da saúde na região fronteiriça, por informações como: número de profissionais nas 1

Mesmo ano em que a Proposta de Reestruturação do Programa de Desenvolvimento da Faixa de Fronteira é lançado, como uma das estratégias do governo vigente em estreitar as relações com os países sul-americanos.

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unidades de saúde, áreas de atendimento mais deficitárias, quantidade de estrangeiros não contabilizados na população (informação essa que influenciaria diretamente no valor do repasse público ao município), entre tantas outras informações possíveis. Neste cenário complexo, o SIS-Fronteira surge na tentativa de aumentar o controle sobre a situação fronteiriça e possibilitar maior cobertura no atendimento da população de fronteira. [...], a implantação do Projeto SIS-Fronteira é um passo inicial para o fortalecimento e a organização dos sistemas locais de saúde dos municípios fronteiriços brasileiros, pois poderão racionalizar e melhor planejar as ações de saúde em sua região, priorizando as áreas que necessitam de maiores incentivos (BRASIL, 2010b, p. 5).

Assim, o projeto (SIS-Fronteira) tem duas características principais: tem como alvo os municípios localizados no limite da fronteira (121 municípios no total); e é necessária a expressa vontade dos gestores municipais e estaduais para participação no projeto, através da assinatura a do Termo de Adesão que serviria como garantia dos repasses financeiros aos pactuados, além da criação de vínculo às etapas do projeto. A adesão dos municípios é publicada no Diário Oficial da União (BRASIL, 2010b). O projeto SIS-Fronteira foi dividido em duas etapas e três fases de execução, como forma de garantir sua implementação. As fases resumemse na divisão de tarefas, planejamento e implantação das ações, de maneira que possibilite a execução do projeto e a garantia de resultados. O Projeto compreende três fases de execução a serem realizadas em cada município fronteiriço: FASE I – Realização do Diagnóstico Local de Saúde qualiquantitativo e elaboração do Plano Operacional Ações:[...] FASE II – Qualificação da Gestão, de serviços e ações, e implementação da Rede de Saúde nos municípios fronteiriços, conforme Diagnóstico Local e Plano Operacional. FASE III – Implantação de serviços e ações nos municípios fronteiriços, conforme Diagnóstico Local e Plano Operacional.

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FIGURA 1

Linha que delimita os municípios participantes do SIS-Fronteira

Fonte: BRASIL, 2010b.

Como forma de monitorar e avaliar as ações, uma das estratégias utilizadas foi a parceria com universidades por meio de convênios para garantir a realização da Fase I, quando são elaborados o Diagnóstico Local e o Plano Operacional a serem executados nas duas próximas fases. Para as fases seguintes, além de encontros regionais para compartilhar experiências, foi criado um sistema de informação chamado Sistema

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de Gestão do Programa Nacional de Ações Integradas de Saúde nos Territórios Diferenciados (Sigest), alimentado pelo gestor municipal para monitoramento do recurso e alcance das metas. Alinhados ao sistema, também foram criados, o Comitê Permanente de Implementação e Acompanhamento das Ações Relativas ao SIS-Fronteira e a Câmara Técnica de Assessoramento. Os resultados de desempenho do SIS-Fronteira mostram que a iniciativa, apesar de recente, está em efetivo progresso. Podem ser considerados como pontos fortes desse sistema: a articulação além dos entes subnacionais, a parceria com universidades no desenvolvimento de pesquisas sobre a região, e a elaboração dos diagnósticos locais e de planos operacionais, que permitem repasses financeiros baseados na necessidade local. Contudo, o sistema e a temática da cooperação em saúde enfrentam, ainda, inúmeros desafios para avançar em resultados. Apesar da estrutura criada pelos municípios de fronteira, que permite efetivar resultados, eles ainda esbarram na autonomia estatal e na maneira como lidam com as fronteiras. O grande desafio enfrentado na busca pela América do Sul no que tange à integração e à efetivação do SIS-Fronteira é a herança histórica que vê as fronteiras unicamente como local de afirmação da soberania nacional, que ainda encontra apoio entre policy makers da região. Apesar dos resultados positivos via a atuação dos entes subnacionais e atores da sociedade civil como as universidades, a autonomia desses atores ainda é limitada pelo poder do Estado. O Estado por sua vez, na busca pela defesa de sua soberania (demonstrada ainda, pela insegurança e desconfiança frente aos demais), faz com que, apesar do avanço no cenário regional, ainda exista desconfiança entre os países sul-americanos. Muitos mostram-se relutantes em contribuir com um sistema que, além de ser criação brasileira, pode torná-los de alguma maneira vulneráveis e reduzidos em sua soberania, pelo acesso à informação que esse sistema possa vir a ter.

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O SIS-Fronteira, para avançar em seus resultados, precisa fazer com que um sistema integrado de informações seja alimentado pelos Estados e seus municípios, com informações referentes à infraestrutura, quantidade de atendimentos, medicamentos, serviços, entre outros aspectos que possibilitem avaliar a situação de saúde local e buscar o aprimoramento da saúde regional. Assim, através de um tratamento peculiar, permitirá que as necessidades de cada região fronteiriça sejam supridas de acordo com suas deficiências. Para continuar funcionando e avançar em seus objetivos o projeto encontra, assim, duas importantes dificuldades: a falta de recursos (a região de fronteira ainda está longe de ser prioritária no direcionamento de recursos) e a desconfiança dos Estados em alimentar um sistema nacional de informações, que pode ser visto como uma maneira de ferir a soberania nacional.

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