Cooperação Sul-Sul brasileira: a experiência do Programa Nacional de Alimentação Escolar em Moçambique

June 30, 2017 | Autor: Mariana Santarelli | Categoria: Policy Transfer, South-south cooperation
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Cooperação Sul-Sul brasileira: a experiência do Programa Nacional de Alimentação Escolar em Moçambique Mariana Santarelli

Sumário Introdução ...................................................................................................................................... 3 1. O Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) nas estratégias brasileiras de cooperação em segurança alimentar e nutricional ................................................................................................... 5 1.1 Cooperação brasileira para a segurança alimentar e nutricional .......................................................................................................... 5 1.2 Cooperação brasileira para a alimentação escolar ................................................. 6

2. A cooperação para a estruturação de um programa nacional de alimentação escolar em Moçambique ................................ 10 2.1 Origens da alimentação escolar em Moçambique ................................................ 10 2.2 Transição da ajuda humanitária para a estruturação de uma política nacional ................................................................... 10 2.3 A cooperação multiatores para a implementação do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PRONAE) na província de Tete ........................................................................................................... 13 2.4 A cooperação técnica brasileira na implementação do PRONAE ..................................................................................... 17

3. Aprendizados e desafios .......................................................................................... 23 3.1 A cooperação brasileira e as tendências da agenda internacional de combate à fome ......................................................... 23 3.2 Uma experiência de certificação e transferência de políticas públicas com multiatores e em multiníveis .................................... 24 3.3 O desafio de compartilhar a partir da perspectiva Sul-Sul .............................. 26

Bibliografia ................................................................................................................................. 29

Cooperação Sul-Sul brasileira: a experiência do Programa Nacional de Alimentação Escolar em Moçambique © 2015, ActionAid INICIATIVA

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Introdução A rápida expansão da cooperação brasileira para a alimentação escolar, que tem suas origens em 2003, está fortemente relacionada ao movimento, por parte do governo brasileiro, de fortalecimento dos laços Sul-Sul, que resultou não somente em um significativo aumento das iniciativas de cooperação no campo da segurança alimentar e nutricional, mas também da cooperação Sul-Sul brasileira como um todo. No caso especifico da alimentação escolar, esta trajetória vai ao encontro de uma tendência que se apresenta de forma cada vez mais nítida, especialmente no continente africano, de transição da ajuda alimentar internacional, em contextos emergenciais, para a cooperação voltada à estruturação de políticas nacionais de segurança alimentar e nutricional, em países que experimentam uma redução da dependência orçamentária em relação à cooperação internacional e altas taxas de crescimento econômico, como é o caso de Moçambique. No encontro desses movimentos, configura-se a parceria entre o Programa Mundial de Alimentos (PMA) e o governo do Brasil na difusão de políticas públicas de combate à fome e de compartilhamento de experiências exitosas na implementação de programas de alimentação escolar, que têm como referência o Programa Nacional de Alimentação Escolar brasileiro. Um dos resultados dessa parceria é a cooperação trilateral com Moçambique, que teve início em 2012, com o objetivo de promover a transferência de conhecimentos e de oferecer suporte técnico para viabilizar a elaboração e implementação de um Programa Nacional de Alimentação Escolar, nos moldes daquele desenvolvido no Brasil. Participam o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) e a Agência Brasileira de Cooperação (ABC), o Ministério da Educação (MINED) de Moçambique e o Programa Mundial de Alimentos (PMA). O presente estudo tem como objetivo analisar a cooperação brasileira no campo da alimentação escolar, a partir de uma perspectiva de difusão e transferência de políticas públicas, buscando identificar os principais aprendizados, características e desafios desta ainda tão nova experiência de cooperação Sul-Sul para a segurança alimentar e nutricional. O estudo f o i c o n s t r u í d o , p r i n c i p a l m e n t e , c o m b a s e n a s 1 5 e n t re v i s t a s semiestruturadas realizadas no Brasil e em Moçambique e na visita aos

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distritos de Changara e Cahora-Bassa, na província de Tete, onde estão sendo implementadas experiências piloto. No Brasil, foram entrevistados representantes do FNDE e do Centro de Excelência contra a Fome; em Maputo, representantes do MINED, da cooperação brasileira (que estavam em fase de conclusão de trabalho no país) e do PMA, o qual viabilizou a visita a Changara e Cahora-Bassa. Nestes distritos, foram entrevistados secretários de Educação, técnicos envolvidos diretamente na implementação do PRONAE e representantes de associações de agricultores. Apesar do período de férias, foi possível conversar com diretores, representantes de associações de agricultores que fornecem ao PRONAE e especificamente em Changara aconteceu uma entrevista coletiva com membros do conselho escolar. O estudo mostra como a cooperação — moldada a partir da experiência nacional de construção da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (PNSAN) e do PNAE — vai se consolidando a partir de uma perspectiva de transferência de políticas públicas com multiatores que se dá em vários níveis, desde o modo como o programa brasileiro de alimentação escolar se legitima internacionalmente, como referência para a garantia do direito humano à alimentação, até a forma como se implementa localmente, integrando várias iniciativas e agências internacionais com o poder público local. No entanto, apesar do caminho já trilhado e dos avanços alcançados nos últimos anos, o estudo também aponta que a cooperação brasileira para a alimentação escolar ainda é frágil frente ao tamanho do desafio a ser enfrentado. A crescente demanda por cooperação para a segurança alimentar e nutricional estimulada nos últimos anos pelo governo brasileiro não foi acompanhada das adequações legais, institucionais e orçamentárias necessárias, o que limita a capacidade de resposta e qualidade da cooperação Sul-Sul e favorece o estabelecimento de parcerias com organismos internacionais. Ao se debruçar sobre o caso de Moçambique, este estudo pretende apresentar alguns aprendizados e desafios para o aperfeiçoamento de uma experiência promissora.

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1. O Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) nas estratégias brasileiras de cooperação em segurança alimentar e nutricional 1.1 Cooperação brasileira para a segurança alimentar e nutricional A cooperação brasileira em temas ligados à alimentação e nutrição passou por um período de rápida expansão entre 2003 e 2010, ao mesmo tempo em que a questão da garantia da segurança alimentar e da criação de redes de proteção social, em um cenário de crise econômica e alimentar global, ganhou centralidade no debate internacional. Devido aos limites das informações disponíveis e a dificuldade em categorizar as iniciativas quando pouco se conhece sobre elas é difícil precisar a evolução da cooperação Sul-Sul em Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) em número de projetos e volume de investimentos, Contudo, alguns estudos, feitos a partir de mapeamento realizado pela Câmera Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional (CAISAN), em setembro de 2013, indicam um aumento significativo dos projetos, especialmente no continente africano, e associam esta expansão a fatores como a promoção internacional da Estratégia Fome Zero, associada ao deslocamento do eixo da política externa brasileira para as relações Sul-Sul (Maluf, Santarelli, Prado, 2014; Beghin, 2014). Durante os oito anos do governo Lula, o Fome Zero — recorrente em discursos presidenciais e da diplomacia brasileira — gerou demandas e passou a influenciar os acordos de cooperação do Brasil com outros países

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em desenvolvimento e com órgãos multilaterais, fazendo do tema segurança alimentar e nutricional uma das principais agendas de cooperação Sul-Sul (Cunha, 2010). O reconhecimento do Brasil como referência em políticas públicas de erradicação da fome e redução da pobreza se expressa através dos vários prêmios internacionais recebidos pelo país e da valorização da experiência brasileira em documentos oficiais de órgãos — como a FAO, o PMA e o Banco Mundial (Cunha, 2010) — e organizações não governamentais internacionais — como a ActionAid, em sua campanha mundial HungerFREE. Alguns dos programas passaram a ser promovidos como boas práticas de políticas para países em desenvolvimento foram o Programa de Alimentação Escolar (PNAE), o Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar (PAA), o Bolsa Família (PBF) e os Bancos de Leite Materno.

1.2 Cooperação brasileira para a alimentação escolar O PNAE brasileiro é o maior programa universal de alimentação escolar no mundo, o segundo em número de beneficiários e, também, uma das mais antigas políticas públicas que compõem a Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional do país. A experiência começou em 1955 e, atualmente, oferece alimentação escolar a todos os alunos da educação básica matriculados em escolas públicas, filantrópicas e em entidades comunitárias conveniadas com o poder público, por meio da descentralização de recursos financeiros aos estados e municípios responsáveis pela gestão da Educação. Em 2014, foram atendidos pelo programa 42,2 milhões de estudantes do ensino básico e dos programas de educação para jovens e adultos. Desde 2009, estados e municípios são obrigados por lei1 a destinar 30% dos recursos transferidos pelo FNDE à compra direta de produtos da agricultura familiar, o que em 2014, com a previsão orçamentária de R$ 3,5 bilhões, representava um mercado institucional garantido de R$ 1,05 bilhão em compras locais (Portal FNDE, 2015). O PNAE foi uma das políticas públicas de SAN que ganhou mais visibilidade internacional, dando origem a uma série de missões de intercâmbio e visitas técnicas de delegações de gestores públicos de países em desenvolvimento

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Ver Lei que dispõe sobre a alimentação escolar, disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/lei/l11947.htm

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que vieram conhecer a experiência brasileira a partir de 2003. O programa também foi destaque em importantes encontros internacionais de nutrição, como os promovidos pela Global Children Nutrition Foundation, apresentado como uma alternativa eficiente de política pública de combate à desnutrição infantil adequada à realidade de países em desenvolvimento. Segundo gestores, o PNAE era apresentado como possível inspiração de enfrentamento dos problemas crônicos de desnutrição, especialmente no continente africano, e se destacava pelos aspectos de participação social, intersetorialidade e conquistas relacionadas à compra direta da agricultura familiar. O Programa de Alimentação Escolar e as iniciativas de cooperação que incorporam a compra local da agricultura familiar, como o PAA, ganharam ainda mais relevância como inspiração de políticas voltadas para a garantia do direito humano à alimentação quando se observava, especialmente no continente africano, uma tendência de transição de programas de ajuda alimentar emergencial para a cooperação voltada à estruturação de programas nacionais de acesso à alimentação (Maluf, Santarelli, Prado, 2014). Muitos países africanos, como Moçambique, já não se encontravam em situação de emergência alimentar, desafiando agências como o Programa Mundial de Alimentos a adotar estratégias baseadas na geração de capacidade técnica local, para os governos poderem assumir iniciativas como a alimentação escolar como política pública nacional. É como reflexo de todos esses fatores que se desenha uma parceria estratégica entre o governo brasileiro e o Programa Mundial de Alimentos. A criação, em 2011, do Centro de Excelência contra a Fome, uma parceria entre o PMA e o Governo brasileiro, com o objetivo de compartilhar expertises, saberes, conhecimento e experiências exitosas na área de alimentação escolar, nutrição e segurança alimentar e nutricional, foi a principal expressão dessa parceria, que também ganhou forma em acordos de cooperação trilateral, entre o PMA, o Brasil e um país em processo de elaboração de sua política nacional de alimentação escolar, caso de Moçambique. De acordo com relatos, foi a partir das viagens do presidente Lula à África que se intensificaram as demandas de países interessados em conhecer o programa brasileiro de alimentação escolar. As negociações, em mediações geralmente feitas pela diplomacia brasileira, não passavam pela Agência Brasileira de Cooperação (ABC) e o FNDE não contava com uma assessoria internacional, nem estava preparado para atender a esta

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crescente demanda. O processo interno de organização para a tarefa começou em 2004 e até 2011, quando foi criado o Centro de Excelência contra a Fome, as atividades relacionadas à cooperação consistiam principalmente em assessorar visitas de intercâmbio ao Brasil, e, em alguns casos, a países considerados prioritários, para diagnóstico e assessoria no desenho de programas nacionais inspirados no caso brasileiro. Dirigentes do FNDE passaram a buscar parceria com organismos internacionais, como o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), que viabilizou a contratação de consultores, e a FAO, inicialmente interessada em projetos de hortas escolares, até se estabelecer uma parceria mais sólida e de longo prazo com o Programa Mundial de Alimentos. A parceria entre o PMA e o governo brasileiro teve início em 2005 quando foram assinados os primeiros memorandos e termos de cooperação para a alimentação escolar, inicialmente voltados para os países africanos de língua portuguesa. O primeiro país com o qual o Brasil firmou um acordo de cooperação foi Cabo Verde, com o objetivo de apoiar uma estratégia de transição de saída do PMA do país, em 2008. Na sequência, foram feitos acordos semelhantes com Angola, Guiné, São Tomé e Príncipe e Moçambique. Em linhas gerais, os acordos tinham como objetivo prestar assistência técnica na estruturação das instituições, no desenho dos programas e marcos legais e na formação de quadros locais. O projeto de criação do Centro de Excelência teve início em 2009, em conversas entre o FNDE, a ABC, o PMA e a representação diplomática do Brasil junto à FAO. A ideia era responder de forma mais organizada e continuada à demanda de cooperação gerada pela projeção internacional do PNAE e do conjunto de programas nacionais de segurança alimentar e nutricional. O Centro foi lançado em novembro de 2011, como uma estrutura do PMA, gerida politicamente por um conselho, do qual fazem parte a ABC, o FNDE e o PMA. Funciona a partir de demandas oficiais que chegam de outros países em desenvolvimento ao governo brasileiro. Inicialmente o foco era a alimentação escolar, mas hoje há uma perspectiva mais ampla de SAN, que incorpora todo o sistema de proteção social e segurança alimentar, com uma perspectiva de valorização da participação e do controle social, atribuindo grande relevância aos conselhos de segurança alimentar e nutricional. Oficialmente, o programa é uma iniciativa que visa a compartilhar melhores práticas na implementação de programas de alimentação escolar como importante ferramenta de proteção social de luta contra a fome e cujas atividades concentram-se no desenvolvimento de capacidades,

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gerenciamento de conhecimentos e incidência política (Portal PMA, 2015). Ao final de 2014, quando foram feitas as entrevistas na sede do Centro, em Brasília, 34 países já haviam recebido apoio e havia um grande número de requisições ainda não atendidas. De acordo com os entrevistados, a estratégia de atuação do Centro está calcada em quatro pilares: i) referência de boas práticas de políticas públicas de SAN; ii) apoio à tomada de decisão de alto nível para a implementação de programas nacionais; iii) parceria com os organismos da ONU; iv) inexistência de protocolos (guidance), o que possibilita que a cooperação seja moldada a cada pais, tendo como inspiração a experiência brasileira. A cooperação Sul-Sul promovida pelo Centro de Excelência de Combate à Fome se organiza em duas etapas principais. Em um primeiro momento, acontecem as missões de alto nível ao Brasil, com o objetivo de criar vontade e compromisso político por parte das autoridades nacionais. As missões se organizam em visitas a escolas, prefeituras, associações de agricultores familiares e conselhos de segurança alimentar e nutricional, entre outras atividades. Em seguida, elabora-se, conjuntamente, um plano de ação voltado ao desenho, à implementação ou ao aperfeiçoamento de estratégias nacionais de alimentação escolar. Desde a criação do Centro, já visitaram a experiência brasileira 28 ministros da Educação. Em um segundo momento, o Centro, em parceria com o Ministério da Educação do país com o qual coopera, promove uma consulta nacional sobre o plano de ação — da qual participam representantes do governo brasileiro e da sociedade civil, em atividades normalmente organizadas em torno de três dias de oficinas — com o objetivo de dar início ao processo de participação social, importante fator de sucesso da experiência brasileira. O Centro apoia técnica e financeiramente as oficinas, na qual participam também representantes da sociedade civil e governo brasileiro. Hoje, todas as demandas de cooperação para a alimentação escolar que chegam ao governo brasileiro são direcionadas ao Centro de Excelência de Combate à Fome. As entrevistas realizadas com representantes do governo brasileiro e do Centro de Excelência mostram que, para a cooperação brasileira, a parceria com o PMA permite a ampliação da visibilidade das políticas públicas brasileiras de SAN e facilitação na implementação da cooperação técnica Sul-Sul no território, pela capilaridade, a experiência local e as relações pré-existentes com os governos nacionais. O Centro de Excelência se consolida como uma estratégia de estreitamento das relações de cooperação Sul-Sul e como mais uma entrada do Brasil no sistema das Nações Unidas.

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2. A cooperação para a estruturação de um programa nacional de alimentação escolar em Moçambique 2.1 Origens da alimentação escolar em Moçambique De acordo com relato de gestores do Ministério da Educação de Moçambique (MINED), as iniciativas de alimentação escolar no país têm origem em 1977, logo após a independência, quando o Programa Mundial de Alimentos (PMA) passou a prestar ajuda alimentar aos Centros de Internato e Lares. Apenas em 2002 a cesta composta por produtos como farinha de milho, feijão, olho vegetal, conservas de peixe e carne, leite em pó, açúcar e sal iodado chegou também às escolas. Neste período aproximadamente 160 Escolas Primárias Completas – EPCs e 180 centros de internato recebiam o apoio do PMA. O conjunto de ações de ajuda internacional para a alimentação escolar, incluindo aquelas efetuadas por outros doadores, chegou, em seu momento ápice, a atender 7% das escolas primárias moçambicanas, com uma oferta irregular, pouco diversificada e ainda longe da universalização. Em muitas escolas, a alimentação oferecida era restrita à papa de soja e todos os alimentos eram importados, principalmente dos Estados Unidos.

2.2 Transição da ajuda humanitária para a estruturação de uma política nacional Em 2008, inaugurou-se uma nova etapa da cooperação, quando o PMA começou a transferência ao governo moçambicano da responsabilidade de fornecimento de alimentação escolar nos internatos. Em 2012, teve

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início o Projeto de Transição, uma cooperação de quatro anos entre o PMA e o MINED que visa a apoiar a criação de condições para que o governo assuma também a alimentação nas escolas primárias. O Projeto de Transição atende a todas as escolas de dois distritos da província de Tete, Changara e Cahora-Bassa, uma região de clima semiárido e altos índices de insegurança alimentar. Os objetivos da iniciativa são, por um lado, garantir a oferta universal da alimentação escolar nos dois distritos, de forma a possibilitar o monitoramento da gestão e a avaliação de impacto; por outro, experimentar a gradual transição para as compras locais. Entrevistas com gestores do PMA indicam que o que se está buscando é a criação de condições e capacidades locais, para que o governo possa assumir de forma autônoma a gestão descentralizada de um programa nacional completamente seu, incluindo-se aí a aquisição e a logística de distribuição dos alimentos, tarefa que aos poucos tem sido transferida para a administração pública. Em setembro de 2010, com financiamento do PMA, o governo moçambicano enviou ao Brasil uma comissão para conhecer o PNAE, em busca de inspiração para a criação de um programa nacional moçambicano, que também resultou em um acordo de cooperação tripartite entre os dois países e o PMA. A cooperação entre o FNDE, o MINED e o PMA teve início formal em 2012, com o projeto “Apoio ao desenvolvimento de um Programa Nacional de Alimentação Escolar de Moçambique”, cujo objetivo é promover a transferência de conhecimentos e suporte técnico que viabilizem, em Moçambique, a elaboração e implementação de um Programa Nacional de Alimentação Escolar nos moldes do brasileiro. Ao término do projeto, em fins de 2015, espera-se obter a capacitação de técnicos dos governos central, provincial e distrital, a definição de uma estratégia para a implantação viável e sustentável do programa e a implementação de 12 projetos experimentais em escolas de nível médio. Os pilotos de implementação do PRONAE — que estão em andamento em 12 escolas das províncias de Gaza, Manica, Tete e Nampula — são a essência do projeto de cooperação trilateral e ocorrem em paralelo ao Programa de Transição em Tete. Cabe ao Brasil a transferência de conhecimento técnico, viabilizada pela contratação de duas consultoras especializadas em gestão e nutrição, que trabalham conjuntamente com a equipe do MINED, em Maputo, em duas frentes oficiais: a primeira voltada para o desenho de gestão do programa; a segunda, para a elaboração de

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cardápios e formação de valor per capta da alimentação escolar. O PMA se responsabiliza também pelos recursos transferidos ao governo moçambicano para a aquisição de alimentos, o que é uma novidade para a instituição internacional, especializada em compra e logística de distribuição. Entrevistas com quadros do MINED e as cooperantes brasileiras revelam a dinâmica de implementação. A cooperação técnica brasileira no campo da nutrição toma como base estudos dos ministérios da Saúde e da Agricultura de Moçambique, para realizar um levantamento de hábitos alimentares e disponibilidade de produção nos distritos de implementação dos pilotos, com o objetivo de elaborar um cardápio que seja, ao mesmo tempo, diversificado e baseado em alimentos produzidos localmente, substituindo a alimentação baseada em papa importada de soja. Um estudo de preços serve como base para a indicação de um valor per capta, que em 2014 foi fixado em 6,5 meticais (R$ 0,50). Outra atribuição é a capacitação de gestores e cozinheiros das escolas piloto para o preparo das refeições. A segunda frente é a assessoria técnica para a elaboração da política nacional de alimentação escolar por um grupo multidisciplinar coordenado pelo MINED. De acordo com o termo de cooperação, elaborado a partir do que foi apreendido nas missões ao Brasil, a proposta inicial era a de que o projeto tivesse como primeira etapa a implementação dos pilotos, a experimentação de modelos de gestão descentralizada e de repasse de recursos para a aquisição dos gêneros alimentícios inspirados no caso brasileiro. A partir da avaliação dos pilotos — que também cabe à cooperação brasileira —, pretendia-se chegar ao desenho de uma política nacional de alimentação escolar e de sua gestão operacional. O primeiro entrave, porém, aconteceu antes mesmo do início do projeto, quando autoridades governamentais moçambicanas determinaram que, mesmo para experimentar os pilotos, era preciso apresentar e ter aprovado pelo Conselho de Ministros uma política nacional de alimentação escolar. A necessidade de adequação do plano de cooperação às dinâmicas políticas moçambicanas segue em um processo permanente de remodelação a que estão sujeitos os pouco flexíveis termos e acordos da cooperação tripartite. O PRONAE foi aprovado em maio de 2013 pelo Conselho de Ministros, como um programa vinculado ao Ministério da Educação, com o objetivo oficial de reduzir, de forma sustentável, o impacto negativo que os problemas da insegurança alimentar e da desnutrição provocam na educação — nomeadamente o fraco ingresso no ensino, a evasão escolar, o absentismo e o insucesso — através da melhoria do estado nutricional dos alunos, da

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educação alimentar e do desenvolvimento de habilidades para a produção agrícola nas escolas. O programa aposta também na diversificação das refeições, na efetiva participação da comunidade e nas compras locais de géneros alimentícios como forma de impulsionar a economia do mercado no país. Está ancorado na oferta de uma refeição diária para cada aluno, ao longo do ano letivo.

2.3 A cooperação de multiatores para a implementação do Programa Nacional de Alimentação Escolar na província de Tete Os distritos de Changara e Cahora-Bassa são o grande laboratório do programa nacional de alimentação escolar moçambicano. O Programa de Transição do PMA oferece, desde 2012, uma refeição básica diária a 76.500 alunos, em todas as 175 escolas dos dois distritos. Ainda que pouco diversificada, a alimentação escolar está universalizada e as escolas já contam com as condições mínimas para o armazenamento e o preparo dos alimentos. Duas escolas em cada distrito são parte do Projeto Piloto do PRONAE, que teve início em 2014. Diferentemente de outras situações, em que a cesta é entregue pelo PMA, nas escolas piloto é o governo distrital que faz a compra e a distribuição dos alimentos, em um modelo de gestão que está sendo testado também em outras regiões do país. Ainda que o foco do estudo de caso seja a cooperação brasileira na implementação do Projeto Piloto nas quatro escolas de Tete, não há como olhar para essa iniciativa de forma isolada, uma vez que ela se insere em um esforço mais amplo, iniciado com o Projeto de Transição. O que se observa em campo e nas entrevistas com gestores do programa, diretores e membros dos conselhos escolares é que não se delimitam tão claramente as fronteiras entre as inciativas de cooperação e as que ocorrem de forma paralela e complementar, nem os desafios e impactos a elas relacionados.

Projeto de Transição O projeto de Transição começou em 2011, com um diagnóstico das condições para a operacionalização do programa em Changara e CahoraBassa, realizado pelo PMA em parceria com a gestão dos distritos. A primeira etapa foi a construção de armazéns e equipagem das cozinhas em todas

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as escolas, a partir de orientações padrão, materiais doados pelo PMA e mão de obra dos países encarregados. Neste primeiro momento, a comunidade participa ativamente dos esforços relacionados à alimentação escolar, com mediação dos conselhos. Depois da primeira leva de capacitação de gestores dos armazéns e cozinheiros, começou a ser fornecida pelo PMA, em março de 2012, uma cesta básica composta por feijão, farinha de milho, óleo vegetal e sal iodado, entregue trimestralmente às escolas, a partir dos armazéns centrais do PMA localizados nos distritos de Tete, Beira e Angonia. Além de ser voltado para a universalização da alimentação, o Projeto de Transição opera a partir de uma lógica que busca cada vez mais reduzir o circuito de compra, distribuição e acesso aos alimentos — o que, no caso moçambicano, levou a uma parceria estratégica com outra iniciativa de cooperação brasileira, o Programa de Aquisição de Alimentos para a África (PAA África), em um arranjo de múltiplos atores, do qual participam a FAO, o PMA, consultores brasileiros e o Departamento do Reino Unido para o Desenvolvimento Internacional. Há, em Tete, uma importante integração de esforços com o objetivo de viabilizar as compras locais, a partir da ampliação da capacidade de produção e comercialização das associações dos pequenos produtores da região. Pelo PAA África, viabilizou-se a aquisição de 60 toneladas de milho de associações de pequenos agricultores de Angonia, para a produção da farinha fortificada distribuída nas escolas de Changara e Cahora-Bassa. Um total de 600 agricultores, dos três distritos, foi beneficiado pela compra direta, a distribuição de insumos agrícolas e a realização de treinamentos em sistemas de produção e manejo pós-colheita. A expectativa para uma próxima etapa do PAA África é aumentar a quantidade de milho e feijão produzidos por pequenos agricultores, bem como a quantidade comprada pelo PMA diretamente de organizações de pequenos produtores. Visando à integração das experiências no território, gestores do PAA África têm a expectativa de que o modelo experimentado sirva como inspiração para a criação de um programa nacional de aquisição de alimentos, ou, ainda, que as lições aprendidas possam ser absorvidas pelo modelo de gestão do PRONAE. Eles também valorizam o engajamento da sociedade civil no processo como um aprendizado para o fomento da participação social, tão valorizada na efetivação dos programas de compras institucionais no Brasil. A alimentação oferecida é, em alguns casos, complementada pelo que se produz nas hortas escolares e por doações esporádicas de pais de alunos.

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Em Cahora-Bassa, por exemplo, 80% das escolas têm hortas que funcionam exclusivamente durante o período escolar e produzem alimentos como milho, couve, tomates, cebolas, o que garante uma alimentação variada. O sistema educacional moçambicano viabiliza a descentralização de recursos, que são repassados diretamente às escolas — através do fundo Apoio Direto às Escolas (ADE) — e geridos pelos conselhos escolares. De acordo com a regulamentação, até 15% dos recursos transferidos podem ser empregados nas hortas escolares. Por outro lado, não há previsão de utilização desses recursos para outros fins relacionados à alimentação escolar, como complementar a compra de alimentos.

Projeto Piloto Em Tete, o Programa Piloto começou a ser implementado no primeiro semestre de 2014. Os distritos firmaram Termos de Entendimento com o PMA, que repassa trimestralmente recursos para aquisição de alimentos e gestão do programa, com base no valor per capta determinado pela política nacional de alimentação escolar. São as escolas piloto, a partir do cardápio elaborado com o apoio do MINED e das cooperantes brasileiras, que indicam as necessidades mensais de produtos alimentares a serem adquiridos por uma comissão ligada à gestão distrital. A aquisição dos produtos não perecíveis é feita a partir de um processo de licitação por preço, direcionado a comerciantes que podem ser também de outros distritos. Os produtos perecíveis são adquiridos diretamente de associações capacitadas pela FAO e pelos serviços distritais de agricultura para o fornecimento ao programa. Os produtores entregam as hortícolas de acordo com seu ritmo de produção e colheita. Na opinião de membros do conselho de Changara, o cardápio proposto é uma boa referência que nem sempre é possível seguir, devido à indisponibilidade de alimentos. Para o presente estudo, foram visitadas duas escolas primarias. A primeira, uma escola rural em Cahora-Bassa, tem 620 alunos e seis cozinheiras que trabalham voluntariamente no preparo das refeições. Em Changara, a escola visitada fica na sede do distrito, tem 950 alunos e 10 cozinheiras. Em ambas, a gestão dos alimentos é coordenada pelo diretor e os professores se encarregam da manutenção e do controle dos armazéns. Os cozinheiros são pais e mães dos alunos que se revezam na função. Os conselhos escolares, que estabelecem os elos entre a instituição de ensino e os pais ou parentes encarregados da educação dos alunos, atuam de forma diferente em Cahora-Bassa e Changara. No primeiro, depois de

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participar da mobilização de mão de obra para a construção dos armazéns e da indicação dos cozinheiros, o conselho não monitorava mais o trabalho. No segundo, os membros do conselho, principalmente o presidente, têm uma participação ativa nas decisões e na gestão da alimentação escolar. Cabe destacar que, em Changara, há um esforço de atuação integrado por órgãos da ONU: FAO, UNESCO e UNICEF promovem o programa Escola Amiga da Criança, com ações que resultam em melhorias de infraestrutura e no fortalecimento dos conselhos escolares. Há, também, um grupo multissetorial, que envolve todas as instâncias de governo e se reúne, periodicamente, para tratar das várias iniciativas que exigem mais articulação. Nos dois distritos, observa-se o início de um esforço de integração com o setor da agricultura, principalmente devido ao apoio de técnicos de extensão rural para a formalização das associações de pequenos produtores, de forma que elas se habilitem a vender seus produtos às escolas. Em Changara, um grupo de 19 agricultores fornece à escola piloto produtos como cebola, feijão, tomate, repolho, quiabo, couve, alface, pimentão e alho. Todos passaram por capacitações oferecidas pela FAO e o PMA e entraram em um processo de legalização e inclusão bancária, antes de se tornarem aptos a participar do programa. Segundo os agricultores, o preço oferecido pelo PRONAE é melhor que o do mercado e há ainda a garantia de compra de tudo o que eles produzem. Na opinião de alguns gestores e membros de conselhos escolares entrevistados em Tete, as principais vantagens já percebidas são: a diversificação da alimentação, a criação de um mercado seguro para os pequenos produtores e o aprendizado de gestão. Por outro lado, são ainda muitos os desafios para se conseguir assegurar a regularidade do fornecimento, tanto por questões administrativas, quanto pela capacidade de produção e comercialização dos pequenos produtores. Eles relatam que têm ocorrido interrupções no fornecimento, devido a problemas no processo de aquisição, ocasiões em que a solução é requisitar o apoio do PMA, para assegurar ao menos os itens da cesta básica. Em janeiro de 2015, quando foram feitas as visitas, as aulas estavam prestes a começar e, por motivos definidos como burocráticos, os recursos para a aquisição de alimentos ainda não haviam sido repassados aos distritos. Foi relatado também que, até então, não havia uma política para a definição dos preços, o que deixa margem para o superfaturamento nas compras. Outros impactos positivos já percebidos em Changara são o aumento da adesão e da frequência escolar. Para muitos estudantes, a alimentação

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escolar é a única refeição do dia e há relatos de alunos que levam os irmãos mais novos à escola, para dividir a comida com eles, ou que reservam parte da refeição para levar para casa. As escolas piloto são também as mais procuradas, pois oferecem uma refeição que não se limita ao feijão e à xima, base da alimentação local, preparada com farinha de milho. A oferta de alimentação também está alterando a dinâmica do trabalho infantil, pois às vezes acaba sendo mais vantajoso para os pais deixar os filhos na escola do que ter que alimentá-los durante o trabalho nas machambas, nem sempre próximas de casa. Outra mudança é que as crianças já não voltam para casa depois do seu turno, o que tem obrigado a escola de Changara a ofecer atividades extracurriculares e aulas de reforço escolar. Mesmo avaliadas como positivas, as mudanças trazem preocupação quanto aos riscos de descontinuidade do programa. Sua institucionalização nacional é apontada como um importante avanço, mas há apreensão sobre as reais condições de sustentabilidade. O diretor de Educação do distrito de Changara considera que este é um caminho sem volta, pois a interrupção da alimentação escolar poderia causar sérios danos. Para ele, a efetividade e a expansão do PRONAE dependem de uma capacidade mais ampla do Estado moçambicano de descentralização e de criação de condições de execução, para que os distritos possam assumir devidamente a tarefa de gestão do programa. O diretor considera a experiência de transição e implementação fundamental para “mostrar resultados e sensibilizar os dirigentes nacionais a perceber o investimento social como um investimento econômico de longo prazo”.

2.4 A cooperação técnica brasileira na implementação do PRONAE O programa de alimentação escolar brasileiro é apresentado internacionalmente por organismos internacionais como o PMA, a FAO e o Banco Mundial como uma inspiração, uma boa prática a ser seguida pelos demais países em desenvolvimento. É assim também que ele é visto por gestores moçambicanos. Ser uma referência em alimentação escolar é a marca fundamental da cooperação brasileira, que influencia o conjunto de estratégias desde as primeiras missões de visita ao PNAE até os planos de trabalho das consultoras técnicas que atuam em Moçambique. Nos próximos parágrafos são identificados alguns desafios da cooperação brasileira, observados a partir do processo de implementação e da

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perspectiva do PNAE como inspiração. Ao analisar os limites e possibilidades da iniciativa, é importante ressaltar que se trata de uma das primeiras experiências concretas de cooperação neste campo e que ela foi desenhada com base numa realidade brasileira, na qual ainda não existem marcos legais adequados para viabilizar a transferência de recursos ou de gestão de pessoal para a cooperação Sul-Sul. Isto obriga os agentes da cooperação a trabalhar dentro dos restritos limites legais e burocráticos do que é ainda uma novidade para o Brasil.

Um olhar sobre a implementação do acordo de cooperação As entrevistas mostram que o processo de preparação e a coordenação do trabalho das cooperantes em território moçambicano são frágeis frente ao tamanho do desafio a ser enfrentado. As consultoras brasileiras, ambas em sua primeira missão internacional, reconhecem que chegam a Moçambique com pouco conhecimento da nova realidade ou de como conduzir a transferência de conhecimento. Por sua vez, os gestores técnicos moçambicanos esperam contar com a assessoria técnica de consultoras com grande acúmulo de experiência na implementação do programa de alimentação escolar brasileiro, o que gera altas expectativas quanto à capacidade individual de contribuição. As consultoras avaliam que a coordenação e o acompanhamento de seu trabalho por parte dos agentes da cooperação brasileira, como a ABC e o FNDE, são também insuficientes. Apesar do perfil técnico, seus profissionais precisam assumir tarefas políticas para as quais não se sentem preparados ou mesmo autorizados. A dinâmica da ABC e do FNDE tem sido, desde o início, a de promover uma missão anual com caráter de articulação política. Cabe destacar que a ABC não tem representação em Moçambique, apesar da grande quantidade de projetos implementados no país, o que é um diferencial em relação à cooperação Norte-Sul, que conta com escritórios ou, pelo menos, representações diplomáticas que coordenam o trabalho. Como resultado, a qualidade da cooperação fica atrelada à experiência e à competência das cooperantes. Uma entrevistada diz: “A cooperação fica com a cara do cooperante, não da cooperação brasileira. A cooperação depende da nossa capacidade individual, do nosso jogo de cintura”. O que se percebe, portanto, é que, dada a inexistência de protocolos, metodologias e instrumentos de transferência de conhecimento, acompanhamento,

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monitoramento e coordenação política, a fase de implementação da cooperação para a alimentação escolar corre o risco de personalização, o que, além de limitar sua potencialidade, gera uma sobrecarga técnica, política e emocional sobre os consultores locais. Outra limitação é a falta de flexibilidade dos instrumentos contratuais da cooperação. O plano de trabalho previsto no acordo de cooperação, bem como nos termos de contratação das consultoras pelo PNUD, não é flexível o suficiente para absorver a constante necessidade de adequação às dinâmicas locais e aos processos da implementação, o que, no caso de Moçambique, se percebeu claramente quando se impôs a necessidade de adiar os pilotos, face à exigência de aprovação por parte do conselho de ministros. Uma das consequências é que não houve, na fase de contratação das consultoras, tempo hábil para a realização de uma das mais importantes etapas da cooperação: a avaliação dos pilotos para dar base ao desenho operacional do PRONAE. Na opinião de muitos dos entrevistados, o tempo previsto no Termo de Cooperação é curto para a incubação de uma política pública com tal grau de complexidade, em comparação com outros projetos de cooperação brasileira no país, como é o caso do ProSavana, um projeto de 20 anos. Para os que recebem a cooperação, é importante considerar o tempo necessário para que o governo moçambicano internalize princípios ainda pouco experimentados, como intersetorialidade e participação social. Diz um dos entrevistados: “Seria importante que o Brasil estivesse junto até o momento em que o programa ganha vida real, ganha força para seguir sozinho, e para isso há de se considerar o tempo da máquina pública moçambicana”. Uma diferença apontada por técnicos moçambicanos em relação à cooperação Norte-Sul é a de que a presença do Brasil se restringe à cooperação técnica, não há doação de fundos para outras atividades que não o custeio da equipe técnica brasileira, o que, para eles, fragiliza o conjunto da ação e gera uma dependência em relação à doação do PMA ou a arranjos trilaterais, que custeiam o que o governo ainda não é capaz de financiar. Considerando a dimensão nacional do PRONAE, as entrevistas apontam para o desafio de formação de gestores públicos, de forma que o governo moçambicano possa assumir de forma autônoma a condução do programa. Para alguns, o componente de formação precisa ser pensado de for-

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ma mais estratégica e a filosofia do programa deveria estar no currículo dos diversos cursos universitários relacionados e não restrita a iniciativas pontuais de capacitação e seminários.

Um olhar sobre a transferência de princípios e diretrizes Na primeira missão moçambicana de visita ao PNAE no Brasil, que deu origem ao acordo de cooperação, chamaram a atenção dos técnicos do MINED a experiência de gestão descentralizada e Intersetorial; os marcos legais; a determinação, definida em lei, de garantir o fornecimento de no mínimo 30% dos alimentos pelos agricultores familiares; a oferta de uma alimentação diversificada; e a capacidade de produção e organização dos pequenos agricultores. No processo de elaboração do programa nacional moçambicano, esses elementos foram incorporados, assim como outros princípios que estão na base do PNAE, tais como a aposta na educação alimentar e nutricional nas escolas e a promoção da participação das comunidades. Entrevistas com representantes do Centro de Excelência de Combate à Fome mostram que, entre as características do desenho do programa brasileiro, despertam o interesse internacional a compra direta da agricultura familiar; a perspectiva Intersetorial, descentralizada e continuada; a diversificação da alimentação, e a participação social. Estas são geralmente apresentadas como as fórmulas de sucesso da experiência brasileira. Cabe, portanto, um olhar sobre como alguns desses aspectos ganham forma na implementação da cooperação em Moçambique, sem esquecer que a implementação do PRONAE é ainda uma experiência embrionária. Assim como no nosso país, ganha destaque a perspectiva do programa de alimentação escolar como promotor de desenvolvimento da economia local, com a criação de mercados institucionais para os pequenos produtores em Moçambique. No Brasil, a novidade foi originalmente criada pelo PAA, em 2003, no âmbito da política nacional de segurança alimentar e nutricional, o que desperta grande interesse pela capacidade de articular, em uma mesma política pública, o apoio à comercialização da agricultura familiar com iniciativas que promovem o acesso à alimentação a pessoas em situação de insegurança alimentar. Estudos sobre a perspectiva de compras locais pelo PNAE e o PAA mostram que iniciativas dessa natureza promovem a redução de distâncias entre produção e consumo, promovendo circuitos curtos de comercialização com positivas repercussões sobre vários

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aspectos que favorecem a condição da segurança alimentar e nutricional, tais como o barateamento de custos, a valorização da cultura alimentar local e o fortalecimento das economias locais (Porto, Menezes, 2015). Ainda é muito cedo para se avaliar as compras institucionais da agricultura familiar no âmbito dos projetos piloto em Tete, mas as entrevistas já indicam desafios relacionados à operacionalização da aquisição de alimentos e à capacidade de produção e comercialização por parte dos agricultores familiares. A lei de compras moçambicana é bastante flexível, mas os pequenos produtores e suas associações ainda têm dificuldade de participar dos processos, pois em sua grande maioria, não estão legalizados, nem incluídos no sistema bancário. Também não há no PRONAE uma política de definição de preço dos alimentos. Alguns dos problemas decorrentes já observados em campo, tais como o superfaturamento de preços e a compra de atravessadores e comerciantes em detrimento das associações locais, podem se tornar sintomáticos na medida em que se expande o programa. Em Changara e Cahora-Bassa, se observa a carência de políticas voltadas para o fortalecimento da agricultura familiar. Os membros das associações visitadas não têm assegurado os títulos de usufruto das áreas onde produzem — os DUATs (Direitos de Uso e Aproveitamento da Terra) — ou acesso a crédito e seguro agrícola. As secretarias de Agricultura contam com um número muito reduzido de extensionistas. A ausência de uma política pública voltada para o fortalecimento da agricultura familiar é um dos elementos que comprometem a eficiência do modelo que vem sendo desenhado para a realidade moçambicana. Um dos entrevistados levanta uma questão que desafia o olhar sobre a cooperação brasileira: “Como se constrói essa cooperação para a alimentação escolar quando não há, no país que a recebe, os programas complementares necessários para o seu funcionamento?” A construção intersetorial, ainda no início, é outro grande desafio, uma visão que está sendo criada e exercitada. Em nível nacional, ela se expressa na constituição formal do grupo multissetorial, mas nos distritos a integração entre os setores é ainda frágil e informal. Na opinião de um dos entrevistados, o programa nacional define bem o papel dos órgãos, mas as atribuições ainda não foram absorvidas pelos ministérios, descentralizadas e transformadas em planos de ação com orçamento específico. A perspectiva de participação social, na visão de um membro do MINED, é “ainda uma utopia, longe de sair do papel”, o que se explicaria principalmente pela característica centralizadora do estado moçambicano e por ser ainda recente a constituição de um tecido de organizações não

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governamentais nacionais. Segundo relatos, não houve um esforço de convocação da sociedade civil para a participação no processo de elaboração da política nacional de alimentação escolar — ela ficou restrita à presença da União Nacional de Camponeses (UNAC 2) em algumas das poucas reuniões realizadas pelo grupo multissetorial. Em nível distrital, a comunidade participa por meio dos conselhos escolares, mas a percepção da população é de que a participação se restringe à disponibilização de mão de obra, como a dos pais que são voluntários nas escolas.

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Por motivos de agenda, não foi possível, durante o trabalho de campo, realizar entrevistas com representantes da UNAC.

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3. Desafios 3.1 A cooperação brasileira e as tendências da agenda internacional de combate à fome Como já foi dito, a cooperação para a alimentação escolar em países africanos se molda tanto a partir da experiência nacional de construção da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (PNSAN) e do (Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), quanto como forma de resposta a crescentes tendências internacionais, tais como a transição de programas de ajuda alimentar emergencial para a cooperação voltada à estruturação de políticas públicas de acesso à alimentação, e a busca de estratégias capazes de aproximar os campos da agricultura e da nutrição. Em Moçambique, nota-se a mudança gradual de uma abordagem “humanitarista e emergencial”, baseada essencialmente na disponibilidade física de alimentos, para uma abordagem “estruturalista” de segurança alimentar (Vunjanhe, Adriano, 2015). Esta transição abre espaço para novas estratégias e arranjos de cooperação Sul-Sul e tripartite no campo da segurança alimentar e nutricional, entre as quais se enquadra a forte parceria entre o governo brasileiro e o PMA, na criação do Centro de Excelência de Combate à Fome e nas iniciativas de cooperação trilateral inspiradas no PNAE. Reflete-se ainda na grande visibilidade alcançada pelos programas brasileiros de compras institucionais, como o PAA. A perspectiva de compra direta da agricultura familiar vai também ao encontro de um debate crescente que ocorre em fóruns e conferência globais e busca aproximar os campos da agricultura e da nutrição, através de um novo marco conceitual denominado “agricultura sensível à nutrição”. Feita a partir desta perspectiva e da promoção da soberania e da segurança alimentar no país, uma análise sobre os elos entre a agricultura e a nutrição nas políticas brasileiras revela algumas lições aprendidas, como as vantagens da promoção de programas intersetoriais que contribuam para a formação de circuitos curtos de produção, distribuição e consumo de alimentos, que, ao mesmo tempo em que fortalecem a agricultura familiar, promovem o

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acesso a dietas mais diversificadas e adequadas em termos nutricionais e culturais (Maluf et all., 2015). Há uma correspondência entre o que o Brasil acumula como experiência nacional de política pública e as tendências para se lidar com o combate à fome e à desnutrição no mundo, o que gera demandas de cooperação e impõe o desafio de aperfeiçoamento da atuação internacional no campo da segurança alimentar e nutricional. Esta é, portanto, uma oportunidade de compartilhamento do aprendizado com países que estão em processo de construção de suas políticas nacionais na área, como é o caso de Moçambique. Estudo realizado pelo Centro de Referência em Segurança Alimentar e Nutricional, a partir do projeto “Fortalecendo o papel do Brasil nos espaços internacionais para uma agenda global pelo direito humano à alimentação e a erradicação da fome”, indica que, em um contexto de dispersão de inciativas e escassez de recursos orçamentários, o apontamento de prioridades e o desenho de uma estratégia brasileira de cooperação Sul-Sul em SSAN, se faz necessário. O esforço deve considerar a complexidade da difusão do conjunto de elementos da estratégia brasileira e sua perspectiva sistêmica, participativa e intersetorial e adotar o princípio da horizontalidade, que implica valorizar a troca e o compartilhamento de experiências na construção e implementação dos programas de cooperação (Maluf e Santarelli, 2015)

3.2 Uma experiência de validação e transferência de políticas públicas com multiatores e multiníveis Observa-se também que a cooperação brasileira nesse campo vai aos poucos se consolidando como transferência de política públicas com multiatores e em vários níveis, desde a forma como o programa brasileiro de alimentação escolar se legitima internacionalmente como uma referência para a garantia do direito humano à alimentação, até o modo como a cooperação é implementada, integrando várias iniciativas e agências internacionais e o poder público local. Vários autores argumentam que a cooperação Sul-Sul se fundamenta em discursos de similaridades, sendo os mais empregados pela cooperação brasileira aqueles relacionados ao caráter histórico, racial, sociocultural, econômico, agroclimático e, no caso dos países de língua portuguesa, de idioma (Milhorance, 2013; Cesarino, 2013). As similaridades tornariam mais

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simples ou efetiva a adaptação das soluções tecnológicas e políticas entre os países do Sul. Porém, a projeção internacional, assim como a escolha dessas soluções, está atrelada a um processo de legitimação que se dá em vários níveis, do internacional à administração pública dos países parceiros, sendo a primeira etapa de qualquer transferência internacional a transformação das práticas locais em fórmulas destinadas à exportação, em um processo de “certificação” conduzido recorrentemente por órgãos internacionais (Milhorance, 2013). As agências da ONU e o Banco Mundial, entre outros, operam como mediadores de boas práticas e promovem a transferência de políticas, sob a denominação de cooperação Sul-Sul (Sá e Silva, 2008). A popularidade e a legitimidade dos programas brasileiros de segurança alimentar como solução para os problemas de outros países em desenvolvimento explicam-se tanto pelas diversas “certificações” internacionais, quanto pelos esforços do governo Lula para promovê-los como instrumentos de transferência e aprendizado entre países do Sul (Milhorance, 2013). O que o histórico de cooperação brasileira em SAN nos mostra é que, em um primeiro momento, legitima-se o Fome Zero, pela eficácia de suas políticas públicas na redução da fome e da pobreza. O país cumpriu, antes do tempo, os Objetivos do Desenvolvimento do Milênio (ODMs), de reduzir pela metade a proporção de pessoas com fome até 2015, e a meta da Cúpula Mundial da Alimentação, de reduzir pela metade o número absoluto de pessoas com fome. Em 2014, o Brasil saiu do Mapa Mundial da Fome da FAO, ao reduzir a população de brasileiros em situação de subalimentação em 82% entre 2002 e 2013. O país ganhou destaque no relatório “O estado da insegurança alimentar no mundo”, da FAO, por sua estratégia de combate à fome. São considerados iniciativas fundamentais para o alcance deste resultado elementos como: o compromisso com a proteção social e a transferência de renda; a alimentação escolar; o fomento à produção agrícola por meio de compras governamentais; e o sistema intersetorial e participativo de governança para a segurança alimentar e nutricional (FAO, 2014). Além disso, em 2011 o brasileiro Graziano da Silva, que esteve à frente do programa Fome Zero nos primeiros anos do governo Lula, foi eleito para a presidência da FAO, o que pode ser percebido como mais um atestado internacional do lugar das políticas públicas brasileiras na agenda mundial do combate à fome. Em nível local, os projetos de transição e piloto em Tete buscam também — através de uma estratégia em que estão envolvidos vários agentes de cooperação, atuando de forma integrada com o poder público moçambicano — a legitimação da alimentação escolar como política pública

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passível de ser adaptada à realidade de um país africano. Fazer funcionar a alimentação escolar em Changara e Cahora-Bassa é um desafio para todos envolvidos nesta cooperação, não só para que o governo moçambicano reconheça o valor e a viabilidade da iniciativa e a assuma como política pública nacional, destinando orçamento próprio para financiá-la, como para o conjunto de atores empenhados na “certificação” desta boa prática e em mostrar que é possível enfrentar a desnutrição infantil com políticas de estado. A sustentabilidade do PRONAE e sua apropriação como política pública moçambicana dependem, em grande medida, da efetividade dos projetos piloto e de transição em Tete, o que requer, por parte dos agentes da cooperação brasileira, uma visão ainda mais estratégica, integrada e territorial de suas iniciativas em segurança alimentar e nutricional em Moçambique, de forma a otimizar os esforços e escassos recursos da cooperação brasileira.

3.3 O desafio de compartilhar por meio da perspectiva Sul-Sul A recente transição de um país que até uma década atrás era principalmente receptor de cooperação para a posição de doador não foi acompanhada das adequações legais, institucionais e orçamentárias, necessárias para atender à crescente demanda estimulada. O contexto em que se desdobra a cooperação brasileira para a alimentação escolar é marcado pela ausência de uma política nacional de cooperação Sul-Sul e pela dispersão institucional em espaços decisórios altamente fragmentados, o que exige enormes esforços dos agentes da cooperação, das instituições e dos indivíduos, para cooperar a partir de marcos regulatórios e instrumentos burocráticos e orçamentários quase sempre inadequados. A fragilidade do aparato da cooperação nacional limita a capacidade de resposta à crescente demanda e compromete a qualidade da cooperação Sul-Sul, mas também favorece o estabelecimento de acordos com organismos internacionais. Nos últimos anos, foram dados largos passos na “certificação” e promoção da experiência de alimentação escolar brasileira como referência internacional e alternativa de política pública no contexto africano, inclusive com a criação de novas instituições, como o Centro de Excelência Contra a Fome, estrutura que, apesar de instalada e parcialmente financiada pelo governo brasileiro, é uma estrutura do Programa Mundial de Alimentos. Concomitantemente,

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nota-se que não foram desenvolvidas nas instituições brasileiras envolvidas com esta cooperação, como a ABC e o FNDE, as condições e capacidades necessárias para implementar os acordos de cooperação trilateral, o que restringe o potencial de transferência e compartilhamento da cooperação Sul-Sul. Apesar de seu grande potencial, a cooperação técnica é frágil frente ao tamanho do desafio a ser enfrentado. Cabe refletir sobre alguns aspectos que precisariam ser revisados e aperfeiçoados no processo de implementação, relacionados: à preparação e à capacitação dos cooperantes; à flexibilidade dos instrumentos contratuais de cooperação; ao tempo previsto e aos recursos financeiros empregados na cooperação; aos mecanismos de transferência de conhecimento e à coordenação política do trabalho em território moçambicano. Como é operada hoje, a cooperação técnica brasileira tende a depender da capacidade individual dos cooperantes, além de sofrer de uma limitada capacidade de adequação às dinâmicas locais e de transferência de conhecimento e formação de habilidades. É preciso refletir de forma estratégica sobre os mecanismos de transferência e intercâmbio que podem facilitar a troca de experiências e a cooperação Sul-Sul, no caso da alimentação escolar e também em relação à agenda de segurança alimentar e nutricional como um todo. É especialmente desafiante pensar como se compartilha a experiência brasileira sem ignorar que o êxito do modelo se deve a alguns componentes essenciais, como a diversificação da alimentação, as compras locais, a intersetorialidade e a participação social. A partir do princípio da “não interferência” e da perspectiva brasileira de realizar “cooperação por demanda”, corre-se o risco de que alguns desses requisitos básicos não sejam suficientemente incorporados nos projetos de cooperação, ou até mesmo fiquem de fora, quando a cultura política dos países receptores — em muitos casos democracias frágeis e com baixo grau de organização social — se impõe. Aos agentes da cooperação brasileira para a alimentação escolar caberia uma reflexão sobre como fortalecer, nos países com o qual coopera, os elementos que explicam o sucesso da experiência no Brasil, alguns já incorporados e legitimados como princípios das políticas nacionais de alimentação escolar, como em Moçambique. Diante de uma possível expansão do programa, aparecem também, como forte expectativa dos moçambicanos, a transferência estratégica de competências técnicas e a formação de quadros nacionais. É preciso considerar em que medida os Centros Colaboradores em Alimentação e Nutrição do Escolar (CECANES) —

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parcerias do FNDE com universidades brasileiras que exercem um importante papel na qualificação do PNAE — poderiam se tornar agentes da cooperação brasileira para a alimentação escolar. Ainda que desenvolvidos em contextos diversos e em estágios de implementação muito distantes, os desafios de implementação do PRONAE não diferem muito dos que foram ou ainda vêm sendo enfrentados na construção do PNAE no Brasil. Isto favorece a perspectiva de uma cooperação que pode se tornar cada vez mais horizontal e direcionada aos novos obstáculos que despontam no grande desafio que é fazer acontecer a alimentação nas escolas.

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