Copa do Mundo 2010: A seleção uruguaia de futebol nos jornais Correio do Povo e Zero Hora

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FERNANDO SOARES

COPA DO MUNDO 2010: A SELEÇÃO URUGUAIA DE FUTEBOL NOS JORNAIS CORREIO DO POVO E ZERO HORA

Monografia apresentada como requisito parcial para a obtenção do título de bacharel em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pela Faculdade de Comunicação Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS.

Orientadora: Profª. Drª. Ivone Maria Cassol

Porto Alegre 2011

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FERNANDO SEVERO SOARES JUNIOR

COPA DO MUNDO 2010: A SELEÇÃO URUGUAIA DE FUTEBOL NOS JORNAIS CORREIO DO POVO E ZERO HORA

Monografia apresentada como requisito parcial para a obtenção do título de bacharel em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pela Faculdade de Comunicação Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS.

Aprovada em ____ de _______________ de ______

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________ Profª. Drª. Ivone Maria Cassol (Orientadora)

___________________________________________ Prof. Me. Fábian Chelkanoff Thier

___________________________________________ Prof. Me. Juan de Moraes Domingues

Porto Alegre 2011

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a todos aqueles que, de alguma forma, contribuíram para a minha formação profissional nestes últimos quatro anos. À minha mãe, Gladis. Ao meu pai, Fernando. Aos meus avós, Carlos e Nilza. Aos demais familiares que também me apoiaram ao longo desta trajetória. Aos professores da Famecos por todo o conhecimento transmitido no ambiente acadêmico. Agradeço, em especial, à minha orientadora, professora Ivone, pelo apoio e pelo auxílio na realização deste trabalho.

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“Hay quienes sostienen que el fútbol no tiene nada que ver con la vida del hombre, con sus cosas más esenciales. Desconozco cuánto sabe esa gente de la vida. Pero de algo estoy seguro: no saben nada de fútbol”. Eduardo Sacheri, escritor argentino

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RESUMO

Este estudo pretende analisar como os jornais Correio do Povo e Zero Hora noticiaram a participação da seleção uruguaia de futebol durante a Copa do Mundo de 2010. Para isso, são comparados os conteúdos noticiosos referentes à Celeste publicados em ambos os impressos ao longo da competição, entre junho e julho do ano passado. A presente monografia busca entender como os vínculos entre Rio Grande do Sul e Uruguai, existentes em diversos segmentos, influenciaram a produção jornalística. Além disso, tenta-se compreender como dois periódicos gaúchos com distintas linhas editoriais abordaram a campanha de um país vizinho ao Brasil. Desta forma, objetiva-se verificar as diferenças e particularidades de cada cobertura.

Palavras-chave: Jornalismo esportivo – Uruguai – Copa do Mundo – Correio do Povo – Zero Hora

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RESUMEN

Este estudio pretende analizar como los periódicos Correio do Povo e Zero Hora noticiaron la participación de la selección uruguaya de fútbol durante la Copa del Mundo de 2010. Para eso, son comparados los contenidos noticiosos concernientes a la Celeste, publicados en ambos impresos en el transcurso de la competición, entre junio y julio del año pasado. La presente monografía busca entender como los vínculos entre Río Grande del Sur y Uruguay, existentes en diversos segmentos, influenciaron la producción periodística. Además, se intenta comprender como dos periódicos gauchos con distintas líneas editoriales abordaron la campaña de un país vecino al Brasil. Así, el objetivo es verificar las diferencias y particularidades de cada cobertura. Palabras-clave: Periodismo deportivo – Uruguay – Copa del Mundo – Correio do Povo – Zero Hora

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LISTA DE QUADROS Quadro 1 – Categorias dos valores-notícia ...........................................................

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Quadro 2 – Títulos Uruguai x França ....................................................................

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Quadro 3 – Títulos Uruguai x África do Sul ........................................................... 45 Quadro 4 – Títulos Uruguai x México .................................................................... 47 Quadro 5 – Títulos Uruguai x Coreia do Sul .........................................................

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Quadro 6 – Títulos Uruguai x Gana ......................................................................

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Quadro 7 – Títulos Uruguai x Holanda .................................................................. 60 Quadro 8 – Títulos Uruguai x Alemanha ...............................................................

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................

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2 VÍNCULOS ENTRE RIO GRANDE DO SUL E URUGUAI ................................

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2.1 PERCURSO HISTÓRICO DAS RELAÇÕES ..................................................

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2.2 A BUSCA POR EXÍLIO NO VIZINHO .............................................................

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2.3 IDENTIDADE GAÚCHA E AS RELAÇÕES COM O PRATA ..........................

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2.4 FUTEBOL-FORÇA: O ESTILO DE JOGO DE GAÚCHOS E URUGUAIOS ...

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3 JORNALISMO ESPORTIVO, PAUTAS E LINHAS EDITORIAIS .....................

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3.1 JORNALISMO ESPORTIVO ...........................................................................

28

3.2 SELEÇÃO E EXECUÇÃO DE PAUTAS NO JORNALISMO ...........................

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3.3 AS LINHAS EDITORIAIS DO CORREIO DO POVO E DA ZERO HORA ......

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4 A CELESTE NOS JORNAIS CORREIO DO POVO E ZERO HORA ................

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4.1 PRIMEIRA FASE – GRUPO A ........................................................................

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4.2 OITAVAS DE FINAL ........................................................................................

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4.3 QUARTAS DE FINAL ......................................................................................

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4.4 SEMI FINAL .....................................................................................................

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4.5 DISPUTA DO TERCEIRO LUGAR ..................................................................

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5 CONCLUSÃO .....................................................................................................

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REFERÊNCIAS ...................................................................................................... 74

ANEXOS ................................................................................................................

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ANEXO A – URUGUAI X COREIA DO SUL ..........................................................

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ANEXO B – URUGUAI X GANA ............................................................................

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ANEXO C – URUGUAI X HOLANDA ..................................................................... 92

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1 INTRODUÇÃO

A cada quatro anos, o Brasil para durante um mês. Entre junho e julho ocorre a Copa do Mundo de futebol. O esporte bretão, que por si só já é notícia no cotidiano dos jornais, torna-se o protagonista incontestável neste período. As páginas das publicações são tomadas pelos acontecimentos do evento máximo do futebol mundial. Paralelamente, jornalistas e veículos acabam exercendo a condição de torcedor. Algo compreensível, até porque o desempenho da seleção local está diretamente relacionado ao número de exemplares vendidos ou à audiência conquistada. Dados do Instituto Verificador de Circulação (IVC) apontam que a venda de jornais no país no primeiro semestre de 2010, quando ocorreu o campeonato, aumentou 2% em relação ao mesmo período do ano anterior. As chamadas de capa e as notícias sobre os jogos, que exalam patriotismo e até alfinetam os principais rivais, contribuem para incrementar as vendagens, mesmo que de forma moderada. O motivo para essa situação é de fácil compreensão. O assunto dominante naquele momento acontece dentro das quatro linhas. Na imprensa gaúcha não é diferente. A cobertura da Copa do Mundo foi amplamente destacada nas páginas dos periódicos. Correio do Povo (CP) e Zero Hora (ZH), dois dos principais jornais em circulação no estado, deram atenção especial ao evento. Zero Hora produziu um caderno intitulado Jornal da Copa, apenas para contemplar o torneio. Já o Correio do Povo, apesar de não ter desenvolvido um suplemento voltado exclusivamente para o Mundial, passou a produzir um número maior de páginas na editora de esportes. Ambas as publicações, por serem brasileiras, evidenciavam, nas manchetes e matérias a preferência pela seleção do Brasil. As demais equipes tinham espaço em suas páginas, mas sem o mesmo destaque da seleção canarinho. No dia 3 de junho, o Brasil foi eliminado da Copa pela Holanda, na fase de quartas de final. Na mesma data, a seleção do Uruguai avançou à semifinal ao ganhar nos pênaltis da equipe de Gana. A partir desse momento, as diferenças das duas coberturas, que tinham abordagens semelhantes até então, se acentuaram e percorreram caminhos divergentes. Zero Hora se autodenominou “doble chapa” e fez questão de enfatizar que apoiaria a seleção celeste até o final da competição. Enquanto isso, o Correio do Povo pouco alterou sua forma de cobertura instituída desde o início do certame.

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A boa campanha uruguaia se constituiu em uma surpresa. No início do torneio, poucos apostariam que a Celeste chegaria tão longe na competição. O próprio jornal Zero Hora classificou a exibição do Uruguai contra a França, pela primeira rodada da fase de grupos, como um “tédio”. A combinação entre o bom desempenho do Uruguai, um país fronteiriço com o Rio Grande do Sul, e a eliminação do Brasil fez com que o jornal optasse por realizar uma cobertura diferenciada da seleção celeste, proclamando-se “doble chapa”. Em uma tradução livre, a expressão significa chapa dupla. No Rio Grande do Sul, utiliza-se esta alcunha para definir aquela pessoa nascida ou que habita na fronteira entre Brasil e Uruguai. A euforia que tomou conta do país vizinho foi detalhada nas páginas do caderno Jornal da Copa, de ZH. O veículo enviou correspondentes ao Uruguai e produziu uma série de matérias especiais sobre o momento vivido pelos uruguaios, explorando o fato do estado ser vizinho do país. Neste sentido, também foram produzidas pautas na fronteira entre Santana do Livramento e Rivera que demonstraram como os gaúchos estavam reagindo ao bom momento do selecionado do Uruguai. Enquanto isso, o Correio do Povo permaneceu, na maior parte do tempo, registrando apenas os acontecimentos dentro de campo, sem explicitar a preferência por uma segunda seleção. As relações entre Rio Grande do Sul e Uruguai são ricas e se estendem a aspectos culturais, históricos e geográficos. Segundo Oliven (2006), o Rio Grande do Sul ocupa uma posição singular em relação ao Brasil, devido sua localização geográfica, à economia, à forma de povoamento e ao modo pelo qual se insere na história nacional. Frequentemente, o gaúcho dá demonstrações de maior afeto pelo estado do que pela pátria, situação que lhe gera o rótulo de bairrista. Para verificar tal fenômeno, basta observar o próprio futebol. Nas partidas realizadas por Grêmio e Internacional, em Porto Alegre, houve, durante alguns anos, a obrigação, por lei, de serem executados os hinos do Brasil e do Rio Grande do Sul. Ambas as torcidas cantavam o hino rio-grandense com ardor. Já quando o hino brasileiro era tocado, ele não recebia o mesmo entusiasmo. O jornal Zero Hora prioriza, e deixa isto claro na sua linha editorial, os acontecimentos sob um ponto de vista local, assumindo-se como localista. De acordo com Felippi (2007), as notícias em Zero Hora têm como cenário a região de cobertura do periódico, sendo relacionados ao estado, que envolvam pessoas

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nascidas na área ou que, de alguma forma, tenham relação com o Rio Grande do Sul. O Uruguai, por ter uma identidade próxima à do Rio Grande do Sul e também por exercer o chamado futebol-força, baseado no esforço e na garra em detrimento da técnica, no que se assemelha ao estilo das equipes gaúchas, estabeleceu uma série de relações propícias para que fosse adotado como time preferido pelo jornal. Diante deste contexto emerge a pergunta: por que Correio do Povo e Zero Hora Povo trataram a seleção uruguaia de maneiras distintas? A partir dessa premissa, surge a necessidade de se traçar um perfil da cobertura realizada pelos dois periódicos para ver até que ponto essa relação de identidades se refletiu nas matérias jornalísticas sobre a equipe celeste. Além disso, faz-se necessária a identificação de como a relação entre estado e país influenciou o conteúdo produzido. Neste sentido, este trabalho estuda como as diferentes linhas editoriais de CP e ZH impactaram na cobertura realizada para o selecionado uruguaio. Este trabalho pretende analisar, também, a influência dos laços culturais e históricos entre Uruguai e Rio Grande do Sul na cobertura jornalística de Correio do Povo e Zero Hora. Para isso, a presente monografia está desenvolvida em cinco capítulos. O segundo capítulo busca relacionar aspectos culturais e históricos que unem Rio Grande do Sul e Uruguai, mostrando que os laços entre estado e país se estendem ao futebol. O terceiro capítulo aborda o processo de seleção de pautas e as linhas editoriais dos jornais Correio do Povo e Zero Hora, os dois impressos analisados por este estudo. Nesse segmento também são tratadas questões relativas ao jornalismo esportivo, em especial à cobertura futebolística. O quarto capítulo dá ênfase à análise da cobertura jornalística de Correio do Povo e Zero Hora ao longo da campanha do Uruguai na Copa do Mundo de futebol ocorrida na África do Sul, em 2010. Esta monografia consiste na análise comparativa do conteúdo das reportagens, resultando em uma apreciação da estrutura e do significado das notícias sobre a seleção uruguaia publicadas em CP e ZH durante o período de realização do Mundial. Para isso, recorre-se a técnica de pesquisa bibliográfica e a análise de conteúdo, conforme Bardin (2009). Para a análise, a amostra reúne notícias veiculadas sobre a seleção uruguaia de futebol no Correio do Povo e no suplemento Jornal da Copa, de Zero Hora, no transcorrer da realização da Copa do Mundo, entre 11 de junho e 11 de julho. A técnica de entrevista despadronizada, utilizada com o repórter de ZH Diogo Olivier e o editor de esportes do CP Hiltor

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Mombach, também auxilia na obtenção de informações para compreender os diferentes enfoques do assunto.

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2 VÍNCULOS ENTRE RIO GRANDE DO SUL E URUGUAI

Uma análise da cobertura jornalística feita por Correio do Povo e Zero Hora sobre a seleção uruguaia de futebol na Copa do Mundo 2010 requer, em um primeiro momento, uma abordagem sobre as relações entre Rio Grande do Sul e Uruguai. Neste sentido, o presente capítulo verifica as semelhanças entre gaúchos e uruguaios em distintos aspetos, relacionados à história, à construção de identidades e ao futebol. Autores como Golin (2001), Reckziegel (1997), González (2006), Oliven (2006), Giulianotti (2002) e Damo (1998) embasam os estudos nesta parte do trabalho.

2.1 PERCURSO HISTÓRICO DAS RELAÇÕES

Antes de se iniciar este item, referente à construção histórica das relações entre a República Oriental do Uruguai e o estado do Rio Grande do Sul, é importante fazer a ressalva de que os processos que culminaram na criação dos vínculos entre gaúchos e uruguaios envolvem situações como a independência do Uruguai e um período político marcado por instabilidade, tanto no estado brasileiro quanto no país vizinho. Por serem extensos, esses acontecimentos são tratados parcialmente na presente monografia, sendo pinçados somente alguns pontos necessários para o entendimento do desenvolvimento dos elos entre as partes. Golin (2001) recorda que, em 1821, quando o Brasil ainda era colônia de Portugal, o espaço no qual se situa o Uruguai foi incorporado como uma das unidades do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarve sob o nome de Cisplatina. Mesmo com a declaração da independência da República Oriental do Uruguai, em 25 de agosto de 1825, o reconhecimento do território localizado ao sul do Rio Grande do Sul como livre veio somente três anos mais tarde. Durante esse período, a Banda Oriental foi alvo de uma intensa disputa entre Brasil e Argentina. Formalmente, desde 1821, a Cisplatina era mais uma província do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarve; e, entre 1822 e 1824, transcorreu uma transição à soberania do Império do Brasil. [...] mais tarde, quando ficou esclarecido para o governo brasileiro que Buenos Aires e demais províncias limítrofes concorriam com dinheiro, armas e homens, é que o conflito se converteu em uma guerra entre o Brasil e Argentina. (2001, p.85)

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Em 1825, argentinos e brasileiros, já livres do domínio português, começaram a travar a chamada Guerra da Cisplatina, que perduraria por três anos. Durante a realização do conflito, a sociedade uruguaia estava dividida em um cenário composto por três corretes políticas distintas: uma pela incorporação ao Brasil, outra pela anexação à Argentina e, por fim, uma terceira via, que passou a ganhar cada vez mais força com o desenrolar dos duelos, pela permanência da nova república instituída. Era fato que os uruguaios estavam descontentes com a ocupação lusobrasileira. Os “negócios proporcionados pelo comércio portuário, das benesses de poder, as questões das terras e dos gados eram vivenciadas direta e dolorosamente pela população da campanha” (GOLIN, 2001, p.96). Eram corriqueiros os registros de saques e roubos envolvendo caudilhos ligados ao exército lusitano. Neste sentido, um caso específico chama a atenção, o do general João Carlos Saldanha, que transferiu para o Rio Grande do Sul, como se fosse sua propriedade, parte dos rebanhos reunidos ao longo da ocupação na Cisplatina. Entre outras coisas, foram deslocados 18 mil animais adestrados para a cavalaria e incontáveis cabeças de gado para corte. “A matéria-prima dos gados desencadeou a multiplicação das charqueadas do Rio Grande, que, de dez, passaram a 123 durante o período da Província Cisplatina” (MACHADO apud GOLIN, 2001, p.103). Consequentemente, o trânsito de animais e matérias-primas foi uma das primeiras atividades estabelecidas no espaço que viria se consolidar posteriormente como fronteiras entre Rio Grande do Sul e Uruguai. Mediado pela Grã-Bretanha, o conflito entre argentinos e brasileiros se desdobrava sob um quadro nada animador. Uma posição definitiva estava longe ser alcançada, diversos civis eram vitimados e os prejuízos comerciais desgastavam ambos os países, relata Golin. Durante as batalhas, discutiram-se diversas propostas para um acordo que reconhecesse o território oriental como uma nação independente. Entretanto, apenas em agosto de 1828 o Uruguai seria reconhecido como país. O autor também recorda um fato ocorrido durante o processo da independência uruguaia, envolvendo diretamente o Rio Grande do Sul. Um estancieiro que havia participado da conquista das Missões e que, ironicamente,

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teve participação na invasão lusitana à Banda Oriental havia criado um movimento de apoio à independência uruguaia. Entre os fatos mais surpreendentes da Guerra da Cisplatina encontra-se a formação do Regimento de Libertadores do Rio Grande, que se incorporou ao exército de Alvear para lutar pela independência do Uruguai. A sua organização esteve a cargo de Alexandre Luiz de Queiroz e Vasconcellos, filho de um tenente português homônimo [...] formação do regimento pela independência do Uruguai revelou-se no corolário de algumas ações do intempestivo miliciano e fazendeiro. De certa forma, o seu comando contra o Brasil deixara em posição delicada as autoridades que tinham contemporizado as suas peripécias anteriores. (GOLIN, 2001, p.147)

Consumada a criação do Uruguai, diversas guerras internas eclodiram nos anos seguintes. Ao mesmo tempo, a demarcação do território uruguaio ainda era confusa, não havendo uma definição com relação aos seus limites. Paralelamente, no Rio Grande do Sul, a Revolução Farroupilha passava a ser embrionada. Golin destaca que o caudilho uruguaio Rivera, ávido por conquistar Montevidéu, articulou uma série de acordos junto aos farrapos, que, em determinado momento, almejavam a tomada de Rio Grande. Em troca do apoio dos farrapos, Rivera prometeu, além do reconhecimento da República Rio-Grandense, fornecer armas e cavalos. Ele também assegurou que o porto da capital uruguaia estaria aberto para movimentação comercial entre as partes. Um dos tratados assinados chegou a estabelecer, de forma ligeira, as divisões territoriais a serem adotadas. O Tratado de Canguê arrolou, inclusive, a questão da linha da fronteira a ser fixada entre o Uruguai de Rivera e a República Rio-Grandense. A situação de guerra em ambos os territórios não permitiu o aprofundamento do tema, ficando para entendimento futuro. [...] Uma grande operação foi montada em conjunto: a tomada de Montevidéu por Rivera e a cidade de Rio Grande pelos farrapos. Os recursos seriam maximizados. Entretanto, mais tarde, Rivera conquistou a capital uruguaia e, subornado pelo Império, não cumpriu sua parte [...] A traição de Rivera foi a causa do atraso das operações farroupilhas e de jamais terem conquistado a cidade de Rio Grande, onde se localizava o porto de fundamental importância para o comércio exterior e sobrevivência da República insurgente. (2001, p.303)

Pelos idos de 1850 estava bastante sólida “a nacionalização da fronteira, para os uruguaios, e a orientalização, sob o prisma dos brasileiros residentes no país vizinho” (GOLIN, 2001, p.517). Ou seja, a partir daquele momento começava o povoamento das regiões próximas ao Rio Grande do Sul, o que viria a ser primordial para o aprofundamento das relações entre os gaúchos e os uruguaios. Essa atitude foi motivada por uma preocupante estatística aos olhos do governo do Uruguai: os

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brasileiros, majoritariamente cidadãos oriundos do estado vizinho, detinham quase quatro mil léguas das terras uruguaias, o que correspondia a praticamente metade do território da nação. Reckziegel (1997) constata que o estreitamento dos laços entre Rio Grande do Sul e Uruguai não se dava apenas no nível econômico e cultural em razão da proximidade fronteiriça. O período entre 1893 e 1904 também foi importante para ligar as partes. Ao longo desses anos, os conflitos internos continuavam dos dois lados da fronteira, mas, justamente a partir deles, os vínculos entre gaúchos e uruguaios se intensificavam. Esse vínculo comum [...] permeado por trocas comerciais, intercâmbio cultural e mesclas familiares, desde cedo também refletiu o eco das contendas políticas daqui, de lá e de lá, daqui. [...] Em 1893, no Rio Grande do Sul, quando os federalistas perseguidos pelo governo do estado fizeram, por assim dizer, do Uruguai seu quartel-general e, mais ainda, cooptaram para a luta renomados caudilhos orientais. Da mesma forma, quando da revolução de 1897, no Uruguai, os blancos procurariam apoio militar e estratégico no Rio Grande do Sul, não só entre seus antigos aliados federalistas, mas também junto ao governo estadual [...] Verificar-se-á uma interconexão político-militar entre blancos e federalistas em 1893 e entre castilhistas e blancos em 1897 e 1904. O fato de os blancos estarem apoiando partidos antagônicos em 1893 e em 1897 não aparecia como uma incongruência naquele contexto, mas sim, como uma necessidade de momento. (1997, p.23-24)

Neste sentido, Reckziegel ainda constata que nos atuais 1.003 quilômetros de fronteiras entre Uruguai e Rio Grande do Sul se formou uma região compartilhada e com traços semelhantes, cuja moldagem ocorreu por meio de uma história recheada de pontos comuns.

2.2 A BUSCA POR EXÍLIO NO VIZINHO

A partir da década de 1960, uma onda de regimes militares se espalhou por toda a América do Sul. Com Brasil e Uruguai não aconteceu de outra maneira. Ambos países estiveram anos sob comando de governos autoritários. Enquanto os generais brasileiros se enraizaram no poder entre 1964 e 1985, os cidadãos uruguaios viveram seus anos de chumbo entre 1973 e 1985. Caetano e Rilla (1991) destacam que a possibilidade de o Uruguai entrar em um regime ditatorial começou a ser esboçada a partir de 1968. Após anos de bonança, as condições econômicas do país pioravam cada vez mais. A nação

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conhecida até a década de 1950 por sua estabilidade política, sua economia sólida e seus índices sociais elevados, denominada como a Suíça da América do Sul, entrava

em

decadência

nesses

aspectos.

Segundo

Villalobos

(2006),

a

fragmentação gerada pela Guerra Fria e a tensão vivida nos países vizinhos também foram determinantes para a intervenção do exército uruguaio. Desde 1890 até 1973, as Forças Armadas não participaram de qualquer movimento destinado a derrubar governos, ainda que em certas ocasiões, tenha havido problemas internos, que culminaram com medidas radicais por parte de governos civis. [...] Em um mundo dividido pela Guerra Fria [...] o Uruguai não teve como se dissociar das influências, preocupações e pressões do conjunto, especialmente de dois gigantescos e influentes vizinhos, Brasil e Argentina, onde prosperavam teses como a das fronteiras ideológicas. (2006, p.15)

Mesmo que o domínio brasileiro sobre a Banda Oriental tivesse sido encerrado há muito tempo, mais precisamente desde o reconhecimento da República Oriental do Uruguai, em 1828, o governo do Brasil adentrou a década de 1970 atento ao que ocorria na nação ao lado. De acordo com Villalobos, a possibilidade de vitória da Frente Ampla nas eleições uruguaias de 1971 ouriçou o exército brasileiro. “Para militares que viviam sob o estigma das fronteiras ideológicas e da teoria do cerco, era impensável acordar tendo um governo de orientação esquerdista como vizinho” (2006, p.99). A Frente Ampla acabou não tendo êxito em sua tentativa de eleição, sendo derrotada pelo Partido Colorado. Entretanto, em 2009, veio à tona uma suposta fraude no pleito, que teria sido promovida com o auxílio do governo brasileiro1. Em um memorando emitido pela Casa Branca, o então presidente norte-americano Richard Nixon revelou ao primeiro-ministro britânico Edward Heath que “os brasileiros ajudaram a arranjar a eleição uruguaia”. Sem dar maiores detalhes sobre a intervenção, o general Emílio Garrastazu Médici disse a Nixon que estava disposto a combater o comunismo no Conesul. Em 27 de junho de 1973, militares fecharam o congresso nacional, em Montevidéu, inaugurando a ditadura uruguaia. Instituído o regime, uma sequência de ações evidenciava as diretrizes do novo governo.

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Brasil ajudou a fraudar eleição uruguaia em 1971, segundo EUA. Disponível em: Acesso em: 14 de setembro de 2011

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Durante 1974 el endurecimiento del régimen no hizo más que consolidarse. Dentro del ejército, los cambios operados a nivel de la jerarquia confirmaron una firme hegemonía de los duros. [...] En 1974 se operó una clara profundización cualitativa y cuantitativa de la represión. Aumentó el número de presos políticos [...] recrudenció la censura de prensa (...) y fueron detenidos y sometidos a la justicia militar relevantes periodistas y hombres de la cultura, acusados de “propalar la apología de la sedición”. (CAETANO e RILLA, 1991, p.29)

Com a perseguição política, o exílio em outra nação se tornou uma válvula de escape para aquelas pessoas vistas como subversivas aos olhos das ditaduras, tanto no Brasil quanto no Uruguai. Desta forma, intensificou-se o deslocamento de uruguaios para destinos variados, incluindo o Brasil. O mesmo aconteceu com os brasileiros, que recorreram ao país vizinho para fugir da perseguição política. A situação política no Brasil não era muito diferente do que acontecia no Uruguai, mas mesmo assim o regime uruguaio apresentava algumas características diferentes em relação aos demais governos golpistas sul-americanos. No país localizado às margens do rio da Prata, o golpe foi um movimento conduzido pelo próprio presidente da República Juan María Bordaberry em parceria com o exército. Em seu mandato entre 1971 e 1974, Bordaberry dirigiu a nação, inicialmente, como presidente constitucional e, a partir de 1973, como ditador. No caso uruguaio, além da ditadura, a delicada situação econômica vivida pelo país acelerou o processo emigratório. González (2006) estima que, entre 1963 e 1985, 380 mil pessoas deixaram o Uruguai. O Rio Grande do Sul, em especial, acolheu muitos uruguaios desde a década de 1960, quando a instabilidade se intensificava do outro lado da fronteira. Conforme González, os uruguaios que desembarcavam em Porto Alegre e outras localidades gaúchas estavam envolvidos direta ou indiretamente com o regime autoritário. Eles buscavam asilo político ou, então, desejavam apenas fugir da tensão dominante naquele momento. A escolha pelo abrigo na capital gaúcha se dava, inicialmente, pelas similaridades entre as partes. Rio Grande do Sul es asimismo el estado brasilero que más similitudes geográficas y socio-económicas posee con el Uruguay, la actividad agropecuaria, especialmente la explotación del ganado, acompañando el proceso de la industria saladeril y luego la frigorífica, así como el contrabando que es también una actividad denunciada a ambos lados de la frontera por los gobiernos, al mismo tiempo que medidas tomadas (como el aumento de los impuestos) de uno o otro lado estimulaba el comercio “ilegal” para donde fuera más ventajoso. [...] Igualmente la región comparte rasgos culturales que son comunes a parte de Argentina y Uruguay [...]

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surgiendo así un tipo humano específico de esta zona, ese “hombre de la pampa” o de la “comarca pampeana” [...] llamado gaúcho, o gaucho, que además de costumbres comunes que trascendieron fronteras, posee una literatura particular que está por encima de las fronteras nacionales y de las barreras lingüísticas. (GONZÁLEZ, 2006, p.105-106)

Da mesma forma, os brasileiros perseguidos procediam ao buscarem acolhimento na nação vizinha. A movimentação de brasileiros rumo ao Uruguai, entretanto, deu-se em menor proporção do que no sentido inverso. As cidades uruguaias se tornaram refúgios principalmente para quem militava politicamente. O gaúcho de São Borja João Goulart, presidente deposto em 1964 pelos militares, exilou-se em Montevidéu. O mesmo caminho seguiu Leonel de Moura Brizola, gaúcho de Carazinho, que se notabilizou como ferrenho opositor ao golpe. Em 1961, quando ainda era governador do Rio Grande do Sul, Brizola comandou a Campanha da Legalidade, um movimento popular iniciado no estado defendendo a posse de João Goulart como presidente mediante a renúncia de Jânio Quadros, que era o chefe do executivo. A ação foi fundamental para retardar a tomada de poder pelos militares. Três anos mais tarde, com o início da ditadura, Brizola partiu para a capital uruguaia. De lá, mobilizou outros refugiados e tentou organizar a luta armada contra o regime autoritário brasileiro. Com o término dos governos ditatoriais de Brasil e Uruguai, ambos em 1985, muitos emigrantes retornaram aos seus países de origem. Mesmo assim, a delicada situação vivida nos dois lados da fronteira auxiliou no fortalecimento das relações entre brasileiros, sobretudo gaúchos, e uruguaios.

2.3 IDENTIDADE GAÚCHA E AS RELAÇÕES COM O PRATA

A proximidade geográfica do Rio Grande do Sul com dos países do rio da Prata, Argentina e Uruguai, corroborou para a criação de uma forte empatia entre as partes. Além disso, o envolvimento mútuo em uma série de momentos históricos, especialmente no que rege as relações entre gaúchos e uruguaios, refletiu na criação da identidade gaúcha. Como relata Oliven (2006), as características do estado encontram maior afinidade com seus vizinhos do que com outras regiões brasileiras. As causas para esse cenário advêm do fato de as relações do estado com o resto do Brasil terem passado por alguns momentos instáveis.

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Apesar de o estado ter uma grande diferenciação interna (do ponto de vista geográfico, étnico, econômico e de sua colonização), ele é frequentemente contraposto como um todo ao resto do país, com o qual manteria uma relação especial, ao ponto de ser às vezes chamado jocosamente por outros brasileiros de “esse país vizinho e irmão do Sul”. [...] Um tema recorrente na relação do Rio Grande do Sul com o Brasil é justamente a tensão entre autonomia e integração. Um marco emblemático dessa relação é a Revolução Farroupilha (1835-1845), movimento que teve origem na insatisfação de estancieiros do Rio Grande do Sul em relação à excessiva centralização política imposta pelo governo central e no sentimento que a província era explorada economicamente pelo resto do Brasil (OLIVEN, 2006, p.62)

À parte dos conflitos de interesses entre o Rio Grande do Sul e o governo central durante o século XIX, Müller (2002) observa que os intercâmbios culturais com argentinos e uruguaios foram favorecidos, prioritariamente, pela posição fronteiriça entre os envolvidos. Com isso, hábitos, como o de tomar chimarrão e comer churrasco, foram cultivados pela população das comunidades de Uruguaiana e Paso de los Libres, na Argentina, e Santana do Livramento e Rivera, no Uruguai. As idas e vindas dos habitantes dessas cidades criaram naquelas localidades um status denominado de “fronteiras-vivas”. Ou seja, especialmente no caso de Livramento e Rivera, a fronteira não representa apenas uma mera barreira de um país para o outro, mas sim um espaço de “ação e interação dos agentes fronteiriços, estimulando dinâmicas específicas e informais” (MÜLLER, 2002, p.221). Para Schlee (2002), essa transcendência do caráter de fronteiras nacionais, ocorrida por causa de uma cultura comum do homem do pampa, assumiu um papel fundamental para a construção da identidade gaúcha. “A construção de nossa identidade está, pois, intimamente relacionada com a possibilidade de integração. Ela nos remete a uma complexa relação entre classes, etnias e nações [...]” (SCHLEE, 2002, p.62). Se o fortalecimento da identidade gaúcha se deu através das relações internacionais, a consolidação da mesma ocorreu por meio das narrativas literárias. “Nessa valorização de gaúcho como tipo humano regional ou inclusive nacional, no interior da Argentina e do Uruguai e na ‘personalidade’ do Rio Grande do Sul, a literatura desempenhou um papel decisivo” (ROCCA, 2002, p.75). O início desse processo, porém, remonta à mudança no significado da palavra gaúcho. Quando surgiu, lembra Guazzeli (2002), em fins do século XVIII, a expressão gaúcho, ou gaucho em espanhol, era utilizada de forma pejorativa para rotular o homem que andava a cavalo pelo pampa sem rumo certo e que, por não ter um

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trabalho estável, era um vagabundo. Somente a partir de meados do século XIX que esse conceito mudaria. Com a consolidação da propriedade pecuária, já com a maior parte dos gaúchos subjugados como mão de obra nas estâncias de criação, a palavra mudou de sentido. Referia-se a partir de então aos peões campeiros, que mantinham hábitos, vestimentas, linguajares e costumes alimentares herdados dos seus antepassados, e que ainda eram, especialmente, homens “de a cavalo”. [...] o gaúcho permitia-se que lhe dessem voz, e prosperou na literatura gauchesca na Argentina, Uruguai e mais tarde no Rio Grande do Sul. Uma imensa gama de intelectuais – todos urbanos, é bom salientar – tratou de resgatar a cultura dos homens do campo e atribuir-lhes qualidades fundadoras dos novos países, como coragem, altaneria, franqueza, amor à liberdade [...] recriando o gaúcho que não existia mais. (GUAZZELI, 2002, p.108)

A identificação do Rio Grande do Sul com os países vizinhos, segundo Oliven (2006), gera um natural afastamento da realidade brasileira, apesar do estado ser uma das unidades federativas do Brasil. A grande dimensão do território brasileiro e a flagrante miscigenação existente no Brasil fizeram com que o gaúcho buscasse referências mais próximas para a formação do seu tipo. Com isso, houve a adesão a costumes destoantes das demais regiões do país e o português falado localmente incorporou elementos estrangeiros. Essas diferenças, cruciais para a criação da imagem gaúcha, são motivos de orgulho para muitos dos nativos do estado. A intensificação do imaginário gaúcho se deu no período precedente à Revolução de 1930, quando Getúlio Vargas se estabeleceu como o primeiro gaúcho presidente da República. Inicialmente, diz Masina (2002), “a figura do gaúcho valoroso, forte, leal e indomável convergiu para o constructo ideológico da era Vargas” (p.94). Contudo, posteriormente, o governo de Vargas passou reprimir manifestações regionalistas em prol do desenvolvimento de uma suposta unidade nacional. A bandeira, o hino sul-rio-grandense e as manifestações tradicionalistas foram abolidos. Todavia, para a autora, o destaque concedido ao âmbito regional pelos nascidos no Rio Grande do Sul não significava um desprezo às origens brasileiras. No caso do Rio Grande do Sul, a “coisa” regional decorreu, principalmente, de um desejo oculto de pertencimento a uma identidade brasileira diversa por sua origem fronteiriça e culturalmente híbrida. A ambivalência do movimento de absorção de imaginários estrangeiros, combinando traços da cultura portuguesa, acentuados pelo contato permanente com os platinos, volta-se para a construção de uma identidade própria que busca, no entanto, integrar-se ao restante do país. (2002, p.95)

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Sob o ponto de vista dos demais brasileiros, o apego às próprias tradições e a valorização das diferenças podem ser vistas como uma manifestação antipatriota, gerando alguma animosidade em relação à interpretação da figura do gaúcho perante os olhos dos cidadãos de outras regiões. Volta e meia alguma celeuma evidencia essa insatisfação. Um dos atritos mais recentes ocorreu devido ao futebol, esporte considerado a paixão nacional. Durante a Copa do Mundo da África do Sul, em 2010, o ex-jogador da seleção brasileira de futebol Sócrates definiu os gaúchos como os “brasileiros mais reacionários” do país. A menção foi feita ao jornal inglês The Guardian em crítica ao então treinador da seleção brasileira Dunga, um gaúcho nascido em Ijuí. Dois aspectos embasaram a declaração de Sócrates: o desgosto com a lista de jogadores convocados por Dunga para representar o país no torneio e o fato do selecionado comandado por ele não apresentar um estilo de jogo vistoso, contradizendo as típicas características brasileiras. Zalla define o episódio da seguinte maneira: [...] foi pouco comentado o deslize lógico da fala de Sócrates: os gaúchos são os brasileiros mais reacionários, o que daria o toque pessoal de Dunga à seleção, deixando-a, assim, sem cara de brasileira. [...] A recepção desse emaranhado discursivo produzido no Rio Grande atualiza, de certa forma, o histórico imaginário de suspeitas do centro, o que se materializa, hoje, em falas como a de Sócrates: os gaúchos são brasileiros, não há dúvidas; mas de um tipo tão peculiar que chega a não ser “bem brasileiro”. (ZALLA, 2010)

Apesar de possuir um jeito peculiar, assim como acontece com outros tipos regionais espalhados por todo o país, o estereótipo gaúcho tem uma particularidade em relação aos demais. Oliven (2006) constata que é através do regional que o os gaúchos chegam ao nacional. Desta forma, existe a aceitação em ser brasileiro, mas, em primeiro lugar, é enfatizado o fato de ser gaúcho.

2.4 FUTEBOL-FORÇA: ESTILO DO JOGO DE GAÚCHOS E URUGUAIOS

Considerado um dos esportes mais populares no mundo, o futebol é impactado por fatores que vão além das quatro linhas. Giulianotti (2002) destaca que a atividade exerce um papel-chave, ao lado de outras instituições culturais, como a educação e os meios de comunicação de massa, na formação e na consolidação de identidades. Tal fenômeno, porém, não se restringe apenas às seleções nacionais.

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Ele também se encaixa na imagem dos clubes, pois o estilo de jogo de uma equipe está diretamente relacionado às características de seu local de origem. No Brasil, uma nação com dimensões continentais, a existência de diferentes realidades regionais resulta na falta de unidade no que se refere à maneira de praticar o jogo. Frequentemente, os brasileiros se deparam com a seguinte pergunta: é melhor ganhar jogando feio ou perder jogando bonito? Esse dilema pode ser creditado à subsistência de diversas escolas futebolísticas em todo o país, conhecidas por valorizarem determinadas características. Desta forma, grande parte dos aspectos utilizados na construção de uma forma de praticar o esporte bretão em solo brasileiro se situa em áreas extracampo. [...] as vastas diferenças econômicas, sociais e geoclimáticas do Brasil significam que a posição do malandro no imaginário nacional é cortada transversalmente por outras tradições regionais. Os times do Rio são verdadeiros pioneiros da estética sul-americana, através de um estilo exibicionista e rítmico, fluindo entre a construção cuidadosa e o ataque repentino. Na imensidão urbana de São Paulo, o futebol é mais industrioso, rotinizado e geometricamente fixado. As equipes de Porto Alegre empregam uma abordagem mais “uruguaia”, jogando sem astros e frequentemente com uma determinação violenta de vencer, não importando os meios. (GIULIANOTTI, 2002, p.181)

As razões para a semelhança de estilo entre as equipes gaúchas, não só as de Porto Alegre, e as uruguaias remetem ao início do século XX, quando o futebol começou a se popularizar ao redor do mundo. Campelo (2005) relata que, nessa época, as primeiras bolas aportavam em solo gaúcho pelo porto de Rio Grande e, principalmente, pela fronteira entre Santana do Livramento e Rivera, no Uruguai. Além disso, era comum a organização de amistosos entre os habitantes das regiões limítrofes do estado com a Argentina e o Uruguai. Os embates entre cidadãos argentinos, gaúchos e uruguaios foram fundamentais para a criação dos primeiros clubes no Rio Grande do Sul. Na região da fronteira, por influência uruguaia e argentina, o futebol começou a despertar o interesse dos brasileiros. Assim, em 1902, surgia o 14 de Julho de Livramento, 2º clube mais antigo do Estado e o 3º mais antigo em atividade no Brasil. O 14 é o 1º rubro-negro do futebol brasileiro e foi um dos fundadores da 1ª liga de futebol do Uruguai, em Rivera. Os seus fundadores costumavam cruzar a fronteira para jogar o chamado “football, pelota pata ou jogo da bola”, como a atividade era mencionada pelo jornal La France, de Rivera, no Uruguai, em 1902. (2005, p.5)

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A troca de experiências com os vizinhos, em especial os uruguaios, também auxiliou na criação da estética que caracteriza o futebol gaúcho até os dias atuais. A priorização da raça em detrimento da técnica, a imposição física e a dedicação dos jogadores em campo, associando a forma de atuar às tradições locais, se tornaram marcas registradas dos times do estado. Neste sentido, ao longo dos anos, as equipes gaúchas construíram uma forma peculiar de praticar o esporte, baseada na forte marcação e na obstinação pela vitória. Esse formato, conhecido como futebolforça, além de se comparar à maneira uruguaia de jogar futebol, contrasta com o chamado futebol-arte propagado no Brasil, onde a habilidade e os dribles são tão ou mais importantes do que o resultado positivo. O Rio Grande do Sul absorveu muito dos trejeitos uruguaios para criar sua própria identidade futebolística não somente devido à proximidade geográfica, mas pelo fato do país vizinho ter sido a primeira grande potência do futebol mundial. Segundo Galeano (2008), as medalhas de ouro conquistadas pela seleção uruguaia nas Olimpíadas de 1924 e 1928 e a vitória da Celeste na primeira Copa do Mundo, em 1930 significaram um “segundo descobrimento da América”. Os êxitos catapultaram o status do Uruguai de um simples país sul-americano para uma nação de destaque no cenário mundial. Em 1950, os uruguaios conquistaram seu segundo título na Copa do Mundo realizada no Brasil. A partir da década de 1920, futebolistas uruguaios começaram a cruzar a fronteira para integrar equipes de Bagé e Porto Alegre, ajudando a desenvolver o futebol gaúcho. Desde então, iniciou-se uma interação sem término. Posteriormente, outras localidades também passaram a recorrer à mão de obra do país ao lado. Desta forma, a maneira gaúcha de encarar o jogo foi se moldando. O processo de divulgação desse modelo para todo o Brasil começou graças à realização dos primeiros campeonatos nacionais, envolvendo clubes de diversos estados, no final dos anos 1950. Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense e Sport Club Internacional, os dois maiores clubes do Rio Grande do Sul, angariaram, ao longo de suas centenárias histórias, diversos ídolos de origem uruguaia. Entre os que marcaram época no tricolor estão os zagueiros Atilio Ancheta e Hugo de León, este último capitão na maior conquista do clube, o Mundial Interclubes de 1983. Ancheta e De León, inclusive, são os únicos estrangeiros a figurarem na calçada da fama do Estádio Olímpico. Já pelo lado colorado, o meio-campista Rubén Paz e o zagueiro Gonzalo Sorondo, campeão

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da Libertadores em 2010, são alguns dos nomes de destaque oriundos da nação adjacente. Até mesmo o chileno Elias Figueroa, considerado por muitos o melhor zagueiro da história do Inter, pode ser listado como expoente vindo do futebol uruguaio. Figueroa, antes de se transferir para Porto Alegre, vestia a camisa do Peñarol, de Montevidéu. De certo modo, os torcedores de Grêmio e Internacional exaltam os vínculos estabelecidos com os estrangeiros. Essa adoração pode ser comprovada através do comportamento de colorados e gremistas nas arquibancadas dos estádios Beira-Rio e Olímpico, respectivamente. Nos dias de jogos, invariavelmente, entre as faixas expostas se encontram bandeiras da Argentina e do Uruguai. Ademais, sempre que os clubes gaúchos duelam contra equipes de São Paulo e do Rio de Janeiro paira uma sensação de enfrentamento ao poder central. Isso pode ser explicado pelo o que Damo (1998) chama de vulnerabilidade na identidade nacional gerada pelo futebol. No caso do Rio Grande do Sul, essa situação ocorre pela evocação de uma lista de fatores históricos. Em termos genéricos, o estilo do futebol gaúcho resulta da apropriação [...] de um discurso preestabelecido de culto às tradições. Tais discursos, que colocam o Rio Grande do Sul numa posição diferenciada em relação às demais unidades federativas e, até mesmo, em contraposição ao Brasil, resgatam certos aspectos constitutivos da identidade social dos riograndenses do sul, “esquecendo-se” de outros tantos a partir dos quais a suposta disjunção desapareceria. [...] a posição geográfica, a partir da qual se estabeleceriam intercâmbios múltiplos com os países do Prata (portanto, diferentemente da população dos demais estados brasileiros, os gaúchos teriam forte influência hispânica); a tradição política de enfrentamento em relação ao poder central; a presença maciça dos imigrantes europeus e, como corolário, as noções de “civilidade” e “progresso” (que contrastam com o estereótipo rude e antiquado do gaúcho); a convivência permanente com os levantes armados; e, finalmente, a própria “essência” do gaúcho, tida como libertina e altiva, tal qual a dos remotos tropeiros forjados na lida com o gado xucro. (1998, p.95)

A imprensa do centro do país, por sua vez, também alimenta o imaginário criado sobre o futebol gaúcho. A crônica escrita pelo jornalista Armando Nogueira no jornal O Estado de São Paulo no dia 22 de maio de 1997 é um exemplo que fundamenta essa tese. Na ocasião, o Grêmio havia conquistado a Copa do Brasil sobre o Flamengo em pleno Maracanã lotado. Em seu texto, Nogueira compara a partida ao Maracanazo, a famosa derrota do Brasil para o Uruguai por 2 a 1 na final da Copa do Mundo de 1950, o único Mundial, até hoje, realizado em solo brasileiro.

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À moda antiga: tiremos o chapéu pro Grêmio. Silenciar 100 mil pessoas no Maracanã, não é para qualquer um. [...] Nunca me lembrei tanto da pequena perfídia, nascida não sei onde, segundo a qual o Grêmio é o mais uruguaio dos times brasileiros. A intenção é sugerir que o estilo do Grêmio nasce do coração, só. Como é da tradição uruguaia. Muito suor e pouco talento. [...] Acontece que, ao ver o Grêmio fazer murchar a multidão rubronegra, revi a cena daquela tarde sinistra de 1950, em que a seleção uruguaia derrotou o Brasil e deixou a multidão do Maracanã prostrada. (O ESTADO DE SÃO PAULO, 22/05/1997)

Devido ao processo de globalização e de mercantilização vivenciado pelo futebol, constatado por Giulianotti (2002), cada vez menos os jogadores criam laços com as equipes pelas quais atuam. Entretanto, atletas de diferentes regiões de um mesmo país ou de outras nações podem se agrupar e se mobilizar em torno de uma causa comum, mesmo tendo origens e hábitos opostos. Schwartz (2010) utiliza a seleção espanhola campeã da Copa do Mundo de 2010 para exemplificar essa situação. Nela, andaluzes, bascos e catalães deixaram seus ideais e origens de lado, ao menos por um instante, para construir uma unidade em torno da Espanha e vencer a competição. Situação semelhante ocorre com o futebol gaúcho. Jogadores vindos de outras regiões do Brasil e do exterior acabam se arraigando aos padrões locais, mantendo o estilo de jogo intacto à sua essência.

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3 JORNALISMO ESPORTIVO, SELEÇÃO DE PAUTAS E LINHAS EDITORIAIS

Após contextualizar as relações entre Rio Grande do Sul e Uruguai, esta monografia se volta mais especificamente para a área jornalística. Desta forma, o presente capítulo trata de questões relativas ao jornalismo esportivo, à seleção e execução de pautas e às linhas editoriais de Correio do Povo e Zero Hora, os dois jornais alvos de análise deste trabalho. Borelli (2002), Coelho (2004), Da Costa (2008), Traquina (2005), Pena (2005), Rüdiger (1993) e Felippi (2006 e 2007) sustentam os argumentos ao longo desta parte.

3.1 JORNALISMO ESPORTIVO

O esporte, em especial o futebol, mobiliza inúmeras pessoas ao redor do mundo. Por possuir um aspecto aglutinador, a atividade desempenha um papel de catalisador social. A cada partida, multidões voltam suas atenções e emoções exclusivamente para o que ocorre no campo de jogo. Com a globalização, esses aspectos se fortaleceram. De acordo com Helal (1997): [...] dentre as manifestações da cultura moderna o esporte é não somente a que aglutina o maior número de pessoas como é também aquela que melhor expressa o significado mais plural de globalização, significando aqui uma comunicação universal que respeita as diferenças. Pois o esporte integra sem trivializar ou homogeneizar, sem destruir as características básicas da cultura local, temor constante dos críticos da cultura de massa. (1997, p.9)

Notoriamente,

as

modalidades

que

cativam

grandes

audiências

se

caracterizam por terem desdobramentos em variados âmbitos. Neste sentido, o jornalismo assume o papel de contar as histórias inerentes ao ambiente esportivo, levando-as ao torcedor. Atualmente, nas publicações brasileiras, o espaço destinado ao esporte é amplo, contrastando com o cenário da primeira metade do século XX. Até parte da década de 1960, a editoria era relegada a um segundo plano. Durante um longo período, alguns jornais optavam por sequer mencionar os acontecimentos desportivos. Até o futebol, que começou a se popularizar a partir de meados do século XX, demorou a chamar a atenção dos diários. No Brasil, hoje definido como o país do futebol, esse esporte demorou a emplacar como assunto jornalístico. Coelho (2004)

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relata que só a partir dos anos 1960 os principais jornais do país passaram a desenvolver suplementos esportivos ou, então, a cobrirem de forma mais intensa os acontecimentos nas quadras e, principalmente, nos estádios. Atualmente, o futebol praticamente monopoliza as páginas esportivas dos impressos. Gastar papel com gols, cestas, cortadas e bandeiradas nunca foi prioridade. [...] De todo jeito, a partir da segunda metade dos anos 60, com cadernos esportivos mais presentes e de maior volume, o Brasil entrou na lista dos países com imprensa esportiva de larga extensão. Não quer dizer de alta ou baixa qualidade. A primeira depende muitas vezes da quantidade de profissionais indicados para trabalhar na área. (COELHO, 2004, p.10)

O fato de a cultura brasileira estar extremamente ligada ao esporte, em especial ao futebol, acaba se refletindo na atividade jornalística. Por isso a área tem tanta abrangência nos veículos midiáticos nos dias atuais. Segundo Lage (2001), a notícia esportiva envolve a disputa, as declarações dos personagens envolvidos nela e os prognósticos realizados pelos cronistas. O autor diz ainda que esta editoria admite um tipo de cobertura que não se restringe a um caráter simplesmente noticioso. Quanto à realização de pautas, a editoria de esportes, enfatiza Borelli (2002), apresenta algumas particularidades em relação às demais, mesmo inserida dentro de um contexto maior, o jornalismo. Assim como o trabalho jornalístico como um todo tem suas próprias regras, com a cobertura esportiva não é diferente. Neste sentido, a cobertura esportiva é realizada com ferramentas gerais, do próprio jornalismo, e com ferramentas específicas do esporte. Isto é, as regras gerais (entrevistas com fontes, formas de apreensão, construção do lead, apresentação do título, texto claro e conciso, composição da página e outros valores exigidos pelos manuais de redação) valem para todas as editorias. Porém, o jornalismo acaba incorporando fatores característicos do esporte, como a descrição da ficha técnica em jogos, o uso de expressões características do campo competitivo (linguagem agonizante, de combate, mais despojada, em função do campo ser, sobretudo, de entretenimento, etc). (2002, p.10)

A cobertura esportiva está alicerçada, basicamente, em três pilares, conforme Borelli. O primeiro é a ocorrência do fato em si, ou seja, aquilo que ocorre dentro de campo. O segundo é a pré-agenda, que está representada nas ocorrências antes do início da partida. O terceiro é a pós-agenda, que envolve os desdobramentos daquilo que aconteceu no campo de jogo. Ademais, o jornal impresso ainda acrescenta outros elementos a essa fórmula para se manter competitivo em relação à internet, rádio e televisão.

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[...] nos jornais, em especial do final de semana e de segunda-feira, o esporte ganha um elevado status, com coberturas extensas e variadas, que fazem uso de diversos recursos, promovendo uma grande interdiscursividade, reunindo inúmeras vozes de personagens do campo esportivo e de outros que mantém relação com ele. Pode-se dizer que a mídia impressa cobre o esporte a partir de uma polifonia, empreendida para didatizar, explicar, avaliar, enquadrar, tematizar o esporte com base em variadas falas (dos jogadores, dos técnicos, dos dirigentes, dos patrocinadores, dos torcedores, dos médicos e, por fim, dos especialistas). (BORELLI, 2002, p.14-15)

A autora ainda observa que eventos de grande porte, como as Olimpíadas e a Copa do Mundo de futebol, podem modificar temporariamente a estrutura editorial de um veículo. Isso ocorre porque eles são competições de grande relevância, gerando situações diferenciadas e ocasionais. O desempenho de uma seleção nacional, por exemplo, reverbera com maior intensidade em oportunidades como estas. Além disso, outro elemento é aproveitado como gancho jornalístico: o sentimento de nacionalismo por parte dos torcedores. Cenário semelhante se repete apenas em circunstâncias como despedidas de ídolos e finais de campeonatos de clubes nacionais e internacionais. No caso do futebol, os 90 minutos de um confronto são decisivos para a narrativa jornalística, segundo Da Costa (2008). Em um primeiro momento, a sentença pode soar óbvia. Entretanto, é importante pontuar que a partir do resultado final de um jogo é possível identificar heróis ou vilões, papéis corriqueiramente atribuídos aos atletas de qualquer modalidade. O placar final de uma partida entre duas equipes representa “um elemento importante para a compreensão que teremos da mesma, consequentemente, também é o fator decisivo para os significados que serão atribuídos a certos atores do jogo, principalmente pela imprensa esportiva” (DA COSTA, 2008, p.2). De acordo com a autora, a rotulação de desportistas no Brasil passou a ganhar força a partir de um dos episódios mais emblemáticos do esporte nacional: a final do Mundial de 1950, na qual a seleção brasileira perdeu para o Uruguai por 2 a 1. A derrota inesperada acabou sendo popularmente conhecida como “Maracanazo”, em referência ao Maracanã, estádio palco do embate. Naquela partida, o Brasil era franco favorito para conquistar o título, pois jogava em casa e, teoricamente, tinha uma equipe melhor do que a uruguaia. A seleção canarinho saiu na frente do placar, sofreu o empate e tomou a virada em um chute cruzado do uruguaio Alcides Ghiggia, que passou rente ao

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goleiro Barbosa. A partir daí, os jogadores brasileiros começaram a ser taxados de covardes, enquanto os uruguaios, especialmente o capitão Obdulio Varela, eram vistos como corajosos. A imprensa brasileira foi determinante para a consolidação desses atributos. Nos dias que antecedem ao jogo decisivo, nas edições dos jornais, havia raras menções ao time uruguaio e a seu capitão que podia ser um ídolo para os uruguaios, mas não nosso. A cobertura da imprensa nacional, nos dias que precedem o confronto, possui um tom celebratório [...] “Tudo preparado para a vitória!”, assim dizia a manchete do Jornal dos Sports do dia de 15/07/1950, deixando claro que o Uruguai era apenas um detalhe, um simples coadjuvante em nossa festa. [...] a vilania de alguns jogadores brasileiros e o heroísmo dos uruguaios, principalmente Obdulio, são, em grande parte, resultado de interpretações mediadas pelo resultado do jogo. E nesse aspecto heróis e vilões se igualam, pois ambos são formados em consonância com um repertório de representações e projeções. Sendo que sobre os heróis depositamos nossos sonhos e sobre os vilões, nossos pesadelos. (DA COSTA, 2008, p.4-5)

Ocorrida diante de um estádio recheado por 220 mil pessoas, a derrota fez com que se iniciasse a procura por vilões na equipe do Brasil. Por causa do resultado, o goleiro Barbosa acabou sendo um dos atletas mais crucificados pelo revés. Em 1993, sete anos antes de falecer, Barbosa afirmou que “no Brasil, a pena maior por um crime é de 30 anos. Há 43 pago por um crime que não cometi”2. O papel desempenhado pela imprensa esportiva, atribuindo heroísmo ou vilania a determinados personagens do campo de jogo, salienta Da Costa, faz com que o discurso da editoria se torne repetitivo e, por vezes, incoerente. Desta forma, a dependência pelo resultado final pode representar uma situação nociva para a cobertura jornalística. O embasamento no imediatismo é um dos aspectos que fazem com que o jornalista esportivo seja visto, por vezes, com descaso em relação aos colegas de outras editorias. De certa forma, o fenômeno de depreciação se estende também aos leitores, ouvintes e telespectadores. Em um país no qual o fanatismo pelo futebol é marca-registrada, qualquer pessoa se sente apta a opinar sobre a escalação do time, o técnico demitido ou o jogador contratado. Assim, o consumidor da notícia pode apresentar indiferença ao papel exercido pelo profissional da área esportiva.

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Em março de 2007, o jornalista Lédio Carmona relembrou esta frase em seu blog. Disponível em: Acesso em: 26 de setembro de 2011

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Essa visão estereotipada põe o jornalismo praticado na editoria de esportes em xeque constantemente. Por isso, Coelho conclui que o desafio do jornalista esportivo é encontrar a chamada pauta criativa, pois “a única maneira de mostrar que o esporte é viável é mostrar que o jornalismo esportivo não é feito apenas por esporte” (COELHO, 2004, p.115). Conforme o autor, este fator é crucial para que o profissional da área não seja visto como um mero palpiteiro.

2.2 SELEÇÃO E EXECUÇÃO DE PAUTAS

De um modo geral, o jornalismo possui algumas especificidades que influenciam diretamente o desenvolvimento das pautas. Em qualquer editoria, incluindo o setor de esportes, a definição da importância e da forma de abordagem dada a um acontecimento ocorre por uma série de fatores. As notícias são da forma que são, conforme Wolf (2005), porque obedecem a critérios pré-estabelecidos, intitulados como valores-notícia. Quadro 1 – Categorias dos valores-notícia

Substantivos

- Importância dos envolvidos - Quantidade de pessoas envolvidas - Interesse nacional - Interesse humano - Feitos excepcionais

Relativos ao produto - Brevidade - Atualidade - Novidade - Organização interna da empresa - Qualidade - Equilíbrio

Valores-notícia Relativos ao Relativos ao meio de público informação - Acessibilidade - Identificação de à fonte/local personagens - Formatação - Serviço e/ou prévia/manuais Interesse público - Política - Protetividade editorial

Relativos à concorrência - Exclusividade ou furo - Geração de expectativas - Modelos referenciais

Os valores-notícia são determinantes para os veículos no processo de definição daquilo que é ou não pauta. Wolf os resume em cinco categorias. No rol de substantivos, leva-se em consideração o grau de importância dos protagonistas do acontecimento e o nível de interesse do público em relação àquele agente. Os itens referentes ao produto recorrem aos critérios relativos à objetividade, como brevidade e atualidade. Já as categorias ligadas ao meio de informação atentam para a localização das fontes e a linha editorial do veículo. Elementos que servem como serviço ao leitor, ouvinte ou espectador, entre eles a previsão do tempo e

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informações sobre o trânsito nas ruas de determinada cidade, encaixam-se no segmento relativo ao público. Por fim, há a categoria relativa à concorrência, que considera a exclusividade, o furo. Sob a ótica deste segmento, os jornalistas acompanham as publicações concorrentes para visualizar potenciais pautas que os outros colegas não fizeram. Segundo Pena (2005), os valores-notícia servem para guiar a atividade, constituindo-se em uma referência para agilizar o processo de apuração dos fatos. O tempo é o eixo central do processo. O jornalista está sempre submetido à pressão do deadline, do fechamento da matéria. Os fatos podem surgir em qualquer lugar, a qualquer hora. Entretanto, por mais paradoxal que pareça, é preciso colocar ordem a imprevisibilidade. É nesse momento que os critérios de noticiabilidade, usados como um conjunto de instrumentos e operações que possibilitam ao jornalista escolher os fatos que vão se transformar em notícias, evidenciam-se nos valores-notícia. (2005, p.73)

Pena ainda destaca que essa situação também ocorre porque a rotina diária das redações, em qualquer parte do mundo, é marcada pela chegada de um elevado número de fatos. No entanto, apenas algumas das informações repassadas inicialmente viram notícia. “O fato é que os jornalistas se valem de uma cultura própria para decidir o que é ou não é notícia. Ou seja, têm critérios próprios, que consideram óbvios, quase instintivos” (PENA, 2005, p.71). Os jornalistas veem os acontecimentos como estórias, conforme pensa Traquina (2005). Por mais que o jornalismo seja uma atividade baseada na realidade, distinguindo-se da ficção, as notícias podem ser construídas como narrativas. Neste sentido, o autor observa que os fatos são oriundos de uma construção social, resultantes das interações entre diversos agentes sociais. Esse cenário se divide em três níveis. Em um nível, os jornalistas interagem com diversas fontes de informação [...] Muitos, se não todos, agem intencionalmente com o intuito de mobilizar as notícias como parte da sua estratégia comunicacional, criando mesmo acontecimentos. [...] Em um segundo nível, a interação tem lugar entre jornalistas como membros de uma comunidade que partilha uma identidade profissional, valores e cultura comuns. [...] Num terceiro nível, na sua definição das notícias, os jornalistas também interagem silenciosamente com a sociedade, por via dos limites com que os valores sociais marcam as fronteiras entre normal e anormal, legítimo e ilegítimo, aceitável e desviante. As notícias têm uma estrutura profunda de valores que os jornalistas partilham, como membros da sociedade, com a sociedade. (2005, p.28-29)

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O público consumidor de informação, segundo Lage (2001), encara o repórter como o sujeito responsável por lhe mostrar determinada realidade que ele não conseguiria conhecer por si próprio. O repórter está onde o leitor, ouvinte ou espectador não pode estar. Tem uma delegação ou representação tácita que o autoriza a ser os ouvidos e os olhos remotos do público, selecionar e lhe transmitir o que possa ser interessante. (2001, p.23)

Escolhido o fato que se tornará notícia, começa uma segunda etapa: a execução da matéria. Lage acredita que, atualmente, as notícias se baseiam não em uma sequência temporal, mas na valorização do aspecto mais relevante de um evento. Isso fica evidenciado no lead, uma fórmula que se consolidou ao longo do tempo. Localizado no primeiro parágrafo, o lead representa uma forma de pinçar os principais elementos do acontecimento. A intenção é narrar o essencial no princípio do texto para motivar o receptor a ler a reportagem. Para respaldar uma reportagem, os jornalistas recorrem a certas fórmulas, conforme constata Traquina (2005). Uma delas é o lead, responsável hierarquizar a informação. A utilização de provas auxiliares, como documentos, e o uso das aspas, empregadas quando os entrevistados expressam seus pontos de vista, constituemse em outros métodos. Além disso, o autor exemplifica outro meio utilizado na tentativa de sustentar uma informação e que, por vezes, pode proporcionar algumas distorções. “Uma fonte (Fonte A) afirma X. O jornalista não consegue confirmar esta afirmação. Muitas vezes, o jornalista só pode determinar que fonte A disse X. Os jornalistas veem a afirmação A disse X como um fato, mesmo que X seja falso” (TRAQUINA, 2005, p.139). A princípio, essas regras jornalísticas são utilizadas com a intenção de atingir a objetividade. Traquina, no entanto, constata que este conceito, em alguns casos, é alvo de uma interpretação errada, sendo reduzido a uma mera dicotomia entre objetividade e subjetividade. O autor lembra que a valorização da objetividade nasceu nos primórdios do século XX, nos Estados Unidos, como fruto de um mundo nos quais os acontecimentos não mereciam muita confiança. Isso ocorreu por dois motivos: a disseminação da propaganda durante a primeira guerra mundial, conflito que perdurou entre 1914 e 1918, e o surgimento da profissão de relações públicas.

35

Durante a primeira grande guerra foi feita uma intensa articulação propagandista para que a opinião pública se convencesse da necessidade dos Estados Unidos participarem do confronto ao lado dos Aliados. Na ocasião, diversos jornalistas foram contratados para trabalhar no Comitê de Informação Pública norteamericano. O órgão se responsabilizava por organizar discursos em cinemas e em locais públicos e distribuía materiais favoráveis à guerra. A criação do profissional de relações públicas, consumada nas primeiras décadas do século XX, também influiu no jornalismo. Com esse consultor, as notícias

pareciam

perder

o

cunho

de

reportagem

dos

acontecimentos,

transformando-se em uma espécie de reprodução de informações benéficas aos interesses particulares das pessoas e das companhias. Desta forma, Traquina resume que: Já nos anos 1930, o valor da objetividade, desconhecido no jornalismo antes da Primeira Guerra, parece ter entrado na linguagem vulgar dos membros da profissão. Mas, se nos anos 30 a objetividade era no jornalismo um valor profissional articulado, era um valor que se tornou um ideal precisamente quando a impossibilidade de vencer a subjetividade na apresentação das notícias era aceita, e precisamente porque a subjetividade tinha tornado a ser vista como inevitável. (...) Com a ideologia da objetividade, os jornalistas substituíram uma fé simples nos fatos por uma fidelidade às regras e aos procedimentos criados para um mundo no qual até os fatos eram postos em causa. (2005, p.138)

Assim, a utilização de procedimentos padrões na confecção das pautas se consolidou como uma tentativa de blindar as influências de outros segmentos na atividade jornalística.

2.3 AS LINHAS EDITORIAS DO CORREIO DO POVO E DA ZERO HORA

As características das linhas editoriais do Correio do Povo (CP) e da Zero Hora (ZH), jornais alvos da análise desta monografia, estão diretamente relacionadas à história de ambas as publicações. Fundado por Francisco Antonio Vieira Caldas Júnior no dia 1 de outubro de 1895, o Correio do Povo praticamente inaugurou uma nova fase no jornalismo gaúcho. Segundo Rüdiger (1993), a criação do periódico coincidiu com o declínio do jornalismo político-partidário no Rio Grande do Sul e a transição para o conceito de jornalismo informativo. Esse cenário se consolidaria em definitivo com o início do

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Estado Novo no Brasil, em 1937. Nesta época, os jornais de cunho ideológico perderam o fôlego que ainda lhe restavam. Ao mesmo tempo, a indústria cultural passava a ganhar força a partir dos monopólios e grandes conglomerados comunicacionais. O jornalismo rio-grandense estava em plena transição para uma nova fase de estruturação, na qual a política partidária não ditaria mais as cartas, vencida pela racionalidade mercantil, nem haveria mais espaço privilegiado para o exercício literário, substituído progressivamente pela publicidade noticiosa, consolidando transformações cujas raízes se confundem com a história do Correio do Povo. (RÜDIGER, 1993, p.76)

A reportagem “Origem e trajetória do Correio do Povo se entrelaçam com a história do Rio Grande”, publicada no Correio do Povo no dia 2 de outubro de 2005, lembra pedaços significativos da história do periódico. Segundo o texto, com a morte prematura de Caldas Junior, em 1913, o diário viveu um período de instabilidade. Essa situação perdurou até 1935, quando Breno Alcaraz Caldas, filho do idealizador, assumiu a direção do CP. Ele permaneceu no cargo por mais de 50 anos. A partir da metade da década de 1970, a Companhia Jornalística Caldas Júnior vivenciou uma grave crise financeira. A empresa também englobava, naquele momento, veículos como a rádio Guaíba, a TV2 Guaíba e os jornais Folha da Tarde e Folha da Manhã. Com a situação delicada, os jornais foram fechados um por um. Em junho de 1984, o Correio também deixou de circular. O retorno ocorreu somente em agosto de 1986, cerca de um ano após o empresário e economista Renato Barros Ribeiro adquirir e saldar as dívidas da empresa. Em 1987, o CP mudou de formato, passando de standard para tablóide. Em 2007, o Correio do Povo, a Rádio Guaíba e a TV2 Guaíba foram comprados pelo Grupo Record junto à família Barros Ribeiro. Ao longo de sua história, o CP teve uma série de concorrentes, mas, com o passar do tempo, a Zero Hora se configurou em seu principal rival. Criada em 4 de maio de 1964, a publicação sucedeu a Última Hora, folha desenvolvida pelo jornalista Samuel Wainer. Schirmer (2002) recorda que Maurício Sirotsky e Jayme Sirotsky, dois dos fundadores da Rede Brasil Sul (RBS), detinham 50% das ações da ZH desde 1967. Todavia, três anos depois, o jornal foi comprado integralmente pela dupla e, com isso, passou a integrar a RBS.

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Rüdiger (1993) destaca que, para quebrar a hegemonia do Correio do Povo e da Companhia Jornalística Caldas Júnior, a RBS investiu no aperfeiçoamento da gestão do jornal, apostando em novos métodos empresariais e tecnológicos. De acordo com o autor, a partir de 1969, Zero Hora passou a ser o primeiro jornal diário da região Sul do Brasil a ser impresso em off set. Isso ocorreu devido à construção de um novo parque gráfico, que ajudou a aumentar a competitividade da publicação perante aos concorrentes. Mesmo que tenham passado por alterações no decorrer das décadas, variando desde a parte gráfica até a administração, Correio do Povo e Zero Hora procuraram manter, ao menos em parte, os seus princípios jornalísticos iniciais. No editorial número um do CP, Caldas Júnior afirmava que nascia um jornal gaúcho apartidário e independente. O empresário também enfatizava que nem o branco dos chimangos e nem o vermelho dos maragatos seria privilegiado na publicação. Em uma tentativa de confirmar a isenção, as páginas do jornal eram cor de rosa. Essa situação fez com que o impresso fosse conhecido como “o róseo” por um longo tempo. Assim que assumiu o controle do CP e dos demais veículos da Companhia Jornalística Caldas Júnior, Renato Barros Ribeiro ratificou os ideais do fundador em editorial. O periódico também enfatizava que não esqueceria seus compromissos com o Rio Grande, dando destaque, em sua retomada, a um assunto local: a Exposição

Internacional

de

Animais,

Máquinas,

Implementos

e

Produtos

Agropecuários (Expointer). Nos anos seguintes, a relação com eventos típicos gaúchos, como a feira agropecuária realizada em Esteio anualmente e a Semana Farroupilha, seria reforçada3. Ao ser comprado pelo Grupo Record, o jornal sofreu reformulações gráficas e, inclusive, passou por uma pequena mudança de perfil, adotando o slogan: “O jornal que vai direto ao ponto”. Assim, o CP passou a fazer notícias mais curtas, versando com um modelo mais popular de jornalismo. Atualmente, as matérias têm fotos maiores, títulos em letras reforçadas em negrito e textos que geralmente não ocupam mais de uma página. Ademais, foram adicionados novos suplementos semanais, como o Correio Rural e o Caderno de Esportes.

3

Origem e trajetória do Correio do Povo se entrelaçam com a história do Rio Grande. Disponível em: Acesso em: 11 de outubro de 2011

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Em Zero Hora, o lado gaúcho dos acontecimentos passou a ser destacado desde sua origem, tornando-se ainda mais forte com a entrada do diário no rol de produtos do Grupo RBS em 1970. Schirmer (2002) lembra que, ao adquirir ZH, Maurício Sirotsky pretendia mudar o nome da publicação para O Estado do Rio Grande, o que acabou não acontecendo. Na oportunidade, Sirotsky havia adquirido a marca, anteriormente utilizada para designar o órgão do extinto Partido Libertador. [...] acabou mantido o nome Zero Hora com uma providência: tirar o azul do logotipo e o sangue das manchetes da capa, rompendo os vínculos com as heranças sensacionalistas do passado. As mudanças começaram naqueles últimos dias de abril de 1970, sem pressa. Só na edição de 19 de maio é que vai aparecer no jornal o expediente da nova direção, encimando o editorial “Reafirmação”, no qual é declarado que “Zero Hora ingressa em seu sétimo ano de existência, com alterações em seus quadros dirigentes, mas reafirmando os propósitos que o nortearam, definidos no editorial de sua edição nº1, a 4 de maio de 1964, buscando ser um jornal autenticamente gaúcho, democrático, sem vínculos ou compromissos políticos, com um único objetivo: servir ao povo, defender seus direitos e reivindicações, dentro do respeito às leis. (2002, p.73-74)

Felippi (2007) constata que Zero Hora foi um dos primeiros jornais brasileiros a se adaptar ao modelo pós-fordista de produção, adequando-se ao capitalismo global como forma de sobreviver no mercado. A adoção desse modelo se deu com o intuito de assumir a liderança em circulação frente ao seu principal concorrente, o Correio do Povo. Por isso, foram realizadas modificações que envolveram a gestão, a parte gráfica e a linha editorial. Durante o final da década de 1980 e o início da década de 1990, ZH procurou se tornar um jornal reconhecido no centro do país. Para isso, o jornalista Augusto Nunes, com passagens por O Estado de São Paulo e Jornal do Brasil, foi contratado para dirigir a redação. Nunes saiu do posto em 1993 e, a partir de então, o diário começou a moldar o perfil editorial pelo qual se notabiliza nos dias atuais, voltandose ao local em detrimento do nacional. Neste sentido, a ideia de jornal autenticamente gaúcho, proclamada em décadas passadas, acabou se tornando a marca registrada do impresso. “Constata-se a incorporação de elementos de uma cultura regional no discurso de Zero Hora, o que acaba por caracterizar o jornalismo feito pelo veículo e denunciar uma possível estratégia comercial do jornal para se manter no mercado” (FELIPPI, 2006, p.21). Além das questões comerciais, a autora atenta outra situação relevante:

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A cultura jornalística deixa traços no produto final jornal, o que se efetiva em boa medida através dos valores-notícia. No caso de ZH, algumas de suas particularidades vêm da sua linha editorial, com orientações e critérios de noticiabilidade próprios, especialmente um, denominado “localismo”. (FELIPPI, 2006, p.90)

Desta forma, completa Felippi (2007), Zero Hora filtra, por meio de seus próprios valores-notícia, os assuntos a serem noticiados. A finalidade é abranger os interesses de seu público, os nascidos ou habitantes do estado do Rio Grande do Sul. Assim, os receptores gaúchos, ao lerem os acontecimentos de ZH ocorridos no estado ou que possuam algum tipo de relação com ele, se identificarão ou, pelo menos, enxergarão seus próximos. A adoção desta linha editorial parte da premissa de aspectos tradicionais no jornalismo como proximidade e interesse, dando-os maior proporção. [...] podemos entender que se enquadram no critério do “localismo” tanto os acontecimentos que têm como cenário a região de cobertura do jornal, o Rio Grande do Sul, como os que estão relacionados ao estado, mas não necessariamente ocorrem dentro de seu território físico e os que envolvem pessoas nascidas (gaúchos) ou que de alguma forma são consideradas do Rio Grande do Sul. (2006, p.90-91)

A valorização do estado no jornalismo praticado por Zero Hora, acredita a autora, é uma maneira de afinar o discurso da publicação com a construção identitária hegemônica, para a qual “o Rio Grande do Sul é entendido como um lugar especial, sem igual, entre outros adjetivos de marcação da diferença com outros aspectos geográficos, sociais e culturais” (FELIPPI, 2006, p.115). Além disso, o acréscimo do “personagem” gaúcho na localidade onde ocorrem as notícias se mostra uma tática para aumentar o interesse do público-alvo. O valor-notícia “localismo”, em ZH, traz embutida outra tendência do jornalismo contemporâneo, que é a participação da audiência, por meio de formas de interatividade ou como personagem das notícias. Potencialmente, todo leitor pode ser notícia, quando for personagem de um acontecimento que se enquadra nos critérios de noticiabilidade. (2006, p.92)

A estratégia utilizada por Zero Hora para atrair leitores e se consolidar como o principal jornal gaúcho em número de exemplares vendidos tem surtido efeito. Conforme demonstram as estatísticas da Associação Nacional de Jornais (ANJ),

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desde 2004 Zero Hora se mantém, ininterruptamente, na frente do Correio do Povo neste quesito. Na amostra mais recente da ANJ, realizada em 2010, o impresso do Grupo RBS comercializou, em média, 184.663 exemplares por dia, contra 157.409 do periódico pertencente ao Grupo Record.

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4 A CELESTE NOS JORNAIS CORREIO DO POVO E ZERO HORA

Finalizadas as abordagens referentes aos vínculos entre Rio Grande do Sul e Uruguai e às questões inerentes ao campo do jornalismo, chega-se ao momento da análise comparativa da cobertura feita pelos jornais Correio do Povo e Zero Hora sobre a participação da seleção uruguaia de futebol na Copa do Mundo 2010. O evento foi realizado entre 11 de junho e 11 de julho de 2010, na África do Sul. Ao todo, a equipe uruguaia, priorizada por este trabalho, jogou sete partidas durante este período. Desta forma, serão analisados apenas os conteúdos ligados ao Uruguai publicados no Correio do Povo (CP) e no suplemento Jornal da Copa, de Zero Hora (ZH), nos períodos pré e pós-jogos. Ou seja, se levará em consideração as edições do dia de cada partida e do posterior. Apenas no jogo entre Uruguai e Holanda, na semifinal da Copa, a análise se estenderá por três dias. Na partida entre Uruguai e Alemanha, válida como disputa pelo terceiro lugar, serão analisadas as edições de sábado 10 de julho e segunda-feira 12 de julho. Como este confronto ocorreu na tarde do dia 10, CP e ZH não abordaram o resultado no dia seguinte por causa de seus horários de fechamento. De acordo com Bardin (2009), a análise de conteúdo é um instrumento metodológico aplicável a diversos tipos de discursos. Neste sentido, a autora considera que esta técnica se baseia na dedução, elemento resultante da interpretação dos conteúdos analisados. Para Bardin, a partir de uma primeira leitura das amostras é possível formular hipóteses. A autora recomenda a adoção de categorias para proceder a análise. Desta forma, duas categorias foram escolhidas para ajudar no exame dos jornais, uma procura dar conta da estrutura da notícia (observa como essa é jornalisticamente construída) e outra da semântica da notícia (significados da informação). Zero Hora realizou toda a cobertura do Mundial no Jornal da Copa, caderno diário criado exclusivamente para a ocasião. O Correio do Povo noticiou os acontecimentos em sua editoria de esportes, situada nas últimas páginas do impresso. O CP também utilizou seu caderno de esportes, editado sempre às segundas-feiras, para repercutir a competição. O suplemento do Correio, no entanto, já existia antes da realização do torneio e, mesmo durante a Copa, também repercutia outros assuntos esportivos.

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A metodologia comparativa e bibliográfica utilizada para este estudo alia-se à técnica de entrevista despadronizada para a obtenção dos resultados. O objetivo é analisar a linguagem jornalística das duas publicações, comparando os conteúdos referentes às matérias jornalísticas, títulos, manchetes, legendas e fotos. Com exceção da edição de 22 de junho do Jornal da Copa, de Zero Hora, não serão verificadas as colunas de opinião. O trabalho de observação é dividido conforme as fases disputadas pela seleção celeste na competição. 4.1 PRIMEIRA FASE – GRUPO A

Após oito anos de ausência em Copas do Mundo, o Uruguai chegou à África do Sul longe de ser considerado um dos favoritos ao título. A Celeste estava no Grupo A da competição, ao lado da África do Sul, da França e do México. Os sulafricanos eram os anfitriões e contavam com o apoio da torcida, os franceses haviam sido vice-campeões na edição anterior e os mexicanos não eram eliminados na primeira fase de um Mundial desde 1978. Por esses aspectos, a chave era tida como uma das mais equilibradas do certame. Isso contribuiu para que os uruguaios, mesmo sendo bicampeões mundiais, chegassem ao continente africano como uma “zebra”. As seleções do Grupo A protagonizaram os jogos inaugurais da Copa do Mundo 2010. No dia 11 de junho, em um primeiro momento, jogaram, em Joanesburgo, África do Sul e México. Na sequência, na Cidade do Cabo, o Uruguai enfrentou a França. No primeiro dia de jogos, Correio do Povo e Zero Hora enfatizaram o início da competição, dando preferência à estreia da seleção local e às expectativas para a primeira Copa realizada na África. O duelo entre uruguaios e franceses foi noticiado em ambas as publicações, mas sem destaque. No dia 12 de junho, após a rodada inicial, CP e ZH abordaram timidamente o empate por 0 a 0 entre as duas equipes.

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Quadro 2 – Títulos Uruguai x França Uruguai x França Correio do Povo

-

Zero Hora

11/6

Mundo de olho na África (chamada de capa) Confronto de risco entre França e Uruguai (p.28)

Saída contra o Uruguai (p.7)

12/6

Empates no primeiro dia (chamada de capa com foto) Um 0 a 0 quase sonolento (p.27)

Uruguai e França ganham nota zero (p.7)

Em sua edição de 11 de junho, o Correio do Povo faz duas menções ao Uruguai. A chamada de capa, intitulada “Mundo de olho na África” destaca o início da Copa do Mundo e informa que ocorrem dois jogos naquele dia: África do Sul e México e Uruguai e França. Adiante, na página 28, a matéria pré-jogo diz no título: “Confronto de risco entre França e Uruguai”. O texto lembra que as duas seleções já foram campeãs do torneio e relata a intenção do Uruguai em aproveitar a instabilidade francesa, prometendo um jogo de igual para igual. A foto da reportagem mostra o treinamento dos uruguaios e relaciona, em sua legenda: “Uruguaios garantem que apesar do favoritismo francês, a seleção pode surpreender”. Zero Hora, nesse dia, optou por dividir a matéria pré-jogo Uruguai e França em intertítulos4. O título da reportagem na página 7 do Jornal da Copa é “Saída contra o Uruguai” e tem como cartola5 a frase “Viação Ribéry”. A utilização dessa expressão pode ser justificada pela foto da matéria, que apresenta o ônibus da seleção francesa com o jogador Frank Ribéry, em destaque, olhando pela janela do veículo. O texto de abertura constata que ambas as seleções têm tradição, por já terem sido campeãs mundiais, mas lembra que elas por pouco não chegaram à Copa. França e Uruguai conseguiram suas vagas na repescagem das eliminatórias européia e sul-americana, respectivamente. Dos seis intertítulos utilizados por Zero Hora, um era pertinente à França, quatro ao Uruguai e um tinha relação com as duas seleções. Os tópicos utilizados por ZH são:

4

No jornalismo, os intertítulos são títulos colocados em meio ao texto. A intenção é dividir o texto por seções, facilitando a leitura. 5 No Jornal da Copa, de Zero Hora, a cartola é um título colocado acima do título principal da matéria. Este recurso é utilizado para complementar uma informação do título da reportagem.

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- “Sim, ele pode decidir”, em referência a Ribéry, principal jogador francês após a aposentadoria de Zinedine Zidane. - “Zebra?”, com uma citação do zagueiro uruguaio Diego Lugano dizendo que a Celeste não poderia temer a França. - “Últimos ajustes”, referindo-se às trocas feitas pelo treinador Oscar Tabárez no time titular do Uruguai. - “Unidos”, que apresenta uma foto dos atacantes uruguaios Diego Forlán e Luis Suárez e fala que a dupla possui uma elevada média de gols. - “Atrasou o voo uruguaio”, relatando o atraso de duas horas na viagem de Kimberley, local da concentração uruguaia, até a Cidade do Cabo, onde ocorreu o jogo. - “Bancários”, constatando que o uruguaio Loco Abreu e o francês Thierry Henry eram dois centroavantes de renome no banco de reservas de suas seleções. Neste último item havia uma foto de Abreu autografando uma bandeira do Uruguai. No dia 12 de junho, o Correio do Povo destaca em sua capa a manchete “Empates no 1º dia. E hoje tem Argentina x Nigéria”. Há menção aos empates entre África do Sul e México, por 1 a 1, e Uruguai e França, por 0 a 0, e uma projeção dos confrontos daquele dia. A capa ainda mostra fotos das duas partidas. No embate de uruguaios e franceses, o retrato mostra o zagueiro Diego Godín disputando um lance com um adversário. A legenda afirma que “O Uruguai (azul celeste) segurou a França, que tentou com mais força ganhar o jogo, mas a partida foi tecnicamente muito fraca”. Na página 27 do CP, a crônica da partida é anunciada com o título “Um 0 a 0 quase sonolento”. A matéria diz que o Uruguai, em determinada parte do enfrentamento, mostrava pouca criatividade, mas compensava essa limitação com uma defesa confiável. “Na prática, as ameaças de ambos os lados eram restritas, assim como a emoção do jogo”, assinala o texto. Por fim, é mencionado o fato de o Uruguai ter permanecido sem vencer um jogo de Copa do Mundo desde 1990. No mesmo dia, Zero Hora seguiu por um caminho parecido. A crônica pósjogo, situada na página 7 do Jornal da Copa, anuncia: “Uruguai e França ganham nota zero”, acompanhando a cartola “Que tédio!”. O texto constata que a França esteve mais próxima de abrir o placar no primeiro tempo. Pelo lado uruguaio, a matéria lembra que, a partir da expulsão do meio-campista Nicolás Lodeiro, a Celeste procurou segurar o resultado até o final. Erroneamente, o jornal diz que o

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Uruguai, a partir do resultado, mantinha um tabu de não vencer uma partida de Mundial desde 1970. Neste aspecto, a informação correta foi dada pelo Correio do Povo. Após o empate contra a França, o Uruguai enfrentou a África do Sul no dia 16 de junho. Assim como os demais jogos da competição, este também foi tratado por CP e ZH. Quadro 3 – Títulos Uruguai x África do Sul

Uruguai x África do Sul -

Correio do Povo

Zero Hora

16/6

Partida de risco no Grupo A (p.22)

África do Sul x Uruguai – 15h30min (p.11)

17/6

Uruguaios goleiam donos da Copa (chamada de capa com foto) Uruguai vence e cala as vuvuzelas (p.32)

Forlán fez dois nos 3 a 0 do Uruguai e calou as vuvuzelas (chamada de capa do caderno com foto) Donos da casa surrados (p.5)

O Correio do Povo, em sua edição no dia do jogo, tem como título na página 22: “Partida de risco no Grupo A”. A linha de apoio explica que África do Sul e Uruguai se enfrentariam em Pretória e quem perdesse estaria praticamente eliminado. Duas fotos ilustram a página, a maior mostra um jogador sul-africano. A segunda, menor, capta o uruguaio Lugano, sob a legenda “Uruguaios confiam na experiência do zagueiro Lugano para avançar na Copa”. O texto recorda que as duas seleções contavam com um ponto na tabela de classificação e, por isso, tinham a necessidade de vencer. A matéria ainda garante que os times jogariam ofensivamente, por precisarem do resultado positivo. Na mesma data, Zero Hora faz análise semelhante na matéria “África do Sul x Uruguai – 15h30min”, publicada na página 11. O texto também realça que sulafricanos e uruguaios precisavam vencer para ficarem próximos da classificação às oitavas de final. No entanto, a situação dos sul-africanos recebe maior enfoque. Caso perdessem, eles ficariam próximos da eliminação e entrariam na história dos Mundiais de forma negativa. Nunca, nas edições anteriores do torneio, um anfitrião havia caído na primeira fase. A frase final do último parágrafo cita: “Dá-lhe vuvuzela no ouvido dos uruguaios!”, dando a entender que os torcedores locais fariam bastante barulho com suas vuvuzelas, uma espécie de corneta. Nos dois jornais,

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porém, a maior atenção foi dada à estreia do Brasil no torneio, ocorrida no dia anterior. O Uruguai venceu a África do Sul por 3 a 0. No dia seguinte, CP e ZH deram a notícia utilizando chamadas de capa com fotos. Na capa do jornal do Grupo Record há uma grande fotografia com o título “Uruguaios goleiam donos da Copa”, cuja legenda menciona: “Jogadores uruguaios fazem 3 a 0 e deixam torcida da África do Sul arrasada”. Ao lado, encontra-se outra chamada, esta sem foto, dizendo: “Suíça derruba favoritos espanhóis”. No impresso do Grupo RBS ocorreu o contrário. Apesar de existir uma chamada com foto na capa do Jornal da Copa dizendo que “Forlán fez dois nos 3 a 0 do Uruguai e calou as vuvuzelas”, a manchete principal é “Beicinho da Fúria”, em referência à surpreendente derrota da Espanha para os suíços, ocorrida no mesmo dia. A vitória uruguaia é registrada pelo Correio do Povo na página 32 e, curiosamente, tem o título “Uruguai vence e cala as vuvuzelas”, assemelhando-se à chamada de capa utilizada por seu concorrente. A matéria relata que “os uruguaios dominaram toda a partida e mereceram o resultado” e que “a dupla de ataque Suárez e Forlán estava inspirada”. Zero Hora trata a vitória uruguaia através do título “Dono de casa surrado” e a cartola “Sem fator local”. A expressão surra é utilizada, especificamente no futebol, quando alguma equipe é goleada e dominada por outra. Vê-se aqui que a semântica da notícia vai além de simplesmente informar a derrota, há qualificação: a surra. O texto escrito na página 5 do suplemento dedicado à competição, no entanto, valoriza o lado dos donos da casa. O primeiro parágrafo explica: Assim que Diego Forlán marcou o seu segundo gol, os torcedores da África do Sul deram a primeira mostra de desânimo durante a Copa 2010. Com mais um gol de desvantagem, o goleiro expulso após o pênalti que originou o segundo gol, parte do público que apoiava os Bafana Bafana de Carlos Alberto Parreira começaram a deixar o estádio decepcionados e sem esperança de que o país anfitrião consiga passar de fase. (ZERO HORA,17/06/2010)

Em sua última partida pela fase de grupos, o Uruguai confrontou o México. O enfrentamento era determinante para selar os classificados da chave à fase seguinte.

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Quadro 4 – Títulos Uruguai x México Uruguai x México -

Correio do Povo

Zero Hora

22/6

Vai ser às ganhas? (p.18) Copa América (p.24)

11:00 México x Uruguai (p.13)

23/6

Uruguai vai adiante e agora pega a Coreia (chamada de capa com foto) Uruguai, após 20 anos, está nas oitavas de um Mundial (p.27)

Uruguai é o primeiro do seu grupo e pega Coreia do Sul nas oitavas (chamada de capa do caderno com foto) Uruguai foge dos hermanos (p.7)

No dia 22 de junho, uruguaios e mexicanos entraram em campo necessitando apenas de um empate para conseguir a classificação. Essa situação levantou suspeita quanto à qualidade do jogo, já que a igualdade no placar beneficiaria as duas equipes. Isso foi evidenciado em matéria situada na página 18 do Correio do Povo daquela data. O título é “Vai ser às ganhas?”, a linha de apoio observa que “Empate hoje no jogo entre Uruguai e México classifica os dois para as oitavas” e a legenda da foto, que mostra o capitão uruguaio Lugano e o treinador do time Oscar Tabárez, afirma “Uruguaios garantem que entrarão dispostos a vencer e dessa forma garantir a liderança no Grupo A, o que deve evitar a Argentina”. No texto, são utilizadas citações dos técnicos das duas equipes garantindo que motivariam seus atletas a vencerem o confronto. Além disso, a matéria trata dos desfalques do México e da manutenção do time uruguaio que havia vencido a partida anterior. O CP ainda traz, na página 24, uma matéria intitulada “Copa América”, que elogia o desempenho das seleções sul-americanas na competição. Na ocasião, Argentina, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai permaneciam invictos e com boas chances de avançar de etapa. Quanto à seleção uruguaia, foi mencionado apenas o fato dela ser a líder de sua chave. Em sua edição de 22 de junho, Zero Hora optou por não fazer matérias sobre os jogos realizados naquele dia. As prioridades são a goleada de Portugal sobre a Coreia do Norte, no dia anterior, e os possíveis adversários do Brasil nas oitavas de final. As quatro partidas daquela rodada, incluindo o jogo Uruguai x México, são resumidas brevemente na coluna “Copa ao vivo”, um guia que informa os horários das mesmas e os veículos que as transmitiriam. No espaço, o jornalista Caue Fonseca lista motivos para o espectador assistir ou não a determinado jogo, já

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que

os

jogos

envolvendo

as

seleções

das

mesmas

chaves

ocorriam

simultaneamente. No quesito por que ver o embate entre Uruguai e México, Fonseca menciona: “Se têm juízo, nem México nem Uruguai querem bater com a Argentina (provável primeira colocada do Grupo B) logo nas oitavas”, acreditando que esta seria uma razão para o jogo ser bom. No item por que não ver, ele descreve: “Dois times que se classificam pelo empate é um convite para o jogo de compadres”, levantando suspeitas sobre o grau de envolvimento das duas equipes com a partida. Jogo de compadre é um termo popular que insinua um entendimento prévio entre as partes para que ambas saiam do conflito ganhando alguma coisa. Os uruguaios derrotaram os mexicanos por 1 a 0. No Jornal da Copa, de ZH, de 23 de junho o feito mereceu a chamada de capa com foto: “Uruguai é o primeiro do seu grupo e pega Coreia do Sul nas oitavas”. Na matéria da página 7, o título é: “Uruguai foge dos hermanos”, rememorando que, com a primeira colocação em sua chave, os uruguaios não enfrentariam a Argentina nas oitavas de final. O texto curto menciona apenas o placar do jogo e lembra novamente o fato de o Uruguai ter escapado do enfrentamento com os argentinos. Aliás, nesta edição, a prioridade foi justamente a vitória da Argentina sobre a Grécia ocorrida no mesmo dia, que também teve chamada de capa com foto no suplemento. No Correio do Povo, as vitórias do Uruguai e da Argentina se encontram lado a lado como chamada de capa, ambas com fotos. “Uruguai vai adiante e agora pega a Coreia” é o título. A legenda da foto, que mostra os jogadores uruguaios se abraçando, descreve: “Jogadores festejam a vitória por 1 a 0 contra o México e a classificação uruguaia para a próxima fase”. A matéria da página 27 do CP destaca no título um aspecto importante não mencionado pelo impresso do Grupo RBS: “Uruguai, após 20 anos, está nas oitavas de um Mundial”, seguido pela linha de apoio “Seleção venceu o México, ontem, por 1 a 0 e pega a Coreia do Sul na próxima fase”. A legenda da foto utilizada na página, na qual os atletas uruguaios comemoram um gol, enfatiza um elemento também lembrado por Zero Hora: “Uruguaios venceram o México e dessa forma evitaram o confronto com os argentinos”. O texto rechaça a hipótese de “marmelada” levantada no dia anterior, constatando esforço mútuo em busca da vitória, e lembra que os sulcoreanos seriam os próximos oponentes dos sul-americanos.

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4.2 OITAVAS DE FINAL

Após se classificar como primeiro colocado no Grupo A, o Uruguai mediu forças com a Coreia do Sul, segunda colocada no Grupo B. Quadro 5 – Títulos Uruguai x Coreia do Sul

Uruguai x Coreia do Sul -

Correio do Povo

Zero Hora

26/6

A mística uruguaia entra em campo (p.23)

Roteiro para a final (p.12) Celeste surpreende ex-presidente (p.14)

27/6

Uruguai está nas quartas (chamada de capa com foto) Uruguai vence Coreia do Sul e avança (p.24)

Raça charrua nas quartas (chamada de capa com foto) Uruguai ganha e avança às quartas (p.3)

Na data do jogo, 26 de junho, a matéria publicada na página 23 do Correio do Povo, apesar do título “A mística uruguaia entra em campo” favorecer ao Uruguai, mostra-se neutra. “Uruguai e Coreia do Sul abrem hoje as oitavas de final da Copa do Mundo da África do Sul. A Celeste faz sua melhor campanha desde 1990, quando chegou às oitavas de final, enquanto que os asiáticos sonham repetir 2002, quando sediaram a competição ao lado do Japão”, cita a abertura do texto, lembrando campanhas de destaque dos dois países em edições anteriores do torneio. Foram indicadas, ainda, as duas estrelas das equipes, o uruguaio Forlán e o sul-coreano Park Ji-Sung, como os destaques em campo. A foto que ilustra o espaço mostra dois jogadores uruguaios abraçados em treinamento, com a legenda: “Forlán (D) é responsável pelo ataque uruguaio”, ratificando o status atribuído ao jogador na matéria. O Jornal da Copa, de Zero Hora, menciona na matéria “Roteiro para a final”, na página 12, que “um punhado de bons jogadores, boas apresentações na primeira fase e a mística da camiseta celeste colocam o Uruguai como real candidato para chegar à semifinal”. No texto pré-jogo, localizado na página 14, o título é “Celeste surpreende ex-presidente”, acompanhado da cartola “Alegre banda oriental”. A matéria traz, basicamente, um depoimento de Jorge Batlle, mandatário do país entre 2000 e 2005, comemorando a surpreendente campanha uruguaia na

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Copa do Mundo e projetando que o favoritismo estaria do lado da seleção celeste para jogo frente os sul-coreanos. Batlle também reforçou sua simpatia pelo Rio Grande do Sul e o futebol gaúcho. “Mais do que brasileiro, me considero riograndense e gremista. Do Grêmio de Ancheta e De Léon”, disse Batlle na entrevista concedida à ZH. O depoimento e a frase indicam a existência de um envolvimento mútuo entre os vizinhos em variados âmbitos, incluindo o esporte. Essa questão recebeu tratamento no segundo capítulo desta monografia, na referência do pensamento de autores como Golin (2001), Giulianotti (2002) e Oliven (2006). A reportagem ocupa quase uma página inteira, até então a maior abordagem dada à seleção uruguaia em Zero Hora. Para ilustrar o texto, ZH recorre a uma foto dos torcedores uruguaios, a maioria deles crianças e jovens, celebrando sua seleção nas ruas de Montevidéu. A legenda menciona: “A campanha uruguaia levou às ruas de Montevidéu uma geração desacostumada a comemorar sucessos da Celeste em Mundiais”. Em um jogo equilibrado, o Uruguai venceu a Coreia do Sul por 2 a 1 e garantiu vaga nas quartas de final. Em sua edição de 27 de junho, o Correio do Povo anuncia na capa: “Uruguai está nas quartas”, sendo essa a única manchete relacionada à Copa do Mundo na capa do dia. A foto que ilustra a chamada mostra dois atletas uruguaios comemorando um gol e diz, na legenda: “Vitória por 2 a 1 sobre a Coreia do Sul marcou classificação na Copa da África”. A matéria pós-jogo do CP, na página 24 resume os melhores momentos do jogo, informando os lances mais marcantes das duas equipes. Outro aspecto levado em consideração foi o fato de o Uruguai, graças à passagem de fase, ter confirmado seu melhor desempenho em Mundiais desde 1970. A abertura do texto enfatiza: “O Uruguai carimbou, com uma boa dose de sofrimento, sua passagem às oitavas de final da Copa do Mundo, ao derrotar neste sábado a Coreia do Sul por 1 a 0, em Port Elizabeth”. Esta frase contém dois erros. Com o resultado positivo, o Uruguai avançou às quartas de final da competição, não às oitavas de final como escreve o CP. Outro equívoco está no placar do jogo. A partida havia terminado 2 a 1 para os sul-americanos, ao invés do 1 a 0 propagado pelo impresso do Grupo Record. Este último engano é parcialmente corrigido na foto, que mostra o atacante Suárez celebrando um tento. A legenda diz: “O atacante Suárez marcou dois gols na vitória dos uruguaios sobre a seleção asiática”.

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Zero Hora, na edição de 27 de junho do Jornal da Copa, trata o êxito uruguaio com grande entusiasmo, esboçando uma postura que se consolidaria no restante da campanha da Celeste no torneio. “Raça charrua nas quartas”, celebra a manchete de capa do suplemento, valorizando uma característica histórica do futebol uruguaio: a raça, cujo significado neste caso não remete à etnia, mas à superação, o esforço físico em campo. A foto utilizada para ilustrar a chamada só não cobre todo o espaço, pois ao lado, em menor proporção, a atenção se destina aos dois jogos realizados naquele dia. A ilustração evidencia os atacantes Cavani e Suárez abraçados após gol uruguaio, com a legenda: “Uruguai de Suárez (D) faz 2x1 na Coreia do Sul e avança para as quartas de final, o que não ocorria desde a Copa do Mundo de 1970”, menção semelhante à feita pelo concorrente. Na matéria pós-jogo o título comedido “Uruguai ganha e avança às quartas” está acompanhado de uma cartola fervorosa intitulada “Dale, Suárez!”, referindo-se efusivamente ao jogador que fez os dois gols da seleção uruguaia contra a Coreia do Sul (verificar anexo A). Após a vitória sobre os asiáticos, ZH, pela primeira vez, explora as ligações entre Rio Grande do Sul e Uruguai. A tática pode ser explicada pela linha editorial localista de ZH, aspecto apontado por Felippi (2006 e 2007) no capítulo anterior. A abertura do texto revela a identificação do jornal com os uruguaios: “A onda de emoção ganhou força e tomou conta de todo o espaço entre a fronteira gaúcha com o Uruguai e a capital Montevidéu aos 8 minutos do jogo deste sábado”, recordando o momento do primeiro gol da Celeste na partida, marcado aos 8 minutos do primeiro tempo. Na sequência, a matéria relata os melhores momentos do jogo, como o empate dos sul-coreanos e o gol que deu a vitória aos uruguaios. Entretanto, o relato na página 3 do caderno expõe o momento em que o Uruguai era pressionado pelo adversário da seguinte forma: “O medo tomou conta da fronteira, de Montevidéu, de todo o país vizinho”. A frase evidencia o sentimento de torcedor do Uruguai, fortalecendo os vínculos fronteiriços entre o estado e o país vizinho.

4.3 QUARTAS DE FINAL

Na fase de quartas de final, o Uruguai se deparou com Gana, único país do continente africano remanescente na competição naquele momento. A partir desta

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partida, as diferenças das coberturas de Correio do Povo e Zero Hora começam a se acentuar. Quadro 6 – Títulos Uruguai x Gana

Uruguai x Gana -

Correio do Povo

Zero Hora

2/7

Um continente contra o Uruguai (p.24)

Uruguai abraça a Celeste (p.11)

3/7

Uruguai, heróico, vai adiante (chamada de capa com foto) Celeste Olímpica despacha Gana e anima santanenses (p.12) Milagre classifica seleção uruguaia (p.25)

Agora somos doble chapa (chamada de capa com foto) País delira com vaga na semifinal (p.12) Centroavante goleiro (p.13)

No dia 2 de julho, uruguaios e ganeses disputaram uma vaga na semifinal da competição. No mesmo dia, Brasil e Holanda também se enfrentaram visando à classificação para a etapa seguinte do torneio. CP e ZH, por serem jornais brasileiros, priorizaram o jogo do Brasil diante dos holandeses. Assim, a partida do país vizinho foi deixada em segundo plano pelas publicações. “Um continente contra o Uruguai” é o título da matéria pré-jogo publicada na página 24 do Correio do Povo. Apesar de exagerar na significação, em um primeiro momento, há acerto ao se levar em consideração o registro explicado na linha de apoio, com a informação de que “Gana é a única representante da África nas quartas”. Duas fotos são utilizadas na reportagem. Na maior constam os uruguaios Forlán e Suárez durante um treinamento, sob a legenda “Depois de chegar com pouca expectativa ao Mundial, a seleção uruguaia enfrenta os africanos hoje na condição de favoritos”. Ao lado, há um registro fotográfico do principal jogador ganês, acompanhado da legenda: “O artilheiro Asamoah Gyan, recuperado de lesão, está confirmado no time de Gana”. O texto contrasta a quantidade de torcedores das duas seleções, afirmando que os africanos contariam com o apoio maciço do continente. No Sul da América do Sul cerca de 3,3 milhões de pessoas estarão vestindo hoje o azul celeste. Do outro lado do oceano, quase 800 milhões devem estampar no rosto o amarelo, o verde e o vermelho. A partir das 15h30min (de Brasília), em Joanesburgo, enquanto o Uruguai estará representando

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apenas um único país, Gana vai simbolizar todo o continente africano. (CORREIO DO POVO, 02/07/2010)

Na sequência, a matéria assinala que, apesar de terem menos torcedores, os uruguaios são favoritos para passar de etapa. “A gigantesca vantagem na torcida, entretanto, não faz dos africanos favoritos para o confronto. Pelo contrário, o Uruguai evoluiu durante a Copa do Mundo e chega com mais credenciais para avançar à semifinal, algo que não acontece desde 1970”, elogia o impresso. Em sua edição, neste dia, Zero Hora trata o jogo entre Uruguai e Gana em uma página inteira. Devido à boa campanha uruguaia no Mundial, o jornal mandou o repórter Diogo Olivier a Montevidéu para acompanhar no local o desempenho da Celeste. Na matéria da página 11 do Jornal da Copa, a euforia dos uruguaios com sua seleção fica evidente no título: “O Uruguai abraça a Celeste”, precedido pela cartola “De bandeira na mão”. “Bandeiras e faixas de apoio à seleção cobrem Montevidéu” é a legenda das duas fotos utilizadas para ilustrar a quantidade expressiva de artigos espalhados pelas ruas e prédios da cidade. Olivier abre a matéria da seguinte maneira: “Elas sorriem para a gente em todos os lugares, porque o sol da bandeira do Uruguai sorri. Há bandeiras do Uruguai por todos os cantos de Montevidéu”, escreve. Em seguida, ele informa que tentou contar o número de bandeiras que via no trajeto do aeroporto até o hotel. Olivier narra, em primeira pessoa, que só conseguiu contar até a 25ª bandeira, desistindo após perceber que não conseguiria completar a tarefa. O repórter de ZH assim descreve: Em meio aos produtos à venda, por toda a 18 de julho. Acima das fachadas das lojas, de frente para a rua. No chão, em caixas de papelão, numa esquina de Punta Carretas. Nos ombros de homens e mulheres, jovens ou crianças. Nos caixas de supermercado. Nos balcões dos bares. Dependurada nos tetos. Ao lado das churrasqueiras dos restaurantes. No vidro do motorista nos ônibus, TODOS os ônibus. (ZERO HORA, 02/07/2010)

O enviado especial também aborda como a venda de bandeiras se tornou um negócio rentável para uma comerciante local. Mirya Ruidia “abandonou todos os outros badulaques de sua banca, inclusive a cuia para cevar o mate. Agora, ela passa o dia sorrindo como os sóis que iluminam sua tenda, os pesos a lhe estufarem os bolsos”, conta Olivier sinalizando a dupla felicidade da uruguaia pelo fato dela, ao

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mesmo tempo, comemorar os bons resultados da equipe uruguaia como torcedora e vendedora. Apesar de ser uma matéria pré-jogo, Zero Hora procura focar apenas no Uruguai, esquecendo-se da grande torcida africana para Gana assinalada pelo Correio do Povo. Além disso, a única menção direta à partida está no último parágrafo. Mesmo assim, o teor de animação no país continua se sobressaindo em ZH. “Hoje, às 15h30min, Mirya será uma entre os milhares que assistirão à Celeste no telão gigante armado na Praça da Independência, de frente para a 18 de Julho, o Mausoléu de Artigas às costas”, refere. “O Uruguai vai parar hoje. À espera de milhões de sorrisos como o do sol da bandeira nacional, um sol que sorri para a gente”, finaliza Olivier, fazendo uma analogia entre a bandeira, a principal “personagem” da reportagem, e o povo uruguaio. De um modo geral, a matéria vai ao encontro ao que Coelho (2004), citado no capítulo anterior, preconiza para a cobertura esportiva, a pauta diferenciada. Nesta reportagem existe um elemento ligado à editoria de economia, o caso da vendedora ambulante que lucra graças à campanha da Celeste. Há também a observação jornalística, representada através da temática das bandeiras e faixas, em torno de um fenômeno local: o fanatismo pela seleção uruguaia e a alegria da população pelo bom desempenho na Copa do Mundo. Conforme Olivier, buscar elementos extracampo era uma de suas tarefas durante a estada no país vizinho. Para o jornalista, o Mundial de futebol não se resume apenas aos jogos entre países e ao que está acontecendo no local da Copa. Copa do Mundo é uma coisa diferente. As pessoas que não gostam e não entendem de futebol param na frente da televisão para ver uma Copa. Ela não é só futebol. Aliás, tem cada vez menos futebol. Tem uma série de sentimentos que envolvem a Copa do Mundo.6

Ao lado da matéria de Olivier, há um texto escrito pelo jornalista Moisés Mendes intitulado “A pátria renascida”. Nele, Mendes revela uma conversa que teve com um ex-colega de trabalho uruguaio, um jornalista chamado Martín Correa, morador de Rivera, cidade limítrofe com Santana do Livramento, no Rio Grande do Sul. Ao jornalista de ZH, Correa conta entusiasmadamente que, com a boa trajetória

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Em entrevista a este autor, em 19 de outubro de 2011.

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da Celeste na África do Sul, a identidade cultural uruguaia havia renascido com força. Mendes diz que trabalhou com Correa no jornal A Plateia, de Livramento, entre 1973 e 1975. Coincidentemente, foi nessa época que a seleção uruguaia começou a entrar em decadência no cenário futebolístico mundial. “O fracasso na Copa de 1974 deprimiu ainda mais um país sempre caloroso e cordial. O Uruguai, empobrecido, desconfiado e dividido pela ditadura era também um perdedor. Martín Correa viveu esses 36 anos percorridos em boa parte sob clima de depressão”, escreve o gaúcho Mendes, revelando simpatia pelo país vizinho. Por fim, o jornalista de ZH relaciona a ascensão uruguaia na Copa do Mundo de 2010 com o bom momento do Uruguai em outras áreas. “Este é o país que vem aos poucos recuperando sua economia e sua autoestima e ressuscita agora na Copa”, diz Mendes. Em um jogo definido apenas na disputa de pênaltis, o Uruguai se classificou para enfrentar a Holanda na semifinal da Copa do Mundo. Após empate por 1 a 1 nos 90 minutos e na prorrogação, os sul-americanos fizeram 4 a 2 nas penalidades máximas. Paralelamente, os holandeses eliminaram o Brasil. No dia 3 de julho, Correio do Povo e Zero Hora (verificar anexo B) deram amplo destaque à desclassificação brasileira em suas edições. Entretanto, os periódicos tomaram posturas distintas ao prosseguirem suas coberturas. O CP anuncia na capa “Agora, é esperar por 2014”, lamentando a eliminação brasileira. A vitória uruguaia ficou em segundo plano, com uma chamada de capa menor com a manchete: “Uruguai, heroico, vai adiante”, com a legenda da fotografia informando que “Loco Abreu fez o gol decisivo na cobrança de pênaltis que levou o Uruguai para as semifinais contra a Holanda”. ZH, na capa do Jornal da Copa, inverteu os papeis dados pelo concorrente e emendou: “Agora somos Doble Chapa”. A página inicial está dividida com duas fotos. Em primeiro plano está o atacante uruguaio “Loco” Abreu comemorando. Abaixo dele, em outra foto, está o meio-campista brasileiro Kaká lamentando a derrota. O texto da chamada de capa explica que: “Depois da eliminação do Brasil, de Kaká, para a Holanda, o Jornal da Copa adota a dupla cidadania e passa a torcer pelo Uruguai, de Loco Abreu (acima), que avançou às semifinais do Mundial em jogo emocionante”. Além disso, o nome do caderno foi mudado temporariamente para Periódico de la Copa, ratificando a adoção da seleção uruguaia como time preferido

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a partir daquele instante. Nos dias seguintes, o suplemento voltou a se chamar Jornal da Copa. Doble chapa, na tradução literal, significa chapa dupla. Esta é uma denominação utilizada para definir o cidadão que habita na fronteira entre o Rio Grande do Sul e o Uruguai. Como há interação entre o estado e o país vizinho, eles transitam nos dois lados da fronteira e, por isso, têm “dupla nacionalidade”. Nota-se que ambas as publicações utilizaram a expressão “agora”, mas com objetivos distintos. O impresso do Grupo Record recorre à palavra para expressar frustração, enquanto o diário do Grupo RBS utiliza a expressão para demonstrar que torcerá para o Uruguai no restante da competição, já que o Brasil estava alijado da disputa do título. A expressão “agora” para o CP indica lamentação enquanto para ZH significa uma nova oportunidade para os torcedores brasileiros da fronteira sul. Mesmo dando maior atenção à derrota brasileira, o Correio do Povo, em sua edição pós-jogo Uruguai e Gana, aborda a vitória uruguaia e, inclusive, relata, na página 12, o clima na fronteira entre Santana do Livramento e Rivera. Por mais que o CP não tenha declarado uma preferência pela seleção uruguaia, a publicação utiliza como critério de noticiabilidade o fato de haver gaúchos misturados na festa dos torcedores uruguaios. Porém, curiosamente, a reportagem “Celeste Olímpica despacha Gana e anima santanenses” se situa na editoria de Geral e não na de Esportes. O texto afirma no primeiro parágrafo: A emocionante partida entre as seleções de Uruguai e Gana, na tarde de ontem, paralisou a Fronteira. As emoções do jogo contagiaram muito os santanenses, que depois de assistirem ao desastre da seleção de Dunga passaram a torcer discretamente pela Celeste. (CORREIO DO POVO, 03/07/2010)

Apesar de discorrer sobre a vitória uruguaia, este trecho indica resquícios de preocupação com a seleção brasileira ao classificar como “desastre” a derrota do Brasil para a Holanda por 2 a 1. Essa definição possui relação com o pensamento do torcedor comum. De um modo geral, na visão de um fã, a derrota do seu time, por qualquer placar, é um desastre. “Um mar azul, branco e amarelo tomou conta das ruas. A BM e a Chefatura de Polícia de Rivera montaram uma operação especial para conter provocações na linha divisória, mas até 18h30min não havia nenhum registro de ocorrência”, diz o

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relato. Este trecho sinaliza que gaúchos, vestidos com o amarelo da camisa do selecionado brasileiro, uniram-se ao uruguaios, trajados de azul e preto, para festejar. O jogo em si é tratado na página 25, desta vez no setor esportivo, com o título: “Milagre classifica seleção uruguaia”. Duas fotos ilustram o espaço. A maior é composta por diversos jogadores do Uruguai comemorando a classificação. A menor mostra o ganês Gyan após o final da partida. Para ambas, a legenda é: “Acima, os uruguaios comemoram a histórica classificação para as semifinais da Copa. Ao lado, o ganês Gyan lamenta o pênalti desperdiçado no último minuto”. O texto se mostra equilibrado quanto à narrativa dos principais lances das duas seleções durante o enfrentamento. “A heróica classificação do Uruguai teve dramaticidade do início ao fim”, resume a crônica pós-jogo. De fato, o jogo foi bastante movimentado. Porém, segundo o CP, Gana dominou a partida no primeiro tempo e fez justiça ao abrir o marcador: “O primeiro tempo foi de total domínio ganês. A justiça foi feita no último minuto antes do intervalo. Muntari mandou uma bomba de fora da área e abriu 1 a 0 no placar”. Posteriormente, o Uruguai empatou a partida. Após o 1 a 1 no tempo regulamentar, os 30 minutos da prorrogação foram intensos. No último minuto do segundo tempo da etapa extra, foi assinalado um pênalti contra o Uruguai. O atacante Suárez colocou a mão na bola dentro da área, evitando um iminente tento ganês. Se o batedor da equipe africana convertesse a cobrança, ele selaria a classificação de sua seleção à semifinal da Copa, visto que aquele seria o último lance da partida. “Empate até os 15 minutos do segundo tempo da prorrogação. Suárez, artilheiro do Uruguai na Copa, salva o gol em cima da linha com pé. Não satisfeito, salva de novo no rebote, mas dessa vez utilizando as mãos. Expulsão e pênalti. Gyan, o principal nome de Gana, acerta o travessão. Suárez e o sonho uruguaio nascem de novo”, escreve o Correio no parágrafo de abertura. Com a permanência da igualdade no placar, a partida se encaminhou para os pênaltis, onde o Uruguai venceu por 4 a 2. “O sonho uruguaio ganha ingredientes quase ficcionais e enche a torcida azul-celeste de orgulho e expectativa de, quem sabe, seguir fazendo história”, afirma a matéria, conferindo um caráter épico à vitória uruguaia. A reportagem ainda enfatiza o estilo da cobrança realizada pelo atacante Abreu durante as penalidades. O uruguaio, apelidado de “Loco”, desferiu um chute leve com o bico da chuteira, chamado de “cavadinha”.

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Em Zero Hora, a euforia do país com a seleção foi, mais uma vez, tema de reportagem de Diogo Olivier. “O Uruguai está loco” é o título da reportagem que ocupa toda a página 12 do Jornal da Copa, neste dia denominado Periódico de la Copa. A palavra “loco” está grifada em vermelho, remetendo a dois elementos explorados por Olivier na reportagem: o atacante “Loco” Abreu, que converteu o pênalti decisivo, e o ambiente festivo nas ruas de Montevidéu. Estes são elementos que remetem à categoria de semântica da notícia. Na sequência, a linha de apoio mais do informa, traz o estado de espírito: “País delira com vaga na semifinal”. Olivier começa o relato com a “cavadinha” de Abreu e, em seguida, volta-se para o clima no país: São mesmo estranhos estes uruguaios. ontem, quando El Loco Abreu cometeu sua maior loucura ao cobrar o último pênalti contra gana com uma irresponsabilidade santa que nenhum jogador brasileiro mostrou nessa copa, eles saíram todos para a rua. ao mesmo tempo. e passaram a cantar assim, numa só voz: soooy Celeste... soooy Celeste... soooy Celeste... Celeeeste soy yo! (ZERO HORA, 03/07/2010)

O enviado especial de Zero Hora, assim como no dia anterior, entrevista torcedores uruguaios e analisa o clima eufórico que tomou conta da nação e unia jovens e idosos, crianças e adultos. O jornalista escreve o texto em primeira pessoa e, ao final, procura mostrar que existia sintonia entre o sentimento dos uruguaios e os jogadores através do cântico “Soy Celeste”. “Então, aconteceu. Parece roteiro de filme, mas aconteceu”, refere-se à chegada dos atletas ao hotel na África do Sul, que Olivier assistia pela televisão. “Aí eles saem dos ônibus, se abraçam e forma uma roda. Pulam e cantam. E cantam o quê? Isso mesmo: Soooy Celeste...”, destaca. Por fim, Olivier confessa na última linha: “Sabe, deu uma baita vontade de ser uruguaio ontem”. O jogo em si foi tratado na página 13, ocupando todo o espaço. “Centroavante-goleiro”, diz o título, acompanhado da linha de apoio: “Mão na bola salva a Celeste no final”. Assim como seu concorrente, Zero Hora define o lance em que Suárez comete o pênalti como o principal da partida. Apesar de ter assumido a torcida para o Uruguai, ZH discorre sobre os melhores momentos das duas equipes na partida de forma igualitária. O lance capital, ocorrido nos minutos finais da prorrogação, é descrito da seguinte forma:

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Em uma sequência incrível na pequena área uruguaia, o goleiro Muslera e o centroavante Suárez salvaram a bola na linha, duas vezes. Na terceira, coube novamente a Suárez evitar o perigo – mas de uma forma inusitada. Em cima da linha do gol, com Muslera já batido, ele deu uma de goleiro e afastou a bola com a mão – na primeira vez, havia usado os pés. (ZERO HORA, 03/07/2010)

Por fim, menciona-se que o “Uruguai terá pela frente o algoz do Brasil, a Holanda” e que Gana perdeu a chance de ser o primeiro país africano a disputar uma semifinal de Copa do Mundo. As legendas das imagens utilizadas nas duas matérias de ZH apenas resumem as ilustrações. “Após usar a mão para evitar gol (ao lado), Suárez (carregado por Eguren, acima) festeja vitória” e “O centroavante Gyan (acima) que desperdiçou um pênalti, chora depois da derrota”, dizem as legendas da página 13. Na página 12 são utilizadas fotos da comemoração nas ruas, sob a legenda: “Entre os quatro melhores: multidão tomou conta da 18 de julho, a principal avenida de Montevidéu”.

4.4 SEMIFINAL

Para a semifinal entre Uruguai e Holanda, em 5 de julho, Zero Hora manteve a sua preferência pela seleção uruguaia. Essa decisão foi tomada porque, de acordo com Olivier, o caderno Jornal da Copa é um instrumento para experimentação. Através dele, fazem-se algumas alterações em relação à cobertura diária. Se elas prosperarem no suplemento, elas perduram. Neste sentido, o jornalista destaca que a autodenominação “doble chapa” também foi uma tentativa de inovação, buscando um diferencial em relação aos concorrentes. O Jornal da Copa, na Zero Hora, é sempre um piloto para experimentar coisas diferentes, que acabam se perpetuando no jornal. De repente tem uma seção, uma área de interatividade que tu crias, dá certo e tu estendes para o jornal. Todos os dias fazíamos uma reunião e pensávamos em fazer coisas diferentes. Depois que o Brasil caiu, tínhamos que surpreender o leitor e pensamos: vamos fazer a mesma coisa para o Uruguai. Será que não é interessante? Tinha esse elemento, de tentar ter um diferencial dali em diante. Uma coisa que em São Paulo, no Rio, eles não teriam motivos para fazer, mas nós tínhamos. [...] Uruguaio é chamado de gaúcho também. O futebol gaúcho, então, tem uma relação farta com o futebol uruguaio. (OLIVIER, 2011)

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O editor de Esportes do Correio do Povo, Hiltor Mombach, define que a prioridade do diário na Copa do Mundo é sempre a seleção brasileira. Desta forma, o CP permaneceu tratando a seleção uruguaia de forma semelhante aos demais selecionados envolvidos na semifinal da Copa. Com a eliminação do Brasil, o impresso do Grupo Record até publicou algumas manchetes dando maior enfoque ao Uruguai. Nos textos, entretanto, a cobertura se manteve fiel ao estilo inicial. A gente faz uma cobertura mais centralizada na seleção brasileira e uma cobertura mais de opinião. Os jornais mudaram muito. Os jornais antigamente eram muito de informação porque não tinham a concorrência da internet. Hoje os jornais têm a informação, mas dão muito valor à opinião. [...] Esse é um sintoma moderno da imprensa.7

Quadro 7 – Títulos Uruguai x Holanda Uruguai x Holanda -

Correio do Povo

Zero Hora

5/7

Embalado, Uruguai mira o título (chamada de capa com foto no Caderno de Esportes) Uruguai sonha alto na África (p.4 Caderno de Esportes)

A euforia celeste (p.6 e 7)

6/7

Hoje é dia de torcer para o Uruguai (chamada de capa com foto) Por um lugar na história (p.20)

“O Uruguai tem um dever de gratidão com o futebol” (p.6 e 7) Primeiro finalista será definido hoje (p.7) Rivalidade, esperança e policiamento na fronteira (p.8)

7/7

Final da Copa será europeia (chamada de capa com foto) Laranja madura (p.28) Torcedores orgulhosos (p.28)

Dor e orgulho celeste (chamada de capa com foto) A melhor das derrotas (p.4) Festa na Fronteira (p.5)

Na edição de 5 de julho do Correio do Povo, véspera do jogo entre Uruguai e Holanda, a postura do periódico exposta por Mombach fica clara. Na capa do Caderno de Esportes, há a manchete “Embalado, Uruguai mira o título”, acompanhada de um pequeno texto: “Depois de vencer de forma dramática Gana pelas quartas, agora sul-americanos preparam-se para enfrentar a poderosa equipe da Holanda”. Porém, a principal notícia mostra a chegada do treinador do Brasil, Dunga, a Porto Alegre e fala sobre sua demissão do cargo.

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Em entrevista a este autor, em 27 de outubro de 2011.

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Na página 4, a matéria “Uruguai sonha alto na África” relata a expectativa gerada pela seleção sul-americana graças à boa campanha no Mundial. Na foto utilizada no espaço, do zagueiro Lugano cercado por jornalistas, a legenda diz: “Zagueiro Lugano alfinetou os especialistas que não apostavam nas possibilidades da seleção no Mundial”. A linha de apoio lembra o aumento do interesse da imprensa pela Celeste: “Jogadores assustaram-se com assédio da imprensa internacional: ‘O centro do futebol está olhando para nós’, resume Loco Abreu”. O texto narra a redescoberta uruguaia. “Se antes o time de Lugano, Forlán, Loco Abreu e companhia não passava de um coadjuvante na África do Sul, agora está no centro das atenções da Copa do Mundo. De uma hora para outra, a delegação uruguaia passou a ser perseguida pela imprensa internacional”. Em seguida, a reportagem registra o aumento da atenção fornecida aos uruguaios pelos meios de comunicação, mas ressalta que, para chegar à final, “a tarefa que se impõe, no entanto, é enorme. O adversário da semifinal é a Holanda, que parou o Brasil na fase anterior e tem 100% de aproveitamento na Copa do Mundo”. Ou seja, o texto, mesmo sobre o Uruguai, recorre à derrota brasileira para os holandeses. O jornal também aborda a partida pelo viés holandês dizendo no título da matéria ao lado: “Holandeses vacinados”. Mesmo assim, a Laranja Mecânica, apelido da seleção europeia, é descrita como “algoz do Brasil”. Zero Hora, neste dia, optou por um caminho distinto em relação ao seu concorrente. A saída de Dunga do comando do time brasileiro é o assunto de maior destaque. Todavia, a cobertura relacionada à Celeste continuou com grande abordagem. Nas páginas 7 e 8 do Jornal da Copa, a matéria “A euforia celeste” retrata o clima na nação vizinha às vésperas da semifinal contra a Holanda. Para isso, ZH mandou mais dois correspondentes ao país, que se somaram ao repórter Diogo Olivier. A cobertura se divide em três cidades: Montevidéu, Rio Branco e Rivera.

As

duas

últimas fazem

divisa

com

o

Rio

Grande

do

Sul

e,

consequentemente, com o Brasil. Em “Tocamos el cielo”, Olivier, em Montevidéu, segue relatando o envolvimento intenso dos uruguaios com o futebol e a Celeste. Desta vez, ele narra como a imprensa do Uruguai tem realizado a cobertura da equipe sul-americana. O título da reportagem vem de uma frase dita por um narrador esportivo uruguaio após a classificação da Celeste para a semifinal da Copa. Olivier avalia que os jornalistas locais procuram dar um sentido épico aos acontecimentos dentro de campo,

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recordando as conquistas dos títulos mundiais de 1930 e 1950, sentido esse reproduzido por ZH. O repórter relata o momento vivido pelo país fazendo uma analogia entre a recuperação do futebol uruguaio com outros setores da economia. A imprensa presenteia os uruguaios com o único assunto que lhes importa desde sexta-feira, agora adoçado pelo fato de representar o continente: o sabor de ser um dos bons números da economia, a inflação em queda e a retomada dos investimentos. Fala-se até em título, embora ganhar ou perder já não seja tão importante assim. (ZERO HORA, 05/07/2010)

Em “Vamos vingar o Brasil”, o jornalista Nauro Júnior conta sua estada em Rio Branco, cidade uruguaia vizinha a Jaguarão. “O clima que prevalece por lá é de euforia. Todos têm um amigo, um parente, um conhecido que mora do outro lado da fronteira. A maioria tem duas identidades, uma azul celeste e outra verde e amarelo”, afirma. Para demonstrar a existência de laços entre as cidades, o repórter cita um casal habitante de Rio Branco, formado pelo uruguaio Washington Sosa e a brasileira Raquel, “que com o tempo também passou a assinar Sosa”. Em depoimento, Raquel acredita que “o Uruguai vai vingar o Brasil e tirar a Holanda”. Para Rivera, cidade colada a Santana do Livramento, ZH enviou o repórter Leandro Behs. Em “Temos um futuro lindo”, Behs escreve: “Imagine se o Rio Grande do Sul fosse um país, com pouco mais de 3 milhões de habitantes, e estivesse com a sua equipe formada só por gaúchos entre as quatro melhores seleções da Copa. Pensou? Pois é assim que os uruguaios estão se sentindo”, evoca. Behs segue discorrendo sobre o orgulho dos uruguaios com sua seleção: “Não ficaremos mais presos a 1930 e 1950, temos um futuro lindo”, exalta Alejandra Martinez, dona de um restaurante no município. O repórter também entrevista um vendedor ambulante gaúcho, que lucrava através da comercialização de bandeiras do Uruguai. “Valério Monteiro, 36, gaúcho de Livramento e autodenominado doble chapa (quem nasce na fronteira), ganha R$ 50 em cada bandeira do Uruguai e R$ 5 nas bandeirolas para carros. Chama a clientela ao som dos gols de Forlán e da murga, um ritmo popular no país vizinho”. Esses trechos reforçam o viés localista da linha editorial de Zero Hora, pois procuram estabelecer vínculos entre Rio Grande do Sul e Uruguai. Em “O orgulho sul-americano”, Behs ratifica como os uruguaios estão se sentindo com o desempenho da Celeste na África do Sul. A expressão utilizada no título é oriunda de uma entrevista com um jogador do Peñarol chamado Maurício

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Tort, que estava em Rivera porque sua equipe disputaria, naquele dia, um amistoso contra o Internacional. O texto informa que, apesar de muitos habitantes de Livramento torcerem pelo Uruguai, alguns não compartilhavam o mesmo sentimento. Pode-se constatar que, nas quatro matérias, os títulos são oriundos de frases ditas pelos personagens utilizados pelos repórteres nos textos e, por isso, estão acompanhados por aspas. - “Tocamos el cielo” se refere à sentença de um narrador esportivo uruguaio. - “Temos um futuro lindo” diz respeito à opinião de um torcedor uruguaio. - “O orgulho sul-americano” é fruto de uma citação de um jogador uruguaio. - “Vamos vingar o Brasil” é uma menção feita por uma brasileira que passou a torcer pelo Uruguai. No dia 6 de julho, Uruguai e Holanda entraram em campo. Na sua edição no dia do jogo, o Correio do Povo tem como manchete na capa: “Hoje é dia de torcer para o Uruguai”, acompanhada por uma foto de um jogador junto ao técnico, cuja legenda é: “Goleiro Muslera (E) e o treinador Oscar Tabarez: Uruguai vai com muita garra para superar holandeses na semifinal da Copa”. Apesar de sinalizar claramente a preferência pelo Uruguai, o que não havia ocorrido em momentos anteriores, a matéria pré-jogo intitulada “Por um lugar na história” se revela equilibrada. O texto agrega aspectos inerentes às duas seleções. “Uruguai e Holanda, dois países pequenos e com realidades sociais totalmente diferentes se cruzam expondo expectativas distintas. A técnica holandesa mais uma vez será testada sob pressão. A raça uruguaia será posta à prova em momentos decisivos, quando geralmente não admite ser superada”, relaciona. O texto ainda lista os desfalques das duas equipes para a partida e constata que o favoritismo é dos holandeses. Dando continuidade ao seu perfil “doble chapa”, Zero Hora, no mesmo dia, publica uma entrevista com o escritor uruguaio Eduardo Galeano. Uma das frases proferidas por Galeano na conversa com Diogo Olivier está no título da matéria nas páginas 6 e 7 do Jornal da Copa: “O Uruguai tem um dever de gratidão com o futebol”, seguindo a cartola: “Eduardo Galeano, torcedor”. “Era preciso um tradutor à altura deste Uruguai que flana com as façanhas da Celeste que hoje encara a Holanda por vaga na final da Copa do Mundo, 60 anos depois do Maracanazo”, resume Olivier no texto precedente à entrevista. No depoimento, Galeano argumenta que o futebol é uma religião para os uruguaios,

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relembra as conquistas anteriores da Celeste e assinala que o Uruguai é uma nação “futebolizada”, pois até “os nenês nascem gritando gol”. Uma foto do escritor ilustra o espaço, com a legenda: “Galeano, 69 anos, mais célebre escritor uruguaio vivo, no Café Brasilero, em Montevidéu: ‘Não somos importantes, o que é bom. Neste mundo de compra e venda, se você é importante vira mercadoria’”. O jogo em si é tratado na matéria “Primeiro finalista será definido hoje”, situada na página 7. O texto informa os desfalques e as possíveis mudanças nos dois times para a partida. As fotos dos treinadores da Holanda, Bert Van Marwijk, e do Uruguai, Oscar Tabárez, também integram o relato. A expectativa pelo jogo na fronteira entre Rio Grande do Sul e Uruguai é tema de matéria publicada na página 8. “Rivalidade, esperança e policiamento na fronteira”, diz o título. Acima, há a cartola com os dizeres: “Espera nervosa”. Desta vez, o repórter Leandro Behs entrevista um comerciante, um estudante e um produtor rural, três uruguaios moradores de Rivera. Eles expõem a ansiedade em ver a Celeste entrar em campo para decidir a vaga na final da Copa do Mundo. A reportagem ainda informa que as polícias brasileira e uruguaia fecharão a fronteira horas antes do jogo para evitar tumultos. “Muitos brasileiros torcerão pela Celeste, mas também haverá um bom contingente de secadores”, certifica Behs. O Uruguai foi derrotado pela Holanda por 3 a 2. O resultado da partida acabou sendo tratado de forma distinta pelos dois jornais (verificar anexo c). Em sua edição de 7 de julho, o Correio do Povo assinala na capa: “Final da Copa será europeia”. A foto publicada mostra dois jogadores holandeses comemorando a classificação. A crônica pós-jogo também privilegia o lado holandês. “Laranja Madura” é o título da matéria na página 28, com a linha de apoio: “Holanda vence o Uruguai por 3 a 2 e chega a terceira final de Copa do Mundo em busca do título inédito”. “Não seria fiel à tradição e às campanhas das duas seleções se o desfecho do encontro entre Holanda e Uruguai fosse outro que não o de ontem no estádio Green Point, na Cidade do Cabo”, salienta o primeiro parágrafo. Na sequência, o CP resume os melhores momentos do jogo: o primeiro gol da Holanda, o empate do Uruguai, outros dois gols dos holandeses no segundo tempo e o tento uruguaio, nos minutos finais, que fechou o placar em 3 a 2 a favor dos europeus. Igualmente localizada na página 28, a pequena matéria “Torcedores orgulhosos” diz:

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A derrota para a Holanda não abalou o orgulho dos uruguaios pela Celeste. Em Porto Alegre, um grupo de torcedores se reuniu em um bar no Shopping Total para acompanhar a partida. Muitos vestidos com a camisa da seleção, outros portando bandeiras do Uruguai. (CORREIO DO POVO, 07/07/2010)

No mesmo dia, Zero Hora, por meio do Jornal da Copa, seguiu no sentido inverso do Correio do Povo, mantendo a postura de privilegiar a seleção uruguaia. “Dor e orgulho celeste” é a manchete que ocupa a capa do caderno. A palavra “celeste” está grifada em azul. A foto da capa mostra os olhos marejados de uma torcedora uruguaia com a bandeira do país desenhada no rosto. Abaixo, há um pequeno texto: “A torcedora da foto acima acreditou até o final na garra da seleção uruguaia diante da Holanda. O time foi superado por 3 a 2 e ficou fora da final. Nada, porém, que tire o brilho de uma grande campanha na Copa da África”. ZH procura explorar o sentimento dos uruguaios como fato jornalístico, algo que se constituiu na tônica da cobertura realizada sobre a Celeste. O enviado especial a Montevidéu Diogo Olivier, na matéria “A melhor das derrotas”, relata: Os uruguaios choraram juntos a derrota para a Holanda por 3 a 2 que sepultou o sonho de flanar numa final seis décadas depois do Maracanazo de 1950. Mas foi um choro diferente. Bonito. Orgulhoso. De afirmação nacional, por estar de novo no mapa do mundo pelos pés do futebol. O Uruguai está vivo. (ZERO HORA, 07/07/2010)

No decorrer do texto, Olivier detalha os principais lances do jogo. Entretanto, ele narra as ações sob a ótica dos torcedores que se reuniram na Plaza de la Independência para assistir ao duelo contra os holandeses. Pepe Muñoz tem sete anos. Foi para a praça com o rosto pintado de azulceleste e branco no colo do pai, Wilman, 38. No final do jogo, e mais ainda depois daqueles minutos de acréscimo dramáticos, a bola viajando na área da Holanda fazendo parecer que era possível o 3 a 2 virar 3 a 3, os dois desataram no choro mais lindo do universo. (ZERO HORA, 07/07/2010)

Olivier julga que, mesmo com a desclassificação, os torcedores se sentiam orgulhosos pela campanha do Uruguai. A estudante Natalie Guerra, 21 anos, por exemplo. No rosto, não apenas as cores da bandeira, mas uma obra de arte: boca em azul e raios de sol amarelos entrando pelos olhos. Foi da euforia no gol de empate de Forlán, no 1 a 1, às lágrimas quando ficou claro que o jogo ficaria mesmo no 3 a 2. Logo sorriu como o sol do seu rosto. (ZERO HORA, 07/07/2010).

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Na página 5 do suplemento, a matéria “Festa na Fronteira”, do enviado a Rivera Leandro Behs, também aborda o orgulho dos habitantes da fronteira com a equipe uruguaia. A foto do relato mostra diversos torcedores sorridentes, com a legenda: “Decepção deu lugar ao orgulho na Avenida Sarandi, em Rivera”. “Dezenas de torcedores uruguaios postaram-se nas esquinas da avenida dos free shops para sonhar. Aproveitavam que muitas lojas ficaram abertas para vender aos brasileiros e assistiram à decisão em grandes TVs de plasma”, recorda Behs. Assim como Olivier, Behs destaca o orgulho dos uruguaios com sua equipe. O repórter também observa que a rivalidade entre as seleções do Brasil e do Uruguai no futebol fez com que alguns brasileiros evitassem torcer pelo país vizinho. “Do lado brasileiro, os amigos Marco Nacardo, 19, e Gustavo Machado, 26, comemoravam discretamente a queda uruguaia”, exemplifica. Zero Hora prioriza a derrota do Uruguai em detrimento da vitória da Holanda, criando um cenário inverso ao do Correio do Povo. Nesta edição, as únicas referências à seleção holandesa em ZH estão em uma seção chamada “Holandesas”, no canto esquerdo da página 4, composta exclusivamente por notas sobre a média de idade dos jogadores do time, o fato da equipe ter se classificado para sua terceira final de Copa do Mundo e o aproveitamento de 100% no torneio.

4.5 DISPUTA DO TERCEIRO LUGAR

Após ser derrotado na semifinal, o Uruguai disputou o terceiro lugar da Copa Mundo 2010 com a Alemanha. O confronto ocorreu um dia antes da final do torneio, entre Espanha e Holanda. Neste momento, o noticiário sobre seleção uruguaia foi menor em relação aos jogos anteriores. Correio do Povo e Zero Hora passaram a destinar maior atenção à partida que definiria o campeão mundial. Quadro 8 – Títulos Uruguai x Alemanha

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Uruguai x Alemanha Correio do Povo

-

Zero Hora

10/7

Terceiro lugar em jogo (chamada de capa com foto) Pela honra ou a consolação (p.26) A nata da Copa (p.28)

A hora do cara (chamada de capa com foto) O jogo que ninguém queria jogar (p.3)

12/7

Emoção até o final (p.6 Caderno de Esportes) Forlán é eleito o melhor da Copa (p.20)

Na história das Copas (p.8) Alemanha repete 2006 (p.8)

Em sua edição de 10 de julho, o Correio do Povo dá a manchete: “Terceiro lugar em jogo”. A matéria da página 26, cujo título é “Pela honra ou a consolação”, constata que a disputa pela terceira colocação opunha “duas equipes com sentimentos completamente distintos. Enquanto o Uruguai está feliz por sua melhor campanha em 40 anos e é orgulho para toda a pequena nação sul-americana, a Alemanha entra em campo decepcionada, pois almejava chegar ao tetra”, informa. Na sequência, o texto apenas fala dos possíveis desfalques das duas equipes para o jogo. Dois registros fotográficos ilustram o espaço. À esquerda, está uma foto de um jogador alemão em um treinamento. À direita, encontra-se o uruguaio Suarez também em um treinamento, com a legenda: “Uruguaios terão o retorno do atacante Luis Suarez depois de cumprir suspensão”. Na página 28, a matéria “A nata da Copa” fala sobre os escolhidos pela Fifa, a organizadora da Copa, para concorrer ao prêmio de melhor da competição. Entre os indicados estava o uruguaio Diego Forlán, lembrado no texto do CP, assim como os outros nove postulantes. No espaço há uma foto de Forlán, acompanhada da legenda: “Diego Forlán brilhou com a celeste”. Mesmo tendo declarado preferência pelo Uruguai após a eliminação do Brasil, Zero Hora, em sua edição no dia do jogo, pouco repercutiu o enfrentamento entre alemães e uruguaios. A ampla cobertura com correspondentes em Montevidéu e na fronteira não se repetiu. Os indicados a melhor jogador da competição são o assunto da capa do Jornal da Copa. Sob o título “A hora do cara”, são mostradas fotos dos dez concorrentes ao prêmio, entre eles o uruguaio Forlán. A partida é abordada brevemente na página 8 com o título “O jogo que ninguém queria jogar”. Ao contrário do CP, que contrastou os sentimentos de alemães e uruguaios para o jogo, ZH diz que “Alemanha e Uruguai entram às 15h30min de hoje em campo para disputar um jogo sem entusiasmo”. O texto diz

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que “os times do Uruguai e da Alemanha tentam curar a ressaca e esquecer a frustração de não estar disputando o título” e relembra momentos marcantes das duas seleções no torneio. Os uruguaios perderam o jogo por 3 a 2 e, desta forma, finalizaram o Mundial na quarta colocação. O Correio do Povo, no dia 12 de julho, trata o jogo na página 6 do Caderno de Esportes com o seguinte título: “Emoção até o final”, acompanhado da linha de apoio: “Alemanha derrota o Uruguai por 3 a 2 e acaba na terceira colocação. Klose não jogou e assim não se igualou a Ronaldo”, referindo-se ao fato do jogador alemão não ter superado o brasileiro Ronaldo Nazário como maior artilheiro da história das Copas do Mundo. A foto utilizada mostra dois alemães comemorando gol e um jogador uruguaio em segundo plano. “Khedira (à direita, com Mertesacker) marcou o gol que valeu à Alemanha a vitória sobre o Uruguai e o terceiro lugar na Copa do Mundo”, registra a legenda. “A decisão do terceiro lugar, sábado, no estádio Nelson Mandela Bay, em Port Elizabeth, manteve a tradição de muito gols. Foram cinco, com direito a duas viradas. E a Alemanha acabou vencendo o Uruguai por 3 a 2”, diz o parágrafo de abertura. Na sequência, a matéria apenas faz um relato dos melhores momentos do jogo. Na página 20 do CP, a matéria “Forlán é eleito o melhor da Copa” está acompanhada da linha de apoio “Uruguaio superou os favoritos Villa e Sneijder”. O texto informa que “o uruguaio Diego Forlán foi eleito o melhor jogador da Copa do Mundo da África do Sul. O camisa 10 da Celeste, autor de cinco gols no Mundial, faturou a Bola de Ouro, com 23,4% dos votos. Por fim, a matéria elogia a escolha do uruguaio como principal jogador do torneio. “Forlán foi o grande responsável pela boa campanha do Uruguai na África do Sul. Além dos gols, ele comandou o time dentro de campo e representou a garra uruguaia como poucos”. A reportagem é ilustrada com um registro fotográfico de Forlán, acompanhado da legenda: “Atacante foi o principal nome da seleção do Uruguai, que ficou na quarta colocação”. Zero Hora deste dia, assim como o Correio do Povo, prioriza a vitória da Espanha sobre a Holanda, que resultou no primeiro título mundial dos espanhóis. Com o término da Copa, o impresso publica uma matéria, na página 8 do Jornal da Copa, intitulada “Na história das Copas”. O texto é uma espécie de apanhado sobre os principais jogadores da competição e explora o fato de Diego Forlán ter sido eleito o Bola de Ouro, o melhor atleta, do campeonato.

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Incontestável depois do golaço na decisão do terceiro lugar, sábado, o uruguaio Diego Forlán foi escolhido o melhor jogador da Copa da África do Sul. O craque – que também beliscou a artilharia do Mundial, com cinco gols – recebeu 23,4% dos votos na pesquisa feita entre os jornalistas que cobriram a Copa. (ZERO HORA, 07/07/2010)

Abaixo, o jogo entre alemães e uruguaios é tratado de forma reduzida. “Alemanha repete 2006”, indica o título. Ao contrário de jogos anteriores, ZH preferiu focar a vitória da Alemanha em detrimento da derrota do Uruguai. “A Alemanha deixou de lado a frustração pela derrota na semifinal e derrotou o Uruguai por 3 a 2 de virada (com direito a bola na trave de Forlán, no último minuto), em um duelo vistoso em Port Elizabeth”, apenas informa o impresso do Grupo RBS.

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5 CONCLUSÃO

Em 2010, Correio do Povo (CP) e Zero Hora (ZH) concederam amplo destaque à cobertura da Copa do Mundo de futebol, evento ocorrido na África do Sul entre junho e julho. Os jornais priorizaram, à sua maneira, a seleção brasileira em suas páginas. Entretanto, após a eliminação do Brasil para a Holanda, nas quartas de final, constatam-se diferenças significativas nas notícias referentes ao evento nas duas publicações. De um modo geral, o CP manteve sua postura inicial, abordando o noticiário das seleções estrangeiras sem o mesmo entusiasmo em relação ao tratamento dispensado à equipe canarinho. Uma preferência contrária à de ZH, que optou por explorar no caderno Jornal da Copa os laços existentes entre Rio Grande do Sul e Uruguai, país que permaneceu na competição após a eliminação brasileira. Desta forma, o jornal do Grupo RBS adotou a seleção uruguaia como time de sua preferência para o restante do Mundial. Desde o início do estudo comparativo, as diferenças no enfoque já estavam identificadas, o que se procurou foi entender as razões das diversidades de abordagem e como isso se constituiu a partir de fato e contexto iguais. Foi possível constatar que a opção por caminhos distintos estava ligada a uma série de fatores, sendo encabeçada pelas diferentes linhas editoriais adotadas por Correio do Povo e Zero Hora. Como relata Felippi (2006 e 2007), ZH assume a estratégia do localismo para atingir seu público leitor. Consequentemente, os aspectos ligados ao Rio Grande do Sul ou que, de alguma forma, envolvam o estado possuem maior relevância para o impresso. O CP, por sua vez, também concede destaque aos acontecimentos ligados ao povo gaúcho, até por ser um jornal que circula, majoritariamente, no estado. O jornal do Grupo Record, entretanto, não recorre à valorização da figura gaúcha nos acontecimentos e nem utiliza isso como estratégia editorial, como ocorre com seu principal concorrente. A boa campanha que a seleção uruguaia realizava na competição, de certa forma, tinha relação com o Rio Grande do Sul. Historicamente, a proximidade geográfica com o Uruguai fomentou diversos hábitos e influenciou diretamente a criação da identidade gaúcha. Conforme manifesta Oliven (2006), as características do estado encontram maior afinidade com os vizinhos Argentina e Uruguai do que com o restante do Brasil. Além disso, no campo esportivo, a interação com os

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uruguaios foi crucial para o desenvolvimento do futebol no estado. As primeiras bolas a desembarcarem em solo gaúcho vieram pela fronteira com o Uruguai e jogadores nascidos na nação ao lado reforçaram equipes de Bagé e Porto Alegre a partir dos anos 1920, época em que as transferências internacionais no futebol eram raras. Mesmo diante deste contexto igual, as duas publicações trataram a campanha da seleção uruguaia, especialmente nas etapas decisivas do Mundial, de maneiras díspares. Durante a primeira fase da competição, os noticiários de CP e ZH sobre o Uruguai eram similares. A Celeste possuía espaço semelhante às outras seleções estrangeiras que disputavam o torneio. Entretanto, a partir das oitavas de final, o impresso do Grupo RBS redobrou a atenção aos jogos do país vizinho. Na fase seguinte, a publicação enviou o repórter Diogo Olivier a Montevidéu para noticiar como os uruguaios reagiam à surpreendente campanha de sua seleção de futebol. No jogo posterior, ocorrido no mesmo dia da eliminação brasileira da competição, Zero Hora se autodenominou “doble chapa” e enviou mais dois correspondentes ao Uruguai. Essa situação encontra relação com o perfil editorial de ZH, pois o periódico procurou explorar o ambiente na fronteira do Rio Grande do Sul com o Uruguai e também retratou como os gaúchos estavam reagindo ao êxito futebolístico da nação ao lado. O Correio do Povo não enviou correspondente ao Uruguai e pouco recorreu à condição fronteiriça entre as partes como critério jornalístico. Apenas uma vez foi noticiado o clima na fronteira entre Santana do Livramento e Rivera. Isso ocorreu após a classificação uruguaia para a semifinal do Mundial. Todavia, ao contrário do seu concorrente, o jornal preferiu não investir na realização de uma cobertura no local dos acontecimentos. Este é outro elemento crucial para verificar por que os dois jornais tomaram caminhos diferentes. A observação do repórter no local do fato contribui significativamente para a realização de pautas diferenciadas no jornalismo esportivo, como defende Coelho (2004). Segundo o editor de esportes do CP, Hiltor Mombach, ao longo da Copa do Mundo de 2010, a maioria das matérias sobre os selecionados estrangeiros era oriunda de agências de notícias. Esse material, porém, passava por um processo de edição dentro da redação do impresso do Grupo Record antes de ser publicado. Por isso, o tratamento dado à Celeste pelo jornal se resumiu, basicamente, aos acontecimentos dentro de campo. As reportagens envolvendo a equipe uruguaia

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tratavam das expectativas para o jogo e relatavam os principais lances ocorridos nas partidas. Por se tratarem de materiais pré-prontos, bastando apenas uma filtragem por parte dos editores antes da publicação, as reportagens de agências são mais difíceis de serem moldadas. Elas já vêm com um enfoque e um texto pré-estabelecidos. O resultado é diferente de quando o repórter desenvolve uma pauta, realiza a apuração e redige da maneira que achar mais adequada. Isso pode ser verificado nos conteúdos produzidos por Diogo Olivier para o Jornal da Copa, de ZH. Em sua estada em Montevidéu, Olivier tentou retratar ao leitor o clima de um país que há 40 anos não chegava tão longe na Copa do Mundo. Mas, para isso, ele recorreu a conversas com os comerciantes, a uma entrevista com o escritor Eduardo Galeano e, principalmente, ao processo de observação. Ele narrou como o país estava tomado por bandeiras e quais as reações e os gestos dos torcedores durante a partida contra a Holanda, por exemplo. Os jogos em si, com seus placares e melhores momentos, foram tratados por Zero Hora, mas sem tanto destaque. Conforme atestavam os depoimentos dos uruguaios e, inclusive, dos brasileiros entrevistados para as reportagens, o que importava para a publicação era o fenômeno de “ressurgimento de um país”. País este que possui uma série de laços com o Rio Grande do Sul. Além disso, é válido ressaltar que, por possuir um caderno desenvolvido exclusivamente para a competição, houve facilidade para ZH se intitular “doble chapa” e realizar uma cobertura ampla da seleção uruguaia. De acordo com Olivier, o suplemento sempre é utilizado para experimentar. Neste sentido, a adoção do Uruguai como um segundo time pode ser considerada uma experimentação. Olivier enfatiza que, após a eliminação do Brasil, Zero Hora quis apostar em um diferencial em relação aos demais jornais gaúchos e de outras regiões brasileiras. O diferencial encontrado foi priorizar a Celeste em detrimento dos demais times que permaneceram no torneio. O veículo do Grupo RBS também recorreu a essa postura por uma questão mercadológica, assim como ocorre com a estratégia do localismo. A intenção era expandir o foco no time do Uruguai para manter aquecido o interesse dos gaúchos pela Copa, após a eliminação do Brasil, e também estreitar as relações com os leitores da fronteira. Comparando com os conteúdos habitualmente publicados em suas páginas esportivas, o Correio do Povo pouco alterou sua editoria em função da Copa do

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Mundo. As notícias sobre o evento eram publicadas na editoria de esportes, ao lado de matérias sobre Grêmio, Internacional e outras modalidades esportivas. As principais modificações foram o aumento do espaço para a coluna de opinião escrita por Mombach e o incremento no número de páginas da seção. Ademais, o jornal, desde o início, procurou privilegiar as notícias envolvendo a seleção brasileira. A presença do noticiário da equipe do Brasil permaneceu forte até mesmo após a desclassificação do país do torneio. Isso igualmente ocorreu com Zero Hora, mas em menor proporção, já que ZH aproveitou um cenário no qual o Brasil estava fora da disputa para apoiar o Uruguai. A realização desse estudo permitiu, a este autor, o entendimento de que as diferenças nas coberturas são saudáveis para o jornalismo. Em uma época marcada pela instantaneidade e por fórmulas pré-estabelecidas, a quebra dos padrões representa uma alternativa interessante à atividade jornalística. Assumir a condição de torcedor de uma equipe talvez não seja o caminho mais adequado a ser seguido, pois pode limitar a abordagem sobre a mesma. De qualquer forma, o fato dos jornais Correio do Povo e Zero Hora terem optado por caminhos alternativos forneceu opções ao leitor, algo cada vez mais raro, especialmente no jornalismo esportivo.

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