Corações de hot-dog & Out-door: marginálias de leitura

May 30, 2017 | Autor: Ibriela Sevilla | Categoria: Poetry
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Corações de Hot-Dog & Out-Door: marginálias de leitura
Ibriela Bianca Berlanda Sevilla[1]
Universidade Federal de Santa Catarina
[email protected]

Entre 1974 e 1981 o poeta Roberto Piva, escreve vários poemas esparsos
e os organiza em uma edição que dá o título de Corações de hot-dog. Já
havia publicado cinco livros, o último, 20 poemas com Brócoli, fora lançado
pela editora de Massao Ohno naquele ano de 1981. O Corações foi organizado
no ano seguinte, e o "Prefácio-Manifesto" intitulado "Dói mas você goza"
escrito no mesmo dia em que, no Rio de Janeiro ocorria a performance "Pelo
strip-tease da arte" do coletivo Gang lançando o Movimento de Arte Pornô;
na mesma data comemorava-se também os 60 anos da Semana de Arte Moderna, o
dia 13 de fevereiro de 1982. Embora Piva não tivesse participado do
Movimento de Arte Pornô, seu livro inédito guardado no acervo do Instituto
Moreira Salles do Rio de Janeiro, compartilha de certa forma, das ideias de
embate contra a ditadura e a moralidade religiosa, levantadas como bandeira
pelo grupo de Eduardo Kac.
Apresento aqui uma breve leitura deste livro inédito de Piva e de um
segundo sobre o qual há pouquíssima informação, intitulado Out-Door.


1. Cada poema do inédito Corações de hot-dog é a história de um pivete
iluminado, de um garoto lambuzado, um ladrãozinho, de uma pequena realidade
transgressora que está para além da moral como a conhecemos. São pequenos
organismos que pulsam no ritmo de uma linguagem primordial, na tentativa de
transcender o idioma[2], ou ainda transcender o texto. Nos termos de Julia
Kristeva seria como "ultrapassar a noção de texto (...) para introduzir, em
seu lugar, a noção de experiência"[3]. São poemas que celebram a
adolescência, como pudemos ler principalmente no Coxas (1979) e no 20
poemas com brócoli (1981). Para Piva, o amor de um adolescente é comparável
ao amor dos deuses, é Ganimedes, a louca paixão de Zeus.
Os "hot-dogs" desses corações estão recheados de convulsões
bataillanas: de prazer, de morte; a urbanidade e toda sua sujeira; os
portos, os peixes, âncoras, cordas, gaivotas querendo seu resto de pesca,
feiras e camelôs, uma infinidade de cores, movimentos e odores que estas
imagens suscitam. Sanduíches recheados de agoras, de pequenas felicidades,
de tradição e folclore.
O Corações de hot-dog é fundamentalmente um livro sobre o êxtase. Leo
Spitzer, em seus Três poemas sobre o êxtase[4], argumenta a partir da
análise dos poemas de John Donne, San Juan de la Cruz e Richard Wagner que
o alcance do êxtase tem está relacionado com um deslocamento da alma em
busca do sagrado que está fora do corpo e da consciência do indivíduo,
embora a experiência passe necessariamente pelo corpo. Nos três poemas,
segundo a leitura de Spitzer, vemos a operação de um deslocamento do corpo
e da alma, o que seria a afirmação da descontinuidade, nos termos de
Bataille. Em suma, o êxtase, para Spitzer, é primeiramente intelectualizado
e religioso, e sua consequência é elevar a consciência, ou a inconsciência
(já que no ínfimo momento do assombro religioso o indivíduo perde a razão)
para uma região onde o corpo não mais domina e a percepção de uma verdade
universal não é mais balizada pela imperfeição dos sentidos.
A ideia de pensar a imperfeição do homem nos foi lentamente incutida
desde raízes platônicas, até seus desdobramentos cartesianos e católicos; o
mundo ideal não seria este onde habitamos, e para os ascetas, será aquele
para onde iremos somente após a morte. A partir dessas concepções o maior
defeito do homem consiste, então, em não ser Deus. A condição de ser uma
criatura frente a seu criador, ou seja, sua contingência determina que ele
seja um ser na "perpétua possibilidade de queda ou salvação", como afirma
Octavio Paz[5]. Todo este problema da imperfeição parece ter início na
divisão entre o Homem e Deus, ou em outras palavras, entre o homem e o
sagrado. Os momentos de êxtase, tanto erótico quanto religioso, nas
acepções de Georges Bataille, serviriam então para religar, reaproximar o
homem ao sagrado através da materialidade do corpo, no momento do orgasmo
ou na morte – embora estejam intimamente ligadas quando Bataille se refere
ao orgasmo como la petite mort.
Para Santa Teresa d'Ávila parecia não haver a possibilidade de
redenção, ela estava simultaneamente em queda e salvação. Sentiu seu corpo
queimar atravessado pelo dardo em chamas de algum anjo tão elevado que
abrasava[6] e, ao mesmo tempo, sentia-se levitar um palmo do chão ao tocar
o divino, como nos conta Bataille.
Nesta paixão elementarmente material & sagrada insuflada de vida & de
morte, no êxtase místico figurado por Bernini em sua escultura A
transverberação de Santa Teresa (presente na igreja de Santa Maria da
Vitória), há semelhanças e intercâmbios entre os sistemas de efusão místico
e erótico. Na tentativa de reaproximação com o sagrado ocorre o êxtase
místico, que para Georges Bataille está muito próximo ao erotismo. Bataille
argumenta que somente a partir do conhecimento experimental destas duas
emoções distintas é possível distingui-las com clareza. "Se quisermos
determinar o ponto em que se ilumina a relação entre o erotismo e a
espiritualidade mística, devemos voltar-nos à visão interior, aquela que
praticamente só parte dos religiosos"[7].
No êxtase místico de Santa Teresa há uma revelação da condição humana
original em que sua imperfeição constituída de uma falta essencial (essa de
não ser Deus) acessa o pleno ser mediante a consagração, ou seja, mediante
o acesso ao sagrado. Extrapolando esta regra que reside entre os muros da
religião e funda o cristianismo, esta da imperfeição e incompletude do
homem frente ao seu deus, o livro de Roberto Piva nos convida a perceber o
êxtase como um outro tipo de revelação: a revelação poética. A poesia de
Piva sempre toca nesta questão essencial da vida. Não só toca como espreme,
dobra, inverte.
Octavio Paz explica que a experiência poética é a revelação de nossa
condição original e sempre "desemboca numa criação: a de nós mesmos". Ele
diz que o
(...) homem é impelido a nomear e criar o ser. Esta é sua condição:
poder ser. E nisso consiste o poder da sua condição. Em suma, nossa
condição original não é só carência nem tampouco abundancia, mas
possibilidade.[8]


Nesse sentido o poeta cria a ele mesmo quando revela o homem; quando
cria o homem através da imagem poética ele revela sua condição paradoxal,
seu estado primordial de solidão frente a sua "outridade". Somente através
da poesia é que se dá a possibilidade de uma totalidade: é "vida e morte
num único instante de incandescência."[9]
Pela possibilidade de criar da poesia, Nietzsche vai encontrar na
arte a única alternativa possível para libertar o homem do que ele chama a
"moral de rebanho" fundada nos princípios de valor do cristianismo. A
poesia opera no campo da ficção "na qual precisamente a mentira se
santifica" e a "vontade de ilusão (...) opõe-se bem mais radicalmente do
que a ciência ao ideal ascético"[10]. Diferentemente de Bataille, Nietzsche
não estava interessado em explorar a ligação do sagrado com o homem através
do corpo. Ele traz o corpo para sua filosofia para pensar o instinto animal
que foi por muito tempo obliterado em favor de uma vida em comunidade
delimitada pelas instituições.
Recorro a estas concepções do êxtase e do sagrado para apontar que o
que pode ser lido como êxtase em Corações de hot-dog do poeta Roberto Piva
não deixa de ser uma conexão com a esfera sagrada e tampouco deixa de ser
uma volta à condição instintiva do homem que não pode ser aprisionado; a
ligação do homem ao sagrado/instinto, nesta poesia, se dá através do corpo
e vai ao encontro das divindades pagãs e entidades espirituais das
religiões afro-brasileiras que são tão divinas e sagradas quanto os garotos
em seus múltiplos epítetos e os animais em seus habitat mais selvagens. Ao
mesmo tempo em que gera esta amálgama de sensações contraditórias, mas
complementares, os poemas do livro inédito trazem, de uma maneira geral, a
questão da violência, da dor e do erotismo. O erotismo para Bataille está
intimamente relacionado com a morte por ser uma força destruidora; ele
afirma que "toda a ação erótica tem por princípio uma destruição do ser" e
explica: "essencialmente, o domínio do erotismo é o domínio da violência, o
domínio da violação"[11].
Compreendo assim, que o Corações de hot-dog está fundado numa linguagem
de navalhas, violadora, e predominantemente fálica, estampada na figura de
Priapo – deus que o poeta elege como guia da obra. Aqui a dor é também
caminho para o prazer e para o êxtase. Piva compreende em seu livro este
raro e profundo entendimento sintetizado nos versos do livro Ciclones
(2008) "(...) basta de poesia/ou religião que não conduza ao êxtase
(...)"[12].
Na versão corrigida e ampliada que monta o boneco para a edição do
Corações de hot-dog, pode-se ler desde o "Prefácio-Manifesto" o aviso: "Dói
mas você goza". Como uma primeira regra que o leitor deve ter em mente ao
entrar neste jogo com "brinquedos loucos de uma Dada-Odisséia", conforme
define o autor seus próprios poemas. Para atingir o prazer é exigido do
leitor que entre com os sentidos nus, abertos para os ritmos, pronto para
ser surpreendido por versos do tipo: "(...) & Pedrinho ficando vidrado num
poeta/ bem depravado que exibia o cacete diante/ de uma floricultura onde
um cão esquimó/ uma codorna & um ratão do banhado repartiam/ geleias
rotativas."[13] , ou "neste bar onde cus &/ bucetas imploram/ o caralho
celestial do Deus Puta"[14], e "garoto prostituto/da rua São Luís/ fode
fode/ com o mastro/do navio/ancorado/na tua bunda loba"[15], e assim por
diante.
A eletricidade aparece como mais um ativador dos sentidos corporais,
como podemos ler nos versos "A viagem/elétrica/de Dante"[16], "eletrificar
as cidades os caramujos santos como jovens Budas de cinza"[17],
"canibalismo elétrico na av. Tiradentes"[18], "corrimão elétrico nas
veias"[19], entre outros versos. O livro extrapola a barreira da
intimidade, tornando públicas as fantasias sexuais mais vorazes, mais
tórridas e extremas, protagonizadas por garotos, jovens que parecem ainda
carregar qualquer coisa de ingenuidade, uma inocência animal, aquela
malícia que vemos nos símios. Estas descargas elétricas estão associadas
com as retorcidas visões urbanas e remetem também à verticalidade do raio,
que como a do falo, despende uma imensa quantidade de energia. Sexo e
natureza se fundem no corpo do poema.
No poema que dá nome ao livro "Corações de hot-dog" o amor é luz, o sol
é corpo "potência da potência" e ali os corpos enamorados se fundem à
paisagem. Transcrevo o poema:






CORAÇÕES DE HOT-DOG
Para "fu di tal volo
Anselmo Augusto Varoli che nol seguiterìa língua né
penna"
"estás aqui desde Paradiso, canto VI
o princípio" Dante


ônibus
viagem de Dante no Paraíso da Paixão
AMOR = LUZ
Guararema Mogi São Paulo
Torsos olhos nos olhos
vigas estreladas
montanhas com coração dentro
mártir é o rabo da mula
fogo no rosto do meu amor
Sol entre nuvens cabeludas
pés inchados
potência da potência
olhos de novo
Osiris crucificado em
seus olhos?
brejos
vento janela cortinas explodindo
boca sem sumo
órgão em sintonia
forno
forno
ônibus um forno
meu olhar no teu no meu
no centro rodopiante
de tua língua louca
fogo no rosto do meu amor
Paradiso Now
pés inchados
botas de couro da Lua
meus pés nos teus nos teus olhos
nos meus pés nos olhos
flocos de pura paixão
tua mão no meu braço &
nuvem na minha boca
sopro olho suplicante
tua boca
olho
na minha boca
qualquer coisa de Valéry na
tua conversa
o deus brinca nos
teus ombros de sal
vertigens
ondas do mar amado &
sem nome
aqui mesmo se acomoda o
princípio
rojões
ônibus que dança no
canto da orelha
o dragão é sonoro
o olho é sonoro
eu posso dançar na tua boca de
trevas rosadas
quaresmeiras
trópico no suor da mão
vidros
satélites
Blake
sim, finalmente o crepúsculo
amado de Blake
flor espiritual no canal cósmico
só você
só você
desenhar um pássaro de água no seu rosto
príncipe
Rei do Universo
pele sem nada dentro
você ficou na minha pele
EU QUERO VOCÊ AGORA
vento
ondas de formigas marinhas
ilhas de doces
marinhos
FODER
até o Sol
derramar suas lágrimas
olho castanho de onde nasce
todas as coisas
você é azul / núcleo generoso
seu olho é um céu
constelado
com minha língua dentro




Ônibus-Cogumelo/Guararema-Mogi-São Paulo
1981[20]



Guardadas as proporções da narrativa, há neste poema, como em "O ânus
Solar", de Bataille, uma erotização da natureza na ambiência do poema. Nele
o poeta compõe montanhas com corações pulsantes dentro, o mar é "amado &
sem nome", o crepúsculo é uma "flor espiritual no canal cósmico" e os
corpos dos amantes estão confundidos e amalgamados do início ao fim do
poema. É um poema do êxtase em que o arrebatamento da excitação não leva
para algum lugar exterior ou elevado, mas vai, num movimento agudo, de
volta para o corpo somente: "pele sem nada dentro", diz o verso 69. É a
explosão apaixonada de dois corpos que se desejam loucamente e ardem com o
que parece ser a impossibilidade do contato sexual naquele contexto, pois
estão dentro de um ônibus. Entretanto, a trajetória ascendente do desejo
potencializado pelo ato transgressivo de levar a cabo a transa dentro do
ônibus, acaba por dissipar a imagem do lugar onde os amantes estão
inseridos e compõe, na imagem do puro prazer, o erotismo dos corpos & o
erotismo sagrado, como podemos ler nos últimos versos: "você é azul /
núcleo generoso/seu olho é o céu/constelado/com minha língua dentro".
Alexandrian, no prefácio de O Ânus Solar explica que Bataille
"proclamava a necessidade do êxtase e do amor extático como desprezo pela
realidade imediata"[21]. Piva opera num campo similar ao de Bataille na
medida em que explora o poder do sexo em favor da poesia. Temos aqui neste
poema a potencialização da imagem do olho – olhos que sentem tão
intensamente quando enxergam: "meus pés nos teus nos teus olhos/ nos meus
pés nos olhos/ flocos de pura paixão" (...) "sopro olho suplicante", e ao
final do poema, "olho castanho de onde nasce/todas as coisas"; notadamente
uma "história do olho" – obviamente referindo-se aqui ao ânus como parte do
corpo privilegiada para o prazer – um fim e um início de tudo.
Seus poemas corrosivos e intensamente homoeróticos abrem uma porta de
entrada para uma dimensão em que a vida não é regida pelo calendário
cristão, ou pelo tempo profano do trabalho, mas por um tempo sagrado onde a
dança, o jogo e o sexo revelam um estado selvagem da poesia. Talvez uma
força animal, primitiva, uma animalidade acessada através do delírio dos
sentidos e expressada nas várias figurações dos garotos, que são, no
Corações de Hot-Dog sua imagem privilegiada.

2. O datiloscrito intitulado Out-Door, encontrado nos últimos minutos
do último dia de minhas pesquisas no IMS-RJ, revela, não uma questão que se
tornou filosófica como a do erotismo, mas um trabalho fundamentalmente
voltado à palavra. O livro é composto por 36 poemas, escritos provavelmente
nos anos 80, pois embora não estejam datados no datiloscrito, pudemos ler
alguns deles publicados no Ciclones (1997). Os poemas do inédito são
curtos, repletos de aliterações e versos em italiano, francês e espanhol; a
onomatopeia "Pongo Dombo" que lemos como um título na página 24 do livro
parece remeter ao som do tambor, instrumento muito presente em toda obra de
Piva e que dá o ritmo a seus poemas. Um ritmo fundamental, o ritmo do
coração.


PONGO DOMBO
MALA NA MÃO & ASAS PRETAS



Loose desire!
We naked cry to you –
"Do what you please"
William carlos Williams


Na trilha deste ritmo de origem, Piva parece experimentar muito com a
respiração neste livro. Os versos curtos são em sua maioria incompletos; a
cesura no fim faz com que sua unidade sintática só termine no verso
posterior, na metade do verso ou com a adição de uma palavra somente.
Assim, como num encadeamento, ele constrói versos de leitura longa em
grafia curta e versos curtos que de repente cortam o fôlego em poemas que
parecem terminar antes de chegar ao fim. O ritmo destes poemas está longe
de ser constante, é como se o corpo fosse desordenadamente arrebatado por
instantes de excitação e calma.
Charles Olson em seu manifesto a favor do verso "projetivo", diz que
a respiração deve ser entendida e utilizada no trabalho poético como uma
forma distinta de ouvir. Para ele e seus seguidores da Black Mountain
College, a criação poética estava ligada mais à fisiologia e à fala
cotidiana do que ao conjunto de regras que determinavam a métrica poética.
Nos anos 1950, o manifesto vinha combater as formas fixas da poesia,
propondo a abertura da composição em que "a forma não é mais do que uma
extensão do conteúdo"[22], determina Olson. O que mais nos interessa nesta
teoria é a consideração da fisiologia para o trabalho do poeta. Ainda que
os poemas de Out-Door sejam curtos, rápidos como slogans, o corpo está
presente através da respiração.
Vários dos poemas que lemos neste livro inédito são familiares por
terem sido publicados entre as páginas do Ciclones. Reunidos sob outro
título e apresentando outro tipo de diagramação, estes poemas têm no Out-
Door toda uma conotação diferente. A título de comparação transcrevo os
poemas publicados no Ciclones:


Hic habitat felicitas


fastos & nefastos
deus fascinus
na soleira da porta
aponta
a glande rosada
pro seu olho xereta
Ilha Comprida, 83


signos selos & sigilos
serpente solar serpenteando
a seta
solitudes
solo de sax santificando
o Satori
Juquehy, 83


cem planetas? cem pupilas?
simpatia das coisas distantes
o nada árido das areias
Praia do Guaiúba, 82


Heidegger
quando escreveu sobre Trakl
era um dia assim
com este vento devasso
entre o crepúsculo
& o renascimento
Praia do Guaiúba, 82




Meio-dia dourado
acaricia garotos & pássaros
luz de sonho
partindo o Mundo
no centro do coração
lâmina da Eternidade
Ilha Comprida, 86[23]

Estes poemas reunidos sob o título "Hic habitat felicitas"[24], que
aliás tem toda uma conotação associada à magia da potência sexual como
potência de vida e de abundância, vemos que nesse conjunto de poemas há
algo de solar e árido, imagens quentes e douradas que colocam o sol numa
relação de equivalência a do falo. Já no Out-Door onde lemos os mesmos dois
primeiro poemas sob o mesmo título, seguidos de mais sete poemas, todos com
entre 7 e 10 versos cada, não há relação entre os poemas, não é possível
vislumbrar uma imagem capaz de reuni-los, nem sequer é possível afirmar com
clareza que todos eles estão reunidos sob um mesmo título; estão colocados
como que numa espécie de montagem surrealista em que cada poema é um flash,
algo que possa ser lido com rapidez; não compõem propriamente uma imagem
poética, são como abstrações que requerem muito da imaginação do leitor
para atravessar sua barreira sintética.
Para adentrar um pouco mais na linguagem retorcida da poética de Piva
é preciso seguir suas pistas. No poema da página 11, o primeiro verso
"Roberto Piva parolíbero" indica a derivação libertária de suas palavras
além de contribuir para a composição "autobiográfica" de um personagem, por
assim dizer:

Roberto Piva parolíbero
di nuove potenze
zagaias de Almada Negreiros
plano-sequência del cavalier
Marino
que viu
o garoto depredar
l'auree fiammelle

Parolíbero é um estilo de linguagem identificado na comunicação pós-
moderna como "um estilo tipicamente veloz, audacioso, simultaneísta e
sintético" segundo De Maria[25]. Remete imediatamente à imaginação sem fios
e às palavras em liberdade dos manifestos de Marinetti, que propunha romper
"a cadeia sintática [de modo que] as relações passavam a se fazer através
da analogia", como explica Mendonça Teles.[26] Constatamos em sua
biblioteca pessoal que tanto a vanguarda italiana como seus poetas
tradicionais foram leituras apaixonadas de Piva. A partir dessas e outras
tantas referências sem dogma, ele compõe o Out-Door como uma grande tela
por onde passam imagens aéreas, infladas de suavidade, formando um filme
inimaginável e simultâneo, que é mais musical do que visual.
Obviamente há muito mais a ler neste livro enigmático, de poemas
herméticos, sem apresentação alguma, prefácio ou posfácio. O que podemos
afirmar com certeza é que como em todos seus livros, Piva imprime aqui
também sua voz provocadora de estripulias.



Referências Bibliográficas
Bataille, Georges . O Anus Solar; trad. Anibal Fernandes. Lisboa: Hiena
Editora, 1985.

Bataille, Georges. El Erotismo; trad. Antoni Vicens e Marie Paule Sarzin.
Buenos Aires: Tusquets Editores, 2009.

____________. História do olho; trad. Eliane Robert Moraes. São Paulo:
Cosac Naify, 2003

D'Ávila, Santa Tereza. Escritos de Tereza de Ávila; trad. Adail Ubirajara
Sobral et al. São Paulo: Edições Loyola, 2001.

Derrida, Jaques. Mal de arquivo: uma impressão freudiana; trad. Claudia de
Moraes Rego. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.

De Maria, Luciano (org). Teoria e invenzione futurista. Milano: Arnoldo
Mondadori Editore, 2005.

Kristeva, Julia. Senso e contra-senso da revolta – Poderes e limites da
psicanálise I; trad. Ana Maria Scherer. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.

Mendonça Teles, Gilberto. Vanguarda europeia e modernismo brasileiro.
Petrópolis: Vozes, 1976.

Nietzsche, Friedrich Wilhelm. Genealogia da moral: uma polemica; trad.
Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

_______________________. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do
futuro; trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia da Letras, 2005.

Olson, Charles. Projective Verse: projectile, percussive, prospective vs.
The NON-projective. 1950. Disponível em:
http://writing.upenn.edu/~taransky/Projective_Verse.pdf

Paz, Octavio. O Arco e a Lira, trad. Ari Roitman e Paulina Wacht. São
Paulo: Cosac Naify, 2010.

__________. A dupla chama: amor e erotismo; trad. Wladir Dupont. São Paulo:
Siciliano, 1994.

Piva, Roberto. Corações de Hot-Dog. Rio de Janeiro: Instituto Moreira
Salles, Inédito.

___________. Estranhos sinais de Saturno. São Paulo: Globo, 2008.

___________. Out-Door. Rio de Janeiro: Instituto Moreira Salles, Inédito.

Spitzer, Leo. Três poemas sobre o êxtase: John Donne, San Juan De La Cruz,
Richard Wagner; trad. Samuel Titan Jr. et al. São Paulo: Cosac & Naify,
2003.

-----------------------
[1] Doutora em Teoria Literária pela Universidade Federal de Santa
Catarina. Pesquisadora da obra poética de Roberto Piva, tendo publicado,
entre outros, o ensaio intitulado A não-obra de Roberto Piva: um olhar
sobre o arquivo no Boletim de Pesquisa Nelic, v. 12, p. 99-112, 2013.
[2] Refiro-me às ideias de Octavio Paz, que em O Arco e a Lira, defende a
ideia de que "a linguagem é poesia em estado natural" e que a "diferença
entre o poema e essas expressões poéticas [é que o primeiro] é uma
tentativa de transcender o idioma; as expressões poéticas, por sua vez,
vivem no mesmo nível da fala e são o resultado do vaivém da palavras na
boca dos homens." In Paz. O Arco e a Lira, p. 43.
[3] Kristeva. Senso e contra-senso da revolta – Poderes e limites da
psicanálise I, 2000, p. 24.
[4] Spitzer. Três poemas sobre o êxtase, 2003.
[5] Paz. O Arco e a Lira, p.154.
[6] "O Senhor quis que eu o visse assim: não era grande, mas pequeno, e
muito formoso, com um rosto tão resplandecente que parecia um dos anjos
muito elevados que se abrasam. Deve ser dos que chamam querubins, já que
não me dizem os nomes, mas bem vejo que no céu há tanta diferença entre os
anjos que eu não saberia distinguir. Vi que trazia nas mãos um comprido
dardo de ouro, em cuja ponta de ferro julguei que havia um pouco de fogo.
Eu tinha a impressão de que ele me perfurava o coração com o dardo algumas
vezes, atingindo-me as entranhas. Quando o tirava, parecia-me que as
entranhas eram retiradas, e eu ficava toda abrasada num imenso amor de
Deus. A dor era tão grande que eu soltava gemidos, e era tão excessiva a
suavidade produzida por essa dor imensa que a alma não desejava que tivesse
fim nem se contentava senão com a presença de Deus. Não se trata de dor
corporal; é espiritual, se bem que o corpo também participe, às vezes
muito. É um contato tão suave entre a alma e Deus que suplico à Sua bondade
que dê essa experiência a quem pensar que minto". In D'Avila. Escritos de
Tereza de Ávila, p. 194.
[7] Bataille. El erotismo, p.122 (tradução minha).
[8] Paz. O Arco e a Lira, p. 161
[9] Paz. O Arco e a Lira, p. 163
[10] Nietzsche. Genealogia da moral, p. 132
[11] Bataille. O Ânus Solar, p. 5
[12] Piva. "Joãozinho da Goméia" in Estranhos sinais de Saturno, p. 71.
[13] Piva. "Era uma vez..." in Corações de Hot-Dog, p. 8.
[14] Piva. "Volte do inferno Dante" in Corações de Hot-Dog, p. 16.
[15] Idem. "Corpo vestido de lilás & negro" in Corações de Hot-Dog, p. 21.
[16] Idem. "Um dia você chega lá" in Corações de Hot-Dog, p. 8.
[17] Idem. "Lord of the flies" in Corações de Hot-Dog, p. 12.
[18] Idem. "Garoto-Relâmpago" in Corações de Hot-Dog, p 32.
[19] Idem. "Cortem as Cabeças" in Corações de Hot-Dog, p. 38.
[20] O poema está transcrito obedecendo o máximo possível sua formatação
original.
[21] Bataille. O Anus Solar, p. 5
[22] Olson. Projective Verse, p. 2. Disponível em:
http://writing.upenn.edu/~taransky/Projective_Verse.pdf
[23] Piva. Estranhos Sinais de Saturno, pp. 46-51
[24] Emblema que pode ser lido do alto relevo de um falo encontrado na
parede de uma padaria em Pompéia. Vulgarmente pode ser entendido como "Aqui
mora a felicidade" mas "felicitas" (do latim felix) pode ser entendido
também como fertilidade, ou ainda "abençoado, frutífero, com sorte".
Portanto o falo para o povo de Pompéia era símbolo, além da fertilidade, da
abundância e da boa sorte.
[25] De Maria, Teoria e invenzione futurista, p. 208-209. (Tradução minha).

[26] Mendonça Teles. Vanguarda europeia e modernismo brasileiro, p. 80.
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