COREOGRAFIA/ESCRITA DE UMA INVESTIGAÇÃO INTERDISCIPLINAR SOBRE A FORMAÇÃO DE UMA PROFESSORA DE ARTE

July 31, 2017 | Autor: I. Janjii Rugani | Categoria: Arts Education, Arts and education
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ISAURA DA CUNHA SEPPI

COREOGRAFIA/ESCRITA DE UMA INVESTIGAÇÃO INTERDISCIPLINAR SOBRE A FORMAÇÃO DE UMA PROFESSORA DE ARTE

UNIVERSIDADE CIDADE DE SÃO PAULO SÃO PAULO 2002

ISAURA DA CUNHA SEPPI

COREOGRAFIA/ESCRITA DE UMA INVESTIGAÇÃO INTERDISCIPLINAR SOBRE A FORMAÇÃO DE UMA PROFESSORA DE ARTE

Dissertação apresentada, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Educação junto à Universidade Cidade de São Paulo - UNICID sob orientação da Profa. Dra. Ana Gracinda Queluz.

UNIVERSIDADE CIDADE DE SÃO PAULO SÃO PAULO 2002

Profa. Dra. Vani Kenski - USP

Profa. Dra. Ivani Fazenda :PUC-SP - UNICID

Profa Dra. Ana Gracinda Queluz - UNICID

COMISSÃO JULGADORA

Seppi, Isaura da Cunha Coreografia/escrita de uma investigação interdisciplinar sobre a formação de uma professora de arte / Isaura da Cunha Seppi. – São Paulo, 2002. 127 f. Dissertação (Mestrado) – Universidade Cidade de São Paulo. Orientação Professora Doutora Ana Gracinda Queluz. 1. Formação de professores. 2. Interdisciplinaridade. 3. Temporalidade. 4. Arte. 5. Dança. 6. Teatro. I. Título. CDD 370.71 CDU 371.13

Ao meu filho, razão da minha vida Minha alegria, meu orgulho... Aquele por quem eu faria tudo outra vez...

Agradecimentos Durante todo o tempo em que estive envolvida nesse projeto de pesquisa, sei que me ausentei do convívio de pessoas a mim muito caras que, tenho certeza, ressentiram-se com a minha ausência. Hoje, ao escrever esses agradecimentos percebo que, eles ressoam em mim como uma despedida desse processo, o final de uma jornada, quando posso retornar ao convívio das pessoas queridas, com as notícias dos mundos que visitei e revisitei. Por mais que o encontro com Mnemosine, possa ter me levado ao aparente esquecimento dos amigos e familiares, quero que saibam todos que, sempre em todos os momentos estiveram vivos e presentes nas lembranças e recordações que são a matéria prima desse trabalho. Devo dizer que trabalhar com a memória de tempos vividos significa também sentir muita saudade. A todos vocês que fazem parte da minha vida quero expressar a minha gratidão e também expressar minha saudade. Meu consolo foi descobrir que este sentimento me liga a todos. Todas as pessoas queridas, do meu passado e do meu presente, entendo agora, fazem parte de mim e da pessoa que me tornei. Obrigada minha mãe, pelo relato de seus sonhos coloridos que me ensinaram a escolher uma estética para minha vida. Agradeço ao meu pai (in memorian), eterna saudade, sempre presente em todas as minhas emoções e ações, por ter me ensinado o que é compaixão. Agradeço aos meus irmãos, cúmplices de toda vida. Agradeço aos mestres, sempre referência, Vicente Di Grado, Yolanda Amadei, Pedro Lopes Soares e Mieka Fukuda. Agradeço a preciosa amizade de Cida Giannecchini (in memorian), Suzana Buchmann, Myrna Nascimento, Nilton Flávio Knabenn, Marcos Moraes. Agradeço a Brenda Gottlieb, terapeuta com quem descobri, entre outras coisas importantes, o desejo de escrever. Agradeço a Célia Rovai, pela leitura sensível e correção do texto. Agradeço ao Ricardo Pedro e Inara, bibliotecários que ofereceram o inestimável suporte técnico para edição final da dissertação. Agradeço o apoio a essa pesquisa dos alunos, Cauê Chianca e Paulo Pellim Jr. nas questões relativas a informática, Internet e vídeo e, a companhia de Rodrigo Girardi durante a minha preparação corporal e, nas pesquisas sobre a prática da dança. Agradeço a parceria dos companheiros da Escola Nova Lourenço Castanho, nesses dezesseis anos de trabalho, em especial: Sylvinha Gouvea, Eda Canepa, Helo Porto Alegre, Alice Rezende Proença, Cecília Perez, Marília Azevedo Noronha, monitoras do ginásio e principalmente a equipe de professores de arte. Agradeço com saudade aos alunos de todos os tempos, por tudo o que me ensinaram, por trazerem a dimensão do futuro ao meu trabalho. Agradeço aos meus colegas do Curso de Mestrado. Agradeço a todos os que cuidaram de mim, principalmente Firdoos Jan (John) meu guia, protetor, companheiro e cúmplice, na travessia pelas perigosas estradas que levam ao coração da Índia, onde encontrei a fonte de inspiração para esse trabalho.

Nessa experiência solitária foi minha partner na coreografia/escrita, Ana Gracinda Queluz a quem quero, aqui, registrar um agradecimento especial. Minha orientadora que me presenteou com uma pedra para simbolizar o seu papel no meu trabalho, como a pedra no meu sapato. Pedra que sempre tive guardada dentro do sapatinho de cristal, posto que, Ana sempre será a fada madrinha, que me deu o traje para o grande baile, como no conto de fadas, mostrou-me como transformar uma abóbora numa carruagem, usando a magia do tempo criativo, aquela que sempre esteve lá, no lugar certo, ao piano, executando a música para o meu solo, com seus acordes fortes, impulsionado os saltos e giros, com variações suaves e lentas apoiando no momento da queda, com acordes fortes e vibrantes, me oferecendo o braço firme para a recuperação após os movimentos mais vertiginosos, cuidando para que a música da interdisciplinaridade fosse sempre audível ao coração. Aquela que sempre terei no coração com amor, admiração e gratidão. Ana me faz lembrar de outras madrinhas que tive, aquelas que sempre estiveram presentes nas horas difíceis. Tia Maria Ignez, minha Dinda, que me ensinou a conviver com a distância daqueles que amo, usando o recurso da correspondência e com a arte da escrita, encheu minha vida de cultura, sabedoria e boa companhia. Ecleide Furlanetto, a madrinha que me incentivou a fazer o mestrado e me conduziu carinhosamente nos primeiros passos desse caminho. Célia Hass, a madrinha que me recebeu no programa de mestrado, ajudou-me a encontrar o melhor de mim e a fazer as primeiras escolhas, pelas mãos de quem dei os primeiros passos na escrita desse trabalho. Ivani Fazenda e Vani Kesnki que formaram a banca e que, me homenagearam com a leitura sensível do meu texto, ampliando meu olhar sobre interdisciplinaridade e memória. A todos, meu amor e meu carinho.

“Se eu pudesse deixar algum presente a vocês, deixaria acesso ao sentimento de amar a vida dos seres humanos. A consciência de aprender tudo o que foi ensinado pelo tempo afora... Lembraria os erros que foram cometidos para que não mais se repetissem. A capacidade de escolher novos rumos. Deixaria para vocês, se pudesse, o respeito àquilo que é indispensável: Além do pão, o trabalho. Além do trabalho, a ação. E, quando tudo mais faltasse, um segredo: O de buscar no interior de si mesmo a resposta e a força para encontrar a saída."

Mahatma Gandhi

Sumário Resumo ................................................................................................... x Abstract ................................................................................................. xi 1 Introdução ............................................................................................ 1 2 Criando um recurso imagético, o sári, como forma referencial ............. 6 3 Revelando o método da coreografia /escrita. ..................................... 22 4 Ato I: infância .................................................................................... 35 5 Ato II: adolescência ............................................................................ 44 6 Ato III: vida adulta .............................................................................. 69 6.1 Cena1: bacharelado ......................................................................... 73 6.2 Cena 2: as licenciaturas .................................................................... 82 7 Ato IV: a prática docente ................................................................... 87 8 Cena final: os grupos de pesquisa ..................................................... 115 9 Considerações finais: apresentação/estréia ...................................... 119 Referências ......................................................................................... 129 Anexos ................................................................................................ 135 ANEXO 1 .............................................................................................. 136 ANEXO 2 .............................................................................................. 138 ANEXO 3 .............................................................................................. 139

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Resumo Esse trabalho é uma investigação sobre meu processo de ensinar/aprender em uma perspectiva interdisciplinar de formação. Conectei-me com meu interior e sua complexidade e com a memória numa dimensão, até então, para mim desconhecida, em busca de uma nova ordem para meu universo simbólico e um novo sentido para minha atuação na Educação. Como professora/pesquisadora ocupei o lugar de sujeito da pesquisa e transformei minha trajetória de vida em objeto de estudo. Ao estabelecer um diálogo entre minha experiência de criação artística com os princípios da Interdisciplinaridade, criei uma metodologia para um projeto de investigação interdisciplinar que me permitiu criar uma região de interseção entre arte e educação. No desenvolvimento da pesquisa, as linguagens visual e escrita se entrelaçaram e se complementaram com o intuito de revelar os aspectos ocultos do ato de aprender. O diálogo entre imagem e texto, tornou-se o recurso que utilizei para representar a memória, como palco do diálogo entre o tempo cronológico e o tempo kairótico, que conecta os fatos vividos às teorias que participam de minha prática e dão forma ao meu fazer. A dança, como um fio, conduziu e permeou minha trajetória, costurando meus diferentes fazeres. Por essa razão, constituiu a linguagem escolhida para expressar minha maneira de capturar meu processo de formação como professora de arte. Utilizei-me de minha experiência em coreografia para a escrita da dissertação na forma de uma coreografia/escrita num exercício de coreografar as palavras ao som da musicalidade dos ecos da memória da minha própria experiência de formação. Desvelei minha trajetória, para revelar os saberes e valores que participam de minha formação, que constituem o alicerce sobre o qual minha prática docente se estrutura. Nessa coreografia/escrita identifiquei parceiros teóricos que apoiaram a teorização e interpretação da articulação entre teoria e prática e o rompimento das fronteiras entre educação, dança, teatro e artes plásticas, revelando de maneira mais clara e profunda o espaço interdisciplinar criado no exercício da minha experiência de investigação, ensino e aprendizagem da arte.

Palavras-chave: Formação de professores; Interdisciplinaridade; Arte; Dança; Teatro; Temporalidade.

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Abstract This work is an investigation about my teaching/learning process in an interdisciplinary formation perspective. I connected myself with my interior and its complexity and, in a memory dimension - up to that time - unknown to me, in search of a new order for my symbolic universe and a new direction for my action in Education. As teacher/researcher I occupied the subject place in this research and transformed my life path in the study object. As establishing a dialogue between my artistic creation experiences with the Interdisciplinary principles, I created a methodology for a project of investigation that permitted me to create an intersection region between art and education. In the research development, the written and visual languages intertwined and complemented themselves with the intention of revealing the occult aspects of the learning act. The dialogue between image and text, became the resource that utilized to represent the memory, as dialogue stage between the Khronos and the Kairos time dimensions, that connect the lived facts to the theories that take part in my practice and form my doing. Dance, as a thread, led and permeated my trajectory, sewing my different doings. By that reason, it constituted the language that I chose to express my way of capturing my art teacher formation process. I utilized my choreography experience for writing the dissertation in a written choreography form, as a choreographic exercise with the words by memory echoes musicality of my own formation experience. I unveiled my trajectory, to reveal the knowledge and values that took part in my formation, that constitute the foundation upon which my educational practice is structured. In that written/choreography I identified theoretical partners that supported the theorization and interpretation of theory and practice articulation and the frontiers rupture between education, dance, theater and plastic arts, revealing clearly and deeply the interdisciplinary space created in my experience of investigation, teaching and learning arts.

Keywords: Teacher Temporality

education;

Interdisciplinarity;

Art;

Dance;

Theatre;

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1 Introdução “É que a dança não é apenas uma arte, mas um modo de viver.” “A dança é um modo de existir.” (GARAUDY, 1980, p.13)

Muito cedo me tornei artista e é do lugar da artista que atua em educação que desejo escrever sobre a dança. Digo isso em primeiro lugar para mim mesma para, então, poder expor minhas idéias àqueles que se dedicam à educação e como eu, acreditam em seu poder transformador do ser humano e da sociedade. Transformação tratada aqui como o processo natural de crescimento do ser humano e de sua trajetória de vida. Transformação que, acrescida da idéia de evolução, se torna projeto de superação de si mesmo. Isso se apresenta como um desafio: mergulhar de corpo e alma no processo de ensino/aprendizagem e decifrar nele os mecanismos que participam e promovem as transformações no ser humano como recursos para o aperfeiçoamento de minha prática docente. Considero que esse movimento, provocado pelo desejo de aprender e prazer em tornar-me melhor, naquilo que sei fazer, talvez seja a essência do processo de encontrar, seguir e crescer numa vocação1 durante a vida . Acredito que o desejo de superação seja fruto de um questionamento que traz consigo a idéia de mudança que, por sua vez, geralmente implica uma decisão, que gera um momento de tensão imediatamente anterior ao movimento de transformação.

... e trata-se também, neste caso, de uma realidade permanente a tensão entre o espiritual e o material. Muitas vezes, sem sequer se aperceber disso ou sem ter a capacidade para o exprimir, o mundo tem sede de ideal ou de valores, a que chamaremos morais, para não ferir ninguém. Cabe à educação a nobre tarefa de despertar em todos, segundo as tradições e convicções de cada um, respeitando inteiramente o pluralismo, esta elevação do pensamento e do espírito para o universal e para uma espécie de superação de si mesmo. Está

“ vocação . [Do lat. vocatione.] S. f. 1. Ato de chamar. 2. Escolha, chamamento, predestinação. 3. Tendência, disposição, pendor. 4. P. ext. Talento, aptidão.” (FERREIRA, 1999, p.2083) 1

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em jogo – e aqui a Comissão2 teve o cuidado de ponderar bem os termos utilizados – a sobrevivência da humanidade”. (DELORS, 1999, p.15)

A dança tem sido a grande paixão... meu principal objeto de estudo, constituindo-se na linguagem que escolhi para expressar minha maneira de ver, estar e representar o mundo e conduzir a narrativa nesta dissertação. A dança, como um fio, conduz e permeia minha trajetória de vida; costura todos os meus diferentes fazeres, assim como a alma3 humana costura as diferentes partes do ser... “A dança é uma das raras atividades humanas em que o homem se encontra totalmente engajado: corpo, espírito e coração.” (BÉJART, 1980, p.9)

A dança é também um credo, meu “yoga” 4, minha meditação, um meio de conhecimento, a um só tempo prospectivo, do mundo interior e do exterior, um elo comigo mesma, com os outros e com o ato de aprender. Quero, neste trabalho, falar sobre o que aprendi com e sobre a dança dançar, aprender a dançar e ensinar a dançar. Como a partir dela, me inscrevi no mundo. Procurei desvelar para revelar os aspectos ocultos do ato de aprender, não como um desnudamento mas como forma de compreender o meu processo de aprendizagem, dos meus alunos e dos meus parceiros teóricos e aqueles com quem pude compartilhar vivências e experiências. Busquei traduzir para a escrita o indizível, num exercício de coreografar as palavras ao som da musicalidade dos ecos da memória da minha própria experiência de esforço constante de aprender a estar no mundo. Sendo a dança a arte do movimento (LABAN,1978), foi preciso buscar na

origem

dos

movimentos

os

elementos

constitutivos

desta

coreografia/escrita, que tem sua raiz no significado pessoal/profissional deste “estar no mundo”. Encontrei em CRITELLI (1996), expresso com clareza o que intuitivamente percebi e que constitui um dos elementos propulsores deste meu

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Relatório para a UNESCO da Comissão Internacional sobre a Educação para o século XXI. Alma entendida aqui segundo a concepção de Jung como sinônimo de psique. Psique que por sua vez é definida por Jung como a totalidade de todos os processos psíquicos conscientes e inconscientes.” (JUNG, 1991) 4 “A palavra yoga significa união. Esta união você poderá encontrá-la na dança, pois a dança também é união. Shiva , o Senhor do mundo, o grande yogui, tem igualmente o nome de Nataraja, o rei da dança...Que sua dança seja o seu yoga, não procure outro.” (BÉJART, 1980, p.9) 3

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fazer que apresento neste momento, para me auxiliar a explicitar a fonte de onde brotam meus movimentos: Céu e terra pertencem-se mutuamente, e todos os elementos da natureza, à medida que aparecem revelados e abrigados nessa pertença, também dela compartilham. No caso do homem, esse modo de pertença em que se cria uma inexorável integração é impossível; a vida humana está em perpétuo deslocamento. Viver como homens é jamais alcançar qualquer fixidez. (CRITELLI, 1996, p.16)

Completando esta reflexão a autora me leva a compreender o sentimento que me acompanha em relação ao estar no mundo, ao conhecimento e à identificação do que me move:

Esta experiência da inospitalidade do mundo, do nada em que se desfez ou ocultou o sentido que ser fazia para nós, e da mais plena liberdade em que somos lançados independentemente de nosso próprio arbítrio, Heidegger a nomeia angústia. Fundado na angústia, regido por este paradoxal modo humano de ser no mundo, é que se abre para o homem toda sua possibilidade de conhecimento. A ontológica inospitalidade do mundo e a ontológica liberdade humana são regentes de toda forma de conhecimento e do método. (CRITELLI, 1996, p.18)

A consciência desta maneira de perceber e sentir o mundo e a vida me mostra que existe um lugar de onde se manifestam os impulsos internos, a partir dos quais se origina o movimento, processo a que o bailarino, coreógrafo e pesquisador Rudolf Laban denominou de “esforço”. LABAN (1978) desenvolve minuciosamente este conceito, destacando o fato de que a busca de valores gera no homem esforços conflitantes e não há quem desconheça o fato de as expressões, gestos e movimentos espelharem conflitos interiores.

Ao domesticar os animais, o homem aprendeu como lidar com o esforço e como alterar os hábitos de esforço dos seres vivos, e por fim aprendeu a se domesticar, treinando e desenvolvendo seus próprios hábitos pessoais de esforço, tanto engrandecendo-os quantitativamente, quanto dirigindo-os qualitativamente cada vez mais no sentido de se tornarem esforços humanitários específicos. É impressionante o modo pelo qual o homem alcançou esse tipo de educação do esforço, tendo seu paralelo na evolução dos hábitos de esforço animais. A seleção que o homem faz das suas seqüências de esforço não é totalmente inconsciente, ele tem a capacidade de coordenar uma gama de possibilidades de esforço vastamente maior que a de qualquer outro animal e esta gama ultrapassa as necessidades da mera sobrevivência. (LABAN, 1978)

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A minha coreografia/escrita tem o sentido do pertencer, o sentimento de angústia, o exercício do esforço e o da liberdade. As principais dinâmicas de minha coreografia/escrita mantém estreita relação com as da dança, por isso, na minha escrita, procuro articular o sentido de pertencer o sentimento da angústia frente à inospitalidade do mundo e do contínuo exercício do esforço, na busca pelo equilíbrio, num movimento de perpétuo deslocamento. Encontrei na concepção de pesquisa interdisciplinar a sustentação teórica para a estruturação de uma outra narrativa que revelasse a minha maneira de pensar a respeito da formação de um professor de arte, a partir do resgate da minha história de vida que tem a dança como eixo e fio condutor.

A trilha interdisciplinar caminha do ator ao autor de uma história vivida, e uma ação conscientemente exercida e uma elaboração teórica arduamente construída. Tão importante quanto o produto de uma ação exercida é o processo e, mais que o processo, é necessário pesquisar o movimento desenhado pela ação exercida – somente com a pesquisa dos movimentos das ações exercidas poderemos delinear seus contornos e seus perfis. Explicitar o movimento das ações educacionais exercidas é sobretudo intuir-lhes o sentido da vida que as contempla, o símbolo que as nutre e conduz – para tanto tornase indispensável cuidar dos registros das ações a ser pesquisadas. (FAZENDA, 2001, p. 15)

Ao coreografar a escrita, procuro dar movimento ao texto apresentado ao leitor pelas pranchas de cor que marcam o início da cada capítulo, construídas à luz da temporalidade que representam. Pela narrativa das cenas que contextualizam para o leitor, o espaço onde os atores se movem. O interior de cada capítulo é palco da narrativa do diálogo entre Cronos e Kairós. Cronos, representado pela linha do tempo que ancora os fatos vividos, e Kairós, pelos parceiros teóricos que contextualizam os referidos fatos, e cujo encontro se deu por insight, pela memória e pela sintonia. Essa coreografia/escrita ao desvelar os encontros entre Cronos e Kairós dá sentido e rigor à narrativa, na medida em que Kairós, ao contextualizar e explicar na voz dos fatos apresentados pelos atores/parceiros ressignifica, explica, amplia e abre a possibilidade de teorização sobre o vivido/narrado. Tal qual na dança, a temporalidade é apresentada em planos, em flash backs porque as marcas positivas e as negativas da minha trajetória são revisitadas e delas se extraem os fios que tecerão a narrativa do gran finale.

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Nesta coreografia /escrita os capítulos são denominados atos. Na coreografia dos atos, a explicitação da partitura de movimentos. No traçado coreográfico há a indicação das marcas e eixos que estabelecem referenciais que orientam os movimentos e definem direções no tempo e no espaço. No interior dos capítulos/atos as indicações das marcas e eixos são explicitadas pela utilização de recursos como destaques, metáforas, símbolos, imagens especialmente criadas a partir do sári, uma veste típica da Índia que sem nenhuma costura, recobre o corpo humano, assim como a minha narrativa veste a minha trajetória.

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2 Criando um recurso imagético, o sári, como forma referencial de uma estética.

Minha trajetória de vida constitui a matéria prima deste processo de investigação. Conheci a dança em várias dimensões e foi esta arte que me ligou à educação, quando passei da condição de aprendiz para a de ensinante. A docência acrescentou mais dúvidas em relação aos meus saberes em dança, questão essa que se tornou presença constante em minhas reflexões de educadora e artista. Certa feita entrei em contato com Ivani Fazenda numa palestra sobre interdisciplinaridade que proferiu na escola onde trabalho. Nessa ocasião teve origem um enorme interesse em conhecer mais sobre o tema principalmente pelos pontos que despertaram em mim uma forte afinidade. Os “cinco princípios que subsidiam uma prática docente interdisciplinar: a humildade, a coerência, a espera, o respeito e o desapego” (FAZENDA, 2001, p.11) despertaram o desejo de compreender melhor essa área de conhecimento e pesquisa. Interessei-me também pela lógica que a interdisciplinaridade imprime à investigação que privilegia a descoberta, a pesquisa, a produção científica, porém gestada num ato de vontade, num desejo planejado e construído em liberdade. Encantei-me com o processo interdisclipinar porque este “desempenha um papel decisivo no sentido de dar corpo ao sonho e de fundar uma obra de educação à luz da sabedoria, da coragem e da humanidade. (FAZENDA, 2001, p.18) A perspectiva de desenvolver um trabalho acadêmico baseado nestes princípios, me encorajou e estimulou a ingressar no Programa de Mestrado em Educação da Universidade Cidade de São Paulo (UNICID) para construir um conhecimento sobre um tema, a partir da minha questão básica, que é o papel, a função e lugar da dança na formação do professor. Iniciei, então, meu trabalho, disposta a desenvolver um projeto de pesquisa interdisciplinar nos moldes propostos por Ivani Fazenda e seu grupo de pesquisa, acreditando na possibilidade de estruturação de uma outra

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maneira de pensar a respeito dessa questão que, para mim, é um grande desafio - esse estudo vai me auxiliar a integrar o meu fazer, a minha arte e a minha prática pedagógica. Ao retomar minha trajetória com um olhar investigativo, vi-me diante de uma nova perspectiva, em muitos ângulos desconhecida e, para torná-la inteligível, senti a necessidade de encontrar nela algum tipo de ordem que, para mim naquele momento estava oculta. Havia já elaborado alguns trabalhos escritos, no mestrado, que tinham como tema a minha trajetória como professora. Tudo corria bem, até que chegou o momento de estabelecer uma ligação entre os referidos textos. Se Cronos permitia uma ordenação linear dos textos, Kairós não se submetia a tal ordem. Sempre que tenho dificuldade de compreender mentalmente o que minha percepção captou num nível muito profundo e para compreender o porquê de determinada coisa me causar uma impressão tão contundente, mas que o pensamento não traduz de forma imediata, recorro ao desenho ou à pintura, uma forma de pensar por imagens para, visualizando, alcançar o sentido e o significado que se estruturou internamente. Fazer um trabalho plástico foi uma maneira que encontrei de trazer à luz imagens mentais, sensações e emoções, de natureza fugidia para o consciente, para que, dessa forma eu possa capturar as imagens e observá-las mais longamente e interpretar-lhes o significado de modo global. A idéia inicial foi a de construir uma linha de tempo.Para isso recorri a uma técnica que aprendi no antigo ginásio, nas aulas de história da arte e elegi a pintura como linguagem visual para a referida construção. A primeira visualização que tive foi a de uma linha, literalmente, uma longa e larga linha onde pudessem caber muitos detalhes, textos e imagens. Por tratar-se de um estudo, resolvi usar o material que tinha em casa, muito papel canson A2 e tintas para cenário, aquarelas, pastel oleoso. Usei meu curriculum vitae como referência para calcular o comprimento. Conclui que se atribuísse um espaço para cada ano, o tamanho ficaria impraticável para o manuseio. Decidi, então, resumir a infância e a adolescência em apenas um espaço, mas ainda assim, precisava de uma linha muito longa.

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O primeiro problema foi adaptar o formato do papel aos meus objetivos e necessidades. Dificilmente a trajetória poderia ser pintada toda aberta, dada a dificuldade de espaço e, por isso, recortei, colei e montei uma estrutura de papel articulada, formada por 38 quadrados de 24 cm de lado, para que pudesse ser pintada dobrada, por partes, ao mesmo tempo em que eu pudesse desdobrar e visualizar as partes anteriores, sempre que necessário, para não perder o todo do trabalho. Em seguida, recortei o currículo ano a ano, distribui sobre a linha e colei. Para cada ano atribui uma tira vertical de 24 cm x 48 cm. Agrupei os temas ao longo da página imaginando manter a seqüência dos fatos quadro a quadro preservando a simultaneidade em que ocorreram em determinado período de tempo. Resumi em apenas uma tira o período da infância à adolescência que tive necessidade de revisitar, pois trata-se do tempo/espaço onde tudo começou e também faz parte da bagagem que acumulei nesta aventura que é ser professora. E também o período de 1974 a 1983 que resume o período em que mudei para São Paulo e cursei a graduação e as licenciaturas. Assim que acabei de organizar o currículo nos espaços e vi o tamanho final do trabalho, comecei a pensar nas cores para aquela história. Olhava para aquilo tudo e me perguntava: que critério deveria usar para escolher as cores? Pensei comigo - primeiro o fundo - que fundo terá esta pintura? O plano de fundo representa o tempo cronológico, o ritmo da dança da minha vida no período de 1956 a 1999. O tempo kairótico foi representado nas linhas que correm sobre o tempo cronológico. É um tempo em movimento que se alterna entre Cronos e Kairós. Fui mergulhando nos anos ali abertos à minha frente e perguntava a eles qual a lição que eu havia aprendido em cada um deles ou em períodos mais extensos, já que os tempos entre eles são variáveis e as variações têm uma constância não muito precisa, se observar que há regiões de fronteira, as regiões de transição entre umas e outras fases da minha vida. As

respostas

alternavam-se

sucessivamente,

predominando

movimentos básicos, o da paixão, o da espera e o da ação.

três

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Minha idéia foi a de expressar essas energias como se fossem irradiações luminosas, numa tentativa de expressar sensações e emoções vividas durante as experiências. Em sendo um trabalho de arte, me senti confortável para usar uma licença poética para as cores. Refletindo sobre os significados das cores, encontrei a resposta para o que buscava. Recorrendo aos meus conhecimentos sobre terapias corporais orientais e esoterismo, relacionei essas energias às cores dos chakras 5 (fig. 1) que vieram em resposta ao que procurava. FIGURA 1 – CHAKRAS

Há no peito, na altura do coração, um chakra onde está guardada a nossa natureza divina, a centelha divina da luz inicial do Universo, que é formada por três raios de luz, um rosa que representa o amor universal, a

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http://www.esoterismo.sorocaba.com.br/chakra/ http://www.mistico.com/p/chakras/

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criatividade; outro azul, que representa a força da vontade, o domínio sobre a matéria e amarelo, a inteligência, o discernimento a clareza, a sabedoria. Escolhi trabalhar com a idéia das cores desse chakra. Para os períodos de espera escolhi a cor azul; para os da gestação do conhecimento e da paixão o rosa, e amarelo, para a ação. Para o período final, escolhi o laranja para representar, a energia vital, o autoconhecimento, a alegria, o desapego, a confiança e a entrega, significando o fluir pela vida. Passei a expressar dessa forma as qualidades que eu tive que desenvolver para ser professora. E o fundo ficou assim: TABELA 1 – ESTRUTURA PARA FUNDO DA COMPOSIÇÃO Desde que

1974 83 84 85 86 87 88 89 90 91 92 93 94 95 96 97 98 99 eu

consigo Lembrar- A me

até 1981

1974

Essa visualização me sugeriu um gráfico e comecei então a ligar os pontos. Com um pincel fui traçando uma linha, ligando os pedaços do currículo que estavam colados no papel, como se fossem pontos. Organizei a composição, estabelecendo, portanto um eixo central horizontal em verde limão, que representa inicialmente, os primeiros anos da minha formação escolar. Acima dele, um eixo carmim, que representa o início da formação em dança, e outro em azul marinho, o eixo da formação em artes plásticas. Mais adiante, o eixo verde limão corresponde à minha formação regular e se soma a outro em dourado marrom e salmão que representa a minha vida profissional. As linhas adjacentes que acompanham esse eixo central representam todas as experiências de formação nas artes, sendo a dança em carmim; o teatro, em verde-escuro, as artes plásticas, em azul-marinho; terapias e

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técnicas corporais em laranja, que procurei e aprendi para completar minha formação e subsidiar minha prática pedagógica. A cada pincelada ia rememorando todos os passos do meu caminho e as emoções que sentia iam se imprimindo no papel em diferentes tipos de traços e pinceladas. Conforme ia pintando, as linhas iam se entrelaçando, revelando formas e relevos na superfície do papel, criando a sensação de movimento, de fluidez: Era realmente um gráfico, mas um gráfico orgânico fora dos padrões geométricos usuais, porque provoca também sensações visuais (fig. 2), quase táteis, e sensações cinestésicas, sugerindo uma partitura com movimento. FIGURA 2 – LINHAS DA FIGURA

Somente ao término da pintura (fig. 3), pude visualizar o resultado final com a distância adequada, quando utilizei um painel que existe na faculdade como suporte para ela, pois não houve espaço em casa. FIGURA 3 – PINTURA EM TAMANHO REAL

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Olhava para aquele trabalho e pensava comigo mesma - aí está a minha vida diante de mim. Perplexa, constatei que o resultado final lembrava um sári aberto. Entrei numa crise muito grande pois todo o tempo em que eu deveria estar escrevendo eu havia passado pintando. Era chegada a hora de apresentar um trabalho final no grupo de estudos e pesquisa e eu tinha apenas uma pintura articulada em formato de folder com 19 lâminas de 24 cm x 48 cm que, quando aberta, mede 4,56 m de comprimento e se parece com um mapa topográfico. Como eu iria explicar para as pessoas o que era aquilo, se nem sequer para mim estava claro? Tinha apenas uma intuição. Mais ainda dizer a elas que aquilo era um sári! Tentei escrever um texto estabelecendo uma metáfora da pintura como um rio, o rio da vida, mas minha orientadora Ana Gracinda Queluz, perguntou onde estavam as margens daquele rio. Essa questão levou-me a revisitar minha pintura e entrar em contato com seu significado. Mais tarde em nossa primeira entrevista de orientação Ana Gracinda Queluz, como que lendo nitidamente aquele segredo, manifestou o que o desenho representava para ela. Disse-me desta forma: “ Esta pintura é um sári, como se a sua trajetória de vida fosse um tecido sem costuras que recobre seu corpo como se fosse uma pele.”

Foi como um presente de “fada madrinha” pois me deu o vestido para o baile. Senti-me acolhida, compreendida e isso me encorajou a prosseguir nesta trilha. FIGURA 4 – PINTURA DIGITALIZADA

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Passaram-se alguns meses antes que eu pudesse me apropriar dessa imagem como elemento que ligasse, que desse unidade ao meu trabalho. Nunca havia operado com a minha memória de forma consciente e sistemática e tive que parar para entender o que estava ocorrendo dessa vez. Evocando um ontem e projetando-me sobre o amanhã, percebi que em minha memória dispunha de um instrumental para, a tempos vários, integrar experiências já feitas com novas experiências que pretendia fazer. O processo de criar incorpora um princípio dialético, e por isso, considero muito significativo o fato de que neste processo tenham se entrecruzado essas duas questões, falar sobre uma cultura diferente da minha (sári) e falar de uma forma diferente sobre a minha própria cultura (formação de professora). Me dei conta de que, através deste exercício com a memória, estava me tornando apta a reformular as intenções do meu fazer e a adotar certos critérios para futuros comportamentos. E mais, as intenções se estruturam junto com a memória, nem sempre de forma consciente, tornando-se claras apenas no curso das ações.

A reconstrução e a interpretação do passado é um fazer valer o passado para o presente, o converter o passado num acontecimento do presente. Só assim é verdadeira a experiência. A experiência do passado, portanto, não é um passatempo, um mecanismo de evasão do mundo real ou do eu real. E não se reduz, tampouco, a um meio para adquirir conhecimentos sobre o que aconteceu (...) a interpretação do passado só é experiência quando tomamos o passado como algo ao qual devemos atribuir um sentido em relação a nós mesmos. (LAROSSA, 2001)

Percebi, nesta forma de trabalhar, que memória, imaginação se interpenetram nas linguagens artísticas. A memória não é factual, é memória de vida vivida, tem um aspecto dinâmico e não estático, possibilitando sempre novas interligações e configurações, e aberta a associações. Daí vem a dificuldade que tive inicialmente de ordenar a memória em forma de texto. Mas, através do trabalho plástico, pude então perceber que há uma seletividade que organiza o processo em que a própria memória vai se estruturando. A dificuldade estava em lidar com o dado de que os fatos lembrados se apresentavam a mim como configurações complexas.

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“Para que essa experiência do passado seja possível, o sujeito da experiência - o historiador ou o leitor - deve ser um sujeito desconforme e inquieto. Esse sujeito é o que vai do presente ao passado, mas arrastando consigo sua desconformidade, ou seja, evitando toda relação de continuação. E é, também, o que vem do passado ao presente, mas para interrompê-lo e colocá-lo em questão, para desestabilizá-lo e dividi-lo no interior de si mesmo. Foucault diz isso de uma maneira magistral.(...). Saber, mesmo na ordem histórica, não significa reencontrar e sobretudo não significa reencontrar-nos. A história “será efetiva” na medida em que ela reintroduza o descontínuo em nosso próprio ser (...). Ela não deixará nada abaixo de si que teria a tranquilidade asseguradora da vida ou da natureza; ela não se deixará levar por nenhuma obstinação muda em direção a um fim milenar. Ela aprofundará aquilo sobre o que se gosta de fazê-la repousar e se obstinará contra sua pretensa continuidade. É que o saber não é feito para compreender, ele é feito para cortar.” (LAROSSA, 2001, p. 136)

A maneira que encontrei para decodificar estas configurações foi utilizando cores e linhas para representar sensações, sons, emoções que também fazem parte dos fatos em si, assim manifestados. Pude, por meio da linguagem visual estabelecer os limites entre o que lembrava, pensava e imaginava, elaborando uma ordenação. Raciocinando a esse respeito, pensei que a imagem que criei resultava de um processo de associações do meu mundo imagético em que estabeleci correspondências evocadas à base de semelhanças, ressonâncias íntimas de experiências anteriores com os sentimentos de minha experiência de vida. Tudo aconteceu numa velocidade extraordinária que num primeiro momento, não pude fazer um controle consciente das associações que iam gerando as imagens, mas podia ver claramente que apesar de formas espontâneas havia uma coerência interna. Na verdade, reconheço que neste movimento estava, a meu modo, selecionando e ordenando todo o conteúdo significativo da trajetória sem deixar que se perdessem as diferentes dimensões que a constituem. Agora me sinto capaz de abraçar esse desafio e descobrir o que ele tem a nos dizer. Elucidadas estas questões, é possível iniciar uma leitura sensível daquilo que criei para representar minha trajetória. Neste caso, especificamente, é necessário esclarecer que como meu objetivo não era apenas fazer um trabalho artístico, mas sim usá-lo como recurso para estruturar minha escrita, esta forma/ordenação torna-se significativa para mim apenas no momento em que projeto um sentido a ela e,

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a partir dela, construo minha fala. Dessa forma, nesse momento, entrelaçam-se as linguagens plástica e escrita e tornam-se complementares entre si. Como todo artista, após o término da obra, me distancio dela e observo o resultado. Nesta busca de um significado pessoal para o sári, somaram-se às impressões visuais, informações e vivências que fui coletando durante e depois das minhas viagens à Índia O sári é um tipo de vestimenta feminina bastante incomum para os padrões ocidentais, ainda que muito popular entre as mulheres na Índia. Consiste em um tecido de mais ou menos seis metros de comprimento por uma largura que varia entre 80 e 90 centímetros, dependendo da metragem em que é fabricado. É um tipo de vestimenta que remonta a tempos imemoriais da história indiana, sendo citado em vários textos clássicos como o Mahabharata6, por exemplo, e que evoluiu ao longo do tempo em função das transformações por que passou aquele país. Por toda a Índia existe uma infinidade de tipos de drapejamento diferentes de acordo com cada região. O modelo com que entrei em contato tem sua origem no século XIX e é conhecido como Nivi Modern Style e adotado pela maioria das mulheres atualmente. Veste-se, enrolando-o no corpo de uma forma muito especial (fig. 5) formando uma saia que se estende como um véu sobre o tronco, formando um tipo de xale que pode ser usado, inclusive, para cobrir a cabeça (SARI, WEAR, 2002).

“The Mahabharata (pronounced approximately as Ma-haa-BHAAR-a-ta) is an ancient religious epic of India. It has existed in many forms, the fundamental one being a text in ancient Sanskrit which may well be the world's largest book. I, James L. Fitzgerald (Ph.D. in Sanskrit, Chicago, 1980) of the Department of Religious Studies at the University of Tennessee, Knoxville, am currently translating about one fourth of the Mahabharata for a complete translation of the Sanskrit text being published by the University of Chicago Press, and I am also editing the remainder of the translation of the text by other Sanskrit 6

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FIGURA 5 – Modelos de sári (Capitol Hotel Bangalore – 1998)

Ao retomar a visão da pintura, vejo que para transformar-se realmente num sári, falta ainda mais um movimento de criação, ou seja, a parte do xale, e a estampa da pintura sobre um tecido, ou o projeto de sári não estará acabado. Esperando uma outra imagem que me ajude a terminar a composição deste sári, mergulho o olhar sobre a pintura novamente e observando-a longamente, revejo todos os passos do projeto novamente e vou rearticulando as partes em diferentes estudos pesquisando a melhor solução para a composição. Minha imaginação se desprende do tema e se solta pelo espaço, criando formas e, lentamente, vão se configurando na mente imagens novas, novas idéias para o mesmo trabalho. Tenho ainda que desembrulhar por completo este sári que trouxe na bagagem. Sabendo que faz parte do fazer artístico, fazer e refazer o mesmo trabalho, escolho como tecido a mais fina seda, com um barrado dourado, onde scholars. This work follows and completes the translation of the Mahabharata begun by the late Professor J. A. B. van Buitenen of the University of Chicago” (FITZGERALD, 2002)

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está bordado um mantra de proteção, sobre a qual estamparei a pintura de minha jornada para que, assim, a idéia original se complete finalmente. Resta ainda compor o xale do meu sári. O espaço reservado para uma única imagem, um ícone que represente o tema que governa essa história. Estive olhando para deuses e altares por muito tempo, como não falar sobre isso? Escolhi Shiva Nataraj, o deus hindu da dança (fig. 6) , para ocupar esse espaço. FIGURA 6 – ESTUDOS PARA O XALE DO SÁRI

Feito isto elaborei alguns estudos com a finalidade de visualizar o sári acabado (fig. 7), estampado sobre a seda, entre os quais selecionei estes quatro (fig. 8 a 11) que considerei os melhores resultados em relação ao que havia imaginado inicialmente.

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FIGURA 7 – ESTAMPA CENTRAL DO SÁRI

FIGURA 8 – ESTUDO 1

FIGURA 9 – ESTUDO 2

FIGURA 10 – ESTUDO 3

FIGURA 11 – ESTUDO 4

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Pude perceber que o sári, aberto desta forma, oferece uma possibilidade de leitura bidimensional do trabalho que, numa visão geral, sugere a idéia de percurso. Porém, dessa feita, ligando-o à idéia de um tecido que recobre, como uma pele que, por sua vez, representa uma vida vivida, é como se eu tivesse deixado impresso no tecido tudo que vivi e, em contrapartida como se minha trajetória estivesse impressa na minha pele como uma tatuagem, numa relação semelhante à da estampa com o tecido, em que pigmentos e fibras se fundem de modo indissolúvel, tornando-se uma unidade. Quanto à imagem linear propriamente dita, posso perceber que há um caminho impresso na área central. Sobre o fundo destaca-se, uma convergência de linhas e cores e energias para uma figura que inicialmente está em formação: Uma bolsa, como se tivesse um movimento interno e que depois se projeta adiante, horizontalmente, numa linha larga e reta, onde todos os elementos tendem a se alinhar numa ordem mais definida. Esta linha central define-se e percorre assim um longo trecho da imagem, sofre uma ruptura, e retoma sua caminhada no final do tecido, quando sugere duas pernas, descolando-se da linha original como que saltando em direção à representação imagética do deus Shiva o deus da dança e nela mergulha no final do tecido. Este é o mapa da jornada, que passa a me orientar quanto à maneira de entrar, de abordar meu objeto de estudo. “O tempo da formação, portanto, não é um tempo linear cumulativo. Tampouco é um movimento pendular de ida e volta, de saída ao estranho e de posterior retorno ao mesmo. O tempo da formação, como o tempo da novela, é um movimento que conduz à confluência de um ponto mágico (situado assim fora do tempo) de uma sucessão de círculos excêntricos.” (LAROSSA, 200, p.78 e 79)

Desta forma a pintura se torna partitura da coreografia/escrita. Mesmo assim, ainda sinto este trabalho incompleto, sem uma visualização deste objeto em sua função, ou seja, vestindo um corpo, sua forma tridimensional, por que o sári é um objeto tridimensional em sua função de vestimenta e é nesta forma que também é preciso observá-lo.

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Para isso fiz um exercício de modelagem tridimensional em argila que posteriormente scaneei e usando o programa Photoshop revesti a imagem com a pintura para que pudesse ver o meu sári de modo tridimensional (fig. 12). FIGURA 12 – MODELO EM ARGILA COM SÁRI TRIDIMENSIONAL

Antes que pudesse começar a escrever novamente, mais um desafio se mostra, o de fazer uma análise dessa forma tridimensional, pois desejo compreender minha trajetória nesta dimensão, ou seja seu movimento no tempo e no espaço. FAZENDA (2001) relaciona a investigação interdisciplinar ao ato de desvendar em espiral, uma vez que os pontos da espiral se articulam de forma gradual, não de uma única vez, mas todos os pontos que aparecem têm a ver com os que os antecederam. Como também já disse esta afirmação sugere a idéia de profundidade, pela sucessão de camadas da espiral e sua evolução, em curvas, sugere a idéia de movimento. Se pensarmos na estrutura tridimensional do drapejamento, em como o tecido vai se enrolando no corpo, podemos perceber que este vai formando uma espiral ascendente pelo corpo e que as camadas inferiores vão formando

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uma base para as que sucedem, de tal forma que todas estão em contato em determinado ponto. Se se pensar que este tecido está representando a minha trajetória, cada ponto da pintura sendo uma fase de minha formação, se se observar dessa maneira posso, então, transportar essa idéia para o texto. Vejo que os fatos aconteceram cronologicamente, mas posso estabelecer relações não cronológicas entre as várias fases da minha vida e estudar como cada uma influi na outra, no momento em que as camadas do tecido se sobrepõem umas às outras, colocando as fases da vida em contato, onde se criam as influências e relações. “Mas para que o primeiro círculo, o da infância, possa ser conservado, não basta que seja meramente recordado. O primeiro círculo tem que ser transmutado poeticamente desde o último, num movimento que é tanto de conservação quanto de renovação. E, para isso, é preciso que o círculo inicial se torne aberto em espiral, num tipo de via excêntrica que o leve para além de si mesmo, para depois voltar e trazê-lo ao local de partida.” (LAROSSA, 2001, p. 78)

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3 Revelando o método da coreografia /escrita.

Numa coreografia há um trabalho que o espectador não vê. No processo de criação coreográfica que utilizo, os movimentos que resultam de improvisações são selecionados, fixados. Reunidos, irão compor a coreografia que é uma seqüência expressiva de movimentos. Por tratar-se de um trabalho científico é necessário aqui explicitar os caminhos que utilizei nesta pesquisa. Não posso deixar ocultado do leitor o caminho que percorri, as decisões que tomei para a elaboração da pesquisa, objeto desta dissertação. Em face do desafio de fazer uma coisa que não sei, enfrentar o “não saber” para poder produzir um conhecimento, eu aprendiz-pesquisadora, tive assim meu encontro com o princípio da humildade, recorri inicialmente às ferramentas de que dispunha, entre elas o método que uso para pintar, somado a um novo olhar. Adotei a pintura do sári como a partitura para estruturar um roteiro para a coreografia/escrita, um fio condutor para os textos/movimentos desta coreografia/escrita. Iniciei minha pesquisa, escrevendo textos como num desenho de observação, esboços para uma composição, pouco a pouco interpretando o que via em minha trajetória de vida , traduzindo em imagens que distribui cuidadosamente sobre o sári /partitura. Entendo que a improvisação está para a dança, assim como o esboço está para a pintura, e utilizo essa analogia para revelar meu processo de elaboração desta pesquisa, como ilustro com as imagens a seguir: Usando o carvão, esbocei os primeiros textos como se fossem as primeiras formas, fragmentos de memória, sobre a tela (fig. 13) e sobre as áreas definidas, escrevi e reescrevi, descrevendo as imagens resgatadas, tentando encontrar os tons os meios tons, na tentativa de trazer a nitidez, focar da visão.

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FIGURA 13 – ESBOÇO EM BICO DE PENA

Em seguida distribuí em aguadas as áreas de cor às primeiras cores, para representar as sensações que me causavam cada uma das lembranças. As imagens foram ficando cada vez mais nítidas e, com isso, dúvidas e inquietações surgiram como os primeiros contrastes. Numa camada de tinta mais grossa, fui fundindo as fronteiras entre os matizes, controlando os tons, as cores, trazendo devagar as formas, as idéias e teorias para fora, compondo-as entre si, estabelecendo as áreas de predomínio, compondo com a variedade, definindo o que é figura e o que é fundo, para que formassem um todo, para que eu pudesse representar uma unidade (fig. 14) o todo em que se unem os detalhes, o meu retrato de artista educadora.

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FIGURA 14 – ESBOÇO EM PASTEL SECO

A expressão que buscava para o quadro vinha carregada de uma intenção que nasceu lá na imagem inicial nas minhas dúvidas em relação aos meus saberes. Há sempre uma intenção7 no trabalho do artista, o desejo de transmitir uma mensagem. No pulsar do processo de criação há o movimento de introspecção durante a feitura da obra e o da extroversão, o momento de

“Daí podemos falar da “intencionalidade” da ação humana. Mais do que um simples ato proposital, o ato intencional pressupõe existir uma mobilização interior, não necessariamente consciente, que é orientada para determinada finalidade antes mesmo de existir a situação concreta para a qual a ação seja solicitada. É uma mobilização latente seletiva. Assim as circunstâncias em tudo hipotéticas podem repentinamente ser percebidas interligando-se na imaginação e propondo a solução para um problema concebido. Representariam modos de ação mental a dirigir o agir físico. O ato criador não nos parece existir antes ou fora do ato intencional, nem haveria condições, fora da intencionalidade, de se avaliar situações novas ou buscar novas coerências. Em toda criação humana, no entanto revelam-se certos critérios que foram elaborados pelo indivíduo através de escolhas e alternativas.” (OSTROWER, 1977, p. 10-11) 7

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comunicar-se com o outro. O momento da pesquisa em que devia situar o lugar de onde falo e também definir a quem dirijo a minha fala. Durante essa fase, encontrei um eco muito importante no verbete sobre o olhar de Roberta Galasso NARDI (2001, p. 219), que me incentivou a seguir em frente e que justificou a idéia de elaborar essa metáfora inicial com o objetivo de revelar os movimentos do meu trabalho que se situa numa região fronteiriça, na intersecção entre a arte e a ciência, em que meu eu encontra outros “eus” no elemento comum do ato de criar8: O que move um artista expressar-se por meio da arte é um desejo? Como se dá o movimento dialético na relação da obra, pintor, público, partindo do pressuposto de que a transformação do olhar releva quem olha e também quem é olhado. Por analogia, se pudéssemos olhar a trajetória da mente do pintor na concretude de seus sonhos. É interessante perceber que poucas transformações ocorrem, que a imagem inicial mantém-se quase intacta, apesar das aparências. Segundo Picasso, um quadro não é idealizado e fixado; pelo contrário, segue a mobilidade do pensamento. Ao ser terminado pode mudar, de acordo com o estado daquele que o observa; ele vive sua vida da mesma forma que um ser humano e sofre mudanças que o cotidiano nos impõe(...). Isso é natural, visto que um quadro vive somente para aquele que observa. No início de um quadro encontram-se freqüentemente coisas belas. Devemos nos defender delas, destruir o quadro, refazê-lo diversas vezes. A cada destruição de uma bela descoberta, o artista não suprime verdadeiramente, mas transforma, condensa, deixando-a mais substancial. (NARDI, 2001, p. 220-221)

Desta forma, assim como faço num trabalho plástico, fui elaborando minha pesquisa minuciosamente, fazendo e refazendo, até que saltasse a imagem pronta no olho (fig. 15) revelando, na configuração final, em primeiro plano a artista/educadora, em segundo plano minha trajetória e, no plano de fundo, o contexto em que existo e construo meu fazer. Meu ser e meu universo existencial congelados numa imagem preliminar, para serem observados em seu aspecto estático e global num primeiro momento, para depois, iniciar um “As potencialidades e os processos criativos não se restringem, porém, à arte. Em nossa época, as artes são vistas como área privilegiada do fazer humano, onde ao indivíduo parece facultada uma liberdade de ação em amplitude emocional e intelectual inexistente nos outros campos de atividade humana, e unicamente o trabalho artístico é qualificado de criativo. Não nos parece correta essa visão de criatividade. O criar só pode ser visto num sentido global, como um agir integrado em um viver humano. De fato criar e viver se interligam. Criar é, basicamente, formar. É poder dar forma a algo novo. Em qualquer que seja o campo de atividade, trata-se, esse “ novo”, de novas coerências que se estabelecem para a mente humana, fenômenos relacionados de modo novo e compreendidos em termos novos. O ato criador abrange, portanto, a capacidade de compreender; e esta por sua vez, a de relacionar, ordenar, configurar, significar.” (OSTROWER, 1978). 8

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percurso do olhar pelos detalhes e seus dinamismos. FIGURA 15 – COMPOSIÇÃO FINAL

Aos poucos fui resgatando9 os fatos desta trajetória para que pudesse observar e analisar os detalhes da minha formação e da minha prática em sala de aula, desocultando dados que me ajudassem a entender como integrei a dança aos meus outros aspectos na composição do todo, do conjunto dos meus saberes e fazeres e como isso tem participado do meu movimento pela vida; como isso influi no meu destino, nos meus atos e suas conseqüências e para onde isto me projeta, no exercício da minha profissão. Os textos/movimento seguem a ordem da linha de tempo representada pelo sári e nesta ordem, portanto, se definem os temas e títulos de cada ato/capítulo.

“O termo resgate é um substantivo derivado, regressivo do verbo resgatar, que significa livrar de cativeiro, de seqüestro, etc., a troco de dinheiro ou de outro valor e também retomar e recuperar. (QUELUZ, 2001, pg.127) 9

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Os temas que dão origem aos movimentos são os primeiros desafios que o coreógrafo enfrenta na criação coreográfica.

A escolha da música para a coreografia/escrita “A música em relação à criatividade, tem características próprias, decorrentes de sua peculiar localização dentro da Arte, pois esta se divide em duas tríades principais e independentes: a tríade das artes do espaço ou da beleza imóvel, e a tríade das artes do tempo, ou da beleza em movimento; a primeira compreende a arquitetura, a pintura, a plástica; a segunda compreende as artes que os gregos denominavam de “musicais”, isto é, a música propriamente dita (vocal e instrumental), a poesia, a esta escultura viva, intermediária entre os dois grupos:a dança.” (COMBARIEU, 1953)

Feitas as escolhas formais e estéticas para o trabalho, a música era a dimensão

que

faltava

para

completar

a

composição

da

minha

coreografia/escrita. Nesta coreografia/escrita retomo o primeiro tema gerador deste trabalho que é a interdisciplinaridade, que considero o tema musical que escolhi para esta dança. Como a música numa dança, a interdisciplinaridade permeia todo o trabalho. Desde a infância a dança faz parte da minha vida, seja pela liberdade de brincar, seja por uma cultura familiar, ou pelo encantamento que me desperta o seu fazer. Dança que entendo como celebração e linguagem.

Linguagem para aquém da palavra: as danças dos pássaros demonstram. Linguagem para além da palavra: porque onde as palavras já não bastam, o homem apela para a dança. O que é essa febre, capaz de apoderar-se de uma criatura e de agitá-la até o frenesi, senão a manifestação, muitas vezes explosiva, do Instinto da Vida, que só aspira rejeitar toda a dualidade do temporal pra reencontrar, de um salto, a unidade primeira, em que corpos e almas, criador e criação, visível e invisível se encontram e se soldam, fora do tempo, num só êxtase. A dança clama pela identificação com o imperecível; celebra-o . Tais são as danças principiativas, todas as danças qualificadas como sagradas. Mas tais são, ainda, na vida dita profana, todas as danças, populares ou eruditas, elaboradas ou de improvisação, individuais ou coletivas, as quais, em maior ou menos grau, buscam a libertação no êxtase, quer ela se limite ao corpo, quer seja mais sublimada – na medida em que se admita que haja graus, modos e medidas no êxtase. (CHEVALIER, 2001)

Muito cedo conheci a dança nas reuniões familiares na casa de minha avó materna, onde as tradições culturais portuguesas eram cultuadas nas

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cantorias e nas danças populares. Aprendi nessas reuniões, com meus tios e primos, a dançar o “vira”10 e a fazer pequenas apresentações e encenações teatrais, improvisadas ali na hora mesmo. Minha mãe, por sua vez, continuou com estas tradições na nossa casa, promovendo sempre reuniões alegres e barulhentas, com muita música e danças, em que os amigos iam se agregando quando, então, podíamos compartilhar as diferentes tradições nessa mistura que caracteriza a diversidade cultural do povo brasileiro. Não raro podíamos também flagrar meus pais dançando habilmente o foxtrot11 na sala de estar; “pés-de-valsa” confessos, generosamente nos ensinavam também a rodopiar pela sala como Fred Astaire e Ginger Rogers, como nos musicais do cinema. Assim sendo, a dança tornou-se para mim sinônimo de alegria e comunhão. Sempre muito atentos a nossa formação, meus pais estimularam o desenvolvimento de nossas aptidões artísticas, nos proporcionando cursos de pintura, desenho, dança, teatro e tudo o mais que pudesse nos interessar. Foi assim que, aos oito anos, tive meu encontro com o balé que deflagrou um processo que por muito tempo entendi como de experiências muito fragmentadas, isoladas entre si; concepção esta que sempre me fez muito insegura em relação à validade deste saber sobre a dança, que se fez na maior parte fora do ensino formal, fora da escola ou da universidade. Dedico este momento de meu trabalho a explicitar minha aproximação com a interdisciplinaridade, com o intuito de mostrar os movimentos que fiz para me apropriar dela, para aprender com ela a trabalhar e, dessa forma, compreender o ensino/aprendizagem em arte. Revisito

minha

jornada,

exercitando

um

novo

olhar um olhar

interdisciplinar. “O Vira é uma das danças mais antigas de Portugal, e é particularmente popular no noroeste. O nome da dança deriva do verbo virar, uma referência a um dos seus movimentos mais característicos. Em 6/8, o vira é normalmente acompanhado por um repertório vocal em forma estrófica, com ou sem refrão. Existem inúmeras variantes do vira. Em algumas execuções, o cantor solo "manda" os dançarinos virar gritando a palavra "virou", entre algumas das quadras. Os textos das modas que acompanham o vira focam aspectos da vida rural, incluindo o amor, o namoro, o casamento e a emigração.” (CASTELO-BRANCO, 2002) 10

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Dança americana de salão de par, em compasso binário e ritmo sincopado, ou em compasso quaternário, com passos vagarosos e corridos, e que pode ter andamento rápido ou lento. Criado em 1913, em Nova York (EUA), pelo ator Harry Fox, um apaixonado pela dança, teve seu auge, no entanto, nos anos 30 e 40, com os musicais da Broadway, em que se destacaram os célebres dançarinos Fred Astaire e Ginger Rogers”. (NUNES, 2002)

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Encontrei no verbete sobre o olhar, no Dicionário em construção, subsídios importantes que muito ajudaram a compreender melhor essa metáfora e apurar meu olhar. Dessas leituras quero enfatizar aqui um trecho que configura o olhar que utilizarei a partir de então: “Esse é o olhar interdisciplinar. Um olhar de dentro para fora e de fora para dentro, para os lados, para os outros. Um olhar desvenda os olhos e vigilante, deseja mais do que lhe é dado ver. Um olhar que transcende as regras e as disciplinas, olhar que acredita que só existe o mundo da ordem para quem nunca se dispôs a olhar! Um olhar inflado de desejo de querer mais, de querer melhor, um olhar que recusa a cegueira da consciência.” (GAETA, 2001, p. 223)

Olhar o que não se mostra e alcançar o que ainda não se consegue exigiu de mim uma nova atitude como aprendiz; aprender com minha própria experiência, pesquisando e, conforme Ivani FAZENDA (2001), muito mais que acreditar que a interdisciplinaridade se aprende praticando ou vivendo, os estudos mostram que uma sólida formação para a interdisciplinaridade encontra-se acoplada às dimensões advindas de sua prática em situação real e contextualizada. Na condição de “eterna estudante de arte” atingi um estágio no processo em que preciso parar, olhar para a imagem composta e enxergar o todo de uma coisa que fiz por partes. Mesmo sabendo que, assim como na arte, na interdisciplinaridade é possível planejar e imaginar, porém é impossível prever o que será produzido e em que quantidade ou intensidade, preciso arriscar-me a me envolver neste imenso emaranhado de fios a fim de desvendar os aspectos que, para mim, permanecem ocultos. Quero correr o risco de abrir, diante de mim, um panorama novo de possibilidades para um novo trabalho, um novo processo de criação, uma nova prática pedagógica, mesmo que isso signifique rever posições sedimentadas. Trabalho com os ecos da minha memória numa escuta sensível de uma música não audível aos ouvidos mas do coração, por que é a música com a

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qual eu dancei uma vida e que ao capturá-la na sua interdisciplinaridade, escrevo dançando. Iniciei este resgate12, retomando minha formação em dança sob esta nova escuta. Minha formação inicial de bailarina deu-se numa escola livre de ballet clássico no interior de São Paulo, que interrompi quando entrei em contato com a dança moderna e a contemporânea e, mais tarde, juntei a isso inúmeros cursos e oficinas que escolhi para compor minha formação, já que considerei que a escola clássica privilegiava a técnica, excluía as contribuições de outras formas de dança e do teatro, considerando-as prejudiciais à técnica clássica. Isso me fez compreender que se orientasse minha pesquisa numa visão disciplinar, com certeza minha formação pareceria um conjunto de fragmentos desconexos que não corresponderiam àquilo que, tradicionalmente, se entende como o perfil convencional de uma bailarina; não encontraria o eixo do meu trabalho, uma vez que minha formação não seguiu o curso normal concebido para a formação do profissional de dança13. Ao inverter o foco para dentro, para o meu interior, o que antes via como fragmentos, reconheci como partes de um tecido. Com isso vislumbrei a possibilidade de, afinal, enxergar este todo e reconhecer nele um outro perfil de bailarina que se forma. Encontrei em GARAUDY (1980) um parceiro para compreender este novo perfil de bailarino, pois ele concebe a dança como pedagogia do entusiasmo que tem uma contribuição importante na construção de uma sociedade que privilegie uma forma de existência que traga um sentido mais amplo à vida humana. Uma existência que não pode ser apenas, comer, beber, trabalhar, comprar, dormir. Uma existência em que haja lugar para o sentir, para o ser, para o pensar, para o imaginar, para o sonhar, para o amar, para a paixão, para a compaixão, para a igualdade, para a diferença, para a liberdade, para a justiça e para a felicidade. Tenho nestas constatações as primeiras pistas que indicam o sentido do caminho que percorri e o que devo seguir. “O termo resgate é um substantivo derivado, regressivo do verbo resgatar, que significa livrar de cativeiro, de seqüestro, etc, a troco de dinheiro ou de outro valor e também retomar, recuperar.” (QUELUZ, 2000, p. 127) 13 Numa escola de ballet um curso tem a duração de oito anos e, mais recentemente a formação do profissional de dança se faz em cursos universitários de quatro anos, numa seqüência de conteúdos cumulativos e progressivos. 12

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Pistas que Ivani FAZENDA (2001) chama de vestígios, que se apresentam não como verdades acabadas, mas como lampejos de verdade. Cabendo a mim, como aluna/pesquisadora interdisciplinar, decifrar e reordenar esses lampejos de verdade para intuir o que seria a verdade. Refletindo a respeito dos motivos que me levaram a essa postura de isolamento, no que toca meu aprendizado em dança e também em relação a minha formação como professora, vejo que eles residem na minha relação com o ensino formal. Nesse momento é oportuno aceitar o convite de Regina BOCHNIAK (1998) em seu livro Questionar o conhecimento, para desenhar cenas para ilustrar reflexões e a questionar tudo o que vivi dentro e fora da instituição de ensino. Em minhas cenas, o tema central são as dicotomias, o cenário é a maneira como as escolas são organizadas, em séries e graus de acordo com as fases do desenvolvimento da criança, seu sistema de avaliação por resultados. Como protagonista, eu estudante, vivendo um conflito em que, apesar de ser uma “aluna nota dez”, considerada brilhante, precoce, vive com uma sensação de desajustamento, a sensação de que “não aprendo direito” as disciplinas que são consideradas as mais importantes (matemática, física, química, biologia, gramática) por que concentro minha energia em meus interesses que são outros (arte, filosofia, música, história, literatura, religião). Tomando como referência os critérios de avaliação aos quais fui submetida na escola e nos cursos de dança e comparando-me à maioria dos colegas, muitas coisas no meu processo não aconteceram na "hora certa". Etapas foram puladas, outras levaram muito mais tempo que o previsto para acontecerem, levando-me a me descobrir diferente dos outros. Uma diferença que a escola como é, onde o critério predominante é o da homogeneidade (BOCHNIAK, 1998), não me ajudou a elaborar criativamente, gerando, no meu caso, um solitário xamã14 sem tribo. 14“

xamã . [Do tungue2, pelo russo, pelo ingl. shaman e/ou pelo fr. chaman, poss.] S. 2 g. Antrop. Etnol. 1. Entre certos povos asiáticos (Sibéria), espécie de sacerdote ou médico feiticeiro (q. v.), que atua como curandeiro e adivinho. 2. P. ext. Em diversos povos e sociedades, especialista a que se atribui a função e o poder, de natureza ritual mágico-religiosa, de recorrer a forças ou entidades sobrenaturais para realizar curas, adivinhação, exorcismo, encantamentos, etc., e cuja atuação pode ou não envolver um estado de transe. [Não há, na antropologia, consenso geral quanto à diferenciação precisa entre xamã, feiticeiro e sacerdote. Costuma-se empregar o termo xamã (assim

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Esta imagem resultante do ato de desenhar uma cena me coloca diante de uma das questões da interdisciplinaridade, a da ambigüidade, mais especificamente, solidão/desejo de parceria. Por que esta solidão me levou a uma longa peregrinação em busca de uma tribo onde pudesse me estabelecer, com a qual me identificasse, em que minha linguagem fosse compreendida, encontrando assim meus iguais. No entanto, para poder reconhecê-los deveria primeiro reconhecer-me. Compreendo agora por que, sem explicação, ou memória tangível, a identidade15 tem sido o mote de minha busca na existência. Neste processo de transformação de ator para autor, usando o recurso do resgate da memória retida, ativando-a, relembrando fatos, histórias particulares, épocas, posso proceder a análise e a projeção dos fatos, podendo, assim, recuperar a origem de meu projeto de vida. Fortalecendo, assim, a busca de minha identidade pessoal e profissional, minha atitude primeira, minha marca registrada. Porém, meu maior equívoco foi pensar que isso podia se fazer independentemente de um grupo. Esta constatação me leva a um exercício de me defrontar com uma outra ambigüidade, a do desapego/entrega dessa atitude prepotente. Agora sei que parceria é categoria maior da interdisciplinaridade e que, sem a parceria, o conceito de identidade fica incompleto. Aprofundando um pouco mais essas idéias, o que a interdisciplinaridade me mostrou é que, como sempre suspeitei, identidade não “nasce” pronta e acabada. Ela é construída passo a passo, configurando-se num projeto individual de trabalho e de vida que nunca pode ser dissociado de um projeto maior, o do grupo. “Identidade como categoria da interdisciplinaridade que pode ser classificada como xamanismo [q. v.]) no contexto dos povos asiáticos setentrionais (inclusive os esquimós) e ameríndios, em que esse tipo de especialista tem papel social de destaque.] “ (FERREIRA, 1999, p. 2094) 15 “identidade . [Do lat. tard. identitate.] S. f. 1. Qualidade de idêntico: Há entre as concepções dos dois perfeita identidade. 2. Conjunto de caracteres próprios e exclusivos de uma pessoa: nome, idade, estado, profissão, sexo, defeitos físicos, impressões digitais, etc. 3. O aspecto coletivo de um conjunto de características pelas quais algo é definitivamente reconhecível, ou conhecido: estabelecer a identidade de peças tombadas. 4. Cédula de identidade. 5. Álg. Mod. Elemento identidade. 6. Filos. Qualidade do que é o mesmo (q. v.). [Cf., nesta acepç., alteridade.] 7. Mat. Relação de igualdade válida para todos os valores das variáveis envolvidas. Identidade visual. 1. Personalidade visual de empresa, resultante do efeito iterativo das características comuns de suas imagens visuais. 2. Conjunto de elementos gráfico-visuais padronizados (logotipo, uniformes, embalagens, papéis de correspondência, etc.) que estabelece essa personalidade” (FERREIRA, 1999, p. 1071)

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como individual ou coletiva, real ou virtual ou todas ao mesmo tempo convivendo, colaborando, competindo, se consumindo ou se multiplicando. Tratar sobre identidade é buscar dentro e fora da gente; é desvelar, desnudar; é deixar cair o véu que nos cobre para nos conhecermos em nós mesmos e nos conhecermos nos outros. Saber onde eu começo e onde termino, onde interajo, onde me separo, onde acredito ou nego. (...) Para me identificar com alguma coisa ou com alguém, não preciso necessariamente estar junto desta pessoa, a identidade também é criada ao redor de idéias e objetivos comuns.” (GUIOTI, 2001, p. 50) Ao identificar-me estabeleço parcerias, que levadas ao nível da intersubjetividade passam a ser muito mais que uma questão de troca, pois o segredo está na intenção da troca, na busca comum da transcendência.” (FAZENDA, 2001, p. 22)

Assim sendo, descobri que, na verdade, nunca estive sozinha, pois tenho comigo parceiros que trago para este trabalho para reunirem-se aos novos que agora encontro. Com essa descoberta foi deflagrado um processo transformador, onde vivo, na interdisciplinaridade, a experiência da morte de uma identidade fundada essencialmente num individualismo egocêntrico, para renascer pesquisadora interdisciplinar, formada por várias consciências, um ser habitado por muitos e diferentes aspectos, em comunhão com outros tantos múltiplos e diversos, parceiros desta vida, mestres, professores, alunos. O trecho abaixo retirado do livro Shiva e Dionísio: a religião da natureza e do Eros, de Alain DANIÉLOU (1989, p. 157), me ajuda a expressar como me sinto : “A individualidade humana como a de todo ser é formada por um nó, um ponto onde estão ligados diversos elementos tomados da matéria universal, da consciência universal, do intelecto universal, que cercam um fragmento da alma universal indivisível, como o espaço fechado na urna que não é distinto do espaço universal. Na morte o vaso rompe-se, o nó desfaz-se e cada um dos elementos que constituem o ser humano retorna ao fundo comum, para novamente ser utilizado em outros seres.(...) À sua fonte retornam os quinze constituintes do corpo e aos seus respectivos deuses todas as divindades dos sentidos. As ações, assim como a alma feita de inteligência, tudo se unifica com o Imortal supremo. Como os rios que correm perdem-se no mar, abandonando nomes e formas, do mesmo modo a alma iluminada, livre de seu nome e de sua forma, funde-se ao Homem universal feito de luz, que é mais alto que o mais alto. (Mundaka Upanishad, III, 2, 7-8).

Concluo esta reflexão com esta imagem do Gayatri (fig 16), que fotografei na minha primeira viagem à Índia, no Museu de História das Religiões de Prashanti Nilayan (O templo da paz celestial).

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FIGURA 16 – GAYATRI (ÍNDIA 1998)

Uma metáfora visual que uso como recurso para melhor explicar e compreender interdisciplinaridade, metáfora esta resultante do encontro da minha identidade de artista/professora com a da pesquisadora. O Gayatri é uma representação da Grande Mãe Universal onde se reúnem todas as deusas femininas do panteão hindu (Lakshimi, Sarasvati, Durga, Kali) e todos os seus atributos. É interessante notar em seus detalhes que, ao contrário do que poderia se esperar de uma síntese visual, onde geralmente as particularidades e individualidades são anuladas numa imagem única, esta escultura reúne as individualidades, compondo uma unidade. Tanto no significado como na estruturação da forma visual, encontro uma síntese para todos os itens que explorei até aqui sobre interdisciplinaridade. Encerro este movimento de minha pesquisa fazendo minhas as palavras de Ednilson Aparecido Guioti : Ao ler estas linhas espero que meu leitor lance sobre elas um olhar profundo tentando buscar a essência, um significado maior. Poderá ou não identificar-se com o que está escrito. Se esta identidade acontecer, posso começar a fazer parte de você, e assim como para escrevê-lo passei a ser muitos outros que li. (GUIOTI, 2001, p. 51) : Convidando a todos para dançarem comigo os atos desta coreografia/escrita.

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4 Ato I: infância FIGURA 17 – MENINA DANÇANDO

(Capa National Geographic Magazine , v.155, n. 6, june 1979)

Protagoniza o tema deste ato uma imagem de uma menina dançando (fig. 17) que um dia encontrei na capa de uma revista. Meu apego a esta imagem se explica pela sensação que senti na época , de estar me olhando num espelho. Emoldurando essa imagem o trecho do sári que representa este período da minha vida, que pintei sobre um fundo cor-de-rosa, que é a cor que tinge as memórias da minha infância com amorosidade, alegria e ingenuidade. Sobre este fundo, a origem das linhas que vão percorrer toda minha vida, a dança em carmim, a formação escolar em verde limão e as artes plásticas em azul marinho. Nestas linhas localizo o ponto onde começou a germinar a dançarina e a professora de arte. Para poder falar da minha formação de artista e professora e da dança, como eixo dessa formação, resgato como aprendi a dançar, ou de como não

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aprendi a dançar, iniciando a minha investigação pelo resgate de como se deu a origem deste desejo de aprender a dançar. Identifico esse momento com o ofício de brincar, característica base da infância.

Acredito que as crianças, independentemente do nível de consciência que tenham, aprendem a desenvolver, selecionar e organizar suas qualidades de esforço16 por meio das brincadeiras. Ao brincarem, simulam todos os tipos de ações que lembram, de maneira muito marcante,as ações reais (ataque, defesa, tocaia, ardil, vôo, medo, coragem) que terão necessidade de praticar, quando tiverem que se manter autonomamente no futuro.” (LABAN, 1978)

Concordo com Laban quando diz que nas crianças denominamos tal atitude de brinquedo, nos indivíduos adultos, dança e representação. Esclarecendo que, também conforme Laban, nada nos impediria de rotular essas brincadeiras de atuação dramática, não estivessem as palavras atuação e drama reservadas para a exibição consciente do homem, no palco, de situações da vida. Há também uma diferença aí, no sentido de que a representação no palco exige um expectador a quem possa o ator se dirigir, ao passo que, ao brincarem, as crianças não têm qualquer preocupação com a presença ou não de platéia. O brinquedo da criança, desta maneira, aproximase mais da dança que da representação posto que a dança nem sempre exige público. Se as crianças e os adultos dançam, quer dizer, se executam certas seqüências de combinações de esforço para seu próprio prazer, não é necessário audiência. Na memória das minhas brincadeiras, encontro as raízes da minha dança na descoberta da capacidade de domínio do movimento, das possibilidades

de

mudar

de

atitudes

em

função

das

necessidades

experimentadas.

Cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva e esse ponto de vista muda conforme o lugar que aqui ocupo; e esse mesmo lugar também muda, segundo as relações que mantenho com outros meios. A sucessão de lembranças, mesmo daquelas que são mais pessoais, explica-se sempre pelas mudanças que se produzem em nossas relações com os diversos meios coletivos, isto é, em definitivo, pelas transformações desses meios, cada um tomado à parte em seu conjunto.” (HALBWACHS, 1990, p. 51)

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Por uma questão de sobrevivência, a memória se encarrega de ativar e desativar conexões automaticamente. A informação que se mantém é a que consegue realizar o maior número de interações com o já aprendido,o que já foi estruturalmente assimilado e faz parte do acervo de conhecimentos da pessoa.” (Kenski, 1998, (Atrator Estranho), 30, p.40)

Lembrando dos quintais, das ruas, dos pátios, das quadras, dos campos, das praias, das casas da minha infância, percebo o imenso exercício de exploração e domínio do espaço, da discriminação entre o meu espaço pessoal e o espaço global e o compartilhamento destes espaços com o outro. Brincando e adequando meus movimentos aos espaços em que as brincadeiras ocorriam, fui percebendo a minha dimensão corporal em relação às dimensões circundantes e a seleção dos movimentos realizáveis nas diferentes situações espaciais. Vivendo nos quintais a aventura do contato com as árvores o exercício de subir nelas, conhecer sua estrutura, a força de seus galhos em relação ao meu peso, a força necessária para agarrar-me ao tronco para não cair, fui adquirindo a percepção da força da gravidade. Por ter que encontrar a reentrância onde apoiar os pés, moldando o corpo à arvore fui desenvolvendo a flexibilidade. Pude descobrir o prazer de encontrar, nos galhos mais altos, os frutos mais doces e, lá do alto apreciar a paisagem saboreando a fruta madura do sol, assim, experimentei o sentimento de vitória. Aprendendo a compartilhar o espaço com outros habitantes da natureza, os insetos, e, descobrindo como vivem outras formas de vida, perseguindo as formigas até a sua toca, disputando a fruta com as abelhas, escapando das queimaduras das taturanas, observando os brotos, as flores, as raízes penetrando a terra, e, aprendendo com meu pai que é preciso regá-las com a água nos dias quentes de verão e nos períodos de seca, aprendi a acompanhar e conhecer o ciclo vital das plantas. Descobri um mundo fantástico em que me sentia integrada, participante, esticando-me, encolhendo, saltando, arrastando, rolando acompanhando as formas orgânicas da natureza circundante; fui adquirindo agilidade, flexibilidade, precisão e destreza.

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Impulsos internos a partir dos quais se origina o movimento. O componente constituinte das diferenças nas qualidades de esforço resulta de uma atitude interior (consciente ou inconsciente) relativas aos seguintes fatores de movimento: Peso, Espaço, Tempo, Fluência.

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Nos amplos espaços descobri que a locomoção pode ser mais que apenas andar, pode-se correr, pular, saltar, girar. A experiência da força do vigor, do fôlego, da respiração, da liberdade, das conquistas em relação ao desafio do equilíbrio, a polaridade da queda e a recuperação, podem sintetizar a idéia da aprendizagem de sentir-se vivo. É muito importante a liberdade para brincar em diferentes espaços, pois a percepção das dimensões do espaço, adicionada aos diferentes níveis de movimento que estes proporcionam são fundamentais para a estruturação da postura ereta e do equilíbrio. Brincando com/em superfícies regulares, irregulares, íngremes, planas, duras, macias, no contato da pele com os elementos, desenvolvi a percepção do quente, do frio, do áspero, do liso, do escorregadio. Por fim, vivendo a sensação da imersão na água, sentindo o corpo flutuando nas ondas do mar, mergulhando e experimentando a sensação de equilibrar-se sem a referência de uma superfície de apoio, aprendi a respeitar uma coisa que é infinitamente mais forte que nós, o sentimento da pequenez da dimensão humana em relação à dimensão do mundo. A princípio fui percebendo o corpo como um todo, em sua força, agilidade flexibilidade e equilíbrio e, depois, conforme os machucados foram aparecendo, os joelhos ralados, os hematomas, os arranhões, as dores nas articulações aos poucos comecei a entender como funciona o esquema corporal, sua estrutura e seus limites. Aprendi que se engolir muita água, a gente pode se afogar que, se correr demais, há uma dor muito forte do lado; que não existe vida sem respiração, que a cabeça deve ser sempre protegida, senão pode-se perder os sentidos numa batida. Meu corpo foi, durante toda a minha infância, meu brinquedo favorito, aquele que mais prazer proporcionou. Durante o dia, explorava suas possibilidades ao máximo e, à noitinha, depois do banho, gostava de observar as marcas que havia adquirido naquele dia, cuidando dos ferimentos eu mesma, pois sabia como me tocar para não sentir dor e o ardor do merthiolate. O mais interessante foi descobrir a capacidade de regeneração que o corpo tem, observando os ferimentos, desde o momento em que estão sangrando, até a formação de uma casca e, por fim, quando a casca começa a se

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desprender e revelar a pele reconstituída por baixo, ou então, a evolução dos hematomas e suas várias colorações, desde o roxo até o amarelo claro. Saber identificar os diferentes tipos de dores, dos ossos, dos músculos, da pele, dos órgãos, me trazia segurança por entender o que estava acontecendo comigo. Da mesma forma, o conhecimento da duração da dor e o tempo necessário para regeneração daquela parte machucada ensinaram-me o que eu poderia fazer, ou não, enquanto estivesse em recuperação; aprendi a mover-me com cuidado. Percebi que quanto mais concentração e domínio das ações conseguia, desenvolvia mais liberdade e segurança para brincar e satisfazer minha imaginação, sem me machucar. O pior castigo era não poder brincar e por isso, devia me cuidar para não me machucar demais. Devia respeitar os limites, na medida do possível, e enfrentar com resignação os períodos de repouso impostos pelas doenças da infância, como o sarampo, a catapora, que eram situações sobre as quais eu não tinha o menor controle e que me faziam perceber o quanto ainda dependia dos adultos para me cuidar. Enfim, nas brincadeiras, pude experimentar experiências de uma riqueza de movimentos e sensações que por serem vividas intensamente, ficaram impregnadas em mim e formaram um alicerce para minha maneira de ser e estar no mundo. As brincadeiras de rua, de roda, de casinha, de boneca, aquelas em que fazia parte a "massinha", o desenho, as brincadeiras de subir em árvores, as de misturar barro no quintal, patinar, andar de bicicleta, pular corda, amarelinha, despertaram em mim a essência do meu dançar. Nessas brincadeiras também aprendi a me relacionar e a entrar em contato com as minhas emoções. Sentia um desejo constante de aprender, de experimentar novas emoções, novos desafios pelo prazer da superação. Na infância ainda não existe o medo do impulso de sair correndo e perder-se, porque o aprendizado de se perder-se é achar-se. Quem nunca se perdeu num bosque quando era criança nunca vai saber o que se passa para se achar o caminho de volta. Imagino que quase todo mundo tem uma história de perder-se na infância, para contar. Uma grande aventura! Aprendi a arriscar-

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me, a ousar e, aos poucos fui aprendendo, também, a dosar meus impulsos, quase a ponto de não reprimi-los. Enquanto estava brincando sozinha, tudo era muito fácil; eu no meu mundo particular, criava minhas próprias regras, seguindo meus desejos, inquietações, curiosidades e fantasias, exercitando o outro aspecto de me aventurar, a aventura da imaginação. Nas brincadeiras sociais, experimentei novos desafios, nas brincadeiras de roda as meninas mais velhas ensinavam as cantigas e coreografias que, depois de aprendidas após várias repetições e erros, proporcionavam o enorme prazer de pertencer e estar em sintonia com um grupo, num processo que envolve também uma identificação cultural. As rodas, as amarelinhas e as cordas abriram para mim um universo de movimentos mais sofisticados, como o saltar numa perna só, saltar e girar ao mesmo tempo, controlar a distância dos saltos, o equilíbrio numa perna só, o skip (saltitar), o galope, o agachar, o congelamento da ação. Crianças ensinando crianças. Há um tipo muito especial de brincadeira, que chamo de brincadeiras dramatizadas, em que faz parte também a representação, nos momentos em que se tem que ir ao centro da roda recitar versos ou pagar uma prenda. Outras exigiam também variações de ritmos e velocidades conforme a história; com essas brincadeiras aprendi a conquistar meu espaço no grupo. E havia as brincadeiras de rua em que participavam as meninas e os meninos, em que se percebia, em primeiro lugar, a supremacia física dos meninos sobre as meninas; os meninos sempre mais fortes e velozes eram um constante desafio; com eles aprendi a força, o impulso e a explosão no movimento. Além dessas, uma das coisas mais importantes das brincadeiras de pegar foi aprender a “dar bailinho” no pegador, o que significa driblar o oponente com jogos do corpo, como forma de superar a falta de velocidade, de desenvolver os reflexos e liberar os instintos. Aprendi com isso a observar a perceber o outro pelos movimentos e reações. Brincar era também um exercício intenso de decorar, entender e dominar regras, regras e mais regras, sem contar as novas que eram criadas durante a brincadeira, cada uma com seu conjunto próprio de condições e que, ao mesmo tempo, variavam de grupo para grupo, de acordo com a cultura

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local e cuja compreensão dependia a possibilidade de participar das atividades de que tanto gostava. Nessas brincadeiras sociais, além dos movimentos, tantas coisas foram aprendidas, como o convívio com as diferenças, a lealdade, a derrota e a vitória, os confrontos, as comemorações, o espaço do outro e o meu espaço no espaço do grupo, quantas amizades nasceram e quantas foram desfeitas... o amor e o desamor pelo meu semelhante... quantas descobertas... O desafio do movimento e suas diversas modalidades, a habilidade de improvisar diante do inesperado, o contato com os sentimentos, abriu novas possibilidades de expressão para meu espírito inquieto, num corpo em crescimento, cheio de vida e temperamento. Por fim as brincadeiras dramatizadas, mais calmas... as casinhas, as bonecas, as comidinhas, a escolinha, as artes permitiram-me a descoberta e o exercício da capacidade de criar. O momento de aquietar-se para pensar na vida, para exercitar o aprendizado e simbolizar as experiências vividas constitui-se num momento solitário de profunda introspecção e luta interior em busca da tradução perfeita das imagens que emergiam do meu interior, na tentativa de materializar uma idéia que surge como resposta a um problema existencial. A expressão de uma verdade interior como resposta a uma pergunta levou-me aos primeiros contatos com o não saber. Era um momento de estar comigo mesma, de pensar na vida, de me acalmar dos aborrecimentos e tristezas, de elaborar meus projetos, de fazer planos, de estar com meus irmãos e meus amigos mais queridos numa situação menos agitada. Mais uma vez, crianças ensinando crianças. Momentos em que nos ensinávamos uns aos outros uma série de “novidades” que havíamos aprendido. Cada um ensinava as suas melhores habilidades aos outros, como desenhar, modelar, pintar, rodar pião, jogar bolinha de gude, bater figurinhas, jogar saquinhos, contar e representar estórias e, assim aprendendo a trabalhar em grupo, aprendíamos a cumplicidade e o companheirismo.

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Nessas brincadeiras exercitava-se a possibilidade de refletir sobre a vida e as relações da família, da escola, enfim as relações humanas aconteciam, através do jogo teatral. O jogo teatral permitia a elaboração simbólica dos papéis da mãe, do pai, da professora, assim como a aprender a lidar melhor com as questões que me eram difíceis de compreender, como o medo do escuro o medo da bruxa, o medo dos pesadelos, enfim, o medo do desconhecido! Aprendi que esse tipo de medo estava relacionado com a percepção de uma coisa que apenas se sente, que está presente mas a gente não consegue ver. Brincar, jogar, dramatizar, enfim, poder, numa situação de tensão, escolher o final da história e ainda que se soubesse que o perigo naquela situação era

passageiro, podia-se contar com uma frase salvadora:  Não

quero mais brincar disso! Esse é o exercício de arriscar-se e salvar-se, da coragem e do recuo. Descobri também que um desenho sempre pode ser refeito, até que se consiga uma versão satisfatória. Com isso pude aprender com o erro, sem ficar paralisada. Essa descoberta foi fundamental para que o repetir, o refazer, o recontar, o errar e o recomeçar em busca do acerto fizessem parte da minha vida, até hoje. Lembro que era capaz de passar dias inteiros brincando no espaço fantástico que havia criado, no mundo do faz-de-conta onde tudo é possível, representando personagens, construindo espaços com panos e brinquedos e o que mais pudesse conseguir na casa para os empreendimentos arquitetônicos das casas, castelos e cabanas em que os objetos mudavam de função e eram ressignificados em razão do tema da brincadeira. Não posso esquecer os figurinos, as roupas da mamãe retiradas às escondidas do guarda roupa para vestir os mais variados personagens, as bonecas e seu teatro e os brinquedos todos. Creio que, por conta de tantas brincadeiras de casinha, por conta dos quintais que me trazem a lembrança de momentos de muita felicidade, vivi os simples divertimentos de criança, com a intensidade de grandes projetos de vida e me projetei mãe, bailarina, nadadora, artista plástica, e tantos personagens mais. E com isso pensei, precisei elaborar sentimentos, viver sensações, imaginar, criar, me expressar. Aprendi a extravasar todo um

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universo que inundava o meu interior. Lidei com um sentimento de não caber em mim que a felicidade provocava, com uma necessidade de dizer, de trocar, de comunicar, de sensibilizar o outro, de conhecer o igual e o diferente de entender o trânsito entre eles no binômio guerra e paz... presente nas relações humanas desde a mais tenra infância... Desde quando posso lembrar-me tenho o hábito de olhar para dentro e procurar quem sou, como sou e, a cada etapa da vida, encontro sempre um ser que mudou, um ser sempre mutante. Também, por uma razão inexplicável, sei que meu ser mudou porque aprendeu. Se há um lado tangível nesta busca é a consciência e a concretude das coisas aprendidas na escola e na vida, ou na escola da vida. Revisitando essa minha escrita da minha infância posso concluir que as brincadeiras me ensinaram que a vida é mais que comer, dormir, tomar banho, escovar os dentes, limpar as unhas e as orelhas, ir à escola. Identifico nos grandes quintais com pomar, que trazem a lembrança de saltos, giros, gritos de prazer sob o sol da manhã, do repouso no alto da pitangueira, das tardes encolhidas numa cabana de cobertores na cama beliche brincando de navio, esperando a chuva passar, o espaço onde começou a nascer a bailarina. Ainda vive em mim uma criança apaixonada pela vida por seu esplendor, pela paixão pelo movimento e que adora ser feliz e dançar! Que sabe que os melhores momentos da vida são aqueles usados para conhecer-se, que a vida é um eterno descobrir-se, e que é preciso aprender a ser independente para poder ter suas próprias idéias. Aos poucos, ao apossar-me das minhas lembranças da infância e ao cristalizá-las na minha escrita, pude entender que realizei o contínuo exercício de descobrir o caminho do meio para conectar-me ao meu centro, meu núcleo, meu interior e que ganhei, com o relato, a consciência de um tempo vivido. É esta infância sempre viva aqui dentro que me faz bailarina pois, quando dos brinquedos a vida se despiu, restaram todos os movimentos impressos no corpo. A herança deste momento de vida então se torna repertório, experiência de coisa vivida, um saber.

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Sinto hoje que é, neste trânsito, que ocorre a interdisciplinaridade, sobre a corda bamba da alteridade um eco dos anos 70. Afinal, identifiquei no meu jeito de ser criança um dos aspectos importantes da interdisciplinaridade – as fronteiras. Pelo teatro, saí do real e fui para a fantasia, treinando um olhar e um ouvido sensíveis aos personagens e pela dança, refinei gestos e movimentos até ficar em dúvida, danço eu ou a vida baila comigo? Quem sabe encontro outras pistas na adolescência?

5 Ato II: adolescência

FIGURA 18 - NATALIA MAKAROVA

Para dançar este ato trago o primeiro modelo de bailarina que conheci, a bailarina clássica

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(fig. 18) com suas sapatilhas de ponta. A sua imagem

diáfana, mágica, que me abriu as portas para o mundo da dança, sobrepõe duas lâminas da pintura, na linha divisória entre a infância/adolescência e projeta-se sobre o início a vida adulta, tentando retratar, desta forma, o período em que foi primeiramente modelo a ser atingido, depois como um modelo a ser 17

Natalia Makarova, bailarina clássica russa , em O lago dos Cisnes (coreografia de Petipa e música de Tchaikovsky) que utilizo aqui para ilustrar o modelo de bailarina que tinha em mente ao iniciar as aulas de balé clássico.

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negado e, por fim, como um modelo que se tornou referência nas minhas reflexões. Identifica o momento em que aprendi que para ser uma dançarina e que para poder ensinar é preciso pensar a dança, não apenas dançar. Lembro-me que, na adolescência, os brinquedos foram desaparecendo e o ensino formal tomando esse lugar. A escola consumia metade do dia, e a outra metade, as aulas de natação, inglês, balé, pintura, desenho, datilografia, enfim, as aulas daquilo que a escola não ensinava e que os valores familiares consideravam importantes para minha formação. O ensinamento desta estratégia de meus pais foi o de que a escola não dá conta de ensinar tudo o que é preciso saber. Outro dia, conversando com minha mãe sobre isso, perguntei o porquê deste procedimento e ela na sua maneira simples, objetiva e autêntica, serenamente foi me explicando seus motivos: “ Oras, por que eu e seu pai nos preocupávamos em estimular as aptidões artísticas que percebemos em você e seus irmãos, vocês viviam sempre desenhando, sempre envolvidos nas modelagens com massinha que achamos importante proporcionar essa formação a vocês. Também porque, apesar de sabermos que Educação Artística fazia parte do currículo escolar, consideramos que, numa sala de aula havia muita gente para o professor atender e num curso de artes, vocês poderiam ter um atendimento melhor. Assim foi com todas as coisas que os estimulamos a fazer, já que consideramos nos terem sido muito úteis na vida e quisemos que vocês também tivessem as mesmas oportunidades que nós, como a natação, a datilografia, o inglês, corte e costura, etc...”

Esta fala de minha mãe me fez recordar certos princípios sobre educação que faziam parte de nossa família. Educação, para meus pais, tinha a função de nos preparar para a vida, para a imprevisibilidade nela contida. Acreditavam numa educação voltada para o ser, não para o ter. Sempre ouvi de meus pais que o importante era ser reconhecido e admirado pelo que se é e não pelo que se tem. Sendo assim concluo que essa preparação para a vida segundo a interpretação deles, “ser alguém” não significava, ser bem sucedido numa profissão ou bem sucedido financeiramente, significava antes, de qualquer coisa, ser feliz e realizado enquanto pessoa, enquanto ser humano. Concluo estar implícita aí a idéia de totalidade, no momento em que havia neles a preocupação com o desenvolvimento de todas as nossas potencialidades. Estavam sempre lendo, atualizando-se sobre psicologia e educação e, às vezes, até nos irritavam com certos psicologismos e análises, que

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recebíamos como sermões infindáveis a nosso respeito, mas creio que a tônica maior, que sempre funcionou melhor, esteve naquilo que faziam intuitivamente. Meus pais nunca interferiram nas nossas escolhas profissionais; houve sempre, por parte deles um acolhimento incondicional de nossas escolhas e, mais que isso, uma aceitação de cada um de nós, como somos. Hoje traduzo estas atitudes de meus pais como a opção por uma educação fundada no amor e nos valores humanos. Esse modelo de educação, tão arraigado em mim, faz parte do que sou, e acredito estar presente e atuante na base da minha concepção de educação, influenciando cotidianamente minha prática, orientando minhas escolhas pedagógicas. Retomando a trajetória, na escola aprendi uma infinidade de coisas que esclareceram muitas indagações surgidas ainda na infância. Criada numa cidade do interior, Mogi das Cruzes, naquela época meados dos anos 60 e início dos anos 70, longe da capital, sem muitas opções e pouco contato com os grandes centros, mesmo assim tive acesso a coisas que definitivamente influenciaram minha formação. Estudei num bom colégio do Estado o Instituto de Educação Dr. Washington Luís que, na época, era a melhor opção, um colégio com uma proposta de ensino “moderna”, um projeto de ensino pluricurricular. O ginásio pluricurricular foi uma alternativa oferecida a alguns alunos da escola e funcionava paralelamente ao ginásio normal. Era uma proposta de ensino estruturado, integrando as diferentes matérias em um tema comum. Por exemplo, no primeiro ano, o tema era a cidade em que morávamos, tema que foi desenvolvido por todos os professores de todas as disciplinas. Um modelo que atualmente vejo sendo aplicado nas escolas como projeto interdisciplinar quando, na verdade, é um modelo de integração de disciplinas apenas como retrata Regina BOCHNIAK (1998), conforme destaco a seguir:

A escola compõe seus currículos como um amontoado de disciplinas uma ”colcha de retalhos”, como se cada uma delas fosse estanque. Admite então, por exemplo, como solução para a prática da interdisciplinaridade, a junção de assuntos de história com os de geografia, na área denominada estudos sociais, e orienta seus professores a abordar os conteúdos próprios de cada ciência com mais superficialidade, desde que sejam integrados no tempo, num momento, ou até mesmo numa mesma aula. Acata as mais absurdas idéias de

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relações de afinidade; num problema de matemática, por exemplo aceita que com mera referência ao número de ossos do corpo humano se esteja desenvolvendo a atitude interdisciplinar na escola. Por inacreditável que possa parecer, à época da implantação da Lei n. 5.692/71, até mesmo organismos oficiais do sistema educacional sugeriram esse tipo de expediente aos professores, como forma de colocar a interdisciplinaridade em prática. E isso sem considerar o caso da escola confessional que, para desenvolver seu “Projeto Intercisciplinar”, valia-se de expedientes de integração entre matemática e religião, como o de propor problemas que iniciavam por: “Jesus foi à feira e comprou...”.

Apesar de ser um modelo equivocado de interdisciplinaridade este ginásio teve uma grande influência na minha maneira de pensar e olhar o mundo, relacionando as coisas ao meu redor, sempre procurando entenderlhes o todo e as partes. Da escola primária trazia para o ginásio a forte lembrança da emocionante aventura de aprender a ler e escrever a minha língua... um momento inesquecível... mágico, em que todo um novo mundo se abria para mim, pelo simples fato de ser capaz de reconhecer as letras e saber associálas em sílabas e palavras. As figuras dos livros que costumava folhear passaram a ter uma história, uma explicação, tornei-me uma leitora voraz, e tive muita sorte porque havia na minha casa uma farta biblioteca com muitos autores e assuntos diferentes. Meus pais, ao perceberem meu interesse, me auxiliavam nas escolhas e passaram a comprar coleções em fascículos com os meus assuntos favoritos; já naquele tempo a história da arte ocupava o primeiro lugar nas minhas preferências. Também, estimulada por minha madrinha, que morava no Rio de Janeiro passei a escrever cartas e poesias, que ilustrava com desenhos coloridos a exemplo do que via nos livros. Depois, no ginásio, descobri que há muitos idiomas diferentes no mundo e, um pouco mais tarde, que há diferentes formas de conhecer o mundo e o ser humano. Da escola fiquei com o bom português, uma péssima matemática, o gosto pela literatura, o fascínio pela atomística, ódio pela química, simpatia pela biologia, a visão do mundo através de mapas da geografia, e a decisão de tomar a Arte como profissão. Na escola fiquei sabendo que era artista num sentido ainda muito vago. E ao lado da arte, a matéria que também me instigava e fazia pensar era a história. Como era possível tanta instabilidade na

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linha do tempo? Por que os que vinham depois não aproveitavam o que os anteriores haviam feito? Por que os deuses mudavam tanto? E tantas coisas eram feitas em nome dos deuses todos. Tenho passado a vida inteira tentando desvendar as inúmeras perguntas que os meus professores de história não consideravam pertinentes, e que hoje me colocam ainda aqui tentando decifrá-las. Foi na escola que descobri que se o meu corpo se regenerava das doenças e machucados é porque sou um organismo vivo, por que o sangue tem substâncias coagulantes que promovem a cicatrização. Que há no meu organismo um sistema imunológico que me protege dos microorganismos. Todo o universo que há no corpo humano, os ossos, músculos, ligamentos, articulações que eu aprendi

nas aulas de ciências, e nas

de

educação física, podia aprender nas aulas de arte olhando, maravilhada, para os estudos de anatomia dos artistas do Renascimento. Identifico nesse meu exercício de estabelecer essas relações entre as disciplinas, um momento preparatório para que eu aprendesse a transitar nas regiões fronteiriças do conhecimento, em que o “eu convive com o “outro”, nas quais os limites não estão muito definidos, e portanto, tornam-se espaços propícios para as transgressões. São intersecções que podem possibilitar troca, encontro, diálogo e, conseqüentemente, transformação e a construção de um novo conhecimento” (FURLANETTO, 2000). De certa forma, reside aí um ainda insipiente mas real indício da elaboração de uma atitude interdisciplinar em relação ao conhecimento. Na época do colegial, descobri que há muitas áreas do conhecimento especializadas e organizadas que se dedicam a estudar todas aquelas questões que eu havia intuído na infância. E que, assim como eu, muitas pessoas no mundo estavam dedicadas a entender a vida e o planeta em que vivemos. E, por fim, que todo o conhecimento e toda arte estão organizados em linguagens. O que concluí sobre linguagem é que, ao longo da sua evolução o ser humano vem desenvolvendo formas de comunicação em muitos níveis diferentes, ou seja, em todos os níveis em que é capaz de produzir

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conhecimento a respeito de si e do mundo. Desde cedo o homem percebeu a importância de transmitir os conhecimentos e trocar com o outro as suas experiências existenciais, também em todos os níveis em que percebe e se conecta com a vida, seja no nível cognitivo, no emocional, no sensorial, no espiritual, enfim, em todas as dimensões da vida. A linguagem das palavras faladas e escritas dá conta de comunicar e expressar muitas dimensões pois foram desenvolvidas muitas formas de textos diferentes, com inúmeras possibilidades de construção. Mas, há momentos em que se torna difícil dizer o que chamamos de indizível, falar sobre o insondável, sobre o inexorável, estar diante do desafio de representar as experiências que se passam no nível da intuição, da percepção e do instinto. E nestas circunstâncias há que se recorrer a linguagens não verbais. Por conta de que a natureza de cada experiência determina uma forma de expressão específica, há, então, a elaboração das linguagens visuais, sonoras, dos movimentos e gestos que também passam por um processo de elaboração, estruturação e codificação, assim como as linguagens verbais. Essa é uma questão muito importante já que posso perceber que na infância predomina o movimento de aprender e desenvolver a percepção e, na adolescência, o movimento de aperfeiçoar a comunicação e a expressão. Assim como na alfabetização da língua escrita, há todo um processo de aprender os códigos das linguagens não verbais para atingir a expressão e comunicação. E esse aprendizado implica muito exercício, e o desenvolvimento da observação e da concentração. Também

identifico

nesta

fase

um

trabalho

de

apropriação

e

aperfeiçoamento das habilidades aprendidas na infância. É por isso que denomino essa fase como a fase do aprendizado do domínio da forma, a princípio usando como apoio modelos, para, depois, aprender a se soltar e criar a suas próprias formas. Aprender a discriminar o que está sentindo, pensando, conhecer sua realidade, simbologia e significado para poder se fazer entender em todas as situações. Aprender a decifrar e construir metáforas. Nessa fase já se podem experimentar exercícios de abstração em relação à lógica, diferentemente da infância, quando a imaginação era predominante. Movimentos de comparação ,

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analogia, análise e crítica tornam-se possíveis e são matéria prima para o trabalho de criação. Vejo, hoje, que foi na adolescência que adquiri as ferramentas necessárias para essa autonomia da construção do conhecimento. Dos aprendizados daqueles tempos, quero destacar os que foram significativos para minha formação de artista: Nas artes plásticas, encontrei o mundo das imagens, e sua relatividade, a relação forma/conteúdo. Nos livros e na sala de aula, conheci artistas plásticos, pessoas que vêem o mundo sob uma outra ótica. Aprendi a pensar e expressar imagens através do desenho, da pintura e da modelagem. No teatro, aprendi a humildade e a generosidade, o mundo das relações, de você com você, de você com o outro. Aprender a ouvir, esperar a minha vez, a não esperar de você e do outro aquilo que não pode dar. Comecei a aprender a viver, a materializar pensamentos em ações, imagens em cenas, minhas e dos outros, interpretar. Enfim, aprendi a pensar e expressar, idéias e compreender a força das palavras e dos gestos. Na dança a paz, os momentos em que tudo fazia sentido, o belo... experimentei, pela primeira vez, o sabor da minha alma, um gosto de liberdade do espírito, a vertiginosa sensação de voar por um espaço sem começo e sem fim. Aprendi a pensar movimentos e expressar sentimentos e sensações. Fiquei sabendo que o ser humano pode mudar. Que os desafios da linguagem e da expressão provocam mudanças alquímicas dentro de nós. Que se pode aprender a lidar com sua própria natureza, como se molda um bonsai. Para exemplificar o aprendizado de uma linguagem não verbal escolhi a minha experiência em dança que relato a seguir. Como já disse anteriormente, quando fiz oito anos tive meu primeiro contato com

a dança formalizada como linguagem, e encontrei aí a

substituição para o brincar. Abriu-se um caminho para que, mais tarde, encontrasse uma nova possibilidade para o brincar, "brincar com o corpo", com os movimentos, não com a mesma liberdade, mas com o mesmo grau de

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prazer e seriedade, pois tudo era novo, tudo estava por ser conhecido e reconhecido.

O desafio de aprender balé clássico, mais correto dizer, a técnica clássica: difícil encontro com uma coisa difícil.

Quem diria que aquela menina agitada, impulsiva, criativa, alegre, vibrante, principalmente rebelde e cheia de ilusões iria se ver à voltas com uma situação tão desafiadora como a de aprender balé. Sim porque, na minha imaginação, dançar balé era um sonho delicado. Quando soube que iria aprender fiquei nas nuvens por alguns dias antes que a realidade se abatesse sobre mim. Neste relato pretendo realçar, em primeiro lugar, quanto ao que se aprende com as peripécias da vida. E depois, o que fazer quando as coisas não ocorrem do jeito que você havia imaginado. Tinha em mente o símbolo da bailarina, aquela imagem que apresento no início deste capítulo, aquela figura diáfana de um ser quase irreal que assistia pela televisão. O encontro com o "belo insustentável" que Acássio Vallin discute no livro Fome de Cão, cujo teor tentarei ilustrar aqui por meio deste relato. Digo isso porque passado o choque inicial reconheço nas palavras deste amigo dançarino, o retrato fiel do que é esta experiência na vida de uma menina. Tivemos a oportunidade de conversar a esse respeito durante o período em que dividimos a cadeira de História da Dança na Escola de Bailados onde Acássio também era o diretor e implementou significativas mudanças no currículo de formação de bailarinas, com a intenção de ampliar os conhecimentos e de atualizar a metodologia de ensino da dança clássica que, surpreendentemente, ainda nos dias de hoje acontece de maneira muito parecida com a que vivenciei anos atrás que reproduz, ainda, os moldes criados na corte do Rei Sol Luís XIV. O que quero dizer é que, para uma menina, isso significa, entrar em contato com uma técnica sistematizada por uma estética aristocrática, com

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movimentos rigorosamente codificados, com leis e regras de beleza que impõem ao artista, disciplina rígida, dedicação exclusiva e construção de um corpo quase artificial que rompe inclusive com a anatomia humana, deformando ossos e músculos, por vezes provocando seqüelas irremediáveis em idade mais avançada. Uma arte belíssima que, ao longo de cinco séculos, desenvolveu uma técnica corporal, sofisticada e admirável, incorporando todos os avanços tecnológicos através dos tempos, tornando-se referência fundamental para toda a história da dança desde seu surgimento. Uma arte que implica um árduo aprendizado em que disciplina, rigor, sacrifício e determinação são condições imprescindíveis. Fui matriculada nas aulas, não para aprender a dançar, mas para emagrecer. Um físico adequado é pré-requisito para ser bailarina. Já comecei sabendo que, para conseguir um bom papel no espetáculo de fim de ano, teria que fazer um milagre. Aos oito anos de idade, a idéia de incorporar o símbolo da bailarina me fez decidir pelo milagre. Estudar balé, para mim, tornou-se uma atividade apaixonante e desafiadora, o ritual das aulas, a recriação das cortes do século XVI, a etiqueta para o comportamento, a preocupação do corpo sempre colocado, gestos estudados, sorrisos estudados meticulosamente, repetidos, corrigidos, limpos constantemente. E os movimentos! Lindos,

precisos,

complexos,

exigem

agilidade,

força,

precisão,

coordenação, equilíbrio, musicalidade, atitude, postura, flexibilidade, controle, fôlego e força. Decididamente vestia o uniforme para a aula: por baixo da meia calça cor-de-rosa, uma calça plástica também cor-de-rosa para me fazer transpirar nas partes que precisavam diminuir peso, sobre as duas um colant preto, uma sapatilha preta, muito gumex nos cabelos lisos para segurar o coque, e para finalizar um cinto de elástico apertado para marcar a cintura, uma pulseira no pulso direito para ajudar na lateralidade canhota, e lá ia eu, feliz, para a aula, parecendo uma extraterrestre, suar muito mais que as outras, carregar muito mais peso que as outras, fazer muito mais força que as outras e disputar com elas, em condição desigual, um bom papel nas coreografias pois, para mim,

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isto significava poder dançar mais tempo, posto que quem não tinha papel ficava eternamente na barra fazendo exercícios que, na minha compreensão de criança, nunca eram usados para coisa nenhuma. Tinha, a meu favor, força e flexibilidade adquiridas na natação e nas brincadeiras todas da infância, musicalidade instintiva e uma capacidade de observação aguçada pelas aulas de pintura que me ajudava muito na compreensão dos movimentos. A despeito da aridez, crueldade, autoritarismo do ensino da técnica clássica, tenho adoração pelos movimentos que ficaram gravados na memória de meu corpo, pelas coreografias que dancei, e que muitos anos mais tarde como professora de História da Dança na Escola Municipal de Bailado, pude reencontrar com este mesmo sentimento nos olhos de minhas jovens e determinadas alunas bailarinas. Se minha mãe soubesse o que sei hoje, jamais teria feito isto comigo, foi uma experiência dolorosa que abalou bastante minha auto-estima. Mas, por contraditório que pareça, hoje agradeço a ela pela decisão tomada, pois tornou-se um grande instrumento, um conhecimento fundamental para a compreensão da evolução da dança e, mais ainda, muito além do que se possa imaginar, despertou esta paixão que me coloca aqui, até hoje, mergulhada neste mundo maravilhoso em busca da harmonia entre o corpo e a alma. Mas quem sabe se eu não tivesse continuado a estudar dança, hoje, na minha memória, o balé clássico constasse apenas como o registro de uma técnica de emagrecimento. Porém, como me tornei estudiosa da arte e pude integrar esta experiência, avalio que aprendi uma técnica valiosa que me serviu toda a vida e que, mais tarde, ao estudar a coreologia de LABAN (1978), pude identificar com facilidade em detalhes, cada um dos elementos relativos ao uso do espaço, aos fatores do movimento e às dinâmicas de movimento e tudo o mais. No meu trabalho prático, além de desenvolver a concentração, isso me ajudou a identificar e utilizar os elementos da linguagem como o desenho do movimento no espaço, as formas que este assume, suas direções e tensões dinâmicas, o que me tornou capaz de colocar uma intenção no trabalho expressivo. Compreendi os mecanismos necessários para aliar uma técnica

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corporal a uma intenção expressiva. Outra coisa que aprendi foi, interpretar as idéias de um coreógrafo, traduzi-las em movimentos e, fazer a metamorfose18, tornar-me o personagem. O tempo foi passando, dancei, emagreci, aprendi muita música clássica e cheguei à adolescência assim. Hoje em dia não consigo conceber o ensino da dança em que a teoria esteja dissociada da prática pois a prática desprovida da teoria corre o risco de tornar-se adestramento, como no caso do balé clássico ou, então, livre expressão, ou criação aleatória, desprovida de intenção como no caso da expressão corporal. Numa cidade de interior, os professores vêm e vão, tornando o aprendizado uma experiência sempre interrompida pelas circunstâncias. As limitações financeiras

familiares

também

contribuíram

para

que

meu

aprendizado em dança não tivesse a continuidade que era necessária ou que eu desejava. Assim, logo que D. Clara casou e parou de dar aulas na cidade, passei a estudar dança em cursos curtos sempre que podia, fazendo umas aulas ali, outras acolá, na medida em que as mensalidades coubessem no orçamento familiar ou que fosse oferecida alguma coisa gratuita. Foi esta instabilidade que me proporcionou entrar em contato com outras linguagens do conjunto das artes cênicas, teatro, expressão corporal e dança moderna, o yoga . Quando cheguei ao ginásio, começaram as aulas de Educação Física e nesta época passamos a ter altas doses de expressão corporal. Acho que era “moda”, porque, na quadra de esportes, em vez de jogar, dançávamos, foi uma sorte porque eu não era boa de esportes, detestava competir e expressão corporal era minha matéria favorita. Eu ia bem, tinha facilidade e a experiência do clássico, acrescida da liberdade de criar minhas próprias coreografias. A expressão corporal teve uma importância imensa pois resgatou para mim a magia e a liberdade da dança. Foi nessas aulas que comecei, “ No jogo dramático espontâneo o atuante é a fonte de expressão, fazendo o jogo do autor-ator, portanto a metamorfose - fenômeno básico deste jogo - aparecerá como resposta genuína do atuante interessado em transformar-se num outro, o que significa ampliar seu universo de comunicação, capacidade de expressão e criatividade. A metamorfose é o momento em que o indivíduo ultrapassa a si mesmo para elaborar a circunstância e a personalidade de um outro que independe da determinação de sua vontade ideal, interesse e características pessoais, físicas, éticas, morais, econômocas e políticas.” (LOPES, 1981) 18

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novamente, a experimentar movimentos livres, a escolher meus próprios temas e elaborar meus roteiros. Mas, principalmente, aprendi o significado da técnica no trabalho de criação uma vez que não teria a mesma desenvoltura se já não tivesse um repertório amplo de movimentos e uma técnica minimamente corporal desenvolvida. Já neste tempo, a técnica clássica era uma realidade no meu corpo mas não me tiranizava como antes; servia como suporte para que tivesse clareza e estilo e, principalmente, descobri que a técnica podia suportar outros passos e movimentos que não pertenciam ao repertório clássico. A técnica deixou de ser um molde para se tornar um recurso. Outro aprendizado que trago dessa época é o da técnica da improvisação19, tanto no teatro, lidando com situações-problema colocadas pelo diretor, como na dança ao explorar os movimentos sugeridos por um tema, fosse ele musical, emocional ou cotidiano. Descobri nos exercícios de improvisação que a relação com a música não precisa ter a rigidez dos compassos contados como no balé, há inúmeras possibilidades de um dançarino se relacionar com ela. É possível dançar as emoções que a música desperta, percebendo as tensões, os acentos dramáticos que trazem equivalentes de movimento como a leveza, o peso, a velocidade. É possível dançar a favor do ritmo ou contra ele. É possível criar relações entre o não movimento e as pausas da música. É possível dançar músicas instrumentais e músicas cantadas, músicas de diferentes culturas, não é obrigatório apenas dançar os clássicos. Não é preciso obedecer as contagens se se conhece e estuda a música em seus mínimos detalhes. É possível dançar no silêncio, ou dançar os ritmos internos; é possível dançar sem o acompanhamento da música. Viola SPOLIN (1982, p. 341) em Improvisação para o Teatro define improvisação como – “Jogar um jogo; predispor-se a solucionar um problema sem qualquer preconceito quanto à maneira de solucioná-lo; permitir que tudo no ambiente (animado ou inanimado) trabalhe para você na solução do problema; não é a cena, é o caminho para a cena; uma função predominante do intuitivo; entrar no jogo traz para as pessoas de qualquer tipo a oportunidade de aprender teatro; é “tocar de ouvido”; é processo, em oposição a resultado; nada de invenção ou originalidade” ou idealização”; uma forma, quando entendida, possível para qualquer grupo de qualquer idade; colocar um objeto em movimento entre jogadores como um jogo; solução de problemas em conjunto; habilidade para permitir que o problema de atuação emerja da cena; um momento nas vidas das pessoas sem que seja necessário um enredo ou estória para a comunicação; uma forma de arte; transformação; produz detalhes e relações como um todo orgânico; processo vivo. 19

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Em resumo, concebi uma maneira de dançar com a música, dançar a música, ter a música como partner e dialogar com ela e não mais ser sua escrava para, assim, poder libertar minha expressividade, minhas emoções enquanto danço. Para essas descobertas que fiz empiricamente, encontrei uma confirmação teórica anos mais tarde ao estudar história da dança moderna. Entre os criadores da dança moderna, a dançarina alemã Mary Wigman, aluna e assistente de Rudolf Laban, entre outras inovações que trouxe para a dança foi o fato de ela considerar que os ritmos de uma dança não deviam ser ditados por uma norma exterior pré-estabelecida, mas pela emoção e pela necessidade interior do artista, e que a dança não era uma composição mais ou menos elaborada de movimentos já codificados, mas que estes movimentos e formas deviam ter origem nos gestos cotidianos do homem, no seu trabalho, ou nas suas paixões, nos seus temores ou nas suas cóleras. Esta concepção do movimento implicava, por sua vez, uma atitude nova no que diz respeito às relações entre a dança e a música. Da mesma forma esta dança não podia fluir num molde musical pré-existente. Mary Wigman chegava a dançar sem música alguma, sendo o ritmo do movimento marcado apenas pela percussão de seus pés descalços no chão. “John Martin, em seu livro The modern dance inclui esta concepção de Wigman como um dos quatro modos de o bailarino moderno estabelecer uma relação com a música, sendo os demais a interpretação, a transposição, e o contraponto.” (MARTIN apud GARAUDY, 1980, p.107).

Influenciada pelas tendências estéticas dos anos 70, participei de apresentações, criei coreografias, happenings, pintei e bordei. Foi também nesse período que comecei a praticar uma atividade secreta nas horas de folga, em casa, quando não havia ninguém por perto, creio que muita gente já experimentou essa vivência secretamente, a de colocar uma música para tocar e dançar livremente pelo espaço da sala, pensando, devaneando, sonhando, imaginando, criando um momento mágico de estar consigo mesmo elaborando uma porção de coisas e, no meu caso, inclusive as coreografias que desejava apresentar. É um hábito que tenho até hoje. As aulas de clássico haviam terminado já há algum tempo quando chegou à cidade uma professora de dança moderna que fazia parte do grupo

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de Renée Gumiel20, em São Paulo. Seu nome era Regina, uma professora diferente, afetiva que me incentivava a desenvolver uma carreira e de quem ouvi, pela primeira vez, algo sobre meu talento. Suas aulas tinham alguns exercícios bastante parecidos com os do clássico, mas outros eram totalmente diferentes, com um grau de dificuldade maior, trabalhavam o corpo de modo diferente; os músculos abdominais eram mais exigidos na sustentação dos movimentos, ao passo que no clássico, os das costas e a coluna vertebral faziam esta função. Num ambiente mais descontraído, utilizava músicas variadas atuais como rock and roll e também os clássicos, de acordo com o exercício, o que possibilitava trabalhar o corpo e a interpretação ao mesmo tempo, de acordo com a sugestão emocional da música. Percebi que nessa proposta de dança que Regina trazia de São Paulo, apesar de ainda haver um forte condicionamento à técnica, havia espaço para uma bailarina intérprete de emoções mais reais, de temas mais ligados às questões mais existenciais e contemporâneas. Neste período aconteceu outro fato marcante. Durante minhas férias no Rio de Janeiro, minha tia Nicka, irmã da mamãe, me presenteou com um ingresso para o Balé Bolshoi21 no Teatro Municipal, foi quando vi, pela primeira vez, uma companhia profissional em cena num grande teatro. Lembro-me como se fosse hoje. Era um programa de divertissements (anexo 2), ou seja, uma apresentação de vários números diferentes, como danças folclóricas, Pas de deux22 de balés famosos e solos de grandes etoiles da companhia. O número final foi uma coreografia intilulada Isadora uma homenagem a Isadora Duncan23 coreografada por Maurice Béjart, interpretada 20

Renée Gumiel, uma das bailarinas e coreógrafas que trouxeram a Dança Moderna para o Brasil. Fundou em São Paulo em 1979 o Grupo de Dança Renée Gumiel. Entre suas coreografias destacam-se Mandala (1976), Argamassa (1978), e A memória gruda na pele protagonizada por ela aos 80 anos, em 1993. (KATZ, 1994) 21 Pronounced As: , one of the principal ballet companies of Russia. It began as a dancing school for the Moscow Orphanage in 1773. Opened in 1856, the Bolshoi Theatre in its early decades competed for preeminence with the Maryinsky Theatre of St. Petersburg. Alexander Gorsky revitalized it in the early 20th cent. and introduced a new dramatic realism to the classical ballets. Igor Moiseyev experimented with folk-dance ballets at the Bolshoi in the 1930s. The company is internationally acclaimed for its superb ensemble skills and for the spectacular realism of its scenery and costumes. During the 1960s Maya Plisetskaya was the company's prima ballerina; in 1964, Y. N. Grigorovich became chief choreographer and later, artistic director. His productions included a very successful version of Khachaturian's Spartacus. The Bolshoi has toured both Europe and the United States with celebrated productions of such classics as Giselle and Swan Lake. 22 Pas de deux: entrada tradicional no balé clássico executada pelo casal de bailarinos-estrelas, compreendendo quatro partes. 23 Isadora Duncan, Descendente de irlandeses, nasceu em 1878, na cidade de São Francisco, na Califórnia. Audaciosa, extravagante, carismática, pretendeu reacender a chama dionisíaca em plena belle époque. Pioneira da

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por Maya Plisetskaya24, na época a principal Etoile do Bolshoi. Fiquei tão impressionada com o resumo da vida de Isadora que encontrei no libreto do espetáculo e, mais ainda com a dramática coreografia que isso me instigou a saber mais sobre essa personagem revolucionária do mundo da dança. Este fato foi decisivo para minha descoberta de que a dança também possuía uma história escrita e organizada, não somente as Artes Plásticas, como me haviam mostrado na escola. O encontro com Isadora Duncan influenciou profundamente minhas opções em relação à dança, sendo que posso dizer que iniciei a adolescência inspirada num modelo de bailarina que já citei anteriormente e terminei essa fase convencida de que o modelo que me guiaria a partir deste ponto seria definitivamente Isadora por uma profunda identificação com a personalidade, os ideais, e principalmente, com a opção estética em relação à arte e à vida. Ao mesmo tempo em que fazia as aulas de dança com a Regina, e sonhava em ser uma Isadora Duncan, participava também do grupo de teatro operário, onde aprendi a interpretar em laboratórios teatrais dos anos 70, exercícios de Augusto Boal25, e todas as técnicas corporais recém chegadas da Índia e da China. Neste grupo, tínhamos visitas esporádicas de professores de fora que vinham ensinar estas técnicas; foi quando aprendi a usar o yoga por exemplo, como preparação corporal para o trabalho teatral. Isso me trouxe o conhecimento de que a preparação corporal para teatro e dança pode ser composta por diferentes técnicas em função das necessidades do trabalho de interpretação; uma maneira de moldar o corpo para a cena ou para o texto. Mas cabe ressaltar que sempre vi o teatro como um recurso para o trabalho de interpretação da dança, não com o objetivo de tornar-me atriz, o que mais

dança moderna Isadora concebeu uma arte não apenas romantizada da natureza , mas de uma visceral rebelião contra tudo aquilo que caracterizava o ballet: sapatilhas de ponta e passos codificados. Passionária como artista e mulher, viveu plenamente as inquietações de uma época. Sua dança propunha, acima de tudo, uma harmonia com a natureza. Imbuída de filosofia de Nietzche, fez da dança uma religião em perpétua busca da beleza e liberdade. Faleceu em 1927 num trágico acidente automobilístico. 24 Maya Plisetskaya, bailarina nascida e formada na URSS, aluna de Vaganova, personalidade marcante na dança do século XX , desenvolveu sua arte com uma qualidade incomparável, tornou-se uma estrela internacional disputada por coreógrafos e companhias do mundo inteiro. A característica principal de sua carreira foi um faro especial para escolher o que e onde dançar no momento certo. Evoluiu no tempo, sempre alerta às transformações na dança, sem ficar presa a papéis ou estilos. 25 Augusto Boal, diretor teatral, fundador do Teatro de Arena em São Paulo , autor de O teatro do oprimido e outras poéticas políticas.

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tarde, na década de 80 vai influenciar esteticamente meu trabalho quando faço a opção pela dança-teatro alemã. Apesar de toda esta informação estrangeira moldando meu corpo, minha cultura, minha expressividade, descobri nessa mesma época, que minha atitude tinha algo de diferente, que havia em mim uma identidade brasileira muito forte, mãe da minha rebeldia, da minha espontaneidade, da minha irreverência diante dos “grandes saberes” que se descortinavam à minha frente, a cada passo da caminhada orientada por minha voraz curiosidade. Onde pretendo chegar com esta afirmação? Em que me baseio para dizer isto? Pois bem, no curso desta reflexão me dei conta de que, se quero falar do meu desenvolvimento durante a adolescência, da construção de minha identidade, devo abrir o panorama para o todo desse processo, o que significa que, além do espaço da escola, dos cursos é preciso também olhar para o espaço do tempo livre, do lazer. Sim porque se observo uma diferença em minhas atitudes em relação aos estrangeiros sinto a necessidade de localizar onde isto se formou, ou melhor dizendo, onde aprendi isso. E falar de escola sem falar das férias é algo que deixa o assunto incompleto, porque as férias fazem parte da escola, de certa forma. É das férias que desejo falar agora, mais especificamente das férias de verão, tempo de praia e carnaval, tempo de ir para o Rio e ver de perto tudo o que sabia pela televisão e pelas revistas, moda, arte, música, cultura. Duas tias irmãs de minha mãe moravam no Rio de Janeiro e, por essa razão, tínhamos hospedagem garantida nas férias, geralmente todo mês de janeiro. Além da programação cultural que incluía visitas aos museus todos, idas ao teatro, ao cinema, passeios pela floresta da Tijuca, ao centro, e os piquesniques na ilha de Paquetá, tínhamos a praia e os passeios exploratórios pela cidade. Se essa memória me ocorre é porque, ao falar de corpo e movimento, não posso deixar de citar esta experiência única do corpo em liberdade no espaço das praias no verão. Creio que a concepção de praia de nós brasileiros é muito peculiar pois, além de ser um lugar de contato com a natureza, é

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também um espaço social, onde, com naturalidade e irreverência, as pessoas convivem em trajes de banho, com movimentos livres e tudo é pura descontração; o espaço perfeito para a minha vida social de adolescente. Costumava chegar ao Rio ainda presa aos condicionamentos da minha cidade, onde o único lugar em que usávamos maiô era o clube. E, conforme os dias iam passando, podia notar nitidamente as mudanças que iam ocorrendo no meu corpo e no comportamento, no modo de vestir, em primeiro lugar a cor da pele que chegava branca e ia escurecendo até tornar-se um bronze escuro; a musculatura adquiria um tônus mais firme, pela natação nas ondas fortes do mar, pelas caminhadas na areia e os jogos de praia. Eu ia emagrecendo naturalmente, pois não tinha tanta fome, pelo calor e pelo relaxamento que aquilo tudo proporcionava. A descontração do lugar, em que se podia pegar ônibus de maiô, ir ao cinema de bermudas, a princípio me deixava atrapalhada, mas, depois pensar em ter que usar roupa, na volta, tornava-se um pesadelo. Um espaço democrático em que convivíamos em condições de igualdade com artistas, intelectuais. Na praia se faziam as amizades, formavam-se as turmas que se encontravam sempre no mesmo ponto, para passar o dia juntos, tomando sol, cantando, batucando, nadando, jogando, namorando, paquerando. Momentos de ação e relaxamento naturais, respeitando as necessidades do corpo. Era uma maravilha de vida! Lá também se discutia política, religião, filosofia, arte, e se combinavam os programas da tarde ou da noite. São lembranças felizes das sessões de cinema no Caruso, em Copacabana, das noitadas dançantes nas boates, as corridas de kart em São Conrado. Mas, principalmente para a menina do interior, a sensação de independência indescritível de andar sozinha de ônibus pela cidade grande, que resultavam num corpo solto, uma postura expandida, um andar sinuoso que me tornavam uma menina diferente das meninas da minha cidade, mais contidas e rígidas. Quero aproveitar esse momento para falar também sobre as minhas buscas estéticas que também influenciaram essa corporalidade26 em “Merleau-Ponty dá da dualidade corpo/alma uma visão englobante, não separada, fazendo destas duas dimensões uma unidade significante. A consciência não tem autonomia relativamente ao corpo, não pode ser tratada como entidade independente uma vez que ela só existe na sua encarnação. O corpo próprio distingue-se, em MerleauPonty, dos outros corpos físicos, o corpo é um todo, indivisível da consciência. Como totalidade, o corpo, vive o 26

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construção, lembrando que, no Rio, naquele tempo, havia a feira hippie da Praça General Osório, onde tive a oportunidade de conhecer afinal quem eram esses tais hippies27, que haviam abandonado sua vida burguesa e viviam em comunidades, obtendo seu sustento da venda de artesanato. Lá, na praça, podia se encontrar gente de todas as partes, do Brasil, da América do Sul, e também americanos, europeus, misturando os sons de suas diferentes flautas e sotaques. Enquanto comprávamos bijuterias, podíamos conversar com eles e saber notícias de terras distantes, conhecer mais de perto aquela opção de vida e compartilhar a atmosfera de paz e amor que reinava no ambiente.

espaço e o tempo e é a própria expressão do ser-no-mundo. E é como ser-no-mundo que o corpo participa, comunga e comunica. Trata-se, nesta perspectiva, da própria inerência do corpo às coisas, formando uma totalidade de "conivência" com o mundo. O corpo habita o mundo, não de uma forma racional mas como um "chez soi". O estatuto do corpo como totalidade abrangente desloca a própria tradição do corpo clínico - corpo morto, num primeiro momento, corpo-objecto, posteriormente - para se tornar simultâneamente sujeito/objecto, vivente/vivido, tocante/tocado, num movimento constante de reversibilidade apoiado no próprio sentido da experiência, como experiência vivida: "a união do corpo e da alma não foi selada por um decreto arbitrário entre dois termos exteriores, um objecto, o outro sujeito. Ela cumpre-se a cada instante no movimento da existência". (BABO, 2002) 27 Apesar de ambos acabarem desembocando nos hippies, na década de 50 os beatniks e o rock nunca se encontraram. Os beats eram intelectuais e gostavam de jazz, os rockeiros não eram muito chegado às letras e gostavam, obviamente, de rock. Nos anos 60 os jovens juntaram a cultura beat, o rock, acrescentaram a droga, trocaram o preto pelas cores do arco-íris, a cultura pela contra-cultura, o ateísmo pela religião oriental e inventaram o movimento hippie. A guerra do Vietnam chegou a dar alguma consistência política ao movimento, mas a droga acabou matando muita gente importante e o movimento esvaziou. Os velhos hippies diminuiram as doses e se tornaram executivos. Seus filhos se tornaram yuppies e passaram a desfilar em carros do ano. Paralelamente as igrejas proliferaram, e tudo isso deu no que vocês estão vendo agora: Generation-x, Wired, Internet, Unabomber, Igreja Universal, etc. No Brasil, o nosso único e digno representante literário da época foi Jorge Mautner, hoje mais conhecido como compositor do que como o autor da Mitologia do Kaos. Mautner foi o único escritor a incorporar de forma delirante toda aquela loucura que pairava no ar desde o fim da segunda metade da década de 50, quando o rock começou a possuir o mundo. Em 1962 publicou Deus da Chuva e da Morte, em 63 Kaos, depois Narciso em Tarde Cinza, que completou a trilogia e foi seguido de tantos outros livros. Mas Mautner acabou sendo devorado pela intelligentzia da época, pelos revolucionários de copo de uísque na mão - como desabafou em 1966. Hoje, passadas quase cinco décadas, os malditos beats estão de volta à mídia. Jack Kerouac virou nome de restaurante em Chicago, seu livro On The Road é propaganda da Volvo, Coppola vai começar a filmar On The Road e os livros sobre a cultura beat vendem como nunca. De quebra o Whitney Museum of American Art, em Nova York, inaugurou agora em novembro uma fantástica exposição sobre a cultura beat. Por aqui Carlinhos Brown lança o seu terceiro disco, o Andei Road, numa explícita e confessa referência ao On The Road de Kerouac, do qual diz ter recebido influências na concepção da nova obra. O livro online Tristessa me parece ser um tributo não confesso ao romance homônimo de Kerouac, escrito em 1955 e 1956 - sobre uma amiga prostituta que conheceu no México - e publicado em 1960. Mas o autor não quer confessar. Foi com os beats e com o rock do final de década de 50 que tudo começou. E eles estão de volta. DAMIANI (2002)

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Voltava para casa totalmente diferente, a cada ano que se passava, ia aderindo mais e mais àquela estética, levando comigo as idéias e as novidades para dentro da escola e dos ambientes que costumava freqüentar. Some-se a isso o samba que por incrível que pareça, não aprendi no Rio, na praia, mas que teve sua experiência culminante ali em Mogi mesmo quando, pela primeira vez, participei de um desfile de Escola de Samba. A esta altura eu já tinha uma experiência significativa no aprendizado de dança, mas aprender a sambar trouxe algo muito inédito ao meu repertório de movimentos e ao meu sistema de aprendizagem de movimentos. Desta feita não bastava observar e copiar a forma do movimento porque além de tudo, os movimentos do samba são extremamente complexos, utilizam o corpo como um todo, todas as partes agindo simultaneamente. Foi a primeira vez que experimentei dançar por instinto, pois, para se conseguir realmente sambar, é preciso se entregar ao ritmo e soltar o corpo; deixar que o som da bateria o sacuda, pois a vibração sonora é tão forte que se pode sentir fisicamente as ondas sonoras batendo no corpo. Se não há esta entrega quase que uma sensação de estar possuída, o samba não acontece. Gosto de aprender as danças étnicas com as pessoas da cultura/etnia específica, porque depois dessa experiência de aprender a sambar que descobri uma forma muito peculiar de irmandade com a cultura afro-brasileira. E depois veio a experiência do desfile, propriamente dita. Como descrever o que se sente numa “avenida”? “Êxtase”. É a única palavra que pude encontrar... Alguns anos mais tarde foi essa experiência que me serviu para compreender a amplitude dos rituais dionisíacos, (que erroneamente são interpretados superficialmente como apenas orgias), que se encontram na gênese da história do teatro e na gênese da história do Carnaval e, finalmente para me permitir a aproximação de Shiva em minha busca da compreensão das danças extáticas. Porque por ter vivenciado este tipo de experiência xamânica em que experimentei uma sensação real de fusão corpo/alma, suspeito que esteja aí o objeto de minha busca em relação à dança, nos dias de hoje, quando penso que devo encontrar uma forma de resgatar o rito para o mito, nas minhas aulas e na minha produção artística. Mais uma vez, inspirada por GARAUDY (1980). quando afirma que a dança é a pedagogia do

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entusiasmo, palavra que em sua origem, significa, a presença de deus dentro de si. (BRANDÃO, 1992, p. 132,136) Nessas condições é que aprendi a dançar, depois que me apaixonei pela dança e o balé clássico não era mais suficiente. Quando danço, sinto que as minhas diferentes partes, corpo, mente, sentimento, sensação e intuição formam um todo; essas partes são interligadas e interagentes. A dança me permite vivenciar, entender e exercitar estas partes simultaneamente, agindo como um todo, produzindo a sensação de harmonia e totalidade. Ao mesmo tempo, a dança, é uma atividade objetiva fisicamente concreta, feita de ações corporais, de movimento, pulsações corporais, mas que exige, o envolvimento da alma, gerando elaborações subjetivas de muitas ordens como: O princípio da união, do equilíbrio, da composição, da criação, da consciência, da realidade. A tensão (pulsação, respiração, equilíbrio, contração e expansão, queda e recuperação, eixo, centro, simetria) Percepção do espaço físico O estar consigo e o estar no mundo A saúde. Os sentidos. As emoções. A transcendência. É o que verdadeiramente sinto, quando danço que me propicia ampliar o autoconhecimento, a consciência, o equilíbrio e a serenidade e que move desejo de comunicar e ensinar aos outros esse instrumento para uma reflexão sobre as questões que enfrentamos nos dias de hoje. Mas, para poder concluir esta fase, creio ser importante trazer à tela o panorama da época, para situar o ambiente em que aconteceu meu processo de aprendizagem da dança, nessa fase, para poder compreender os significados que se tornaram critérios para a adesão dos conteúdos em mim. O que quero dizer é que fica claro que, se aprendi certas coisas e outras não, é porque acredito que, o aprendizado é seletivo; aprendemos conforme nossos interesses, gerados pelo que sentimos a respeito das coisas, e dos

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fatos e pelos valores familiares em nós arraigados. O conhecimento que resulta é formado por sínteses entre esses elementos. Por isso, acredito que, realmente não existe neutralidade no ensinar e muito menos no aprender, inevitavelmente, os sujeitos estão presentes e protagonizam a ação. Eram tempos de efervescência cultural e política, freqüentados por ideologias, utopias. Uma época em que surge a preocupação com a sociedade de consumo e os meios de comunicação de massa. E a idéia de aldeia global de Mac Luham28, provocando rupturas na forma de pensar e entender a sociedade

lançava

perspectivas

surpreendentes

para

a

evolução

da

humanidade, como a cura do câncer, as viagens espaciais, comunicação via satélite entre outras, os valores vigentes estavam profundamente ameaçados. Lá no interior eu podia entrar em contato com o que acontecia na cidade grande por meio das revistas, da televisão e das notícias que os que viajavam traziam. Toda essa informação me fascinava, principalmente o movimento hippie, a liberação sexual, o feminismo, o conflito de gerações, os Beatles, Jovem Guarda, Tropicalismo, Guerra do Vietnã, corrida espacial, comunismo, guerra fria, Che Guevara. Imagens contundentes que eu recortava das revistas e convertia em enormes colagens na parede do meu quarto, transformavam o mundo num grande quebra-cabeças, que se apresentava como um enigma a ser decifrado, já que a escola não tratava desses assuntos; ninguém me explicava o que realmente estava acontecendo, acontecimentos dos quais eu queria participar, mas que estavam tão inacessíveis, distantes de mim. Foi uma época riquíssima de fortes e profundas transformações sociais e culturais. Apesar de estarmos vivendo os tempos do golpe militar e suas conseqüências políticas, como a perda da liberdade de expressão e o medo, no interior se sentiam essas coisas de forma atenuada e também estes assuntos eram de domínio dos adultos que conversavam sobre isso “a boca pequena”, nas reuniões sociais, longe de nós, as crianças. “Marshall Mac Luhan (1971), un teórico de la comunicación canadiense, se hizo muy célebre hace algunas décadas por pronosticar que la expansión de los medios de comunicación terminarían uniformando a todo el planeta, algo asi como que todos los seres humanos de alguna manera acabaríamos usando jeans, tomando Coca Cola, comiendo hamburguesas, viendo los mismos programas y utilizando los mismos artefactos” (QUEZADA, 2002) 28

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O que pude realmente sentir e perceber é que havia algo no ar, principalmente na escola, que era o principal ponto de encontro dos jovens da cidade. Havia principalmente, um rígido controle dos costumes que passava, inclusive pelo controle do que vestíamos. A altura das saias do uniforme, que a diretora media com a régua nas nossas pernas, os exatos cinco centímetros abaixo do joelho. Também se controlava o comprimento dos cabelos dos meninos, e, segundo nossos ideais de liberdade, havia a absurda proibição do namoro na escola. Tudo, naqueles tempos, estimulava a transgressão das regras, nós queríamos fazer parte das mudanças de que tínhamos notícias, a que assistíamos pela tv, e nós enrolávamos as saias para cima, após a inspeção. Os meninos tiravam as madeixas de dentro da golas das camisas e, na hora da saída, lá íamos nós de mãos dadas com os namorados pela calçada da escola, elaborando, assim, ingenuamente nossas formas de protesto que foi o mote de nossa geração. Como já disse, na minha época foi implantado, no ginásio, o sistema pluricurricular; uma experiência bastante diferenciada em que, além do ensino das disciplinas de forma integrada, tínhamos um governo que era nosso canal de atividade política. Cada classe tinha seu prefeito e o conjunto de classes do ginásio um governador. Nesse sistema, tínhamos eleições, com campanha e votação secreta no modelo democrático, assim como acontece hoje em dia, a função dos representantes eleitos era a de fazer o contato com a diretoria da escola, para os encaminhamentos das reivindicações do corpo discente em relação à disciplina, melhorias do espaço , enfim, o que seria hoje um grêmio estudantil. Por dois anos isso aconteceu, mas, de repente, essas atividades cessaram sem mais explicações e, de certa forma, nossas vozes foram caladas. Mas ainda restara a liberdade para as iniciativas culturais e, assim, floresceu o grupo de teatro e, sob a forte influência da cena cultural do país, também aconteciam os festivais de música. Nesta mesma época, foram inauguradas as primeiras faculdades na cidade, e alunos de todos os cantos do país vinham morar em repúblicas, trazendo muita informação nova para nós os jovens da cidade. Iniciou-se um

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processo imenso de intercâmbio cultural que fomentou as atividades estudantis que já existiam. A participação política aprendida na escola e o exemplo dos protestos pacifistas de Ghandi29 forjaram em mim um perfil de resistência cultural, que sempre procurou soluções fortes mas não violentas para as empreitadas em defesa da arte da cultura e da liberdade de expressão. Foi desta forma que me envolvi e liderei um acontecimento muito emocionante que me marcou profundamente para o resto da vida, a retomada do Teatro Vasquez. A esta altura eu tinha uns quinze anos e estava completamente engajada nos movimentos culturais, principalmente no teatro. Havia saído do grupo da escola e participava de um grupo amador com gente de diferentes lugares e classes sociais. Nesta época, a maior dificuldade que tínhamos era a de encontrar espaços para as apresentações e os festivais até que um belo dia alguém que não me lembro exatamente quem, mencionou a existência de um teatro abandonado na cidade. Isso foi motivo de indignação de todos nós e após muitas conversas, decidimos reabrir o teatro. Nos organizamos, fomos à prefeitura, conseguimos autorização para entrar e apoio para realizar um evento que tinha o objetivo de chamar a atenção da população para aquele espaço público. Jamais esquecerei a primeira vez em que abrimos as portas do teatro e de lá dentro vislumbrei o palco. Tudo o mais era poeira e escombros; havia muito a fazer e estava fora do nosso alcance, somente a prefeitura teria os meios para realizar a reforma necessária. Mas, de qualquer forma, isso não nos abateu e elaboramos para aquelas condições uma grande exposição de arte, reunindo todos os artistas da cidade. Com a ajuda de D. Mieka Fukuda, a nossa professora de artes, a mentora silenciosa, humilde e grandiosa, de toda uma geração de estudantes,

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GANDHI, Mohandas Karamchand [cognominado Mahatma ("alma grande")] (Purbandar 1869-Díli, 30/01/1948) (Em redacção). Filósofo e político hindu. A partir de 1920 dedicouse à luta em prol da independência da Índia, opondo-se à política colonial inglesa, tendo sido processado e detido várias vezes. Viu o seu sonho realizado em 1947. Contra os hindus mais radicais, reconheceu a independência do Paquistão, tendo morrido assassinado por um deles. Figura exemplar de líder espiritual, ficou conhecido pelo seu princípio da resistência passiva aos inimigos.

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contatamos os artistas, recolhemos as obras e montamos a exposição, que foi inaugurada num sete de setembro e, assim, resgatamos o Teatro Vasquez para a cidade, que foi restaurado e funciona até hoje conforme as notícias que recebo de amigos que ainda moram em Mogi. Entre as muitas atribuições que tive no episódio do teatro quero abrir outro parêntesis para a entrevista com “Barros, o mulato”. Pela primeira vez na vida conheci um iogue pessoalmente, Barros era um pintor reconhecido internacionalmente e nada conhecido na cidade; vivia isolado num pequeno sítio não muito longe do centro. Foi neste sítio que ele nos recebeu numa tarde para a entrevista. Sua casa não tinha luz elétrica nem mobília; ele nos recebeu na sua sala, onde sentamos em roda, em almofadas no chão e, calmamente, aquele homem mulato muito alto de expressão serena foi respondendo a todas as nossas perguntas. Eu estava atônita, e nem me lembrava mais de perguntar sobre arte. Desviei completamente o assunto para o yoga e o tipo de vida que ele levava quando, de repente, ele me surpreendeu nos oferecendo uma tigela com morangos frescos, um luxo para a época. As frutas eram sem açúcar para serem comidas com as mãos, muito diferente do que acontecia lá em casa. Foi, então, que falamos sobre alimentação vegetariana e macrobiótica, coisas de que eu nunca havia ouvido falar. Ele nos emprestou um trabalho para a mostra do teatro e não preciso dizer que saí de lá fascinada. Este encontro único causou profundas dúvidas em minha cabeça, a partir de então. Comecei a me perguntar qual a diferença entre Barros e os hippies? De onde vem a coragem para uma pessoa a optar por este tipo de vida, romper com os padrões sociais estabelecidos e assumir o que realmente é em essência? Nunca mais consegui falar com Barros para expor minhas perguntas, pois ele viajou para o exterior, logo em seguida, e perdi o contato. E assim tive que continuar minha busca por conta própria, sem saber que as respostas me levariam a um longo caminho, repleto de emoções, como aquela que experimentei naquela tarde que não posso mais esquecer. A somatória destas experiências trouxe ao meu trabalho artístico uma reflexão que não existia nem no balé nem na escola. Ao comparar todas estas práticas, pensar nas teorias com que entrava em contato, comecei a

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desenvolver um espírito reflexivo, a perceber que há sempre uma intenção no trabalho de criação, e passei, a partir de então a fazer escolhas estéticas e a compor trabalhos misturando as linguagens. Descobri que não bastava praticar, mas que era necessário também estudar e pesquisar arte, filosofia e história e, desde então, minha relação com a arte se fez desta maneira, sempre buscando um aprofundamento teórico e uma precisão formal. Percebi, já naquele tempo, uma afinidade muito forte entre minha subjetividade e corporalidade com as técnicas orientais que, para mim, são fáceis e muito eficientes, pois canalizam minha alegria e força vital para um objetivo que é desenvolver a auto-estima e a compreensão do outro, e ajudaram a fazer a passagem da adolescência para a idade adulta, me ensinando um riso mais ético. Estas vivências conduziram-me a compreender o todo do ser humano, porque são carregadas de muita filosofia que analisa

cada parte do ser

humano, cada minúcia de cada sentimento. E, carregadas de ideologia, da saúde e da plena realização do amor no ser humano, da paz. Movida pela força transformadora destas experiências que comecei a compor um corpo e uma identidade que me preparavam para minha inscrição no mundo, tentando visualizar a imagem de que tipo de pessoa me tornaria, optando pela arte, pela beleza, pela paz, pela ética, pela estética, pelo amor. Desde os tempos da adolescência, nunca mais consegui parar de pensar sobre a dança e a evolução do ser humano. Hoje, vejo que na adolescência vivi experiências que me fizeram aprender a lidar com a frustração e o sentimento de derrota. Conheci um mundo que havia saído de uma guerra e havia a iminência de outra, os Tempos da Guerra Fria, EUA x URSS, um mundo em que se discutia entre optar pela guerra ou pela paz, pelo caminho do materialismo ou da espiritualidade, pela tecnologia ou pela Natureza Vi, com clareza que o materialismo gera ganância, inveja, falsidade e competição entre as pessoas, provoca destruição, injustiça e mortes demais. Eram tempos em que havia no ar uma sede de progresso, de evolução, mas a maioria preferiu o materialismo e eu era da oposição, o lado que perdeu. Mas minhas opções estavam de tal forma sedimentadas que decidi seguir em frente com as mesmas posturas, idéias e objetivos em direção à minha vida adulta.

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6 Ato III: vida adulta FIGURA 19 – ISADORA DUNCAN

Quem dança este ato é Isadora Duncan (fig.19), que tem sido minha inspiração nesta trajetória, desde os tempos da adolescência. Com seu exemplo de autonomia, de independência, ousadia

e coerência, aprendi a

teorizar minha prática para poder escolher minha vida e criar uma dança capaz de expressá-la. Isadora aparece no trecho do sári que inicia minha vida adulta, compondo uma imagem que sugere seu dançar sobre a trajetória, como se esta fosse um tapete, numa tentativa de expressar sua presença, permeando os passos do caminho que, neste trecho especificamente, retrata sobre fortes contrastes de claro e escuro ao fundo, linhas que se entrelaçam e realizam grandes movimentos sobre a superfície, representando o intenso esforço de aprendizagem de vida e arte que ocorreu neste período. Ao elaborar, para a coreografia/escrita, uma maneira de ligar este ato com os anteriores, percebi que para poder prosseguir precisava entender o porquê da necessidade de resgatar toda esta memória. Ocorreu-me então, talvez por analogia, a lembrança de uma antiga aula de expressão corporal, que aprendi com Yolanda Amadei, em que se resgatam

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princípios muito semelhantes aos que mobilizei com meus movimentos neste trabalho de pesquisa até agora. No início da minha carreira, para facilitar a escrita de meus planos de aula acabei batizando esses velhos exercícios que considero clássicos em Expressão Corporal com o nome de “resgate de movimentos”. É uma aula dirigida que se desenvolve em três partes: Uma primeira de sensopercepção30 em que se colocam os alunos deitados na sala, na penumbra e realiza-se um trabalho de percepção corporal, começando pela respiração, conduzindo uma observação do movimento de expansão da inspiração e o de relaxamento da expiração, chamando a atenção para o movimento de pulso resultante que, por sua vez é o movimento primordial da vida. Em seguida, uma longa e detalhada observação do corpo, suas partes, seu eixo central, seu contato com o chão, conscientizando para as áreas de tensão, promovendo relaxamento e um profundo estado de concentração em si mesmo. Feito isto, em segundo lugar, os alunos são estimulados a iniciar uma lenta movimentação, primeiramente com os dedos das mãos, em seguida os pulsos e, assim, sucessivamente, movendo todas as articulações do corpo, inclusive as da coluna vertebral, trazendo para a consciência essas articulações e suas possibilidades de movimento. Na terceira etapa, tem início o que chamo de resgate de movimentos propriamente dito, ou seja, os alunos são convidados a refazer todo processo de evolução das formas de locomoção, começando pelos movimentos dos bebês no berço, desde o balançar do corpo de um lado para outro, experimentando o deslocamento de peso, em seguida o rolar, até ficar de bruços. Na seqüência o arrastar-se usando tração dos braços e pernas, experimentando o deslocamento do corpo no espaço no chão, tanto de frente como de costas. 30

Percepção é um complexo ato de construção psíquica, que às experiências da sensibilidade (base sensitiva), vai somar os conteúdos representativos correlatos. Para que a percepção aconteça de forma plena, é necessária a estrutura total da consciência, inclusive em sua intencionalidade. o ato perceptivo é único, dotado de vivacidade, extensão, realidade e significação. A Percepção e a Memória, conjuntamente, formam a base do psiquismo, imprescindíveis ao aprendizado. São o arcabouço estrutural das atividades intelectuais superiores, desta forma os objetos do mundo nos são apresentados sob a forma de percepções e representações, que vão ocasionar a SENSAÇÃO. A sensação é proveniente de nossa sensibilidade geral (superficial ou profunda) ou especial (órgãos dos sentidos)”. (SENSOPERCEPÇÃO, 2002)

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Sempre observando a relação dos movimentos com a respiração, as ações dos músculos e ossos, o exercício continua agora com a evolução do arrastar-se para o sentar e, em seguida, o engatinhar. Na última fase estuda-se, na prática, como se dá a construção da postura ereta do ser humano e do andar, observando minuciosamente os mecanismos corporais envolvidos, como transferência de peso, alavancas ósseas, apoios dos pés, colocação dos quadris, ombros braços e cabeça, ao longo da coluna vertebral, tomando consciência do eixo de equilíbrio e da relação com a força da gravidade. Lembro que, quando fiz essa aula pela primeira vez, pude compreender o que vem a ser o repertório de movimentos de uma pessoa e sua importância para seu desenvolvimento pessoal e também observando os adultos realizarem este trabalho concluí que é importante não pular as fases do desenvolvimento da locomoção de uma criança pois isso pode provocar uma lacuna em seu repertório mais tarde. O efeito que este trabalho busca numa pessoa adulta é o de promover a consciência desse repertório e ainda a possibilidade dessa pessoa vivenciar as experiências que por acaso não teve a oportunidade de viver na infância, resgatando assim para o seu repertório, movimentos importantes para a construção de sua corporalidade. Também é uma possibilidade de recuperar agilidade, flexibilidade e corrigir possíveis problemas de postura e apoios, enfim, de reconstruir adequadamente e conscientemente seu esquema corporal. Por essas razões vejo que a lembrança dessa aula retornou no momento em que intuitivamente, realizava no meu trabalho de pesquisa um exercício bastante semelhante, ao resgatar, por meio da escrita a história de meus movimentos na infância e na adolescência, creio que norteada pelos mesmos objetivos da aula que descrevi. Refazer de memória os momentos iniciais de minha trajetória causou-me efeitos semelhantes ao exercício corporal, colocando-me ereta com uma postura diferente, mais elaborada, a partir da contribuição de novos conhecimentos a meu respeito.

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Considero o repertório de movimentos na dança o patrimônio do bailarino, o qual o habilita a iniciar o seu trabalho de interpretação, de criação de seqüências expressivas e a composição de coreografias. Esse exercício também me levou a elaborar, ao longo dos anos, a convicção de que em educação, o repertório do aluno é a base em que o professor deve apoiar o início do processo de aprendizagem. Desta forma, percebo que, ao escrever sobre a infância e a adolescência, agi como professora de mim mesma, como que me reconhecendo, num diagnóstico inicial para, então, elaborar o projeto de estudo, como habitualmente faço com meus alunos. Quando terminei de escrever esses capítulos que considero como um resgate, me senti mais presente, inteira, para caminhar com passos mais conscientes e seguros, em condições de coreografar esta dissertação, de posse de todas as minhas possibilidades e da consciência do meu repertório inicial, o que significou encontrar o meu ponto de partida. Numa primeira avaliação, percebo que, ao ativar meu olhar de professora sobre meu processo de aprendizagem da arte, neste trabalho, observo os movimentos que fiz até chegar a este ponto e vejo que, ao resgatar as memórias da infância e adolescência, encontro o significado para as experiências que tive e compreendo que o conjunto dessas fases constitui o alicerce sobre o qual se apoiou a minha formação como professora de arte. Mais ainda, estes movimentos ajudaram-me a identificar muitos aspectos diferentes de mim, que reconheço presentes e vivos constituindo o conjunto dos meus talentos com os quais compus esta professora, a criança questionadora, a adolescente rebelde, a cidadã atuante, a mulher que acredita num mundo mais humano e mais justo e vê na educação, na arte e nos valores humanos a possibilidade de construção deste mundo. Pude também observar o tipo de educação que tive naquele momento histórico e de como essa educação teve seus benefícios e lacunas para a vida que tive posteriormente. Transportando esta idéia para a metáfora do sári, vejo que as faixas da pintura onde se encontra infância, adolescência, casamento, maternidade, minha primeira graduação como bacharel em pintura e a licenciatura curta em Educação Artística (tabela 2) constituem a primeira volta do tecido em torno da

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cintura, formando a primeira camada da saia que, por sua vez, forma uma base de sustentação para a figura. TABELA 2 – LOCALIZAÇÃO DO PERÍODO NA LINHA DO TEMPO Desde

1974 82 83 84 85/86

que

87 88 89 90 91 92 93 94 95 96 97 98 99

eu

consigo Lembrarme

A

até 1981

1974 ________________/ exatamente este trecho da pintura até 1982.

Recuperando a idéia da linha de tempo contida na pintura, posso observar, então, que o primeiro espaço em rosa representa a infância e a adolescência e que a partir de agora estarei entrando no primeiro espaço amarelo que corresponde ao período em que se deu minha formação como bacharel em pintura e em seguida o espaço azul onde se localizam as Licenciaturas. Identifico este período como uma transição, que estarei abordando a partir de agora, em que se deu a passagem da adolescência para a vida adulta.

6.1 Cena1: bacharelado FIGURA 20 – TRECHO DA PINTURA QUE REPRESENTA O BACHARELADO

Pois bem, retomando a trajetória, passei a década de 70 dançando, fazendo teatro, pintando e sonhando em sair da cidade do interior, em vir para

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São Paulo para fazer carreira, encontrar os melhores mestres, as melhores escolas, ter acesso à produção cultural que eu via pela TV e tinha notícias através de revistas. Em 1973 eu estava com dezessete anos. Foi quando começaram as crises decorrentes da decisão pela carreira e a dança não era uma possibilidade de futuro, de acordo com os valores sociais e familiares. Havia ainda a falta de acesso a informações sobre os cursos superiores de formação na área, enfim um conjunto de condições adversas tornou a carreira de bailarina um sonho distante. Foi um período tão difícil que, quando cai na realidade, percebi que havia acontecido uma ruptura. O desejo pela independência tornou-se algo mais forte que tudo. Terminei o colegial, parei de estudar, casei, mudei para São Paulo e terminei a década de 70 trocando a casa grande com quintal da família no interior por um apartamento em São Paulo. As tardes fagueiras na piscina do clube de campo, pela pilha de fraldas na tábua de passar roupa, pela faxina, e as aulas de dança, teatro e pintura, os bailes, por programas femininos vespertinos numa TV preto e branco. Nos noticiários do mundo inteiro John Lennon anunciara o fim do sonho. Houve uma revolução na minha vida, no meu país, eu havia mudado muito. Tornei-me uma dona de casa responsável pela conservação, limpeza, alimentação, vestuário, tornei-me a provedora, uma mãe de família, responsável pela educação de um filho. Baguncei o currículo, misturei completamente a ordem, prescrita pela sociedade para o aprendizado das matérias do programa de educação de uma moça daquela época. Porque, segundo o que previa o projeto de meus pais, eu deveria primeiro ter feito a faculdade, depois encontrado um emprego e, aí sim, poderia me casar, como a maioria das minhas colegas. Vi a década de 80 começar sob a ótica do feminismo. Foi uma difícil descoberta a de que meu marido e eu operávamos com modelos de casamento incompatíveis e que não haveria acordo, logo o casamento não tardou a tornar-se inviável.

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Numa época em que separação ainda era tabu, em vez de torcer pelo futebol, minha torcida concentrou-se na aprovação da Lei do Divórcio no Congresso Nacional, um projeto do deputado Nelson Carneiro, que passei a admirar na época. Somente agora percebo ser de uma geração de transição. Numa era de transição, os valores que havia escolhido ainda não eram aceitos pela sociedade que funcionava, ainda, segundo os valores bastante conservadores. Embalada pela voz de Elis Regina e apaixonada pela década de 70, querendo que tudo tivesse realmente mudado, caí na realidade na década de 80. Elis cantava uma música de Belchior, que representou muito bem essa época e diz: “Ainda bem que quem me deu a idéia de uma nova consciência e juventude Ta em casa guardado por Deus contando o vil metal Minha dor é perceber que, apesar de termos feito tudo, tudo o que fizemos Ainda somos os mesmos e vivemos Como nossos pais...”. (Belchior)

Lembro-me ainda, da sensação de ter caído num buraco negro, como se tivesse vivido um vácuo no tempo. Logo percebi que não estava suficientemente preparada para a vida na cidade grande. Viver em São Paulo representava um grande desafio para uma adolescente de dezoito anos, nas minhas condições, e que trazia na bagagem objetivos que se estruturaram a partir dos valores familiares. O maior deles, o de voltar a estudar e me formar, pois meus pais me convenceram de que o maior patrimônio que os pais podem adquirir para os filhos é uma boa educação, nas melhores escolas com os melhores professores. E, assim, passei a acreditar nisso, no valor do trabalho e do conhecimento que vem da cultura, das ciências e da vida. Em busca de uma nova consciência e, principalmente, de uma nova atitude de vida, passei a buscar novos modelos que me ajudassem a desenvolver uma nova visão de mundo mais adequada à minha nova

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realidade, pois percebi que era preciso alargar meus horizontes e tomar conhecimento da minha realidade e contemporaneidade para poder atender a todas as minhas necessidades a fim de atingir meus objetivos. Por quatro anos dediquei-me a aprender a viver e sobreviver a me estabelecer em São Paulo, antes de poder voltar a estudar. A experiência inicial do isolamento da vida em apartamentos na cidade grande me mostrou a necessidade de saber ir e vir pela cidade. Assim, pouco a pouco, aprendi a conhecer os bairros e o centro da cidade, para que pudesse me locomover, usando todo tipo de transportes coletivos e suas conexões. Tinha a experiência do Rio de Janeiro, mas São Paulo é uma cidade muito maior e mais complexa e isso era a primeira coisa que deveria saber para poder ter acesso às coisas de que precisava, como supermercados, farmácias, lojas, faculdades, médicos, hospitais e tudo o mais. A segunda grande lição foi aprender a me comunicar a obter informações, coisa que numa grande cidade é mais difícil que na pequena, onde as notícias correm rapidamente. Naquela época os telefones custavam muito caro e eu passei muito tempo sem este meio de comunicação; utilizava os correios para contatar minha família, para trocar noticias e pedir ajuda nas horas de dificuldade. Foi necessária também a reconstrução de um ambiente social. Sem família e amigos por perto, minha primeira ação foi a de conhecer e fazer amizades no prédio onde morava. Como resultado surgiram novas idéias quanto a ter um trabalho para que pudesse tornar-me independente, também economicamente, manter a casa e financiar meus estudos. A moda hippie ainda fazia sucesso e, assim, associei-me a uma vizinha num projeto de fabricar bijuterias de cerâmica. Pude por em prática as habilidades que havia desenvolvido e passamos a produzir e vender bijuterias que criávamos. A princípio nossa clientela eram os amigos e familiares. Depois por volta de 1976, passamos a participar das feiras de artesanato promovidas pelo

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programa vespertino de tv Revista Feminina na TV Bandeirantes, apresentado por Maria Tereza Gregori31, famoso pelo quadro de culinária da Ofélia. O trabalho ampliou-se. Modelava presépios, enfeites de Natal e tudo o que minhas habilidades pudessem reverter em dinheiro para pagar as despesas da casa, a escola do filho e financiar o sonho dourado de voltar a estudar. Estava então com 22 anos. Devo reconhecer que as aulas de artes manuais no colégio e na família tiveram grande utilidade nessa época. Inscrevi-me nos vestibulares de 78. Meu dinheiro só dava para tentar USP e Belas Artes. Sem condições de fazer o cursinho, minha alternativa era ter fé em ter feito um bom colegial e, assim, consegui passar na primeira fase da FUVEST mas não na segunda. Entrei em segundo lugar na Belas Artes o que significava uma bolsa de estudos parcial. A idéia de estudar naquele prédio monumental da avenida Tiradentes, onde hoje funciona a Pinacoteca do Estado, me encantava. Comecei as aulas em absoluto estado de euforia, comemorando minha vitória. Firme no objetivo de seguir minha vocação para as artes, escolhi fazer Bacharelado em Pintura, pois achava que, naquela altura, era tarde para retomar a dança, meu corpo não era o mesmo, estava velha para tentar “carreira de bailarina” e afinal de contas, ser artista era o que importava. D. Mieka, minha professora, sempre me incentivara muito nas aulas de Educação Artística da escola, entusiasmada com meus trabalhos plásticos. Organizei todo um esquema de horários para poder estudar. Minha rotina se transformou novamente por completo. Cuidava da casa de manhã , deixava meu filho na escolinha e pegava um ônibus no terminal de V. Olímpia, o Imirim que levava duas horas para chegar até a Estação da Luz. Voltava no mesmo ônibus, com o nome de Itaim Bibi e levava o mesmo tempo. Pegava o meu filho na escola, lá pelas 19 horas

“No embalo das comemorações dos 50 anos da tevê brasileira, a pioneira Maria Thereza Gregori aproveita para relembrar do passado. Considerada a primeira "Ana Maria Braga da telinha", ela inaugurou o horário vespertino dedicado às mulheres, no dia 3 de março de 1958, com o Revista Feminina. A atração, que era exibida a partir das 13 horas e ficava no ar enquanto tivesse folêgo para segurar as telespectadoras, ficou por treze anos na TV Tupi.” (FRANÇA, 2002) 31

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chegava em casa, dava-lhe banho e jantar e depois que ele dormia eu fazia os trabalhos da faculdade. O curso começou de forma bastante decepcionante. A turma enorme contestou a qualidade junto à instituição. Foi quando o diretor da faculdade resolveu assumir a turma como professor. Nunca vou me esquecer do primeiro dia de aula com ele. Inaugurou a nova fase com a frase: "Vim aqui para ver se é o ferreiro que não malha ou o ferro que não pega liga". Filha de um gerente de fundição, crescida olhando para um forno despejando ferro líquido em fogo para dentro dos moldes, a metáfora me caiu como uma carapuça e aceitei o desafio, mesmo que morrendo de medo daquele homem autoritário, que exercia seu poder com robustez e segurança, diante de um grupo de alunos rebelados. Foi assim que, Vicente Di Grado o diretor, professor, artista escultor, tornou-se o mestre que me iniciou no mundo da arte. Desde os tempos do ginásio pluricurricular parece que, de alguma maneira, minha educação ficou marcada pelo encontro com tipos diferentes de pedagogias, pois sempre os bons professores estiveram ali para me provocar ao exercício de meu prazer maior, que é o aprender. Este início incomum do curso na faculdade é mais um exemplo do meu envolvimento com metodologias de ensino bastante incomuns para os padrões estabelecidos pelas políticas públicas de educação do país para a educação formal. Na faculdade entrei em contato com novos conhecimentos sobre arte e todo um conjunto de conceitos de difícil compreensão. Em história da arte e desenho geométrico era mais fácil, mas meu desenho de observação precisava melhorar muito; conhecia muito pouco a respeito de cores e nada a respeito de composição. Foi um momento em que entrei em contato com o não saber e isto me assustou bastante. Acostumada a ter muita facilidade para aprender nos tempos de escola, pela primeira vez conheci o que era ter dificuldade. Nunca havia sido tão difícil aprender; minha força de vontade era testada diariamente, Di Grado era como uma esfinge que lançava enigmas sobre mim, enigmas através dos quais aos poucos, ele foi me mostrando que só meus

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olhos poderiam responder e, a partir do momento em que descobri isso, um novo mundo se abriu à minha frente. Foi preciso desenvolver uma nova atitude frente ao conhecimento; tornei-me mais disciplinada, concentrada, atenta e reflexiva, observadora. Minha visão se ampliou imensamente e eu podia ver além das aparências, meu desenho amadureceu e comecei a pintar. Tive a ajuda do professor Pedro, que me ensinou as teorias necessárias para decifrar os enigmas, entender Arnheim32, Mondrian33

34,

Kandinsky35

36

e

as leis da visão. A principal dificuldade foi aprender a me relacionar com a lógica da imagem cruelmente pragmática para quem, romanticamente, pensava que bastava soltar a imaginação e espalhar as cores sobre a tela.

A arte exige uma imaginação específica porque neste caso trata-se de um pensar específico sobre um fazer concreto por que tem uma intenção que é a concretização de uma matéria. Aprendi que em pintura o imaginar é um processo bastante complexo em que não se imagina em termos de palavras ou de pensamentos nem mesmo em termos de imagens, ou seja, imagens concluídas, quadros. O pintor pode partir de idéias a respeito de pintura ou de outras coisas, ou pode partir de emoções, das quais nem sempre tem conhecimento consciente, ou ainda, pode partir de temas literários, históricos , religiosos, de cenas visuais como paisagens, figuras humanas, objetos, natureza morta, etc. Não é isso entretanto que corresponde à imaginação pictórica. A imaginação do pintor consiste em ordenar, ou preordenar certas possibilidades visuais, de concordâncias ou de dissonâncias entre cores, de seqüências ou contrastes entre linhas, formas, cores, volumes, de espaços visuais com ritmos e proporções, em resumo as propostas específicas da linguagem pictórica, envolvendo portanto uma materialidade cujas entidades físicas e cujos recursos formais são de ordem visual. (OSTROWER,1978).

Aprendi a domar os impulsos, a lidar com os limites, a observar e compreender a arte como um ofício, um trabalho, uma profissão. 32

http://astro.temple.edu/~iversteg/Arnheim.html “Neoplasticismo é o termo criado pelo artista holandês Piet Mondrian para uma arte abstrata e geométrica. Segundo o artista, a arte deve ser desnaturalizada e liberta de toda referência figurativa ou de detalhes individuais de objetos naturais. Assim, Mondrian restringiu os elementos de composição pictórica à linha reta, ao retângulo e às cores primárias, azul, amarelo e vermelho, aos tons de cinza, preto e branco”. (NEOPLASTICISMO, 2002) 34 http://park.org/Netherlands/pavilions/culture/mondriaan/eng/biography.html 35 “O próprio Kandinsky conta, com simplicidade, como chegou à pintura abstrata. Entrando certa vez no atelier deu de olhos num quadro de sua autoria, colocando de tal maneira que não percebeu de imediato o conteúdo, isto é, aquilo que o quadro figurativamente representava. Percebeu apenas a forma, entendida, no caso, como as linhas e cores, sem representação figurativa. Sem nada representarem figurativamente, as cores e linhas do quadro lhe pareceram dotadas de particular e intensa beleza. Corrigindo a posição do quadro e percebendo agora o conteúdo, verificou que as linhas e cores perdiam a particular e intensa beleza. Corrigindo a posição do quadro e percebendo agora o conteúdo, verificou que as linhas e as cores perdiam a particular e intensa beleza, que antes possuíam, quando livres de qualquer representação figurativa.” (ABSTRACIONISMO, 2002) 36 http://www.mac.usp.br/projetos/percursos/abstracao/kandinsk.html 33

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Um ofício bastante complexo, que envolve três tipos de conhecimentos diferentes de teoria dividida em três áreas principais, a História da Arte, a estética e as teorias percepção visual. De outro lado, a prática que envolve as questões das técnicas e as questões de representação e interpretação da forma. Há diferentes processos de elaboração de um trabalho plástico, um deles é o trabalho de observação e representação a partir da cópia de modelos vivos, paisagens e tudo o mais que seja observável e retratável na realidade. Ou então os trabalhos de criação a partir da memória ou da imaginação. Tanto em um, como no outro é preciso percorrer o caminho da imaginação para a realidade, trazer as imagens de dentro para fora, num processo bastante complexo

que

envolve

memória,

interpretação,

tradução,

associação,

articulação, classificação, seleção, análise significação e ressignificação de imagens que, culmina nas idéias, que são o ponto de partida do trabalho artístico. Tanto em uma, como em outra é necessário passar por um treinamento prático intenso para que teoria, técnica e prática se fundam num único fazer, dando suporte ao processo de criação. Dessa forma fui compreendendo que em artes plásticas, como na dança, teoria e prática se fundem; a técnica, para um artista, precisa estar incorporada para que se possa criar com liberdade e segurança. Por outro lado, não pode ser um empecilho, o que normalmente acontece se for entendida como regra rígida, por isso é preciso ser criada junto com o trabalho, recriada a cada novo desafio. Uma fusão da teoria com a prática, de forma e conteúdo. Essa foi a relação que estabeleci com o fazer artístico, a partir de então, e é o que me serve como base para elaboração de metodologias, para ensinar a fazer arte. Di Grado transformou o árduo aprendizado da pintura num curso inacreditável. Presente em sala, todos os dias conosco, implantou uma rotina de atelier nas aulas; fazia-nos trabalhar incessantemente, como burros de carga; exigia um rigor absoluto, muito estudo, muita observação, desenho e composição em tempo integral.

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Digo até que, na verdade, apesar da forma peculiar do curso, tive uma formação acadêmica nos moldes mais tradicionais do ensino da arte com aulas de desenho de observação, modelo vivo, técnicas e materiais (gravura, aquarela, guache, pastel, lápis de cor, tinta a óleo, acrílica), cinema, fotografia, e muitos exercícios de composição bidimensional, e pintura muita pintura. O trabalho era árduo, mas, em compensação, todos os dias na hora do intervalo, que o mestre chamava de festa, servia um lanche na sala de aula e parávamos de desenhar ou pintar. Os outros professores do curso vinham para nossa classe e Di Grado começava a analisar nossos trabalhos e a mostrá-los aos outros professores que também faziam suas críticas. Eram momentos de convivência em que aprendíamos a elaborar e exercitar o pensamento crítico e a desenvolver diálogos reflexivos a respeito de arte e do nosso trabalho pessoal, de forma bastante descontraída. Perto do final do curso, nem sequer parávamos o trabalho; lembro-me ainda do sabor do pão com sardela misturado ao da terebintina. Eram momentos únicos de felicidade naqueles tempos, e que felicidade! Principalmente quando percebi que, finalmente estava realmente aprendendo, me percebia madura no exercício da “visão seletiva”37 em que podia identificar com facilidade coisas que, a princípio me pareciam impossíveis como, o equilíbrio numa composição, unidade na variedade, uma cor fora de chave, relações de predomínio, relação figura/fundo, perspectiva, chaves tonais, chaves cromáticas. Meu Deus! Como foi difícil aprender isso tudo, colocar isso tudo em meus trabalhos. No último ano do curso, de uma turma que começou com sessenta alunos eu fazia parte do pequeno grupo de treze sobreviventes. A prova de que meu trabalho havia crescido foi quando comecei a receber os primeiros elogios, depois de três anos passados na obscuridade. Às vésperas da formatura, meus trabalhos haviam adquirido certa estrutura; cheguei a ganhar um prêmio de segundo lugar numa exposição que a faculdade promoveu. Tudo indicava que poderia ter uma carreira promissora como pintora, mas, as necessidades da vida me fizeram ver que não haveria tempo para

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investir nisso, novas prioridades: precisava trabalhar não tinha mais tempo de fazer artesanato em casa, precisava encontrar uma forma de ganhar dinheiro. Não houve tempo para comemorações.

6.2 Cena 2: as licenciaturas

FIGURA

21



TRECHO

DA

PINTURA

QUE

REPRESENTA

AS

LICENCIATURAS E AS ESPECIALIZAÇÕES

Das alternativas disponíveis naquele momento, fazer a licenciatura para poder dar aulas me pareceu a solução mais rápida; meu divórcio acabara de sair e meu ex-marido desaparecera sem mandar pensão. Com a ajuda de meus pais, que se mudaram para São Paulo nessa época, continuei a estudar na faculdade fazendo a licenciatura curta em Educação Artística, que me habilitaria a dar aulas no primeiro grau de quinta à oitava séries. Graças a uma bolsa monitoria, sob a orientação do Pedro e outra sob orientação do Rampazzo, pude fazer o curso. Foi um período em que estudei muito, traduzi textos do espanhol e do inglês, produzi apostilas. Era uma correria. De manhã trabalhava nas aulas do Pedro e, à noite com o Rampazzo. Vida de meios períodos, vida de quatro períodos, vida de nem sei quantos períodos. Em meio a este turbilhão começou minha história de professora. Casa, filho, monitoria, emprego na secretaria de Habitação, faculdade, assim se passaram dois anos. Estudava no ônibus, datilografava textos no escritório, almoçava com o Pedro no Museu, no topo do Martinelli, discutindo arte; fazia estágio com o

37

Processo de seleção, escolha, enquadramento de imagens para uma composição.

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Rampazzo numa escola estadual na Vila Albertina; o Bento, meu chefe, cortava meu ponto. Assistia às passeatas do PT pela janela e conversava sobre a abertura e as diretas com os colegas do Departamento; vendia roupas escondida no banheiro, substituía as férias das secretárias para tirar uma grana a mais no fim do mês. Livros? Os que peguei emprestado. Vida social, nenhuma. Vida cultural, nem pensar. Material, só nacional, o que deu para comprar. O que vislumbrava à minha frente era uma guerra. Um personagem da época que traduz como me sentia é Sarah Connor (fig. 22) de o Exterminador do Futuro, um cult do cinema de ficção dos anos 80. FIGURA 22 – SARAH CONNOR

E como Sarah Connor me armei até os dentes e fui à luta. A voraz cidade despertou em mim o instinto de sobrevivência. Aquela menina frágil, sensível, ingênua, delicada revestiu-se de armadura e foi à luta, atirando para todos os lados. E quando pensei que todo este esforço resultaria em nada, Di Grado me contratou para dar aulas na Faculdade. Meu sonho secreto se realizava. Mas, para meu espanto, a disciplina que ele me oferecia era Expressão Corporal no curso de Educação Artística... Não sei como ele soube da minha história; mais uma vez o destino. Assumi as aulas, estudei, pesquisei, tratava-se de uma responsabilidade enorme. Na época estava cursando a licenciatura plena em Artes Plásticas, no período da noite e, na prática docente, percebi que precisava saber mais, assim, fui fazer licenciatura em Artes Cênicas, no período da manhã.

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Por um colega de curso descobri um curso com uma mensalidade bastante viável e uma ótima equipe de professores. Foi neste curso que fiz aquisições muito importantes sobre a Dança e, depois desse outros se seguiram. Com isso pude estruturar uma concepção para a minha prática docente. Neste meio tempo, um dado novo - consegui uma transferência da Secretaria de Habitação para o recém inaugurado Centro Cultural São Paulo, onde fui como secretária da Divisão de Artes Plásticas e pude trabalhar com Renina Katz, Flavio Império, Glória Motta, Marcelo Nietche entre outros artistas. Foram tempos de ouro de aprendizagem sobre artes plásticas e cultura. Fase de grandes mudanças políticas, da Constituinte, da campanha “Diretas Já”. A cor da campanha foi decidida diante dos meus olhos no Centro Cultural. Saíamos em grupo para os comícios para ouvir Tancredo Neves, Ulisses Guimarães na Praça da Sé. Os exilados começavam a voltar e retornar à vida política. Eram recebidos como heróis; havia eventos e festas para recepcioná-los e em pouco tempo convivíamos com eles no espaço de trabalho, partilhando idéias elaborando projetos culturais. Nesta mesma época passei a freqüentar a vida cultural em São Paulo, que se agitava em torno da música de Cazuza, de Lulu Santos, dos Titãs, de Premeditando o Breque e de Língua de Trapo, da ficção científica no cinema com Blade Runner, e o Carlton Dance Festival. Anos 80. Essa foi a década em que me formei, comecei minha carreira, de quando trago fortes influências, artísticas, políticas e pedagógicas. Uma década extremamente fértil e produtiva para o ensino da arte, em que importantes espaços foram conquistados e vivemos um intenso período de elaborações, em que se destaca a importante contribuição de Ana Mae Barbosa (FUSARI & FERRAZ,1993). Trazia a notícia do novo em seus livros e em seu discurso, a informação necessária, respostas para muitas questões para o desenvolvimento do trabalho. Seus trabalhos tornaram-se referências teóricas importantes. Ana Mae tornou-se um exemplo, por que não dizer um modelo para minha formação em início de processo.

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Abriu os portões da universidade para a comunidade e promoveu o diálogo entre todas as partes interessadas no tema; criou um canal de contato as pesquisas do exterior, incentivou o levantamento das pesquisas internas da nossa realidade, incansável defensora do ensino da arte, gerou tempos de intenso questionamento, sobre o que era feito nas escolas e nas universidades. Todo este questionamento fomentou um processo de conscientização do papel social da Arte e levou à conclusão de haver a necessidade de uma mudança neste ensino de uma melhoria significativa no ensino, da arte no Brasil. Foi também dessa forma que tive o meu primeiro contato com a Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, que foi o palco principal dos principais eventos e onde fiz o curso de pós-graduação em Arte Educação. Sob a liderança de Ana Mae formou-se uma geração de arte educadores, que definem hoje os rumos do ensino da arte, nos inúmeros congressos, seminários, encontros que se realizaram em todo o Brasil. Nesta época, tomei consciência de que faz parte da profissão do professor, a atualização constante e a participação política nas entidades de classe. Foi assim que me dediquei intensamente a este movimento onde estão fundadas as bases do meu trabalho e os princípios em que me baseio . Filiei-me à Associação dos Arte Educadores do Estado de São Paulo, e como conselheira da AESP tive o privilégio de participar da redação do manifesto dos Arte Educadores em defesa do ensino da arte nas escolas que defendeu estas idéias na Constituinte e garantiu este espaço na nova Lei de Diretrizes e Bases. Foi um aprendizado importante do aspecto político da profissão de educador, numa fase de intensos contatos com os mais diferentes ambientes sociais e artísticos, de diferentes formas de participação, observando, discutindo, refletindo, aprendendo. Tempo em que assumi compromissos ideológicos e fiz opções teóricas em relação ao meu trabalho. Após este período, já no final dos anos 80 e início dos 90, em que importantes espaços estavam garantidos, era o momento de preenchê-los com as novas propostas e projetos.

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Cada um de nós seguiu por caminhos diferentes em busca de respostas para as mais diferentes questões sobre o ensino da arte, seja nas Universidades, nos espaços culturais públicos e privados, nas escolas, tanto no ensino formal quanto no informal. Creio que, nessa fase que me influenciou profundamente, tomei consciência da minha identidade e estabeleci os princípios para meu trabalho, que estão sintetizados no manifesto. Traçar este panorama foi importante para mostrar em que realidade minha aprendizagem aconteceu. Essa realidade é o pano de fundo em que simultaneamente meu trabalho se construiu como numa estampa sobre o tecido sobre a qual desenhei várias linhas, numa fusão entre tintas e tecido. Entre cores e fios, como veios, por onde fluem minhas ações desde então.

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7 Ato IV: a prática docente

Gostaria de convidar Pina Baush para dirigir esta coreografia/escrita. Pina Baush é a mulher que me mostrou que a dança podia ser teatro, mas numa fusão profunda de elementos que gera uma nova forma, a dança-teatro. Uma fusão, não uma integração, criando, assim, a possibilidade de devolver o rito ao mito nas artes cênicas, na contemporaneidade. Nas suas coreografias pude ver o ser humano retratado por bailarinos humanos, encenando peças que me mostraram as situações mais extremas a que o ser humano pode ser exposto, do poético ao grotesco, revelados em forma de guerras íntimas. Pina me deu pistas e instrumentos para fazer minha viagem ao inconsciente..... Causou-me choques estéticos tão violentos que abalaram uma série de crenças e modelos que tinha em mim. Trouxe de volta a coragem da ousadia, o atrevimento da transgressão, da rebeldia contra os padrões préestabelecidos pela cultura oficial. Não acredito em profecias artísticas. Na pintura, no cinema, na dança, um criador está apenas em sintonia com seu tempo. Os outros é que ficam para trás, sem perceber a realidade. O artista desencadeia o choque entre passado e presente. Não é um dom. É uma tarefa.” (BAUSCH apud. PORTINARI, 1985).

Passei a década de noventa, completamente imersa no meu trabalho, desenvolvendo meu método de ensino, fazendo teatro, dançando e coreografando, pesquisando.

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Durante esse período dediquei-me, também a estudar e acompanhar, entre outros, os trabalhos de Pina Baush. Essa investigação mostrou-me que é possível expor a sensibilidade, a visão de mundo, a crítica mais feroz com rigor e. mais ainda assumir sua identidade e suas origens, trabalhar dentro de seu próprio contexto pessoal, dentro de sua própria opção estética. Com ela aprendi o que é assumir autonomia total na arte. A autoria. Pina Bauch, a artista que fala de rupturas, apareceu na minha vida num momento de ruptura de um longo processo anunciando uma transformação, a da

dançarina/professora

para

autora/professora/pesquisadora,

conforme

representei na ilustração que inicia essa cena. Nesse sentido Baush é um modelo a ser seguido. Mas como já havia aprendido em meu encontro com Isadora Duncan, quanto à forma, cada um deve ter suas próprias idéias. Pina é alemã, eu brasileira, e acredito que modelos precisam passar por uma digestão... uma elaboração... Nesse sentido, meu trabalho não pode apenas copiar o dela, deve ser decodificado e articulado com meus conhecimentos e repertório pessoais, dentro do meu contexto para criação de um trabalho. Resta agora contar a história das minhas aulas, a história de como usei o que aprendi. Tempo de analisar a figura da pintura, as linhas que a percorrem em toda a sua extensão, definindo os eixos de meu trabalho. Linhas que me levam a revisitar os lugares a que esta jornada me tem levado, em busca do conhecimento. Tornar-me arte educadora não foi uma escolha fácil ou será que foi falta de escolha, falta de opção? O fato é que não fiquei pensando muito no caso e tratei de aprender meu ofício. A transição não foi fácil, porque eu não queria ser professora... Influenciada pelo preconceito que existe no meio artístico, na época, considerava isso uma derrota como artista profissional. Mas a vida molda as pessoas...

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Aos poucos me envolvi com ensinar arte, superei o preconceito ao descobrir que esta é uma das funções do artista na sociedade, através dos tempos. Artistas de todas as épocas têm sido meus modelos de professor, o modelo do professor/artista em que me baseio. Assim como na dança, o que sempre me atraiu foi o potencial de transcendência, o que sempre me atraiu em educação foi seu potencial de transformação do ser humano e da sociedade Esta é a história de uma artista apaixonada, que dedicou sua vida às artes, como aquilo que me completa enquanto ser, me nutre de energia para continuar no caminho. Nesse caminho, o que desejo é criar com liberdade, ensinar a criar, criar em grupos, criar individualmente. Criar imagens de mundos desconhecidos a desvendar, dentro e fora de nós; viver a arte e a beleza da vida. Entretanto a prática me mostrou que, para muitos, isso parece uma disciplina “menor” no currículo escolar, em que políticas públicas e as escolas investem pouco tempo e dinheiro. Cabe ao professor de arte conquistar seu espaço na escola. Iniciei a regência de minha primeira aula ciente do desafio que enfrentaria e de que meu trabalho seria uma ação de resistência cultural, posto que, se Educação Artística enfrenta resistências na escola, expressão corporal, no curso de graduação em Educação Artística, era considerada a menos importante das disciplinas e tinha a menor carga horária na grade curricular. Com o passar dos anos perdeu muitos espaços a ponto de atualmente ter sido extinta em muitos currículos dos cursos de formação dos professores de arte. Como ensinar arte? Uma pergunta difícil que tem uma resposta sem fim, que tem sido um desafio diário. Depois de minha primeira regência, saí da sala de aula com a sensação de que havia aprendido a dar aula sozinha pois, na minha formação acadêmica,

não

recebi

preparação

suficiente

para

isso,

muita

arte,

pouquíssima educação. Também senti a minha primeira aula como uma experiência solitária por mais que tenha me preparado.

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Dar aulas é uma coisa impossível de se ensinar a fazer, porque por mais que tenha feito aulas ou que tenha assistido a elas, a primeira experiência de regência de uma aula é solitária e inédita, por isso, a primeira aula de um professor é um ritual iniciático38 em profunda solidão. O professor, por sua conta e risco, diante de uma classe desconhecida. Na condição de estudante de arte, recém inserida no mercado de trabalho ficou muito claro que a graduação não foi capaz de dar conta da minha formação artística e, muito menos, da formação pedagógica. Em minha primeira aula me senti muito despreparada para o trabalho. Avaliando minha formação, por comparação, percebi que, no curso de bacharelado em pintura, as disciplinas tinham uma relação entre si e se complementavam; ao contrário do que ocorria no curso de licenciatura em Educação Artística, em que as disciplinas voltadas para artes plásticas predominavam e as demais linguagens eram como satélites do núcleo central sem que houvesse uma conexão entre elas. Creio que uma conseqüência da forma como foram concebidos estes cursos, a partir da Lei 5692/71, ou se deva a interpretação dada à lei pelos professores e coordenadores. Estes cursos se estruturam em três núcleos de conhecimento, sendo um deles chamado de Formas de Expressão e Comunicação Artística, que inclui as linguagens artísticas (artes plásticas, teatro, música, expressão corporal, cinema, fotografia). O segundo, Formas de Expressão e Comunicação Humana (teoria da comunicação, folclore, história da arte, estética, etc...) com as disciplinas teóricas e, por fim o núcleo de pedagogia (estrutura e funcionamento do ensino, prática de ensino, didática, psicologia). Como resultado o curso de Licenciatura em Educação Artística me iniciou superficialmente nas linguagens artísticas e nas questões da didática do ensino da arte. Os estágios foram extremamente burocráticos, restritos apenas às escolas públicas, o que me impedia de visualizar um panorama de minha área de atuação. Acredito que os estágios deveriam ocorrer de forma mais dinâmica, participativa e reflexiva, em escolas de todo tipo, públicas e “Cerimônias que existentes desde os tempo primevos, propiciam, por meio de rituais, a transição de um estado de desenvolvimento psicológico a outro e implicam uma espécie de morte (sacrifício), necessária para se passar a novo estágio de adaptação, vivido como um renascimento. Psicologicamente, ter passado por uma iniciação significa que o ego foi capaz de suportar o sofrimento trazido pela perda e pela própria transformação, conseguindo abrir mão de uma condição emocional ou de um hábito profundamente enraizado para renascer com uma nova atitude.” (GRIMBERG, 1997) 38

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particulares, em espaços culturais como museus e centros culturais, em contato com diferentes faixas etárias. Em conseqüência disso, a minha formação pedagógica se deu em serviço, quando já se estava empregada e, com o tempo, tornou-se um processo de formação continuada, depois que compreendi que tanto arte quanto educação estão em permanente transformação em função de sua íntima ligação com a vida e a sociedade. Meu primeiro emprego foi como professora de expressão corporal na Faculdade de Belas Artes de São Paulo. Foi uma alegria conseguir uma colocação na minha área predileta. Trabalhava em total liberdade. Eu queria acertar por isso percebi que teria que estudar mais, para poder preparar boas aulas como as que tinha como referências, para que meus alunos se envolvessem da maneira necessária. No caso da dança é preciso fazer uma entrega pessoal, é necessária uma dedicação integral do aluno para que possa aprender a linguagem, através da experiência prática do trabalho corporal. Envolver os alunos nas aulas apresentou-se a mim como um desafio bastante complexo diante de classes heterogêneas, com índices de clara resistência, pela própria natureza da disciplina e as características dos alunos. Quando se leciona uma disciplina obrigatória no currículo, tem que se lidar com classes em que nem todos os alunos apresentam o mesmo interesse e envolvimento com o trabalho. Em conseqüência, o trabalho de motivação da turma exige um grande investimento energia. Quando se leciona uma disciplina como Dança para classes mistas, como no meu caso, é preciso lidar com uma série de preconceitos sociais e culturais, principalmente por parte do alunado do sexo masculino que apresenta uma grande resistência ao trabalho corporal. Compreendidas estas questões existenciais, a próxima foi então decifrar: Como ensinar Expressão Corporal? Como já disse anteriormente, estimulada pelos inúmeros desafios vividos em sala de aula, iniciei uma fase de complementação de minha formação procurando na cidade de São Paulo o que estava sendo oferecido através de cursos livres, congressos, encontros, seminários e especializações.

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Foi um momento muito importante em que, num processo de desenvolvimento, de autonomia como professora, assumi a elaboração do currículo, desta formação complementar e passei a fazer escolhas técnicas e estéticas com o objetivo de desenvolver um método de ensino para esta situação. Investi todo tempo na energia e nos recursos de que dispunha; fui à biblioteca, pesquisei, comprei muitos livros e fui fazer a licenciatura de Artes Cênicas. Ali onde me concentrei em aprender com mais profundidade história do teatro, história da dança, expressão corporal e técnicas da dança, disciplinas mais diretamente ligadas à que eu lecionava, ou seja, Expressão Corporal, para ter uma visão mais ampla sobre o assunto, sua evolução no tempo, sua história. Esse espaço aumentou, quando passei a integrar a equipe do curso de licenciatura plena em Artes Cênicas da Belas Artes. Minha investigação se ampliou integrando a questão da Expressão Corporal ao contexto das Artes Cênicas. Precisava, a partir de então, encontrar um sentido para esta disciplina no currículo dos dois cursos e, principalmente, diante de tantas correntes de pensamentos e métodos, qual a dança adequada à formação do futuro arte educador? Por experiência pessoal nas salas de aula,

com o contato com os

alunos que recebia, e baseada nas idéias de Claude CHALANGUIER e Henri BOSSUS (s.d.), desenvolvi a crença de que a Expressão Corporal originada de uma civilização de repressão do corpo, quase que cortada da vida cotidiana, inserida na vida do homem contemporâneo, seria uma técnica capaz de resgatar um universo esquecido e perdido, em virtude dos hábitos estereotipados de nossa civilização. Uma possibilidade de redescoberta da própria pessoa, de sua existência profunda e, no caso dos estudantes de arte uma experiência capaz de potencializar elementos fundamentais para o processo de criação, a poesia e a criatividade, resgatando o corpo para a percepção de si mesmo como um todo indissolúvel. Nesta época, tinha aulas com Yolanda Amadei39 nas disciplinas de Expressão Corporal, Evolução da Dança e Técnicas da Dança no curso de 39

http://www.estado.estadao.com.br/edicao/pano/98/11/19/ca2839.html http://sites.uol.com.br/macunaim/paulo.htm

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Licenciatura em Artes Cênicas. Yolanda, a partir dessa ocasião tornou-se meu modelo de professora de dança porque, em suas aulas, demonstrava na prática as teorias estudadas e, nas aulas teóricas o estudo reflexivo sobre a evolução das técnicas corporais e das diferentes estéticas. Aprendi com ela, principalmente, ter um olhar de dançarina sobre o meu fazer, um olhar e uma postura do artista que investiga seu objeto de estudo, pensando na sua aplicação, no ensino e no aprimoramento do trabalho de arte propriamente dito. Com Yolanda também aprendi a elaborar minhas aulas práticas numa estrutura que vai num crescente, em que todas as atividades são justificadas teoricamente, integradas entre si e caminham no sentido do simples para o mais complexo. Aulas em que o conhecimento vai sendo construído corporalmente, passo a passo. Os movimentos a serem aprendidos são decupados40 e executados em seqüências cumulativas, não necessariamente lineares, possibilitando que o professor em formação amplie e domine seu repertório durante a formação e seja capaz de proporcionar esta experiência a seus alunos, futuramente. Nas aulas de Evolução da Dança Yolanda Amadei, conheci Roger Garaudy e sua magnífica interpretação filosófica da história da dança. Estávamos em 1983. A leitura de Dançar a vida (GARAUDY, 1980), livro que foi definitivo para a minha inscrição no mundo, trouxe a certeza de que a dança deve ser pensada, elaborada e cientificamente estudada e sua história oferece exemplos de inúmeras variáveis e possibilidades e, principalmente, pode ser elaborada segundo uma ideologia ou estética. Foi uma revelação a respeito de como se pode ler uma trajetória de muitas maneiras diferentes e principalmente sob diferentes óticas, o que rompeu definitivamente os padrões que eu conhecia do estudo da história, e me remeteu a uma atitude de pensar a dança, pensar o meu fazer como professora de arte, não apenas conhecer, estudar, ou produzir uma erudição sobre ela. Passei a partir de então, a construir um saber que tem como eixo o estudo da dança, e que se estende para as outras áreas de conhecimento e justifica o meu ser e o meu fazer. 40

decupar [Do fr. découper.] V. t. d. Cin. Telev. 1. Dividir (um roteiro) em planos numerados, com as indicações dramáticas e técnicas necessárias à filmagem ou à gravação das cenas. (FERREIRA, 1999, p. 612)

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O livro é um ensaio filosófico sobre a história da dança que traz um prefácio de um dos maiores coreógrafos de nosso tempo, Maurice BÉJART (1980). Um trabalho que apresenta uma visão humanista da arte e seu profundo vínculo com a vida humana, com o qual me identifico plenamente. Não discute apenas os aspectos teóricos da dança, mas mergulha em seus aspectos profundos através da metáfora que traz em seu próprio título e é à interpretação destas metáforas que me dediquei, para refletir e estudar durante estes anos. Provocada pela pergunta de GARAUDY (1980) no capítulo A dança como modo de viver, página13: “Que aconteceria se, em vez de apenas construirmos nossa vida, tivéssemos a loucura ou a sabedoria de dançá-la?” Refletindo sobre o desafio de GARAUDY (1980, p.15), durante a leitura, um trecho me chamou atenção de modo especial quando, ao definir o significado profundo da dança para o ser humano recorre a cultura hindu, utilizando a Dança de Shiva para expressar o significado que propõe: A dança do deus Shiva tem por tema a atividade cósmica: “Nosso Deus, diz um hino sagrado na Índia, é o deus dançarino que, como o fogo que abrasa a madeira, irradia seu poder no espírito e na matéria, e os arrasta, por sua vez, para a dança. A dança de Shiva exprime as cinco atividades divinas: a criação contínua do mundo, pois do ritmo desta dança o universo nasceu e se expande; a manutenção desse universo, pois o equilíbrio desse cosmos em movimento incessante só se conserva pelo ritmo da dança; a destruição, pois as formas se destroem para que outras possam nascer infinitamente, e Shiva dança em meio às chamas dos palácios incendiados; a reencarnação, pois a dança de Shiva mostra o percurso através de diversas vidas, para além das ilusões de existências limitadas; a salvação enfim, ou a libertação última, pela qual cada um toma consciência do que é por toda a eternidade - um momento de atividade rítmica de Shiva, o deus que dança.”

Ao ler este texto estava preenchida pela preocupação em vincular meu trabalho com a minha contemporaneidade, com a minha realidade; buscava uma estética. Era um momento de escolhas, precisava encontrar um sentido para o meu fazer. A partir de então mergulhei nesta investigação, que além de me esclarecer vem me transformando continuamente modificando não apenas na minha arte, mas também o meu fazer como professora, integrando todos os aspectos de minha vida.

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Porque, mais que qualquer outra coisa, este livro me ensinou a importância da ampliação da consciência, da visão profunda sobre as coisas e suas conseqüências, sobre nossos atos, sobre nossa expressão no mundo. Naquela ocasião, meu primeiro movimento foi o de grifar no texto alguns trechos, na tentativa de compreender a Dança de Shiva e, numa visão de artista/dançarina/educadora,

tentando

imaginar

os

movimentos

desta

coreografia. Estas idéias despertaram em mim a pergunta de como seria dançar esta dança, e a idéia de trazer esta dança à realidade de forma concreta, como efetivamente uma prática que pudesse levar a tal estágio de consciência. E este trecho do texto me encorajou a continuar a pensar desse modo, o que me conduziu mais tarde a desejar experienciar a dança em seu aspecto sagrado, como um ritual para o auto-conhecimento, uma porta para a devoção, um caminho para a transcendência para o homem comum no seu dia a dia e não apenas para o bailarino ou para os palcos. Uma dança para todos, uma dança que tenha lugar no cotidiano do homem contemporâneo. Como já disse anteriormente, o prefácio do referido livro foi escrito por Maurice Béjart, uma celebridade no mundo da dança que nasceu em Marselha, França em janeiro de 1927, filho do filósofo Gaston Berger. Para compreender o movimento que anima a criação de Maurice Béjart em seu sentido profundo, é necessário esclarecer sua relação com a busca filosófica mais prospectiva de nosso tempo, a busca de seu pai. Essa relação é complexa. Não poderia ser expressa em termos de reflexo ou de simples tradução, como se Béjart tivesse dançado o que Gaston Berger tinha pensado! Bailarino, coreógrafo, Béjart tornou-se conhecido mundialmente por seu trabalho à frente da Companhia Ballet du XX Siècle (Ballet do Século XX) nas décadas de 60 e 70 e, a partir de 1987, o Béjart Ballet Lausane. Em sua vasta obra coreográfica destacam-se Bolero, Symphonie pour um Homme Seul, Sacré du Printemps e Le Presbitère n’a rien perdu de son charm, ni le jardin de son éclat (uma homenagem a Jorge Don principal intérprete de suas coreografias e a Fred Mercury os dois vítimas da AIDS). Criou a Escola Mudra (do sânscrito; significa Gesto), onde teve a preocupação de dar uma formação integral aos bailarinos, integrando ao

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currículo as danças indiana e africana, além da dança clássica e as artes marciais, a música, o teatro e o canto, onde estudaram algumas bailarinas brasileiras como Célia Gouveia. O trabalho de Béjart o transformou em mito devido, em grande parte, aos seus esforços em relação à popularização da dança em todo o mundo. Defende a não elitização da dança, “a dança para o povo”, a dança em estádios, a dança em lugares abertos para um grande número de pessoas, sempre usando a dança para falar das questões sociais e humanas. Deste prefácio de dançar a vida, quero destacar o seguinte trecho:

Há alguns anos, encontrei na Índia um mestre yogi autêntico e muito considerado. Revelei-lhe meu desejo de fazer yoga da maneira profunda, e não essa ginasticazinha para gente de sociedade com hipertensão a que estamos habituados. Ele me respondeu: “A palavra yoga significa união. Esta união você poderá encontrá-la na dança, pois a dança também é união. Você é dançarino, Shiva, o Senhor do mundo, o grande yogi, tem igualmente o nome de Nataraja, o rei da dança...Você é dançarino, você tem sorte. Que a sua dança seja o seu yoga, não procure outro”. Mais tarde, na hora de nos separarmos, olhou-me e disse: Ah! Se todos os ocidentais pudessem reaprender a dançar”.(BÉJART, 1980, p.9).

Nestas aulas, ao entrar em contato com Béjart e com diversos teóricos, bailarinos e coreógrafos, fiz minhas escolhas. Para minha formação pessoal em dança, escolhi o modelo de formação de bailarinos da Escola Mudra e, busquei, a partir de então, ampliar meu repertório pessoal agregando novos recursos às peças e aulas em função das necessidades criadas pela opção estética e temática, como dança afro, tai chi chuan, clown, bufão, dança do ventre, mímica, lutas cênicas e meditação. Mas Béjart me oferecia um modelo de escola de dança o que orientou minha formação pessoal; isso por outro lado, não resolvia meu problema, que era o de pensar uma dança na escola. Pensando o espaço da arte na escola, o tempo reservado a ela no currículo escolar, a primeira conclusão é que está descartada a possibilidade de pensar numa formação de artista para os alunos. Nesta realidade a dimensão que eu, professora de arte, dei ao meu trabalho foi a de abrir um panorama da arte para os alunos, mostrando várias possibilidades e aspectos da arte e suas práticas, uma iniciação. Mas concluí também que nem por isso a experiência tem que ser apenas informativa e superficial, pelo contrário deve

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ser uma experiência que propicie a auto-descoberta e a autonomia dos alunos para fazerem suas escolhas, no caso da dança, descobertas quanto à corporalidade que estes desejam desenvolver para si. Considero perverso engessar uma pessoa, seja criança, adolescente ou adulto numa única forma de dança sem que antes esta pessoa tenha podido conhecer seu próprio corpo, sua sensibilidade e as outras formas de dança disponíveis. Conforme fui estudando, fui encontrando pontos em comum nas concepções de dança de Garaudy, Béjart e principalmente nas propostas modernistas de Isadora Duncan para a dança no começo do século XX, encontrei semelhanças muito grandes entre o que concebiam como dança e o que eu na época, concebia como expressão corporal. “Para mim, a dança é não apenas uma arte que permite a alma humana expressar-se em movimento, mas também a base de toda concepção da vida mais flexível, mais harmoniosa, mais natural. A dança não é como se tende a acreditar, um conjunto de passos mais ou menos arbitrários que são o resultado de combinações mecânicas e que embora possam ser úteis como exercícios técnicos, não poderiam ter a pretensão de constituírem uma arte: são meios e não um fim”.(...) O fim, aliás, não é apenas a expressão pessoal do eu, apenas a explosão espontânea e individualista. O eu, não pode se definir nem se expressar fora do meio que está à sua volta: uma natureza, uma sociedade, uma época com suas revoltas e suas esperanças”. (DUNCAN,1986) Perguntei-me, então, qual o sentido de duas nomenclaturas diferentes para coisas tão semelhantes. Qual a diferença entre dança e expressão corporal? Foi na fala de Bossu que encontrei uma diferença de concepção significativa pois, se de um lado Isadora propunha um vínculo com a vida e o meio, Chalanguier e Bossu desvinculam a Expressão Corporal de uma finalidade de ordem ideológica ou de ordem ética propondo:

Para nós a expressão corporal constitui um procedimento original de expressão que deve colher em si mesmo as suas próprias justificativas e seus próprios métodos de trabalho. Não se insere por conseguinte nos movimentos de renovação das artes do espetáculo (dança, mímica), nem nas correntes pedagógicas de reeducação (psicodrama – psicomotricidade), embora possa influir em profundidade sobre tudo isso. Como técnica de trabalho, a expressão corporal é uma realidade nova; está tudo por fazer e é preciso assumir alguns riscos para que ela saia da fase dos vagidos. (CHALANGUIER & BOSSU, p.15)

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Ao mesmo tempo em que propunham a Expressão Corporal como uma nova disciplina, seus exercícios eram muito semelhantes aos do teatro e da dança. Confrontando essas idéias, cheguei à conclusão de que, na verdade era a dança que havia sido retirada da vida e do cotidiano das pessoas e era ela que deveria ser resgatada porque é uma forma de expressão natural do ser humano. Intrigava-me muito um curso de formação de professores de arte que tinha, em seu currículo, todas as linguagens artísticas (plástica, desenho, fotografia, cinema, teatro, música), no núcleo denominado Formas de Expressão e Comunicação exceto a dança e em seu lugar a Expressão Corporal, quem sabe influenciado por estas linhas de pensamento. Mesmo por que expressão corporal? Se já havia o teatro onde esta atividade faz parte do trabalho de preparação de ator? Imagino que talvez por que a concepção do curso também não tivesse a resposta para a mesma pergunta que eu fazia a respeito de que tipo dança deveria fazer parte da formação desse arte educador. Talvez a dança tenha sido evitada por que poderia incorrer na idéia de que dança seria apenas o balé clássico, obviamente uma linguagem impossível de ser tratada de forma prática num curso como esse e que por suas exigências físicas restringe possibilidade de participação integral de toda a classe nas aulas práticas. Por mais que SALZER (1972) classificasse as atividades corporais segundo os seus objetivos específicos, ainda faltava a palavra arte, a questão da linguagem o que me levou a optar pela dança enquanto arte (preservando sua

característica de linguagem artística, implícitas ai suas questões em

relação à expressão e a estética) mesmo que apenas numa situação que Salzer classifica como não-habitual ou seja está numa região entre a expressão corporal cotidiana e a do espetáculo em que se desenvolve o autoconhecimento e a auto-expressão. CHALANGUIER e BOSSU (s.d.) também abrem espaço para a questão das atividades corporais e suas aplicações terapêuticas, tema que na época era muito discutido e que para mim, era muito evidente a opção que deveria fazer neste caso e que reforça minha escolha pela dança.

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Desde o início ficou muito claro que minha formação é de artista e que, para aplicar um trabalho corporal com fins terapêuticos, um profissional precisa ter uma formação mais específica na área de saúde. Por outro lado, também não se podem ignorar os inevitáveis efeitos do trabalho corporal na psique dos alunos, o que deixava muito nítido que, estaria o tempo todo trabalhando numa região de fronteira entre a arte e a terapia e, portanto, clareza, rigor e coerência tornaram-se elementos fundamentais ao meu trabalho. Escolha feita, faltavam uma técnica e uma metodologia para essa concepção de dança. A dança que buscava estava contida na proposta de Duncan mas na ocasião, tinha apenas contato com suas teorias através de livros e textos; faltava-me a prática a que naquela época não tive acesso. Somente muito mais tarde pude conhecer o trabalho Marília de Andrade41, além de assistir aos espetáculos de Lori Belilove quando esteve no Brasil, mostrando seu trabalho de preservação das coreografias e da continuação das idéias de Duncan sobre a dança. A necessidade de ter um método de ensino e uma técnica corporal como guias era premente e foi também nas aulas de Yolanda que entrei em contato pela primeira vez, com as teorias de Laban. As propostas de Laban para o ensino da dança, comparadas às técnicas de dança clássica e moderna, apresentavam um diferencial; não se baseavam em movimentos pré-codificados (passos, posições, etc.), permitindo, assim, uma liberdade de criação de movimentos pelos alunos e garantindo espaço para a construção de uma expressão própria, baseada na compreensão do movimento e suas estruturas internas fundamentais, que geram temas de movimentos a serem explorados, desenvolvidos e pesquisados em aulas de improvisação.

“a cura di Eugenia Casini Ropa...Con la partecipazione di alcune delle maggiori studiose internazionali e di danzatrici duncaniane della terza e quarta generazione, che ne hanno mantenuto in vita e tramandato creativamente le coreografie e i principi orchestici, il progetto si propone come primo momento italiano di riflessione aggiornata sulla Duncan alla luce delle nuove acquisizioni. Unendo l'esperienza pratica alla considerazione teorica, prevede dimostrazioni di lavoro e workshops di danza di Marilia de Andrade (Brasile), Barbara Kane (Inghilterra) e Françoise Rageau (Francia); due diversi spettacoli di danze duncaniane dell'Isadora Duncan Dance Group (Parigi/Londra); un incontro dedicato ai video di danza delle maggiori interpreti duncaniane di oggi;” (L’EREDITÀ, 2002) 41

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Nas aulas práticas da faculdade havia começado a dançar novamente. Havia encontrado uma forma de dança que acolhe a anatomia humana, tornando a dança acessível a todos, não apenas aos bailarinos profissionais. O curso terminou e eu ainda precisava saber mais. Yolanda me orientou quanto a uma série de cursos em que poderia me aprofundar em Laban, na prática. Naquela época apresentou-me a um grupo de professores de dança que se formara em torno de D. Maria Duchenes, que trouxe o trabalho de Laban para o Brasil. A partir desses contatos pude observar a grande versatilidade deste trabalho e suas múltiplas possibilidades de aplicação, na educação, na dança, no teatro e na psicologia. Esses contatos, ao longo dos anos, me ajudaram a escolher a proposta de Laban para meu trabalho, por propor um ensino humanístico que pensa a formação do ser humano, preservando sua individualidade, livre expressão, e liberdade de escolha. Com Cibele Cavalcanti fiz um curso de formação pedagógica neste método, em que aprendi aspectos didáticos do ensino da dança entre outros, sua aplicação nas diferentes faixas etárias. Com Maria Cecília Pereira Lacava42 (Cilô), aprendi muito sobre pedagogia, sobre a importância da brincadeira infantil na educação, o conhecimento sobre os tempos e disponibilidades internas para o aprender. Também com ela conheci a possibilidade de trabalhar com atividades de artes integradas e, mais ainda, sobre a formação de professores de dança. Cilô tem sido uma importante referência ao longo de todos esses anos. Com Acássio Vallim tive a oportunidade de participar de suas reflexões sobre o ensino da dança clássica e de seu projeto de reformulação curricular da Escola Municipal de Bailado, que ampliou a formação de bailarinos, introduzindo disciplinas como História da Arte e História da Dança, Anatomia, Improvisação e Música, trazendo uma nova dimensão a essa formação profissional.

42

Arte Educadora, Pedagoga, Terapeuta Corporal com especializacão em Cinesiologia Psicológica-Integração FísioPsíquica pelo Instituto Sedes Sapientiae. Eutonista. Formada por Maria Duschenes - Arte do Movimento/Improvisação

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Com Maria Momehnson tive a oportunidade de atuar em duas de suas coreografias, Ronda à margem da Serpente de 1992 e Velados de 1994 e também conhecer por dentro o processo de criação coreográfica na estética da dança-teatro alemã. Com Joana LOPES (1981), primeiramente através de sua pesquisa pude compreender as fases do desenvolvimento do jogo dramático infantil, uma importante contribuição o ensino do teatro nas diferentes faixas etárias. Depois pessoalmente pude aprender com ela muito sobre o trabalho de Eugenio

Barba

sobre

antropologia

teatral,

sobre

as

idéias

sobre

transdisciplinaridade no ensino da arte. Mais tarde ao entrar em contato com sua investigação “O Teatro Antropomágico Dança, Som, Palavra”, pude sentir claramente a contribuição e o surgimento de novos conceitos que influenciaram fortemente meu trabalho redirecionando-o e fortalecendo a idéia de que o ensino/aprendizagem

da dança e do teatro envolve a experiência da

construção da obra artística embora deste resulte também, uma concepção de caráter teórico que aprofunda, a experiência e, a construção de um conhecimento a respeito o objeto de estudo , a linguagem artística em si. A primeira questão defrontada ocorre no nível de recuperar o sentido de jogo, característica fundante de nossa criação auto denominada Antropomágica. Por outro lado, e inevitavelmente, ocorre a necessidade de buscar uma interdisciplinaridade de linguagens artísticas como também construir uma informação que não se restringisse à cena teatral mas pertencesse à história, à antropologia cultural, à educação como campos prioritários de apoio. A linguagem artística da experiência passa a ser Teatro/Dança.” (LOPES, 1998)43

Também participei de alguns de seus workshops, em que aprofundei meus conhecimentos sobre o trabalho prático com as dinâmicas de movimento e sua utilização numa composição coreográfica, composta a partir de diversas referências estéticas multiculturais. Passaram-se os anos e novos desafios profissionais foram aparecendo. Minha trajetória passou a caminhar num ritmo intenso de experiências, cada vez mais diferenciadas. Saí da Faculdade de Belas Artes, passei a trabalhar no curso de Educação Artística da Faculdade de Artes Alcântara Machado ao 43

Este texto foi extraído do volume O Teatro Antropomágico: Dança, Som, Palavra., pesquisa desenvolvida no departamento, que explora a relação pendular entre a palavra e o movimento em função do Teatro-Dança. É uma contribuição à disciplina Coreologia (LABAN, 1978), tomando o nome de Coreodramaturgia: a Dramaturgia do Movimento.(LOPES,1981). http://www.nics.unicamp.br/cadernoum.htm

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lado de Cilô, numa outra concepção de curso. Também assumi as aulas de História da Arte e de História da Dança na Escola Municipal de Bailado. Assumi a assessoria de arte educação na Escola Nova Lourenço Castanho, onde trabalho até hoje, e pude realizar minhas idéias concretamente. Na mesma escola assumi aulas de teatro para adolescentes no ensino fundamental. Nestes novos desafios pude experimentar muitas formas diferentes de aplicação das propostas de Laban, no teatro, na dança e na educação. Neste processo de aprendizagem permanente, mais recentemente encontrei auxilio em MARQUES (1999) para organizar minhas idéias a respeito da ciência que Laban chamou de coreologia (choreology) e seus estudos das dinâmicas (eukinetics), do espaço (choreutics), e da escrita da dança (kinetography). Concluí que essas tem sido minhas principais ferramentas de pesquisa, porque isso me permite estudar profundamente as estruturas do movimento humano que geram a dança, viabilizando, assim, um maior conhecimento da “ordem oculta” dessa arte, ou seja, de seu código, ou elementos estruturais. Entretanto, apesar de ter iniciado meu trabalho docente tendo Laban como modelo também como concepção de uma educação essencialmente através da dança, ao longo de minha trajetória do modelo inicial, na prática docente fui me diferenciando por entender que essa proposta limitava a dança na educação apenas a um exercício de auto-descoberta e livre expressão, retirando da mesma sua dimensão de linguagem artística, enquanto forma de comunicação humana. Assim, nesse processo que poderia dizer intuitivo, passei a interpretar a coreologia de Laban como uma nova técnica de dança, em que podia identificar e reconhecer os elementos da linguagem e apropriarme deles, não apenas com uma preocupação de desenvolver a expressão, a espontaneidade, a criatividade, mas também acrescentando a isso uma intenção estética e artística. Conseqüentemente, confirma-se como um caminho válido não só pelos resultados obtidos no meu cotidiano como também pelas parcerias que encontrei, entre os que, assim como eu, se dedicam ao estudo da dança na educação.

Através do estudo coreológico, o aluno/dançarino pode debruçar-se sobre a dança em si, centrar-se na arte, nos mecanismos de movimento e não somente

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naquilo que poderíamos alcançar através deles (expressão, equilíbrio emocional, sociabilidade, etc.). O enfoque coreológico para o ensino da dança, tal qual trabalhado por Valerie Preston-Dunlop (1987, 1989, 1992), discípula de Laban, enfatiza a possibilidade de discriminação, percepção e avaliação diferenciada da dança em suas várias modalidades: pesquisa, educação, escrita, performance e coreografia. No que diz respeito à educação, através do enfoque coreológico é acessível ao aluno o sub-texto da dança, de modo que se processe um aprendizado que “ insistirá que a dança é um evento conhecido apenas pela fusão simultânea do fazer, ter sensações, pensar e sentir no ato de conhecer com dicernimento o evento estético “Preston-Dunlop, 1988, p.229). O aprendizado através do subtexto, permite assim, que o aluno processe as informações recebidas nos diversos níveis (corporal, intelectual; de dentro ou de fora; racional ou intuitivo), exercitando suas capacidades ativas de aprendizado (Preston-Dunlop, 1992)”. (MARQUES, 1999).

Ainda ao longo de minha prática, ao recorrer aos trabalhos teóricos de Laban, me ressenti da ausência de uma proposta de trabalho corporal, como preparação para o movimento, o que me levou a uma pesquisa de técnicas corporais como o físico FELDENKRAIS (1977) e a anti-ginástica de Thérèse BERTHERAT (1982) entre outras. Em função do caráter prático das aulas, e principalmente por trabalhar com alunos sem nenhuma experiência na área, senti a necessidade de estudar anatomia e técnicas de massagem, sensopercepção e relaxamento, para que lhes pudesse dar atendimento e orientação nas dificuldades físicas que apareciam no cotidiano das aulas; porque o corpo, neste caso, é o instrumento de trabalho que precisa estar “afinado” para poder executar a dança. Outro problema, que tive que elaborar nesse processo de diferenciação, foi a do contexto, no momento em que, por uma questão de origem cultural diversa da minha, as temáticas utilizadas por Laban para os exercícios de movimento eram muito distantes da realidade em que eu me inseria, não permitindo, portanto, que obtivesse o envolvimento e a motivação de meus alunos nas propostas de trabalho; concluindo assim, que também teria que fazer escolhas estéticas para o meu trabalho. Revendo os momentos em que fiz essas escolhas, identifiquei conceitos reunidos para minha reflexão, que tiveram participação determinante nas minhas escolhas. Quando digo que meu modelo de professor de arte é o do professor/artista é porque acredito que para ensinar arte é necessário saber fazer arte, ser artista. Somente quem vive pessoalmente a complexidade de um

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processo de criação é capaz de compreender o que o outro está vivendo e saber como ajudar na superação de situações bastante difíceis, de intensa tensão, que acontecem durante a execução de um trabalho artístico - o desespero de não saber o que fazer diante de uma folha em branco, não saber o que quer dizer, como dizer, ou que cores escolher. Nessas situações experimenta-se sentimentos de angústia, medo, frustração, raiva, decepção. Isto por que a arte, em seu fazer, em sua teoria e fruição, nos desafia a encontrar os caminhos possíveis para trazer o imaginário para a realidade e a aprender a lidar com limites, frustrações, erros, descobrindo o respeito pelos materiais, compreendendo a necessidade da precisão, da determinação, da busca de soluções para problemas criados. Finalmente, diante do trabalho pronto reconhecer seu interior mais profundo, naquilo que construiu como sua expressão, a obra de arte. O trabalho artístico implica a produção de uma obra, a ser exibida para um público de forma perceptível pelos sentidos humanos, uma música, uma poesia, uma pintura, uma escultura, uma cena de dança ou de teatro. Por essa razão, a obra de arte está feita para sensibilizar para formas de relacionamento, do eu com o objeto, de si consigo mesmo, do “eu” com o outro, do eu com o mundo em que se vive. As obras de arte são criadas sem uma função relacionada à vida prática, o que amplia a possibilidade da multiplicidade de fruições. Assim sendo, quem se propõe a participar desse processo de aprendizagem/criação precisa saber estimular o aprendiz , encorajar, evitar que desista, criticar com precisão, intervir, lançar desafios, compreender as idéias, discutir, analisar, informar, esclarecer e tantas outras coisas. Assim como não deve tolher a criatividade, a espontaneidade, a originalidade, do aprendiz. Uma das coisas mais difíceis é saber discriminar seu lugar num trabalho que se faz junto mas que é do outro e, por isso mesmo, senti que precisava ter meu próprio processo de criação/investigação que, por sua vez, alimenta o trabalho da sala de aula. Pensando a respeito da posição que deveria assumir diante dos grupos de trabalho, observei que, nas artes plásticas predominam os trabalhos individuais e nas artes cênicas o processo de criação coletiva e analisando o tipo de trabalho que desejo desenvolver o lugar que encontrei para ocupar na

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sala de aula é o lugar equivalente ao do diretor no teatro, ao do regente da orquestra e ao do coreógrafo na dança, um artista que propõe ao grupo a realização de um trabalho artístico. Por uma questão de afinidade, como uma conseqüência natural de minha investigação e da própria origem de meu trabalho no teatro, em grupos experimentais e de pesquisa a estética que escolhi para desenvolver nas minhas aulas de dança foi a da Dança-teatro44 que teve origem no expressionismo alemão, iniciada por Kurt Jooss45, uma estética que se situa numa região fronteiriça entre o teatro e a dança. Jooss46 associou intimamente a dança ao teatro mais particularmente à mímica. Entretanto, em termos formais, a dança-teatro que tenho como referência tem sido o trabalho de Pina Baush47, aluna e continuadora do trabalho de Jooss, coreógrafa extraordinária que criou uma expressão muito própria, cultiva o choque, a sofisticação e a brutalidade. Essa estética do estranhamento rompe com a previsibilidade das sensações esperadas na dança pelo público, que reage ou com adoração ou abomina esse trabalho.

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Cercano a nuestros días y tal como se lo conoce actualmente el movimiento Danza-Teatro se inicia con el Expresionismo alemán, después de la Primera Guerra Mundial y se consolida con la creación de la Folwang Hochchule de Essen Werchen, por Kurt Jooss (1901-1979), en la cual la educación interdisciplinaria abarca todas las ramas del arte: música, pantomima, fotografía, ópera, etc. Este fenómeno no es una caprichosa casualidad sino, en primer término, producto de las circunstancias históricas, tanto como del accionar iconoclasta de los artistas del siglo XX, suficientemente explícitos en sus manuscritos, unidos a las características esenciales del espíritu germano, a sus concepciones sobre la naturaleza y el hombre, cuya salvación depende del accionar y de las propias fuerzas. La Danza-Teatro utiliza gran diversidad de movimientos -no sólo los que pertenecen a determinada escuela-, gestos y actitudes son imágenes vivas y sinceras que traduce el infinito ritmo de sus sentimientos. No busca un realismo fotográfico. Cada situación está dirigida por la afectividad. El juego diverso de innumerables manifestaciones permiten al intérprete representar la descripción de agudos momentos de sus íntimas contradicciones. Esta corriente de la danza moderna, con su impronta alemana, trascendió los límites de su origen para expandirse por el mundo entero y enriquecer diversas búsquedas personales. Resultaría prácticamente imposible pretender determinar cuáles características pertenecen a una u otra categoría, dado lo intrincado de la trama y lo difuso de las fronteras. Pina Bausch, al referirse a sus producciones, aunque evada rótulos, habla de danza. Tadeus Kantor decía que lo suyo era teatro. Igual temperamento adopta el Kirov de Leningrado en su puesta "La historia del caballo". Esta situación posibilita pensar que la cuestión pasa más por el abordaje, la información de base y la visión artística del producto final que tengan los diversos realizadores. Aún en lo que enequívocamente se puede individualizar como Danza-Teatro, existe una diversidad de enfoques y notables diferencias. No son lo mismo las obras de Bausch que las de Susanne Linke. John Krenek no puede confundirse con Reinhild Hoffmann, ni ésta con Heindrum Schwartz, ni Hans Van Manen, por nombrar sólo los más destacados en la actualidad. 45

http://www.danzarevista.com/edicion_15_11/paginas/opinion.html http://www.idance.hpg.ig.com.br/colunistas/dagmar.htm 47 htt://zonanon.com/abc/bausch.html 46

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(...) de todos os herdeiros da dança de expressão de antes da guerra, Pina é com certeza aquela que mais claramente assume as suas conseqüências. Partindo da tradição de Kurt Jooss, e com base no trabalho da ópera de Wuppertal que assumirá a partir de 1973, ela vai inventar uma nova forma de espetáculo, no qual as categorias deixam de fazer sentido, e que reflete incansavelmente a perda vivida pelo homem nos sistemas sociais estereotipados e hipócritas, nos quais até mesmo os jogos de poder parecem artificiais. Os seus espetáculos têm, por outro lado, qualquer coisa que é ao mesmo tempo parada, opereta e happening. O tema favorito de Pina permanece a denúncia dos códigos de sedução. Dá-lhe formas diversas, mas uma das mais deslumbrantes continua a ser a de BarbaAzul (1977), um trabalho construído a partir da partitura com o mesmo título de Bela Bártok. Desde as suas primeiras peças, como Orfeu e Euridice, encenada pela ópera de Gluck, ou da Sagração da Primavera, ambas de 1975, até aquelas, terrivelmente austeras, que montará durante a década de oitenta, a sua obra vai-se deslocando imperceptivelmente para a original forma de dançateatro (tanztheater) que inventará. A evolução da sua dança assemelha-se aliás a um verdadeiro corte das raízes, a partir do qual se assiste, gradualmente, à formação de uma nova linguagem, cujo primeiro passo será a aparente perda desse tipo de movimento que é convencionalmente associado à dança.” (BAUSCH, 2002)

A Dança-teatro possui toda a carga emocional e psicológica que o teatro proporciona ao ator, enquanto dá vida aos personagens com toda a expressividade que os movimentos da dança trazem para o palco. Com isso, ocorre uma fusão emoção-expressão, permitindo uma abertura maior, no leque da criação artística, tanto para os atores/dançarinos como para encenadores; há uma liberdade maior, uma fuga dos convencionalismos impostos, tanto pelo teatro como pela dança. Com relação à temática, essa opção me permite um amplo leque de possibilidades; tenho procurado trabalhar com temas relacionados ao meu tempo e à realidade dos alunos em criações coletivas ou recorrendo a textos literários, jornalísticos, filosóficos para subsidiar na composição do desenho de movimentos, das cenas e sua roteirização. O processo de criação se baseia na pesquisa, através da improvisação, que favorece a expressão individual, alimenta a criação de uma partitura de movimentos a serem codificadas.

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Inspirei-me, também, no trabalho de diretores teatrais como Peter BROOK (1995) e Eugenio Barba48 e na brasileira Bete Lopes com quem tive a oportunidade de trabalhar na montagem de Os brutos também amam de 1993. Revisitando este processo de procura por uma metodologia de ensino pessoal percebi que no início copiava ... Suponho que todo mundo começa a dar aulas copiando; eu também comecei assim, copiando as aulas de meus professores favoritos. Logo percebi que, apesar do recurso da cópia das aulas, na arte em geral só consegue ensinar quem já o vivenciou na prática; quem passou pelas correções, pelos erros e acertos neste fazer, não adiantava apenas colecionar receitas de aulas de outros professores ou extraídas de livros mas sim sistematizar uma forma de registro das minhas experiências. Passado algum tempo, havia elaborado meu próprio repertório de aulas e elaborarei, então, uma forma de registro para as que fazia com meus professores e para as que eu elaborava; são histórias em quadrinhos das aulas com textos curtos e desenhos dos movimentos. Mas, mesmo que se queira, logo se descobre que é impossível simplesmente copiar. Exatamente porque cada grupo é um grupo, cada espaço é diferente, cada instituição é diferente e possui sua própria cultura e, por mais que se tenha um modelo ideal, na verdade deve-se sintonizar seu trabalho com o projeto pedagógico da instituição e adequá-lo para cada situação diferente que se vive em sala de aula. Revendo meus planejamentos, percebi que, no início, apesar de dar aulas práticas, ainda mantinha uma abordagem conteudista, elencando e ordenando conteúdos de forma cumulativa, pensando apenas uma formação técnica de professores de arte que pudessem utilizar a dança como recurso em suas aulas. Quando tive que aplicar esse conhecimento em aulas para adolescentes entendi que essa estrutura de trabalho não servia para os novos objetivos.

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... Since 1974, Eugenio Barba and Odin Teatret have devised their own way of being present in a social context through the practice of theatre "barter". Subsequently other forms of popular itinerant performing, including acrobatics and the grotesque, have become part of their dramaturgy. In 1979 Eugenio Barba founded ISTA, International School of Theatre Anthropology. He is on the advisory boards of scholarly journals such as The Drama Review, Performance Research and New Theatre Quarterly. Among his most recent publications, translated into several different languages, are The Paper Canoe (Routledge), Theatre: Solitude, Craft, Revolt (Black Mountain Press), Land of Ashes and Diamonds. My Apprenticeship in Poland, followed by 26 letters from Jerzy Grotowski to

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Tantos desafios vieram com essas novas situações que fiquei mergulhada um bom tempo no estudo desse ensino, nas diferentes faixas etárias, em situações de escola formal, em espaços culturais e entidades comunitárias. Estudando como e onde isso podia acontecer. Foi um conhecimento que construí no dia a dia, confrontando as teorias de ensino e da arte com a prática da sala de aula. Construindo um conhecimento e percebendo, em cada aula, como ensinar é sinônimo de aprender. Para aprender a criar minhas próprias propostas de trabalho, aos poucos, fui resolvendo problemas nos três elementos que, pude identificar, que acontecem simultaneamente na sala de aula; a relação professor/aluno/classe, os objetivos/conteúdos/habilidades e a adequação das atividades ao tempo de duração da aula. Pude observar que esses três elementos são sempre constantes na organização de um planejamento e que, para cada situação, eles se articulam de maneira diferente. Creio que a primeira coisa importante que aprendi é que, em função dos objetivos e conteúdos, é preciso ter-se um esquema inicial de planejamento, baseado nas especificidades da disciplina mas, antes de montar e impor à classe um planejamento definitivo, é necessário fazer um diagnóstico do grupo e da situação em que seu trabalho vai acontecer. O que, numa abordagem conteudista receberia o nome de “perder tempo de aula”. Para fazer este diagnóstico é possível usar várias estratégias diferentes, de acordo com as diferentes faixas etárias e objetivos, desde uma simples conversa com os alunos, jogos de integração, de memória, vivências, improvisações até resgates de memória de história de vida, utilizando-se uma infinidade de recursos para este trabalho. Com isso é possível trabalhar a partir do conhecimento da realidade do aluno, saber seus pré-requisitos físicos, emocionais, culturais. Isso torna possível acessar os conteúdos significativos do grupo/classe, que possibilitarão a criação de propostas em que poderão criar vínculos afetivos com o trabalho,

Eugenio Barba (Black Mountain Press) and in collaboration with Nicola Savarese, The Secret Art of the Performer (Centre for Performance Research/Routledge).(BARBA, 2002)

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o que contribui fortemente para o envolvimento dos alunos e para a formação e união do grupo. A dança e o teatro, como já disse, implicam uma criação coletiva, portanto é preciso trabalhar o grupo todo, todos juntos, envolvidos num único projeto. Embora seja difícil conseguir um grupo trabalhando em função de um objetivo comum - o que nem sempre é possível - isso deve ser uma meta, porque quando isso acontece, é maravilhoso para o crescimento de todos. Feito isso, é mais fácil planejar as aulas que costumo preparar de forma diferenciada, especificamente estruturadas para cada grupo, respeitando suas diferentes dinâmicas e individualidades. Utilizando essa estratégia posso, assim, iniciar meus trabalhos com uma maior segurança e mais liberdade para me dedicar ao relacionamento com a classe, mais tarde, com a evolução desse relacionamento, porque posso, também, perceber cada um individualmente. Conforme as experiências foram se acumulando, fui percebendo a importância do relacionamento professor/aluno, uma relação que precisa ser construída e, no caso da dança, tem suas peculiaridades. Nas aulas de dança, o instrumento de trabalho é o próprio corpo, ou seja, o aluno e o professor estão vivendo uma experiência de alto nível de exposição pessoal, por isso procuro estar muito centrada e ter muito cuidado no trato com cada um, na condução dos relacionamentos interpessoais na classe. É fundamental, para mim, desenvolver uma atitude de respeito e delicadeza no grupo, criar um ambiente seguro e acolhedor, para que todos possam se expor em segurança e viver uma experiência prazerosa de crescimento e aprendizagem. Dar aula de dança é uma experiência fascinante em que eu me vi completamente envolvida, no momento em que me percebi capaz de ler e entender meus alunos. Baseando minhas análises de aula na leitura de movimentos, pude compreender o corpo humano como um material repleto de recursos expressivos. Na dança se aplica a criatividade em si mesmo, enfrentando os limites na própria pele e vive as sensações estéticas no exato momento de sua criação. A forma é imediata e fugaz, mas fica gravada no corpo e na alma para sempre. É uma experiência em que me sinto em

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comunhão com meus alunos, compartilhando suas conquistas de muitas maneiras diferentes. Com meus alunos aprendi a acolher os erros, comemorar as vitórias, apoiar as dificuldades, a esperar os diferentes tempos de aprendizagem de cada um e a respeitar o meu próprio tempo. Principalmente com meus alunos adolescentes, aprendi que é necessário conhecer seus gostos, sonhos, opções estéticas e, mais que tudo saber comunicar-me usando sua linguagem muito especial repleta de gírias e expressões carregadas de novos significados, a cada geração que se sucede. Com meus alunos questionadores aprendi a aprender com eles, a entrar em contato com o meu não saber e a aceitar suas contribuições/críticas. Aprendi a olhar para os alunos, ler seus processos, trabalhar com suas histórias, acudir, apoiar, discutir, criticar, falar e calar, esperar. O relacionamento professor/aluno numa aula de dança acontece como um pulsar, começa como o movimento de inspiração, o carregamento da energia, os momentos em que o professor está fazendo a aula junto com o aluno, num corpo a corpo. Passa para um estado de pausa intermediária, quando se adquire uma fluência na aula, baseada na confiança, em que todos estão envolvidos com um mesmo tema ou problema. Nos momentos finais da aula, como na expiração, dá-se uma etapa no trabalho em que um certo distanciamento do professor se faz necessário para acompanhar, orientar e desenvolver autonomia do aluno em seu processo de aprendizagem na função do “olhar de fora” que estuda a intervenção correta no tempo exato. Percebi

a

importância

de

se

reconhecer

quando

está

em

desenvolvimento um processo de aprendizagem/criação no grupo. A leitura deste processo e seu acompanhamento é que vão determinar os passos a serem dados por mim na condução das aulas, para evitar que os processos se interrompam precocemente, ou que se desviem dos objetivos traçados pelo grupo. Passados os momentos preparatórios iniciais, sinto a necessidade de planejar aula por aula para cada turma, observando criteriosamente, sentindo se a aula foi produtiva e criando espaços para as contribuições e interesses

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dos alunos que muitas vezes surgem de forma inesperada, superando inclusive as minhas expectativas; provocando rupturas e saltos nas etapas previstas, que tornam desnecessárias algumas atividades anteriormente previstas no planejamento. Esses procedimentos de avaliação permanente me ensinaram a redirecionar a aula que não deu certo. Aprendi que há muitas maneiras de abordar um mesmo assunto e muitas outras de motivar o aluno a fazer as atividades que propõe. Essa forma de avaliação, baseada nos resultados obtidos na aplicação prática de minhas teorias, também me ajuda a desenvolver, sempre que necessário, novos objetivos e estratégias. Relacionando os conteúdos com a duração e quantidade de aulas do curso e com a dinâmica da classe, com o tempo, aprendi a planejar e conduzir o que chamo de “uma aula redonda”, uma aula com começo meio e fim, que vai num crescendo, tem um desenvolvimento fluido e chega a um resultado final. Basicamente, a estrutura das minhas aulas é organizada de modo que os itens que considero essenciais para o trabalho possam se alternar de acordo com a evolução e a realidade do grupo de trabalho:

a) trabalho corporal, relaxamento, massagem, exercícios, alongamentos, (técnica); b) jogos de integração, memória e imaginação; c) meditação e sensopercepção; d) improvisação/pesquisa de movimentos/temas de movimento/ampliação de repertório; e) improvisação/criação/temas

de

movimento:

forma/espaço,

dinâmicas,

impulsos, estados, ritmo; f) composição: coreográfica, teatral/montagens; g) apresentação/troca/ampliação de repertório;

Senti que havia atingido uma certa maturidade profissional e adquirido domínio sobre o meu ofício de professora quando passei a ter menos problemas de disciplina nas aulas e não precisava mais de tantos registros e esquemas. Quando me equipei com uma boa quantidade de material didático,

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textos, livros, vídeos, músicas, figurinos, tecidos e equipamentos específicos para preparação corporal. Quando ao entrar serena numa aula estou segura do que vou fazer e sempre preparada e aberta para acolher o inesperado. Mais ainda, quando um sentimento de alegria me invade ao encontrar o brilho do olhar dos alunos à minha espera. Me senti professora quando me vi entrando na sala como se entra num palco, concentrada e humilde, determinada a fazer um bom espetáculo ao lado de meu grupo. Com a postura de quem vai para um ritual comungar com seus parceiros algo transcendente e transformador. Experiência após experiência, um belo dia me dei conta de que haviam se passado quase duas décadas desde que havia iniciado minha jornada de professora, a de 80, estudando e pesquisando e a década de 90, desenvolvendo meu projeto pessoal. Foi então que percebi que minha relação com a prática pedagógica havia se tornado muito parecida com uma relação de artista com sua arte, uma relação em que este se apóia na técnica para criar, adquire um domínio completo sobre ela a ponto de poder esquecê-la e incorporá-la ao seu trabalho, criando, desta forma, uma unidade entre forma e conteúdo. Mal havia terminado estas constatações, o trabalho com projetos entrou na minha vida de duas maneiras diferentes, provocando um novo desequilíbrio e profundas transformações. Apesar de, em todos os meus cursos, eu sempre prever um resultado final, ou seja, uma peça ou performance que considero tratar-se de um projeto, meu enfoque ainda priorizava o desenvolvimento de conteúdos e habilidades, isso porque percebi que era muito presente em meu trabalho uma estrutura de planejamento em que havia uma preocupação em desenvolver pré-requisitos, no sentido de preparar o aluno antes para poder depois iniciar o trabalho expressivo onde terá que reunir todos os conhecimentos num trabalho de criação. A primeira necessidade de mudar meu trabalho veio em conseqüência de mudanças na distribuição das aulas de arte na escola para que os alunos de 5a a 8a séries pudessem ter experiências em duas linguagens artísticas, artes plásticas e teatro em vez de apenas uma. Com isso meu tempo com cada

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turma ficou reduzido a um semestre o que impôs uma mudança radical no meu trabalho. Toda a seqüência de trabalho que eu havia criado teve que ser desmontada e reorganizada. Tentei preservar os conteúdos que considero essenciais, criando uma organização diferente. Preservei os trabalhos de integração, introduzi exercícios de imaginação, de onde os alunos retiram o tema para a peça que irão montar e, nas discussões em roda, definimos a linguagem para o tratamento do tema. Roteirizamos as cenas, improvisando o tema da peça e extraímos, das improvisações as cenas para o roteiro. Depois disso, para a pesquisa, crio exercícios de interpretação para cada cena e divididos pelas cenas em que participam, os alunos formam grupos de produção,

como

contra-regragem,

iluminação,

sonoplastia,

figurinos

e

maquiagem e cenografia. Iniciamos a montagem onde vão, pouco a pouco se agregando todos estes elementos da linguagem. Nas apresentações avaliamos se

conseguimos

unidade,

harmonia,

ritmo,

equilíbrio,

avaliamos

as

contribuições de cada um e a qualidade de relacionamento de grupo que conseguimos. A outra mudança foi na faculdade, quando se instituiu a obrigatoriedade da participação dos alunos na Mostra de Arte Anual. Nessa situação apliquei a mesma solução que havia criado para o ensino fundamental, incluindo, aí conteúdos sobre a pedagogia da dança, já que se tratava de um curso de formação de professores. Entretanto, a questão da obrigatoriedade de uma apresentação trouxe à tona para uma nova reflexão a problemática processo/produto no ensino da arte. Sempre acreditei que no processo de ensino/aprendizagem da arte o processo de criação deveria ser minha prioridade e encaro o produto artístico (o trabalho) como reflexo e conseqüência desse processo de trabalho. No teatro e na dança a apresentação do produto deve ser uma escolha do grupo e não uma imposição do professor ou da instituição. Isto por que considero que cada

grupo

tem

seu

tempo

de

amadurecimento

em

relação

aos

relacionamentos e à linguagem propriamente dita e o produto é resultante disto. Penso que o produto de um processo não precisa ser necessariamente um trabalho acabado, mas o conjunto de conquistas obtidas naquele período de tempo. Muitas vezes, pude vivenciar grupos que, somente no final do ano,

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atingiram a maturidade suficiente para iniciar a produção de uma composição, mas o tempo da nossa experiência estava esgotado e não houve possibilidade de realizar uma peça, apenas algumas cenas e seqüências de movimentos. Não senti um fracasso nesta experiência, pelo contrário fiquei satisfeita por ter conseguido a formação de um grupo que, pelo tempo que levou, revela a dificuldade de seus elementos nessa tarefa, dificuldades essas que foram superadas. Também considero isso um produto. No caso da obrigatoriedade, tomei alguns cuidados para que o processo de criação fosse preservado, no sentido de garantir espaço para a criatividade e a espontaneidade, pois nesse caso, há o risco de se cair num trabalho técnico, frio e tarefeiro, perdendo-se pelo caminho todas as possibilidades da formação e mais ainda, a reflexão e o significado. Procurei orientar os grupos quanto ao grau de complexidade possível de ser trabalhado naquele determinado estágio de desenvolvimento na linguagem, porque muitas vezes se não há esta medida, o processo sofre um esvaziamento ou cai na superficialidade. Mesmo sob a pressão da obrigatoriedade, sempre assumi o risco de preservar o direito da classe escolher apresentar-se ou não, em função de sua avaliação do produto que obteve. A experiência de se colocar diante de um público requer segurança do grupo e além de um trabalho amadurecido, bem ensaiado e bem montado. Creio também que, dependendo da faixa etária dos alunos, esta nem seja uma experiência positiva. Sempre senti a responsabilidade de preservar meus alunos e, neste sentido, também sempre tomei o cuidado de avaliar o tipo de público que estaria em condições de enfrentar naquele momento. Criei outras possibilidades de apresentação que tivessem um caráter menos pesado que o de uma apresentação como por exemplo ensaios abertos com debates com o público. Pode parecer que eu seja contra apresentações mas, pelo contrário, sou completamente a favor, quando o trabalho está em condições de ir à cena. É uma experiência ímpar que fortalece um grupo e que propicia a vivência de emoções fortes e importantes para grupos com um bom grau de amadurecimento.

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O amadurecimento a que me refiro revela-se pela responsabilidade dos alunos em relação ao trabalho e ao grupo, pela união, pela seriedade, pela cumplicidade e agilidade que dão uma estrutura firme ao trabalho. É quando se pode prever que se alguém esquecer sua parte, haverá sempre outro para ajudá-lo na cena, quando todos gostam do trabalho que criaram e acreditam nele. É quando o grupo desenvolve uma autonomia de produção e consegue fazer uma trilha sonora bem gravada, cronometrada, um cenário que não cai na cabeça dos atores e os adereços e figurinos estão sempre todos completos, esperando na cochia, quando os camarins estão limpos e arrumados antes e depois da apresentação. Há uma organização, uma disciplina de trabalho que garantem o sucesso do espetáculo que é resultante do amadurecimento do grupo de trabalho. Por isso, penso que a exigência de uma apresentação de um grupo de principiantes em dois semestres de convivência resulta numa exposição prematura em muitos casos o que pode gerar uma enorme frustração e conseqüentemente um afastamento da dança e do teatro por um sentimento de incapacidade. É claro que há grupos que surpreendem e conseguem conceber uma peça em apenas um bimestre de trabalho. Ensaiam-na e apresentam-na em um semestre, o que permite que sejam feitas várias apresentações e não apenas uma o que considero bem mais enriquecedor. Isso representa possibilidade de experimentar públicos diferentes, fazer correções na peça em função de cada retorno recebido. Essa situação seria a ideal e possível se as disciplinas não estivessem amarradas a uma grade curricular rígida e pudessem acompanhar o tempo de desenvolvimento de cada grupo.

8 Cena final: os grupos de pesquisa FIGURA 22 – TRECHO DA PINTURA QUE REPRESENTA OS GRUPOS DE PESQUISA

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Foi em função deste sentimento que os grupos permanentes de pesquisa passaram a fazer parte de meu trabalho, assumindo diferentes formas ao longo dos anos. Logo no início da minha carreira, alguns alunos mais interessados manifestaram o desejo de ampliar suas experiências em dança. Formamos um grupo de pesquisa que se reunia para trabalhar voluntariamente numa sala da faculdade durante quatro horas nos sábados, entre as aulas da manhã e as da tarde, o que permitia que alunos da manhã e da tarde pudessem participar. Essa experiência me ensinou a estruturar minha pesquisa e a criar um modelo de grupo de pesquisa. Um grupo em que as relações são mais espontâneas, sem o peso das notas, onde há uma troca de conhecimentos mais rica, pois há mais igualdade entre alunos e professor. Neste trabalho de intensa troca eu entrava com a dança e sua técnica e aprendia muito com os integrantes do grupo, que trouxeram muitas contribuições para meu repertório como a música, o humor, sua contemporaneidade e diferentes visões de mundo. O intenso trabalho de reflexão e crítica formou um grupo que deu origem a primeira turma de licenciatura em artes cênicas da Faculdade de Belas Artes de São Paulo. Quando sai da Faculdade e perdemos o espaço de trabalho, passamos a vagar de sala em sala pela cidade, até que isso desgastou o grupo que acabou por se desfazer. Tive ainda a oportunidade de trabalhar com alguns de seus integrantes em outros grupos que montei posteriormente e as amizades permanecem vivas até hoje apesar de nenhum deles ter continuado um trabalho em dança. Desde então nunca mais consegui ficar sem um grupo para desenvolver minhas pesquisas em dança. Durante todo esse tempo, numa linha constante que me acompanha, os grupos sempre estiveram presentes Quando fui para a Faculdade de Artes Alcântara Machado (FAAM), levei esta idéia comigo e, em pouco tempo havia montado um novo grupo que produziu duas performances muito boas que levamos a várias unidades da faculdade e apresentamos também na mostra de Arte. A procura por espaços para os grupos de pesquisa me levou até o Centro de Vivências Terapêuticas, onde além de encontrar abrigo para meu

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curso livre de dança para adultos, fui convidada por Ingelot Taterka a montar um curso livre para pessoas especiais. Foi um trabalho que me fez crescer muito profissionalmente e me revelou a possibilidade de trabalhar com cursos livres como uma forma de garantir o espaço para os grupos de pesquisa, ou seja, um trabalho pago não mais voluntário. Digo isso porque sempre orientei meus cursos livres como grupos de pesquisa, por não gostar da idéia de que isso fosse apenas um lazer para os alunos; procurei manter sempre viva a idéia da construção de um conhecimento a respeito de si e da dança. Na Escola Nova Lourenço Castanho ocorreu um processo parecido com o que houve na Belas Artes. Assim como ocorrera na faculdade, um grupo de alunos da sexta série reuniu-se e me pediu que criasse um curso de teatro; para eles as aulas curriculares não eram suficientes, foi assim a origem dos cursos livres de arte na escola, depois do período. Trabalhei com esse grupo durante seis anos, até que todos se formaram no Ensino Médio e seguiram seus caminhos. Foram seis anos pesquisando, amadurecendo e montando trabalhos os mais diferentes, em diferentes estéticas, dramas, comédias, dança-teatro, um trabalho que crescia junto com os adolescentes. Ao todo foram cinco montagens e muitas apresentações em diferentes lugares. Este grupo tornou-se um grupo diferenciado, constituindo lideranças sociais e políticas na escola, à frente do grêmio estudantil nas reivindicações e ações sociais, o que me levou a acreditar que as artes cênicas têm uma contribuição muito importante a dar na formação de valores culturais e sociais dos alunos que, ao trabalharem sua sensibilidade, desenvolvem o senso crítico e despertam para a consciência sobre as questões existenciais humanas. Transferi para a escola o curso livre de dança que funcionava na clínica e ampliei as vagas para professores e pais da escola. Os cursos livres passaram a ter uma grande procura e acabei montando uma equipe de trabalho para atender à demanda. Tinha como idéia inicial preservar o caráter de pesquisa para estes novos grupos formando com meus colegas um grupo de pesquisa sobre o ensino das artes cênicas. Porém, a estrutura empresarial que os cursos impuseram não foi capaz de sustentar economicamente a pesquisa do grupo de professores. Isso me desmotivou bastante.

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Não era minha intenção manter um trabalho em que apenas se reproduziam os modelos existentes no mercado, nesses tipos de projetos predomina o aspecto empresarial de cursos livres, focados na idéia de que um curso de teatro é a montagem, com os alunos, de peças teatrais idealizadas pelos professores. Insatisfeita, desisti do projeto encerrando, assim, minhas atividades com cursos livres para crianças e adolescentes. Mantive apenas o grupo de dança com os adultos, voltei ao ponto de origem, resgatei meu objetivo inicial, a pesquisa. Livre das responsabilidades administrativas dos cursos, pude, então, dedicar-me ao mestrado e a encontrar novos rumos, novos temas para meu trabalho docente e o de formação de professores; com isso localizo o espaço da pesquisa como meu espaço na educação. Compreendo, agora, que paralelamente ao universo tradicional da dança, também exercitei aprender como auto-didata em dança, construindo o conhecimento que hoje detenho, do meu jeito, em grande parte nos grupos de pesquisa e nos cursos livres, no espaço da paixão, enfim numa outra dimensão. Porém, no momento em que identifico claramente suas marcas no meu fazer de educadora, vejo que esse saber produziu uma estrutura interna que resulta numa segurança que traz coerência ao meu trabalho. É o lugar onde estão ancorados meus objetivos e valores mais profundos que, muitas vezes, na minha prática pedagógica, se manifestam em forma de práticas intuitivas que tenho muita dificuldade para explicar. Diante dos fatos que vivencio em meu cotidiano, do interesse que minhas práticas têm gerado na escola e na universidade, percebo o quanto foi importante construir este saber sobre a dança para minha prática docente e artística. Provocada por essas constatações me questiono quanto à importância de socializar esse conhecimento, no sentido de trazer uma contribuição à formação de professores e cidadãos. Se possível, também contribuir para o fortalecimento do espaço do ensino da dança na escola.

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9 Considerações finais: apresentação/estréia

Estreei, escrevi meu primeiro trabalho científico, registrei a produção do meu conhecimento. No último ato dessa coreografia/escrita encontrei com a última imagem do sári, o xale onde está estampada a imagem de Shiva, uma representação dos sentimentos que habitam meu coração ao falar de arte, de dança e de educação. Para mim, Shiva representa, o entusiasmo, a liberdade, a alegria de viver, a transformação, a renovação da vida, o amor, a esperança, a coragem e a determinação, sentimentos e desejos que encontro s empre vivos também nos corações de alguns professores e parceiros que participam da minha trajetória. O xale com o qual, num ato de humildade, cubro a cabeça diante do conhecimento. Percebo quantas vezes eu o usei para aprender diante do novo.

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Quando, mais gorda que as outras, ia para as aulas de dança parecendo uma extraterrestre, suar muito mais que as outras, carregar muito mais peso que as outras, fazer muito mais força que as outras e disputar com elas em condição desigual um bom papel nas coreografias. Quando não tinha professores e procurava aprender em espaços não tão bem conceituados para os bailarinos, no sentido tradicional. Quando me esforcei para voltar a estudar e me formar, por acreditar que uma boa educação, nas melhores escolas, com os melhores professores é o bem maior para que um cidadão possa realizar-se. Quando, menina inexperiente aceitei, o desafio de viver em São Paulo para ter acesso ao conhecimento. Quando segui o instinto de continuar dançando, num contínuo ato de buscar novas possibilidades de aprender. A despeito de um físico cheio de limitações e da falta de recursos, perseverei e enfrentei o desafio do aprendizado de técnicas sistematizadas por estéticas

complexas

e

desconhecidas,

com

movimentos

sofisticados,

rigorosamente codificados, com leis e regras de composição. Mas foi esse mesmo corpo que, me ensinou o respeito quando senti que devia me cuidar para não me machucar demais, devia respeitar os limites na medida do possível e enfrentar com resignação os períodos necessários de repouso, sabendo me perceber e atender às minhas necessidades pois é preciso adquirir responsabilidade sobre o que me acontece e autonomia para me cuidar, para encontrar soluções para meu aperfeiçoamento técnico. Todo o universo que há no corpo humano, ossos, músculos ligamentos, articulações sobre o que aprendi nas aulas de ciências e de educação física, podia aprender nas aulas de arte, olhando, maravilhada, para os estudos de anatomia dos artistas do Renascimento. Identifico nesse meu exercício de estabelecer, a partir da percepção do meu corpo, essas relações entre as disciplinas, um momento preparatório para que eu aprendesse a transitar nas regiões fronteiriças do conhecimento. Foi preciso coragem para entregar-me a uma arte que impõe disciplina rígida, dedicação exaustiva e permanente para construção de um corpo capaz de executar as demandas de uma imaginação vigorosa.

121

É muito difícil aprender arte, minha força de vontade foi testada diariamente; a dança e as artes plásticas, como esfinges lançavam enigmas sobre mim, enigmas que aos poucos pude perceber, que só meus olhos e meu corpo poderiam desvendar. Enfrentando as dificuldades foi, com humildade, que desenvolvi uma nova atitude frente ao conhecimento; tornei-me mais disciplinada, concentrada, atenta e reflexiva, observadora, coerente e rigorosa. Aprendi a domar os impulsos, a lidar com os limites, a observar e compreender a arte como um ofício, um trabalho, uma profissão. Foi a partir da força transformadora destas experiências que compus um corpo e uma identidade que me prepararam para minha inscrição no mundo e, hoje, posso visualizar a imagem do tipo de pessoa que me tornei optando pela arte, pela beleza, pela paz, pela ética, pela estética, pelo amor. Apesar de toda a informação estrangeira moldando meu corpo, minha cultura, minha expressividade, descobri que minha atitude tinha algo de diferente - havia em mim uma identidade brasileira muito forte, mãe da minha rebeldia, da minha espontaneidade, da minha irreverência diante dos “grandes saberes” que se descortinavam à minha frente, a cada passo da caminhada orientada por minha voraz curiosidade e um sentimento de liberdade para criar uma educação para minha realidade. Mais ainda, estes movimentos, ajudaram-me a identificar muitos aspectos diferentes de mim que reconheço presentes e vivos constituindo o conjunto dos meus talentos, a criança questionadora, a adolescente rebelde a cidadã atuante, a mulher que acredita num mundo mais humano e mais justo, talentos esses com os quais compus esta professora que vê na educação, na arte e nos valores humanos (Verdade, Amor, Justiça, Paz, Harmonia) a possibilidade de construção deste mundo. Quando portei este xale no peito, fui buscar coragem para romper com a rigidez das aulas convencionais para entender o meu aluno no lugar de onde ele está falando. Se aprendi certas coisas e outras não, é porque acredito que o aprendizado é seletivo; aprendemos conforme nossos interesses, gerados pelo que sentimos a respeito das coisas e dos fatos e pelos valores familiares em nos arraigados. Assim, o conhecimento que resulta é formado pela síntese

122

entre esses elementos. Por isso acredito que, realmente, não existe neutralidade no ensinar e muito menos no aprender, inevitavelmente os sujeitos estão presentes e protagonizam a ação. Coragem para fazer as coisas do meu jeito, experimentar teorias minhas e de meus parceiros de jornada. Coragem para redimencionar a relação com a técnica e com o enfoque das artes na sala de aula. Porque descobri que, se a técnica no trabalho de criação for entendida como regra rígida, esta pode ser um empecilho, o que normalmente acontece, por isso é preciso que seja criada junto com o trabalho, recriada a cada novo desafio; compreendi que, em artes plásticas, na dança e no teatro, teoria e prática se fundem e que a técnica, para um artista, precisa estar incorporada para que se possa criar com liberdade e segurança. Essa foi a relação que estabeleci com o fazer artístico, a partir de então, e é o que me serve como base para a elaboração de metodologias para ensinar a fazer arte. Uma fusão da teoria com a prática, de forma e conteúdo. Hoje em dia não consigo conceber o ensino da dança em que a teoria esteja dissociada da prática, como aconteceu durante as minhas experiências da infância e da adolescência, pois a prática, desprovida da teoria, corre o risco de tornar-se adestramento, como no caso do balé clássico ou, então, livre expressão, ou criação aleatória desprovida de intenção como no caso da expressão corporal. A somatória dessas experiências trouxe ao meu trabalho artístico uma reflexão que não existia no balé nem na escola. Ao comparar todas estas práticas, pensar nas teorias com que entrei em contato, comecei a desenvolver um espírito reflexivo, a perceber que há sempre uma intenção no trabalho de criação e passei, a partir de então a fazer escolhas estéticas e a compor trabalhos, articulando linguagens, influências e referências. Descobri que não bastava praticar, mas que era necessário também estudar e pesquisar arte, filosofia e história e, desde então, minha relação com a arte se fez dessa maneira, sempre buscando um aprofundamento teórico e uma precisão formal. Partindo do princípio de que todo o conhecimento e toda arte estão organizados em linguagens foi preciso construir uma prática pedagógica para ensinar linguagens artísticas.

123

Pois acredito que, ao longo da sua evolução, o ser humano vem desenvolvendo formas de comunicação em muitos níveis diferentes, ou seja, em todos os níveis em que é capaz de produzir conhecimento a respeito de si e do mundo. Desde cedo o homem percebeu a importância de transmitir os conhecimentos e trocar com o outro as suas experiências existenciais em todos os níveis em que percebe e se conecta com a vida, seja no nível cognitivo, no emocional, no sensorial, no espiritual, enfim, em todas as dimensões da vida. A linguagem das palavras faladas e escritas dá conta de comunicar e expressar muitas dimensões, pois foram desenvolvidas muitas formas de textos diferentes, com inúmeras possibilidades de construção. Mas, há momentos em que se torna difícil dizer o que chamamos de indizível, falar sobre o insondável, sobre o inexorável, estar diante do desafio de representar as experiências que se passam no nível da intuição, da percepção e do instinto. E, nestas circunstâncias, há que se recorrer a linguagens não verbais porque a natureza de cada experiência determina uma forma de expressão específica, há, então a elaboração das linguagens visuais, sonoras e dos movimentos e gestos, que também passam por um processo de elaboração, estruturação e codificação, assim como as linguagens verbais. Foi, acreditando nisso, que assumi que faz parte do ensino da arte uma educação estética, como uma forma de escolher a vida, a necessidade de se ter um olhar sensível para poder fazer as próprias escolhas. E foi preciso coragem para elaborar planejamentos que fossem capazes de respeitar as fases e os tempos do desenvolvimento da expressão artística. Assim, como na alfabetização da língua escrita, há todo um processo de aprender os códigos das linguagens não verbais para atingir a expressão e comunicação. E esse aprendizado implica muito exercício e o desenvolvimento da observação e da concentração, em/e para toda a vida. Estudando processos de criação descobri que a arte tem seus caminhos para o interior das pessoas, começando pelo aprender e desenvolver a percepção, depois o movimento de aperfeiçoar a comunicação e a expressão, um trabalho de apropriação e aperfeiçoamento das habilidades.

124

Logo em seguida, a fase do aprendizado do domínio da forma, a princípio usando como apoio modelos, para depois aprender a soltar-se e criar suas próprias formas. E, aos poucos, o aprender a discriminar o que se está sentindo, pensando, conhecer a realidade, a simbologia e significado interior para poder se fazer entender em todas as situações. Numa etapa mais avançada, o aprendizado do decifrar e construir metáforas. Nessa fase já se podem experimentar exercícios de abstração, diferentemente do estágio anterior, quando a imaginação era predominante. Movimentos de comparação, analogia, análise e crítica tornam-se possíveis e são matéria prima para o trabalho de criação. Com o xale sobre o coração, defendo a importância da arte na formação do cidadão, porque pude identificar que foi na infância e na adolescência que adquiri

ferramentas fundamentais

para

estruturar

uma

autonomia

da

construção do conhecimento. Com o xale sobre o peito me preencho de ousadia para insistir no espaço da arte na escola, pois descobri que o ser humano pode mudar, que os desafios da linguagem e da expressão provocam mudanças alquímicas dentro de nós e nos tornam capazes de transformar nossas vidas. Há muitos idiomas diferentes no mundo e há diferentes formas de conhecer o mundo e o ser humano, por isso, saber falar e expressar-se de muitas formas diferentes significa instrumentalizar o indivíduo para uma inserção mais completa na sociedade. Por este motivo, carrego no peito a determinação cotidiana de preservar o espaço da arte na escola como também na formação de professores em serviço e de ampliar e de inovar constantemente este espaço, diversificando as linguagens artísticas no currículo escolar, buscando sempre novos subsídios e recursos mantendo este fazer sempre vivo e vinculado e à sua contemporaneidade. Assim, faço para que muitos possam experimentar, como eu, lidar com um sentimento de não caber em mim que a felicidade de criar provoca, que mantém vivo, ainda hoje, um desejo constante de aprender, de inovar, de experimentar novas emoções, novos desafios pelo prazer da superação. Reli o trabalho como quem foi à estréia, identifiquei que, através do meu jeito de ensinar, existe uma teoria de aprendizagem em que acredito.

125

Ao revisitar minha prática pedagógica e ao refletir sobre todos esses anos em que estive envolvida com a criação do projeto pedagógico de arte da Escola Nova Lourenço Castanho, discutindo e observando as aulas de artes de meus parceiros, percebi que, é na fronteira do tempo cronológico e do tempo de Kairós que se faz arte. Ensinar arte, se faz na perspectiva interdisciplinar à qual me afilio ou sob a influência do trabalho. Ensinar a fazer arte é manter vivo o ofício de brincar, característica base da criação. É quando o espaço da sala de aula torna-se um grande laboratório, uma oficina onde posso recriar os espaços do mundo, os lugares onde a vida acontece, onde se podem estabelecer relações de troca, onde a aula se torna ambiente democrático de simulação da vida, onde se convive em condições de igualdade. Onde professor e alunos ensinam uns aos outros. Onde cada um ensina as suas melhores habilidades, aprendendo, assim, a trabalhar em um grupo unido pela cumplicidade e pelo companheirismo. A aula de arte é um lugar onde nascem amizades, formam-se as turmas, que se reúnem para passar bons momentos, trabalhando juntas, cantando, batucando, jogando, dançando, representando, desenhando, modelando, pintando. A aula de arte tem momentos de ação e relaxamento naturais, de extroversão e introspecção, respeitando as necessidades do grupo. Nos jogos, brincadeiras e improvisações, desenvolve-se a elaboração simbólica dos papéis familiares e sociais, assim como o aprendizado de lidar melhor com as questões difíceis de compreender, o medo do desconhecido, os conflitos e inseguranças. A aula de arte é o lugar para o exercício de arriscar-se e salvar-se, da coragem e do recuo, do erro e do acerto, da possibilidade de mudar de atitudes e opiniões. É o lugar onde se vivem os simples divertimentos, com a intensidade de grandes projetos de vida, onde nós projetamos personagens. É o espaço do pensar, elaborar sentimentos, viver sensações, imaginar, criar, expressar. Também é o espaço de se aquietar para pensar na vida para exercitar o aprendizado e simbolizar as experiências vividas porque o ato de criar constitui-se num momento solitário de profunda introspecção e luta interior, um trabalho árduo, em busca da tradução perfeita das imagens que emergem do

126

interior, na tentativa de materializar uma idéia que surge como resposta a um problema existencial. A busca de um resultado final como expressão de uma verdade interior, como resposta a uma pergunta, passa por muitos contatos com o não saber. Apesar da forma descontraída das rodas de conversa, há momentos de seriedade, de avaliação, em que aprendemos a elaborar e exercitar o pensamento crítico e a desenvolver diálogos reflexivos a respeito de arte e do nosso trabalho pessoal. É quando aprendemos a compartilhar os aplausos e as vaias, cientes de qual é a nossa responsabilidade nisso. Aula de arte é um lugar onde se aprende/ensina a cultivar o trabalho e o conhecimento, como valores que vêm da cultura, das ciências e da vida. Espaço vivencial onde convivem a emoção com a técnica permeando a evolução, o progresso do aluno numa coreografia de ensinar, em que cada um junta seus vestígios e achados para compreender-se melhor e constituir-se mais inteiro. A aula de arte também precisa sair da sala de aula e olhar para o mundo de fora, sua matéria prima de trabalho; deve também acontecer nas programações culturais, nas visitas aos museus, nas idas ao teatro, ao cinema, passeios pela cidade ,e nas viagens pelo país e pelo mundo, porque o espaço da escola não dá conta de ensinar tudo o que você precisa saber. Se há uma preocupação de preparar os alunos para a vida, é o saber que no mundo de fora que se aprende a lidar com imprevisibilidade nela contida. Portanto, por uma questão de coerência, acredito numa educação voltada para o ser, não para o ter e concluo que esta preparação não significa, ser bem sucedido numa profissão ou bem sucedido financeiramente, significa antes de qualquer coisa, ser feliz, e realizado enquanto pessoa, enquanto ser humano, implícita aí

a idéia de totalidade49

no momento em que me

preocupo com o desenvolvimento de todas as suas potencialidades. Portando com o xale no peito, estou sempre lendo, me atualizando, sobre psicologia, arte e educação, ferramentas necessárias ao meu fazer, mas nunca esquecendo a intuição amiga leal e competente na sala de aula. 49

Expressão mais plena de todos os aspectos da personalidade, tanto em si mesma como na relação com outras pessoas e com o meio ambiente.(GRINBERG, 1997).

127

E o que percebo, ao final deste ato, é que, sem perceber, encontrei uma maneira de passar adiante meu legado de família, quando, criteriosamente e cuidadosamente, interfiro nas escolhas de meus alunos, quando acolho incondicionalmente suas escolhas, e principalmente aceito cada um como é. Hoje compreendo que traduzo estas atitudes que herdei de meus pais como a opção por uma educação fundada no amor e nos valores humanos. Este modelo de educação, tão arraigado em mim, faz parte do que sou e acredito estar presente e atuante na base da minha concepção de educação, influenciando cotidianamente minha prática, orientando minhas escolhas pedagógicas. Hoje compreendo que este modelo de educação é um exercício constante de desapego, entendendo que, assim como os filhos, preparamos os alunos para o mundo, sem que tenhamos qualquer controle sobre o uso que farão dos conhecimentos que estão levando. A escola em si é um grande exercício de desapego onde, ano após ano, ao mesmo tempo em que nos despedimos de uma classe, estamos dando boas vindas a nova turma que chega. Um aprendizado de desapego,quando percebemos que, para acompanhar o movimento da vida, é preciso sempre recriar nossas velhas aulas, hábitos e atitudes, num permanente estado de mudança. Como professora de arte, nesta perspectiva, a interdisciplinaridade é a música que contagia o ambiente da sala de aula para que na dança de criar Cronos dialogue com Kairós. Para ter a interdisciplinaridade como música no exercício de ouvir para além dos ecos da minha história, criando harmonia com as dissonâncias de uma sala de aula. Dançar as emoções que a música desperta, percebendo as tensões os acentos dramáticos que trazem equivalentes de movimento como a leveza, o peso, a velocidade. Dançar a favor do ritmo ou contra ele, para poder dançar as ambigüidades. É possível criar relações entre o não movimento e as pausas da música e congelar o movimento no tempo da espera. É possível dançar músicas instrumentais e músicas cantadas, músicas de diferentes culturas; não é obrigatório apenas dançar os clássicos para, assim, transitar com equilíbrio nas regiões de fronteira.

128

Não é preciso obedecer às contagens se você conhece e estuda a música em seus mínimos detalhes e pode-se, assim, dançar com coerência. É possível dançar no silêncio ou dançar os ritmos internos; é possível dançar sem o acompanhamento da música para encontrar a atitude de respeito. Em resumo, concebi uma maneira de dançar com a música, dançar a música, ter a música como partner e dialogar com ela e não mais ser sua escrava para, assim, poder libertar minha expressividade, minhas emoções enquanto danço. Ao dançar com a música da interdisciplinaridade entra em cena a artista/professora/pesquisadora, concentrada e humilde, determinada a fazer um bom espetáculo ao lado de meus parceiros, com a postura de quem vai para um ritual comungar com meu público algo transcendente e transformador.

129

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135

Anexos

136

ANEXO 1

137

138

ANEXO 2 – CORRESPONDÊNCIA COM O BALLET BOLSHOI

terça-feira, 15 de maio de 2001 17:47

Dear Bolshoi webmaster, Let me introduce myself, I'm Isa Seppi , a brazilian dance teacher and I'm writing my Mastership research at this moment , and there is a chapther where I talk about my first time at a Bolshoi espetacle in Rio de Janeiro when I was child but I can't remember certain very important details about it. I would like to have a very important information about Bolshoi Tournés in Brazil because I was very young and I can't remember the year when I saw this. May be it was in seventies and I remember that the worderfull Maia Plisetskaya stage the ballet Isadora, I will be very happy if you can help me on it and I thank you very much for you atemption. With my regards Isa Seppi

Tuesday, May 22, 2001 12:41 PM

Dear Mr.Isa Seppi, I would like to inform you that the ballet you are talking about is "Aisidora" ( check english spealing), premier of which was on May 23d of 1978. Company was touring with Plisetskaya at Brazil and Argentina during July and August of 1978. Apart from Aisidora they were showing 2d act of Swan Lake and Chopeniana. Best regards, Head of Press Katya Novikova

quarta-feira, 23 de maio de 2001 18:45 Dear Mrs. Katya Novikova Thank you very much for your answer you help me very much. My best regards Isa Seppi

139

ANEXO 3 – LINKS INTERESSANTES

História da Arte e Estética

1.

http://www.bbc.co.uk/history/programmes/centurions/mondrian/mondbi og.shtml

2.

http://www.artehistoria.com/frames.htm?http://www.artehistoria.com/his toria/personajes/7395.htm

3.

http://www.arteehistoria.hpg.ig.com.br/oq_arte2.htm

4.

http://www.creview.com/artcrit/ac1gra.htm

5.

http://www.filosofiaclinica.com.br/res/res20.htm

6.

http://www.guggenheimcollection.org/site/artist_bio_112.html

7.

http://www.iar.unicamp.br/index.html

8.

.http://www.moma.org/docs/collection/paintsculpt/c70.htm

9.

http://www.mac.usp.br/exposicoes/01/acolecao/galeria4/kandinsky/biog rafia.html

10. http://www.mac.usp.br/projetos/seculoxx/modulo_1/construtivismo/neo plasticismo/ 11. http://www.sul-sc.com.br/afolha/artes/abstracionismo.htm 12. http://www.mac.usp.br/projetos/percursos/entrada.html 13. http://astro.temple.edu/~iversteg/Arnheim.html 14. 1http://www.mac.usp.br/projetos/percursos/abstracao/kandinsk.html 15. http://www.mac.usp.br/projetos/seculoxx/modulo_1/abstracionismo/was sily%20kandinsky/ 16. http://park.org/Netherlands/pavilions/culture/mondriaan/eng/biography. htm 17. http://www.cetrans.futuro.usp.br/bibliografia.htm

Dança

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