Cores e formas: uma \" leitura cabralina \" de Cesário Verde

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Cores e formas: uma “leitura cabralina” de Cesário Verde Marcos Lemos Ferreira dos Santos

O presente trabalho tem como objetivo apresentar um estudo sobre a técnica poética de Cesário Verde a partir das observações feitas por João Cabral de Melo Neto em fragmento do poema “O sim contra o sim”. A partir delas, será realizado estudo comparativo das técnicas dos dois poetas, assim como uma reflexão sobre o “não-lugar” de Cesário no cânone literário português.

Em Serial, livro de poesias publicado em 1961, João Cabral de Melo Neto, em poema intitulado “O sim contra o sim”, apresenta o seu ponto de vista sobre quatro artistas plásticos e quatro poetas. Dentre estes últimos, podemos destacar o fragmento correspondente ao português Cesário Verde, apresentado logo a seguir. Interessantemente, dentre os outros artistas citados no poema (Marianne Moore, Francis Ponge, Miró, Mondrian, Augusto dos Anjos, Juan Gris e Jean Dubuffet), Cesário é o único que teve sua obra lançada no século XIX. E mais: na descrição dada a cada um deles, Cabral apontou características que, de certa maneira, encontram-se em sua “arte poética”, o que nos faz refletir sobre o tão aclamado grau de modernidade que se costuma atribuir à obra de Cesário Verde. O sim contra o sim (fragmento) Cesário Verde usava a tinta de forma singular:

não para colorir, apesar da cor que nele há. Talvez que nem usasse tinta, somente água clara,

aquela água de vidro

que se vê percorrer a Arcádia. Certo, não escrevia com ela, ou escrevia lavando: relavava, enxaguava

seu mundo em sábado de banho. Assim chegou aos tons opostos das maçãs que contou:

rubras dentro da cesta

de quem no rosto as tem sem cor.

Há, na última estrofe, uma clara alusão ao poema “Num bairro moderno”. Neste, o eu-lírico, ao ver uma rapariga “rota, pequenina e azafamada” a vender hortaliças que transporta em uma “giga”, compõe um quadro em que as frutas e legumes assumem uma anatomia humana e formam “um novo corpo orgânico” correspondente a visão de mulher. Após a “epifania artística”, o eu-lírico auxilia a regateira a levantar a sua giga, despede-se e segue adiante, sem deixar de olhar para trás e tecer considerações sobre a moça que se afasta. A aproximação entre os dois poetas – Cesário de João Cabral – já havia sido proposta por Melquior (1965, p. 94), para quem uma “extraordinária justeza de observação” é uma característica comum às estéticas dos dois. No entanto, o crítico brasileiro aponta, em Cesário, a tendência naturalista de análise e dissecação do objeto contemplado, ao contrário do que acontece em Cabral, que interpreta a “coisa” visualizada. O poeta brasileiro, portanto, não “mataria” o que observa, na medida em que sua interpretação novamente atribuiria a ela uma nova vida. Essa síntese, de acordo com Melquior, não se processaria em Cesário, devido à própria “atitude naturalista” deste. Diante tal crítica, cabe a seguinte pergunta: seria, portanto, Cesário um mero poeta naturalista? A própria posição do poeta no cânone literário português é motivo de intenso debate. Moisés (1980, p. 215-221) coloca-o em “uma zona limítrofe de estradas que conduzem ao Impressionismo e ao Expressionismo”, e inclui até mesmo certas afinidades com o movimento surrealista. Em outras palavras, não é possível classificá-lo de forma estanque em determinada categoria artística. De fato, não há como negar influências inpressionistas, na medida em que a visão é tida como um sentido primordial e, em relação a ela, a destaca-

se forma de apreensão das cores. A partir disso, pode-se tentar tecer uma interpretação para a afirmação de Cabral quanto ao uso das cores na poesia de Cesário. Na primeira estrofe de “Num bairro moderno”, o eu-lírico apresenta-nos o cenário em que se processará a ação: Dez horas da manhã; os transparentes Matizam uma casa apalaçada;

Pelo jardim estancam-se as nascentes, E fere a vista, com brancuras quentes, A larga rua macadamizada.

Como num quadro impressionista, a função das cores é mais “formativa” que “decorativa”. É possível verificar o desejo de transformar o cenário “numa harmonia de efeitos de cor e de luz”, característica que Hauser (1982, p. 1053) atribui à estética impressionista. O “quadro póetico” pintado por Cesário – ainda aproveitando a proposta de Hauser (1982, p. 1053) – abdica da clareza de traços para transmitir mais uma sensação que uma objetividade, o que fica claro por meio dos recursos sinestésicos (“brancura quente”). Ora, dessa forma, aproveitando ainda as considerações de Moisés, nota-se que o objeto/mundo exterior é, na poesia de Cesário, visto a partir da sensibilidade do poeta, fato que entra em confronto com a frieza naturalista que Melquior atribui ao escritor português. Esse lado subjetivo de sua poesia também não é levado em consideração nos dois curtos parágrafos nos quais Lopes (1984, p. 179), em um longo ensaio sobre a poesia oitocentista portuguesa, considera apenas os traços realistas de sua obra. Vale salientar que essa subjetividade presente em Cesário é, ainda, um ponto de divergência entre sua poesia e a de João Cabral, pois este, como nos lembra Bosi (2001, p.

469), deseja destituir as imagens de quaisquer resquícios sentimentais, deixando-as falar por si mesmas. Para o poeta pernambucano, a realidade é “espessa” quando a sentimos não pela essência que a imaginamos ter, mas sim pela ação que nos faz perceber a sua espessura, como acontece neste belo trecho de “Cão sem plumas”: “Como uma maçã / é muito mais espessa / se um homem a come / do que se um homem a vê”. É interessante notar a ausência de cor nas maçãs do rosto da regateira, que contrasta com as cores vivas das hortaliças que consigo carrega. Nestas últimas, talvez encontre-se uma “espessura” que a pobre moça nunca sentirá, pois são seus produtos destinados aos moradores do moderno bairro por onde passa. Também nessa poesia, já é possível vislumbrar a oposição cidade/campo, nela representada pelo contraste entre a artificialidade presente no bairro e a natureza que ela carrega na cesta. Há, portanto, uma certa crítica social, fato também presente na poesia de João Cabral. Esteticamente, além das características impressionistas anteriormente citadas, é igualmente notável o uso plástico que Cesário faz das formas das frutas e legumes presentes no cesto da regateira. Como ele mesmo diz, procurava os “tons” e as “formas”, de modo a compor um novo “corpo orgânico”. O resultado de tal composição é um colorido corpo de mulher, cuja cabeça é composta por uma melancia, os seios são repolhos, as azeitonas formam as tranças do cabelo e os dedos são são cenouras! Incrivelmente, o coração da figura e mesmo seu ventre encontram-se em uma mesma perspectiva em relação ao resto do corpo, assemelhando-a a uma obra cubista, porém com cores projetadas pela luz do Sol, “o intenso colorista”. Retornando à análise de Moisés, este ainda salienta os aspectos a-póeticos e alíricos da estética cesariana, que ficam bem claros nessa estranha imagem também recolhida de “Num bairro moderno”:

“Muito obrigada! Deus lhe dê saúde!” E recebi, naquela despedida,

As forças, a alegria, a plenitude,

Que brotam de um excesso de virtude Ou duma digestão desconhecida.

A associação entre as sensações advindas do momento em que o eu-lírico despedese da regateira e uma “digestão desconhecida” condiz com uma interessante observação que Melquior (1961, p. 91) faz sobre a poesia cabralina. Segundo o crítico brasileiro, Cabral “veste” com uma “expressão incomum” certas sensações que não se definem com propriedade. A imagem do “cão sem plumas” é um exemplo dessa habilidade, pois acentua uma ausência tão extrema na medida em que o objeto é destituído até mesmo do que nunca possuiu: “(... Um cão sem plumas / é quando uma árvore sem voz. / É quando de um pássaro / suas raízes no ar. /É quando alguma coisa / roem tão fundo / até o que não tem.)”. Processo parecido – o qual tem como resultado, de acordo com os preceitos dos formalistas russos, um efeito de sentido de estranhamento –, pode-se encontrar nas seguintes imagens presentes no poema “Nós”, no qual o envelhecimento do pai é representado metonimicamente pelo traço de uma “curva que o consome”, como uma função matemática que, cada vez mais, tivesse aproximando-se de seu ponto-limite: Era a desolação que inda nos mina

(Porque o fastio é bem pior que a fome)

Que a meu pai deu a curva que o consome, E a minha mãe cabelos de platina.

Em outro poema, chamado “Contrariedades”, Cesário carrega de densidade frases curtas, algumas até mesmo desprovidas de verbo, proporcionando ao verso um caráter cortante e econômico que Cabral atribui à poesia de Mariane Moore e à prosa de Graciliano Ramos, como nos mostra a sua primeira estrofe: “Eu hoje estou cruel, frenético, exigente / Nem posso tolerar os livros mais bizarros. / Incrível! Já fumei três maços de cigarros / Consecutivamente”. No trecho citado, o tédio sentido pelo eu-lírico é posto em relevo por meio de seu último verso, formado por apenas uma palavra que, sendo obrigatoriamente lida sem qualquer tipo de pausa, parece representar o próprio ato de fumar ininterruptamente três maços cigarros. Quando trabalha dessa forma, Cesário encontra-se de acordo com o preceito cabralino de somente usar as palavras necessária, como se estivesse “lavando” e “enxaguando” seu verso até nele restasse apenas o essencial. E a limpeza, no fragmento em que Cabral disserta sobre Cesário, é realizada mediante negação: primeiramente, aponta para as cores do poeta português, para depois negá-las (“Talvez que nem usasse tinta”) e, na estrofe seguinte, até mesmo pôr em dúvida o ato de escrever (“Certo, não escrevia com ela / Ou escrevia lavando”), como se os objetos já existissem e precisassem somente ser descobertos e lavados. Os próprios atos de “lavar” e “enxaguar”, como se a composição se processasse em um eterno “sábado de banho”, correspondem às idéias de Cabral com relação ao “ato poético” que, ao seu ver, é mais um trabalho de técnica do que de inspiração. E é essa a leitura que o poeta pernambucano faz da poesia de Cesário. O brasileiro não está preocupado com as possíveis interpretações sociológicas e/ou filosóficas do poema, mas tão somente com as formas, linhas e cores empregadas pelo poeta português. É, portanto, o ponto de vista de um “engenheiro da palavra”.

Mas as observações de Cabral em relação à Cesário nem sempre serão válidas devido à própria feição irregular da obra deste. Vale lembrar que o livro do poeta português não foi publicado em vida e que, portanto, não houve uma seleção realizada pelo próprio autor. Talvez por isso, encontramos certas flutuações no estilo, que às vezes soa romântico, e noutras, realista. E por isso também, talvez seja importante respeitar o “não-lugar” de Cesário no cânone literário, pois justamente isso representa a vasta possibilidade de leituras de sua obra, tal como se ela própria correspondesse a um quadro impressionista nunca terminado, mas que fosse aos poucos completado com formas e cores que variassem de acordo com o ponto de vista de quem arrisca interpretá-lo. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 40ª edição. São Paulo: Cultrix, 2001. HAUSER. Arnold. História social da literatura e da arte. São Paulo: Mestre Jou, 1982. LOPES, Oscar. “Trinta anos de poesia oitocentista (1860-1890). Panorâmica.” In: Álbum de família. Lisboa: Colecção Universitária, 1984. MELO NETO, João Cabral de. Os melhores poemas de João Cabral de Melo Neto. Seleção de Antonio Carlos Secchin. São Paulo: Global, 1985). MELQUIOR, José Guilherme. “Serial”. In: Razão do poema. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965. MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa. 16ª edição. São Paulo: Cultrix, 1980. VERDE, Cesário. Poesia completa e cartas escolhidas. Edição organizada, prefaciada e anotada por Carlos Felipe Moisés. São Paulo: Cultrix, 1983.

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