Coronéis e empresários: permanência da dependência e da estrutura socioeconômica excludente no Brasil pós-Ditadura (1985-2002)

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Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Ciências Sociais Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

Roberto Santana Santos

Coronéis e empresários: permanência da dependência e da estrutura socioeconômica excludente no Brasil pós-Ditadura (1985-2002)

Rio de Janeiro 2013

Roberto Santana Santos

Coronéis e empresários: permanência da dependência e da estrutura socioeconômica excludente no Brasil pós-Ditadura (1985-2002)

Dissertação apresentada para a obtenção do título de Mestre ao Programa de Pósgraduação em História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: História Política.

Orientador: Professor Doutor Oswaldo Munteal

Rio de Janeiro 2013

CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ/REDE SIRIUS/ BIBLIOTECA CCS/A

S237

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Santos, Roberto Santana Coronéis e empresários: permanência da dependência e da estrutura socioeconômica excludente no Brasil pós-ditadura (1985-2002) \ Roberto Santana Santos – 2013. 236 f. Orientador: Oswaldo Munteal Filho. Dissertação (mestrado) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Bibliografia. 1. Brasil – Política e governo – Teses. 2. Democratização – Brasil – Teses. 3. Neoliberalismo – Brasil – Teses. I. Munteal Filho, Oswaldo. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. III. Título. CDU 32(81)

Autorizo apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta Dissertação, desde que citada à fonte. _____________________________________

___________________________ Assinatura

Roberto Santana Santos

Coronéis e empresários: permanência da dependência e da estrutura socioeconômica excludente no Brasil pós-Ditadura (1985-2002)

Dissertação apresentada para a obtenção do título de Mestre ao Programa de Pósgraduação em História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: História Política. Aprovada em 05 de agosto de 2013. Banca Examinadora:

_________________________________________________ Prof. Dr. Oswaldo Munteal Filho (Orientador) Instituto de Filosofia e Ciências Humanas - UERJ _________________________________________________ Profa. Dra. Maria Teresa Toríbio Lemos Instituto de Filosofia e Ciências Humanas - UERJ ________________________________________________ Prof. Dr. Carlos Henrique Aguiar Serra Universidade Federal Fluminense - UFF

Rio de Janeiro 2013

AGRADECIMENTOS

Agradeço à minha mãe, Rosa Maria, por ser uma mulher que sempre me criou com amor, carinho e companheirismo. Trabalhadora brasileira, sempre agiu com honestidade e presteza.

Agradeço aos camaradas João Claudio e Gabriel Siqueira, importantes companheiros na construção do meu ser político e na luta por um Brasil mais justo e soberano.

Agradeço às amigas Camila Braga, Evelyn Sobrinho e Mariana Minhava por serem grandes companhias e parceiras nessa estrada chamada vida, independente se os dias são bons ou ruins.

Meus agradecimentos a Nayanne Nunes, pessoa que chegou de mansinho na minha vida e que agora já tem lugar cativo. Obrigado pelo companheirismo, carinho e incentivo.

Agradeço a mais uma infinidade de pessoas das quais citarei algumas aqui e outras, com certeza, cometerei a injustiça de esquecer: Benjamim Andrade (sempre um grande amigo), Pedro Pimentel, Isabella Daemon (obrigado pela correção querida!)toda a galera do Centro Acadêmico de História da UERJ, os grandes funcionários dessa mesma universidade e às Brigadas Populares.

Aos mestres Oswaldo Munteal, Maria Tereza Toríbio, Edna dos Santos, Carlos Henrique e Luiz Edmundo Tavares. Sei que me apoiaram e acreditaram em mim, inclusive quando estavam todos contra mim. Agradeço aos docentes academicistas, pós-modernos, reacionários e sem compromisso com uma produção científica voltada para as necessidades do povo brasileiro. Vocês me deram um grande exemplo do que não seguir.

Às alunas e alunos com quem tive o prazer de trabalhar no Colégio Pedro II. Vocês ajudaram muito esse trabalho sem saber, principalmente quando a escrita travava e com o bom humor e a camaradagem da sala de aula me faziam voltar para casa com o ânimo renovado.

Um agradecimento especial ao comandante Hugo Chávez, ex-presidente da Venezuela e maior revolucionário do século XXI. Enquanto escrevia essa dissertação ocorreu o seu

falecimento. Quem lhe agradece é o autor dessas linhas, mas também, o adolescente que fui anos atrás, revoltado com o mundo, mas ainda sem uma forma de canalizar essa revolta, e sobre o qual sua luta revolucionária mostrou quais eram os desafios contemporâneos da Pátria Grande. Hasta siempre comandante!

Agradeço principalmente à população do estado do Rio de Janeiro que com seus impostos e seu trabalho honesto financiou meus estudos durante anos na UERJ. Em troca, podem ter certeza que seguirei com meu compromisso revolucionário nas salas de aula e na escrita da história, sempre comprometido com os mais pobres e explorados e que um dia darão as cores vivas de uma sociedade mais humana. Roberto Santana Santos Agosto 2013

RESUMO

SANTOS, Roberto Santana. Coronéis e empresários: permanência da dependência e da Estrutura Socioeconômica Excludente no Brasil Pós-Ditadura (1985-2002). 2013 236 f. Dissertação (Mestrado em história) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013. O presente trabalho apresenta uma reflexão crítica sobre a Nova República, período que se inicia com o fim do regime ditatorial em 1985. A partir de uma análise estrutural do capitalismo dependente brasileiro e das mudanças internacionais causadas pelo neoliberalismo e a globalização, demonstro como o período atual da história brasileira aprofundou as desigualdades sociais e a dependência econômica, inviabilizando a construção de um regime verdadeiramente democrático. A partir das reflexões de pensadores como Ruy Mauro Marini, Darcy Ribeiro e Atílio Boron traço um quadro teórico sobre a reestruturação capitalista no Brasil com a implementação das políticas neoliberais, o fetichismo democrático e o caráter conservador que domina as decisões políticas do período entre 1985 e 2002. Palavras-chave: Nova República. Dependência. Neoliberalismo. Fetichismo democrático.

ABSTRACT

SANTOS, Roberto Santana. Colonels and businessmen: staying dependence and socioeconomic structure excluded post-dictatorship in Brazil (1985-2002). 2013 236 f. Dissertação (Mestrado em história) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013. The present work presents a critical reflection about the New Republic, historical period in Brazil that starts with the dictatorial regime collapse in 1985. From a structural analysis of the Brazilian dependent capitalism e and the international changes made by neoliberalism and globalization, I demonstrate how the current period of Brazilian history deepened social inequality and economic dependence, preventing the construction of a truly democratic regime. From the reflections of thinkers like Ruy Mauro Marini, Darcy Ribeiro and Atilio Boron trace a theoretical framework of capitalist restructuring in Brazil with the implementation of neoliberal policies, fetishism democratic and conservative character who dominates the political decisions of the period between 1985 and 2002. Keywords: New Republic. Dependency. Neoliberalism. Democratic fetishism.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 10 1

ESTRUTURA E SUPERESTRUTURA NO PENSAMENTO MARXISTA ............ 24

1.1 Produção material e relações sociais de produção .................................................... 25 1.2. Superestruturas. Determinações e autonomia relativa ............................................. 29 1.3 A estrutura brasileira e a “transição democrática”. Entendendo as permanências . 31 2

DEPENDÊNCIA E SUPEREXPLORAÇÃO DO TRABALHO................................ 34

2.1 O capitalismo dependente e a superexploração do trabalho ..................................... 36 2.2 A dependência e a superexploração do trabalho no processo de industrialização latino-americano ......................................................................................................... 45 2.3 A nova composição do capital na economia dependente e o investimento estrangeiro direto no mercado interno ....................................................................... 51 2.4 O neoliberalismo e a globalização capitalista ............................................................. 59 2.5 Neoliberalismo e superexploração do trabalho na periferia ...................................... 63 3

ATUALIZAÇÃO HISTÓRICA E MODERNIZAÇÃO REFLEXA.......................... 68

3.1 Atualização histórica, modernização reflexa e atraso histórico. ............................... 69 3.2 Darcy Ribeiro e Ruy Mauro Marini. Por uma proposta de diálogo.......................... 71 4

GOVERNOS DEMOCRÁTICOS OU PÓS-DITATORIAIS? POR UMA REFLEXÃO DO NOSSO ATUAL SISTEMA DE GOVERNO ................................. 75

4.1 Essência e aparência da democracia. O período pós-ditatorial e o fetichismo democrático ................................................................................................................ 76 4.2 Características do sistema político pós-ditatorial no Brasil...................................... 79 4.3 A Incompatibilidade entre capitalismo e democracia ............................................... 86 4.4 A incompatibilidade entre capitalismo e democracia na história do Brasil .............. 88 5

RAZÕES PARA O FIM DA DITADURA................................................................... 93

5.1 A mudança estrutural do capital e o esgotamento do subimperialismo .................... 96 5.2 As divisões internas dos militares e o crescimento da oposição ................................. 99 6

DIRETAS JÁ: POVO NA RUA OU A FORMA COMO A DITADURA NÃO PODERIA ACABAR ....................................................................................... 106

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ELEIÇÃO DE TANCREDO NEVES: A TRANSIÇÃO DESEJADA PELO CAPITAL ................................................................................................................... 116

7.1 Tancredo Neves: um discurso no palanque, outro nos bastidores. .......................... 118 7.2 O racha no PDS ......................................................................................................... 120 7.3 Tancredo Neves: o candidato perfeito das elites ...................................................... 124 7.4 Quem era Tancredo Neves e sua utilidade para as forças conservadoras............... 127 7.5 Os solavancos dialéticos da Transição ...................................................................... 132 8

GOVERNO SARNEY E PLANO CRUZADO: SENTIDO DO PRIMEIRO GOVERNO PÓS-DITATORIAL ............................................................................ 138

8.1 Plano Cruzado ........................................................................................................... 140 8.2 O objetivo político do Plano Cruzado ....................................................................... 145 8.3 O sentido do governo Sarney e a explosão da insatisfação popular ........................ 148 9

A ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE .................................................. 152

9.1 A direita se articula para a Constituinte .................................................................. 154 9.2 A ação da direita na Constituinte ............................................................................. 159 10 A ELEIÇÃO PRESIDENCIAL DE 1989 ................................................................. 169 10.1 Dois projetos de reforma estrutural ............................................................................. 170 10.2 Fabricando Collor...................................................................................................... 173 11

NEOLIBERALISMO: A REESTRUTURAÇÃO CAPITALISTA NO BRASIL . 181

11.1 O neoliberalismo: reestruturação do sistema capitalista ............................................. 183 11.2. O neoliberalismo no Brasil: um panorama estrutural .................................................. 185 11.3 Governo Collor e o início da implementação das políticas neoliberais ....................... 192 12

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO: SURGE O HOMEM DO NEOLIBERALISMO NO BRASIL ........................................................................ 198

12.1 O governo Itamar e a retomada do projeto neoliberal ................................................. 199 12.2 Fernando Henrique Cardoso: intelectual orgânico da burguesia e realizador do neoliberalismo no Brasil ....................................................................................... 202 13

A ERA FHC: A CATÁSTROFE NEOLIBERAL .................................................. 209

13.1 A economia política da dependência no neoliberalismo ............................................. 209 13.2 Modernização reflexa: o aprofundamento da dependência no neoliberalismo brasileiro .......................................................................................... 212

13.3 Modernização reflexa: o aprofundamento da superexploração no neoliberalismo brasileiro ......................................................................................... 220 13.4 E a democracia? ....................................................................................................... 224 CONCLUSÃO ........................................................................................................ 228 REFERÊNCIAS .................................................................................................... 234

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INTRODUÇÃO

Esse é um texto de sobrevivência, onde se mesclam várias pessoas, ideias, conceitos, posicionamentos e histórias que não deveriam estar onde estão. Indivíduos e elementos os quais a sociedade e a ideologia dominante não queriam que progredissem ou sobrevivessem ao mundo tal como ele é: injusto, explorador e segregacionista. A começar pelo autor que escreve essas linhas. Suburbano no Rio de Janeiro, “apenas um rapaz latino-americano, sem dinheiro no banco e sem amigos importantes”, como versa a letra da música de Belchior. A universidade no Brasil não foi feita para quem é pobre e descendente de nordestinos, pertencente às classes populares. Muito menos a pós-graduação e a sobrevivência durante seu período sem nenhum tipo de apoio financeiro. Essa dissertação foi escrita muitas vezes dentro de um vagão de metrô cheio, na ida e volta do trabalho, onde entre os sofrimentos cotidianos do trabalhador brasileiro me apertava para terminar de fichar um livro ou rabiscar esquemas explicativos. Não foram raros os momentos em que o texto do presente trabalho era digitado ao lado da máquina de costura da minha mãe, seu ‘ganha pão’ e fonte de renda da minha criação desde que ela tinha seus vinte e poucos anos. Porém essa dissertação, como dito no início, guarda outros sobreviventes. Sobrevive nela o dever de se escrever uma historiografia crítica, que abarque os principais problemas do povo brasileiro, que sirva para refletirmos sobre nossa existência histórica como povo, como nação e pensar como acontecimentos do nosso passado ainda guardam uma carga de influência profunda no nosso presente e futuro imediato. Sobrevive nela a perseverança de que o papel do intelectual não consiste em se fechar na torre de marfim universitária e se regozijar com os floreios acadêmicos. Não é seu papel se apartar do povo e direcionar suas produções científicas para sua realização pessoal e servir como justificativa da sociedade injusta e dividida em que vivemos. Historiadores, sociólogos, cientistas políticos, filósofos, antropólogos, enfim, todo um número de trabalhadores que se dedicam ao ato de pensar e refletir nossa existência deve ter a clareza de que suas obras e proposições se tornam práticas, se tornam maneiras como é concebida nossa sociedade de forma real. Por isso, temos uma carga de responsabilidade pesada sobre nossos ombros e mentes. Não podemos nos desviar dos outros 90% da população brasileira que nunca entrou ou entrará numa universidade, como divulgado pelo Censo 2010, e defender uma sociedade

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baseada na exploração do trabalho, na exploração do homem pelo homem. É de nossa responsabilidade, como uma missão, converter nossa capacidade de manejar inúmeros conhecimentos humanos para contribuir na libertação do nosso país da dependência e retirar o povo brasileiro do atraso. Para essa tarefa, essa dissertação se permite chamar outros sobreviventes. Expor ao longo das suas linhas o pensamento de quem realmente se prestou a pensar a libertação da humanidade dos entraves à sua plena realização, entraves criados pela nossa própria trajetória histórica. Começando por se abalizar no pensamento marxista, tido como filosofia morta em boa parte das universidades. Mais do que isso, autores literalmente exilados da academia, como Ruy Mauro Marini e Darcy Ribeiro, se tornam essenciais ao campo teórico do presente trabalho. Mesmo que praticamente vilipendiados dos cursos de ensino superior e diante da necessidade que a universidade reflexa tem de se afastar do pensamento crítico, esses e outros autores teimam em sobreviver. Por isso o isolamento desses e outros pensadores, para que a universidade possa cumprir sua função de formuladora da ideologia dominante e dos quadros intelectuais que a defendem. As ideias “heréticas” do marxismo, da teoria marxista da dependência e outras contribuições do pensamento progressista guardam análises profundas de nossas mazelas e as propostas de solução para uma sociedade mais justa. É com esse senso de sobrevivência, baseado na coerência e na firmeza ideológica, que essa dissertação se propõe a pensar parte da história recente de nosso país. É necessário nos dedicarmos à reflexão e revisão dos acontecimentos históricos no Brasil a partir do final da Ditadura. Esse trabalho se direciona a uma análise profunda dos dilemas brasileiros na virada do século XX para o século XXI. Encontra-se baseada num rigoroso estudo de nossa estrutura socioeconômica, entrecortada com os momentos políticos decisivos que permitiram a construção de um sistema liberal de governo e os pontos principais de nossa cidadania na atualidade. Analisa os acontecimentos cruciais no momento da transição da Ditadura para a “democracia liberal”, o início da chamada Nova República e a implementação do neoliberalismo no Brasil. Como objeto de nossa investigação historiográfica se encontra a busca pelas razões da permanência da dependência, da exclusão social e dos índices sociais vergonhosos apresentados pelo nosso país, mesmo após o fim do regime de exceção. A esperança de que a transição a um sistema democrático pudesse começar a resolver os graves problemas sociais do povo brasileiro, naufragou numa sucessão de crises, hordas de desempregados e

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precarização do trabalho. Levou ao inchaço das grandes cidades, à violência urbana e à continuação e perpetuação dos signos do atraso e da exclusão. Ao recrudescimento da hegemonia de pensamento da direita e à fragmentação e inoperância da esquerda. Para isso, faremos uma leitura cuidadosa dos conceitos que nos permitem explicar as razões desses acontecimentos. Começando por compreender como se relacionam a estrutura socioeconômica e a esfera da política. Entender as bases do subdesenvolvimento do Brasil e da América Latina através dos conceitos de dependência e superexploração do trabalho. Como essas formulações nos permitem entender a América Latina como formações socioeconômicas sui generis, com suas características próprias. E como essa situação se aprofunda e recrudesce junto com o desenvolvimento do sistema capitalista internacional, intensificando o grau de exploração do nosso povo e aumentando o grau de dependência e atraso em relação ao centro do sistema, mesmo com a modernização aparente. Feita a análise estrutural, nos debruçaremos sobre o desenrolar dos fatos na superestrutura política, abarcando dois momentos distintos. Primeiramente, a transição do regime ditatorial para a “democracia” liberal, sua conjuntura nacional e internacional, as forças políticas envolvidas e os projetos distintos que se confrontam no momento político mais importante da história recente do país. Como os embates e acontecimentos daquele momento definem boa parte da realidade brasileira nas décadas seguintes. Em segundo lugar, o estudo dos anos 1990, onde se consolida a Nova República e o sistema político concebido no momento da transição, acompanhado da implementação do neoliberalismo no Brasil e as consequências dramáticas que esse fato trás para a maioria do povo brasileiro. Mais do que isso, como as ideias neoliberais inserem nosso país no novo momento do sistema internacional, no início da globalização capitalista e como isso significa um novo grau de dependência e superexploração de nossa força de trabalho, adequadas para a nova conjuntura que se abre. Portanto, essa dissertação se propõe a um trabalho sério de investigação histórica e de elaboração conceitual. Seu objetivo é compreender os pontos expostos acima, no intuito de, no comprometimento da produção científica com o povo brasileiro, permitir à nossa gente o entendimento de nossa própria história, as causas de tantas mazelas e o aporte para construir soluções no presente e no futuro. Não há aqui qualquer pretensão de ser laureado pelo academicismo, com o prêmio de “dissertação mais afastada do social do ano”, como segue a maior parte da produção historiográfica atual. O trabalho intelectual, apesar de fatigante é infinitamente mais fácil de ser realizado que o manual, aquele que exige força muscular e que deteriora o ser humano física e

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mentalmente. Por isso mesmo, em uma sociedade dividida em classes e baseada na exploração do trabalho alheio, não é de se espantar que aqueles que se dedicam ao ofício de pensar não só não se veem como trabalhadores, como povo, mas também têm horror a tudo que os lembre. Da mesma forma, seus objetos de pesquisa não se vinculam à necessidade de transformação das desigualdades em que nosso mundo e, principalmente, nosso país se encontra; mas sim, a temas completamente inúteis para a resolução dos problemas sociais. As temáticas tratadas pelas universidades brasileiras na atualidade estão completamente apartadas de nossa realidade como nação dependente e nossa abissal desigualdade social presente entre os brasileiros desde 1500. Dessa maneira se desenvolvem pesquisas nas instituições de ensino superior de nosso país que não possuem a menor relevância social ou para a própria historiografia brasileira (para ficarmos restritos somente ao campo do conhecimento humano desse trabalho). Os historiadores estão cada vez mais voltados para temáticas que não dizem respeito a ninguém, a não ser, seu próprio ego. Não se trata aqui de censura à pesquisa alheia, mas o que o pesquisador dentro de uma universidade pública (e, portanto, sustentada com os impostos de toda a população, inclusive os que nunca estarão naquele espaço) deve saber é que seu trabalho precisa ter um retorno social. É papel da universidade pública e de seus pesquisadores/professores abordarem os problemas do país e, mais do que isso, pensar e promover as soluções para os dilemas que assolam nosso povo. Esse desleixo acadêmico com sua função social também possui uma explicação político-ideológica. As abordagens, temas de pesquisa e trabalhos acadêmicos atuais, assim como seu afastamento de qualquer crítica às mazelas em que vive nossa sociedade, são manifestações da ideologia dominante dentro do mundo intelectual. O capitalismo dependente, tema dessa dissertação, precisa daqueles que criam seu respaldo ideológico e, ao mesmo tempo, necessita calar as vozes dissonantes. No meio acadêmico isso se manifesta com o abandono de autores e linhas de pensamento mais críticas, leia-se marxistas, com direito a argumentações vazias e incoerentes que defendem a superação desse tipo de pensamento. Vazias e incoerentes porque mesmo propagando aos quatro ventos a pretensa superação da filosofia do materialismo dialético, a universidade reflexa não foi capaz de formular o que ou quem a teria superado. Dentro do campo da historiografia, o desleixo acadêmico com as superações dos problemas sociais se escondem por trás de uma pseudo neutralidade. A neutralidade,

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impossível de ser alcançada, é utilizada como sofismo intelectual, como forma de justificar o abandono de teorias e enfoques com teor mais questionador à sociedade capitalista e que avancem em proposições à superação de nossa realidade injusta. As produções historiográficas atuais são dessa forma expressões da ideologia liberal daqueles que dominam a universidade reflexa. A forma dominante de pensar de uma instituição de ensino superior é a mesma da sociedade, portando, a da classe dominante. Mais do que isso, a universidade é responsável por formular essa ideologia, seus pilares de sustentação e obviamente, formar os letrados que justificam a sociedade tal como está. O liberalismo se manifesta também no comportamento desses docentes. Aparece dessa forma o já citado desleixo com a função social da universidade. Os autores e linhas de pensamentos mais críticas somem dos currículos e das discussões em sala de aula, assim claro, da orientação dos alunos e alunas, futuros pesquisadores. Toda a filosofia marxista é apresentada como ultrapassada, parte de um projeto político falido. Os doutores da academia se perdem nas brigas de ego por dois centímetros a mais de sala, ou se estapeiam pelo controle de funções burocráticas dentro das universidades, além de verbas públicas. É necessário fugir das temáticas relevantes, para ocultar as contradições sociais presentes no passado e no presente. Para isso são utilizadas as “tendências”, nome pomposo para designar “modas” do momento. Assim como em vários aspectos da vida humana, como o esporte, as artes e afins, a historiografia também possui seus modismos, que são usados e repetidos a exaustão até que sejam trocados pela próxima tendência. O modismo do momento na historiografia brasileira é a chamada história cultural. Preocupada em estudar os aspectos, práticas e a simbologia cultural do ser humano, esse campo da historiografia vem se impondo nos cursos superiores de história pelo menos nas últimas duas décadas. O problema não reside na história cultural em si. Como qualquer campo da historiografia ela não é somente capaz de criar excelentes trabalhos, como é um conhecimento necessário à história. Não deve haver amarras, a não ser éticas, para a capacidade inventiva do ser humano em aprimorar os seus conhecimentos. Da mesma forma, qualquer tipo de abordagem historiográfica, seja ela cultural, social, econômica, política entre tantas outras, somente enriquece nosso conhecimento sobre épocas passadas e sobre nosso próprio período de existência. No que consiste o problema da história cultural hoje nas universidades brasileiras é o uso dessa corrente historiográfica como uma espécie de guarda-chuva, onde, por debaixo dele, se abriga qualquer coisa. Trata-se do uso do dinheiro público para o financiamento de

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pesquisas sobre públicos leitores em sociedades onde ninguém sabia ler, canonização de indivíduos históricos da classe dominante e que não possuem a menor importância para o pensamento brasileiro, além claro, da identificação dos pesquisadores com temas elitistas e outros que de tão restritos em seu escopo somente interessam àqueles que os pesquisam. O corte cronológico dessa historiografia hoje dominante é quase sempre o século XIX brasileiro, focada no Brasil Império, onde se enaltece D. Pedro II como um monarca republicano (!) e bom governante, a elite senhorial branca como culta e letrada, perfeito retrato da civilização. O enfoque máximo é dado para as manifestações culturais da época, todas, evidentemente ligadas à classe dominante. Jornais e revistas do período, algumas de pouquíssima duração e com tiragem ínfima, são alçados ao patamar de grandiosos objetos historiográficos. Que se trata de fontes, não há questionamento. Quanto à relevância, há controvérsias. Também tem lugar a eterna e fatigada revisão epistemológica da historiografia dos oitocentos, canonizando a interpretação histórica concebida por Varnhagen, Martius e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). A concepção desses autores (e o que é estudo sobre eles na historiografia brasileira atual) servia para a necessidade do Brasil branco, na eliminação dos elementos indígenas e negros da cultura e da formação civilizacional do povo brasileiro, e os “perigos” da miscigenação. Em nenhum momento se apresenta qualquer contradição, não se mencionam escravos, escravidão, barbárie, Lei de Terras, concentração fundiária, organização dos negros pela Abolição, ou a exploração da força de trabalho imigrante e suas respectivas formas de organização e resistência política. Trata-se de uma historiografia dos oitocentos brasileiros totalmente, para se usar um termo do mundo político, “chapa branca”. Há também uma pressão sobre os jovens pesquisadores, que se manifesta de forma consciente ou inconsciente dentro da academia, em buscar sempre temas totalmente novos. Essa missão, difícil e trabalhosa, até permite o sucesso para alguns no que tange o ineditismo de objetos de pesquisa ou pelo menos de abordagem da temática, o que não significa relevância do objeto em questão. Em alguns anos vivendo no meio universitário podemos evidenciar que a escolha de temas guarda muito da visão política e ideológica dos que empreendem o ofício do historiador. A fuga para a historiografia apartada de conteúdo social relevante nada mais é do que o resultado do posicionamento ideológico dos docentes (e que são passados aos seus orientandos), junto à necessidade de se distanciar de uma historiografia contestadora e de exaltar os temas relevantes para a dominação ideológica de direita e, consequentemente, da

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classe dominante. Toda produção textual, reflexão sobre a sociedade, é ideologizada. Ao contrário do que é versado pelo liberalismo reinante nas universidades e na sociedade em geral, ao dizerem que o trabalho acadêmico dentro da teoria marxista é muito “ideológico”, “militante” ou “panfletário”, todo trabalho acadêmico é recheado de ideologia. Usa-se uma pretensa neutralidade, ao dizer que sem marxismo os textos ficam desideologizados, quando na verdade, apenas carregam outras ideologias, fortemente reacionárias e mantedoras do status quo. Sendo assim, essa dissertação rema contra a maré. Vai em direção contrária ao academicismo reinante, do desleixo intelectual, da universidade reflexa. Não seguirá o linguajar “apropriado” com que nossos cientistas sociais estão adestrados. Muitos serão os que torcerão o nariz, numa aparente manifestação de preconceito intelectual e de classe contra o seu autor, mas que na verdade nada mais é do que sua escolha político-ideológica antagônica a desse trabalho. Desde o momento em que pretendi concorrer a uma vaga no curso de mestrado do Programa de Pós-graduação de História da UERJ decidi que, caso tivesse êxito em adentrar o Programa, o trabalho de pesquisa a ser desenvolvido teria que demonstrar duas qualidades: a primeira, sua relevância social, auxiliando o povo brasileiro a pensar seus próprios dilemas, a fazer uma releitura necessária de sua história recente e a entender os signos do atraso que atravancam nosso desenvolvimento como povo soberano e que disponha à sua população níveis de bem-estar sociais satisfatórios e equitativos. A segunda qualidade seria a de realizar uma pequena, mas tenaz contribuição ao campo da historiografia brasileira, devolvendo o teor crítico e relevante ao nosso ofício de historiador e retirar esse campo do conhecimento da mesmice que se encontra na atualidade. Para isso, a proposta se baseia em retomar autores banidos dos trabalhos acadêmicos nas universidades brasileiras, incluindo os cursos de história. Junto com esses autores, por certo, apresentaremos e retomaremos conceitos que não são mais discutidos na formação dos jovens pesquisadores. O mais curioso é que autores que contribuem decisivamente para esse trabalho, com destaque no campo teórico, como Karl Marx, Ruy Mauro Marini, Theotonio dos Santos e Darcy Ribeiro foram afastados dos currículos de nossos cursos de ensino superior justamente pelo desenrolar de processos históricos que abordaremos no decorrer dessa dissertação. Todo texto é uma tomada de posição. O presente trabalho se encontra na disputa político-ideológica de três esferas. A profundidade dos questionamentos levantados pela

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pesquisa não permite falsas neutralidades e posicionamentos políticos disfarçados por trás de uma pretensa capa acadêmica. Tratamos os objetos levantados com toda a importância e cuidado que um trabalho intelectual deve ter o que em hipótese alguma significa que o autor esconde seu posicionamento político sobre os fatos levantados. Na verdade, todo historiador, ou todo profissional das ciências humanas e sociais faz isso. É algo intrínseco ao nosso trabalho. A diferença é que alguns admitem. Das três esferas de disputa político-ideológica que essa dissertação se envolve, a primeira é a do próprio país, ao tratar de problemas socioeconômicos ainda presentes no cotidiano do povo brasileiro. As teses, conceitos e problemáticas levantadas ao longo do texto são o entendimento de que a realidade brasileira é injusta com a maioria da população e que não podemos ser coniventes com isso. Há a necessidade de arregaçar as mangas e fazer com que o intelectual participe da transformação do país. O presente trabalho acadêmico reflete as ideias políticas do autor que o escreve. A segunda disputa político-ideológica em que se envolve essa dissertação é a da história recente do Brasil e consequentemente da historiografia e do patrimônio memorialístico coletivo brasileiro. Esse trabalho vem para se posicionar e contribuir com os estudos sobre a estrutura socioeconômica e histórica brasileira, com as análises historiográficas do período de transição da Ditadura para a “democracia” liberal e a implementação das diretrizes neoliberais no Brasil, assim como suas consequências para o desenvolvimento de nosso país e sua população. Como qualquer trabalho historiográfico sobre temas e passagens relevantes da história, ainda mais se tratando da história recente de nosso país, é inegável que também estamos polemizando sobre a memória coletiva de uma nação acerca de fatos pretéritos e que ainda condicionam uma carga pesada de importância sobre o nosso presente. A memória coletiva também é alvo das disputas político-ideológicas na sociedade, e nesse conflito, o historiador joga papel determinante sobre a relação presente-passado. Por fim, a terceira disputa político-ideológica em que o trabalho se envolve é no próprio campo da historiografia. O enfoque marxista dado aos objetos de pesquisa e a utilização da teoria marxista da dependência, assim como a ênfase na relação entre condições estruturais e acontecimentos superestruturais, abalizados nos autores colocados no ostracismo acadêmico, nos permite trazer de volta à cena historiográfica outro modo de se fazer a escrita da história. Esse resgate de elementos colocados de lado nos últimos tempos pode contribuir para um retorno de uma historiografia mais crítica e plural do que a apresentada atualmente. A opção por um enfoque inicial voltado à análise da estrutura socioeconômica

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brasileira permite uma compreensão maior dos problemas aqui abordados. Entretanto, um simples exercício de perícia estrutural não faz um trabalho historiográfico. Como colocado anteriormente, a presente pesquisa realça a esquecida história econômica, mas não se finda nela. Evitando determinismos e “economicismos”, a análise da estrutura brasileira na história recente estará em constante diálogo com os acontecimentos da esfera política no corte cronológico proposto. É justamente na interface entre o econômico com a análise dos fatos políticos que podemos compreender os pontos de ruptura e permanência no momento da transição, assim como, perceber o aprofundamento da dependência e o recrudescimento da divisão entre ricos e pobres no Brasil pós-Ditadura. O diálogo entre os campos econômico e político é fundamental para o entendimento aqui proposto sobre a transição “democrática” no Brasil, como do aprofundamento da dependência já em tempos pós-ditatoriais. O historiador “especialista”, que se aprofunda em só uma vertente historiográfica, se torna limitado e por consequência seu trabalho acerca da história também apresentará essa mesma limitação. Saber manejar os conhecimentos desenvolvidos pela historiografia, ao contrário, garante uma leitura mais correta sobre o objeto pretendido. Da mesma forma, evitamos dessa maneira cair no determinismo economicista exacerbado que pode se manifestar de duas maneiras. A primeira seria uma leitura equivocada dos conceitos desenvolvidos por Marx, principalmente a relação estrutura-superestrutura. O erro consiste em achar que devido ao caráter determinante da estrutura, as superestruturas não são capazes de adquirir dinâmicas próprias. Na verdade as superestruturas possuem uma autonomia relativa, que permitem uma pluralidade de manifestações políticas, ideológicas, culturais, jurídicas e etc. Obviamente, as manifestações pertencentes à classe dominante são as superestruturas dominantes de uma sociedade. O adjetivo “relativo” para designar a autonomia das superestruturas, tem como objetivo demonstrar que apesar de inúmeras criações nessa esfera, somente uma mudança em todo o edifício social permite a subversão de valores arraigados. Em bom português, somente processos revolucionários são capazes de destronar ideologias, sistemas jurídicos e tipos de Estado dominantes e substituí-los por outros. A outra maneira que se manifesta o determinismo economicista exacerbado vem, paradoxalmente, daqueles que refutam a história econômica. Nas faculdades de história brasileiras, não são poucas as vezes que escutamos a frase: “não acho que a economia determina tudo”. Obviamente, trata-se de uma falta de leitura e compreensão da teoria

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marxista, tanto para aqueles que usam essa frase por cometer a interpretação equivocada do determinismo economicista sobre as superestruturas, quanto daqueles que a professam no sentido de que outros elementos como a cultura, a política e a ideologia estão no mesmo patamar da estrutura socioeconômica. Nem uma coisa, nem outra. A grande doutrina de Marx, que deve ser lida com toda a seriedade que merece mesmo para aqueles que querem refutá-la, coloca a estrutura como base do edifício social, onde se desenvolvem as superestruturas políticas, ideológicas, jurídicas e culturais. Com o desenvolvimento das superestruturas, essas criam uma autonomia relativa que reflete a luta de classes numa determinada sociedade, começando a influenciar projetos de modificação ou manutenção na base socioeconômica. Mais uma vez, é a dinâmica da luta de classes e o desfecho da mesma que decide pela continuidade e perpetuação de um modo de produção, ou sua derrubada, assim como de sua classe social, abrindo o período de transição para outra formação social. Outro ponto importante do presente trabalho é o seu corte cronológico. Em tempos em que há quase uma ditadura oitocentista na produção historiográfica brasileira, trazer nosso escopo de trabalho para o século XX e XXI constitui-se também como um desafio. A análise historiográfica do Brasil contemporâneo sempre foi objeto de trabalho e discussão do autor. Para mim é pertinente a formação contemporânea de nosso país, a partir da industrialização no século XX e sua integração de modo subalterna ao sistema capitalista internacional. Também cresceu em importância ao longo de meus estudos iniciais na época de graduação o entendimento das causas de nosso subdesenvolvimento, assim como o de toda a América Latina. Contra a prelação pelo século XIX, optei por estudar o século XX e XXI, principalmente nossa história mais recente, que fica evidente no corte cronológico aqui proposto (1985-2002). O espaço de tempo compreendido nessa pesquisa se mescla com lembranças do próprio autor, já que abarca minha infância e boa parte da minha adolescência. Certamente é um exercício curioso e sadio para qualquer um, e especialmente para alguém ligado ao campo da história, mesclar a própria memória com o trabalho acadêmico e seu objeto de pesquisa. O estudo do século XX e XXI é de fundamental importância para a historiografia. A primazia dos oitocentos na atualidade também está ligada à questão político-ideológica conservadora das universidades brasileiras e de seus cursos de história. O desnível brutal entre o número de trabalhos dedicados ao século XIX em relação a outros períodos, com destaque para a história mais recente, guarda íntima relação com os objetos de pesquisas abordados.

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Como já dito acima, há uma escolha consciente de temas do século XIX que são rotineiros nos trabalhos historiográficos atuais. Essa escolha exclui qualquer abordagem de fatos, sujeitos e processos históricos ocorridos nos oitocentos que mostrem contradição, luta de classes ou simplesmente que se afastem, por pouco que seja da exaltação da classe senhorial brasileira, do sistema monárquico e seus pilares, biografias de líderes políticos da elite escravagista e as produções literárias que faziam o gosto das moçoilas tocadores de piano das “boas famílias” da corte. Entendendo o estudo e a compreensão da história como uma relação presente-passado, e conhecendo boa parte do posicionamento político dos pesquisadores brasileiros, fica evidente que a escolha das temáticas recorrentes citadas acima, se trata de pura identificação ideológica com o liberalismo-conservador do Império brasileiro. Os academicistas das universidades brasileiras se derretem em páginas e páginas financiadas com dinheiro público sobre personagens e acontecimentos que guardam muita familiaridade com a atuação deles dentro de nossas instituições públicas de ensino superior. O liberalismo-conservador dos oitocentos é o objeto histórico número um na atualidade porque os que escrevem sobre ele possuem o mesmo posicionamento políticoideológico, seja dentro das universidades seja na luta política geral da sociedade brasileira. O escravagismo, a distância da esfera política em relação ao povo, a tomada de decisões por aqueles que se consideravam superiores socialmente (e racialmente) e a europeização dos costumes, em suma, todas as características da política oficial do Império brasileiro são exatamente a forma como nossos professores universitários veem como modelo ideal e o reproduzem dentro de seus feudos acadêmicos. O século XX e o XXI ficam dessa maneira esquecidos. São colocados de lado não por acaso, mas sim, porque o estudo pormenorizado de seus acontecimentos históricos desnuda toda uma época de conflitos de classe e internacionais onde se colocam ideologias de matizes diferentes frente a frente. Não há como esconder as contradições quando os despossuídos começam a formular, na teoria e na prática, ações que visam a mudança radical das regras do jogo. E justamente pela exacerbação da luta político-ideológica nos acontecimentos dos séculos XX e XXI, fica muito mais difícil se esconder atrás da pretensa neutralidade acadêmica. O estudo do século XX e XXI é negligenciado porque, mais do que qualquer época, ele expõe o historiador. Ele força o professor/pesquisador a tomar partido, a tomar posição frente ao confronto inegável de propostas distintas de sociedade. O presente trabalho, mais uma vez, vai contra os modismos atuais ao trabalhar com a

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história do tempo presente, vide que os processos históricos aqui expostos e problematizados ainda estão em aberto. Nosso país continua uma economia dependente, ainda temos muito da nossa política ligada às ideias neoliberais e, para aqueles que gostam dessa classificação, continuamos vivendo no período que se convencionou chamar de “Nova República”, ou como abordaremos constantemente nas páginas à frente, período pós-ditatorial. Mais uma vez, como já colocado em relação à necessidade de retomarmos a história econômica e sua interface com os demais campos da historiografia, não se trata de substituir uma ditadura por outra, ou seja, não se trata de trocar a imposição dos oitocentos pela dos novecentos, nem a da história cultural pela econômica ou política. Há espaço para todos os gostos, vertentes e o mais importante: é necessário que haja pluralidade dos campos da pesquisa historiográfica nos cursos de história Brasil afora, pois essa pluralidade nos permite um conhecimento mais abalizado sobre os infinitos objetos de pesquisa da história. Para a confecção dessa pesquisa, alguns autores tiveram que ser resgatados do limbo intelectual que se encontravam. O próprio avanço da dependência, do neoliberalismo e do domínio estrangeiro sobre nosso país, todos os temas dessa dissertação, tiveram seu reflexo nos cursos de ensino superior, com a retirada dos currículos de qualquer coisa que “cheira” à luta de classes. Autores, conceitos e obras do pensamento marxista, incluindo o próprio Marx e cientistas sociais latino-americanos que realizaram grandes obras de adequação do pensamento marxista à realidade de nossa região, foram simplesmente vilipendiados dos cursos de história, ciências sociais, filosofia etc. Esse trabalho trás também um novo espaço para que essas ideias e autores sejam trabalhados, para que sejam descobertos e redescobertos pelos cientistas sociais e que os mais novos possam ter contato com algumas das elucubrações mais avançadas já feitas sobre o materialismo dialético na América Latina. Na primeira parte do trabalho se encontra a sua base teórica. Discorro sobre a relação estrutura-superestrutura no pensamento de Marx e Engels. Posteriormente conceituamos o que é dependência e superexploração do trabalho, noções vitais para se entender o capitalismo periférico e os acontecimentos da história contemporânea do Brasil. Também apresentamos alguns termos de Darcy Ribeiro, principalmente o de “modernização reflexa” que acredito complementar o pensamento da dependência de autores como Ruy Mauro Marini. Por fim uma reflexão do nosso sistema político lançando uma provocação: vivemos em uma democracia ou num regime pós-ditatorial? Na segunda parte do trabalho é apresentado o processo de transição, com as razões do fim da Ditadura e todos os movimentos políticos que levaram ao processo que culminou nas

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Diretas Já, expressão popular do processo de transição e na eleição de Tancredo Neves pelo Colégio Eleitoral, resposta conservadora das elites. Analisamos também como a economia brasileira estava totalmente falida ao fim da década de 1980 e de que forma duas propostas de reforma, uma popular e uma elitista, se enfrentaram na Constituinte de 1987-1988 e nas eleições presidenciais de 1989. Na terceira e última parte analisamos como o projeto conservador saiu vencedor e o seu significado para o país. A reforma pretendida pela elite e colocada em prática com Collor e Fernando Henrique Cardoso nada mais era do que a adequação do Brasil a um novo momento da divisão internacional do trabalho a partir da adoção do neoliberalismo. O Brasil pós-Ditadura entra no mundo globalizado com uma dependência renovada e com o aprofundamento da superexploração do trabalho e o consequente aumento da desigualdade entre ricos e pobres, inviabilizando qualquer projeto que se pretendia “democrático”. Pertenço a uma geração que já nasceu após a Ditadura e sob a Nova República. Sofremos a alta inflação, os Planos “Collor”, os “ajustes estruturais” do Fundo Monetário Internacional (FMI), a recessão econômica do final dos anos 1990 e todas as consequências da adoção do pensamento neoliberal em nossa economia e política. Sempre nos é dito que viver na Ditadura era muito pior e quanto a isso não há dúvida alguma. Mesmo assim, tal certeza não pode ser usada como desculpa para aceitar as coisas tal como são em nosso tempo histórico e engolir nossa “democracia” atual como o único modelo possível de regime político. Essa geração pós-ditatorial se esbarra cada vez mais nos limites dessa “democracia”, principalmente no que tange à participação política e uma democracia econômica e social. A não resolução dos problemas principais do país, assim como a política cada vez mais pasteurizada e sem opções reais de mudança formam hoje no Brasil, ainda que de maneira gradual, uma insatisfação com essa conjuntura. É necessário a essa geração conceber novas formas de luta para levar o processo de desenvolvimento do país para um patamar em que realmente possamos satisfazer as necessidades do povo brasileiro. Com as forças políticas hoje existentes em nosso país, parece improvável que qualquer uma delas seja capaz de tal tarefa. Está aqui então um trabalho acadêmico crítico e politizado, com pretensão de colaborar com a formação de uma massa crítica a todos e todas que ele possa alcançar. Tendo sempre como “sul” a responsabilidade do historiador e demais cientistas sociais para com o seu povo, no que tange a relevância social de suas produções intelectuais. Que seja uma crítica libertadora, necessária e coerente à nossa dependência enquanto

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nação, tal como ao seu sistema político respectivo na atualidade. Que seja uma crítica à pasmaceira que graça nas universidades Brasil afora, principalmente nos cursos de história. E que seja, mais importante que tudo, uma contribuição à libertação nacional e a libertação de cada um de seus leitores e leitoras dessa sociedade capitalista injusta e degradante em que nos encontramos.

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1

ESTRUTURA E SUPERESTRUTURA NO PENSAMENTO MARXISTA

Não há como iniciar essa investigação sem recorrer ao pensamento de Karl Marx e Friedrich Engels. Tidos como pensadores de uma filosofia derrotada, a direita internacional trabalhou bem a ideia, desde o início dos anos 1990, de que o fim das experiências socialistas no Leste Europeu seria o equivalente a dizer que o socialismo estava morto. Marx, para os que acreditaram nessa jogada de marketing, morreu intelectualmente. Porém, somente para ressuscitar na crise atual do capitalismo que tomou forma no final da década de 2000. E aí começam as propagandas de marketing para vender livros no estilo “a retomada do pensamento marxista”, ou “o ressurgimento do marxismo”. Para os defensores do materialismo dialético que permaneceram com sua capacidade de combate teórica e prática firme, o pensamento marxista nunca deixou de ser a linha a ser seguida. Muito pelo contrário, nesse século XXI ele se torna cada vez mais importante para dar conta das rápidas e profundas mudanças que acontecem em nossa realidade em escala planetária. O marxismo é o campo teórico em que se encontra esse trabalho, assim como é o campo ideológico daquele que o escreve. A filosofia do materialismo dialético será o alicerce com o qual construiremos a narrativa da história brasileira, seus dilemas, atores e perspectivas no final do século XX e no alvorecer do terceiro milênio. Sendo o título dessa dissertação “Coronéis e Empresários: Permanência da Dependência e da Estrutura Socioeconômica Excludente no Brasil Pós-Ditadura (1985-2002)”, é necessário que façamos uma pequena reflexão sobre o termo “estrutura”. Sua importância para o trabalho se revela no título, que antecede a centralidade do conceito para o entendimento proposto nessa dissertação. Partiremos da compreensão do que é estrutura na forma conceitual elaborada por Karl Marx, com atenção aos seus elementos formadores, a produção material e as relações sociais de produção. Discutiremos então como a estrutura gera os elementos da vida social, ou seja, as superestruturas e como essas podem tomar várias formas de acordo com a conjuntura. Refletiremos sobre a ligação entre a estrutura e as superestruturas, o grau de determinação que a primeira tem sobre as demais, e a autonomia relativa que os elementos superestruturais podem adquirir ao longo do desenvolvimento de uma sociedade. Para isso, é importante ter em mente o caráter dialético que permeia as relações sociais. Dessa maneira, poderemos também esclarecer alguns equívocos das críticas mal formuladas sobre um suposto

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“economicismo” do pensamento marxista e de sua utilização na historiografia. Por fim, realizaremos uma pequena análise da estrutura brasileira no momento da transição democrática e os elementos de permanência já no período pós-ditatorial, tendo como base, as discussões acerca dos conceitos feitas anteriormente. Dessa forma, podemos elucidar os motivos da permanência da dependência e da superexploração do trabalho mesmo com a mudança de regime político.

1.1

Produção material e relações sociais de produção

Para esse trabalho é essencial os termos “estrutura” e “superestrutura” elaborados por Karl Marx e Friedrich Engels. Esses conceitos básicos do pensamento marxista nos permitem um entendimento chave para podermos compreender o porquê da permanência de muitas características econômicas e sociais da Ditadura no período da Nova República. A transição de regime político, do autoritarismo/fascismo para o liberalismo, não trouxe as profundas mudanças no bem-estar social aguardadas pela maioria da população. A estrutura socioeconômica de uma sociedade é baseada na produção material. Entendese produção material como a forma que o indivíduo social, ou um determinado grupo de indivíduos, constrói os elementos materiais de sua sobrevivência em interação e adaptabilidade ao meio em que vive. 1 Cada período da existência humana realiza um tipo de produção específica. Todas as formas de produção material da história da humanidade guardam em comum a necessidade de instrumentos de produção e o que recebeu de trabalho passado acumulado, ou seja, o resultado de outros processos produtivos anteriores. A produção da existência é uma especificidade humana em relação aos demais seres vivos, graças aos atributos de milhares de anos de evolução de nossa constituição corporal. A produção material do ser humano é mais do que simples formas de adaptação e conforto. “Ao produzirem seus meios de existência, os homens produzem, indiretamente, sua própria vida material”. 2 1

Karl Marx. Contribuição à Crítica da Economia Política; tradução e introdução de Florestan Fernandes. 2ª Edição. São Paulo: Expressão Popular, 2008. P. 237-240. 2

Karl Marx e Friedrich Engels. A Ideologia Alemã. São Paulo: Martin Claret, 2006. P. 44.

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A produção material específica de uma época só é viável com relações sociais de produção também específicas, que revelam o grau determinado de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. As relações sociais de produção são a forma como o trabalho humano é organizado, a forma como os seres humanos trabalham para viabilizar um determinado tipo de produção. Sendo assim, um processo produtivo de caráter capitalista somente é possível com relações sociais de produção também capitalistas (trabalho assalariado, propriedade privada dos meios de produção, produção para a venda, mediação universal do dinheiro, etc.). Dessa maneira forma-se a estrutura socioeconômica de uma determinada época, com a produção material do homem e as relações sociais que viabilizam esse determinado tipo de produção. À estrutura também se dá o nome de “modo de produção”, caracterizado por Marx no clássico “Prefácio da Contribuição à Crítica da Economia Política”:

Na produção social da própria existência, os homens entram em relações determinadas, necessárias, independentes de sua vontade. Essas relações de produção correspondem a um grau determinado de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. A totalidade dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se eleva a superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo da vida social, política e intelectual em geral. 3

Portanto, a base de uma sociedade é a forma como os homens produzem sua existência material e as relações sociais em que se relacionam para executar esse determinado tipo de produção. Essas relações são independentes das vontades individuais de cada sujeito social, pois estão condicionadas pela própria forma de produção concebida pela sociedade em questão. Esse modo de produção condiciona todos os outros processos correntes na vida social de uma determinada época. Mesmo os seres humanos não fugindo das relações sociais pré-existentes, isso não significa dizer que somos passivos diante da história, pelo contrário, a teoria marxista entende a relação do homem com a história de modo dialético, no qual “as circunstâncias fazem o homem assim como eles fazem as circunstâncias”. 4 Essa descoberta é fruto do trabalho de Marx e Engels em formular uma explicação da história humana, suas tendências e processos de modificação a partir de uma visão

3

Karl Marx. Op cit. P. 47.

4

Karl Marx e Friedrich Engels. Op cit. P. 66.

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materialista dialética, na qual, o ponto de partida para o entendimento da história, sociedades e os acontecimentos de sua existência são desvendados por meio das contradições da vida material, pelos conflitos existentes entre as forças produtivas e as relações sociais de produção. O esforço de Marx e Engels em sua época era superar a visão idealista dos pensadores alemães que tentavam compreender a existência humana através da filosofia, da constituição de diferentes tipos de estado, ideologias, religiões e outros elementos pertencentes à superestrutura. O pensamento marxista tem como objetivo compreender a realidade por meio do que ela realmente é, daí o ponto de partida na base socioeconômica. O entendimento de uma sociedade deve ter como ponto de partida as condições materiais de existência. A partir dessas últimas é possível fazer qualquer tipo de análise utilizando os mais variados enfoques. Esse objetivo, cumprido com extremo sucesso pelos fundadores do materialismo dialético, é o que permitiu ao marxismo ser a única linha de pensamento capaz de compreender o ser humano e a sua história em totalidade, além de ser a razão da qual faz o marxismo o mais influente pensamento científico, presente em diversas áreas do conhecimento humano. A partir da estrutura socioeconômica, ou seja, produção material somada às relações sociais de produção, erguem-se as “superestruturas”, ou aquilo que Marx e Engels chamavam em algumas ocasiões de “produção espiritual”. O termo “espiritual” aparece aqui não com sentido metafísico, mas daquilo que é produto da criação intelectual do homem, tendo como base a estrutura da sociedade. O modo de produção determina, portanto, os modos de vida, as instituições criadas pela forma com que a produção de uma determinada sociedade se organiza. Assim surgem os diferentes tipos de estado, leis, ideologias, culturas, religiões e as mais variadas manifestações criadas pela humanidade para a organização social. É importante iniciarmos qualquer trabalho historiográfico com uma análise estrutural, pois, mesmo que não seja o objetivo do trabalho em si, esse simples exercício nos permite um melhor entendimento das relações sociais que são constituídas a partir daí. Numa crítica à economia política de seu tempo, Marx apontava as formas diferentes de se elaborar um trabalho analítico:

A população é uma abstração se deixo de lado as classes que a compõem. Essas classes são, por sua vez, uma palavra sem sentido se ignoro os elementos sobre os quais repousam, por exemplo: o trabalho assalariado, o capital, etc. Esses supõem a troca, a divisão do trabalho, os preços etc. O capital, por exemplo, não é nada sem trabalho assalariado, sem valor, dinheiro, preços etc. Se começasse, portanto, pela

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população, elaboraria uma representação caótica do todo e, por meio de uma determinação mais estrita, chegaria analiticamente, cada vez mais, a conceitos mais simples; do concreto representado chegaria a abstrações cada vez mais tênues, até alcançar as determinações mais simples. Chegado a esse ponto, teria que voltar a fazer a viagem de modo inverso, até dar de novo com a população, mas dessa vez não como uma representação caótica de um todo, porém como uma rica totalidade de determinações e relações diversas. Os economistas do século XVII, por exemplo,começam sempre pelo todo vivo: a população,a nação, o Estado, vários Estados etc.; mas, terminam sempre por descobrir por meio da análise certo número de relações gerais abstratas que são determinantes, tais como a divisão do trabalho, o dinheiro, valor etc. Esses elementos isolados, uma vez que são mais ou menos fixados e abstraídos, dão origem aos sistemas econômicos, que se elevam do simples, tal como o trabalho, divisão do trabalho, necessidade, valor de troca, até o Estado, a troca entre nações e o mercado universal. O último método é manifestamente o método cientificamente exato. 5

O presente trabalho se orienta a partir dessa diretriz marxista, onde partimos do entendimento da estrutura capitalista dependente brasileira para a constituição do Estado brasileiro e sua transição de uma ditadura para um sistema liberal. Errado seria tomar os signos políticos como ponto de partida, para somente depois entender que para a maioria da população a miséria endêmica e as dificuldades financeiras permaneceram intactas mesmo com o fim do regime ditatorial. Partindo dos elementos mais básicos da vida material, como a divisão do trabalho e as relações de troca, podemos compreender o desenvolvimento histórico do Brasil no período proposto e seguir para uma análise mais direta dos elementos político, ideológico e demais construções superestruturais do período. O abandono da análise econômica por boa parte dos historiadores no Brasil faz com que cada vez mais sejam colocadas de lado questões fundamentais para o entendimento de nossa realidade e os problemas contemporâneos de nosso país. É mais do que necessário que os conceitos marxistas voltem a fazer parte da historiografia brasileira para nos retirar da pasmaceira culturalista que nos encontramos atualmente, produzindo obras sem a menor importância intelectual e relevância social. Temas e objetos de pesquisa que não interessam a ninguém, salvos seus próprios pesquisadores presos a suas vaidades acadêmicas. A análise basilar da sociedade se torna necessária não para sufocar outras tendências historiográficas (exatamente o que fazem hoje com a história econômica pela sua capacidade de evidenciar as razões para nossa existência tal como ela sem encontra e propor soluções para os problemas nacionais), mas conceder ao historiador ferramentas primordiais para o conhecimento historiográfico em sua concepção dialética, sem a qual é impossível a compreensão correta da própria história e seu estudo.

5

Karl Marx. Op cit. P. 258.

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1.2

Superestruturas. Determinações e autonomia relativa

É nas relações diretas de produção estabelecidas pelos homens, pelas classes sociais que estes se dividem, que é dada a estrutura de uma sociedade. É onde se esconde a pedra angular de toda a estrutura social. Essa estrutura permite o desenvolvimento de toda uma rede de superestruturas, das quais nos interessa para esse trabalho a esfera política, o Estado e suas diretrizes, as relações de soberania e dependência. Novamente recorrendo a Marx e Engels, é necessário termos cuidado nesta análise para não cairmos em um determinismo econômico. A estrutura não pode ser encarada como uma categoria geral, mas como uma forma histórica definida. Sendo assim, pode gerar diferentes tipos de superestruturas dentro de um modo de produção, no nosso caso, o modo capitalista de produção. Desse modo, é possível uma estrutura capitalista permanecer inalterada mesmo com mudanças essenciais de governo, como em nosso caso, ao verificarmos a passagem no Brasil de uma ditadura para uma democracia liberal. Isso porque, apesar das superestruturas serem determinadas pela produção material e suas relações sócio-produtivas (estrutura), aquelas influenciam essa produção, portanto, não são meros agentes passivos do processo histórico, mas sim, dotadas de uma eficácia própria, mesmo que limitadas. Essa autonomia relativa das superestruturas fica evidente devido ao caráter dialético da história e dos homens divididos em classes sociais. Essas classes sociais possuem posições diferenciadas na estrutura socioeconômica, agindo cada uma da sua maneira nas relações sociais de produção que determinam a natureza de uma determinada sociedade. A contradição entre as relações sociais e a forma que está estabelecido um determinado processo produtivo é o que movimenta a história e leva às modificações de profundidades distintas, tal qual é a intensidade do choque entre objetivos históricos antagônicos das classes sociais. As superestruturas possuem, portanto, uma autonomia relativa, na qual se desenvolvem os mais variados aspectos da vida humana. Da mesma forma que uma estrutura capitalista pode apresentar um estado liberal ou fascista, sistemas políticos podem ser trocados sem que se modifiquem os alicerces básicos da economia. Partimos dessa premissa para explicar como a transição no Brasil foi realizada pelos mesmos atores sociais que capitanearam e apoiaram a Ditadura, mantendo, mesmo com a troca de regime político, a estrutura dependente do capitalismo brasileiro e índices absurdos

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de desigualdade social, além da precariedade do trabalho e o aprofundamento da mesma dependência a partir da implementação das políticas neoliberais nos anos 1990. Em uma frase, a razão do por que a transição foi feita da forma como ocorreu: para manter a classe dominante em seu posto de classe dominante. É importante salientar esse ponto para não cairmos no economicismo generalizado, tipo de pensamento totalmente antimarxista. O poder de determinação que a estrutura possui em relação à superestrutura é evidente. Não encontramos uma economia feudal com um estado burguês, ou uma sociedade socialista onde a ideologia dominante seja o liberalismo e o individualismo. Da mesma forma, não é verdade que qualquer modificação ocorrida em um elemento superestrutural é resultado de uma mudança na base socioeconômica. Caso as coisas ocorressem dessa maneira, somente poderíamos imaginar o socialismo se já vivêssemos em uma sociedade socialista. A partir de um dado momento, as superestruturas desenvolvem uma autonomia relativa, oriunda da própria característica dialética das relações sociais. As formas de produção vigente carregam o germe que possibilita sua própria destruição. Dessa maneira surgem ideias revolucionárias de total destruição de um determinado tipo de produção e suas respectivas relações sociais e a substituição por um novo tipo de sociedade. São as contradições dentro da dinâmica das relações sociais que permitem o avanço e a diversidade de pensamentos e construções sociais, até chegarem ao nível de propostas de modificação em todo o edifício social. Forças sociais antagônicas possuem objetivos históricos diferentes. Quando as contradições sociais em relação à produção chegam a um determinado nível de confrontação que impossibilita aquela sociedade tal como ela existia até aquele momento, ela é violentamente substituída por outra forma de organização e produção material. Assim se dá uma revolução. Como colocado por Marx e Engels:

Essas condições de existência, que as várias gerações encontram já prontas, decidem também se as convulsões revolucionárias que periodicamente se repetem na história serão ou não fortes o suficiente para subverter as bases do que existe. Os elementos materiais para a subversão total são, por um lado, as forças produtivas existentes e, por outro, a formação de uma massa revolucionária que se revolte não só contra as condições particulares da sociedade atual, mas também contra a própria ‘produção da vida’ vigente, contra a ‘atividade total’ sobre a qual se fundamenta. 6

A profundidade das mudanças estruturais se dá pela intensidade com que as forças sociais se enfrentam, ou seja, pelo grau de profundidade da luta de classes. Assim, da mesma 6

Karl Marx e Friedrich Engels. Op cit. P. 66

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forma em que certos momentos da história apresentam a derrubada de estruturas que parecem inabaláveis e que abrem espaço para a construção de novos tipos de sociedade, a classe dominante de cada época também é capaz de se mobilizar politicamente para assegurar a continuidade de seus privilégios de classe e seu domínio social. O movimento defensivo da classe dominante em relação à dinâmica histórica leva muitas vezes a propostas de modificações no campo do político pelo próprio grupo de privilegiados. O que parece ser uma retirada estratégica para evitar o acirramento das contradições sociais, na verdade são momentos que preparam o aprofundamento do processo de exploração e de controle social por parte da classe dominante. Se tratando do capitalismo monopólico, esse movimento tem como objetivo principal mudar as regras do jogo político, apresentando o mesmo como mais inclusivo e democrático, no qual, supostamente, as contradições sociais seriam resolvidas pelo diálogo e a livre manifestação dos indivíduos, independente de sua classe, ideologia ou opção política. Na verdade, esse pretenso furor “democrático” e “politicamente inclusivo” nada mais é do que uma tentativa desesperada da burguesia em manter intacto o alicerce de sua dominação de classe, a estrutura socioeconômica. Modifica-se apenas o regime político, que continua sob poder da classe dominante, para maquiar o verdadeiro cerne do poder, que é a propriedade privada dos meios de produção e as relações capitalistas de produção. Mais do que isso, a dominação de classe entra num momento mais complexo e enuviado, que não só dificulta seu entendimento, mas também abre portas para o maior aprofundamento da exploração dos trabalhadores.

1.3 A estrutura brasileira e a “transição democrática”. Entendendo as permanências

Esse foi o jogo político que prevaleceu no Brasil, iniciando-se com a Abertura “lenta, gradual e segura”, o período de transição para a “democracia” e culminando com a implementação do neoliberalismo na economia do nosso país. O fim da Ditadura significou uma mudança de regime político, com a adoção de um sistema de governo baseado no liberalismo. Essa troca de regime político, porém, não se tratou de um avanço revolucionário, de uma ruptura profunda com o que foram os alicerces do regime de exceção. Pelo contrário, a

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estrutura socioeconômica brasileira permanece inalterada durante e após a transição. Continua com seu caráter dependente e baseado na superexploração do trabalho, o que seria agravado pela aplicação das diretrizes neoliberais a partir da década de 1990, precarizando ainda mais as relações trabalhistas e aumentando os níveis de desemprego e trabalho informal. O Brasil não passa por uma mudança estrutural no sentido de uma nova orientação para seus rumos econômicos que pudessem solucionar os seus gritantes problemas sociais. O que há é uma troca de regime político, de uma Ditadura com contornos fascistas e calcada fortemente no apoio imperialista estadunidense, para um regime de “democracia” liberal que não apresenta qualquer avanço na modificação das relações sociais e internacionais que são a causa do nosso subdesenvolvimento. Com a manutenção da estrutura socioeconômica dependente, o capital nacional e internacional permaneceu com o controle político e ideológico do país, principalmente por meio do monopólio midiático. Como apontado anteriormente, o controle da produção material e das relações sociais de produção determina o poder da classe dominante. Sendo assim, a mudança de regime político nos moldes planejados pela burguesia brasileira atrelada ao capital internacional (notoriamente o norte-americano), possibilitou a permanência do capitalismo dependente e até seu aprofundamento, por meio do neoliberalismo, nos primeiros governos da chamada “Nova República”. A passagem da Ditadura para o liberalismo não permitiu o fim das mazelas que agravam a vida da maioria do povo brasileiro, pois nada na estrutura socioeconômica do nosso país foi modificado nesse sentido por esse processo histórico. Tratou-se de uma mudança de regime (superestrutura política), no qual, apesar de todas as contradições presentes nas lutas política do período7, os apoiadores do regime ditatorial, ou seja, o empresariado brasileiro e as multinacionais continuaram com seus lucros extraordinários intactos. Esse processo será agravado ainda mais na década de 1990, com as ideias neoliberais em voga nos governos dos presidentes Fernando Collor, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso (FHC). A transição representou a necessidade imperiosa da mudança de regime por parte do capital devido à conjuntura da época de reorganização das lutas populares, permitindo a manutenção da dependência e da superexploração do trabalho, mesmo num sistema político diferenciado daquele inaugurado em 1964 e vigente até 1985. Os acontecimentos históricos inaugurados com a Abertura promovida pelo próprio regime fascista e os moldes da transição tal como ocorreu, fazem com que a realidade

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Que serão abordadas na segunda parte desse trabalho.

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socioeconômica do país seja mantida nas mãos do capitalismo dependente, agora ganhando um novo contorno de legitimação garantido pelo seu novo caráter pseudo-democrático. A estrutura socioeconômica do país permanece a mesma, completamente dependente das multinacionais, dominada por grupos estrangeiros e por uma burguesia brasileira que é completamente subalterna aos interesses exógenos. À maioria da população permaneceu o arrocho salarial – que garante os mega lucros das multinacionais – e as péssimas condições de vida que colocam o Brasil como um dos mais desiguais países do mundo. Para continuarmos essa reflexão é imperativo que retomemos os conceitos de “dependência” e de “superexploração do trabalho” concebidos por Ruy Mauro Marini. Dessa forma, poderemos complementar o exposto sobre as teses de Marx até aqui, já que Marini faz justamente a leitura da análise marxista sobre a estrutura socioeconômica para a realidade latino-americana e brasileira.

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2

DEPENDÊNCIA E SUPEREXPLORAÇÃO DO TRABALHO

Completada nossa reflexão sobre alguns elementos básicos do pensamento de Marx para esse trabalho, devemos orientar nossa leitura para alguns conceitos pertencentes ao pensamento crítico latino-americano. A base teórica fundamental para o desenvolvimento dessa pesquisa é a teoria marxista da dependência, elaborada nos anos 1960 e 1970. Desde então, a teoria marxista da dependência tem se tornado o mais destacado avanço das ciências sociais contra hegemônica em nosso continente. Seus principais autores são latinoamericanos, com colaboração vital de intelectuais brasileiros, como Ruy Mauro Marini, Theotonio dos Santos e Vânia Bambirra. A teoria marxista da dependência, assim como seus autores brasileiros, possui grande respaldo nos cursos de ensino superior em quase toda a América Latina. Em diversos países, essa linha de pensamento é fonte de embasamento teórico para trabalhos acadêmicos de várias áreas do conhecimento. Os autores brasileiros acima estão entre os mais destacados, tendo seus livros reeditados várias vezes, principalmente em países de idioma oficial castelhano. Infelizmente, o mesmo não acontece no Brasil. Expurgados da academia pelo Golpe de 1964, esses autores não foram readmitidos nos currículos de nossos cursos de ciências humanas e sociais. Foram anistiados pelo Estado, mas não pelas universidades. Nunca tiveram o destaque nos cursos superiores semelhante ao que acontece em outras nações latinoamericanas. Mais uma vez, temos que praticamente resgatar das cinzas autores pertencentes ao pensamento crítico que, justamente por essa característica, foram colocados numa espécie de quarentena intelectual. A teoria marxista da dependência possui uma carga analítica de extrema importância, pois adéqua alguns conceitos do pensamento marxista à realidade latino-americana. Justamente, foi por causa dessa necessidade que ela toma forma a partir dos anos 1960. Era necessária uma revisão do pensamento marxista latino-americano, seja devido a táticas equivocadas que foram lançadas pelos próprios revolucionários de nosso continente, seja por estudos acadêmicos sobre nossos povos baseados na filosofia do materialismo dialético que guardavam arestas que não se encaixavam em nossa realidade. Tendo sempre como “sul” a interação teoria-prática, a teoria marxista da dependência também nasce como forma de refletir e teorizar sobre as experiências progressistas e o

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nacionalismo desenvolvimentista que não deu certo. O momento histórico em que nasce a teoria marxista da dependência é o da derrocada do nacionalismo desenvolvimentista, começando pelo governo Goulart no Brasil, e a implementação de ditaduras fascistas apoiadas pelo imperialismo norte-americano. Mais uma vez, nosso país foi pioneiro nas “contrarrevoluções preventivas”. Sendo assim, a teoria marxista da dependência nasce na tentativa de uma nova análise da trajetória latino-americana, seus dilemas históricos e a necessidade de adequar o pensamento marxista à realidade de nossos povos. Os intelectuais dessa vertente sempre estiveram mobilizados politicamente nos movimentos mais progressistas da “nuestra América”, pagando com o exílio por sua atuação junto às massas. Esse foi o destino dos expoentes autores brasileiros dessa linha de pensamento. Neste capítulo iremos explicar os conceitos de “dependência” e “superexploração do trabalho”. Da mesma forma, discutiremos a América Latina como uma formação socioeconômica própria, a capitalista dependente, e as diferenças fundamentais que essa realidade proporciona nas leis fundamentais do capitalismo se comparadas à economia dependente com o centro do sistema. Apresentaremos todas as fases da dependência: 

A economia agroexportadora (a partir do fim do Antigo Sistema Colonial).



A substituição de importações (que corresponde ao início da industrialização na América Latina, no entre guerras).



O investimento estrangeiro direto no mercado interno (no pós Segunda Guerra Mundial).



A globalização capitalista e o neoliberalismo (a partir dos anos 1980).

Isso nos permitirá demonstrar como a dependência se modifica ao longo do tempo, por meio das mudanças realizadas na divisão internacional do trabalho. Cada uma das novas formas que a dependência adquire se modifica e aprofunda as condições de superexploração do trabalho, já que este é a sua base.

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2.1

O capitalismo dependente e a superexploração do trabalho

Utilizamos nesse trabalho os conceitos de “dependência” e “superexploração do trabalho” tão quais foram elaborados por Ruy Mauro Marini. Sendo um dos maiores teóricos da dependência, Marini dedicou sua vida acadêmica a compreender os fundamentos do subdesenvolvimento na América Latina, numa análise profunda da realidade de nosso continente. Seus escritos discorrem sobre a ideia de superexploração do trabalho como ponto fundamental para entender o desenvolvimento diferenciado da América Latina em relação aos países centrais, assim como o peso que as relações de dependência instauradas entre o centro e a periferia do sistema capitalista internacional condicionam nosso atraso. Partimos do entendimento de que a América Latina é uma formação capitalista própria, apresentando um desenvolvimento distinto do que se observou nos países centrais (Europa ocidental, América anglo-saxônica e Japão). O Brasil e os demais países latino-americanos nunca traçaram um desenvolvimento igual às nações pertencentes ao centro do sistema, já que a sua interação com esse mesmo sistema capitalista internacional se dá em moldes diferentes. Entendemos como dependência (…) uma relação de subordinação entre nações formalmente independentes, em cujo âmbito as relações de produção das nações subordinadas são modificadas ou recriadas para assegurar a reprodução ampliada da dependência. O fruto da dependência só pode assim significar mais dependência e sua liquidação supõe necessariamente a supressão das relações de produção que ela supõe. 8

Assim, a dependência se configura como o controle dos processos produtivos de algumas nações por outras, ou seja, da periferia pelo centro, assim como esses processos produtivos dos países periféricos são alterados de acordo com as diretrizes das nações centrais. Cabe salientar que a situação de dependência é diferente da situação colonial. Apesar de a primeira guardar certa continuidade da segunda (no que tange a produção para a exportação, a superexploração do trabalho e o mercado interno diminuto), a dependência necessita de uma maior articulação com o sistema capitalista internacional, que se configura somente no século

8

Ruy Mauro Marini. Dialética da Dependência. IN: Dialética da Dependência / uma antologia da obra de Ruy Mauro Marini; organização e apresentação de Emir Sader. – Petrópolis, RJ: Vozes; Buenos Aires: CLACSO, 2000. P 109.

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XIX, com a Revolução Industrial e a nova divisão internacional do trabalho (D.I.T.) por ela proporcionada. O papel que a América Latina desempenhou em sua fase colonial foi de acumulação de capital para a Europa, por meio do comércio de minérios e gêneros agrícolas, além de servirem de mercados consumidores e favorecimento da expansão do crédito. Tais processos desenvolveram o capital comercial e bancário europeu, além de aumentarem a produtividade das suas manufaturas, primeiro passo para o desenvolvimento revolucionário da indústria. O processo de emancipação política das nações latino-americanas na primeira metade do século XIX coincide com o desenvolvimento da indústria no centro do sistema. Já nas primeiras décadas livre do colonialismo português e espanhol, a América Latina se articula plenamente ao sistema internacional, inserindo-se de forma dependente, se abrindo para o livre comércio e, paulatinamente, substituindo suas relações sociais de produção escrava e servil por trabalho assalariado. Nossa região se especializa no fornecimento de produtos primários que se mostram determinantes para o desenvolvimento da industrialização. A única forma de sustentar populações cada vez maiores dedicadas ao trabalho nas fábricas e, portanto, não produtoras de alimentos, é o fornecimento externo, papel que coube, na sua esmagadora maioria aos países latino-americanos. Se países como Inglaterra tivessem que produzir todos os alimentos necessários para abastecer seus centros urbano-industriais em crescente expansão naquele momento, não haveria possibilidade de auferir um desenvolvimento industrial tão rápido. Na esteira da produção de alimentos para os países que passavam por processos de industrialização no século XIX, notoriamente a Inglaterra, a América Latina se especializa também no fornecimento de matérias-primas necessárias para o próprio desenvolvimento industrial. Esse é o momento de nascimento da dependência e também da sua primeira fase, a economia exportadora. Tendo o abastecimento de alimentos garantido pelo comércio internacional, os países centrais passam a ter uma produtividade crescente no ramo industrial, o que exige também o aumento de fluxo de matérias-primas. Até hoje, mesmo com novos estágios da divisão internacional do trabalho e o aprofundamento do caráter dependente de nossas economias, a exportação de produtos primários para abastecer as indústrias de outros países ainda se configura como uma das principais atividades econômicas das nações latino-americanas. Essa função no século XIX desempenhada pela América Latina trará uma mudança fundamental na exploração do trabalho e, por consequente, em todo o sistema capitalista. Como coloca Marini:

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O que importa considerar aqui é que as funções que a América Latina desempenha na economia capitalista mundial transcendem à simples resposta aos requerimentos físicos induzidos pela acumulação nos países industriais. Além de facilitar o crescimento quantitativo destes, a participação da América Latina no mercado mundial contribuirá para que o eixo da acumulação na economia industrial se desloque da produção de mais-valia absoluta à da mais-valia relativa, isto é, que a acumulação passe a depender mais do aumento da capacidade produtiva do trabalho do que simplesmente da exploração do trabalhador. No entanto, o desenvolvimento da produção latino-americana, que permite à região coadjuvar esta mudança qualitativa nos países centrais, dar-se-á fundamentalmente com base na maior exploração do trabalhador. 9

Portanto, a participação latino-americana no aumento da produtividade industrial dos países centrais condiciona uma modificação determinante na forma de exploração do trabalhador. A mais-valia relativa, ou seja, a exploração sobre o aumento da capacidade produtiva se torna predominante no capitalismo avançado, permitindo uma desvalorização real da força de trabalho. Da mesma forma, esse papel realizado pela América Latina somente é possível com uma maior exploração da sua própria força de trabalho. Aqui entra o ponto crucial para se entender o fenômeno da dependência e os males que assolam as populações da América Latina, a superexploração do trabalho. Esse conceito formulado por Marini corresponde à modalidade de exploração do trabalho nascida do caráter dependente da economia latino-americana a partir de meados do século XIX. O caráter agroexportador da economia dos países da América Latina nos oitocentos cria um problema fundamental, que consiste numa separação entre os espaços de produção e circulação. Isso quer dizer que, a venda dos produtos primários se dá no mercado internacional, o que faz com que o momento em que se dá a mais-valia (com a venda da mercadoria) seja partilhado com os países centrais. Ao se especializarem na produção de produtos primários para a exportação e vendê-los no mercado internacional, as classes dominantes latino-americanas perdem parte da maisvalia retirada da exploração de seus trabalhadores, já que as transações comerciais em nível internacional, os gastos com fretes e tarifas, a necessidade de importação dos produtos industrializados para o consumo de suas elites e a política de créditos do sistema bancário europeu e norte-americano, fazem com que o valor obtido com a exploração do trabalho seja repartido com as burguesias dos países centrais. Dessa forma, as classes dominantes da nossa região veem seu lucro oriundo da maisvalia, extraída em seus processos produtivos internos, ser repartido em plano internacional. A 9

Idem. P. 112.

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esse problema nossas oligarquias respondem com maior exploração dos trabalhadores, dando origem à superexploração do trabalho. Para entendermos como se dá essa superexploração, convém ponderar sobre algumas explicações acerca da exploração do trabalho como geradora de mais-valia no sistema capitalista a partir do pensamento marxista. O mecanismo fundamental do sistema capitalista é a produção de mais-valia. Essa é a parte do valor produzida pelo trabalhador da qual se apropria o capitalista, proprietário dos meios de produção. A mais-valia é a diferença entre o valor produzido pelo trabalhador e a parte dessa produção que lhe é restituída. Essa restituição no sistema capitalista é quase sempre o salário.

Mais que uma relação entre produtos, entre coisas, a mais-valia expressa uma relação de exploração. Nos marcos desta relação, o trabalhador, ao trabalhar, para obter uma remuneração dada, cria um valor correspondente a esta remuneração num tempo inferior à jornada de trabalho completa; como consequência, no tempo excedente ao que corresponde estritamente a reprodução do valor expressado pela remuneração, o trabalho cria um valor excedente, uma mais-valia. A relação entre esses dois tempos de produção contidos na jornada de trabalho representa o grau de exploração ao qual se submete o trabalhador, grau este que é igual à taxa de maisvalia. 10

Uma jornada de trabalho possui dois tempos que a constitui: o tempo de trabalho necessário e o tempo de trabalho excedente. O tempo de trabalho necessário é aquele em que o trabalhador reproduz seu próprio valor, criando o valor equivalente aos bens indispensáveis à sua sobrevivência. Nos dias atuais, são os cálculos acerca do trabalho necessário que servem como base para o valor da cesta básica e outros índices econômicos. O tempo de trabalho excedente é aquele que o trabalhador dedica à produção de maisvalia, ou seja, corresponde ao tempo de trabalho que ele não será pago, o tempo de trabalho que ele se dedica à produção gratuita de mercadorias ao detentor dos meios de produção, o burguês. Este sempre colocará em prática, medidas que visem no processo produtivo, aumentar o tempo de trabalho excedente. As formas de aumentar a exploração do trabalho podem ser a mais-valia absoluta e a mais-valia relativa. A mais-valia absoluta baseia-se no aumento da jornada de trabalho, para que o trabalhador passe mais tempo produzindo. Nos países centrais, devido à regulamentação das jornadas de trabalho e outros direitos adquiridos por meio das lutas dos trabalhadores, a mais-valia absoluta perdeu força, sendo muito restringida, porém não eliminada. A mais-valia relativa corresponde à diminuição do tempo de trabalho necessário, o que 10

Ruy Mauro Marini. O movimento revolucionário brasileiro. IN: Subdesenvolvimento e revolução. 2.ed. Florianópolis: Insular, 2012. P. 171.

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intensifica a exploração do trabalho, pois no mesmo tempo de trabalho e recebendo o mesmo valor de salário, o trabalhador produz mais mercadorias. A mais-valia relativa cumpre seu objetivo em garantir um volume maior de mais-valia ao capitalista, caso esse processo permita ao burguês baratear o valor individual das mercadorias, porém, mantendo seu valor social. A introdução de novas tecnologias no processo produtivo permite aumentar a produtividade, o que leva o capitalista a tomar mais tempo ocioso do trabalhador e direcionar esse tempo para à produção, isto quer dizer, diminuir o tempo de trabalho necessário em favor do tempo de trabalho excedente. A produção aumenta, no mesmo tempo da jornada de trabalho anterior, com o mesmo valor de remuneração anterior aos trabalhadores, o que corresponde a uma desvalorização da força de trabalho e seu salário. No entanto, Marini aponta que a periferia do sistema capitalista operou justamente ao contrário, baseando a acumulação na produção de mais-valia absoluta. A entrada massiva de imigrantes e a ausência de qualquer regulamentação do trabalho. Essa ausência de leis trabalhistas levou a um excessivo prolongamento da jornada de trabalho, principalmente, na área rural. Mais do que isso, a explicação da superexploração do trabalho se dá na quebra entre o que se considera o tempo de trabalho necessário e seu valor real. Nesse caso, o aumento da mais-valia se dá pela maior exploração intensiva do trabalho, negando ao trabalhador o valor real da sua força de trabalho, e não pelo aumento da sua capacidade produtiva. O aumento do trabalho excedente tende a se realizar sem alterar o tempo de trabalho necessário, deixando de restituir ao trabalhador o equivalente ao valor criado durante o tempo de trabalho necessário. (…) o maior grau de exploração pode corresponder a uma diminuição real do trabalho necessário, isto é, pode ser alcançado sem que a remuneração do trabalhador caia abaixo do seu valor, ou pode corresponder à extensão do trabalho excedente às custas do tempo de trabalho necessário para o trabalhador reproduzir o valor da sua força de trabalho – o que é, em outras palavras, o tempo de trabalho necessário para criar um valor equivalente ao dos bens indispensáveis para sua subsistência. Neste último caso, a força de trabalho estará sendo remunerada a um preço inferior ao seu valor real, e o trabalhador não estará submetido apenas a um grau maior de exploração, mas será também objeto de uma superexploração. 11

11

Idem. P. 173

41

A superexploração conjuga três elementos para sua existência: 

O aumento da intensidade do trabalho;



O aumento da jornada de trabalho;



A redução do tempo necessário de trabalho.

Essas condições degradantes são impostas pelo capital ao trabalhador brasileiro, num momento em que ainda se firmava as relações capitalistas de produção no Brasil e nascia a nossa indústria. A superexploração nasce ainda na sociedade brasileira de predomínio rural, mas é repassada posteriormente à indústria, e acompanha as mudanças de estágios do capitalismo dependente. Os demais países latino-americanos passam pelo mesmo processo. Portanto, a baixa produtividade da produção brasileira leva a maior intensificação do trabalho, necessária para que “nossas” classes dominantes possam aumentar suas taxas de mais-valia, já que são forçadas a dividi-las com seus parceiros internacionais. Para isso, essa maior intensificação é combinada com a mais-valia absoluta, ou seja, com o aumento da jornada de trabalho, que nada mais é que o aumento do tempo de trabalho excedente, no qual há a produção de mais-valia. Finalizando, esse aumento extraordinário da intensificação e da jornada de trabalho leva a força de trabalho a ser remunerada abaixo do seu real valor, já que se aumenta o tempo de trabalho excedente sem correspondente no tempo de trabalho necessário. Esse quadro nega ao trabalhador a reposição do desgaste da sua força de trabalho, ou seja, o consumo indispensável para a sua sobrevivência, devido ao dispêndio de força superior ao normal. A expropriação de parte do tempo de trabalho que seria dedicada a pagar a sua própria força de trabalho faz com que o trabalhador não consiga ter remuneração suficiente para consumir o básico necessário à manutenção da sua força de trabalho em estágio normal. A expropriação de mais-valia e lucro se dá a partir da junção entre a mais-valia absoluta e a relativa, somado à expropriação do trabalho necessário à reprodução da própria força de trabalho. Parte do salário aos trabalhadores se torna fundo de acumulação de capital. A exploração se dá mais sobre a força física do trabalhador (aumentando a massa de valor), do que o aumento da produtividade, fazendo com que a força de trabalho seja remunerada abaixo do seu valor real. O desenvolvimento do capitalismo no Brasil ao longo do século XX trará o processo de industrialização e as relações sociais capitalistas de produção. No entanto, isso não significa que a superexploração se atenue nas novas relações de produção, mas na verdade, se

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intensificam. Isso porque a maior produtividade do trabalho implica em maior exploração do trabalho. Essa é uma característica intrínseca do sistema capitalista, seja na periferia ou no centro. Se um trabalhador necessita, devido ao aumento da produtividade, de menos tempo para produzir uma quantidade de mercadorias, o capitalista não precisa estender a jornada de trabalho, para exigir dele mais tempo de trabalho excedente visando uma maior massa de valor. O aumento da produtividade permite a maior produção, no mesmo tempo gasto, sem maior remuneração. O que parece menor tempo de trabalho na verdade se torna maior produção exigida do trabalhador. Dessa maneira, é explicado como a superexploração do trabalho sobrevive e se intensifica ao aumento da produtividade, à mudança de meios de produção, organização do trabalho e desenvolvimento tecnológico. A superexploração do trabalho não é uma forma arcaica de se extrair mais-valia em países pobres, mas sim, “é inerente e cresce correlativamente ao desenvolvimento da força produtiva do trabalho. Supor o contrário equivale a admitir que o capitalismo, à medida que se aproxima de seu modelo puro, se converte em um sistema cada vez menos explorador e consegue reunir as condições para solucionar indefinidamente suas contradições internas”. 12 A superexploração do trabalho contribui dessa forma para a formação capitalista sui generis da América Latina, pois seu processo de acumulação de capital se dá de forma totalmente distinta. Essa característica estrutural leva ao desenvolvimento do capitalismo na periferia se engendrar de forma diferente à do centro, e a permitir a formação de relações sociais, políticas e ideológica com contornos peculiares. A dependência então tem como base a superexploração do trabalho, como forma de extrair a mais-valia extraordinária por parte de “nossas” classes dominantes, capaz de garantir sua riqueza, poder de classe e a parte que se destinará às burguesias dos países centrais. O fato da circulação dos produtos oriundos da América Latina se dar no mercado internacional, essencialmente, Europa e Estados Unidos, é o que garante a transferência de capital a esses últimos. Nos países dependentes o mecanismo econômico básico provém da relação exportação-importação, de modo que, mesmo que seja obtida no interior da economia, a mais-valia se realiza na esfera do mercado externo, mediante a atividade de exportação, e se traduz em rendas que se aplicam, em sua maior parte, nas importações. A diferença entre o valor das exportações e das importações, ou seja, o 12

Idem. P. 163.

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excedente passível de ser investido sofre, portanto, a ação direta de fatores externos à economia nacional. 13

Para as classes dominantes dos países dependentes, ao se vincular ao mercado externo, não há outra forma de maximizar mais-valia e lucro do que recorrer à superexploração do trabalho. Isso porque a separação entre produção e consumo faz com que a produção latinoamericana não se realize internamente. Isso incorre na formação do capitalismo na América Latina com nuanças próprias, assim como a contradição máxima desse sistema, a relação capital x trabalho, também adquire características únicas em nossa região. Com a produção ditada e direcionada para o mercado exterior, o Brasil e os demais países latino-americanos se especializam em produtos primários de alto valor no comércio internacional. Isso leva ao sacrifício do consumo individual, em favor da exportação, deprime a demanda interna e apresenta o mercado externo como única solução, reiniciando o círculo de separação entre as esferas de produção e circulação. Portanto, o ciclo de capital na economia dependente se dá de modo diferenciado. Nas economias capitalistas centrais, o trabalhador também é consumidor. Ele teria dois tipos de consumo. Na ótica do capital, um consumo improdutivo, aquele que o trabalhador realiza individualmente para repor sua força de trabalho; e o consumo produtivo, que seria o consumo de mercadorias dos meios de produção que implica processo de trabalho. Esse consumo, junto ao dos capitalistas e das classes médias improdutivas é necessário, pois possibilita a obtenção de dinheiro, com qual a burguesia reinicia o sistema de exploração produtiva. Os trabalhadores assumem um importante papel ao se tornarem também consumidores individuais, garantindo que a produção se realize na esfera de circulação. Essa é uma das razões para o barateamento das mercadorias de consumo individual dos trabalhadores, de modo que esses possam repor sua força de trabalho, que será utilizada de modo intensificado na produção de mais-valia relativa. Na América Latina, essas relações se dão de maneira diferenciada, já que a circulação das mercadorias produzidas se dá em âmbito externo. As mercadorias não são voltadas para a realização do consumo individual de nossos povos. Com a produção voltada para fora, a capacidade de consumo das massas é exprimida ao máximo, calcada no enorme exército reserva de mão de obra em nossos países. Como coloca Marini:

13

Ruy Mauro Marini. Subdesenvolvimento e revolução. IN: Subdesenvolvimento e revolução. 2ª edição. Florianópolis: Insular, 2012. P. 50.

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Na economia exportadora latino-americana, as coisas se dão de outra maneira. Como a circulação se separa da produção e se efetua basicamente no âmbito do mercado externo, o consumo individual do trabalhador não interfere na realização do produto, ainda que determine a taxa de mais-valia. Em consequência, a tendência natural do sistema será a de explorar ao máximo a força de trabalho do operário, sem preocupar-se em criar as condições para que este a reponha, sempre que seja possível substituí-lo mediante a incorporação de novos braços ao processo produtivo. 14

Sejam as relações servis estabelecidas no tempo de colonização espanhola, ou na vinda massiva de imigrantes europeus no século XIX, a América Latina sempre apresentou um aumento crescente da massa de trabalhadores. A criação permanente de um exército reserva de mão de obra gigantesco se colocava como imposição das economias dependentes, no intuito de pressionar para baixo o consumo individual do trabalhador e a reposição rápida do trabalhador, levando à superexploração do trabalho. A dependência e a superexploração do trabalho se tornam, a partir da economia exportadora, as marcas do desenvolvimento capitalista na América Latina e criam formações sociais próprias, diferentes das do capitalismo avançado: A economia exportadora é, então, algo mais que o produto de uma economia internacional fundada na especialização produtiva: é uma formação social baseada no modo capitalista de produção, que acentua até o limite as contradições que lhe são próprias. Ao fazê-lo, configura de maneira específica as relações de exploração em que se baseia e cria um ciclo de capital que tende a reproduzir em escala ampliada a dependência em que se encontra frente à economia internacional. 15

A dependência adquire uma dinâmica que só pode gerar mais dependência. Isso porque sua produção voltada para a exportação restringe ao máximo a capacidade consumidora dos trabalhadores, o que impede a criação de um mercado interno forte, já que os meios de produção devem estar todos direcionados para produzir o que seja lucrativo no comércio internacional. Ao mesmo tempo, em que se deprime o mercado interno pela produção direcionada à exportação, a necessidade de consumo das classes dominantes e médias somente pode ser satisfeita com o recurso da importação. Reforça-se assim a dependência já que os artigos industrializados, com maior valor agregado e tecnologia de ponta, são todos de origem externa. Formam-se dessa maneira nos países dependentes duas esferas de consumo: a baixa esfera de consumo, correspondente aos trabalhadores e que é restringida pela produção 14

Ruy Mauro Marini. Dialética da dependência... P. 134.

15

Idem.

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voltada à exportação; e a alta esfera de consumo dos não-trabalhadores, que o sistema tende a ampliar, somente satisfeita pela importação. Está assim configurada a divisão internacional do trabalho (DIT), no qual a América Latina se insere de forma dependente, como exportadora de bens primários para suprir as necessidades da produtividade em alta nos países centrais; e a importadora de produtos industrializados. Essa divisão de funções em que os países latino-americanos se colocam, assim como suas esferas de consumo interno diferenciadas, se forma no auge da economia agroexportadora, mas se propaga para o momento em que se inicia o processo de industrialização de nossas nações. Observamos aí, um aprofundamento da dependência que corresponde a um novo momento da economia capitalista internacional.

2.2

A dependência e a superexploração do trabalho no processo de industrialização latino-americano

A partir do início do século XX e mais intensamente no período entre guerras, observamos a intensificação do processo industrial na América Latina. Esse processo foi distinto entre os países da região, onde alguns se industrializaram mais cedo, com recursos oriundos da agroexportação, enquanto outros somente começaram a apresentar indústrias após a Segunda Guerra Mundial, já atrelados ao capital internacional. Vânia Bambirra separa os países latino-americanos em dois grupos quanto ao momento em que aparecem as primeiras indústrias. Os países denominados do tipo A são os que iniciaram a montagem do seu parque industrial ainda na passagem do século XIX para o século XX. O Brasil aparece nesse grupo, juntamente com Argentina, México, Chile, Uruguai e Colômbia. Sua industrialização começa antes da Primeira Guerra Mundial, baseada no capital obtido na economia exportadora, ganhando mais fôlego no período entre guerras. 16 O outro grupo de países, nomeado pela autora como países de tipo B, são reconhecidos pelo início tardio do seu processo de industrialização. Este data do pós-Segunda Guerra Mundial, e já se inicia sob controle do capital estrangeiro, que depois de 1945 se encontra num brutal processo de centralização e monopolização, tendo como centro do sistema os 16

Vânia Bambirra. O capitalismo dependente latino-americano. Tradução: Fernando Correa Prado, Marina Machado Gouvêa. Florianópolis: Insular, 2012. P. 55-62.

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Estados Unidos. Dentro desse grupo estavam Venezuela, Peru, Bolívia e as nações da América Central, além de países que até a data em que a autora escrevia (1972)17, não tinham iniciado seu processo de industrialização, como era o caso do Haiti e do Paraguai. 18 O aparecimento da indústria na América Latina na virada do século XIX para o XX, não promoveu a mudança nos países da região para economias industriais. O surgimento do parque industrial em nossas nações continuou subordinado à exportação de bens primários. Somente com a crise entre guerras é que o eixo de acumulação na América Latina passará ao setor industrial. Acreditava-se que o desenvolvimento industrial seria o suficiente para retirar a América Latina do seu subdesenvolvimento. O atraso latino-americano seria fruto da sua não industrialização, de sua defasagem tecnológica. O desenvolvimento das relações capitalistas a partir de uma economia industrializada seria responsável por finalmente alinhar as economias latino-americanas com as centrais. Essa política foi nomeada “substituição de importações”. O subdesenvolvimento seria, nessa linha de pensamento, um estágio inferior, e o desenvolvimento da industrialização faria nossos povos alcançarem o desenvolvimento dos países europeus e dos Estados Unidos. Essa foi a base do chamado pensamento nacional-desenvolvimentista e a substituição de importações a direção de governos, como Getúlio Vargas no Brasil, Juan Manoel Perón na Argentina, e Lázaro Cárdenas no México. O problema é que, como vimos, a formação do capitalismo na América Latina se dá de forma diferenciada se comparada aos países centrais. A forma de extração da mais-valia é realizada de outra maneira, tomando a forma da superexploração do trabalho devido à separação entre as esferas de produção e circulação das mercadorias feitas na nossa região. A substituição de importações inaugura uma nova fase da dependência e da superexploração do trabalho na América Latina. Como a circulação dos produtos da economia exportadora se dava em âmbito internacional, os governos nacional-desenvolvimentistas recorreram à inflação e à desvalorização como formas de transpor o capital excedente

17

Como curiosidade e demonstração de que alguns autores são exilados da academia, esse livro de Vânia Bambirra foi publicado pela primeira vez no Chile em 1972, onde a autora estava exilada devido ao Golpe militar de 1964 e auxiliava o governo socialista de Salvador Allende. A obra “O capitalismo dependente latino-americano” é referência em vários cursos superiores na América Latina, porém só foi publicada pela primeira vez no Brasil em 2012 (!), 40 anos depois. Felizmente, Bambirra estava viva para ver uma de suas obras fundamentais ser finalmente publicada em seu país de origem. 18

Vânia Bambirra. Op cit. P. 55-62.

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produzido pela economia exportadora e investi-lo no setor industrial. 19 Com os momentos de crise entre 1914 e 1945, essas políticas formam um ambiente de proteção ao mercado interno, gerando a conjuntura que permite o aumento da industrialização de bens não-duráveis dentro da lógica de substituição de importações. Esses bens se dirigem ao consumo das classes dominantes, que já não importam seus produtos manufaturados devido à conjuntura de crise mundial, tendo como única opção a produção interna. 20 A dependência se perpetua nesse novo momento, já que a substituição de importação somente é realizável com a aquisição de máquinas no mercado externo. Sendo a tecnologia estrangeira a base do processo de industrialização, a transferência de mais-valia se mantém, já que a importação de produtos industrializados é substituída pela importação de maquinário. A industrialização na América Latina surge dentro do cenário criado pela dependência, ou seja, com a separação entre produção e circulação, a superexploração do trabalho, baixa produtividade do trabalho e a formação de duas esferas de consumo, completamente apartadas do processo produtivo vigente nesses países. A baixa esfera de consumo, compressada pela produção voltada ao mercado internacional, e a alta esfera de consumo que somente se satisfaz com as importações. Como colocado anteriormente, a superexploração do trabalho não se trata de uma versão primitiva das relações capitalistas de produção, ou de um estágio primeiro para depois se desenvolver aos moldes dos países centrais. Ela é condicionante das economias capitalistas dependentes, e essa se configura como uma formação socioeconômica própria da periferia do sistema capitalista internacional, na qual estão inseridos o Brasil e os demais países latinoamericanos. A industrialização não romperá com dependência, muito pelo contrário, a aprofunda, assim como intensifica a superexploração do trabalho. Mais uma vez, é necessário observarmos as diferenças entre o capitalismo central e o capitalismo dependente. Na economia europeia e estadunidense, a formação do mercado interno é resultado da acumulação de capital. Ao desprover o trabalhador dos meios de produção, cria-se não só o proletário, mas também um consumidor. Esse trabalhador vende a sua força de trabalho como única forma de sobrevivência e, já que não possui meios de produção, precisa comprar mercadorias que permitam sua sobrevivência. A entrada de alimentos (oriundos na maioria das vezes da América Latina, como colocamos anteriormente) a baixo preço e que são destinadas ao consumo de massas, permite 19

Carlos Eduardo Martins. Globalização, dependência e neoliberalismo na América Latina. São Paulo: Boitempo, 2011. P. 297-298 20

Idem.

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que parte do salário do trabalhador possa ser gasta com produtos industrializados. A acumulação e o mercado guarda assim uma relação intrínseca. A base da produção industrial nesses países está voltada para o consumo popular, já que o barateamento dessas mercadorias garante a possibilidade de aumentar a produtividade do trabalho. A acumulação baseada na maior produtividade do trabalho aumenta a mais-valia. Parte do valor auferido dessa mais-valia vai para o consumo da burguesia e das demais classes não produtoras, o que dinamiza a alta esfera de consumo e a produção de bens não só de consumo de massas, mas também os de consumo suntuário. Assim como nas economias dependentes, existem duas esferas de consumo, com a diferença vital de que o aumento do consumo suntuário é resultado das modificações no processo produtivo (predomínio da mais-valia relativa, aumento da produtividade, exportação dos produtos primários destinados ao consumo popular a baixos preços). Isso é possível com o aumento da produtividade do trabalho que faz com que o consumo do trabalhador diminua em termos reais em relação ao todo de mercadorias consumidas na sociedade. A diferença essencial para a economia capitalista dependente é que o mercado interno não foi criado pela acumulação gradual dos processos produtivos endógenos, mas, muito pelo contrário. O nascimento tardio da industrialização nessas áreas leva o mercado de produtos manufaturados se realizarem somente com importações. Nos momentos de crise, a indústria latino-americana “herda” esse mercado temporariamente, onde as esferas de consumo não estão distendidas, mas sim, separadas. A produção suntuária não cresce com a maior produtividade do trabalho porque para o mercado brasileiro e latino-americano em geral, toda produção industrial nesse momento é considerada de consumo suntuário devido à superexploração do trabalho, não tendo relação com a produtividade do trabalho. A economia industrial se torna o eixo da acumulação no Brasil e demais países do tipo A (ou seja, aqueles que começaram sua industrialização no final dos oitocentos com o capital advindo da economia de exportação), somente no período entre guerras. A Primeira Guerra Mundial e sua disputa pela partilha colonial, a desorganização do mercado mundial no entre guerras, principalmente a partir de 1929, e a disputa de hegemonia da Segunda Guerra Mundial tiveram consequências cruciais para o desenvolvimento dos países latinoamericanos. 21 Entre esses resultados determinantes esteve a já citada deslocação de eixo de acumulação da exportação para a indústria, além da perda de poder político das oligarquias

21

Ruy Mauro Marini. Subdesenvolvimento e revolução... P. 53.

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ligadas à economia exportadora e ascensão dos setores ligados ao processo fabril. A crise de 1929 acabou temporariamente com boa parte do mercado internacional do café, principal produto de exportação brasileiro desde meados do século XIX, o que liberou muita mão de obra para as cidades e, consequentemente, às indústrias. O crescimento no número de trabalhadores oferecidos ao setor industrial possibilitou a baixa dos salários e o aumento das vendas no mercado interno. O avanço da industrialização na América Latina somente se deu com mais força nos momentos em que as importações de produtos manufaturados se torna precária ou impossível, ou seja, durante os dois conflitos mundiais e o período compreendido entre eles. Ao contrário do que ocorreu no processo de industrialização dos países centrais, a indústria no Brasil e na América Latina não criou a sua própria demanda, mas supriu uma demanda já existente que era abastecida por produtos importados. O consumo das classes dominantes brasileiras se reorienta para a produção industrial interna somente nos momentos de crise mundial. A indústria brasileira naquele momento não precisou criar mercado para suas mercadorias, pois a demanda era superior à oferta, já que a superexploração do trabalho e o preço das mercadorias impediam aos trabalhadores consumirem tais produtos. A indústria brasileira apenas supria a demanda das elites, temporariamente impossibilitadas de consumirem produtos importados e tendo a produção interna como única saída. A acumulação de capital da indústria brasileira nesse período conjuga um “monopólio” temporário de mercado com a aplicação da superexploração do trabalho na indústria. Marini coloca esse processo dessa forma:

O capitalismo industrial forçará, por um lado, a alta de preços, aproveitando-se da situação monopolística criada de fato pela crise do comércio mundial e reforçada pelas barreiras alfandegárias. Por outro lado, e dado que o baixo nível tecnológico faz com que o preço de produção se determine fundamentalmente pelos salários, o capitalista industrial se valerá do excedente de mão de obra criado pela própria economia exportadora e agravado pela crise que esta experimenta (crise que obriga ao setor exportador a liberar mão de obra), para pressionar aos salários no sentido de baixa. Isso lhe permitirá absorver grandes massas de trabalho, o que, acentuado pela intensificação do trabalho e a prolongação da jornada, acelerará a concentração de capital no setor industrial. 22

O que a economia industrial faz é reproduzir as condições de superexploração do trabalho da economia exportadora, com modificações condizentes com o seu momento histórico, fazendo com que a força de trabalho seja remunerada abaixo do seu valor real, combinando a mais-valia absoluta com a mais-valia relativa. 22

Ruy Mauro Marini. Dialética da Dependência. ... P. 141.

50

O modo de circulação das mercadorias também se reproduz de modo semelhante ao da economia exportadora, com uma diferença. Não encontramos aqui a dissociação geográfica entre produção e circulação, mas sim, a divisão entre as esferas alta e baixa de consumo dentro da mesma economia. Sem as condições que observamos na economia dos países centrais, essa separação das esferas de consumo adquiri um caráter muito mais brutal nos países dependentes. O fato do trabalhador não ser um consumidor na economia dependente do período, a produção não tem relação das condições de salários dos operários. Não há necessidade de adequar o preço das mercadorias já que elas são destinadas somente às classes dominantes, únicas naquele momento capazes de consumirem os produtos industrializados. Apartado do consumo por parte dos próprios trabalhadores que a fabricam, as mercadorias pode ter seu valor final ajustado muito acima dos custos de produção. Essa situação leva o processo de industrialização a aumentar o nível de superexploração do trabalho. Marini enxerga dois sentidos nisso: Em primeiro lugar porque ao não ser um elemento essencial do consumo individual do operário, o valor das manufaturas não determina o valor da força de trabalho. Não será, então, a desvalorização das manufaturas que influenciará na taxa de mais-valia. Isto dispensa o industrial de preocupar-se em aumentar a produtividade do trabalho para, fazendo baixar o valor da unidade de produto, depreciar a força de trabalho e o leva, inversamente, a buscar o aumento da mais-valia através de uma maior exploração – intensiva e extensiva – do trabalhador, assim como a rebaixa de salários, mas além de seu limite normal. Em segundo lugar porque a relação inversa que daí se deriva para a evolução da oferta de mercadorias e do poder de compra dos operários, isto é, o fato de que a primeira cresça às custas da redução do segundo, não cria ao capitalista o problema na esfera da circulação, uma vez que as manufaturas não são elementos essenciais no consumo individual do operário. 23

Chega um momento em que a oferta de mercadorias e a demanda interna se igualam e há então a necessidade de ampliar o consumo. Nos países centrais isso é realizado com o barateamento dos produtos de consumo de massas para aumentar o mercado. Na periferia isso se dá com a combinação do aumento de consumo das camadas médias (não-produtoras), originado da mais-valia não acumulada e com a iniciativa de aumentar a produtividade do trabalho, sem a qual é impossível baratear as mercadorias. A mais-valia que permite aumentar o poder de consumo das classes médias torna o processo de construção de um mercado mais amplo extremamente lento, já que está calcada no rebaixamento ao máximo dos salários dos trabalhadores. Essa fase corresponde na história brasileira à década de 1950, onde se dá uma série de convulsões econômicas, políticas e 23

Idem. P 142.

51

sociais, em que o projeto nacional-desenvolvimentista é abandonado após o suicídio de Vargas e a eleição de Juscelino Kubitschek, que sacramenta o fim do período de substituição de importações. Um novo momento da dependência e da superexploração do trabalho se abre, tendo como determinante a expansão do capital monopolista estadunidense no pós-Segunda Guerra e o avanço da composição técnica do capital nos países centrais. Essas mudanças acarretaram dilemas profundos no desenvolvimento da sociedade brasileira, na agudização da luta de classes como jamais vista na história do nosso país e num desfecho dramático para nosso povo, que lhe custará décadas de mais atraso, miséria e violência.

2.3

A nova composição do capital na economia dependente e o investimento estrangeiro direto no mercado interno

A partir de 1945, com o fim da Segunda Guerra Mundial, o mundo capitalista passou por uma brutal centralização de capital e constituição de monopólios. Nesse novo momento, os Estados Unidos se tornam o centro do sistema capitalista internacional e mola propulsora dessa nova dinâmica. Passado o momento de profunda crise e conflitos bélicos de proporção mundial, a hegemonia norte-americana reafirmará a tendência do imperialismo a integrar os sistemas de produção em escala planetária. Esse movimento inaugura o processo de investimento direto nos países periféricos, alçando a dependência para um novo patamar, baseada, como sempre, na superexploração do trabalho. Marini aponta duas razões fundamentais para a retomada do processo de integração dos sistemas de produção. Primeiramente, o nível de concentração de capital altíssimo alcançado pela economia estadunidense a partir desse período. Surgem as multinacionais, grandes empresas formadas no início da fase imperialista do capital e que agora não só atuam em escala planetária, como possuem um montante sem precedentes de capital para investimento. A aplicação no exterior surge como importante forma de lucro e fomenta o avanço imperialista dos Estados Unidos sobre a periferia. As indústrias latino-americanas direcionadas para seus mercados internos aparecem como uma boa fonte de lucros devido à superexploração do trabalho.

52

A segunda razão para o processo de integração dos sistemas de produção consiste no avanço do progresso técnico nos países centrais, notoriamente no campo de máquinas industriais. A venda de maquinário para os países periféricos torna-se então uma constante. O desenvolvimento do progresso tecnológico fez com que o prazo de reposição do capital fixo nos países centrais fosse reduzido pela metade. Abre-se aí a possibilidade de exportar para a periferia o maquinário que se tornava obsoleto antes de ser amortizado. A concentração de capital no centro, principalmente nos Estados Unidos, leva ao avanço do investimento estrangeiro direto nos países periféricos. Como as indústrias latinoamericanas eram muito defasadas tecnologicamente se comparadas às dos países centrais, surge um mercado de venda de máquinas para a periferia, que força o caráter de dependência e garante a transferência de mais-valia para as nações centrais. Como a tecnologia era vendida antes de ser amortizada, os lucros eram vultosos para as multinacionais que podiam aumentar sua composição técnica e de capital, e consequentemente, a disparidade entre o centro e a periferia do sistema. 24 Quando o setor de indústrias de bens não-duráveis nas economias periféricas começa a dar sinais de saturação e o desenvolvimento de indústrias de bens de capital se torna um imperativo, as burguesias latino-americanas são assediadas com a venda de tecnologias por parte dos países pertencentes ao centro do sistema. A contradição de despender todo um processo de acumulação e desenvolvimento de tecnologia endógena ou optar pelo aprofundamento da dependência, comprando as máquinas necessárias no mercado internacional e dinamizando o processo de industrialização, foi o dilema da burguesia latino-americana na metade do século XX. Esse quadro estrutural explica as tentativas de um nacionalismo autônomo, que no caso brasileiro tem seu maior expoente em Getúlio Vargas, e o posterior abandono desse projeto, quando a burguesia brasileira opta pelo desenvolvimento dependente ao perceber que a adoção de máquinas estrangeiras no processo produtivo lhe permitia obter uma mais-valia extraordinária. A dependência adquire um caráter ainda mais radical quando a burguesia brasileira abandona o projeto nacional-desenvolvimentista, ao associar o capital nacional e internacional, “desnacionalizando” totalmente as burguesias periféricas. A partir desse momento não há outra forma de romper com a dependência que não signifique romper com o próprio sistema capitalista, pois não há mais condições para o desenvolvimento de um capitalismo autóctone.

24

Ruy Mauro Marini. Subdesenvolvimento e revolução ... P. 59-60.

53

Com a adoção de tecnologia no setor secundário, a indústria brasileira diminui seu quadro de operários, o que debilita ainda mais o mercado interno, ao mesmo tempo em que aumenta o custo de produção, devido aos gastos com o capital fixo. Essa restrita situação da demanda interna e custos de produção serão aplacados pela classe dominante pelo aumento abusivo dos preços, o que reinicia o ciclo de inviabilização do consumo de massas para os produtos industriais. No campo da política, com a alta do custo de vida, inflação galopante, inviabilidade de consumo de massas e o desemprego como consequência do aumento do progresso técnico, esse cenário levará ao acirramento da luta de classes, a organização dos trabalhadores entre as forças comunistas e nacional-desenvolvimentistas e a inclinação da direita, representante dos empresários e das multinacionais, ao golpe e ao fascismo, para garantir a extração de maisvalia extraordinária e seus lucros exorbitantes. Na história brasileira, esse momento corresponde aos governos de Jânio Quadros e, em carga muito mais dramática, ao de João Goulart (Jango). A percepção do aprofundamento da dependência e o abandono do projeto autônomo por parte da burguesia levam ao rompimento da base que sustentava os governos nacional-desenvolvimentistas e conduzem à radicalização política. O avanço das forças populares, representados pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), Partido Comunista Brasileiro (PCB) e movimentos sociais como a Confederação Geral dos Trabalhadores (CGT), União Nacional dos Estudantes (UNE) e Ligas Camponesas põem em xeque o poder da classe dominante e a dominação imperialista. A participação popular organizada e a contestação aos alicerces da dependência, temperados pelo clima de luta ideológica da Guerra Fria e a influência da Revolução Cubana, levam ao questionamento do próprio sistema capitalista. Como reação das forças conservadoras, apoiadas pelo imperialismo norte-americano, haverá a ação de força do Golpe de 1964, que aprofundará o caráter da dependência e lançará contornos dramáticos à superexploração do trabalho. A coincidência entre essas duas tendências – o abandono da política bonapartista e das aspirações pelo desenvolvimento autônomo – leva à queda dos regimes liberaldemocráticos que vinham tentando se afirmar desde o pós-guerra e conduz à instauração de ditaduras tecnocrático-militares. 25

O que ocorre a partir do pós-Segunda Guerra Mundial é uma redefinição da divisão internacional do trabalho (DIT) e uma consequente reformulação da hierarquia do sistema 25

Idem. P. 63.

54

capitalista internacional. Os países centrais estimulam a industrialização nas nações periféricas no intuito de criar um mercado para sua indústria pesada. Ao mesmo tempo, Europa e Japão se recuperam dos efeitos da última guerra mundial e começam a competir com os Estados Unidos em alguns setores, porém, nunca ameaçando sua hegemonia de modo real. A nova DIT coloca os países periféricos como produtores de etapas inferiores do processo industrial, e garante ao centro do sistema o monopólio das tecnologias mais avançadas, como a informática, eletroeletrônica, microeletrônica, e novas fontes de energia, como a nuclear, além do controle dos processos produtivos em escala global. A tecnologia necessária para esse salto produtivo na América Latina vem por meio da compra no mercado internacional, mas, principalmente, pelo investimento externo direto nos países periféricos. As multinacionais começam a se fazer presentes, notoriamente, em países com mercado interno mais amplo, como Brasil, Argentina e México. Trazem consigo uma composição técnica muito mais avançada do que as indústrias nacionais, o que começa a dificultar a sobrevivência das mesmas. A fuga de mais-valia se acentua durante a fase do investimento direto, já que é necessário adquirir a tecnologia avançada no mercado internacional, ou permitir a instalação de multinacionais no Brasil. A necessidade constante de gasto com o capital fixo, para aumentar a capacidade produtiva e concorrer com os adversários internacionais agora presentes no mercado interno, só pode ser mantida com base na superexploração do trabalho.

Como coloca Carlos Eduardo Martins:

A superexploração do trabalho se estabelece a partir do desenvolvimento da produtividade do trabalho, naquelas empresa, ramos ou regiões capitalistas que sofrem depreciação do valor de suas mercadorias, em razão da introdução, em seu espaço de circulação, de progresso técnico realizado por outras empresas, ramos ou regiões. Isto ocorre quando a maior parte do crescimento da produtividade, nesse âmbito, se origina de inovações tecnológicas produzidas em outras empresas, setores ou regiões, não podendo as primeiras compensar, com a geração de tecnologia endógena de progresso técnico, o movimento de apropriação de mais-valia que sofrem. 26

O investimento direto no mercado interno e a defasagem tecnológica que precisa ser permanentemente suprida com tecnologia estrangeira é o que caracteriza a dependência nesse período. São as modificações e adaptações necessárias de processos produtivos na periferia ditadas por inovações forâneas, do centro do sistema capitalista internacional.

26

Carlos Eduardo Martins. Op cit. P. 282.

55

Como a estrutura produtiva brasileira e latino-americana é baseada na superexploração dos trabalhadores, foi possível às classes dominantes da região instalar novas tecnologias, intensificar o trabalho, aumentar a produtividade, e manter a remuneração da força de trabalho abaixo do seu valor real. As novas técnicas implementadas nos parques produtivos da periferia do sistema foram implementadas em indústrias que, se nos países centrais tendem à popularização de seus produtos para a dinamização do mercado interno, nos países dependentes estão voltadas, devido ao mecanismo da superexploração, somente para o consumo das classes dominantes e classe média. A implementação das novas técnicas produtivas permite a fabricação e consumo de automóveis, eletrodomésticos e bens duráveis em geral, mas que, no entanto, estavam destinadas somente à aquisição por parte das classes dominantes. Sendo os bens duráveis ausentes do consumo dos trabalhadores, o aumento da produtividade não significa nas economias dependentes maiores lucros pelo crescimento da taxa de mais-valia, mas sim, pelo aumento da massa de valor realizado, o que caracteriza maior exploração do trabalhador. Mais uma vez, e agora de forma ainda mais drástica, a produção industrial brasileira, se constitui completamente apartada da baixa esfera de consumo, impossibilitando a criação de um mercado interno forte. Dessa forma, a implementação das novas tecnologias produtivas no Brasil em caráter dependente, estrangulou a possibilidade de um mercado amplo e necessitou, para a sua sustentação, de mecanismos de transferência de renda dos pobres para os ricos. Nesse quesito, a inflação e a intervenção do Estado foram determinantes. A saída para dinamizar um mercado interno limitado foi o arrocho salarial e a inflação, que garantiram a transferência de renda da baixa esfera de consumo para a alta. As ditaduras implementadas no Cone Sul a partir dos anos 1960 tiveram como objetivo esse movimento, ao elevar a superexploração do trabalho ao máximo, impossibilitando qualquer forma de oposição por parte dos trabalhadores por meio da violência e do fascismo. Como os bens duráveis no Brasil possuíam preços proibitivos para a maioria esmagadora da população, fazendo com que o mercado interno fosse muito restrito, a Ditadura, como governo de força, arrochou os salários a níveis alarmantes e utilizou a inflação (mecanismo burguês de transferência de renda) para repassar recursos à esfera alta de consumo. Com incentivos concedidos pelo Estado, como o crédito para o consumo suntuário e aumento da burocracia estatal para a classe média, foi promovido um enorme processo de concentração de renda, em que uma pequena parcela da população consumia toda a produção industrial, enquanto a esmagadora maioria do povo passava as necessidades mais básicas,

56

impossibilitados de suprirem os requisitos básicos de sobrevivência. Essas medidas causam um grave problema econômico, já que, com a esfera baixa de consumo comprimida pelos mecanismos de transferência de renda, não há qualquer iniciativa para o investimento nas indústrias de consumo popular. Enquanto as indústrias de bens suntuários (quase todas ligadas ao capital internacional) cresciam a passos largos, sustentadas pelo consumo desenfreado da burguesia e da classe média, as indústrias voltadas para o consumo de massas apresentavam regressão. Desvenda-se assim outra função do regime fascista no Brasil, que foi o de realizar uma “limpeza” no parque produtivo brasileiro, onde aquelas indústrias com tecnologia mais defasadas, e que estavam conectadas com a produção destinada à baixa esfera de consumo, começam a ser adquiridas por outras empresas, na maioria, estrangeiras. O parque industrial brasileiro passa por um intenso processo de “desnacionalização”, passando às mãos das multinacionais como novos proprietários ou acionistas. A expansão da demanda das classes dominantes e classe média no Brasil passam a estar condicionada pelo achatamento salário e do poder de consumo da classe trabalhadora. Mais uma vez, há uma divisão brutal entre as esferas de consumo, acrescentada da divisão entre as indústrias de bens suntuários e de bens de capital, das que se dedicam aos bens de consumo populares e que se encontram em estado de defasagem tecnológica. Essas se tronam características peculiares dos países de formação capitalista dependente. Essas características assemelham essa fase de investimento direto com a da economia exportadora. E as semelhanças não param por aí. Vimos que a adoção de uma capacidade produtiva mais elevada somente é possível no capitalismo dependente com a intensificação da superexploração do trabalho. Por sua vez, isso leva a uma restrição do mercado interno, já que retira o poder de consumo dos trabalhadores, levando a níveis muitas vezes abaixo da subsistência. Ao mesmo tempo, o capitalismo dependente tem a necessidade de aumentar sempre a massa de valor, já que a acumulação depende mais disso do que da taxa de mais-valia. Para isso, os regimes ditatoriais tentaram aumentar a alta esfera de consumo elevando a superexploração a níveis alarmantes, utilizando também, outros mecanismos de transferência de renda, como a inflação e as políticas de crédito diferenciadas. Obviamente esse artífice também demonstrou rapidamente seus limites e a necessidade de ampliação de mercado para a produção industrial brasileira se fez presente novamente. Esse mercado se cria não de forma interna, impossibilitado pelos motivos listados acima, mas sim, pela adoção da exportação de bens manufaturados.

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Economias dependentes de maior composição de capital, como é o caso da brasileira, especializam-se na exportação de seus bens suntuários e também de bens essenciais para outros países também dependentes, mas que não apresentavam um parque produtivo tão desenvolvido. Como coloca Marini:

Não podendo estender aos trabalhadores a criação de demanda para os bens suntuários e orientando-se na realidade para a compressão salarial, que os exclui de fato desse tipo de consumo, a economia industrial dependente não só teve que contar com um imenso exército de reserva, como se obrigou a restringir aos capitalistas e a camadas médias altas a realização das mercadorias de luxo. Isso colocará, a partir de um certo momento (que se define nitidamente a meados da década de 60), a necessidade de expandir-se para o exterior, isto é, de desdobrar novamente – ainda que agora a partir da base industrial – o ciclo do capital, para centrar parcialmente a circulação sobre o mercado mundial. A exportação de manufaturas tanto de bens essenciais como de produtos suntuários se converte então em tábua de salvação de uma economia incapaz de superar os fatores desarticuladores que a afetam. Desde os projetos de integração econômica regional e sub-regional até o desenho de políticas agressivas de competição internacional, se assiste em toda a América Latina à ressurreição do modelo da velha economia exportadora. 27

O Brasil (assim como outras nações latino-americanas, como México e Argentina) passa a exportar manufaturas como saída para seu problema de mercado. A esse fenômeno damos o nome de “subimperialismo” - também concebido por Ruy Mauro Marini, já que a maior parte do parque produtivo não é composto de capital nacional, mas sim, dominado pelo capital estrangeiro. Na nova DIT, países como Brasil agregam à sua exportação de bens primários produtos industrializados, fabricados nas empresas de propriedade ou co-propriedade estrangeira, munidos de tecnologia dependente e com destino a outros países também dependentes, mas que se encontram em um estágio inferior de produção (ainda calcados na exportação mineral e agropecuária). Como não havia possibilidades de ampliação do mercado interno, pois a produção dos bens suntuários era baseada na superexploração do trabalho, a política econômica brasileira é reorientada para a velha opção do mercado externo, como nos tempos de exportação de bens primários. Temos novamente a separação entre a produção e a circulação, incluindo nesse momento bens industrializados na pauta de exportação, assim como, o agravamento da separação das duas esferas de consumo dentro do país, devido ao aprofundamento da superexploração. A exportação de bens manufaturados se constitui como saída ao impasse produtivo no Brasil devido à não realização de reformas estruturais, como a reforma agrária e a reforma 27

Ruy Mauro Marini. Dialética da dependência... P. 149-150.

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financeira, o que não permitiu a criação de um mercado consumidor interno amplo e de massas, estancar as perdas internacionais da nação, como a remessa de lucros das multinacionais aqui instaladas, e o desenvolvimento necessário para a criação de capital suficiente para o investimento de tecnologia endógena. Essas medidas estavam contidas na proposta das Reformas de Base de João Goulart, amplamente apoiadas pelas forças populares de esquerda. O atrelamento da burguesia de caráter dependente ao imperialismo norte-americano fez, pela força, naufragar essa proposta reformista que garantiria os alicerces para uma popularização da política e o início do rompimento com a dependência. A resposta da classe dominante brasileira foram 21 anos de ditadura, violência, execuções, perseguições e miséria endêmica para a população. O trabalho baseado numa versão monstruosa de superexploração de trabalho que rendia uma concentração de renda brutal, lucros exorbitantes para as multinacionais, aprofundamento da dependência e um consumo suntuário para “nossas” elites. Essa concentração de renda brutal, mesmo assim, não foi capaz de sustentar a produção industrial. Para complementar o simulacro capenga de sociedade de consumo elaborado pelo capital dependente, foi necessário recorrer ao subimperialismo, adicionando os produtos manufaturados a nossa pauta de exportação, além de gastos públicos, essencialmente no campo militar e de obras faraônicas, com intuito de dinamizar a indústria de bens de capital. Vale lembrar que durante a Ditadura, esse processo de superexploração do trabalho também se manifesta no campo, provocando consequências dramáticas para a maioria da população brasileira. Com a mecanização da área rural, boa parte dos camponeses é desnecessária para a produção, assim como, o aumento da produtividade dos latifúndios, agora mecanizados, recrudesce a concentração fundiária, problema estrutural do Brasil e da América Latina. Essa impossibilidade de acesso aos meios de produção na área rural (ou seja, a própria terra), somado ao rebaixamento da remuneração dos empregados no campo e aos jornaleiros (boias-frias) leva ao um aumento da miséria, da insegurança alimentar e do êxodo rural. Esses fatores desembocam no intenso processo de favelização e pauperização da população dos grandes centros urbanos brasileiros a partir da década de 1970, com destaque para São Paulo e Rio de Janeiro.

59

2.4

O neoliberalismo e a globalização capitalista

A partir de meados da década de 1960, o capitalismo central já apresentava baixa nas taxas de lucro, o que levará a uma crise estrutural de todo o sistema a partir de 1973, com a Primeira Crise do Petróleo. Esse choque em nível global resulta em modificações estruturais que se mostraram determinantes tanto para os países centrais, quanto para os periféricos, reestruturando o capitalismo internacional. Esta crise se dá a partir de meados da década de 1970, com o esgotamento do modelo fordista/keynesiano de produção e consumo, que tem como origem a queda da taxa de lucros devido às conquistas dos trabalhadores nos países centrais que encareceram a força de trabalho, consequente desemprego estrutural, retração do consumo (ligada à elevação do número de desempregados). Essa crise que assola todo o sistema começa a gerar movimentos importantes, como a compra e venda de ativos, as fusões entre megaempresas (que escondem na verdade, na maioria das vezes, a assimilação de empresas menos competitivas pelas mais fortes), os acordos tecnológicos e a redução com o custo do capital variável por meio da terceirização do trabalho. Baseado nessas características, a crise que inicia nos anos 1970 começa um novo período de concentração de capital, ainda mais brutal que o anterior do pós-guerra. Essa nova fase de avanço da centralização e monopolização de capital foi o que levou as multinacionais, transformadas agora em megacorporações, à conquista global, repartindo suas linhas de produção por todo o planeta, além do avanço tecnológico (microeletrônica, informática, telecomunicações, biotecnologia e novas fontes de energia) que implicam mudanças na gestão do capital e da força de trabalho. Essa brutal concentração de capital e o avanço tecnológico intrínseco a ela é o que criam o movimento atual do capitalismo conhecido como “globalização”, que se trata de uma superação das fronteiras nacionais, no que tange à produção, circulação e o consumo de bens e serviços. Com as mudanças tão dinâmicas e rápidas nas condições de produção, as esferas política, ideológica e cultural das nações também começam a passar por rápidas mudanças. Marini enumerou os principais aspectos cruciais que diferem a globalização de outros momentos do capitalismo:

60

a) A magnitude da população envolvida. Toda população mundial se encontra envolvida no

processo, obviamente,

em papéis

bem

distintos

de produção,

consumo

e,

consequentemente, exploração. Porém, as consequências do “mundo globalizado” parecem alterar a vida de todos humanos ao redor do planeta.

b) Aceleração do tempo histórico. As modificações estruturais e superestruturais, com a difusão da industrialização e da urbanização e as consequências políticas e ideológicas que essas mudanças promovem.

c) Capacidade de produção avassaladora, como resultado do progresso técnico. Uma produção realmente em escala global. Entre 1980 e 1990 se produziu o equivalente a toda a metade do século XX. 28

d) Urbanização e comunicação. A crescente concentração demográfica nas cidades e o avanço sem precedentes da tecnologia informacional, responsáveis pela difusão de conhecimentos e notícias em tempo real e a padronização de gostos e costumes.

Esse novo momento do capitalismo mundial desenvolve a ideologia neoliberal, responsável por superar a baixa na taxa de lucros, por meio da reestruturação da produção. Políticas neoliberais são diretrizes do sistema capitalista surgidas nos fins da década de 1970 para atenuar a baixa taxa de lucros então vigente. Essas medidas objetivam abrir novas áreas de investimento ao capital – com a privatização de empresas públicas, por exemplo – e reduzir custos, utilizando-se da flexibilização e terceirização da força de trabalho, desmonte das políticas sociais do Estado de bem-estar social, entre outras medidas. 29 As medidas de precarização do trabalho levaram a uma inusitada situação nunca antes detectada no capitalismo mundial, o crescimento econômico com aumento do desemprego. Para isso foi necessário quebrar a resistência dos sindicatos, que são colocados de lado nas negociações laborais, e tem sua importância esvaziada. Obviamente, a conjuntura internacional de desestruturação do socialismo no Leste Europeu contribuiu para esse avanço 28

Ruy Mauro Marini. Processo e tendências da globalização capitalista. In: Dialética da Dependência / uma antologia da obra de Ruy Mauro Marini; organização e apresentação de Emir Sader. – Petrópolis, RJ: Vozes; Buenos Aires: CLACSO, 2000. P. 271.

29

Ricardo Antunes. Os Sentidos do Trabalho. Ensaio Sobre a Afirmação e a Negação do Trabalho. 2.ed. Boitempo: São Paulo, 2000. P. 29-31.

61

aparentemente sem limites do neoliberalismo sobre o mundo do trabalho. Nesse momento são lançadas a flexibilização, com modificação na seguridade, estabilidade, jornada e demais características do trabalho, e a terceirização, enxugando a folha de pagamento das grandes empresas. A flexibilização levou a mudanças nos próprios ambientes de trabalho, além do aumento da hierarquização dos postos de trabalho e o número de pessoas com dois empregos para complementar a renda. 30 Os trabalhos terceirizados são contratados por pequenas empresas, com salários desvalorizados, regimes de trabalho precários e possibilidade quase nula de organização política. Soma-se a isso o grande contingente de pessoas simplesmente desempregadas, que não conseguem lugar no novo mercado de trabalho restrito e caem na informalidade. Mesmo que parte desses desempregados consiga ser contratada de modo terceirizado, isso já significa maiores lucros, já que há uma diminuição drástica com os custos relativos ao capital variável. Com sindicatos em frangalhos e partes do processo produtivo e de administração completamente separados, por vezes em continentes diferentes, há um aumento da hierarquização dentro das megacorporações, baseada na qualificação que leva a níveis numerosos e distintos de tipos de emprego e valor da remuneração. Fica mais difícil a identificação de diversos trabalhadores com remuneração e funções distintas, além muitas vezes da distância geográfica, como uma só classe e sua consequente organização política. O conhecimento científico ganha importante papel nessa nova fase do capitalismo, o que nos leva a um novo momento da divisão internacional do trabalho. Os processos propriamente produtivos tendem a serem deslocados para os países pobres, onde os custos com mão de obra menor. Portanto, o processo de internacionalização da produção é algo irreversível no atual estágio do capitalismo. As unidades produtivas são implementadas onde os salários são mais baixos, além de uma série de incentivos concebidos pelos estados dependentes, como flexibilização da legislação ambiental e isenções tarifárias. Os países centrais por sua vez, se especializam cada vez mais nas tecnologias de ponta, com a maior parte da sua força de trabalho deslocada para o setor de serviços, deslocados do processo produtivo. O poder dos países centrais reside então em dois pontos: o monopólio tecnológico, principalmente, o de ponta; e o controle da transferência de atividades industriais às nações atrasadas. A globalização neoliberal é apenas o início da transição para um novo tipo de sociedade capitalista que se encontra ainda em formação, mas que já nos deixa algumas pistas de como

30

Ruy Mauro Marini. Processo e tendências da globalização capitalista... P. 277-280.

62

se opera.

Isto nos coloca frente ao projeto de uma nova divisão internacional do trabalho, que operaria ao nível da própria força de trabalho e não, como antes, através da posição ocupada no mercado mundial pela economia nacional onde o trabalhador atua. Tratar-se-ia agora da participação do trabalhador num verdadeiro exército industrial globalizado em processo de constituição, em função do grau de educação, cultura e qualificação produtiva de cada um. 31

Essa nova situação leva inclusive alguns países a retornarem, nos moldes atuais, a antiga característica de exportador de bens primários. O Brasil, obstante sendo o país mais industrializado da América Latina, tem boa parte de suas receitas no comércio internacional com a venda de minérios e produtos agropecuários, em especial no comércio com a China. A superexploração se acentua no capitalismo neoliberal, já que os países dependentes estão apartados da tecnologia de ponta, sem condições de fazer frente ao avanço das economias centrais, no que tange ao investimento em conhecimento e educação. O capitalismo neoliberal impõe a necessidade de aplicar cada vez mais o saber à produção e aos serviços. Como essa condição não está disponível nos países periféricos, a extração de maisvalia e lucro depende cada vez mais da superexploração do trabalhador. Com a divisão do processo produtivo ao redor do globo, as empresas não mais vendem tecnologia obsoleta aos países periféricos, como na etapa anterior da DIT, mas sim homogeneízam o capital fixo e circulante do processo produtivo mundial. Esse movimento dinamita as barreiras nacionais que restringiam a reprodução de capital. Marini aponta que a lei de valor está dessa forma plenamente restabelecida, devido a essa nova fase de produção e circulação de mercadorias. 32 Isso aumenta a acumulação sem medidas das multinacionais e reforça o processo de monopolização vigente. Concomitantemente, o aumento da intensidade do trabalho sem melhoria na base técnica, ou o aumento da produtividade devido a essa melhoria, concede ao capitalista uma mais-valia e um lucro extraordinários. A busca por esses lucros extraordinários levam as grandes empresas à concorrência para incorporar cada vez mais esse tipo de exploração aos seus processos produtivos. Em outras palavras, a globalização depende da superexploração do trabalho. Com a difusão dos processos técnicos e a homogeneização dos processos produtivos também há uma corrida para igualar a produtividade do trabalho. Isso equivale a dizer que as 31

Idem. P. 281.

32

Idem. P. 285.

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multinacionais operando em escala global e monitorando suas concorrentes, tende a uma corrida frenética pela maior produtividade do trabalho, o que leva, a partir da globalização neoliberal, à internacionalização da própria superexploração do trabalho, inclusive chegando à classe trabalhadora dos países centrais. O domínio das megacorporações multinacionais leva a um novo momento de aprofundamento da dependência ao fazer com os processos produtivos dentro dos países periféricos sejam parte do seu próprio processo produtivo em escala global. Essa situação acaba com qualquer possibilidade de constituição de “burguesias nacionais”. Ao mesmo tempo, tornam também obsoletas as empresas de porte pequeno e médio dentro dos países centrais, que empregam a maior parte da força de trabalho nessas regiões. Devido às inovações das multinacionais e o barateamento dos seus processos produtivos que levam a obtenção de mais-valia extraordinária, esses setores médio e pequeno dentro das nações centrais tendem a perder mais-valia. Para se manterem competitivas nesse novo cenário, essas empresas menores recorrem aos métodos de superexploração de trabalho (maisvalia absoluta + mais-valia relativa + remuneração da força de trabalho abaixo do seu valor real), no intuito de sobreviver a essa perda de recursos. A globalização se baseia no crescimento econômico com aumento do desemprego e da terceirização (que diminui os custos com capital variável) e na maior exploração (superexploração) daqueles trabalhadores que permanecem empregados. Tanto nos países periféricos, quanto nos centrais, a precariedade laboral trazida pela implementação das políticas neoliberais leva à combinação do aumento da jornada de trabalho, a intensificação do mesmo, além do pagamento da força de trabalho abaixo do seu valor real. O que era uma peculiaridade da periferia do sistema tende a se tornar a norma na produção global.

2.5

Neoliberalismo e superexploração do trabalho na periferia

A adoção das medidas neoliberais como parte da incorporação à globalização capitalista levou os países latino-americanos a um novo processo de aprofundamento da superexploração do trabalho. O brutal processo de centralização de capital ocorrido a partir de meados da década de 1970 também se manifestará na América Latina em dois momentos distintos. O primeiro momento corresponde à década de 1980 e à crise da dívida externa dos

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países latino-americanos. Estes configuravam o grupo de países com as maiores dívidas no âmbito internacional devido à necessidade de crédito para sustentar a defasagem tecnológica, a remessa de lucros das multinacionais radicadas em seus territórios, e, para os países com práticas subimperialistas, como o Brasil, a perda de mais-valia de parte da produção industrial que tinha como sua esfera de circulação o mercado internacional. Com a crise nas economias centrais a partir dos anos 1970, os credores internacionais começam o repatriamento de capitais, os quais a maioria estava sendo baseada no endividamento dos países latino-americanos, com destaque ao Brasil. Esse movimento jogará a América Latina na maior crise da fase capitalista dependente de sua história. Essa crise da dívida externa reduziu a massa de mais-valia, a taxa de lucros e a maisvalia não acumulada na região, assim como a capacidade da alta esfera de consumo, impulsionando a crise do Estado. Isso provoca uma queda vertiginosa nos investimentos, aumenta de forma acentuada o desemprego e, consequentemente, a superexploração do trabalho. O maior exército reserva de mão de obra leva a uma rebaixa generalizada nos salários, jogando a maior parte das famílias brasileiras (e nos demais países latinoamericanos) abaixo da linha da pobreza. O índice chegava a 41% das famílias da região. 33 A crise foi de tal magnitude que colocou em xeque os governos ditatoriais na região, incluindo a ditadura brasileira. A crise da dívida foi o canto do cisne para os militares que colocaram em marcha seu plano “lento, gradual e seguro” de transição. Ao mesmo tempo, cresceu o descontentamento da população com a situação de pauperização extrema provocada por duas décadas de arrocho salarial. O crescimento da esquerda assusta a elite brasileira, com a fundação do Partido Democrático Trabalhista (PDT) de Leonel Brizola, o Partido dos Trabalhadores (PT) liderado por Luiz Inácio Lula da Silva, a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST). O freio para as reivindicações populares virá no plano estrutural34 com a segunda etapa do processo de centralização do capital globalizado na região, já na década de 1990, com a adoção dos ideais neoliberais no chamado Consenso de Washington. As medidas colocadas em prática consistiam na liberalização do comércio, abrindo o mercado aos importados, sobrevalorização cambial, a privatização de estatais e a necessidade de manutenção de um superávit comercial como garantia de pagamento da dívida. No Brasil, a adoção das medidas neoliberais se inicia com o governo Fernando Collor, 33

Dados da CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe da Organização das Nações Unidas). IN: Carlos Eduardo Martins. Op Cit. P. 304.

34

Toda a análise do processo de transição virá na segunda parte desse trabalho.

65

em 1990. Neste período se inicia a desmontagem do Estado, a demissão e o rebaixamento dos salários de funcionários públicos e a abertura do mercado aos artigos importados. O discurso de Collor era identificar os servidores como “marajás” que viviam sem trabalhar, sugando o dinheiro público. Ao mesmo tempo, difundia a vaga ideia de “modernização”, como sinônimo de compra de bens duráveis com alta tecnologia, justificando a abertura do mercado. A essência por trás dessas ações era mostrar o Estado como incompetente e corrupto e a esfera privada como exemplo de eficiência e produtividade. Além de favorecer a maior exploração do trabalho nos moldes neoliberais, ou seja, aumentando o número de desempregados, rebaixando assim o valor dos salários. Todas essas medidas sofrem uma pequena pausa com os escândalos de corrupção que terminam no impedimento de Collor, mas são rapidamente restabelecidas e aprofundadas nos governos seguintes de Itamar Franco (1992-1994) e Fernando Henrique Cardoso (1994-2002). O neoliberalismo ganha todos os seus contornos nos dois mandatos de FHC, com o gigantesco programa de privatizações de estatais, sucateamento de serviços públicos e sobrevalorização da nova moeda, o real. Essas medidas aumentam a desnacionalização da economia e a ação de monopólios estrangeiros no país, assim como geram mais desemprego, terceirização e flexibilização do trabalho, intensificando a superexploração. Essas medidas concentram ainda mais a renda, pois levam ao aumento do desemprego, a quebra de empresas nacionais devido à concorrência com os importados, e a retirada do Estado dos serviços e garantias públicas, áreas onde quem mais depende são justamente as pessoas mais pobres. O aumento do desemprego amplia o exército reserva de mão de obra, o que permite rebaixar salários, aumentando a superexploração. Parte da força de trabalho empregada passa ao regime terceirizado, o que precariza as condições de trabalho desses indivíduos e aumenta os lucros. O neoliberalismo modifica novamente a DIT, impondo aos países periféricos uma nova fase da dependência. Esses países agora têm o papel de exportadores de commodities, bens de consumo e componentes industriais de valor agregado inferior ou médio. Como já dito antes, aos países centrais reservam-se as tecnologias de ponta, assim como o monopólio do processo produtivo em escala global. A modificação na superexploração do trabalho nos países dependentes produzida pela globalização capitalista se dá pelo fato de que agora o desemprego se torna a forma de aumentar a massa de mais-valia, forçando o valor dos salários para baixo. Essa situação ocorre devido à forma com que o neoliberalismo atua no processo de centralização de capitais na América Latina, levando a incorporação dos parques produtivos

66

da região ao processo produtivo global. A abertura dos mercados internos aos produtos importados intensifica o processo de monopolização, já que muitas empresas latinoamericanas não aguentam a concorrência. Ao mesmo tempo, há a introdução por parte das multinacionais de novas máquinas, fruto do progresso técnico-científico da terceira fase da revolução industrial, em suas fábricas na periferia do sistema, o que reduz a necessidade do número de empregados. Vimos que na nova fase do capitalismo, o saber e o conhecimento jogam papel fundamental na economia de mercado, porém, os países dependentes não podem aumentar em demasia a qualificação dos seus trabalhadores, já que depende da superexploração e essa de rebaixar o valor da força de trabalho. A crescente absorção de tecnologias intensivas em ciência e subjetividade, associadas à convergência microeletrônica e à revolução científico-técnica, substitui o dispêndio físico e industrial de força de trabalho. Isso gera um aumento do excedente de força de trabalho que se torna dramático com os entraves à sua qualificação proporcionados por uma regulação econômica fundada na depreciação de seu valor. A maior produtividade trazida pelas novas tecnologias transforma-se em grande parte em desemprego aberto ou oculto sob a forma do desalento ou da precarização do trabalho. Esse movimento é acompanhado por um profundo processo de flexibilização da legislação trabalhista que busca eliminar os direitos do trabalhador para produzir seu fundo de consumo e aumentar a rotatividade no emprego. 35

Sendo assim, a perda de mais-valia com a abertura do mercado interno aos produtos importados somente se torna possível pela redução dos salários e da massa de salários. Para isso, o desemprego estrutural atua como forma vital, tendendo ser mais dinâmico que o crescimento da intensidade do trabalho (minado pelo avanço tecnológico) e da qualificação do trabalhador (impossível para as condições de rebaixamento do valor da força de trabalho no capitalismo dependente). A forma de conceber a mais-valia extraordinária no neoliberalismo da periferia é manter o desemprego em alta para a permanência do rebaixamento do valor dos salários. Não é por acaso que a velocidade da expansão anual no desemprego no Brasil entre 1989 a 2003 é de 9,6%, maior que a média latino-americana, de 5,4%. A precarização também avançou, com o número de trabalhadores sem carteira assinada subindo de 35,1% para 45,1% entre 1990 e 1996 no nosso país. 36 A superexploração perpassa dessa maneira toda a história do capitalismo dependente no 35

Carlos Eduardo Martins. Op cit. P. 306-307.

36

Idem. P. 309.

67

Brasil. Sua tendência no neoliberalismo e na economia globalizada é o aprofundamento mais uma vez, baseado na liberação do comércio de importados, no crescimento da heterogeneidade tecnológica dos países dependentes e o aumento do desemprego pela absorção de tecnologias que diminuem a necessidade de trabalho humano. Devido ao caráter global da atual fase do capitalismo e o processo produtivo espalhado por vários países como fonte da concentração de capital das megacorporações, a superexploração tende a se tornar uma constante em todo o sistema, inclusive nos países centrais. Para a América Latina, ela significa a total impossibilidade de desenvolvimento capitalista autônomo, já que as bases para o desenvolvimento de uma burguesia “nacional” não mais existem (e nem quando supostamente existiram, as contradições do capitalismo dependente levaram as burguesias latino-americanas a optaram pelo desenvolvimento associado). Não resta dúvida, que a libertação da América Latina somente pode se dar pela ação consciente de seus trabalhadores, que para romperem com a dependência, terão que romper com o próprio sistema capitalista. Contra a degradação do trabalho, as condições de vida miseráveis impostas a boa parte da população e o desemprego estrutural que garante a rebaixa dos salários e a consequente superexploração, somente a organização política, a consciência de classe e a tomada do poder em caráter revolucionário serão capazes de proporcionar o bem-estar e o desenvolvimento soberano de nossos povos.

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3

ATUALIZAÇÃO HISTÓRICA E MODERNIZAÇÃO REFLEXA

Os conceitos elaborados por Darcy Ribeiro foram feitos para o estudo do autor sobre antropologia da civilização, num esforço intelectual de proporções magnânimas para compreender e explicar todas as alterações protagonizadas pela humanidade ao longo de toda a sua existência. As obras de Darcy dedicadas a esse intento tratam de processos civilizacionais de longa duração, da formação de estruturas socioeconômicas das mais variadas e de etapas de progresso técnico-científico que explicam todos os grandes movimentos da história humana. Sendo assim, nosso esforço se direciona a trabalhar somente com alguns das dezenas de conceitos formulados pelo autor, escolhidos pela capacidade de auxiliar na investigação historiográfica proposta nesse trabalho. Foi necessário para tanto, uma comparação cuidadosa entre os conceitos civilizacionais do antropólogo Darcy, de modo que não entrassem em conflito com as elaborações teóricas de outros autores utilizados na dissertação e que pertencem a outros campos do conhecimento humano. O exercício foi possível, pois, apesar de não ser um teórico do campo econômico e da área relacionada à dependência, as ilustrações de Darcy guardam um diálogo profundo com esse campo. Por sinal, Darcy Ribeiro aparece como membro da mesma geração intelectual de Ruy Mauro Marini, viveram os mesmos dilemas históricos da sociedade brasileira e a data de lançamento das obras teóricas de ambos os autores não apresenta grande intervalo, estando concentradas nas décadas de 1960 e 1970. Assim, selecionamos para o presente trabalho, os conceitos de “atualização histórica”, “modernização reflexa” e “atraso histórico”, com os quais, podemos enriquecer as ideias aqui expostas. Tais ideias guardam uma aproximação com o conceito de dependência, como é explicito na utilização desse próprio conceito em algumas passagens da obra de Darcy que utilizamos como base teórica nessa dissertação, “O processo civilizatório”.

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3.1 Atualização histórica, modernização reflexa e atraso histórico

No seu esforço de entendimento da história humana como a sucessão de processos da evolução sócio-cultural, Darcy Ribeiro aponta a importância do progresso técnico-científico como determinante para o desenvolvimento dos povos. Se tratando da sociedade capitalista, os apontamentos do autor colocam em voga a construção desse sistema em escala planetária, onde em cada uma das suas fases, mais contingentes populacionais são inseridos nas relações sociais de produção capitalistas. A forma como os povos adentram o mundo do capital adquire formas distintas dependendo da maneira como a adoção do progresso técnico-científico concebido pelo capitalismo é realizada. O desenvolvimento da tecnologia industrial, ou a importação da mesma, seja por imposição ou concessão, definem as posições dos povos dentro do sistema capitalista internacional. Dessa maneira, Ribeiro qualifica como “aceleração evolutiva” a ação de renovação autônoma do processo produtivo por parte de alguns povos. Isso significa compreender como alguns povos desenvolvem tipos de tecnologias que lhe permitem uma estrutura produtiva mais eficaz e competitiva e realizam tal tarefa de forma soberana. Esse movimento lhes permite renovar suas instituições sociais para que se adequem a nova base social e um lugar privilegiado no cenário internacional. 37 Para o mundo contemporâneo, tal conceituação está presente no centro do sistema capitalista. Os Estados Unidos, a Europa Ocidental e o Japão, se desenvolvem de forma autônoma, com poder de dominação a outras áreas do sistema, graças ao controle da tecnologia de ponta, ou seja, do processo produtivo mais avançado que existe. No entanto, para esse trabalho nos interessa o outro lado do sistema capitalista. Para isso, é necessário compreender a ideia de “atualização histórica”. Esse conceito é o fenômeno o qual vivem os povos que são, através da história, compulsivamente engajados em sistemas mais evoluídos tecnologicamente. Como esses sistemas tecnológicos não foram fruto do seu próprio desenvolvimento, mas sim, impostos por outros povos, a inserção nesses processos produtivos se dá com perda da autonomia. A atualização histórica tem como característica fundamental os sucessivos processos de “modernização reflexa”, com consequente perda de autonomia. A modernização reflexa é a 37

Todos os conceitos de Darcy Ribeiro aqui apresentados estão em: Darcy Ribeiro. O processo civilizatório. S/l: Círculo do livro, 1978. P. 57-58.

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forma como as sociedades dependentes absorvem tecnologias mais avançadas concebidas pro outros povos. Caso essa absorção não seja feita de forma soberana (como foram os processos de industrialização dos Estados Unidos e do Japão a partir do século XIX), ela só pode resultar em perda da autonomia econômica e política, ficando os povos atrasados reféns do centro do sistema. O próprio conceito de “atraso histórico” é definido por Ribeiro como sociedades em que sistemas adaptativos se fundam numa tecnologia de baixo grau de eficácia produtiva comparada ao alcançada por outras sociedades contemporâneas. Isso significar dizer sociedades que coexistem com outras possuidoras de tecnologias mais avançadas nos seus processos produtivos, e por isso, tendentes a serem dominadas pelas últimas. A atualização histórica guarda ainda duas características para os povos subjugados pela dominação daqueles que desenvolveram sistemas mais avançados de produção, uma progressiva e outra regressiva. Progressiva porque colocam esses povos atrasados em contato com tecnologias mais avançadas e os incorporam a esse sistema. Regressiva, porque essa incorporação é feita de maneira compulsória e dependente, impondo situações dramáticas para os povos dominados, traduzida em deformações socioeconômicas e culturais, pauperização crescente, dominação internacional e até, em casos mais graves, na destruição total de uma sociedade. Darcy exemplifica essa teoria com uma parte dessa história, a passagem de colônia para país dependente e dentro do esquema de economia exportadora: No corpo desses processos de incorporação ou atualização histórica é que se devem situar os movimentos através dos quais uma sociedade sofre os efeitos indiretos de alterações havidas no sistema adaptativo de outras sociedades. Em muitos casos, esses efeitos produzem profundas transformações progressistas em seu modo de vida, mas conduzem fatalmente ao estabelecimento de relações de dependência entre a sociedade reitora e a sociedade periférica, sujeita à ação reflexa. Tal ocorre, por exemplo, com a difusão dos produtos da Revolução Industrial, como instalações de ferrovias ou de portos que “modernizaram” enormes áreas em todo o mundo extraeuropeu, apenas para fazê-las mais eficazes como produtoras de certos artigos, mas que, nada obstante, a tornaram importadoras de bens industriais. Por esse processo é que as populações latino-americanas,com a independência, desatrelaram-se da condição de áreas coloniais de uma formação mercantil-salvacionista para cair na condição de áreas neocolonialistas de formações imperialistas-industriais. 38

38

Idem. P. 58.

71

3.2

Darcy Ribeiro e Ruy Mauro Marini. Por uma proposta de diálogo

O Brasil e toda a América Latina sempre se configuraram no capitalismo internacional como atrasados, compulsoriamente impelidos a desempenhar papéis subalternos na periferia do sistema. No pensamento de Darcy Ribeiro, passamos por três processos de atualização histórica, sempre renovando nosso atraso e nossa vassalagem ao centro do sistema. Primeiramente foram os indígenas e negros que ao entrarem em contato com os avanços tecnológicos nos tempos das grandes navegações e do alvorecer do capitalismo, foram engajados no sistema como força de trabalho escravas, permitindo a acumulação de capital por parte dos centros reitores. As consequências foram brutais para esses povos, traduzindo-se em desfiguração étnica e aculturação, uma carnificina genocida e, para alguns dos povos indígenas e africanos, a sua total extinção. A segunda atualização histórica foi representada pela passagem da nossa condição de colônia de Portugal (e Espanha para o restante da América Latina), para a de nações dependentes frente à Revolução Industrial iniciada no centro do sistema. Tornamos-nos proletários externos que contribuíram largamente com o avanço técnico-produtivo das nações centrais, enquanto passávamos por sucessivas etapas de modernização reflexa que, se por um lado nos permitiram avançar em relação à condição anterior, nos manteve em situação de dependência. As modernizações reflexas a partir da Revolução Industrial para a periferia equivalem às etapas da dependência – baseadas na divisão internacional do trabalho - quais concebidas por Ruy Mauro Marini (economia exportadora, substituição de importações, investimento direto do capital estrangeiro no mercado interno e o neoliberalismo). Essas modernizações reflexas guardam cada uma no seu momento, um salto tecnológico de caráter dependente, que fazem parte de um processo de atualização histórica, no qual avançamos exatamente da forma que o sistema capitalista internacional necessita para melhor se reproduzir em lucros e o imperialismo em dominação sobre nossas nações atrasadas. A terceira atualização histórica que o Brasil passava segundo o pensamento de Darcy Ribeiro é a que se abre a partir da globalização capitalista, com a internacionalização dos processos produtivos: A terceira [atualização histórica] é a que as nossas classes dominantes gerenciais, na qualidade de associados das corporações multinacionais, estão promovendo em nossos dias com a maior eficiência. À luz dos conceitos de atualização versus

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aceleração, fica evidenciado que seus esforços de modernização só visam nos atrelar à civilização pós-industrial, outra vez na condição de povos dependentes que continuarão contribuindo tanto para a prosperidade alheia, que não poderão cuidar da sua própria prosperidade. 39

Os saltos tecnológicos que observamos ao longo da história brasileira, contém um caráter progressista por nos colocar em contato com tecnologias mais avançadas, as quais fomos incapazes de desenvolver de forma soberana. Todavia, elas representam modernizações reflexas, várias etapas de um processo de atualização histórica. Isso equivale dizer que a difusão da tecnologia nas nações mais atrasadas é uma necessidade do sistema em certos momentos, única e exclusivamente, porque as nações centrais já dispunham naquele momento de uma tecnologia mais avançada e podem repassar à periferia, processos produtivos mais defasados. As nações atrasadas funcionam dessa forma como proletários externos dos países centrais, seja quando nos especializamos em exportar bens primários para promover o progresso técnico das nações industrializadas, seja quando nos tornamos compradores de máquinas pesadas para iniciar nossa própria industrialização, ou ainda, quando voltamos à circulação no mercado externo, agora com produtos industriais de baixa ou média composição. E no novo momento da economia capitalista globalizada, recebemos os parques produtivos das megacorporações, enquanto as nações centrais ficam com a tecnologia de ponta, resultado dos avanços na microeletrônica, na informática e na biotecnologia, além do monopólio dos processos produtivos realizados em escala global. Estamos sempre em situação de atraso histórico, se desenvolvendo em processos produtivos de tecnologia defasada se comparada a povos contemporâneos a nós. Em todas essas elucubrações, o pensamento de Ribeiro se aproxima do de Marini, um complementa o outro, ainda que falem “idiomas” de conhecimento distintos (o primeiro antropólogo e o segundo economista). A análise de Ribeiro nos auxilia na compreensão de que a dependência é parte inerente do sistema capitalista internacional, e que seu funcionamento somente é possível com especializações produtivas em regiões diferenciadas do planeta. Centro e periferia possuem suas dinâmicas próprias, porém interligadas dialeticamente, no que operam sistemas de dominação em que se realizam os processos de atualização histórica por meio de modernizações reflexas de tempos em tempos. A autonomia para uns e a dependência para outros não ocorre por infortúnio, ou 39

Idem. P. 23.

73

determinismos geográficos e raciais. Nem tampouco, como preconiza o pensamento “desenvolvimentista”, nos encontramos num processo de subdesenvolvimento que corresponde a uma etapa anterior ao avanço equiparado ao dos países centrais. Dentro dessa concepção, os povos desenvolvidos e subdesenvolvidos do mundo moderno não se explicam como representações de etapas distintas e defasadas da evolução humana. Explicam-se, isto sim, como componentes interativos e mutuamente complementares de amplos sistemas de dominação tendentes a perpetuar suas posições relativas e suas relações simbióticas como polos do atraso e do progresso de uma mesma civilização. No mundo contemporâneo, são desenvolvidas as sociedades que se integram autonomamente na civilização de base industrial por aceleração evolutiva; e são subdesenvolvidas as que nela foram engajadas por incorporação histórica como “proletariados externos”, destinados a preencher as condições de vida e de prosperidade dos povos desenvolvidos com os quais se relacionam. 40

Essa afirmação refuta cabalmente duas leituras errôneas acerca da diferença de desenvolvimento dos povos contemporâneos (da mesma forma como faz a teoria marxista da dependência). A primeira, a de que os povos dependentes são sobrevivências de etapas passadas da existência humana. A segunda, e que mais nos interessa nesse trabalho, a de que as sociedades desenvolvidas seriam um modelo final e definitivo do capitalismo, para o qual, apesar de todos os entraves, todas as sociedades dependentes se dirigem. Não estamos em “vias de desenvolvimento” como a mídia comercial e os intelectuais burgueses expressam em todo momento. Estamos sim, cada vez mais aprofundando nossa condição de nação dependente, baseada na superexploração do trabalho e com uma constante defasagem tecnológica em relação ao centro do sistema. Convertemos-nos, dia a dia, geração a geração, em proletários externos, que criam o desenvolvimento de um lado e o subdesenvolvimento do outro. A América Latina se configura dessa forma, tanto para Darcy Ribeiro quanto para Ruy Mauro Marini, como uma formação social própria, o capitalismo dependente. Ribeiro adiciona o conceito “neocolonial”, o que em nenhuma hipótese lhe afasta das ideias concebidas pela teoria marxista da dependência. Seu conceito de neocolonial serve para mostrar a permanência de nossa vassalagem internacional, com nova roupagem, porém diferente da época do colonialismo ibérico. Assim como Marini defende que a dependência é diferente da situação colonial, apesar de guardar suas conexões, como a circulação de nossas mercadorias no âmbito internacional, a superexploração do trabalho e o mercado interno reduzido.

40

Idem. P 59.

74

A única forma para o Brasil e a América Latina atuais romperem com o atraso histórico e passar de uma atualização histórica para uma aceleração evolutiva, ou seja, de povos dependentes, para povos soberanos; é o rompimento com o próprio sistema capitalista, já que as atuais características deste impedem a formação de sistemas capitalistas autônomos na periferia. Apesar de uma linguagem diferenciada da apresentada pela teoria marxista da dependência, Darcy Ribeiro esclarece os mesmos problemas e propõem soluções semelhantes para a questão da dependência na periferia. Por isso, se torna uma importante contribuição para o objetivo desse trabalho. A crise dos anos 1980 já era o período de transição para uma nova modernização reflexa, no qual o Brasil como economia dependente, se insere mais uma vez com atraso histórico. O que Ribeiro chama de “modernizações reflexas” dentro do processo de atualização histórica dos povos atrasados, nada mais é do que as redefinições da divisão internacional do trabalho (DIT), como colocadas por Ruy Mauro Marini. O Brasil, assim como os demais países latino-americanos, passava naquele momento da fase de investimento direto do capital estrangeiro no mercado interno para o neoliberalismo. Os países atrasados são adequados a suas novas funções de, concomitantemente, serem exportadores de commodities, bens de consumo e componentes industriais de valor agregado inferior ou médio, enquanto aos países centrais se reserva o monopólio das tecnologias mais avançadas e o controle do processo produtivo mundial. Vale lembrar que a fase neoliberal do capitalismo internacional corresponde, na periferia, ao papel central do desemprego como mecanismo da superexploração do trabalho, rebaixando salários e aumentando a massa de valor. Isso se dá pela adoção de tecnologias mais avançadas, que dispensam a quantidade de esforço humano necessária anteriormente. Ou seja, a fase neoliberal evidencia mais uma vez os cunhos progressivo (adoção de tecnologia mais avançada) e regressivo (a permanência da dependência e a desagregação social) da atualização histórica. Com isso, os conceitos desenvolvidos por Darcy Ribeiro nos ajudam a pensar as várias etapas da dependência e enriquecem a reflexão acerca dos problemas enfrentados pelo Brasil em sua história recente. Seu diálogo com os demais teóricos aqui utilizados é preponderante para o melhor entendimento da dinâmica histórica pela qual nosso país vem passando nas últimas décadas.

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GOVERNOS DEMOCRÁTICOS OU PÓS-DITATORIAIS? POR UMA REFLEXÃO SOBRE NOSSO ATUAL SISTEMA DE GOVERNO

Passada a discussão conceitual sobre a estrutura socioeconômica brasileira e os conceitos fundamentais de dependência, superexploração do trabalho e outros, cabe agora refletirmos sobre a esfera política dentro da análise do objeto de pesquisa aqui proposto. Para esse intento, faremos uma reflexão sobre o real significado de “democracia” e realizaremos uma comparação com nosso atual sistema de governo, inaugurado na segunda metade da década de 1980. Vamos comparar as características de um sistema democrático, boa parte delas presentes na nossa atual constituição, com a realidade vivida pelos cidadãos brasileiros. A base teórica para nossa análise do sistema político está calcada no pensamento do cientista político argentino Atílio Boron, como exposta em sua obra “Aristóteles em Macondo: Reflexões sobre poder, democracia e revolução na América Latina”. Pensador contemporâneo e muito ativo no cenário intelectual latino-americano, Boron contribui de forma determinante para estudarmos a história recente da América Latina e as atuais mudanças que ocorrem em nossa região. Tendo como ponto de partida a separação entre a essência e as aparências da democracia, Boron formula os conceitos de “fetichismo democrático” e “regimes pósditatoriais”, que nos ajudam na presente proposta de trabalho. Sob a luz de suas ideias podemos refletir sobre o que realmente são os regimes políticos atuais de quase toda a América Latina, incluindo o Brasil. Mais do que isso, quais são as possibilidades de erigir um sistema democrático no capitalismo e suas alternativas.

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4. 1

Essência e aparência da democracia. O período pós-ditatorial e o fetichismo democrático

A obra de Boron guarda fundamental importância para o trabalho aqui exposto, pois tem como objetivo principal redefinir os atuais sistemas políticos da América Latina. Os sistemas políticos referidos pelo autor dizem respeitos a nossas pretensas democracias atuais, nascidas em meados da década de 1980, quando nossa região passou por processos políticos que encerraram décadas de ditaduras militares. Como temos por objetivo nessa dissertação, analisar as razões da dependência e da superexploração do trabalho permanecerem e se aprofundarem com a troca de regime político, nosso trabalho está dentro de um constante diálogo entre a economia, o social e o político. Já definimos nas páginas anteriores nossos marcos teóricos para os dois primeiros. Cabe agora delinearmos nossa reflexão sobre a superestrutura política. Para isso, como está exposto no título da dissertação e na utilização de aspas para se referir à “democracia” liberal implementada no Brasil a partir de 1985, entendemos a atual realidade política do nosso país não como democrática, mas sim, como “pós-ditatorial”. Nesse ponto, é que a leitura e o entendimento dos atuais sistemas políticos da América Latina como elaborado por Boron se faz necessário. A “democracia” implementada no Brasil a partir do fim da Ditadura guarda essencialmente uma retórica democrática, porém, não corresponde com o real significado desse sistema político. Essa “retórica democrática” estaria presente na implementação dos direitos civis presentes na Carta Magna, assim como em traços do aparelho institucional do nosso Estado. A realização de eleições periódicas para os principais cargos da República e a existência do multipartidarismo contribuem para dar uma aparência democrática ao sistema político atual no Brasil e na América Latina em geral. Exatamente dessa forma, as peculiaridades levantadas acima fazem com que as ciências sociais e seus intelectuais identificados com o liberalismo e o pensamento dominante apontem a existência de um sistema democrático na sociedade brasileira. A relação democracia = sistema eleitoral multipartidário se trata de uma leitura errônea do conceito de democracia, perpetuada pelo objetivo de classe (com papel determinante da intelectualidade de direita) de mascarar as mazelas sociais e econômicas. Democracia não

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significa o postulado acima, mas sim, governo do povo (o demos), da maioria para a maioria. É tendo como ponto de partida essa definição aristotélica, que Boron pretende redefinir os sistemas políticos da atualidade em nossa região. É dessa forma que a redefinição proposta por Boron se encontra com a revisão da história recente do Brasil proposta nesse trabalho. Não é possível taxar de democráticos, governos (Collor, Itamar e FHC) que aprofundaram a desigualdade social ao implementar o neoliberalismo no país. Como analisamos anteriormente, a Nova República não rompe com os problemas estruturais do Brasil. Dessa maneira, fica impossível construir uma democracia, ou seja, um governo da maioria da população tendo como objetivo a satisfação e a solução dos problemas dessa mesma maioria. O neoliberalismo implementado nos tempos “democráticos” aprofunda a dependência, ao impor uma desnacionalização brutal dos meios de produção brasileiros, que passam às mãos do monopólio estrangeiro, representado pelas megacorporações multinacionais. A privatização desvairada implementada a partir de 1990, aumentou os índices de desemprego, a ponto de colocá-lo como o principal eixo da superexploração do trabalho. A produção de massa de valor passa a estar intimamente ligada ao desemprego, que permite a baixa dos salários, em um momento em que os avanços tecnológicos aumentam a produtividade. Em hipótese nenhuma os sistemas de governo que possuam tais características podem ser chamados de “democracias”. A existência de eleições e um sistema multipartidário não são garantias de um verdadeiro sistema democrático se as medidas tomadas para todo o corpo da nação forem as mencionadas nos parágrafos anteriores. Precisamos separar o que é “aparência” e “essência” desse regime político para melhor compreendê-lo. O que nosso atual sistema político guarda é as aparências de um regime democrático. Supostamente, possuímos eleições “livres” decididas pelo sufrágio universal. As relações sociais são mediatizadas pelo direito e as atribuições indeléveis de nossa cidadania se encontram em nossa constituição. No entanto, a essência do sistema democrático, ou seja, o governo da maioria para a maioria, não se encontra presente. Essa situação é possível a partir do momento em que as aparências, as características que estariam ligadas à democracia, são mediatizadas pela força inconteste do capital. Não obstante, o capitalismo, pela sua própria característica de busca insaciável pela acumulação, somente pode atender aos interesses da minoria. Essa minoria se torna cada vez mais restrita com o avanço do capital monopolista e o processo de concentração de capital. A manifestação aparente da democracia, ou seja, a existência de elementos que

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pertenceriam a um sistema democrático é exaltada pela ideologia dominante como a própria democracia em si. Vivemos, portanto, sob a égide do “fetichismo democrático”, termo cunhado por Boron41, para demonstrar como o capitalismo trabalha uma maquiagem de democracia que funciona como legitimação do próprio sistema capitalista. Com a concentração de capital no seu controle sobre a política, nossas “democracias” não servem à maioria e nem são compostas por ela. O regime atual brasileiro (e dos demais países latino-americanos, com exceção de Cuba, Venezuela, Bolívia e Equador) está mais identificado como “oligarquia” ou “plutocracia”, já que é um governo que garante o controle da sociedade por poucos, ou pelos endinheirados (que sempre são poucos). Se o poder político é mantido por poucos, de maneira nenhuma nosso sistema de governo pode ser chamado de “democrático”. Nossa “democracia” assim é chamada não pelo o que realmente é, mas por ter substituído uma ditadura. Sendo assim, adotaremos a nomenclatura criada por Boron de regimes “pós-ditatoriais”. 42 A retórica democrática dos regimes pós-ditatoriais ganha contornos muito fortes, pois as próprias forças de esquerda usam o termo “democracia” para identificar o atual regime. Como vários partidos, organizações e movimentos sociais de esquerda se organizaram para lutar pelo fim da Ditadura, a conquista desse objetivo foi assimilada como construção de um sistema político democrático. Infelizmente, uma análise profunda da história brasileira recente mostra que, apesar do árduo trabalho de muitas forças bem intencionadas, essa tentativa naufragou. Vivemos décadas após o fim da Ditadura e muito dos malefícios trazidos por esses anos nefastos permanecem em nossa sociedade. Nossa democracia se torou refém de espetáculos midiáticos acerca de casos de corrupção e processos eleitorais, onde não aparece o povo. Definitivamente, não há nenhum sinal de governo da maioria para a maioria. A “redemocratização” no Brasil coincide com a falência do keyneseanismo, o fim da política de bem-estar social por parte do Estado e a adoção das ideias do neoliberalismo. Se essa foi a tendência global a partir da virada da década de 1970 para 1980, nos países periféricos, essa mudança significou uma posição muito mais dramática para as massas populares. Isso porque a população brasileira nunca conheceu uma política de bem-estar social tão ampla quanto a da era de ouro do welfare state estadunidense ou europeu. As populações latino-americanas também foram pegas pela Crise da Dívida, a pior crise 41

Atílio Boron. Aristóteles em Macondo: reflexões sobre poder, democracia e revolução na América Latina; tradução, Fernando Correa Prado. Rio de Janeiro: Pão e Rosas, 2011. P. 31. 42

Idem. P. 29.

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da história do capitalismo dependente na região. O neoliberalismo, portanto, foi implementado em um momento em que já havia uma crescente pauperização generalizada da população, e num sistema em que a proteção social do Estado existia, mas não de maneira tão eficiente quanto nos países centrais do sistema capitalista. A política econômica irresponsável da Ditadura junto aos choques do petróleo fez do Brasil o país com a maior dívida externa do mundo, em um momento onde há uma expatriação de capitais devido à crise mundial. Passada a transição “democrática” no Brasil, o sistema político foi dominando pelos defensores do neoliberalismo no intuito de colocar em marcha as mudanças necessárias para a adoção desse sistema de ideias. O Brasil passa a implementar o receituário neoliberal já tarde em relação ao resto do mundo, inclusive a países latino-americanos como Chile, laboratório de testes do modelo neoliberal sob a ditadura fascista de Pinochet; e o México. O caso mexicano é emblemático de como um “aluno modelo” do mercado é alçado a exemplo de como se fazer reformas que concederiam crescimento econômico, para logo após ser alvo de ataques especulativos e mergulhar numa profunda crise. O neoliberalismo, como novo momento de modernização reflexa, inviabilizou a implementação de um regime democrático ao final da Ditadura. A própria diretriz neoliberal do Estado mínimo, ao retirar do regime estatal e público, as obrigações de fornecer os direitos elementares a cada cidadão assim como os serviços públicos, mercantiliza esses próprios direitos. As garantias de saúde, educação, transporte, habitação, entre outros, entram em contradição com os objetivos do neoliberalismo de aumentar a acumulação de capital.

4.2

Características do sistema político pós-ditatorial no Brasil

Devemos entender de que maneira o atual sistema político não pode ser chamado de “democrático”, mas sim, “pós-ditatorial”. O primeiro ponto a ser analisado é a questão da igualdade. A defesa dessa ideia sempre foi uma utopia democrática. Para nos restringirmos à era moderna, esse ideal foi propagado a todo o Ocidente pela Revolução Francesa, fazendo parte de todos os sistemas constitucionais a partir de então e tornando-se um conceito quase que universal. Da mesma grandiosidade que houve a dispersão da ideia de igualdade, a tentativa de sua aplicação sempre foi um fracasso. A igualdade como simples bandeira política é algo fácil de

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ser imaginado e propagado, mas terrivelmente inalcançável no capitalismo. Da queda da Bastilha em diante, assistimos somente a separação cada vez mais drástica entre pobres e ricos, além da monopolização da riqueza a níveis inimagináveis. O neoliberalismo ‘à brasileira’ aumentou drasticamente a pobreza no país, e, consequentemente, a distância entre pobres (a maioria) e ricos (a oligarquia plutocrata). Não há democracia com um regime político que é construto de uma reorganização produtiva em nível global para melhor explorar a maioria. Além disso, a disparidade se dá não só entre os seres humanos, mas também entre as nações. O neoliberalismo, como vimos anteriormente, intensifica o caráter dependente das economias latino-americanas, adaptando-as ao novo momento da divisão internacional do trabalho. Portanto, não vemos também qualquer rastro de igualdade nas relações internacionais. A Nova República passa por dois momentos distintos correspondentes às fases do neoliberalismo na periferia. A primeira, da crise da dívida dos anos 1980, período mais tenebroso do capitalismo dependente, com praticamente a falência do Estado brasileiro. Esse período deslegitima a Ditadura e contribuiu para a Transição. E ainda sob seus signos se inicia a “democracia”. O segundo momento, o da implementação do Consenso de Washington, aplica as determinações neoliberais, principalmente a flexibilização e terceirização do trabalho, o desemprego estrutural – fundamental para a superexploração do trabalho nesse momento – e as privatizações de empresas estatais e serviços públicos. Ao final dos anos 1990, toda a região, incluindo nosso país, passa por forte recessão, a ressaca neoliberal, com a desvalorização brutal do real e a restrição ao consumo novamente no cotidiano de nosso povo. A falta da igualdade em nosso regime pós-ditatorial fica evidente também na disparidade entre o nível de vida dos governantes em relação aos governados. Em um regime verdadeiramente democrático não deveria haver diferença entre os políticos e o restante da sociedade, até mesmo porque, políticos não fazem parte de uma classe especial, eles são representantes dessa própria sociedade. Os políticos vivem hoje nababescamente, com um padrão de vida infinitamente superior à média da população. Os próprios políticos já se candidatam aos cargos no intuito de que entrar no mundo da política é subir de vida, ser rico e ter privilégios. Não há a menor intenção em cumprir o dever de servir à sociedade. Esse sentimento de avareza e individualismo, penetra no imaginário social se manifestando de várias formas. Desde o afastamento do povo dos assuntos políticos, que levam ao niilismo do “são todos iguais”, até o individualismo transformado em desejo do

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“se estivesse lá faria o mesmo”. Obviamente, que a riqueza opulenta de nossa plutocracia política se dá intimamente ligada à corrupção. A existência da corrupção de maneira tão descarada no meio político é mais uma demonstração de como não vivemos numa democracia. O posicionamento político de nossa classe política não se dá por objetivos, ou ideologias, mas simplesmente por quem pagar mais, virando uma mercadoria. Nada mais apropriado para uma sociedade baseada no “deus mercado”. Uma democracia deveria ter direitos inalienáveis dos seus cidadãos. De fato, nosso governo pós-ditatorial, levou a mais democrática constituição já feita no Brasil. No entanto, não é democracia um regime que coloca palavras bonitas no papel, mas sim o que realiza essas palavras e transforma ideias políticas em práticas cotidianas. Uma sociedade que mercantilizou direitos cidadãos, ou que sequer esboçou encontrar soluções para fazer valer o que está na própria constituição (como o direito à habitação), não pode ser democrática. As liberdades democráticas foram sufocadas pelo capitalismo. Em um sistema onde quem tem mais dinheiro tem mais poder, as liberdades democráticas somente são plenamente gozadas pelos que têm poder financeiro. O preço de uma campanha política inviabiliza a candidatura de mais de 90% da população brasileira. Tais campanhas são feitas com quantidades de cifras indecentes, que, além de inviabilizar a participação essencialmente democrática, faz com que todos os políticos sejam dependentes de doações alheias, principalmente dos grandes interesses financeiros e empresariais. Como diz a expressão popular: “quem paga a banda, escolhe a música”. Uma vez no poder, os políticos eleitos precisam retribuir o favor de seus patrocinadores, privatizando empresas e serviços públicos, agir em prol da especulação imobiliária, ou superfaturando obras, além de outras facilidades. Mais uma vez a democracia é enterrada pelo poder do capital. As campanhas-espetáculo atrelam o jogo político a quem paga mais. É uma contradição intrínseca que o direito à participação política, pilar do pensamento democrático, seja mercantilizada dessa forma. A maior demonstração do fetichismo democrático está ligada às eleições. O sufrágio universal como método de escolha dos principais cargos da República se torna um mecanismo de legitimação ideológica das “democracias liberais”. Toma-se a aparência por essência, ou seja, a existência de um sistema de eleições “livres”, como o sistema democrático em si. Tudo bem programado pelos monopolizados meios de comunicação, que vendem, como um produto, a imagem das nossas eleições como a “festa da democracia”. O sistema eleitoral brasileiro é o fetichismo democrático mais bem trabalho pela

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ideologia dominante. Estabilizou-se de forma arraigada no cenário político nacional por ter substituído uma ditadura – que não apresentava eleições direitas para os cargos, assim como às destinadas ao legislativo eram restringidas e manipuladas – como a maior parte da esquerda brasileira comprou o discurso e não vê outra maneira de avançar que não seja por meio de vitórias eleitorais. Esse posicionamento destruiu ideologicamente os partidos de esquerda, que se entregaram a um eleitoralismo com fim em si mesmo. As campanhas eleitorais são na verdade grandes peças de marketing, onde o consumidor-eleitor escolhe aquele que melhor administrará os interesses dos ricos. As grandes companhias, a maioria de capital estrangeiro, são financiam todos os candidatos e colhem os louros após o eleito ser escolhido por meio do voto “livre” dos cidadãos. Não há nada mais antidemocrático do que nosso atual sistema eleitoral, onde para se candidatar a um cargo público é necessário muito dinheiro e para isso, conexão com os verdadeiros donos do poder, as grandes empresas. O financiamento de campanhas incurte num jogo de favores entre poderosos que torna nosso sistema político uma plutocracia, um governo dos endinheirados. As regras político-eleitorais são formuladas para evitar qualquer forma de contestação mais profunda. A diferença no tempo de propaganda eleitoral nos meios de comunicação, principalmente no mais popular entre os brasileiros, a televisão, mostra o qual nosso sistema pós-ditatorial ainda possui uma grande diferença para uma democracia. Enquanto um candidato possui mais de dez minutos de propaganda, outros têm um tempo tão curto que somente conseguem pronunciar seu nome e número de votação. Um sistema eleitoral que não permite a divulgação equânime de ideias aos eleitores não pode ser democrático. As eleições no Brasil são um jogo de cartas marcadas, onde todos os poucos candidatos com real chance de vitória são financiados pelas mesmas empresas, esperando a decisão inócua do povo, ao apontar quem melhor mediará os interesses financeiros e empresariais. Qualquer voz dissonante por mais moderada que possa ser raramente apresenta uma votação minimamente respeitável, já que todo o jogo eleitoral está estruturado para o seu fracasso. Os partidos de esquerda, que poderiam dar uma direção diferente ao processo político brasileiro por, teoricamente, estarem em uma posição de crítica ao sistema atual, não divergem muito nas suas práticas aos demais. Legitimam o fetichismo democrático das eleições e entram no círculo vicioso da política, controlada pelos interesses do capital, sobretudo o capital estrangeiro. Os dois grandes partidos de esquerda nascidos do processo de “redemocratização”, ou

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seja, no período pós-ditatorial, PT e PDT, se degeneraram completamente das bandeiras de luta do passado, adotando o “discurso do possível”. O discurso do possível nada mais é do que a capitulação na luta política, a rendição aos ditames do capital, e o abandono da luta de classes para uma posição de negociação das formas como se dará a superexploração do trabalhador brasileiro. De uma forma franca, não se identificam mais como esquerda. O mesmo se aplica ao PCdoB (Partido Comunista do Brasil), que deveria ter vergonha de ainda carregar o “comunista” no nome. As demais siglas partidárias de esquerda se arrastam num fracionismo sem fim que explica boa parte da sua incompetência em se tornarem efetivamente populares e facilitam o jogo do capital. Mesmo assim, mesmo que tivessem um discurso e uma prática mais coesa, teriam muita dificuldade em sobreviver e triunfar num sistema político controlado pelo capital. Mais uma vez, uma das características fundamentais de um sistema democrático, a pluralidade de ideias, esbarra nas reais formas da realidade política brasileira. Para manter a disparidade entre as forças políticas, mercantilizar direitos e evitar a contestação social é de fundamental importância o controle ideológico. Nos nossos dias, os meios de comunicação adquirem um papel preponderante no controle de massas. A monopolização dos meios de comunicação e, consequentemente, da informação e do conhecimento em si, é mais um traço marcante de nossa sociedade pós-ditatorial. Essa situação fere o que seria um elemento básico de qualquer sistema democrático, a liberdade de expressão e de imprensa. Toda a capacidade midiática do país concentrada em poucas empresas faz com que o conteúdo e a forma como os fatos são noticiados fiquem monopolizados nas mãos das grandes empresas do ramo, que por sua vez, guardam ligações íntimas com os donos do poder e com tudo que há de mais conservador e reacionário em nossa sociedade. A monopolização dos meios de comunicação inviabiliza, portanto, qualquer forma de contestação ou opinião divergente ao status quo. Sua função nada mais é do que a imbecilização das massas populares e a ideologização pela direita da sociedade, mantendo as mesmas forças no poder e ditando tendências de mercado em todos os aspectos da vida dos cidadãos. Dessa maneira, está impossibilitada qualquer forma de espaço democrático de discussão. A situação é ainda mais grave no Brasil, ao saber que o atual processo de monopolização dos meios de comunicação se deu a partir da Ditadura militar, que fatiou os meios de comunicação entre os grupos empresariais de apoio ao regime de exceção, notoriamente Globo, Abril, Folha e Estadão, sem contar com favorecimentos à Igreja católica

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e igrejas evangélicas. Nesse último caso, o avanço dessas forças, principalmente a de igrejas evangélicas, é uma marca gritante do problema midiático na Nova República. O atual período da história política brasileira guarda momentos de parcialidades descaradas dos grandes meios. A mais marcante de todas foi a manipulação do compacto do debate das eleições presidenciais de 1989 entre Collor e Lula, onde o primeiro (candidato da direita) saiu favorecido e vencedor das eleições. Também é memorável a farsa das pesquisas de opinião de votos (algo impensável numa real democracia) contra Brizola em 1982, em que o então candidato aparecia distante do segundo turno às vésperas do pleito e acabou se sagrando vencedor na eleição a governador do estado do Rio de Janeiro. Esse foi o chamado escândalo Proconsult, empresa a mando dos grandes veículos de comunicação, principalmente a Globo, para mostrar as “opiniões de voto” que nada mais são do que manipulação grosseira das escolhas do eleitorado. Brizola foi atacado inúmeras vezes mais pela imprensa e respondeu na mesma moeda com os mecanismos que possuía à mão,desde a simples panfletagem ao histórico direito de resposta no Jornal Nacional concedido pela Justiça. Cid Moreira, então âncora do programa de maior audiência do país e formador/controlador da mente dos brasileiros, foi obrigado a ler uma carta de Brizola em que denunciava as Organizações Globo de conivência com os interesses da finada Ditadura e dos elementos mais conservadores do país na atualidade. 43 Essas empresas monopolizadoras de informação garantem a liberdade de expressão somente delas mesmas, em detrimento ao da sociedade. Articulam-se entre si, no intuito de barrar qualquer forma de política pública que ameaça seu controle total dos meios de comunicação, além de formular estratégias de campanhas contra seus opositores. Uma rápida passada nas bancas de jornal, ou uma simples troca de canais de televisão na hora do jornal da noite de cada emissora, mostra que não há diferenças entre o enfoque e o corte ideológico dado aos fatos e acontecimentos. Outro direito tido

como

inviolável no

pensamento democrático

e que é

permanentemente negado à boa parte da população, é o direito ao trabalho. O direito ao trabalho de cada cidadão nasceu justamente da necessidade de sobrevivência, suprida pela atividade desenvolvida por cada indivíduo para o funcionamento da sociedade. Não entraremos aqui nem na questão da exploração do trabalho como base do sistema capitalista. Restringimos-nos a criticar como na Nova República, onde a “redemocratização” veio junto com o abandono da política de bem-estar social e a adoção do ideal neoliberal, o 43

O vídeo se encontra de fácil acesso na internet ao se procurar em qualquer site de busca pelas palavras “Brizola” e “direito de resposta”.

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direito ao trabalho é severamente negado a um grande número de brasileiros pelas próprias necessidades do neoliberalismo. Como observamos no capítulo 2, o neoliberalismo se constitui em um novo período da divisão internacional do trabalho, portanto, para nós, parte da periferia do sistema capitalista internacional, um novo momento da dependência. Como fundamento da própria dependência, cada modernização reflexa imposta à periferia, consiste em um aprofundamento dos níveis de superexploração do trabalho. Na atual fase neoliberal da dependência, o mecanismo fundamental para a obtenção de massa de valor, forma como se dá a superexploração, depende intrinsecamente, do desemprego, como forma de rebaixar o valor dos salários. O aumento da exploração do trabalhador depende, após a instalação de maquinário moderno que aumentou a produtividade, de um permanente exército reserva de mão de obra em proporção maior do que antes. Essas medidas são complementadas pela flexibilização das leis trabalhistas e a terceirização do trabalho. Em uma sociedade regida pelo neoliberalismo, em que o aumento da superexploração do trabalho, pedra angular do sistema capitalista dependente, está ligado ao desemprego, o direito constitucional ao trabalho de cada cidadão é uma falácia. Estamos diante de uma contradição estrutural insolúvel do capitalismo dependente. É impossível a conciliação entre neoliberalismo e direito ao trabalho dos cidadãos. Portanto, as características aqui apresentadas do atual sistema político brasileiro não podem classificá-lo como democrático. Trata-se de um sistema político pós-ditatorial, por ter substituído um regime de exceção. Não guarda qualquer semelhança com um governo da maioria, já que todos os aspectos que permitiriam qualificá-lo como democrático estão ausentes na atualidade. Vivemos em um tempo, como nomeou o cientista político Emir Sader, “depois da Ditadura, antes da democracia”. 44 A razão para isso se encontra numa explicação mais profunda. Não é a democracia brasileira que deu errado. Nem tampouco, a América Latina, que com as exceções atuais de Cuba, Venezuela, Bolívia e Equador, apresenta regimes semelhantes ou até piores que o brasileiro. A resposta para o problema de nossos regimes pós-ditatoriais não pode ser encontrada se nos restringirmos à esfera do político. Ela reside na incompatibilidade do próprio modo de produção capitalista com a democracia e seus fundamentos.

44

Emir Sader. O Anjo Torto. Esquerda (e direita) no Brasil. Brasiliense: São Paulo, 1995.

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4.3

A incompatibilidade entre capitalismo e democracia

Vimos que a democracia seria um governo do povo, o demos da maioria para a maioria. Essa nomenclatura entra conflito direto com a realidade política brasileira, onde, mesmo após décadas do fim da Ditadura, não formulamos um sistema de governo que honrasse a definição aristotélica de democracia. A concentração de poderes e riquezas e a mercantilização dos direitos civis faz de nossa República uma oligarquia plutocrática, porque se trata de um governo dos poucos endinheirados em benefício próprio. Tão pouco aquilo que se convencionou chamar de “democracia” liberal e suas características centrais têm realização plena em nosso sistema pós-ditatorial. As eleições, a participação política e as liberdades individuais são violadas sistematicamente, mediatizadas pela natureza do mercado, o poder do capital e se encontram em direta contradição com as bases do neoliberalismo. O problema consiste na realidade da incompatibilidade do capitalismo com a democracia. A estrutura socioeconômica capitalista, com suas características calcadas na propriedade privada dos meios de produção e na exploração do trabalho para a expropriação da mais-valia, não pode gerar um sistema de governo verdadeiramente democrático. A busca incansável pela acumulação de capital e a corrente concentração e monopolização de capital tornam inviável o fundamento crucial da democracia como pensamento político, a igualdade. A sociedade capitalista apresenta uma desigualdade hierarquizada e com tendências ao aprofundamento de tal situação conforme o seu desenvolvimento. Como coloca Atílio Boron:

Esses são termos que se repelem profundamente: maior democracia significa menos capitalismo; mais capitalismo é possível somente restringindo a democracia. O capitalismo é dominação de classe; a democracia, domínio das maiorias, que, como Aristóteles já observava, estão formadas principalmente pelos pobres, oprimidos e explorados. O argumento para defender essas afirmações consiste em que, sendo a democracia um regime político fundado na igualdade – e nisso estão de acordo desde um grande teórico conservador como Alexis de Tocqueville até Karl Marx -, é impossível construir um ordenamento político desse tipo dentro de uma forma social como a capitalista, cuja característica constitutiva é precisamente a radical separação entre uma minoria proprietária dos meios de produção e uma grande massa de despossuídos, que somente podem tentar vender a própria força de trabalho nas melhores condições possíveis. Dado que no capitalismo a desigualdade é estrutural e tende a se aprofundar historicamente, a possibilidade de erigir um edifício democrático sobre um terreno tão inseguro somente existe quando se fazem

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significativos recortes no projeto democrático. 45

A incompatibilidade entre capitalismo e democracia faz com que essa última somente possa ser realizada quando é esvaziada dos seus conteúdos essenciais. A igualdade, a disputa entre propostas políticas distintas, os direitos do cidadão e a sua participação direta são colocadas de lado, pois isso poderia atravancar o processo de acumulação do capital e de exploração do trabalho, ou, em casos mais radicais, significar a possibilidade de contestação e derrubada da ordem capitalista. No seu lugar, são enaltecidos os traços formais e protocolares da democracia, como as eleições, o sufrágio universal e as liberdades tolhidas, mediatizados pelo poder do capital, e por isso mesmo, completamente inofensivos para os objetivos do sistema econômico. A essência da democracia é sufocada, enquanto sua aparência é deformada, garantindo não só a reprodução do sistema, como a legitimação das injustiças intrínsecas ao capitalismo, tidos como resultado da “livre escolha” de seus cidadãos. A mercantilização de direitos sociais pelo neoliberalismo os excluiu de qualquer mecanismo democrático, na medida em que se tornam menos acessíveis à maioria da população. Os mecanismos democráticos não passam pelo controle e participação das massas e suas decisões e funcionamentos respondem somente aos objetivos dos endinheirados. É necessário ao capitalismo fazer com que a esfera política não transborde de contradições que podem levar à contestação do sistema. A democracia se esvazia de suas características fundamentais para se tornar mais uma força de sustentação da ordem conservadora, com um verniz de legitimação que leva à capitulação inclusive de boa parte da esquerda. Mesmo nos países centrais, os momentos mais democráticos remontam ao período compreendido entre o fim da Segunda Guerra Mundial e a implementação do neoliberalismo. No entanto, não podemos esquecer que os indicadores sociais mais avançados da Europa e dos Estados Unidos estão baseados em séculos de espoliação dos países periféricos e permanente transferência de riqueza para o centro do sistema pelas multinacionais. Também se somava a essa conjuntura, o medo que as mazelas do capitalismo levassem os mais pobres a lutarem pelo socialismo, representado naquele momento pela superpotência União Soviética. Os países periféricos sequer tiverem direito a essa “amortização” momentânea dos malefícios do capitalismo. Atrelados a um sistema capitalista interacional onde foram 45

Atílio Boron. Op cit. P. 11.

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compulsoriamente arrastados à condição de dependência, a democracia não se realizou ou, quando as forças populares tiveram mais capacidade de se organizar para impulsionar projetos verdadeiramente democráticos, a resposta da direita vinha em forma de golpes de estado, violência e carnificina. A história do Brasil não nos deixa dúvida quanto a isso.

4.4

A incompatibilidade entre capitalismo e democracia na história do Brasil

A “democracia” liberal nasceu a partir dos embates da burguesia contra a nobreza na Europa. Apear das bases do sistema liberal estarem na Revolução Gloriosa inglesa, elas tomaram suas formas mais radicais na Revolução Francesa. A história dos Estados Unidos também mostra como o embate entre as forças que representavam o desenvolvimento do capitalismo foram soterrando, gradualmente, classes sociais pertencentes a outros modos de produção. No caso europeu, o capitalismo se impôs, destruindo o que ainda restava das relações sociais feudais. No caso estadunidense, houve o rompimento do colonialismo e o desenvolvimento de projeto de desenvolvimento autônomo, o que não jogou aquele país no status de dependente, como ocorreria com as nações latino-americanas. De qualquer forma, esses acontecimentos representaram a consolidação do modo de produção capitalista, devido à vitória de classe da burguesia e o avanço técnico-científico da Revolução Industrial. Junto com a mudança revolucionária da estrutura socioeconômica, a burguesia, como nova classe dominante, começou a modificar as superestruturas da sociedade, de modo que melhor favorecessem a acumulação de capital. Mais do que isso. O liberalismo apenas se firmou a partir do momento que se impôs por meio de uma revolução. Somente o rompimento violento com a ordem então estabelecida permitiu a burguesia seguir adiante como classe dominante e às suas ideias serem da mesma forma dominantes em todos os aspectos da vida social. A “democracia” liberal-burguesa apenas existiu por meio de uma revolução. A falta de tal feito em países como Alemanha e Itália jogou esses países no outro extremo da política burguesa para a acumulação de capital, o fascismo. 46 O capitalismo sempre foi incompatível com a democracia. O liberalismo foi o sistema 46

Idem. P. 51-52.

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político-ideológico feito pela burguesia para melhor gerir seus negócios em nível de Estado. Vale lembrar que o nascente sistema político liberal do século XIX tinha um corte fundamental para designar aqueles que poderiam ou não participar do processo político: a renda. O simples direito ao voto e a candidatura a cargos públicos somente eram permitidos aqueles que possuíam elevadas rendas, ou seja, a própria burguesia. O sufrágio universal e a democracia de massas tal como conhecemos hoje foram produto da luta dos trabalhadores que quebraram os limites da “democracia” liberal. Ironicamente, a maior parte desses trabalhadores na Europa do século XIX estava organizada sob ideologias críticas ao liberalismo, como o comunismo e o anarquismo. No Brasil, o liberalismo-conservador que gracejava em terras europeias foi importado para o sistema político do nosso país, mesmo sem capitalismo. Devido a essa estrutura diferenciada, o liberalismo à brasileira era ainda mais retrógrado, pois se baseava em uma sociedade escravista e marcada pelo preconceito racial. Esse liberalismo-conservador continuou reinante na República Velha, onde as relações sociais capitalistas de produção já eram dominantes e o Brasil se encontrava na fase exportadora de sua economia dependente. A exclusão das mulheres e analfabetos, e o controle por cabresto dos votos, além de todos os malefícios do capitalismo dependente, não permitia a plena participação política dos cidadãos. A canalização da falta de democracia nesse período se deu pelas inúmeras revoltas sociais no período, sendo a mais famosa a de Canudos e o fenômeno do Cangaço. Mesmo sem planos concretos de mudança radical da sociedade, essas revoltas agiam como uma válvula de escape da opressão de classe de nossas oligarquias. Na falta de espaços democráticos de atuação, nosso povo tomava as atitudes possíveis, inclusive por meio das armas. A crise do capitalismo representada pelas guerras mundiais e o caos de 1929 ocorrido entre elas, levaram a uma conjuntura interessante na periferia do sistema, incluindo nosso país. Trata-se do momento da mudança de patamar da divisão internacional do trabalho, onde o caráter da dependência muda da economia exportadora para a substituição de importações. Essa conjuntura se apresenta no nacionalismo desenvolvimentista de Vargas durante a crise mundial do capitalismo e a Segunda Guerra Mundial. A peculiaridade do momento a partir da Revolução de 1930 foi o que permitiu à organização dos trabalhadores, mesmo que de forma mais ou menos controlada, e o advento do nacionalismo como ideologia para a superação dos problemas estruturais brasileiros. O fim da Segunda Guerra Mundial permitiu uma organização monopólica sem

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precedentes do capital internacional, com a hegemonia dos Estados Unidos. Isso levou ao avanço do investimento direto nas áreas periféricas, muito lucrativo devido à substituição de importações no momento anterior, que garantiu mercados consumidores novos e em expansão (mesmo que restritos às classes dominantes de cada país). O período na história do Brasil entre 1945 e 1964 é a disputa entre o avanço da substituição de importações, acreditando no desenvolvimento autônomo do capitalismo brasileiro; contra boa parte da burguesia que já se atrelava ao capital estrangeiro, notoriamente o norte-americano, e que defendia o investimento direto no mercado interno. A essas forças se somou, concordando e discordando da primeira opção, os comunistas, que viam no momento a possibilidade de levar à frente o processo revolucionário socialista para o nosso país. Esse intervalo entre 1945 e 1964 pode ser considerado o momento mais “democrático” da história brasileira, justamente porque permitiu a organização política das diversas forças e a disputa do poder da maneira mais “democrática” que o nosso país foi capaz de conceber. Houve um intenso processo de mobilização popular, dos mais variados matizes ideológicos. Claro que o capitalismo tentou cercear essa frágil “democracia” liberal ao máximo. A ilegalidade do Partido Comunista Brasileiro (PCB) no momento em que esse detinha a maior bancada de deputados estaduais na capital federal (então o Rio de Janeiro) é uma demonstração disso. Até mesmo políticos burgueses sofreram com os ataques da direita, sendo o suicídio de Vargas o mais dramático momento dessa disputa. Mesmo Kubitschek, responsável pelo abandono do plano desenvolvimentista de Vargas e o implementador de uma nova etapa de modernização reflexa quase não tomou posse por conspirações golpistas da burguesia entreguista. Mesmo assim, foi o momento em que a luta de classes se exacerbou com maior clareza em toda a história do Brasil e que de fato havia debates sobre os rumos do país. Tal conjuntura de embates entre visões díspares de nação levaram à possibilidade de questionamento do sistema, no intuito de construir a verdadeira democracia. A resposta da direita ligada ao capital internacional foi o Golpe de 1964 e o terrorismo de Estado contra o seu próprio povo por 21 anos. A Ditadura a partir de 1964 permitiu o controle total do parque produtivo brasileiro pelas multinacionais, fortalecendo a nova DIT representada pelo investimento estrangeiro direto no mercado interno. A superexploração do trabalho foi levada a níveis alarmantes por nossas classes dominantes, já que a capacidade de defesa política da classe trabalhadora era quase zero, devido ao assassinato das lideranças e a intervenção nos sindicatos e demais

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instituições representativas de classe. O Golpe de 1964 e a posterior Ditadura foram necessários para justamente romper o avanço democrático que o período anterior demonstrava. No momento em que finalmente, apesar das limitações, nossa “democracia” apresentava saltos de qualidade, com a organização de forças contestadoras ao sistema e o embate de ideias, a resposta foi o fascismo. A democracia se aproximava da sua essência e ameaçou os interesses do capital nacional e estrangeiro. Era necessário, e assim foi executado, suprimi-la. Não houve mudança estrutural no Brasil no momento da transição, o que nos jogou na nossa falsa democracia de aparências, sem os fundamentos essenciais desse tipo de regime político. A “democracia” retorna da única maneira que ela pode surgir no capitalismo, esvaziada e fetichizada pelo neoliberalismo. Esse sim se caracteriza por uma reestruturação socioeconômica, todavia, no intuito de aprofundar a dependência e a superexploração. No processo de transição “democrática” e em nosso período pós-ditatorial, a democracia ficou estancada, suspensa numa estrutura política criogênica. Uma “democracia” de baixa intensidade, frágil cidadania, na qual o poder do capital saiu fortalecido. Nossa “democracia” nasceu junto dos ajustes estruturais do FMI e do Consenso de Washington, o que não gerou mais democracia, mas sim, mais exclusão social. A democracia mostra-se assim, um sistema político incompatível com o capitalismo, já que este representa a exploração da maioria pela minoria. No caso dos países periféricos como o Brasil, essa exploração também se dá em nível internacional, o que nos leva a defender que a real democracia em nosso país somente pode ser realizada também com o rompimento com o imperialismo e a dependência. Não haverá cidadãos ativos, sem nação ativa. “Nossas” classes dominantes nunca proporão um processo dessa magnitude porque seu poder de classe e suas regalias estão baseados no cenário atual, de superexploração do trabalho e associação ao capital estrangeiro. Viveremos sempre nesse reino das aparências democráticas, onde a exploração se aprofunda, o nível de vida cai e as possíveis alternativas se desmancham, capitulando frente ao inimigo. A América Latina foi a primeira região do mundo a não só se rebelar contra o neoliberalismo, como a propor soluções de outro caráter ideológico. Nesse momento, Cuba, Venezuela, Bolívia e Equador tentam levar à frente projetos socialistas ou de vias ao socialismo, mesmo com toda a sabotagem do imperialismo norte-americano e de suas próprias burguesias dependentes. No Brasil, infelizmente, o governo do PT não aponta para essa direção. Continua num permanente abandono de suas bandeiras históricas (que já eram moderadas) e esperando aliar classes com objetivos históricos distintos e benefícios do

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Império. Pela incompatibilidade entre capitalismo e democracia aqui exposta, para alcançar a verdadeira democracia, que seja o poder da maioria, dos oprimidos e marginalizados, somente há uma saída: romper com o capitalismo e a dependência. A organização dos trabalhadores política e ideologicamente opostas aos ditames do capital e que inviabilizam a democracia real. A proposição de um novo rearranjo estrutural, novos sistemas políticos e novas relações sociais que não sejam baseadas na exploração do homem pelo homem. Em uma frase, a libertação nacional rumo ao socialismo.

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5

RAZÕES PARA O FIM DA DITADURA

A maior característica da chamada “transição democrática” é o seu conservadorismo. O processo histórico que marcou o fim da Ditadura Militar e o retorno para um sistema político liberal se deu nos moldes de uma costura por cima realizada pelas elites brasileiras, com a participação de militares, empresários e políticos tradicionais e até “profissionais”. Caracterizar a Transição como conservadora não significa dizer que esse processo não apresentou a participação popular. A população brasileira nunca aceitou a Ditadura. O apoio ao Golpe de 1964 veio da classe média tendo como base a histeria anticomunista típica da Guerra Fria e de um mundo polarizado ideologicamente. Por outro lado, as manifestações de massa que eram compostas por sindicatos, movimentos sociais e outras organizações políticas de interesse das classes marginalizadas estavam postadas junto à legalidade, na defesa do governo Goulart, ou até mais à esquerda que esse. Durante o regime ditatorial, nunca houve grandes manifestações populares de apoio ao governo. Até mesmo as eleições fajutas onde somente havia a presença da ARENA e do MDB, inúmeras foram às vezes onde jogadas pós-eleitorais e jurídicas foram necessárias para que o partido do governo obtivesse a maioria necessária para perpetuar seus planos políticos e econômicos. A partir do final da década de 1970, onde se dá a total falência do projeto ditatorial, fica mais evidente a refuta do povo brasileiro ao regime de exceção. Até parte dos beneficiados com os anos de ditadura passem para o campo da oposição aos generais e por mudanças no regime político e na condução da economia (não com os mesmos interesses da maioria da população, obviamente). No momento da Distensão e posteriormente na Abertura, a participação popular está presente. O trabalho dos comitês pela Anistia, a denúncia dos casos de tortura e desaparecimento, a própria rearticulação de partidos políticos de esquerda, dos movimentos sociais voltados aos principais problemas do Brasil e o aumento da participação política nas ruas. Todo esse renascimento dos movimentos de massas e o retorno ao cenário político das forças de esquerda de forma legal permitiram a grandiosa campanha das Diretas Já. Os comícios das Diretas Já são as maiores demonstrações políticas da história de nosso país. Contudo, como sabemos a campanha das Diretas Já foi derrotada em um Congresso Nacional ainda dominado pelas forças do conservadorismo. Quando afirmamos que a Transição é conservadora não estamos eliminando todo o grande esforço do povo brasileiro

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em virar uma dolorosa página de sua história, mas sim, colocando que o controle desse processo, apesar da força popular, permaneceu nas mãos daqueles que durante mais de duas décadas impuseram a ditadura mais violenta e prejudicial ao povo brasileiro em sua história recente. A história da Transição vista por esse víeis é a história de sobrevivência das forças conservadoras da nossa sociedade. É a história da necessidade de terminar a Ditadura mantendo o mesmo grupo político representante dos anseios da elite no poder, mesmo com a mudança de sistema de governo. É a permanência do nosso caráter dependente no sistema capitalista internacional e da exclusão social esmagadora como regra da realidade brasileira. Os responsáveis por essa transição branca são os nossos coronéis e empresários. Duas ocupações intimamente relacionadas com a classe dominante do país, fortemente enlaçadas com o capital estrangeiro, com destaque para o norte-americano. O regime pós-ditatorial que se origina da Transição representa a continuidade e até o aprofundamento das desigualdades sociais, das condições de vida e da miséria material e subjetiva do povo brasileiro. O novo momento da Divisão Internacional do Trabalho com a Globalização Capitalista recrudesce o caráter dependente da economia brasileira. Para cumprir a tarefa de “mudar tudo para deixar como está” observaremos nessa segunda parte de nosso trabalho os rearranjos políticos e eleitorais realizados pelos representantes políticos do capital nacional e internacional. Os motes principais do conservadorismo brasileiro estavam nos objetivos dos políticos tradicionais e dos militares. A atuação desses grupos está sob a égide da continuidade do cenário político e social quando a troca de regime se mostra inevitável. A meta perseguida pelos políticos é a sua sobrevivência política e principalmente eleitoral em um sistema de governo que em curto tempo apresenta um número maior de adversários e de participação da população como um todo. Para os oficiais militares a preocupação estava em sair de cena sem sentir o peso da história nas costas. As manobras e acordos políticos em que os militares se envolviam no momento da Transição giravam sempre no eixo da não punição dos crimes contra a humanidade e contra o povo brasileiro cometidos durante os 21 anos de exceção. A presença constante da necessidade de garantia do “não revanchismo” contra os militares durante a mudança de sistema político é a tônica dos discursos militares do período. A frase dita pelo então presidente João Baptista Figueiredo ao final do seu governo denota bem o que os militares esperavam do comportamento do povo: “Me esqueçam!”. A partir de 1973 assistimos ao desenvolvimento de uma série de fatores que

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enfraquecem o regime militar e levariam ao seu consequente fim em 1985. As razões que sustentavam a retórica de intervenção militar na sociedade brasileira perdiam efeito devido à conjuntura nacional e internacional no âmbito político e econômico. Os principais inimigos da direita brasileira já estavam todos eliminados ou exilados. Os partidos políticos de esquerda, assim como os movimentos estudantis, sindicais e de trabalhadores rurais já tinham sido violentamente desarticulados, com a execução física de suas principais lideranças, após brutais atos de tortura. O movimento guerrilheiro não logrou grandes conquistas no Brasil, nem mesmo conseguiu fazer uma oposição forte aos governos ditatoriais como em outros países latinoamericanos. Foram desbaratados de forma brutal. Os agentes repressivos assassinaram, após sessões de tortura e estupro, os jovens (na sua maior parte) guerrilheiros. Antes da metade da década de 1970 a Ditadura ganhava a sua luta contra o “inimigo interno”, mas perdia um elemento simbólico de manter o estado de vigilância semifascista que impunha à sociedade brasileira. Outro ponto de suporte retórico da intervenção militar era o suposto desenvolvimento econômico promovido pela Ditadura. O “milagre econômico” que permitiu à classe média consumir as maravilhas duráveis do capitalismo moderno – à custa do arrocho salarial da maioria da população - não aguentou os choques do petróleo e o endividamento crescente do país (política econômica que financiava a Ditadura) na década de 1970. Mais havia mais do que isso. Justamente pelos choques do petróleo em 1973 e 1979 se aprofundou a crise do modelo keynesiano e do Estado de bem-estar social nos Estados Unidos e na Europa Ocidental. O capitalismo com intervenção estatal reduzia o lucro da burguesia mundial e as grandes empresas começavam a repartir o processo produtivo em escala planetária, mantendo o controle e os processos produtivos mais avançados nos países centrais e delegando os demais à perifeira do sistema capitalista internacional. Os ventos neoliberais de desestatização e desregulamentação já sopravam concomitantemente ao crepúsculo ditatorial no Brasil. O fim do “milagre econômico” recrudesce a oposição ao regime. Da parte dos militares, a partir da posse de Ernesto Geisel como presidente, há um claro movimento inicial para o retorno a um governo civil. Esse retorno deveria ser feito, como dito pelo próprio Geisel, de forma “lenta, gradual e segura”. Essas adjetivações por parte do ditador deixavam claro que o retorno à legalidade liberal deveria ser feita sem participação popular, muito menos de forças de esquerda. O objetivo central era manter os opositores ao regime longe do poder, assim como a manutenção da desigual e injusta realidade socioeconômica brasileira.

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De toda forma, a própria Distensão (como ficaram conhecidas as manobras políticas do governo Geisel) seguia no intuito de diminuir a intensidade da repressão política, da perseguição violenta e da censura sobre os meios de comunicação. Como contraparte desse movimento, era esperado que as críticas e oposição ao regime militar se recrudescessem. Há uma rearticulação dos movimentos sociais e o início de uma campanha popular pela Anistia, fato que permitiria o retorno de políticos e intelectuais contrários à Ditadura. Combinando uma visão da conjuntura política interna do Brasil, com as mudanças estruturais que ocorriam concomitantemente no capitalismo internacional, podemos compreender que a crítica contra o governo dos generais brasileiros e o aumento da oposição se dá ao mesmo tempo em que o antiestatismo neoliberal ganha força.

5.1

A mudança estrutural do capital e o esgotamento do subimperialismo

Observamos o fim da década de 1970 com a ascensão de Margareth Thatcher na Inglaterra e Ronald Reagan nos Estados Unidos. Os ditames neoliberais já tinham concluído suas experiências iniciais, usando como tudo de ensaio o Chile sob o fascismo de Pinochet e a Argentina a partir de 1976, também sob governo ditatorial. A crítica ao autoritarismo no Brasil, cada vez maior devido à própria política de Distensão do governo Geisel, se misturava naquele momento, a uma posição neoliberal de crítica ao intervencionismo estatal na economia. Parte da direita, principalmente o ramo empresarial, também se coloca a favor do rápido fim da Ditadura devido à defesa do neoliberalismo e de suas alianças com o capital estrangeiro. A Ditadura perdia assim não só os pilares que sustentavam sua retórica (desenvolvimento econômico e segurança nacional contra o comunismo), mas também o cenário internacional joga contra sua concepção de desenvolvimento, devido a crise mundial a partir dos choques do petróleo e o pensamento neoliberal com força cada vez mais crescente. O rearranjo da economia capitalista internacional por linhas neoliberais desloca o Estado de boa parte de suas atribuições econômicas, abrindo espaços anteriormente vetados ou com pouca presença da iniciativa privada. A crise da dívida no Brasil (e em boa parte da América Latina) nos anos 1980 e o processo de Distensão com Geisel que se torna Abertura com Figueiredo, levou ao campo da

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oposição não só as forças de esquerda reorganizadas e alguns liberais democráticos, mas também parte do empresariado que até então apoiava o regime, mas viu naquele momento a necessidade de mudança e avanço sem a presença dos militares. Boa parte dos empresários tinham ligações com multinacionais já instaladas no Brasil. Esse cenário foi possível devido à brutal monopolização da indústria brasileira desde os anos 1960 nas mãos de empresas estrangeiras, processo garantido pela Ditadura Militar. Antes do Golpe de 1964 o Brasil chegou a produzir mais de 60% de suas maquinarias, contra menos de 40% nos anos 1980.47 Porém, o capitalismo neoliberal precisava de ainda mais. Era necessário desregulamentar uma série de entraves judiciais ainda existentes que impediam ou dificultavam a participação direta do capital privado nacional e internacional nos setores de serviços. A privatização das empresas públicas e estatais estava na ordem do dia nas principais economias mundiais e aparecia como ponto fundamental da acumulação de capital em mundo no qual a indústria deixava paulatinamente de ser o centro do sistema produtivo. Mesmo assim, esse sistema de produção passa por mudanças fundamentais, com as fábricas das grandes marcas norte-americanas, europeias e japonesas se instalando em diversos países periféricos onde a força de trabalho fosse mais barata. A necessidade de receber esses investimentos estrangeiros leva a uma flexibilização dos direitos trabalhistas em escala global, no intuito de destruir qualquer proteção ao trabalhador para baratear sua mão de obra. Essas linhas gerais do pensamento neoliberal já chegavam ao Brasil e norteavam as ações políticas do grande empresariado de modo cada vez mais intenso. Com as crises dos anos 1970, as importações de máquinas e tecnologia industrial ficaram muito caras. Apresenta-se a necessidade de desenvolvimento interno das tecnologias mais avançadas daquele momento, como nos coloca Theotonio dos Santos: Isso [avanço tecnológico com vias à independência em certos setores] obrigava a um projeto de crescimento econômico e de desenvolvimento distinto que de fato se esboça durante o período Geisel. Através do Plano Trienal, este se propõe a implantar as indústrias de base que ainda faltavam ao país. Entre elas destacavam-se a petroquímica fina, a indústria espacial e militar e o setor energético, que apresentava uma grave crise internacional a partir da elevação do preço do petróleo. É nesse período que se implanta o contravertido projeto de construção das usinas nucleares que visava transferir a sua construção e a sua tecnologia para as empresas brasileiras. Inicia-se o processo da utilização da biomassa e a criação de uma energia fundada na nossa condição de país tropical e de grandes extensões territoriais com o pró-alcool e com a as perspectivas de transformar a mamona e a mandioca em fontes

47

Theotonio dos Santos. Evolução Histórica do Brasil. Da colônia à crise da “Nova República”. Petrópolis: Vozes, 1995. P. 259.

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de combustíveis. 48

Essa tentativa de saída “endógena” do capitalismo brasileiro no governo Geisel se deve à crise mundial nos anos 1970 que arruinará o modelo de desenvolvimento da Ditadura, baseado no subimperialismo. A dependência de tecnologia estrangeira foi o calcanhar de Aquiles da política econômica do regime militar, pois para obtê-la era necessário um endividamento crescente no exterior por parte do Estado brasileiro. Essa situação era agravada pelas pressões da burguesia e da classe média que desejavam manter seu padrão de consumo permitido graças ao pauperismo generalizado da população pobre do país. O Brasil, na condição de país mais devedor no mercado internacional quando dos choques do petróleo e do rearranjo da economia capitalista no fim dos anos 1970, sofreria na década de 1980 com a cobrança das dívidas (na casa dos 70 bilhões de dólares)

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acompanhada de taxas de juros altíssimas. Os Estados Unidos apresentam um déficit público astronômico na casa dos 280 milhões de dólares, o qual deveria ser concertado com a exigência de pagamento dos empréstimos aos países periféricos. Esse cenário inviabiliza a manutenção do modelo subimperialista e empurra o governo ditatorial à saída endógena. No entanto, a influência neoliberal no mercado internacional já era muito forte. O desenvolvimento induzido pelo Estado no Brasil se encontrava na contramão do ritmo global do capitalismo avançado. Na década de 1980, os bancos internacionais não mais concediam créditos ao Brasil, mas sim, cobravam as dívidas acumuladas pela Ditadura, reforçadas por pesados juros. A economia brasileira travou. Fruto do endividamento irresponsável do regime dos militares e sua política econômica concentradora de renda. O endividamento interno aumenta para que se pudesse pagar o endividamento externo. O investimento no país é nulo, principalmente no campo de políticas sociais. O sucateamento das empresas estatais e públicas andava a passos largos o que, futuramente, facilitaria sua privatização nos anos 1990. O país fica sem liquidez econômica e sem crédito no mercado internacional, inviabilizando a manutenção da política de desenvolvimento da Ditadura. O recurso ao crédito interno também era nocivo, pois retirava capital que poderia ser investido na economia para pagar os credores estrangeiros, novamente configurando-se uma relação de dependência. O Fundo Monetário Internacional (FMI) exigia a restrição do endividamento público para liberar 48

Idem. P. 260.

49

Vito Giannotti. História das lutas dos trabalhadores no Brasil. 3ª edição revista e ampliada. Rio de Janeiro: Mauad X, 2009. P. 241

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novos créditos, já impondo ao Brasil a receita que seria usada por vinte anos aos países periféricos: restrição do crédito para forçar a privatização generalizada e a flexibilização das leis trabalhistas na periferia, transformando os países da América Latina e Ásia principalmente, em áreas de alta rentabilidade para as multinacionais. A política econômica da Ditadura, mesmo que desde sempre atada aos compromissos com o capital estrangeiro e norte-americano em particular, e com a entrega de boa parte do parque industrial brasileiro a empresas multinacionais; ainda guardava uma posição importante para o Estado na condução da economia. Além disso, vários eram os setores de serviços e de indústria básica que eram monopolizados ou que apresentavam grande participação estatal. Dessa maneira, na virada da década de 1970 para a de 1980 e com a reestruturação do capitalismo em nível mundial, a Ditadura brasileira deixa de ser um facilitador e passa a ser um entrave ao lucro das empresas que agiam em escala planetária. O regime militar era incompatível com os novos rumos da economia capitalista internacional e boa parte da alta burguesia brasileira, sócia menor do capital estrangeiro, percebia isso. É desse momento em diante que há uma movimentação política de parte da burguesia brasileira para o fim da Ditadura, não por questões político-humanitárias, mas pela compreensão correta de que a política econômica dos militares estava tornando o Brasil inviável no plano internacional.

5.2

As divisões internas dos militares e o crescimento da oposição

No campo da política o regime também entrava em uma rua sem saída. A disputa interna entre os militares divididos em dois grupos refletia em todo o governo: o grupo Sorbonne ou castelista50 defendia que a implementação do autoritarismo deveria ser uma intervenção militar que deveria ter validade, devolvendo o poder a um civil e mantendo uma legislação autoritária e restritiva, com contornos liberais e constitucionais. O grupo da “linhadura” era mais veiculado aos agentes da repressão e mantinha a retórica anticomunista beirando o delírio. Não eram a favor a uma retirada dos militares, defendendo as ideias 50

Sorbonne é uma universidade francesa. O nome se deu devido ao fato de suas lideranças terem uma formação acadêmica superior, geralmente na Escola Superior de Guerra de Altos Estudos Militares (ESG). Castelista vem do nome do primeiro ditador, General Castelo Branco.

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positivistas de que as Forças Armadas seriam os salvadores da moralidade cívica nacional. A ascensão de Geisel e sua linha da Distensão (1973) marcou a vitória do grupo Sorbonne, que colocou em marcha seu plano de transição “lenta, gradual e segura”. Obviamente esse plano sofreu seus solavancos históricos, tanto por atitudes desvairadas de terrorismo estatal da linha-dura (no qual o atentado ao Rio Centro ficou marcado como o maior expoente), como pelo recrudescimento da oposição. De qualquer forma, o plano avançou com a Abertura promovida por Figueiredo e culminou na Transição conservadora compactuada entre a elite brasileira tendo Tancredo Neves a frente. O entendimento de que a retirada dos militares da política brasileira era necessária, não absteve esse grupo de colocar condições para tal feito. Os cuidados na condição da Distensão e da Abertura tinham uma série de objetivos para os militares, entre eles o medo do “revanchismo”. A Lei de Anistia refletia bem esse temor ao conceder uma anistia “ampla, geral e irrestrita” o que significava não só anistiar os que foram perseguidos pelo regime ditatorial, como também os agentes do Estado responsáveis por todo o bárbaro aparato de repressão. A impunidade de torturadores (crime contra a humanidade segundo vários tratados internacionais assinados pelo Brasil), assassinos, sequestradores e estupradores, assim como mentores intelectuais, como Geisel e Golbery, era uma das preocupações das lideranças políticas militares. Junto a isso existia o desejo que uma transição a um governo civil não significasse um desmantelamento da indústria militar nacional, uma das maiores produtoras e exportadoras do tipo oriundas do Terceiro Mundo naquele momento.

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Foram atendidos na

primeira questão, mas não na segunda. Os crimes da Ditadura nunca encontraram os tribunais, mas a indústria militar brasileira foi desmontada pelo neoliberalismo. O aumento da oposição era uma contrapartida de se abrandar o grau de repressão a partir do fim da década de 1970. Com os setores mais combativos da esquerda brasileira assassinados ou exilados, a Ditadura se sentiu à vontade para levantar a censura sobre os meios de comunicação e acabar com o AI-5. O entendimento de que toda e qualquer chama revolucionária que poderia existir no país quando do Golpe de 1964 já tinha sido inviabilizada também fez com que o regime militar perdesse adeptos, no sentido de que não havia mais necessidade de repressão, censura e violência. Durante a Abertura veremos a reorganização civil da oposição, nos comitês populares pela anistia, no movimento sindical, com destaque para as greves de metalúrgicos do ABC

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Alfred Stepan. Os militares: da abertura à Nova República. 2ª edição. Paz e Terra: Rio de Janeiro, 1986. P. 96.

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paulista; no renascimento dos movimentos do campo, que levariam, em 1984, à criação do MST (Movimento dos trabalhadores rurais Sem Terra). Em 1979 é decretado o fim do bipartidarismo, a Lei de Anistia e se programa, para 1982, eleições diretas para governadores, fatos que permitem a total rearticulação da cena política, partidária e eleitoral brasileira. Os dois únicos partidos políticos permitidos pela Ditadura passam por transformações. O governista ARENA se transforma no PDS (Partido Democrático Social) e o MDB no PMDB (Partido do Movimento Democrático Brasileiro). Enquanto o primeiro seguia a linha de seu antecessor, o PMDB seguia por uma contestação cada vez maior à Ditadura, encabeçando a oposição liberal no Congresso e participando de campanhas pela eleição direta para presidente da República, em posição bem distinta ao da oposição consentida e branda que realizava nos piores momentos do regime militar. Pela esquerda, o novo movimento sindical crescia e se juntando a outros movimentos nascentes pelo país fundava o PT (Partido dos Trabalhadores), com participação majoritariamente social-democrata, mas também com presença de comunistas. O PDT (Partido Democrático Trabalhista) liderado por Leonel Brizola – então retornando do exílio – mesclava nacionalistas revolucionários, comunistas, social-democratas e outros ligados ao partido somente pela liderança pessoal de Brizola. O PCB (Partido Comunista Brasileiro), legalizado com o fim do bipartidarismo, passava por uma crise de identidade, assim como os outros PCs pelo mundo. Com a crise evidente nos países socialistas do Leste Europeu, vários PCs pelo mundo foram extintos, ou adotaram um discurso de “reforma do capitalismo”, que na prática se revelava uma total aceitação das práticas neoliberais. No caso do PCB, havia uma divisão interna entre os que desejavam essa mudança que jogaria o partido totalmente para a direita, e outros que mantinham os ideais comunistas. O racha só se daria nos anos 1990, com a saída daqueles que defendiam o “endireitamento” do PCB. Mais tarde fundariam o PPS (Partido Popular Socialista), configurando-se em um partido totalmente de direita e em defesa do neoliberalismo. O PCdoB (Partido Comunista do Brasil), dissidência do PCB nos anos 1960, também foi legalizado. Apoiou a Transição comandada por Tancredo Neves e posteriormente o governo Sarney (1985-1989). Depois sempre esteve coligado ao PT e as sucessivas campanhas presidenciais de Luis Inácio Lula da Silva. Apesar do nome, guarda muito pouco, ou nada, de comunismo em suas práticas, agindo muito mais como um partido socialdemocrata de terceira via, de fundo meramente eleitoral. Todos os movimentos da Distensão comandada por Geisel e da Abertura no governo

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Figueiredo corroboram para o intento inicial do grupo castelista: o objetivo de que a intervenção militar deveria ser pontual, para acabar com o avanço popular dos anos 1960 e garantir as reproduções do grande capital nacional e internacional sob uma “democracia tutelada”. A noção de democracia dos castelistas era a participação política somente de forças de direita comprometidas com o capital. Qualquer tipo de contestação estrutural deveria ser extirpado e assim o foi. Contudo, o abrandamento do regime leva a liberação de forças sociais até então cerceadas politicamente, o que acelera o fim da Ditadura. O jogo da Abertura era manter os pilares básicos do capitalismo intactos, garantir que o governo civil não caísse em mãos radicais ao se permitir eleições diretas para presidente e impedir o que os militares chamavam de “revanchismo”, ou seja, que fossem julgados pelos crimes cometidos durante o regime de exceção. Além disso, o grupo político civil de apoio à Ditadura, composto por empresários, latifundiários e políticos tradicionais e “profissionais” precisava construir elementos necessários para sua própria sobrevivência em cenário político-eleitoral que se modificaria em pouco tempo. A manutenção do capitalismo dependente e das regalias em que a classe dominante vive em detrimento das massas populares somente permaneceria intactas caso os políticos representantes dessa elite mantivessem o poder. Dessa forma, a sobrevivência do capitalismo dependente e a adoção de novas roupagens trazidas pela globalização capitalista e o neoliberalismo seriam colocadas em prática apenas com a sobrevivência dos quadros políticos da direita. Para isso, era necessária uma série de movimentos políticos para que velhos quadros políticos civis da Ditadura aparecessem desvinculados do regime, ganhando credibilidade suficiente para pousarem de democratas e defensores de um novo Brasil. A campanha das Diretas Já (1983-1984) assustou as cabeças do regime, que viram se materializar uma massa popular reivindicando mais do que o direito do voto direto para presidente, mas sim, o fim da Ditadura. Era um sinal claro que o regime militar não mais tinha sustentação e que deveria ser finalizado pelos seus próprios criadores, militares e burgueses antes que o povo o fizesse. Os revezes eleitorais também pesavam a balança a favor do término da Ditadura. O regime militar no Brasil nunca passou por um momento de tranquilidade eleitoral que permitisse uma política menos inflexível que a praticada durante 21 anos. Durante todo o regime de exceção houve momentos de tentativa de liberalizar discretamente a cena política que eram logo sufocados pela realidade dos fatos: não havia apoio popular à Ditadura e isso

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se manifestava não só pelos grupos de esquerda que recorreram à luta armada ou civil, mas também as sucessivas eleições que, mesmo controladas e esvaziadas, apresentavam resultados desfavoráveis aos políticos ligados ao governo. O decreto do bipartidarismo (1966), o AI-5 (1968) e a eleição para presidente, governadores e prefeitos das capitais de forma indireta, já mostravam que a Ditadura tinha consciência da sua não legitimidade/popularidade. Mesmo nas eleições de 1970 e 1972 (durante o “milagre econômico”), onde os candidatos da ARENA saem amplamente vitoriosos, o percentual de votos brancos e nulos era muito alto. Já na Distensão de Geisel e na Abertura de Figueiredo, várias foram às vezes em que o regime recorreu à legislação da exceção para garantir sua maioria na Câmara de Deputados e no Senado Federal, assim como no Colégio Eleitoral. A Lei Falcão (1976) e o Pacote de Abril (1977) vinham para socorrer a ARENA, que poderia perder a maioria no poder legislativo para o MDB, ou a maioria absoluta para tramites mais profundos da Constituição. Era claro na virada dos anos 1970 para os 1980 que a oposição (em todas as suas variadas matizes político-ideológicas) representava os anseios da maioria dos brasileiros e brasileiras. Parte dessa oposição começava a se radicalizar na forma de greves, passeatas e na articulação de novos partidos políticos e movimentos sociais do campo da esquerda. Era necessária à elite do país uma transição para um sistema republicano liberal em que não ocorresse a hegemonização da oposição ao regime pelos setores mais radicais da esquerda, representados naquele momento pelo PT e o PDT. A tática do governo Figueiredo para essa situação respondia aos seguintes princípios: primeiro, fazer avançar progressivamente a representatividade do processo eleitoral, segundo, manter os controles já alcançados pelo Pacote de Abril que levavam ou garantiram a maioria do governo no Colégio Eleitoral de 1984; terceiro, estimular as diferenças internas dentro da oposição, criar condições para que estas amadurecessem e se expressassem, com o objetivo de diminuir confronto entre governo e oposição; permitir a formação de partidos de centro, tanto de centrodireita quanto de centro-esquerda e, portanto, diferenciar o processo político suficiente para que uma possível eleição, dez anos depois, para Presidente da República, já não refletisse mais o confronto oposição-ditadura, e sim os vários matizes e diferenciações dentro da oposição e dentro do governo. 52

Os passos seguidos pela Ditadura no sentido da transição de regime seguem esse plano. A sobrevivência dos políticos representantes do conservadorismo em novo cenário que se desenhava dependia da despolarização “governo x oposição” que se apresentava na sociedade brasileira naquele momento, e mais uma pulverização em várias legendas

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Theotonio dos Santos. Op cit. P. 247-248.

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partidárias, que levariam a não identificação dos políticos representantes do empresariado, do latifúndio e dos setores militares com a Ditadura. Dessa forma, eles poderiam passar incólumes ou quase despercebidos por um período onde quem estivesse junto ao governo sairia atrás em disputas eleitorais e políticas. Existe um caso muito curioso nessa conjuntura. O projeto de Lei de Anistia apresentado pelo então MDB não contemplava o retorno de Leonel Brizola, Luís Carlos Prestes e Miguel Arraes, ícones da esquerda brasileira pré-golpe. Foi no projeto de Anistia do próprio governo que foi permitida a volta dessas figuras políticas de grande relevo na história brasileira do século XX. A ação perpetrada pela Ditadura era um claro sinal da necessidade de diversificar a oposição a ela própria, no sentido que nenhum dos grupos opositores gozasse de uma grande hegemonia. O próprio movimento inicial do MDB, de deixar Brizola, Prestes e Arraes de fora, já demonstrava como havia um temor por parte da oposição consentida de perder a oportunidade de capitanear a Transição e hegemonizar o momento imediatamente posterior a ela. A permissão de retorno de Brizola ao Brasil não significou de modo algum uma mudança de postura da elite econômica e militar em relação à sua figura. Em 1980, numa manobra de Golbery do Couto e Silva, a disputa pela sigla do PTB (Partido Trabalhista Brasileiro), que rememorava a toda a trajetória do trabalhismo antes do Golpe de 1964 foi concedida a Ivete Vargas (sobrinha-neta de Getúlio Vargas, sem nem um décimo da habilidade e do compromisso político do parente). Coube a Brizola organizar o PDT sob praticamente sua influência pessoal. O resgate do trabalhismo como projeto político nacionalistarevolucionário da década de 1960 estava perdido. De qualquer forma, a imagem de Brizola ainda era forte junto ao povo brasileiro mesmo após duas décadas de exílio. Prova disso foi sua eleição direta para governador do estado do Rio de Janeiro em 1982. A década de 1980 também marcou o momento em que o novo sindicalismo surgido no ABC paulista e que tinha Lula como grande liderança faz a transição da luta imediata de suas categorias profissionais para a luta política pelo fim da Ditadura e a chegada ao poder. A reorganização dos movimentos sociais também fica latente, com a criação do MST (Movimento dos trabalhadores Sem Terra) mostrando a permanência das mazelas criadas pela estrutura fundiária concentrada do país e a rearticulação dos sindicatos de várias categorias em centrais sindicais, algo proibido pela legislação então vigente. Nasceria então a CUT (Central Única dos Trabalhadores), que viria a ser a mais combativa central sindical do início da Nova República.

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A formação desses novos atores políticos no Brasil demonstra como as organizações populares estavam ausentes do debate político do país. Não por acaso, silenciar essas vozes por meio da violência foi o principal objetivo do regime que chegava ao fim naquele momento, assim como garantir a reprodução do capital monopolista nacional e estrangeiro. Sua ruína significaria uma brecha para o reaparecimento desses grupos contestatórios e que desembocariam no maior movimento de massas da história do país, as Diretas Já, que tinha como mote principal o voto direto para presidente. Isso significa não outra coisa naquele momento do que o fim imediato da Ditadura como posição da maioria esmagadora do povo brasileiro. A falência do modelo econômico baseado no endividamento externo, das ações subimperialistas e o crescimento dos diversos grupos de oposição, minaram a Ditadura, e mostraram à classe dominante a necessidade de substituição do regime político. Do ponto de vista dos objetivos do regime inaugurado pelo Golpe de 1964, os alvos foram alcançados, impedindo o avanço nacional-popular-democrático do início dos anos 1960 e a execução física ou retirada de cena por duas décadas dos principais atores e grupos políticos do país. Ao mesmo tempo, era necessária a desvinculação da direita política do regime, já que as massas cada vez mais, mesmo sem uma grande consciência política fruto dos anos de arbítrio, faziam a ligação entre Ditadura e crise, Ditadura e arrocho salarial, Ditadura e pauperismo. O processo de descompressão da Distensão abriu caminho para uma “democracia tutelada” que era o sonho dos militares. Mesmo que o resultado final da Abertura não tenha sido o melhor dos cenários possíveis pelo regime (fruto das forças sociais opositoras liberadas pelo próprio processo de abertura política), a transição pode ser feita sem radicalismos, de forma palaciana no Colégio Eleitoral – e não pelas massas nas ruas, como proposto pela campanha das Diretas Já - e o poder econômico e político ficou basicamente na mão dos mesmos grupos civis gestados nos anos de chumbo e representantes da classe dominante. Os militares ainda rondariam o Palácio do Planalto e interveriam nos primeiros anos da Nova República, mas sempre sob a chancela e comando do Presidente da República (primeiro com José Sarney, depois com Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso). 53

53

Os militares foram convocados para intervir de maneira violenta contra greves consideradas ilegais, num claro sinal do caráter de classe do momento pós-ditatorial. O caso mais emblemático é a greve dos trabalhadores da siderúrgica CSN em Volta Redonda (RJ) durante o governo Sarney e a greve dos petroleiros durante o primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso. No caso de Volta Redonda houve morte de trabalhadores.

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6

DIRETAS JÁ: POVO NA RUA OU A FORMA COMO A DITADURA NÃO PODERIA ACABAR

Os primeiros anos da década de 1980 no Brasil são marcados por dois pontos: a crise da dívida, que marca o pior momento da história do capitalismo dependente brasileiro, com o país entrando em recessão pela primeira vez desde a Grande Depressão; e, consequentemente, a escalada da oposição ao regime militar. Essa oposição se rearticula devido ao próprio movimento de Abertura que vivia o país e se apresenta com uma guinada cada vez mais à esquerda, a partir de partidos políticos como o PT e o PDT e movimentos sociais e sindicais, como o MST e a CUT. A oposição liberal também se faz presente com o PMDB comandando importantes governos estaduais, como em São Paulo (Franco Montoro) e Minas Gerais (Tancredo Neves). A situação socioeconômica do país era catastrófica. O subimperialismo havia chegado a uma situação de esgotamento, já que as fontes de créditos para a exportação de maquinário secaram. A crise em nível mundial do keyneseanismo e do estado de bem-estar social, piorada ainda mais com os dois choques do petróleo de 1973 e 1979 levaram o capitalismo internacional a um rearranjo de sua estrutura produtiva, de circulação e consumo. Por sua vez, essa mudança no centro do sistema também levaria a consequências drásticas na periferia capitalista. Os países periféricos com altas dívidas viram as fontes de crédito não só desaparecerem, como seus débitos passaram a ser cobrados com altas taxas de juros. O Brasil era o país que mais devia naquele momento, devido à política econômica da Ditadura de financiar a compra de maquinaria (ou seja, da dependência) com empréstimos internacionais. Somam-se a isso as remessas de lucros das multinacionais que monopolizavam boa parte do parque industrial brasileiro e o mercado consumidor extremamente concentrado que foi construído durante as duas décadas de regime ditatorial sobre o arrocho salarial das massas populares. Temos aí pressões pelo fim da Ditadura vindas de lados opostos e objetivos distintos. Os representantes políticos dos trabalhadores passam por um processo de rearticulação política e atuam para o desmantelamento rápido do governo de exceção, onde o mote maior é a campanha pela eleição direta para presidente, as Diretas Já (1983-1984). Carregam o anseio da massa de que o fim da Ditadura significaria dias melhores, o fim do pauperismo

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generalizado e do arrocho salarial, assim como da inflação absurda fazia com que o poder de compra da grande maioria fosse praticamente inexistente. Por outro lado, o empresariado nacional e estrangeiro também verifica a necessidade de fim do regime, não só pela crescente polarização “governo x oposição”, mas pelo entendimento de que o estado militarizado interventor da economia não mais cumpria um papel benigno à reprodução do capital. O sistema de governo e a política econômica brasileira iam, naquele momento, na contra mão das reformas neoliberais que começavam a gracejar mundo afora e que tiveram como laboratórios duas ditaduras latino-americanas, Chile e Argentina. A mudança de regime para a burguesia brasileira e estrangeira era uma necessidade de sobrevivência. Era necessário o total controle do processo de transição para que a passagem a um sistema republicano liberal não significasse novos atores sociais no poder. A elite brasileira e internacional via com muito perigo o crescimento de partidos e movimentos de esquerda e a ascensão de líderes, como Lula e Brizola (eleito governador do estado do Rio de Janeiro em 1982). Junto às necessidades econômicas de alinhar o Brasil com as mudanças de cunho neoliberal em nível mundial, existia o objetivo de manter políticos de direita vivos no novo cenário eleitoral que mudava na década de 1980. Daí a necessidade de desvincular parte de lideranças políticas gestadas durante a Ditadura da própria. Se a polarização “governo x oposição” seguisse e se radicalizasse, grandes figuras defensoras do empresariado e dos grupos conservadores brasileiros ficariam inelegíveis frente ao descontentamento popular. Suas vidas públicas poderiam ficar para sempre ligadas ao regime ditatorial. Era necessário diversificar os partidos e grupos políticos entre vários matizes de oposição (incluindo personagens que eram “filhotes da Ditadura” e agora se apresentavam como defensores da democracia) para garantir a sobrevivência de um sistema político elitista. A situação da maioria da população brasileira era dramática naquele momento. Anos de arrocho salarial foram agravados pela inflação que chegava a três dígitos. Os créditos concedidos anteriormente pela Ditadura à modernização do campo, ou seja, à criação do agronegócio no país, levou a mais um momento de brutal concentração fundiária. Populações inteiras vagavam pelas estradas em busca de pagamento de trabalho por jornada: eram os boias-frias, contraparte social de um sistema de produção agrícola voltado para as culturas de exportação (soja, cana, gado e celulose).

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Mais de 30 milhões de agricultores foram expulsos de suas terras nesse período

54

o

que levaria a um inchaço urbano. Essa realidade desmente a ideia de que as cidades atraem pelas oportunidades, mas sim, recebem pessoas que foram expulsas do campo, por não terem mais possibilidade de vida na área rural. Em tempos de recessão e crise generalizada, o crescimento urbano não parou de aumentar. No estado de penúria socioeconômica que o país se encontrava, isso só pode significar mais miséria generalizada, só que agora aglomerada nas ruas, vielas, periferias e morros das grandes cidades. Só como exemplo, entre 1980-1981 o Brasil apresentou 5% a mais de pessoas pobres em suas cidades. No mesmo espaço de tempo, a renda média da população economicamente ativa caiu 21%. Em dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) a população brasileira, no período 1981-1990 cresceu 1,9%. No mesmo período, a população favelada cresceu 7,65%. A desigualdade no Rio de Janeiro, medida pelo coeficiente de GINI 55

, disparou de 0,58 em 1981 para 0,67 em 1989. 56 Com o aumento da desigualdade e o crescimento urbano devido ao êxodo rural, cresce

também a violência e a criminalidade, inclusive com o surgimento de grupos criminosos articulados em várias favelas das grandes cidades. Em 1983 o desemprego da população economicamente ativa chegava a 15% e a inflação a 250%. 57 Não é de se estranhar que essa situação desesperadora, concomitante com a rearticulação da oposição e o fim da censura, leva o brasileiro comum a compreender que o fim da Ditadura era a ação necessária para a superação da maior crise da história do país. Se a situação se agravava a cada dia, era compreensível que a mudança de regime político significasse para a maioria da população a esperança do término de anos tão difíceis. Esse descontentamento generalizado e a esperança de melhoras desembocaria na campanha das Diretas Já, maior manifestação de massas da história do Brasil. As Diretas Já mostravam como ao povo brasileiro não suportava mais a Ditadura e sua economia de fome.

54

Vito Giannotti. História das lutas dos trabalhadores no Brasil. 3ª edição revista e ampliada. Rio de Janeiro: Mauad X, 2009. P. 232.

55

Coeficiente de GINI é uma forma de medir a desigualdade de um país ou localidade utilizando uma equação matemática em que 0 corresponde à ausência de desigualdade (todos os indivíduos analisados possuem a mesma renda) e 1 o maior nível de desigualdade. Por tanto, quanto mais próximo de 1, maior é a desigualdade do local analisado. O modelo é similar ao cálculo do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da ONU.

56

Dados apresentados por Mike Davis. Planeta favela. Tradução de Beatriz Medina. São Paulo: Boitempo, 2006. P. 160-161.

57

Giannotti. Op cit. P. 255.

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Manifestações que começaram discretamente e se transformaram ao longo do tempo em colossais passeatas e comícios nas principais cidades do país. Toda essa história começa de forma discreta. Após as eleições diretas para governadores dos estados realizadas em 1982, a oposição ao regime volta sua carga para a campanha das diretas para presidente. Em 18 de abril de 1983 foi apresentada uma emenda constitucional, a PEC 5/83, que propunha a eleição direta para o sucessor do então ditador Figueiredo. A emenda foi apresentada pelo deputado Dante de Oliveira (PMDB/MT), político sem grande projeção na época. A partir daí a proposta de emenda recebeu o seu nome. Como em toda proposta de emenda constitucional, são necessários 2/3 dos votos da Câmara dos Deputados, 320 votos de 479 na época. No entanto, o partido da Ditadura, o PDS (sucessor da ARENA) possuía 235 deputados. No senado a situação ainda era pior, com o PDS obtendo 45 dos 69 senadores. Seria impossível aprovar a Emenda Dante de Oliveira sem votos do partido oficialista. A única forma de quebrar votos do PDS era a pressão popular. Cabe ressaltar que o povo brasileiro vinha de duas décadas de arbítrio e repressão fascista, e que as entidades populares forjadas nos anos imediatamente anteriores eram muito novas. Mesmo assim, as pressões socioeconômicas e a esperança de mudança levariam milhões às ruas. A articulação começa pelo PMDB, que forja uma aliança suprapartidária com os partidos de esquerda, PT e PDT para impulsionar a campanha pelas eleições diretas para presidente. A campanha nacional é lançada em junho de 1983 em Goiânia, num comício do PMDB. Pouco mais de cinco mil pessoas estiveram presentes. Em novembro é realizado o primeiro comício suprapartidário em São Paulo. 58 A campanha vai aumentando de dimensão a cada novo comício e manifestação. As adesões de políticos, movimentos, artistas e intelectuais aumenta o coro e a proporção das manifestações populares. Todas as principais lideranças políticas da oposição se fazem presentes nos palanques das Diretas: Ulysses Guimarães, Lula, Tancredo Neves, Brizola, Franco Montoro, Fernando Henrique Cardoso, Miguel Arraes, Mario Covas. Parte da Igreja Católica, como dom Paulo Evaristo Arns e dom Ivo Lorscheiter também demonstram apoio à causa. Ordem dos Advogados do Brasil, Associação Brasileira de Imprensa, sindicatos, grandes jornais (como a Folha de São Paulo, que outrora apoiava a Ditadura) e movimentos sociais somavam-se ao esforço. A presença de artistas nos palanques,

58 Ronaldo Costa Couto. História indiscreta da ditadura e da abertura. Brasil: 1964-1985. Record: Rio de Janeiro, 1998. P. 324.

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como Chico Buarque, Milton Nascimento, Ziraldo, o ex-jogador Sócrates entre outros também aumentava o fluxo de participantes dos comícios e o volume de apoio às Diretas Já. Existiam duas frentes de atuação para o sucesso das Diretas. Uma era aumentar cada vez mais a participação popular nosso comícios. Cada novo apoio de indivíduos e organizações políticas era necessário para articular mais e mais setores da sociedade brasileira em torno do objetivo. O segundo era a política de bastidores no Congresso, na tentativa de convencer deputados e senadores do PDS em votar junto aos anseios do povo. Uma manifestação cada vez mais crescente sensibilizaria partidários do regime a votar favoravelmente à Emenda Dante de Oliveira. Os comícios crescem cada vez mais. A votação da emenda das diretas estava marcada para abril de 1984. A partir do início desse ano as manifestações se tornam gigantescas. Todas as principais cidades do Brasil assistem gigantescas passeatas e comícios em prol das Diretas. 20 mil pessoas em Curitiba. 80 mil em Vitória. 1 milhão de pessoas no Rio de Janeiro e mais de 1 milhão em São Paulo, na que é até hoje a maior manifestação política da história do Brasil. As Diretas Já era o pânico da elite brasileira, dos políticos fisiológicos criados pelo regime e dos militares. Obviamente era desconfortável ver líderes da oposição à frente de grandes manifestações, principalmente Brizola e Lula. Mas o que colocava terror nas cabeças conservadoras era o povo. Ver manifestações com massas gigantescas de pessoas nas ruas, a maioria pobres que foi humilhada em 21 anos de regime ditatorial era algo inconcebível para a Ditadura e seus próceres. Ronaldo Costa Couto, um dos participantes dos governos de Tancredo Neves no estado de Minas Gerais e na posteriormente na presidência (que Tancredo não assumiria, pois viria a falecer antes da posse) nos coloca muito bem. Mesmo tendo uma visão liberal do período, destaca:

Em cada estado, grandes nomes e lideranças sobem no palanque das Diretas. Mas o que marca e assusta os donos do poder, civis e militares, é a massa popular recorde em cada local, cada vez maior e mais empolgada, exigindo o direito de voltar a escolher o chefe da nação. E aos militares, também a presença de líderes da esquerda, como Lula e principalmente Leonel Brizola maior símbolo vivo da situação anterior ao golpe de 1964, um presidenciável em eleições diretas, talvez então inaceitável por eles, sobretudo pela linha dura. Desde o início de 1984, foram feitos comícios nas capitais brasileiras, com crescente participação popular e cobertura de parte da imprensa. Rapidamente, a campanha se torna o maior movimento cívico da história do país. Ganha o povo, tende para a quase unanimidade. Até porque a população, atribuindo todos os problemas ao governo militar, identifica num presidente eleito a esperança de solução de seus próprios problemas: emprego, salário, teto, transporte, saúde, educação, inflação, segurança pública etc. País de população jovem, a maioria dos eleitores jamais

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votara para presidente. Isso é destacado, incendiando o desejo de votar ou a frustração de não poder fazê-lo. 59

As Diretas Já eram tudo o que o poder civil-militar que comandava a Ditadura não queria. Era a possibilidade de derrota da Ditadura pelo povo. Seria a transição democrática nas ruas, numa clara vitória das massas populares sobre o regime que lhe negou tudo, desde requisitos básicos de sobrevivência até às liberdades mais elementares do liberalismo. Todo o plano desenhado pelas lideranças militares, com destaque para Golbery do Couto e Silva, de Distensão (1973-1979) gradual para uma Abertura (1979-1985) “lenta, gradual e segura” que asseguraria uma mudança de regime sem grandes solavancos estava ameaçado. O tipo de manifestação que as Diretas representava era justamente o oposto, o antônimo da transição palaciana arquitetada pelo regime. O governo, às vésperas da votação no Congresso se mobilizou. O presidente Figueiredo enviou emenda ao legislativo federal com proposta de eleições diretas para 1988. Ficou conhecida como Emenda Figueiredo. Era uma jogada política para resguardar os deputados e senadores do PDS contrários às Diretas Já. Assim, todos eram a favor das Diretas, alguns já (1984) outros para depois (1988). Uma manobra para manter vivos eleitoralmente os candidatos do governo. Tancredo Neves elogiou a medida de Figueiredo

60

, mostrando seu

cinismo político. Aparecia no palanque das Diretas, mas desejava intimamente que ela perdesse, para poder concorrer no Colégio Eleitoral à presidência da República. Os elogios à Emenda Figueiredo já denotam o ritmo de campanha antecipada de Tancredo, tentando ser palatável aos militares. A repressão também foi novamente colocada na ordem do dia. Apesar de não haver casos de confrontos com as forças policiais nos grandes comícios, o mesmo não se pode dizer nos dias anteriores à votação da Emenda Dante de Oliveira em Brasília. O exército, sob liderança do general Newton Cruz impede qualquer tipo de manifestação na capital federal em prol das Diretas. Foram empreendidas rigorosas revistas no aeroporto de Brasília. Um evento na Escola Dom Bosco de Educação Física foi disperso com gás lacrimogêneo. Barreiras foram montadas nas avenidas e ruas que davam acesso à cidade e cercam o Congresso. O caso mais grave foi a repressão a uma passeata estudantil e a prisão do presidente da UNE, Acildon de Mattos. 61 59 Idem. P. 326. 60 Idem. P. 366. 61 Idem. P. 328.

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A Emenda Dante de Oliveira foi votada no dia 25 de abril de 1984, sendo derrotada. O placar final foi 298 votos a favor, 65 votos contrários e 115 ausências. Mesmo com grande votação, não foi alcançado dos 2/3 necessários, que seriam 320 votos. Por 22 votos as Diretas Já foram derrotadas. A escolha do sucessor de Figueiredo seria no famigerado Colégio Eleitoral, com votos das duas casas do Congresso, sem o povo. 65 deputados do PDS votaram a favor das Diretas, o que mostrava que realmente havia um racha no partido e a campanha nas ruas realmente colocou alguns políticos da Ditadura contra a parede. Não tiveram coragem de se tornarem surdos às massas. A maioria, no entanto, para não se comprometer politicamente nem sequer compareceu ao plenário da Câmara. As 115 ausências foram maiores que os 65 votos contrários. Ninguém queria a eleição direta conquistada pelo povo, mas também não queriam ficar reconhecidos como os antidiretas e serem julgados mais tarde nas urnas pelo mesmo povo. As Diretas Já se configurou como um desafio popular à transição conservadora que se gestava dentro do próprio regime. Havia como já colocado anteriormente, a ciência dos donos do poder e da elite que geria o capital monopólico no Brasil da necessidade de mudança do regime. Por fins econômicos, para alinhar o país ao novo momento do capitalismo internacional, o neoliberalismo. E por fins políticos, para uma mudança segura que garantisse a supremacia do capital monopólico e da classe política representante desses interesses em Brasília. O fim da Ditadura não poderia ser em manifestações populares gigantescas, com o povo nas ruas a clamar pelo fim do regime e com lideranças de esquerda sendo ovacionadas em comícios. Para o status quo era necessário um fim cirúrgico, que deixasse a estrutura socioeconômica intacta, que não se contestasse os monopólios que cresceram durante a Ditadura a base do arrocho salarial das massas. Era necessário preservar as lideranças políticas conservadoras, que deveriam se afastar paulatinamente da esfera governamental e se apresentar como defensores da democracia. Os novos tempos da política brasileira seriam marcados por eleições diretas para todos os principais cargos da República e num espectro ideológico muito mais diverso que os dos últimos 21 anos. Aqueles identificados com o regime que levou 15% da população ao desemprego e a uma inflação de três dígitos poderiam ser fulminados nas urnas pelo voto popular. O PMDB era um partido liberal que via a possibilidade de instaurar uma democracia nos moldes europeus e estadunidense no Brasil. O PMDB na sua prática nunca se mostrou sensível às mazelas do povo brasileiro, mesmo que em cima do palanque o tom fosse outro. O

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objetivo do PMDB eram as eleições diretas para presidente, posteriormente uma assembleia constituinte para acabar de vez com a Ditadura e a liquidação das leis de exceção para que houvesse um Estado democrático de direito liberal no país. Nunca houve do PMDB, ao contrário do que apontavam na época as siglas de esquerda PT e PDT, uma vontade de aprofundar a democracia brasileira. Portanto, não é de se espantar que houvesse uma costura política por parte de um grupo peemedebista com líderes do governo, para que a transição, não sendo feita pelas Diretas, pudesse ocorrer de forma palaciana a favorecer ambas as agremiações. Parte do PMDB, sua corrente mais conservadora, liderada por Tancredo Neves, aparecia no palanque das Diretas, mas trabalhava nos bastidores pela manutenção do Colégio Eleitoral na escolha do sucessor de Figueiredo. Numa eleição direta o candidato natural do PMDB seria Ulysses Guimarães, que se projetou muito na campanha das Diretas. Tancredo somente tinha chances se a eleição fosse realizada sob a égide do Colégio Eleitoral, tal como acabou acontecendo. Em depoimento a Ronaldo Costa Couto em 1997, Lula deixava uma interessante opinião. A citação é longa, mas vale a leitura:

Não é bom a gente falar de quem está morto. Mas eu acho que, nas Diretas, tivemos um problema muito sério. É que Tancredo trabalhou o tempo inteiro contra elas. (...) O Fernando Henrique Cardoso, na minha opinião, era um dos mentores disso também. Por quê? Porque a campanha das Diretas ganhou uma dimensão que, aos olhos de quem estivesse participando, era irreversível. Ou seja: não tinha como segurar aquilo. No comício que nós fizemos em Belo Horizonte, eu senti no Tancredo Neves a primeira vacilação. Ele pegou no meu braço, pegou no braço do Brizola e falou assim pra nós: ‘E agora? O que que a gente vai fazer com esse povo todo na rua?’ Quer dizer: se não fosse um povo vacilante...Tudo o que a gente quer é povo na rua, pô! Não tem que ter medo, né? Coloque na rua e deixa ver o que vai acontecer. Essa foi a primeira vacilação que eu vi do Tancredo Neves. Depois, ele tinha na cabeça o seguinte...Ele sabia que se tivesse eleições diretas naquele instante o presidente da República seria o Ulysses Guimarães, e não ele. O homem que, dentro do PMDB, tinha cacife pra se candidatar era Ulysses Guimarães e não Tancredo. E o que aconteceu? Na minha opinião, tem o dedo do Fernando Henrique Cardoso aí. De convencer o Tancredo Neves de que os militares não aceitariam o Ulysses Guimarães. De que era preciso ir minguando a questão das Diretas e, ao invés de Diretas-já,começar a mudar o slogan para Mudanças-já. Você está lembrado de que mudou o nome? De Diretas-já para Mudanças-já. E a mudança já implicava participação no Colégio Eleitoral. Quando terminou a Campanha das Diretas, que nós perdermos e a gente queria continuar o movimento, eu fui na casa do Ulysses Guimarães. O Ulysses tava deitado, eu entrei no quarto pra acordar ele. Foi até uma coisa que...Eu pensei que ele tava morto. Ele tava deitado com a barriga pra cima e as duas mãos assim. Eu e o Greenhalgh. Falei: ‘Será que o coitado morreu?’ Fui lá: ‘Doutor Ulysses” Doutor Ulysses!’ Aí ele acordou. Eu fui fazer um apelo pra gente fazer um outro comício em Belo Horizonte a favor das Diretas. Aí o Ulysses Guimarães sentou do meu lado e falou assim: ‘Lula, eu to contrariado. E possivelmente eu esteja com a mesma revolta que você está. Agora, eu sei quando eu sou derrotado. Tancredo me derrotou. Enquanto eu acreditava que a gente ia conquistar as Diretas e fazer eleições, o Tancredo Neves acreditava que, pelo

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Colégio Eleitoral, ele seria presidente da República. E ele construiu isso, Lula. Então, eu não vou continuar a Campanha das Diretas. O Fernando Henrique Cardoso me chamou na casa dele pra falar que era preciso encontrar uma saída dentro do Colégio Eleitoral, porque, se a gente insistisse na questão das Diretas, poderiam os militares ficarem revoltados e não abrirem.’ Então, eu acho que uma parte das elites que queria as Diretas começou a ficar com medo. Aquele comício em Belo Horizonte, o comício de São Paulo, o comício do Rio de Janeiro colocaram a nível apoteótico. Eu vim aqui a Brasília fazer um ato público. Ulysses Guimarães, Brizola, eu, Tancredo Neves. Uns quinhentos policiais cercaram a Associação. Ulysses e Tancredo deram as mãozinhas assim e saíram correndo. Outra coisa tem que ser dita. No tempo em que Tancredo Neves era só deputado, que tinha caído num ostracismo aqui, ele possivelmente fosse o deputado mais capaz que tinha nessa casa (...) o perfil do político Tancredo Neves não permitiria que ele entrasse numa aventura. Tancredo não colocava a mão em cambucá. Então veja: Tancredo descobriu que daria, pela via indireta, ele poderia se transformar no homem que daria, inclusive, tranquilidade aos militares. Ele trabalhou isso. Trabalhou isso com maestria junto aos meios de comunicação, junto aos empresários. Tancredo deu aos militares a garantia que o Fernando Henrique Cardoso deu à burguesia nacional agora [1997]. E essa mudança foi em pouco tempo. Porque, há pouco tempo atrás, o Tancredo era tido como um comunista pelos militares. O Fernando Henrique Cardoso, em 85, foi chamado de comunista por eles, que agora estão endeusando ele. Então, você percebe que a mudança política é uma coisa muito rápida. 62

O que podemos extrair do depoimento de Lula? O líder do PT pode ter esparramado um pouco sua crítica a Fernando Henrique Cardoso devido à conjuntura do momento em que foi entrevistado. O PT era o principal partido de oposição à implementação das políticas neoliberais pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso do PSDB. No ano seguinte, 1998, ocorreria eleição presidencial, na qual Lula seria derrotado novamente por FHC, que se reelegeria em primeiro turno. Na mesma obra História Indiscreta da Ditadura e da Abertura. Brasil: 1964-1985 de Ronaldo Costa Couto, FHC rebate dizendo que sempre trabalhou pelas Diretas Já e só começou a auxiliar nas articulações de Tancredo quando a Ementa Dante de Oliveira foi derrotada. Sobraria então somente a opção de vencer no Colégio Eleitoral. Francisco Montoro, que na época das Diretas era governador do estado de São Paulo pelo PMDB, também rebateu a opinião de Lula, dizendo que toda essa história de Tancredo e FHC conspirarem contra as Diretas foi história inventada pelo PT. 63 O próprio autor, Ronaldo Costa Couto, tendo sido testemunha das articulações de Tancredo e partidário deste, defende o político, colocando que ele se entregou de corpo e alma à campanha das Diretas. Mas observa. Tancredo era cético e sabia que a Emenda das Diretas

62 Idem. P. 331-333. 63 Idem. P. 333. FHC na época das Diretas era senador pelo estado de São Paulo também pelo PMDB. O PT foi o único partido de oposição à Ditadura que posteriormente não apoiou Tancredo Neves no Colégio Eleitoral, tendo defendido o voto nulo por não reconhecer aquela instituição como democrática, mas sim como criação da Ditadura.

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não seria aprovada. Sabia que em uma eleição direta para presidente o candidato do PMDB seria Ulysses Guimarães. Mas no caso da disputa permanecer no Colégio Eleitoral, como acreditava que seria e como realmente foi, ele seria o único candidato de oposição aceito pelo regime. Porém, o testemunho de Lula aponta fatos irrefutáveis. A campanha das Diretas Já amedrontou as elites brasileiras devido à maciça participação popular. Mesmo desejos do fim do regime ditatorial, a burguesia brasileira e seus superiores estrangeiros tinham motivos bem diferentes para a troca de regime político se comparado aos anseios das massas populares. Tancredo Neves e Fernando Henrique Cardoso nunca foram políticos radicais, ou oriundos das classes populares. Tancredo fez carreira sempre desviando de polêmicas e fazendo as graças da classe dominante durante a Era Vargas até o Golpe Militar. Foi o primeiro-ministro durante o breve período de parlamentarismo de 1961 a 1963 no governo Goulart. Sua postura conciliadora era a melhor forma para a classe dominante deixar tudo como estava mantendo uma cara amável. Fernando Henrique Cardoso era criação da intelectualidade paulistana, um liberal acadêmico, que gostava de versar tanto sobre marxismo que até enganou amigos e inimigos que lhe achavam “comunista”. Uma mobilização de massas como as Diretas Já não era o habitat natural para Tancredo e FHC. As costuras palacianas, bem longe do povo, parecem mais ações ligadas aos dois políticos. As Diretas Já ficaram perigosas a partir do momento que o número de manifestantes não parava de crescer. Seu ímpeto foi destroçado pela derrota da Emenda Dante de Oliveira no Congresso Nacional, por apenas a falta de 22 votos (prova de que as colossais manifestações fizeram pressão em rachar os votos governistas). Mais do que isso. Parte da burguesia e da alta classe média que desejava o fim do regime viu que aquilo era uma conclusão perigosa para a Ditadura, pois poderia levar o processo para rumos mais populares, principalmente pela participação vital de Brizola e Lula. É nesse cenário que a figura de Tancredo Neves aparece cada vez mais como uma candidatura capaz de responder os anseios de mudanças, encerrar o ciclo militar no comando do Estado e manter os alicerces da dominação de classes intactos. Seria evitado desse modo o radicalismo da transição, retirando do povo o protagonismo da mudança de regime e passaria essa incumbência a um Colégio Eleitoral extremamente conservador, onde a possibilidade de fim da Ditadura dependia não só de uma candidatura branda como a de Tancredo, mas da participação vital de líderes políticos civis criados pelo regime de exceção.

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7

A ELEIÇÃO DE TANCREDO NEVES: A TRANSIÇÃO DESEJADA PELO CAPITAL

A campanha das Diretas Já (1983-1984) nasceu como uma pequena movimentação política da oposição à Ditadura e transformou-se no maior movimento de massas da história do país, contando com colossais manifestações nos grandes centros urbanos. A eleição direta para presidente era o passo a ser dado pela oposição, após a promulgação da Lei de Anistia e o retorno dos exilados. No entanto, a Emenda Dante de Oliveira, responsável pela proposta de eleição direta para o sucessor de Figueiredo, precisaria do voto de congressistas do próprio partido do governo, o PDS, para obter os 2/3 necessários a uma emenda constitucional. É dessa necessidade que nasce a ideia de comícios Brasil afora, no intuito de sensibilizar deputados e senadores do PDS a ouvir o clamor popular pelas Diretas. Ao longo da campanha, a bandeira das Diretas Já ganhou os mais variados apoios, de partidos políticos, movimentos sociais, intelectuais, artistas e claro, da maioria esmagadora da população brasileira, que fez os comícios da campanha entrarem para a história nacional. A crise dos anos 1980 – a pior da história do capitalismo dependente brasileiro – e o clima de abertura, livre circulação de informação e organização política do período mostravam que a queda do regime era questão de tempo. Parte da própria burguesia, principalmente a ligada ao capital estrangeiro, também desejava o fim da Ditadura naquele momento. Isso se explica não só pela recessão econômica causada pela crise da dívida dos anos 1980, mas pelo novo momento do capitalismo internacional, com o advento das ideias neoliberais. A Ditadura militar cumpriu um papel fundamental de garantir a livre acumulação de capital aos monopólios nacionais e estrangeiros, baseados na superexploração da força de trabalho, mas naquele momento, sua política econômica com a participação do estado na economia já era datada. Isso explica a posição de boa parte da burguesia brasileira e estrangeira presente no país, incluindo os meios de comunicação monopolizados e que até então apoiavam a repressão, como a Folha de São Paulo e a revista Veja. Entretanto, é notório que os interesses da elite do país numa transição de sistema de governo não são os mesmos da massa de trabalhadores. Para a maioria da população, apoiar as Diretas Já naquele momento e exigir eleições diretas para presidente da República era

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muito mais do que a reivindicação do voto. A esperança da população com o fim da Ditadura era o término das mazelas de duas décadas de arrocho salarial, escassez de alimentos básicos, serviços públicos gradualmente sucateados, pobreza extremada. O povo igualava a mudança do regime com a mudança social do país. Que um presidente eleito pelo voto direto coloca-se o país nos eixos, diminuindo sua gritante desigualdade social e melhorando as condições de vida material do povo brasileiro. É essa esperança de mudança estrutural em prol dos trabalhadores que levou milhões de brasileiros e brasileiras às ruas nas Diretas Já, numa demonstração de mobilização política e cívica sem precedentes, ainda mais quando o país vinha de 21 anos de arbítrio e violência. O instrumento do voto direto era apenas uma ferramenta que fazia parte de uma contestação geral ao regime militar, sufocada não só pela censura e perseguição, mas também pela ignorância popular que foi imposta pela Ditadura militar como forma de domínio ideológico. A direita brasileira, presente tanto no regime, como em partes da oposição (PMDB principalmente) compreendia isso. Sabia que a vitória da Emenda Dante de Oliveira significaria a Ditadura vencida pelo povo. Seria admitir que a população não suportava o regime (e nunca o suportou) e colocou fim a ele com as próprias mãos, num movimento sem precedentes. O fim da Ditadura como resultado da mobilização popular nas ruas não era o cenário desejado pelas elites nacionais e internacionais. Era necessário um final brando, sem participação popular, ou agitações de massas. A política deveria ser sempre tratada como pertencente ao mundo da elite. Eles é que sabem o que e como deve ser feito. A burguesia brasileira e seus sócios maiores internacionais trabalham a ideia de que os mais ricos e estudados praticam a verdadeira política, a dos acordos, bastidores e gabinetes. Manifestações de rua com muita gente, ainda mais pobres e não-brancos, não é política, mas assim, agitação desordeira e ameaça à “paz social”. A classe dominante temia a radicalização do processo de transição que se materializava na campanha das Diretas Já. Não que houvesse casos de violência ou quebraquebra. As Diretas nunca descambaram para momentos mais tensos, com as multidões confrontando as forças policiais. Foram todas manifestações pacíficas, onde se via inclusive a participação de crianças e famílias inteiras. O problema era o protagonismo concedido ao povo pelas Diretas. A população brasileira, por meio de massivas jornadas, viraria o algoz da repressão. Esse era o principal problema das Diretas Já que a elite brasileira via no referido movimento. A Ditadura não poderia ser derrubada, muito menos pela participação maciça do populacho. Seu fim deveria

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ser brando, de forma segura aos donos do poder, de modo que continuassem nessa posição, apenas modificando-se o sistema de governo. Era necessária uma figura não veiculada ao regime, mas que não levasse o processo para vias populares. Que encarnasse a mudança tão almejada pelo país, mas que na verdade mantivesse o quadro geral do país intacto. Essa pessoa era Tancredo Neves, velha raposa da política brasileira. Os militares castelistas sabiam disso. A burguesia sabia disso. E o próprio Tancredo não só sabia que poderia ser o próximo presidente, como trabalhou incansavelmente para isso.

7.1

Tancredo Neves: um discurso no palanque, outro nos bastidores

Tancredo Neves foi eleito indiretamente como presidente da República pelo Colégio Eleitoral em 15 de janeiro de 1985. Era o fim do regime militar. Não chegou a assumir, pois faleceu sem tomar posse. Seu vice, José Sarney, antigo quadro político das oligarquias nordestinas e da Ditadura governou em seu lugar. Mas essa história de como um líder do PMDB, oposição à Ditadura, consegue a vitória dentro do Colégio Eleitoral e com votos de antigos apoiadores do regime militar é bem complexa. Abrange reviravoltas, pactos e ameaças. Para entendermos é essencial o testemunho de alguém que acompanhou tudo internamente. Ronaldo Costa Couto esteve presente no grupo político de Tancredo Neves nos anos 1980. Economista, com doutorado em história, foi secretário estadual de planejamento de Tancredo em Minas Gerais. Quando Tancredo assumiu a presidência foi nomeado ministro do Interior, cargo que exerceu entre 1985-1987 sob o regime presidencial de José Sarney. De 1987-1989 foi ministro chefe do gabinete civil da presidência da República. Seu livro História indiscreta da ditadura e da abertura é quase um relato dia a dia dos acordos e costuras que levaram Tancredo à presidência. 64 Como toda fonte histórica deve ser lida com atenção. É um rico manancial de depoimentos, memórias e citações que esclarecem vários dos acontecimentos da época. Porém, também é muitas vezes uma defesa das posições de Tancredo, assim como a defesa de

64 Uso como fonte nesse capítulo a obra de Ronaldo Costa Couto. História indiscreta da ditadura e da abertura. Brasil: 1964-1985. Record: Rio de Janeiro, 1998. P. 343-399.

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modelo político no qual o autor acreditava, o liberalismo, e a transição feita tal como aconteceu, sem a participação da população. Tancredo já trabalhava nos bastidores para lançar seu nome à presidência no Colégio Eleitoral como candidato da oposição mesmo antes da campanha das Diretas. Segundo Couto, não acreditava na vitória da mobilização popular, por ser necessário, de uma forma ou de outra, votos de congressistas governistas. Eram necessários 2/3 dos votos, o que na época representava 320 votos de 479. O PDS, partido governista sucessor da ARENA, detinha 235 deputados federais. A oposição 244. A ideia de manifestações populares para pressionar os deputados a votar a favor da Emenda Dante de Oliveira tinha como objetivo justamente mudar os votos dos pedessistas. O que ocorreu, mas não o suficiente. Com 298 votos a favor, faltaram apenas 22 votos para a aprovação da emenda. Era nítido que havia um racha nas fileiras parlamentares do regime. Entre os militares também. Como vimos no capítulo 5, a linha dura, presente principalmente nos órgãos de repressão, não estava convencida de sua retirada da cena política do país, ao contrário do grupo castelista. Fato é que, mesmo sem Tancredo acreditar, 65 parlamentares do PDS votaram pelas Diretas, fruto da pressão popular da campanha que levou milhões às ruas. Pouco faltou para sua aprovação. Tancredo participou ativamente das Diretas Já, mas nunca acreditou nela de verdade como solução política. Seus partidários creditam essa posição à inteligência e ceticismo político de Tancredo, em ter os pés no chão e saber que não havia conjuntura para uma vitória naquele estilo. Divergindo dessa linha, defendo que a posição de Tancredo tem haver com sua ideologia e prática política. Tancredo era um liberal no mais profundo entendimento que esse conceito político carrega. Não acredita em mobilização de massas, nem a desejava. A política na sua ótica era feita pelos bastidores, sempre dentro da ordem e legalidade burguesa, o que nunca compreende os trabalhadores. Tancredo não acreditava nas Diretas porque não desejava uma manifestação popular vitoriosa. Desejava os métodos palacianos do Colégio Eleitoral, longe das ruas. Por coerência com o liberalismo em que acreditava, no qual o ato político do povo se resume a votar de quatro em quatro anos; e por desejo pessoal de ser presidente, ainda mais num momento histórico para o país, com o fim da Ditadura. Mesmo não acreditando na manifestação popular, pegou o lema “Diretas Já” e transformou-o em “Mudanças Já” para sua campanha no Colégio Eleitoral. Com a impossibilidade da aprovação da Emenda Dante de Oliveira, a candidatura de Tancredo Neves

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iria canalizar todo o processo de mobilização política das Diretas. A ideia principal estava baseada em que se não foi possível acabar com a Ditadura pelas Diretas, havia uma segunda chance: a eleição de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral. Na verdade, isso foi um mote criado no calor das circunstâncias, porque ninguém tinha ciência da dimensão que a campanha das Diretas Já alcançaria quando a mesma foi lançada. O tamanho da mobilização popular das Diretas assustou quase toda a classe política brasileira, do governo à oposição liberal, não só não acostumadas à participação dos trabalhadores, como também completamente contrárias à tomada de posição dos mais humildes. Precisamos esmiuçar os bastidores políticos pós-Diretas Já, entre abril de 1984 e janeiro de 1985, para compreender como uma candidatura de oposição, como a de Tancredo Neves, conseguiu não só vencer no Colégio Eleitoral, como fazê-lo com confortável folga.

7.2

O racha no PDS

O PDS, partido da Ditadura, já não vinha bem das pernas. Havia grandes divergências dentro dos militares sobre como deveria se encaminhar a transição. Os políticos civis do PDS não eram um todo homogênio na defesa do regime. Também é de se levarem conta que com militares ou sem militares no poder, alguns políticos “profissionais” desejavam ascender no cenário nacional e ficar com a “fama” de reconduzir o país a um regime democrático. Durante a Ditadura era convenção o “presidente” em exercício escolher seu sucessor. Típica manifestação militar de autoridade pessoal transferida para o cargo político mais importante do país, sem levar em conta, obviamente, o que era o melhor para o Brasil. De certo que dos poucos candidatos disponíveis na caserna dos generais, nenhum deles faria muito melhor do que o outro. Apenas tratava-se de uma competição para ver quem conseguia afundar o país e humilhar o povo em menor tempo. Figueiredo não tinha tamanha capacidade política. Aliás, não era político e gostava de ressaltar sempre. Era soldado. Não teve habilidade, ou até não desejou, despender tempo unificando o PDS e apontando um candidato que conglomerasse a sigla para prosseguir com as rédeas do país por mais um mandato presidencial. Figueiredo não apoiou com firmeza uma candidatura militar, que certamente uniria todas as correntes do PDS, que estava representada naquele momento pelo ex-ministro Mário Andreazza.

121

Outro candidato forte era o vice-presidente Aureliano Chaves, com quem Tancredo Neves já tinha, em 1982, articulado o apoio do setor mais conservador do PMDB como uma candidatura de consenso! Essa articulação foi antes da campanha das Diretas Já, mostrando que Tancredo não tinha compromisso nenhum com qualquer mudança de regime que não fosse o bom e velho acórdão. O que melou a candidatura Aureliano e seu pacto com Tancredo foi justamente a maciça participação do povo durante as Diretas Já que muda a correlação de forças dentro do Congresso e evidencia o racha dentro do PDS. 65 No entanto, Paulo Maluf, que foi prefeito biônico de São Paulo e governador do estado, quadro civil da Ditadura e envolto em inúmeros casos de corrupção, aparecia também com sua candidatura. A ambição de Maluf de ser presidente, além de suas práticas questionáveis de angariar apoio político, dividia o PDS. Importantes nomes do conservadorismo brasileiro, como José Sarney (então presidente do partido) e Antonio Carlos Magalhães deixavam bem claro que não apoiariam a candidatura de Maluf à presidência, prenunciando o racha. Estava delimitada a disputa pela indicação a candidato presidencial entre Andreazza e Maluf dentro do PDS. A segunda candidatura com um ingrediente bomba, capaz de implodir a sigla e desenvolver o racha que poderia levar à vitória da oposição. A oposição, principalmente o PMDB já tinha o nome de Tancredo Neves engatilhado, estando o próprio participando das sondagens sobre um possível racha no partido governista. O racha era a possibilidade de vencer no Colégio Eleitoral. Estava colocada a missão para o PMDB, ir ao Colégio Eleitoral para acabar com o Colégio Eleitoral. Os demais partidos de oposição com representação congressual apoiaria Tancredo, com exceção do PT, que ainda tentou sem sucesso seguir com as Diretas Já. Ficou sozinho. Todo o PMDB, partido de oposição mais forte naquele momento já estava focado na possibilidade de fazer o presidente de forma indireta e tentava cooptar os votos dissidentes do PDS que garantiriam essa vitória. A vantagem do PDS no Colégio Eleitoral era ampla. O Colégio era composto por todos os deputados federais e senadores e mais delegações de cada estado da federação com 6 componentes, representando o partido majoritário em cada assembleia legislativa estadual. Eis os números:

65

O pacto Aureliano-Tancredo é descrito em Theotonio dos Santos. A Evolução Histórica do Brasil: Da Colônia à Crise da “Nova República”. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994. P. 265-269. E também por Ronaldo Costa Couto, com uma visão muito mais pró-Tancredo em op cit P. 322-323.

122

Composição do Colégio Eleitoral de 15 de Janeiro de 1985 e Número de Votos Por Partido Político PDS PMDB PDT PTB PT Total Senadores

45

22

1

1

0

69

200

23

13

8

479

Delegados 81

51

6

0

0

138

Total

273

30

14

8

686

Deputados 235 federais

de 361

votos Fonte: dados sintetizados por Ronaldo Costa Couto tendo como base números apresentados em 21 anos de regime militar, p. 191. Tabela feita pelo autor.

Sendo assim o PDS detinha 361 votos contra 325 dos partidos de oposição somados. Para a vitória de um candidato de oposição no Colégio Eleitoral seria necessária a cooptação de políticos do regime. E o racha que se prenunciava no PDS seria a oportunidade para isso. Figueiredo oscilava entre várias posições políticas, ironicamente, por sua total inaptidão para tal ramo. Não apontava um sucessor e alimentou em alguns momentos esperanças de prorrogar o mandato por mais alguns anos e abrir para eleições diretas depois disso. Ao fim, não havendo consenso dentro do partido, abdicou de escolher o sucessor e, em rede nacional de televisão, disse repassar a escolha para as bases do partido que deveriam discutir em assembleias estaduais. Maluf não desejava esse cenário. Sabia que sua base de apoio reduzia-se a praticamente São Paulo e outras influências pessoais Brasil afora. Não tinha apoio no interior do Brasil. Trabalhou nos bastidores, usando terceiros, para que o projeto de consulta às bases estaduais do PDS só fosse aceito com a concordância de todos os postulantes do partido à presidência da República. Ou seja, manobrou para uma situação em que sua discordância do processo tal como foi feito por Figueiredo fosse implodida. E foi exatamente o que aconteceu. O desejo foi acatado e quando Aureliano Chaves, Paulo Maluf e Mário Andreazza foram consultados sobre a possibilidade do candidato do partido ser escolhido numa consulta às bases estaduais, Maluf manifestou sua discordância e dinamitou a fórmula então escolhida por Figueiredo. Uma jogada tipicamente “malufista”. A escolha para Maluf deveria ser feita na Convenção Nacional do PDS, onde teria chance de convencer por meios inescrupulosos, como sempre o fez, os presentes a votarem na sua candidatura. Figueiredo entrou no pacto e levou a decisão do partido para a Convenção Nacional. Sarney, então presidente do PDS renuncia a presidência e prepara sua saída da

123

sigla. Jorge Bornhausen, empresário e senador por Santa Catarina, assume interinamente e renuncia poucos dias depois. Estava consumado o racha e se iniciaria a debandada do PDS. O PDS implodiu ao aceitar a proposta de Maluf de só decidir o candidato na Convenção Nacional e não nas assembleias estaduais. E a partir da Convenção Nacional começou a cooptação decidida do PMDB pelo apoio dos dissidentes do PDS para a candidatura de oposição de Tancredo Neves. O que temos aqui é um jogo de interesses desenfreado dentro do PDS. A candidatura do partido à presidência da República virou disputa pessoal dentro do partido da Ditadura, principalmente pelas ambições desmedidas de Paulo Maluf. A refutação ao seu nome por lideranças importantes do PDS, como Sarney, Aureliano Chaves, Antonio Carlos Magalhães e outros cacifes do empresariado e do latifúndio brasileiro, nada mais é do que as mesmas vaidades pessoais e divisão de grupinhos internos. Não houve nenhum desatino ideológico ou de concepção política. Todos estavam ali discutindo quem ficaria com a mão no volante e faria a “transição”. Os destinos da nação não passam pelas discussões internas do PDS e muito menos foram os motivos do alvoroço destrutivo do PDS. Os contatos para a dissidência do PDS feito por Tancredo Neves já se encaminhavam antes da escolha de Maluf como candidato à presidência. Não foi algo pensado depois. Tancredo Neves já articulava a saída de boa parte do PDS do partido, o que garantiria a maioria necessária para sua própria eleição no Colégio Eleitoral. Lideranças de grande respaldo da direita brasileira, como Sarney, Bornhausen, Antonio Carlos Magalhães, Marco Maciel e Aureliano Chaves deixam o PDS após a vitória de Paulo Maluf na Convenção Nacional do partido. Formaria a Frente Liberal, embrião do Partido da Frente Liberal (PFL, atual Democratas), um partido de quadros políticos da Ditadura, mas que agora se apresentaria como sustentáculo vital da candidatura Tancredo. Sarney posteriormente seria indicado como vice na chapa com Tancredo, o que o levaria não à Frente Liberal, mas sim ao PMDB (!). A criação da Frente Liberal e depois do PFL é o típico transformismo partidário por qual passavam os quadros políticos civis da Ditadura. Eram novos tempos na política brasileira e a sobrevivência eleitoral de alguns indivíduos estava em jogo. Ninguém queria ficar para apagar as luzes da Ditadura, muito menos ser lembrado como partidário da mesma e responsável por afundar a campanha das Diretas Já. Era necessário para essas personalidades fisiológicas da política brasileira manter-se em evidência, porém com uma nova cara, se articulando com a “mudança” necessária para o país que a população tanto aguardava.

124

7.3

Tancredo Neves: o candidato perfeito das elites

Tancredo negociava sem escrúpulos a dissensão do PDS e os novos votos que o tornariam presidente. Golbery do Couto e Silva, ideólogo da Ditadura militar também tramava nos bastidores para que a vitória de Maluf na Convenção significasse a derrota do próprio Maluf no Colégio Eleitoral. Disseminar os antigos quadros da Ditadura e diversificar o cenário partidário brasileiro fazia parte da sua estratégia para que o regime militar terminasse de modo suave, sem grandes mudanças na estrutura socioeconômica do país e sem apoderamento popular do processo de transição. Como nos coloca Theotonio dos Santos: Durante este período Golbery foi nomeado por Tancredo Neves para ser um dos curadores da restauração do Colégio Caraça em Belo Horizonte, razão pela qual se viram frequentemente nesse período, não em função do Caraça, mas para preparar o desgaste do PDS e se inviabilizasse a candidatura Andreazza. Isso foi feito imediatamente depois que Maluf derrotou Andreazza. Se como competidor de Andreazza Maluf não podia ser derrotado, pelas mesmas razões não poderia enfrentar a candidatura da oposição. Maluf se enfrentava agora a um candidato legitimado pela sua lisura na vida pública. Como estava prevista, no dia seguinte à sua vitória, Golbery já havia abandonado a sua candidatura aos cães e já havia, de fato, passado para a candidatura de Tancredo Neves. Ao mesmo tempo, todo o seu grupo de liberais rompia com o PDS, principalmente o seu chefe Aureliano Chaves, para vir a constituir um novo Partido da Frente Liberal, que estabelecerá a Aliança Democrática [com o PMDB] que apoiará a candidatura de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral. 66

Tancredo esperou a Convenção Nacional do PDS para lançar sua candidatura. Tancredo estava pronto para apoiar Andreazza caso esse derrotasse Maluf

67

. Caso contrário

(e foi o que aconteceu), já tinha a palavra garantida de apoio de Sarney e Antonio Carlos Magalhães. Nenhuma posição nesse jogo vislumbrava o futuro do país. Estava em discussão somente os objetivos políticos e pessoais dos envolvidos. A Convenção e consequentemente o racha aconteceram no dia 11 de agosto de 1985. Tancredo renunciou ao governo de Minas Gerais três dias depois. O PMDB fecha aliança com a Frente Liberal, a Aliança Democrática. Pontos principais: a eleição da chapa Tancredo-Sarney no Colégio Eleitoral e a constituição de um sistema de governo liberal, sem nenhum tipo de punição aos crimes cometidos pela Ditadura (o tal “revanchismo” segundo os militares). 66 Theotonio dos Santos. Op cit. P. 269. 67 Ronaldo Costa Couto. Op cit. P. 369-371.

125

A garantia do não “revanchismo” foi peça fundamental para os militares não se preocuparem com a vitória da candidatura Tancredo-Sarney. A linha dura dos militares ainda deu seus últimos suspiros, plantando bandeiras comunistas do PCB e do PCdoB em comícios de Tancredo.

68

Mas não havia mais clima para a continuação dos delírios dos aparatos de

segurança, que enxergava comunismo até na roupa da Chapeuzinho Vermelho. Tentativas de golpe foram monitoradas pelo próprio Tancredo 69, mas nunca passaram de ilusões reacionárias de poucos militares da linha dura. Os próprios líderes castelistas, como Geisel e Golbery já tinham passado para o outro lado ao ver que Tancredo era a certeza da transição com continuidade, sem sustos. O depoimento de Sarney mostra muito bem o tipo de transição desenhada pelos políticos representadores da burguesia e os militares: A transição deu certo, porque nós constituímos um grupo de políticos. A união do Tancredo, do Ulysses, Aureliano, Marco Maciel, eu, os outros todos. E fizemos uma coisa fundamental: tomamos vacina contra a área militar. Para inibir reações de setores militares antagônicos. Isso foi feito com o general Leônidas, no Exército. O Aureliano ajudou junto à Marinha, com os almirantes Sabóia e Maximiano...O brigadeiro Murilo Santos na Aeronáutica, e assim por diante. Assim, tínhamos um esquema que, na hipótese de qualquer reação, O III Exército, com o general Leônidas, garantiria. Ele fez um proselitismo dentro das Forças Armadas para que a transição fosse feita, fosse bem-sucedida. Graças a isso, nós tivemos a segurança de fazê-la. É a minha tese, que repito sempre: a transição tinha que ser feita com as Forças Armadas, não contra as Forças Armadas. Quer dizer: o contrário do caso argentino. A ideia de que a transição deveria significar a derrubada dos militares do poder, essa era extremamente perigosa. Então nós fizemos justamente com o Tancredo. Foi feito com Tancredo, com as Forças Armadas. Ninguém sabe disso até hoje [1997]! 70

Os militares queriam a não-punição para os crimes que cometeram durante a Ditadura e perceberam que Tancredo honraria tal desejo. Tancredo queria ser presidente e viu o racha do PDS e o anseio dos militares como uma oportunidade. Toda essa movimentação de mudanças de lado mostrava um engenhoso clima de intriga, onde não existe o Brasil nem os problemas do povo. Os rachas e acordos são tentativas pessoais de se dar bem e revelam um profundo individualismo de todos os lados envolvidos em não radicalizar o processo de transição.

68 Idem. P. 372. PCdoB e PCB não tinham representação parlamentar, mas apoiaram a candidatura de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral. O PCB estava dominado por uma ala social-democrata que se tornaria rapidamente grande defensora do neoliberalismo. Essa ala sairia do PCB nos anos 1990 e formaria o PPS, um partido de direita totalmente fisiológico. 69 Ronaldo Costa Couto. Op cit. P. 372-383. 70 Idem. P. 380.

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Tancredo não era diferente, agia da mesma forma e sendo o mentor de tal conjuntura na maior parte das vezes. Paulo Maluf, cuja derrota era certa com a aliança da Frente Liberal com o PMDB, ainda sofreu pressões para renunciar sua candidatura. Seria indicado pela direção do PDS para seu lugar, Walter Pires, militar, então ministro do Exército. Uma candidatura militar poderia colocar todo o plano de Tancredo por água abaixo, mas a mesma não logrou. 71 Tancredo Neves era o candidato perfeito para “mudar para deixar tudo como estava”. Sem punição aos militares, sem participação protagonista política das massas, sem mudanças econômicas bruscas que fossem indesejadas ao grande capital. O próprio Ronaldo Costa Couto, seu partidário, definiu bem a preferência por Tancredo Neves tanto pela oposição, quanto pelo próprio regime: O poder militar certamente concluiu que o custo da assimilação de Tancredo era admissível. Moderado, confiável, dono de reconhecida capacidade de conciliação e liderança, ele não ameaçava intoleravelmente seus principais interesses e preocupações estritamente profissionais. Como o risco do revanchismo, a garantia de saída digna e pacífica do poder, o respeito às Forças Armadas, a continuidade da política militar propriamente dita, o apoio à indústria nacional de armamentos, a certeza de um governo discretamente conservador a curto prazo, com amplas possibilidades de evitar a prevalência da esquerda radical a longo prazo. 72 [grifo meu]

Tancredo Neves vence de forma tranquila Paulo Maluf no Colégio Eleitoral por 480 a 180. Foram 231 votos do PMDB, 113 do PFL, 65 do PDS, 27 do PDT, 11 do PTB e 3 do PT, que votaram contra a posição de voto nulo do partido. 17 abstenções e 9 ausências. Destaquese que 65 membros do PDS permaneceram no partido e ainda sim não votaram no próprio candidato, Maluf. O repúdio a sua pessoa realmente minou as chances de sobrevivência do regime. Na véspera da posse se sente mal e falece cerca de um mês depois. No dia 15 de março de 1985, seu vice, José Sarney recebe o poder. Após a morte de Tancredo, assumirá efetivamente como presidente no dia 21 de abril. Era o fim da Ditadura militar e o início da Nova República. Na prática, o mesmo grupo político que comandou o país durante o regime militar ganha mais meia década de governo. José Sarney era cria da Ditadura e do latifúndio nordestino no Maranhão. Vimos que sua saída do PDS baseava-se com brigas internas que

71 Idem. P. 394. 72 Idem. P. 396.

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misturavam muito mais a política pessoal e o personalismo do que graves discordâncias político-ideológicas. Estava aberto o período pós-ditatorial da história brasileira.

7.4

Quem era Tancredo Neves e sua utilidade para as forças conservadoras

A Transição no Brasil tem dessa forma como grande figura não mais as massas trabalhadoras mobilizadas pelas Diretas Já. Quem se torna a face da Transição é Tancredo Neves, político conservador, que sempre sobreviveu na política brasileira devido à articulação de bastidores em que ficava nítida nas suas práticas a necessidade de afastar medidas realmente democráticas, que envolvessem o povo trabalhador nas decisões políticas. Tancredo Neves, um genuíno político “tradicional”, era um representante dos interesses da classe dominante. Comprometido com a livre iniciativa e a participação do capital estrangeiro na economia brasileira, será o garantidor do capitalismo dependente no Brasil e a permanência das condições de reprodução do capital ilimitadas no país após a mudança de regime. Essas condições de modo claro são a manutenção da superexploração do trabalho que cria a desigualdade social endêmica no Brasil. Em um momento delicado no país, em que era perceptível a queda do regime militar e já corria o descontentamento das massas, Tancredo Neves foi o desfecho mais eficaz com que a elite nacional e internacional poderia desejar para a Ditadura. Apresentava-se como oposição aos anos de brutalidade e pobreza do regime militar sem, no entanto, apontar para qualquer modificação estrutural que viesse a tirar o brasileiro comum da miséria e a Nação da pior crise econômica que enfrentou no século XX. O essencial para a burguesia brasileira e internacional, assim como seus representantes políticos e militares, era não mostrar o fim da Ditadura militar como uma queda, como uma derrota. Muito menos que essa derrota fosse resultado de mobilizações de massas, nas quais se destacavam líderes, partidos e movimentos sociais de esquerda. Essa situação causaria um entendimento social de que a Ditadura foi deposta pelo povo, além de abrir um espaço para um aprofundamento democrático e um giro político à esquerda na política brasileira nos anos subsequentes. Um regime democrático levaria claramente a uma nova constituição onde poderiam prevalecer as posições populares e a eleição de um presidente de algum partido de esquerda, como Lula (PT) ou Brizola (PDT).

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Era necessário que a Transição se apresentasse como conciliação, em que se misturaria um bom agrado dos militares em deixar o poder, e a posse de um civil que por essa característica se postaria como novidade e sinônimo de democracia, mas que, em realidade, seria um agente da manutenção das condições socioeconômicas vigentes. Além disso, esse representante, que se apresentou na figura de Tancredo Neves, deveria ser alguém que veio “de cima”, para que a política continuasse apartada das massas. A boa condução do país deveria ficar nas mãos de quem tem pedigree; somente aos ricos e poderosos pode se entregar a condição de dirigentes da nação sem a possibilidade de sustos indesejáveis. A conciliação é um velho recurso ideológico liberal, onde numa situação de injustiça, com dominados e dominantes, explorados e exploradores, se propõem um aperto de mãos sem ressentimentos, entre o que carrega o chicote e o que o sente nas costas a dor e o fardo da mesma. Vera Alice Cardoso Silva e Lucília de Almeida Neves Delgado definiram bem Tancredo Neves, sua visão político-ideológica e sua visão da Transição: Tancredo Neves tem sido considerado o protótipo do político conciliador. O valor atribuído a esta qualidade varia, dependendo de quem faça a avaliação. Para os que se identificam mais à esquerda do espectro político, a conciliação é uma forma de atrasar mudanças mais radicais e mais genuinamente democráticas. É, consequentemente, uma prática política a ser olhada com reservas, quando não inteiramente rejeitada. Para os que estão mais à direita, aqueles que não desejam mudanças rápidas e mais abrangentes na estrutura das relações sociais, a conciliação é vista como uma estratégia desejável de reforma gradualista. Através dela podem incorporar-se novos interesses ao jogo político sem que sejam rompidos radicalmente os padrões anteriores de mando sobre a sociedade. Para Tancredo Neves, conservador que era, mas convencido da necessidade histórica de democratizar a política brasileira, a conciliação não era apenas uma opção política circunstancial e pragmática. Não era mero oportunismo, mas impunha-se pelo próprio tipo de evolução da sociedade brasileira. 73

Tancredo Neves se tornou um “democrata” somente pela campanha midiática, historiográfica e memorialística que se construiu pela sua eleição no Colégio Eleitoral e sua morte. O falecimento do presidente eleito foi um capricho da história, que canonizou uma figura escorregadia da política brasileira como campeão da democracia, e serviu para fechar a Ditadura e realizar a transição de maneira satisfatória para a burguesia nacional e seus sócios estrangeiros. Tancredo era coerente com o seu liberalismo, ideologia na qual a participação política do cidadão se resume a escolher um “administrador” do país de quatro em quatro anos. Em 73

Vera Alice Cardoso Silva e Lucília de Almeida Neves Delgado. Tancredo Neves: A Trajetória de um Liberal. 2ª edição. Petrópolis: Vozes, 1985. P. 32-33.

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1979, com o fim do bipartidarismo, saiu do MDB e fundou o PP, sigla que teve pouco tempo de vida, devido à baixa adesão. Logo retornou ao agora PMDB para não sumir do cenário político. Em 1984, em plena campanha das Diretas, no qual aparecia nos palanques Brasil afora, mas tramava nos bastidores para levar a decisão sobre o próximo presidente para o Colégio Eleitoral, Tancredo elogiou a Emenda Figueiredo.

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A proposta do ditador, de

eleições diretas para presidente só em 1988, era uma tática para frear o ímpeto popular da campanha das Diretas Já. Tancredo não via nenhuma contradição com seus ideais “democráticos”. Já articulava com a Ditadura que era de confiança e manteria os militares impunes e o povo longe do poder. O suposto líder da Transição sequer desejava uma assembleia constituinte num cenário pós-Ditadura. Sua ideia era de que o Congresso vigente em 1985 (eleito em 1982), no qual o PMDB e o PDS eram os maiores partidos de forma esmagadora, revisse a Constituição de 1967, imposta pela Ditadura militar.

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A população sequer teria o direito de eleger uma

constituinte, na qual um acórdão entre PMDB e PDS garantiria a supremacia do capital sobre os interesses sociais latentes nas manifestações populares. Tal erro foi evitado pelas circunstâncias da época, de revindicações de participação política após 21 anos de regime ditatorial. Tancredo Neves, por ser um civil e estar ligado a um partido de oposição à Ditadura (PMDB), encarnou signos para a maioria da população que nunca defendeu. A ideia de que o fim do regime militar se traduziria numa mudança socioeconômica, capaz de tirar a população brasileira do estado de pauperismo mendicante que lhe foi imposto. Que o social prevalecesse sobre os interesses da elite e que de fato houvesse uma redemocratização do país. O nascimento de partidos e movimentos sociais ao longo da década de 1980 e as mobilizações setoriais, como o recorde do número de greves, e gerais, como a campanha das Diretas, mostravam que havia uma energia política reprimida por duas décadas que finalmente era liberada pelo povo. Em nenhum momento da sua trajetória Tancredo se alinhou com as reivindicações populares, mas sim, sempre foi a ponta de lança de frear avanços possíveis na política brasileira. Desde 1961, quando do compromisso parlamentarista para a posse de Jango

74 Ronaldo Costa Couto. Op cit. P. 366. 75 Theotonio dos Santos. Op cit. P. 272.

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(quando foi o primeiro-ministro), até o momento da Transição, sempre se caracterizou com o conciliador e amenizador dos momentos em que o povo estava mobilizado e nas ruas. No seu discurso de vitória

76

, em 15 de janeiro de 1985, como todo liberal, mistura a

necessidade de avanços sociais com o desenvolvimento econômico capitalista. Pondera que mais e melhor educação, saúde e habitação estão calcadas na livre iniciativa e na participação do capital estrangeiro. Todo um discurso ideológico para justificar a manutenção do capitalismo dependente e da superexploração do trabalho, ao mesmo tempo em que apresenta as bases dessa continuidade como condições para o avanço social. Nada mais falso e direitista. Promessas para amansar o povo num momento de inflação a 200% e dívida externa de 100 bilhões de dólares. 77 O pacto e a conciliação na verdade era por cima. A vitória de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral mostra como as várias frações da classe dominante, seus coronéis e empresários, entrevam num acordo que favorecia a todos e evitava o pior. A mobilização popular. Um belo retrato da conciliação era o ministério desenhado por Tancredo. O ministério elaborado misturava líderes do PMDB, com figuras do novo PFL, nada mais do que crias políticas da Ditadura militar que mudaram de lado no final do regime, justamente por compreender que o mesmo não se sustentaria por muito tempo mais. No primeiro grupo estavam Pedro Simon (agricultura) e Waldir Pires (previdência), além de Ulysses Guimarães como líder na Câmara dos deputados e Fernando Henrique Cardoso no senado. Mas é o segundo grupo, dos dissidentes do PDS que criaram o PFL, que se destacam. Até pouco tempo grandes defensores do regime opressor, figuras como Antonio Carlos Magalhães (telecomunicações), Aureliano Chaves (minas e energia) e Marco Maciel (educação) se tornaram ministros em postos-chave da “transição democrática”. O transformismo desses e de outros estava completo. Não eram mais apoiadores da Ditadura, mas sim, defensores da democracia. A dissidência do PDS que funda o PFL optou por se aliar a Tancredo, de modo a manter no poder os interesses dos grupos direitistas que representavam. Tancredo, com sua visão liberal de conciliação, não via o menor problema a se aliar a próceres da Ditadura. De fato, não havia nessa aliança nenhuma contradição de classe ou de ideologia, muito menos de projetos econômicos e políticos.

76 Vera Alice Cardoso Silva e Lucília de Almeida Neves Delgado. Op cit. P. 288-297. 77 Ronaldo Costa Couto. Op cit. P. 404.

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O acórdão entre antigos opositores (PMDB e PFL, herdeiros respectivamente do MDB e de parte da ARENA) recebeu o nome de Aliança Democrática. Na verdade, tratava-se de uma aliança entre os vários setores da burguesia brasileira, apoiados pelo capital estrangeiro, para cessar o movimento reivindicativo das massas e organizar um novo sistema político pósditatorial que lhe beneficiasse. Para Tancredo Neves e toda a classe social que ele representava, a transição deveria ser a passagem tranquila para uma “democracia” liberal. Um sistema político assentado na economia capitalista de mercado, com menor intervenção do Estado na economia e alguns direitos sociais básicos que na maioria das vezes são desrespeitados devido à primazia do capital sobre a cidadania. A classe dominante soube trabalhar muito bem o “novo momento” do país, com o fim do regime dos generais e a posse de um civil. Um civil oriundo de um partido de oposição à Ditadura e que era apresentado com um grande lutador pela democracia. Mais do que sua eleição indireta no Colégio Eleitoral, a sua desaparição física criou uma áurea incontestável sobre Tancredo. O santificou como o “pai” da Transição e elevou à categoria de herói nacional. 78 Na realidade, Tancredo Neves era um arranjador das elites, o político habilidoso em abrandar momentos de grande mobilização pessoal. O que delineava seus atos era a defesa de seus ideais de classe, o liberalismo, além de suas ambições pessoais. Sua eleição indireta e sua morte canalizam o que seria o protagonismo popular na Transição para as mãos da elite. Reforça o personalismo da política brasileira ao canonizar sua figura, e assim permanece, com essa postura sendo repetida pela historiografia e o poder público mostrando Tancredo Neves como um homem que ele não foi.

78

Em quase todas as cidades brasileiras há algum lugar ou instituição brasileira com o nome de Tancredo, geralmente fazendo alusões à democracia. Como exemplo, o Panteão da Pátria e da Liberdade em Brasília, monumento que deveria homenagear os heróis da pátria, leva seu nome.

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7.5

Os solavancos dialéticos da Transição

A Transição, tal como ela foi realizada no Brasil, foi uma forma branda e elitista de permanência dos atores políticos representantes das elites, como condição da manutenção dos signos do atraso socioeconômico do povo brasileiro e da sua não participação política nos movimentos decisivos do país. Como contrapartida dialética, isso também significa o recrudescimento da dependência econômica do Brasil frente ao capital internacional, baseado na superexploração do trabalho, além, no que tange a superestrutura política, da manutenção dos líderes civis que criaram e foram criados pelo regime militar e o reforço do personalismo elitista da política brasileira. O Golpe de 1964 foi gestado e implementado devido a dois objetivos principais. O primeiro, barrar o avanço nacionalista-popular que representava não só o governo de João Goulart, mas muito mais a organização de massas que o apoiava e de certa maneira o forçava a ir mais além do que muitas vezes desejava. Nisso se encontravam forças nacionalistas revolucionárias, com a liderança de Leonel Brizola, e comunistas, como o PCB e algumas de suas dissensões. O segundo, a manutenção das condições socioeconômicas para a reprodução do capital e sua consequente monopolização, na maioria das vezes, por empresas multinacionais estrangeiras. Esse objetivo estava baseado na superexploração do trabalho, que produz uma mais-valia extraordinária e nas facilidades para a instalação em território brasileiro de investimentos diretos vindos de outros países, notoriamente dos Estados Unidos. Para isso era vital a queda de um governo que representava uma tentativa de autonomia nacional e calar violentamente as vozes dissonantes da sociedade que questionavam a superexploração dos trabalhadores. Parte das lideranças militares e civis que articularam o Golpe de 1964 o encarava como uma intervenção militar, com o objetivo de retirar de cena seus inimigos e forjar uma democracia tutelada. Esse plano inicial era desenvolvido pelo grupo castelista, ou grupo da Sorbonne, de militares ligados à Escola Superior de Guerra, como Castelo Branco (daí o adjetivo “castelista”), Ernesto Geisel e Golbery do Couto e Silva. No entanto, devido à resistência popular por meio dos movimentos sociais, partidos de esquerda clandestinos e até de movimentos guerrilheiros inspirados pela Revolução Cubana, a “intervenção” se tornou uma Ditadura prolongada, chegando até desagradar líderes civis que outrora apoiaram o Golpe. A repressão levou a ascensão da chamada “linha dura”, grupo de

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militares ligada aos órgãos de repressão que instalou, a partir do governo ditatorial de Costa e Silva e principalmente com Médici, um estado semifascista no Brasil, tendo a barbárie da tortura e de assassinatos como política de Estado. Até mesmo o nacionalismo vazio da caserna foi utilizado como tentativa de angariar apoio popular à Ditadura. A crise mundial a partir de 1973 e a consequente crise da dívida dos anos 1980, somado ao desaparecimento dos focos de resistência armados ao regime, levou à necessidade de descompressão da Ditadura, iniciado por Geisel, que levaria ao fim da censura e do AI-5. O projeto de Abertura colocado em prática pelo último dos ditadores, João Baptista Figueiredo, traria de volta os exilados, com a Lei de Anistia, e reformaria a cena políticapartidária do país com o fim do bipartidarismo e as eleições diretas para governadores dos estados. Esse processo de descompressão e de abertura levou à rearticulação das forças políticas populares, principalmente as que pertencem ao campo ideológico da esquerda. Sem censura e com menor grau de repressão que outrora, essas forças levariam ao questionamento não só das péssimas condições de vida material dos brasileiros, mas também do sistema político e da estrutura econômica dependente como um todo. As forças de esquerda organizada denunciam a Ditadura e sua política econômica como causadores do estado de miséria total que se encontrava a maioria da população. Compreendendo que uma mudança radical nesse processo de caos socioeconômico somente seria exequível com o fim do regime militar, as forças populares organizam suas fileiras pelo fim do governo de exceção. O maior exemplo de canalização dessa frustração de duas décadas se deu na campanha das Diretas Já, na qual a reivindicação das eleições direitas para presidente da República era o mecanismo encontrado pela população pobre do país no sentido de melhorar suas condições de vida. Com o temor que o fim da Ditadura fosse realizado por meio de mobilizações de massas, onde claramente o protagonismo do povo trabalhador e a presença vital de lideranças de esquerda, como Lula e Brizola, significaria a inviabilização de uma continuidade direitista no período pós-ditatorial, a burguesia brasileira e seus representantes políticos e militares promovem um pacto de governabilidade. O processo de Transição pelas Diretas Já é inviabilizado, com uso da máquina política do regime decadente. Em seu lugar, a Transição adquire um caráter conservador, com uma aliança entre a oposição liberal (PMDB) e próceres do regime que mudam de lado aos 47 do segundo tempo, retirando-se do PDS, partido do governo em ebulição, e forjando a Frente Liberal (embrião do PFL, atual Democratas). Esse movimento tinha como objetivo manter os interesses do grupo

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direitista na nova situação política do país que se abria, além de garantir a sobrevivência eleitoral de apoiadores da Ditadura, que poderiam ter suas vidas políticas futuras ameaçadas se continuassem ligados ao antigo regime. Das várias facções que compunham o PMDB prevaleceu os interesses da mais conservadora, liderada por Tancredo Neves e que almejava lançar o próprio como candidato à presidência da República no Colégio Eleitoral. Tancredo aparece como o conciliador em que sua visão liberal-conservadora do Brasil atrai e é atraída pela parte dissidente do regime que procura o seu meio de sobrevivência política no Brasil pós-ditatorial. Ambos os grupos, PMDB e PFL, se aproximam pelas suas semelhanças ideológicas e de corte de classe, e pelo entendimento de que era possível a partir do seu acórdão realizar a Transição sem maiores sustos para o grande capital. Dessa forma, mais um grande momento na vida política do país é apresentado como uma concessão das elites para com o povo e não uma conquista da população politicamente organizada. Tal situação tem tanto na sua materialidade, quanto na sua carga simbólica, um signo de continuidade entre a Ditadura e o momento pós-ditatorial, e não uma ruptura que desembocasse em um regime verdadeiramente democrático. A eleição de Tancredo Neves para a presidência da República de forma indireta pelo Colégio Eleitoral é o resultado desejado pelas elites para o processo de transição. Marca o desfecho da intervenção planejada pelo grupo militar castelista, talvez não em sua forma, mas com certeza, no seu conteúdo. Prova é que a vitória de Tancredo foi produto não só das articulações do mesmo, mas também da aprovação de sua candidatura pelos grupos militares e da burguesia brasileira, assustados com a mobilização popular das Diretas Já. Com isso, a versão da direita brasileira, de que o Golpe de 1964 e a Ditadura subsequente foram somente uma intervenção para enfrentar o “perigo vermelho” que ameaçava a democracia brasileira (!) ganha uma desejável conclusão. Afinal, grandes líderes civis do regime de exceção, como Aureliano Chaves, Marco Maciel e Antonio Carlos Magalhães se apresentavam nesse momento como grandes democratas. Por um capricho da história, o primeiro regime pós-ditatorial é liderado por José Sarney, que até meses antes da vitória de Tancredo era presidente do partido governista, o PDS! Para os políticos civis ligados ao regime, a Transição significou nada menos do que sua permanência do poder. Para os que continuaram no PDS (atual PP – Partido Progressista), sua vida política continuou tranquilamente, oscilando em atitudes oportunistas, e sem terem seu passado ligado ao regime militar.

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Para os militares a vitória de Tancredo era a garantia da não punição dos crimes contra a humanidade cometidos pelos órgãos de repressão das Forças Armadas. O SNI (Sistema Nacional de Informações) continuaria ativo durante boa parte do governo Sarney. Seria substituído pela ABIN (Agência Brasileira de Inteligência, criada em 1999), mas os militares interveriam em greves durante os anos 1980 e 1990 a pedido dos presidentes Sarney, Collor e Fernando Henrique Cardoso. Sua doutrina militar antipopular, pró-Estados Unidos e elitista permaneceu intacta, assim como se mantiveram impunes as torturas, estupros, assassinatos e sequestros devido a Lei de (auto)Anistia outorgada por Figueiredo em 1979. Por último e não menos importante, para a classe dominante, os capitalistas ligados aos monopólios nacionais e internacionais, a Transição pelas mãos de Tancredo significou a tranquilidade para seus negócios. Mais do que o temor dos militares de serem punidos por seus crimes (que eles viam como “revanchismo”) e os políticos “tradicionais”, são os desejos da classe dominante que mantém a estrutura da Ditadura mesmo após o fim do regime. A Transição tal como ela ocorreu foi a garantia de que a mudança se dava somente de maneira superestrutural, apenas com a modificação de sistema de governo. As condições socioeconômicas para a reprodução livre do capital foram mantidas e estava aberto um novo momento de expansão dos monopólios do país, que se materializaria com a implementação das políticas neoliberais nos anos 1990. E mesmo na mudança política superficial, estavam bem posicionados os líderes políticos da elite brasileira para prosseguir com as ações necessárias nesse campo que mantivessem tudo tal como estava. Florestan Fernandes sintetizou na época a situação da Transição como uma conciliação conservadora e seus efeitos sobre o país: Determinar o sucessor e as condições políticas da “transição” constituíam dois objetivos centrais, mas não os mais importantes. O essencial consistia (e ainda consiste) em impedir um deslocamento de poder, com uma acumulação de forças políticas acelerada das classes subalternas. O que os militares temiam era ainda mais temido pela massa reacionária da burguesia. Trocar a ditadura por um governo de “conciliação conservadora” era uma barganha imprevista, que o sistema de poder e de propagação ideológica da burguesia fortaleceu com estardalhaço por todos os meios possíveis (conferindo, inclusive, à campanha eleitoral de Tancredo Neves o estatuto de um movimento de salvação nacional). A partir daí, o PMDB perdera a capacidade de afirmar-se numa linha de combate coerente pela democracia e adernou à direita, arrastando na queda sua “esquerda parlamentar” e sua riquíssima irradiação popular. O antiditatorialismo passou por um processo análogo ao esvaziamento do republicanismo, provocado pela aliança dos fazendeiros com os “republicanos históricos”. Os touros estavam soltos na praça. Mas não havia toureiros. Os próceres do PMDB ocupavam-se em “matar as cobras com o próprio veneno”, enquanto estas mudavam de covil e se instalavam confortavelmente entre as cobras que infestavam o PMDB. Em seu clímax, o movimento político popular sofrera um golpe mortal. A “transferência de poder” converteu-se numa troca de

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nomes e, como afirmou um notável comentarista político, as velhas e as novas raposas aplainaram o caminho que levava à satisfação de seus apetites. Esse era o desdobramento que mais convinha às elites econômicas, culturais e políticas das classes dominantes. Esvaziar a praça pública, recolher as bandeiras políticas “radicais”, matar no nascedouro o movimento cívico mais impressionante da nossa história – restaurando de um golpe as transações de gabinete, as composições entre os varões “liberais” da República, o mandonismo político. Não o que negar: as figuras de proa, como Tancredo Neves, Ulisses Guimarães, Marco Maciel e Aureliano Chaves à frente, lavraram um tento. Exibiram um profissionalismo político de causar inveja. E tiveram êxito. O que consagra a ação política é a vitória. Vitoriosos, eles demonstraram o seu valor e a sua competência. E a Nação? Esta foi inapelavelmente empurrada da estrada principal. Moldura e cenário de uma reestruturação específica, que nos coloca metade na década de [19]20 e outra metade na década de [19]40. Mais que a eleição direta de um presidente, perdeu-se a oportunidade histórica única de usar o rancor contra a ditadura e a consciência geral da necessidade de mudar profundamente como o ponto de partida de uma transformação estrutural da sociedade civil e do Estado. E se ganhou uma mistificação monstruosa: a montagem política e ideológica de Frankenstein, batizado de Nova República e trombeteado pela cultura da comunicação de massa como uma “vitória do Povo na luta pela democracia!79

A morte de Tancredo Neves sem tomar posse funcionou como um ato caprichoso do destino para os planos da elite brasileira. Dessa forma, a não derrubada da Ditadura devido às Diretas, a transição como conciliação conservadora e a morte de Tancredo imobilizam qualquer tipo de mudança estrutural popular-democrática na sociedade brasileira junto da mudança de sistema de governo. Todos esses acontecimentos, planejados ou não, estão interligados numa vasta ação da classe dominante em realizar uma mudança de sistema político de forma branda e em desmobilizar as massas de trabalhadores organizadas. A fala macia e as promessas de vazias de mudanças guardavam na verdade a necessidade de ganhar tempo, e tirar o protagonismo político dos trabalhadores e mantê-lo com os representantes da elite. Ao invés da polarização “governo x oposição”, que estava colocada naquele momento como “ditadura x democracia”, o que houve foi uma pulverização dos políticos da Ditadura, o que favoreceu o final brando do regime e a vida política-eleitoral dos seus representantes posteriormente. Difundiram-se em outras siglas partidárias e apresentavam-se como parte do processo de transição. José Sarney, representante desse grupo de políticos civis da Ditadura acabaria como presidente da República, numa contradição sem tamanhos. A Nova República foi um ato de autodefesa da elite brasileira. A necessidade de modificar o sistema político era latente, e a classe dominante precisou tomar a frente, antes que os trabalhadores o fizessem. O objetivo principal era tolher a mudança que se desenhava

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Florestan Fernandes. Nova República? 2ª edição. Zahar: Rio de Janeiro, 1985. P. 27-28.

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pela mobilização das massas e manter o protagonismo político entre os conchavos dos endinheirados, fardados e engravatados. A consequência mais importante desse rearranjo das forças conservadoras do país foi a manutenção do caráter dependente de nossa economia, tendo a superexploração do trabalho como via de regra. Além disso, foi o ponto inicial para uma nova modernização reflexa da economia brasileira dentro da Divisão Internacional do Trabalho (DIT) que começava a se delinear com a chegada das ideias neoliberais ao país. O Brasil estava entrando, até um pouco atrasado em relação a outros países periféricos como México e Argentina, na globalização capitalista, momento em que a DIT entre em novo momento, porém, sem modificar a posição subalterna exercida pelo país. A saída para isso foi substituir a Ditadura por uma república liberal institucionalizada, baseada nos ideias de liberdades individuais, livre iniciativa e governo representativo. O regime militar já não era mais necessário às elites, pois a nova tendência do capitalismo internacional, o neoliberalismo, retirava o Estado de boa parte dos ramos econômicos, fazendo com que a política econômica da Ditadura fosse obsoleta para o grande capital. Num governo liberal, seria muito mais fácil a implementação dos ideais neoliberais já que a “modernidade” dessas mudanças estruturais estaria sob o verniz “democrático”. Na realidade, essa Nova República logo revelaria os limites dessa “democracia” para as grandes massas de trabalhadores. A estrutura capitalista dependente seria aprofundada com a chegada do neoliberalismo ao país, o que seria a obsessão do empresariado local a partir do início do governo Sarney e da convocação da Assembleia Constituinte em 1986. Uma “redemocratização” que já visava o neoliberalismo para uma boa parte de seus artífices não pode atingir nenhum estado democrático de direito. O neoliberalismo restringe conquistas trabalhistas e aumenta a desigualdade, como veremos em capítulos adiante desse trabalho. Há uma clara contradição sobre os sentidos diferentes de democracia dados por empresários e trabalhadores. A Nova República nasce sob a égide do conflito entre a velha ordem ditatorial, agora travestida de “democrática” ao absorver conteúdos liberais (e em pouco tempo, neoliberais), contra uma verdadeira proposta de democracia, vinda dos movimentos sociais e partidos de esquerda, ou seja, dos trabalhadores organizados. Esse conflito, não resolvido até hoje [2013], nos coloca não em uma sociedade democrática, mas sim, pós-ditatorial.

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8

GOVERNO SARNEY E PLANO CRUZADO: SENTIDO DO PRIMEIRO GOVERNO PÓS-DITATORIAL

A Transição foi realizada na forma de um grande pacto conservador entre o liberal PMDB, principal partido da oposição, e o racha do PDS, representantes civis da Ditadura e que debandaram do partido situacionista, fundando o PFL. Não há contradição de classe, muito menos ideológica entre esses dois agrupamentos. Ambos são representantes da elite brasileira, formada por latifundiários, empresários muitas vezes ligados ao capital estrangeiro e grupos específicos, como militares e os próprios políticos civis gestados e formados ao longo dos 21 anos de regime de exceção. Tancredo Neves, um dos líderes mais conservadores do PMDB foi o articulador do desmembramento de importantes lideranças civis do PDS. Uma intricada rede de favores e promessas foi realizada de modo que figuras como José Sarney, Antonio Carlos Magalhães, Jorge Bornhausen, Marco Maciel, Aureliano Chaves, entre outros, se descolassem do regime, fazendo parte da Aliança Democrática (PMDB-PFL) que garantiu a maioria no Colégio Eleitoral favorável à chapa Tancredo-Sarney. A mudança de lado pragmática de parte dos líderes civis da Ditadura explica-se pela clara incapacidade de manutenção do regime militar frente à Crise da Dívida dos anos 1980, que desestruturou toda a política econômica do governo e agravou a já calamitosa situação de miséria da maior parte da população. Soma-se a isso o fato dessa população reprimida pela violência ditatorial e esmagada pelo arrocho salarial, encontrava agora uma válvula de escape para seu descontentamento, com a reorganização de partidos políticos de esquerda e dos movimentos sociais. A explosão de insatisfação se deu nas massivas mobilizações das campanhas pelas Diretas Já, em que a reivindicação da possibilidade de eleições para presidente se misturava com a esperança de que o fim da Ditadura seria o término das condições socioeconômicas degradantes para o povo brasileiro. Junto com a participação determinante de líderes da esquerda, como Brizola e Lula, a possibilidade de derrubada da Ditadura através da pressão popular assusta as classes dominantes, que costuram nos bastidores um processo de transição brando culminando na candidatura de Tancredo Neves. A Transição não poderia ter como protagonista os trabalhadores, mas sim, parecer uma concessão do regime militar, e arquitetada pelos representantes da elite nacional. Além disso, os representantes políticos da burguesia deveriam passar por um transformismo político, de

139

modo a não serem mais vinculados ao regime que se encerrava. A sua sobrevivência políticoeleitoral é que determinaria a capacidade da classe dominante em modificar o sistema político sem ter ameaçado os pilares de sua hegemonia classista. Manter a superexploração do trabalho e não romper com o capital estrangeiro eram seus objetivos principais naquele momento. A morte de Tancredo Neves e a consequente posse de seu vice, José Sarney, são muito positivas para as forças conservadoras. Primeiro porque a morte canoniza a figura de Tancredo, que de um político conservador e escorregadio, passa a se tornar uma “figura heroica da democracia” brasileira, minando qualquer tipo de crítica ao processo de transição. Segundo, que a posse de Sarney, velho quadro político da Ditadura e que mudara de lado já no apagar das luzes do regime militar, mantinha o mesmo grupo político oriundo da Ditadura no poder, fazendo com que a máquina do Estado permanecesse em mãos confiáveis durante a Transição. Feita a Transição abrem-se novas perspectivas à classe dominante. Era necessário aprovar seus pontos de interesse na Assembleia Constituinte convocada para 1986 (e que se estenderia até 1988). E principalmente, alinhar o Brasil no novo momento da economia capitalista internacional, aplicando as políticas neoliberais. Por outro lado, a força das esquerdas cresce, levando à extensão do processo dialético de transição, no qual a disputa de dois modelos distintos se digladia. Esses modelos são resultantes de duas visões de classe diferentes, em que, para uma, a Transição representaria o aprofundamento da dependência e da superexploração do trabalho a partir da adoção do neoliberalismo (propagandeado pelos empresários desde o momento da vitória de Tancredo); e um projeto de transição que significasse uma radicalização democrático-popular que combatesse os males que assolavam a sociedade brasileira. O governo Sarney mostra essa disputa política de classes pela direção e objetivos do processo de transição, assim como, as remodelagens da economia brasileira em um momento em que o capitalismo mundial passava por uma reestruturação. Os embates de classe e, consequentemente, de projetos distintos para àquela conjuntura, também ficam evidentes nos trabalhos da Assembleia Constituinte (1986-1988) e chegam ao seu clímax e desfecho nas eleições diretas para à presidência da República em 1989.

140

8.1

Plano Cruzado

José Sarney era oriundo da oligarquia latifundiária do estado do Maranhão. Pertenceu à UDN (União Democrática Nacional), agrupamento de direita no Brasil pré-golpe. Durante a Ditadura, foi figura de liderança na ARENA, o partido do governo. Já no processo de Abertura, quando a ARENA é renomeada de PDS, se torna presidente do partido. No momento da Transição, por não concordar com a indicação de Paulo Maluf à presidência da República pelo PDS, abandona a sigla e entra no PMDB. As conversas para concretizar sua mudança de partido já vinham adiantadas com Tancredo Neves, mesmo antes do racha do PDS. Não era bem visto dentro desse partido, mas, devido aos acordos com Tancredo, seria nomeado vice na sua chapa. Devido à morte de Tancredo Neves, assume em abril de 1985 o cargo de presidente do Brasil. Teria quatro anos de mandato, mas por manobra do PMDB no Congresso, ganharia um ano a mais, permanecendo presidente até 1989. Sarney era uma figura estranha ao PMDB. Sempre foi, durante a Ditadura, um quadro político de primeira linha do regime. Devido às circunstâncias da Transição, acaba na sigla que foi sua adversária durante a Ditadura. No entanto, leva adiante o ministério escolhido por Tancredo Neves. Permaneceria no PMDB e se tornaria uma de suas principais lideranças ao longo do tempo. Depois de findado seu mandato como presidente, seria continuamente eleito senador pelo estado do Maranhão e depois do Amapá. Em 1985, Sarney se torna presidente do Brasil num capricho da história. Mudara de partido no segundo semestre de 1984, saindo do PDS para seu antigo rival, o PMDB. Tornase o vice na chapa de Tancredo que é eleito presidente da República pelo Colégio Eleitoral em janeiro de 1985. Na véspera da posse, em março, Tancredo adoece. Sarney recebe a faixa presidencial em seu lugar e seria empossado definitivamente como presidente no mês seguinte, quando Tancredo viria a falecer. Essa situação inusitada coloca o primeiro governo pós-ditatorial entre um choque de interesses de um país em transformação. Ao contrário da figura de Tancredo, praticamente sacralizada politicamente pela sua morte, Sarney não contava com respaldo, nem empatia popular. Dentro de seu novo partido, o PMDB, não tinha apoio majoritário, visto que vinha de uma recente troca de lado por ser oriundo do PDS. Para além desses problemas políticos, um novo momento econômico se firmava em todo o mundo. A reestruturação do sistema capitalista internacional feita pelas políticas

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neoliberais remodelava a Divisão Internacional do Trabalho (DIT), divisão na qual o Brasil se encontrava na periferia do sistema. Boa parte da classe dominante defendia a redução do Estado na economia e a liberalização total do comércio. A economia brasileira passava do investimento direto estrangeiro no mercado interno, para a fase neoliberal do capitalismo globalizado, em que o setor financeiro ganha destaque. O país teria que oferecer uma situação atraente para a especulação internacional, além de condições igualmente atrativas para a instalação de processos produtivos que eram deslocados naquele momento para a periferia do sistema capitalista internacional, enquanto as nações centrais monopolizavam as tecnologias de ponta e o controle do processo produtivo em escala global. A situação socioeconômica brasileira era alarmante para a maioria da população. A fração dos brasileiros que tinha renda per capita até um quarto do salário mínimo cresceu entre 1978-1988 de 25,3% para 27%.

80

A Transição com o fim da Ditadura era uma

esperança para os brasileiros de dias melhores pela frente e por isso havia grande expectativa dos próximos passos do governo. Todos esses entraves levaram o governo Sarney a buscar apoio popular. A política econômica de Sarney tenta um início mais moderado do que a praticada anteriormente pela Ditadura. O Fundo Monetário Internacional (FMI) pressionava o governo brasileiro após a Transição para a abertura da economia e a privatização das empresas estatais, assim como a classe dominante local. Os ditames do FMI, que começaram a ser colocados em prática por Francisco Dornelles (ministro da Fazenda escolhido por Tancredo), desagradam uma parte da elite brasileira. Essa fração da classe dominante, representada por pequenos e médios proprietários filiados ao PMDB e uma parte da burguesia industrial tenta realocar forças dentro do governo, com a demissão de Dornelles e a nomeação de Dilson Funaro para o cargo. Transformações vitais eram necessárias no modelo econômico que vinha sendo imposto pela Ditadura para sanar os graves problemas das contas nacionais. Da mesma forma, era necessário conceder, de forma pragmática, alguma ilusão de mudança para a maioria da população. Isso se devia aos fatos da esperança de mudanças com um governo civil por grande parte da população, aliado ao fato da necessidade de respaldo popular de Sarney, personagem que recebe a faixa presidencial sem apoio nenhum das massas.

80

Carlos Eduardo Martins. Globalização, dependência e neoliberalismo na América Latina. São Paulo: Boitempo, 2011. P. 311.

142

É nesse momento que surge o Plano Cruzado, como política econômica do governo Sarney que consistia em: (...) uma situação nova, uma tentativa de acelerar as transformações econômicas e políticas, que não vai, contudo, às bases, aos pontos nevrálgicos que tinham que ser tocados para que essas transformações se dessem. Vemos uma política de crescimento econômico sem reformas de base, de transformações financeiras e busca de moeda forte, sem aumento de capacidade de negociação internacional, com o desperdício e o descaso mesmo das reservas em divisas do país. Vemos uma política anti-inflacionária fundada na ideia da inflação inercial que foi a chave do pensamento econômico heterodoxo. E esta política se dá num momento em que o processo político brasileiro começava a ganhar uma dinâmica especial que realiza a passagem da proposta de simples abertura política para uma proposta mais radical, mais profunda: a proposta de redemocratização política do país e do estabelecimento de uma Nova República tal como Tancredo anunciou nos seus discursos de campanha. 81

Por mais insustentável que seja essa política econômica traçada no governo Sarney é de se espantar que a mesma estivesse à esquerda da vislumbrada por Tancredo. A troca de Dornelles (PFL) por Funaro (PMDB) representou um avanço das forças mais contestatórias do PMDB, um partido muito diverso internamente naquele momento. A classe dominante brasileira desejava recuperar o crescimento econômico dos dias do “milagre” (1968-1973), sem ter, contudo, de fazer reformas estruturais para isso. A economia brasileira vinha cambaleante, quando não em recessão. Os resultados para o crescimento do país nos anos imediatamente antes e depois da Transição foram:

81

Theotonio dos Santos. A Evolução Histórica do Brasil: Da Colônia à Crise da “Nova República”. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994. P. 272.

143

Crescimento econômico no Brasil (1981-1989) Ano

Taxa de Crescimento

1981

- 4,3

1982

0,8

1983

- 2,9

1984

5,4

1985

7,8

1986

7,5

1987

3,5

1988

- 0,1

1989

3,2

Fonte: IBGE em Theotonio dos Santos. Globalization, emerging powers, and the future of capitalism. Translated by Mariana Ortega Breña. Latin american perspectives, issue 177, Vol. 38. No. 2, March 2011. P. 56.

Observamos que a economia brasileira encontrava-se em recessão nos anos finais da Ditadura. A explicação para isso era a política de endividamento irresponsável que o governo dos generais desenvolveu, com objetivos que em nada geraram avanços para o país. Também é perceptível que a situação política do país influencia a retomada do crescimento de modo satisfatório em 1984. Durante esse respectivo ano, desenhava-se os últimos momentos da Ditadura, na campanha de massas das Diretas Já no primeiro semestre (e sua derrota) e nas notícias da candidatura Tancredo Neves no Colégio Eleitoral no segundo semestre. A vitória no Colégio Eleitoral viria em janeiro de 1985. Os primeiros anos do Plano Cruzado mostram um robusto crescimento (7,8 em 1985 e 7,5 em 1986). Porém, como vimos esse crescimento não estava baseado nas reformas de base que o país necessitava para uma economia mais estável e equilibrada, o que explica a forte queda tão repentina a partir de 1987. O Plano Cruzado girava entorno da ideia de “inflação inercial”, no qual esse fenômeno econômico é explicado a partir da ideia de expectativa de inflação. Como se a inflação fosse uma força que entra na cabeça das pessoas, uma ansiedade econômica que levaria ao aumento geral dos preços. Essa é a explicação do liberalismo sobre o que é o fenômeno da inflação, no qual há uma cortina de fumaça sobre a real explicação. A inflação é luta de classes. Consiste num mecanismo de transferência de renda dos mais pobres para os mais ricos. A alta dos preços de

144

forma constante é uma forma de aumentar a taxa de lucros dos empresários, principalmente em mercados internos extremamente restritos como o brasileiro, devido à baixa capacidade de consumo da maior parte da população. A reflexão de Theotonio dos Santos sobre o Plano Cruzado elucida muito bem alguns pontos:

Em vez de propor reformas, em vez de explicar a relação entre a inflação, a luta de classes e os interesses em jogo, elaborou-se uma teoria da inflação “inercial”. Ela tenta explicar a inflação pelos mecanismos de expectativa inflacionária de tal forma que, como num campo de futebol em que todos estão de pé nas arquibancadas e não se pode ver o campo, se conseguisse que todos se sentassem ao mesmo tempo se voltaria a vê-lo. Tudo é uma questão de sincronizar comportamentos. Esta ideia de neutralidade chegou a tal ponto que no Plano Cruzado se tentou inclusive estabelecer uma média salarial para justificar um não-reajuste salarial que permitisse aos trabalhadores recuperar as rendas que perderam devido à inflação do período anterior. Não se deu o reajuste completo em nome da existência de uma suposta média salarial, que corresponderia não ao salário reposto no ponto mais alto de seu valor, mas sim uma média entre este ponto mais alto e o ponto mais baixo da perda inflacionária. Seria esta média que se asseguraria através da estabilização dos preços. 82

A contenção da inflação passava então pelo tabelamento dos preços dos produtos básicos e pelo aumento salarial por meio de uma “média salarial”. Essa política evidencia as indecisões do governo Sarney em tentar se diferenciar da política econômica da Ditadura, criando a fachada do “novo”; e ao mesmo tempo, manter-se de braços abertos à classe dominante, restringindo o aumento do salário, já que as elevações das remunerações dos trabalhadores não se davam pelo valor total, mas sim da tal “média”. Sarney e sua equipe tentavam dessa maneira “rezar para dois senhores”. Enquanto o tabelamento dos preços, principalmente dos artigos de consumo mais populares (alimentos e produtos de higiene) vinha para ganhar o apoio popular, a burguesia também seria contemplada. A criação da “média salarial” garantia um achatamento dos salários. O valor destes vivia sempre correndo atrás da inflação, por meio do “gatilho salarial” (o salário aumentava sempre quando a inflação chegava a 20%). Dessa forma, a superexploração do trabalho permanecia como ponto principal para os lucros da classe dominante. A tentativa do tabelamento dos preços levaria a criação das “fiscais do Sarney”. Esse grupo consistia em senhoras donas de casa, geralmente nas famílias patriarcais brasileiras, mulheres de meia idade, responsável pelo supervisionar o lar e consequentemente o controle das compras de supermercado. Essas senhoras, que viviam cotidianamente o drama da inflação de três dígitos, iam aos supermercados com pranchetas para fiscalizar os 82

Idem. P. 274.

145

estabelecimentos que não cumprissem o tabelamento de preços. Os mercados que violassem a norma deveriam ser denunciados, em atitude estimulada pelo governo federal no objetivo de conseguir respaldo popular. A política econômica do governo Sarney baseava-se numa farsa em três atos. O primeiro, de que a inflação é uma tendência inercial, de que sua solução era conter a ansiedade e expectativa da população quanto a ela. A segunda, de que o controle de preços seria feito de modo burocrático, sem a oposição da burguesia e dos meios de comunicação monopólicos por ela controlados. E a terceira, de que não realizando reformas estruturais, mas sim, apostando em investimentos de curto prazo, faria com que a inflação e a recessão fossem dispersas.

8.2

O objetivo político do Plano Cruzado

No início, o controle midiático exercido pela classe dominante fez com que o Plano Cruzado fosse quase uma unanimidade. Pesquisas veiculadas pelos meios de comunicação mostravam aprovação de 97%

83

e a população era instigada a consumir. Os resultados

políticos para o partido do governo faziam parte do plano. Nas eleições de 1986 o PMDB fez os governadores de todos os estados, com exceção de Sergipe (vencido pelo PFL). O único a levantar a voz contra o Plano Cruzado foi Leonel Brizola e o PDT, denunciando a farsa da inflação inercial, a manutenção do arrocho salarial com uma nova roupagem e as reformas estruturais não realizadas que, mais cedo mais tarde, cobrariam seu preço. Mesmo com um governo estadual bem avaliado pela população, Brizola não fez seu sucessor no governo do estado do Rio de Janeiro. Darcy Ribeiro foi derrotado pelo candidato peemedebista Moreia Franco. O PT fez críticas brandas ao Plano, devido às perdas salariais dos trabalhadores. O Plano Cruzado não resolvia os problemas estruturais do Brasil, única via de solução para os males da crise que passava o país. Além disso, havia objetivos políticos para a manutenção do Cruzado. O PMDB desejava fazer a já citada vitória acachapante entre os governos estaduais e eleger o máximo de deputados e senadores constituintes.

83

Idem. P. 276.

146

O Plano Cruzado dessa forma possuía um fundo político para a classe dominante. O de manter as forças de esquerda longe do poder, para inviabilizar mudanças de direção bruscas na condução da política econômica do país. Até as eleições legislativas e para os governos estaduais em 1986, a classe dominante poupou de críticas ferozes o Plano Cruzado, mesmo com a discordância de uma parte da burguesia, que desejava a redução do papel do Estado na economia, seguindo os preceitos neoliberais. Era preciso, num primeiro momento afastar as forças de esquerda do poder, garantindo a vitória do PMDB nos governos estaduais e fazendo a maioria para a Assembleia Constituinte. As metas foram amplamente conquistadas, com o PMDB vencendo em quase todos os estados da Federação e se unindo com os constituintes eleitos por PFL, PDS e PTB para fazer maioria absoluta na Assembleia. Essa aliança, de caráter totalmente conservador, ficou conhecida como “centrão” (o mais apropriado deveria ser “direitão”). O governo Sarney, por meio de seus ministros, usou descaradamente o fato de estar no poder para favorecer as candidaturas peemedebistas e de aliados. Dezenas de emissoras de rádios foram doadas a igrejas evangélicas (o que explica a predominância de rádios desse tipo no dial brasileiro), por meio do ministro da Comunicação, Antonio Carlos Magalhães (coronel baiano, conhecido pelo simpático apelido de “Toninho Malvadeza”). Fato que a troca de favores, fenômeno político presente no Brasil desde os tempos de colônia, persistia na assim chamada Nova República. A “democracia” brasileira recémconquistada mostrava já seus sinais de debilidade, com a proibição dos pequenos partidos de participarem da propaganda nas redes de televisão. A justificativa é a de que eles eram... pequenos! A maioria do eleitorado, totalmente despolitizada como parte dos planos da elite, seguia o personalismo, tão presente no cotidiano da sociedade brasileira, e procurava indivíduos para votar, e não em partidos ou ideologias. A eleição para governadores dos estados ganhava então muito mais dimensão do que a escolha dos congressistas constituintes. A verdade é que a maioria do povo brasileiro não tinha a menor noção do que era uma constituição. E a culpa, claro, não era do povo, mas sim, do histórico de opressão e alienação dos trabalhadores, sempre colocados de lado nos momentos decisivos do país. A Nova República apenas configura-se como uma atualização desse processo de imbecilização das massas e da manutenção do destino da nação nas mãos dos políticos “tradicionais” representantes da classe dominante. A elite brasileira jogou sujo ao casar as eleições para a Assembleia Constituinte com a votação para governadores dos estados. Como pano de fundo e combustível para a vitória, o

147

Plano Cruzado, cujo tabelamento dos preços de produtos populares tinha como objetivo garantir o apoio por meio de votos aos candidatos do PMDB. Mesmo para um sistema político liberal, a forma como foi composta a Assembleia Constituinte a partir das eleições de 1986 foi de maneira errônea, oportunista e elitista. Primeiro, os deputados e senadores que foram eleitos para a Assembleia Constituinte permaneceram como congressistas após o fim dos trabalhos constitucionais. Ou seja, a eleição além de constituinte foi legislativa e produziu-se um estranho cenário de um poder legislativo eleito pelas regras da antiga constituição, que fazia uma nova Carta Magna e permanecia empoderado depois dela (!). Em segundo lugar, terminado os trabalhos no Congresso em 2 de setembro de 1988, a nova Constituição (que ganhou o nome de Constituição Cidadã) não foi colocada em pauta para referendo popular. O caminho certo a se fazer seria convocar um referendo nacional para dizer sim ou não à Carta aprovada pelo Congresso. Claramente, a participação direta do povo era mais uma vez vilipendiada numa Nova República que apresentava características velhas e bem conhecidas da política brasileira. O povo passava, mais uma vez, à margem dos processos decisórios, ficando todo o protagonismo político com os renomados representantes da elite do país. Mesmo com a hegemonia criada pelo Plano Cruzado, e que logo se desintegraria, as forças de esquerda se faziam presentes no cenário político nacional. O MST (Movimento dos trabalhadores Sem Terra) realiza seu primeiro congresso nacional em 1985. Várias ocupações de terra são registradas, seguindo o lema “ocupação é a única solução”. No movimento sindical, a década de 1980 foi a que mais movimentos grevistas foram deflagrados em toda história do Brasil. O Plano Cruzado não resolvia os problemas socioeconômicos que afetavam a maioria da população brasileira. Seu “gatilho salarial” e a “média salarial” eram somente uma forma de manter a superexploração do trabalho de forma disfarçada, utilizando a hipocrisia do tabelamento de preços. O arrocho salarial estava mantido, comprometendo a economia familiar de milhões de brasileiros. Seis dias após as eleições de 1986 para governadores dos estados e para a Assembleia Constituinte, numa falta de respeito grotesca, foi anunciado o Plano Cruzado II, que acabava com o tabelamento de preços. Dessa forma, o governo Sarney admitia que a inflação não fosse controlada da forma burocrática que propunha e, além disso, se posicionava junto aos empresários, que reclamavam da baixa nos lucros devido ao controle de preços.

148

A burguesia brasileira pareia contrariada pelo tabelamento de preços. Empresários dos ramos de produtos alimentícios e de higiene pessoal começaram a realizar lock outs e cobrar ágio (taxa a mais) para quem queria ter acesso aos produtos que sumiam dos supermercados. A população mais pobre mais uma vez pagava a conta de uma política econômica irresponsável e favorável aos donos do capital. Algumas tarifas de setores vitais da economia aumentaram em até 100% e o salário, obviamente, não aumentava na mesma proporção. O PMDB nunca seria perdoado pela população brasileira por esse disparate. Prova é que se em 1986 o Plano Cruzado tinha apoio de 97% da população e o partido levou quase todos os governos estaduais e a maioria na Constituinte, em 1989 o candidato do PMDB à presidência, Ulysses Guimarães, não chegaria nem a 5% dos votos. Nunca mais em décadas o PMDB disputou eleições presidenciais com chances de vitória reais.

8.3

O sentido do governo Sarney e a explosão da insatisfação popular

O Plano Cruzado II foi mais uma frustração da população brasileira nesse complicado momento de transição. O período foi marcado pelo aumento de tarifas, o descongelamento dos preços e a continuidade do arrocho salarial. Os números do crescimento mostram uma queda vertiginosa. Uma leve queda de 1985 para 1986 já tinha sido sentida (7,8% para 7,5%), mas o que estaria por vir era trágico e revelava o desmanche das finanças dos mais pobres:

Crescimento econômico do Brasil (1987-1989) Ano

Taxa de Crescimento

1987

3,5

1988

-0,1

1989

3,2

Dados do IBGE em Theotonio dos Santos. Globalization, emerging powers, and the future of capitalism. Translated by Mariana Ortega Breña. Latin american perspectives, issue 177, Vol. 38. No. 2, March 2011. P. 56.

A volta da inflação e a queda do crescimento, inclusive com recessão em 1988, levaram novamente à radicalização da política e a um impulso para as forças de esquerda. Greves realizadas por bancários, professores, funcionários públicos e outras categorias se

149

espalham pelo país. O aumento de 50% no preço da passagem de ônibus no Rio de Janeiro em 1986 levou a uma revolta popular que incendiou 19 veículos e depredou outros 43. Em 1987, o Dieese (Departamento Intersindical de Estudos Socioeconômicos) calculou nove milhões de grevistas em todo o Brasil. 84 Em 1987 e 1988 foram realizadas três greves na CSN (Companhia Siderúrgica Nacional) em Volta Redonda, Rio de Janeiro. Essas três greves representam muito bem os limites da tal “democracia” da Nova República. Nas três oportunidades, a Siderúrgica foi invadida pelo Exército para intimidar os trabalhadores e forçá-los a retornar as atividades. No último desses embates, três operários foram mortos, até os grevistas conseguirem seus objetivos de redução da jornada de trabalho para seis horas diárias, recuperação das perdas salariais e a readmissão dos trabalhadores que participaram de greves anteriores. Um monumento em homenagem aos três operários mortos foi feito, a partir dos desenhos de Oscar Niemayer. No dia seguinte à sua inauguração, o monumento foi explodido, em ato de terrorismo. Posteriormente seria reerguido. A morte dos operários e a brutal repressão mostravam que o Exército não tinha saído totalmente da cena política brasileira e que a classe dominante não tinha pudores em solicitar sua intervenção quando se sentia ameaçada pela organização dos trabalhadores. As Forças Armadas foram recorrentemente convocadas pelo poder federal, numa clara demonstração de fascismo por parte da burguesia, utilizando os militares como “polícia de greve”. A Marinha seria convocada para interceder na greve dos portuários em 1987, ocupando os portos de Santos e do Rio de Janeiro, e o Exército reprimiria as greves da Embraer e da Vale do Rio Doce em 1988. Também nesse ano, seria assassinado o líder extrativista Chico Mendes em Xapuri, Acre, vítima dos latifundiários da região. 85 A censura também era largamente utilizada pelo status quo contra a população. O monopólio midiático da direita, cada vez mais reforçado, difamava os movimentos de esquerda e seus líderes, como Brizola e Lula. Brizola era sistematicamente perseguido, principalmente enquanto foi governador do estado do Rio de Janeiro (1982-1986 e depois entre 1991 e 1994). Lula era alvo de críticas por “falar errado”, ou seja, não seguir a norma culta do português das elites, como se isso fosse um empecilho para ser um bom político. A censura se manifestava também nas artes. A banda de rock Legião Urbana, a mais popular da época, teve várias músicas censuradas. A justificativa era o uso de palavrões nas 84

Vito Giannotti. História das lutas dos trabalhadores no Brasil. 3ª edição revista e ampliada. Rio de Janeiro: Mauad X, 2009. P. 261-262. 85 Idem. P. 260-267.

150

canções, mas a verdade era evidente. “Faroeste Caboclo” expunha as mazelas do Brasil, o preconceito racial e social, “Conexão Amazônica” fazia alusão ao tráfico de drogas, e “Que país é esse?” é uma das maiores denúncias sociais e políticas das mazelas que aterrorizam os brasileiros. No entanto, a elite do país desejava tons (e letras) mais suaves. Em 1989, novo plano econômico, o Plano Verão. Mais uma rodada de arrocho salarial e aumento das tarifas públicas. O ano apresenta inflação de 1900% em 12 meses. Em 14 e 15 de março desse ano ocorre a maior greve geral da história do Brasil em número de trabalhadores parados: 15 milhões de operários liderados pela CUT (Central Única dos Trabalhadores) com as palavras de ordem “Contra o arrocho” e “Fora Sarney”.

86

Como se pode notar, os trabalhadores eram mantidos longe do sistema político não só pela exclusão nos momentos decisórios da trajetória do país, como também pela coerção violenta. As Forças Armadas não tinham se retirado totalmente do cenário político, sendo acionadas quando da radicalização por parte das forças populares, traduzidas em greves dentro de empresas públicas e pontos vitais da economia. A velha violência dos latifundiários também se somaria ao arsenal da direita brasileira. A Nova República se manifesta cada vez mais não como a democracia pretendida pelo povo, mas sim, como um regime pós-ditatorial, uma democracia tutelada, em que as principais decisões políticas permaneciam nas mãos da elite brasileira. Essa elite não tinha pudores em acionar um aparato repressivo de guerra, por meio das Forças Armadas, contra seu próprio povo, mostrando que havia muitas continuidades nesse pretenso novo momento da história do país. O problema é que a realidade do país, imposta pela mesma classe dominante através do governo Sarney, principalmente pela compreensão dos salários no Plano Cruzado e do estouro do custo de vida no Plano Cruzado II é que impelia as massas para a revolta. Os trabalhadores, por meio dos sindicatos, movimentos sociais e partidos políticos de esquerda, buscavam uma válvula de escape política para sua indignação e à conquista das tão sonhadas mudanças que, pensava-se, viriam com o fim da Ditadura. O número recorde de greves na década de 1980, sobretudo durante o governo Sarney, era resultado da inflação galopante. Era necessário cruzar os braços para reajustar os salários com as perdas inflacionárias. Ao mesmo tempo, os movimentos sociais lutavam pelos direitos básicos da população, como saúde, educação, acesso à terra. Reivindicações que vinham com a esperança da “redemocratização”, mas que já se percebiam que não eram aplicadas.

86 Idem. p. 267.

151

O governo Sarney aparece então na Transição, com o objetivo de manter a hegemonia de classe durante a transformação do sistema político nacional. O momento era de extrema tensão, devido às necessidades desse governo em iludir o povo e a explosão de descontentamento da população ao perceber ser novamente enganada. Seus planos econômicos aprofundavam a superexploração do trabalho e mantinham a maioria esmagadora da população em um estado de penúria extrema. O papel de assegurar a continuidade dos lucros da classe dominante e o domínio da superestrutura política passava pelo controle dos governos estaduais (alcançado nas eleições de 1986) e na composição de uma Assembleia Constituinte moderada. Essas eram as bases da continuidade da hegemonia da direita brasileira no momento pós-ditatorial. Para isso, todas as permanências do regime de exceção foram utilizadas, como a censura, passando pelo controle midiático e chegando a mais grave de todas: a utilização das Forças Armadas para reprimir as greves de dimensão nacional.

152

9

A ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE

Realizado o processo de transição de um militar para um civil era necessário formular ao país uma nova constituição. Todo o entulho autoritário do regime que terminara deveria ser substituído por uma carta magna de víeis liberal. A Assembleia Constituinte estava nos planos da oposição desde os primeiros sinais de enfraquecimento do regime nos anos 1970. Seria o passo mais importante para conceder uma nova institucionalidade ao país após a vitória da chapa Tancredo-Sarney. Alguns sustentam que Tancredo Neves não desejava convocar uma eleição direta de constituintes 87 após a sua posse, mas que o Congresso então vigente somente “reavaliasse” a Constituição de 1967, feita pela Ditadura. Em mais uma demonstração do conservadorismo de Tancredo e de aliança com os líderes da Ditadura, o líder do PMDB promoveria um pacto ainda mais conservador do que realmente foi. Essa posição não era sustentável, mesmo dentro do PMDB, onde vários setores eram pró-constituinte. A pressão das massas por meio das Diretas Já e a posterior morte de Tancredo colocaram de vez a necessidade de uma Assembleia Constituinte. A formação e desenvolvimento da Assembleia durante o governo Sarney vai apresentar uma série de erros para um sistema que pretendia ser “democrático”. Primeiramente, as eleições para constituintes realizadas em 1986 foram casadas com as eleições de governadores. Esse fato tirava a importância da eleição dos congressistas, que ficariam responsáveis pela redação da nova constituição do país. O Brasil, com toda a carga personalista que está presente em nossa formação sócio-histórica e cultural, e com a articulação da elite para o afastamento da massa dos processos de decisão, veria o deslocamento da atenção dos eleitores de ideologias e propostas para o clientelismo pessoal. Nesses moldes, o brasileiro votava (e ainda vota) na pessoa, no candidato, e não nas ideias ou partidos, o que fazia a eleição para governadores muito mais atraente do que a dos constituintes (até hoje as atenções continuam voltadas para as eleições de cargos executivos em detrimento dos cargos para o Legislativo). Uma geração inteira de brasileiros nunca tinha participado de processos eleitorais coesos e a confusão entre os eleitores e o desconhecimento

87

Theotonio dos Santos. A Evolução Histórica do Brasil: da Colônia à Crise da “Nova República”. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994. P. 272.

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em relação à Constituinte era muito grande. Vários políticos prometiam resolver todos os problemas do país caso eleitos para a Assembleia Nacional Constituinte. 88 A política brasileira, com a presença dos mesmos políticos que gracejavam sorridentes nos tempos de ditadura, apresentava os mesmos problemas fisiológicos. Congressistas do PMDB após as eleições bradavam na imprensa que tinha sido muito ruim a veiculação das eleições para a Constituinte junto com o pleito de governadores. Agiam num cinismo descarado, já que foi o próprio PMDB que realizou as manobras necessárias para essas eleições serem realizadas conjuntamente. As campanhas eleitoras eram feitas com uma baixeza sem limites, muito distante de propostas e ideias para melhorar o país. O número de votos em branco e nulo foi elevado, o que constatava o total desconhecimento de parte do eleitorado sobre o que consistia uma Constituinte e como a classe política tratou-a em segundo plano. 89 Em segundo lugar, o que foi convocado não foi uma Assembleia Constituinte, apesar de assim ser apresentado. O que ocorreu de fato foi uma eleição legislativa federal, de deputados e senadores, em que estes deveriam redigir a Constituição e posteriormente continuariam em seus cargos até o término de seus mandatos. Essa foi uma situação esdrúxula até para um sistema liberal, pois o certo seria a Assembleia Constituinte se dissolver ao final de seus trabalhos e serem convocadas novas eleições, pois uma nova constituição significa uma refundação do sistema político do país. Não pode haver um Congresso eleito sob as leis antigas que deixam de valer a partir da promulgação de uma nova carta constitucional. Por fim, o terceiro e maior erro da formulação da nova constituição foi ela não ser referendada pelo povo. Em um sistema que se pretendia democrático, nada mais sensato e correto a se fazer do que, após o fim dos trabalhos da Constituinte, o texto final passar por um referendo, em que a população pudesse aprová-lo ou não por meio do voto direto. Mais uma vez, a vontade popular foi desprezada, e tal fato não ocorreu. Somente pela análise das condições em que foi realizado o trabalho constitucional nos anos de 1987 e 1988 podemos notar que mais uma vez se revelava o caráter elitista da política brasileira. O casamento das eleições dos constituintes com a de governadores, a permanência dos políticos como congressistas após o término dos trabalhos constitucionais e, principalmente, a não realização de um referendo para aprovação ou não da constituição,

88

Paulo Saab. A eleição do cruzado. São Paulo: Global Editora, 1987. P. 265-273.

89

Idem. P. 280.

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mostram como a classe dominante se cristalizava no poder e deslocava mais uma vez o povo do protagonismo político. A eleição da Assembleia Constituinte e os seus trabalhos para a formulação do novo texto constitucional foram palco de uma grande mobilização da direita brasileira. Essa mobilização tinha como objetivo a eleição do maior número de representantes do empresariado, do latifúndio e outros setores da classe dominante, no sentido de barrar qualquer proposta de defesa dos trabalhadores que seriam colocadas pelos partidos mais à esquerda. Mesmo com toda a tentativa de controle e até com a maioria da Constituinte eleita por partidos de direita, a análise dos debates do período nos revela uma intensa luta de classes nas decisões da Assembleia. Existiam dois modelos de país em questão nesse novo momento político: um de continuidade, com o aprofundamento da superexploração, o caráter dependente da nossa economia e a permanência do afastamento das massas do cenário político; e outro, de contestação à estrutura socioeconômica excludente do país e pela participação popular nos momentos de decisão política.

9.1

A direita se articula para a Constituinte

Feita a transição segura para as elites com Tancredo Neves e José Sarney, a classe dominante brasileira voltava-se para a Assembleia Nacional Constituinte. Era necessária uma organização conservadora com o intuito de barrar qualquer proposta mais progressista na Constituinte e que pudesse criar problemas ao grande capital. Ao mesmo tempo, com a esquerda afastada do executivo federal, os empresários se sentiam mais tranquilos para exigir a desregulamentação de boa parte da economia e das relações de trabalho. O ano de 1986, quando houve as eleições parlamentares que escolheram os constituintes, foi de intensa organização da classe dominante. Políticos, militares e a grande mídia se mobilizaram para garantir a defesa de suas pautas conservadoras e na eleição dos representantes da classe dominante para a Assembleia Constituinte. O empresariado, ou seja, a burguesia propriamente dita, saia dos bastidores onde permaneceu durante a Ditadura para protagonizar as articulações políticas necessárias.

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A Nova República desloca os militares do holofote da política brasileira. Essa posição é retomada pelo empresariado. A burguesia avança na escolha e financiamento de candidatos e no lobby para a aprovação de medidas que favorecessem o capital em detrimento dos trabalhadores. Observamos a partir desse momento, uma articulação de classe por parte da burguesia brasileira, ligada na maioria das vezes com o capital estrangeiro. Os militares ainda tentaram participar da política. Mas suas repetitivas ideias esquizofrênicas de que o Brasil estava à beira do comunismo eram infindáveis. As argumentações faziam frente a fatos que alarmavam a tosca mentalidade das Forças Armadas brasileiras, como o fim da censura, a legalização dos partidos comunistas e o reatamento das relações diplomáticas com Cuba. O PDS chegaria a iniciar acordos com a agência de marketing S. Dib Associados para lançar o ex-ditador Figueiredo candidato à presidência da República, mas escândalos sexuais do general com uma funcionária do SNI foram revelados e naufragaram com os planos eleitorais. 90 No entanto, o protagonismo agora era do empresariado, quase que numa troca de posições em relação aos anos ditatoriais. Vários agrupamentos da classe dominante foram criados nesse período para defender seus interesses. Alguns dos principais seriam a União Brasileira de Empresários (UB), a União Democrática Ruralista (UDR, feita por latifundiários) e a Associação Brasileira de Defesa da Democracia, composta por militares. Os militares entravam como mais um apoio, em grupos como a União Nacional de Defesa da Democracia (UNDD). Explicitamente defendiam os interesses da grande capital nacional e estrangeiro, ao serem contra o cerceamento da participação de multinacionais em setores estratégicos. O mesmo posicionamento era observado na oposição aos direitos trabalhistas, como a licença maternidade e paternidade, no direito de greve e em outras discussões, como a permissão do voto aos dezesseis anos e as reformas agrária e urbana. As Forças Armadas continuavam sendo um aparelho da classe dominante a serviço dos poderosos. 91 O Plano Cruzado, abordado no capítulo anterior, foi determinante para a vitória da classe política tradicional tanto para a Assembleia, quanto para nas eleições para governadores realizadas em conjunto. O tabelamento dos preços dos produtos básicos foi uma artimanha econômica irresponsável sustentada até as eleições. Alguns dias depois o Plano Cruzado foi substituído pelo Plano Cruzado II, que revogou as medidas fantasiosas do 90

René Dreifuss. O jogo da direita. Petrópolis: Vozes, 1989. P. 168-169 e 180.

91

Idem. P. 239.

156

controle de preços. Com isso o PMDB ganhou praticamente todos os governos estaduais e fez a maioria da Assembleia Constituinte junto com o PDS, PFL e outros partidos fisiológicos. Além do Plano Cruzado e da participação direta do Executivo federal, outras artimanhas políticas foram utilizadas, como a contenção dos setores mais progressistas da Igreja católica identificados com a Teologia da Libertação e próximos aos movimentos sociais. Aparecia com muita força a Renovação Carismática, teologia conservadora impulsionada pelo então Papa João Paulo II e seu braço direito, o Cardeal Joseph Ratzinger (que seria papa vinte anos mais tarde). Os ataques políticos também foram realizados, sempre de maneira baixa. O velho jargão dos “comunistas baderneiros” foi desenterrado para atacar candidatos de esquerda, como Miguel Arraes, Brizola e Lula. Brizola era o alvo preferido da mídia ao ter seu governo no estado do Rio de Janeiro (1983-1986) retratado como incompetente e aliado de “bandidos” devido às medidas populares do político, como a proibição da polícia entrar nas favelas e a construção dos CIEPs (Centro Integrado de Educação Pública). Agrupamentos sindicais pelegos foram criados, para disputar a liderança dos trabalhadores com a CUT (Central Única dos Trabalhadores). Todo um trabalho midiático, que unia o governo federal92 e as grandes corporações de mídia – principalmente a Rede Globo – foi montado para difamar as forças de esquerda como aventureiras, ineficazes, incompetentes e ambiciosas. Em caso de vitória da esquerda em qualquer disputa, o país estaria à beira do caos e nas mãos de figuras incompetentes. O governo dos Estados Unidos e as principais empresas desse país também jogavam sua influência sobre os trabalhos da Constituinte. Com o debate sobre o que seria considerada empresa brasileira ou não, e a presença de constituintes de esquerda no plenário, a embaixada estadunidense fez uma série de encontros visando o lobby de empresas como Banco de Boston, Citibank, IBM, Ford, Pan Am, General Motors, Xerox, Esso, entre outras. Seus alvos principais eram quebrar o monopólio estatal sobre o petróleo, a comercialização de produtos de informática e a operação de bancos estrangeiros em território brasileiro. 93 Os políticos da direita tinham ampla participação nos meios de comunicação. Sua participação na mídia sempre vinha acompanhada de exaltação à iniciativa privada como 92 Idem. P. 99-103 e 119. A participação mais destacada foi de Antonio Carlos Magalhães, então ministro das comunicações que favoreceu a Rede Globo em uma série de contratos, assim como na concessão de rádios para igrejas evangélicas. Magalhães praticamente tirou do ar um programa televisivo do jornalista Mino Carta na TV Record ao utilizar sua influência personalista de velho coronel. 93

Idem. P. 191-192.

157

eficaz, empreendedora e um caminho para um “Brasil moderno”. Ao mesmo tempo, o setor público era apresentado como um antro de corrupção e incapaz de atender a população com qualidade. Foi no ano de 1988 que os trabalhos constitucionais terminaram, no qual Fernando Collor foi lançado candidato à presidência com seu slogan “caçador de marajás”. O que esses políticos não diziam é que eles estavam no poder, portanto, eram responsáveis pelas políticas públicas que eles diziam serem nefastas, corruptoras e ineficazes. O discurso do público = arcaico e do privado = moderno era uma clara assimilação do ideário neoliberal, objetivo final da classe dominante a partir da Constituinte e das eleições presidenciais de 1989. O discurso da “modernização” seria a tônica da direita a partir de então. A Folha de São Paulo, em edição de 06 de novembro de 1987 revelava que Mário Amato, então presidente da FIESP (Federação de Indústrias do Estado de São Paulo) já tinha acordado com Roberto Marinho, presidente das Organizações Globo:

Amato concluiu que os empresários deviam se tornar mais atuantes junto aos meios de comunicação, embora ressalvasse que isto deveria ser feito sem dar a impressão de que havia uma articulação com a Presidência da República, a área militar e o “Centrão”. Dois dias depois do encontro, o líder do PDS na Câmara, deputado Amaral Neto, feliz, ganhara o apoio do presidente das Organizações Globo, jornalista Roberto Marinho, para o ‘grupo moderado’ do Congresso: “a TV Globo vai começar a dizer que nós já temos a maioria do Constituinte”. Era mais um esforço de modelamento de opinião, desta vez com um alvo restrito e específico, localizado na própria Constituinte, além do objetivo geral e amplo, de reduzir o público ao desamino, pelo ‘fato consumado’. 94

As grandes empresas financiavam a campanha de candidatos que defendessem o grande capital. Grandes empresários e latifundiários saíram candidatos eles próprios para a Constituinte. Houve denúncias do apoio financeiro e logístico da CIA (Central de Inteligência Americana) 95. Tudo isso com o objetivo de que o Congresso que definiria a nova constituição fosse composto por representantes da direita em sua grande maioria. As multinacionais Esso e Shell, 96 assim como empresários do setor de mineração também estavam preocupadas com o trabalho da Comissão de Sistematização da Constituinte. As propostas que assustavam o grande capital eram a nacionalização da distribuição de combustíveis e as restrições às empresas estrangeiras no setor de mineração.

94

Idem. P. 200.

95

Idem. P. 102.

96

Idem. P. 193.

158

No entanto, essa direita possuía uma série de políticos fisiológicos, com atitudes e objetivos personalistas, que poderiam mudar de posição em importantes matérias de acordo com seus interesses eleitorais futuros. A esquerda, apesar de minoritária, formava um grupo mais coeso e várias foram as vezes que os movimentos sociais estavam presentes nas tribunas populares do Congresso. Além disso, o conservadorismo estava disperso em vários partidos (PMDB, PFL, PDS, PTB, PDC e PL), o que necessitaria de uma articulação suprapartidária para as vitórias almejadas na Constituinte. Para isso foi criado o chamado Centro Democrático, ou mais popularmente conhecido o “Centrão”. O Centrão era uma ligação suprapartidária, liderada principalmente por parlamentares do PMDB e do PFL, para formar um grupo representativo do grande capital presente no Congresso. Seu objetivo era abalizar as reivindicações da direita e agir de modo coeso no Legislativo. Como coloca Dreifuss:

Nascido no interior do PMDB e PFL, esse agrupamento marcaria o início da fragmentação do primeiro e o enquadramento direitista de ambos. O deputado peemedebista Expedito Machado, um dos líderes do grupo (juntamente com os deputados Carlos Sant’Anna e Roberto Cardoso Alves, ambos do PMDB, e os peefelistas Ricardo Fiúza e Luiz Eduardo Magalhães), relacionaria as metas desta formação suprapartidária, que englobava cerca de metade do Congresso: alterar o Regimento Interno, modificar e ‘enquadrar’ as propostas da Comissão de Sistematização, que eram tidas como ‘muito influenciadas pela esquerda’, especialmente na questão social, no tocante à reforma agrária e ao mandato presidencial. Entre os pontos a serem modificados estavam: a garantia de emprego contra a demissão imotivada; o salário mínimo nacional unificado; a participação dos trabalhadores nos lucros e na gestão da empresa; o pagamento em dobro da hora extra e a redução da jornada de trabalho. A função do Centro Democrático era juntar, num só movimento de força, os parlamentares que poderiam redesenhar o perfil da futura Constituinte, que, como tinha sido esboçado pela progressista Comissão de Sistematização, contrariava uma diversidade de interesses entrincheirados – entre eles os do empresariado urbano e rural. Mais: o grupo pretendia servir de plataforma de sustentação à atuação política do governo Sarney. Sua tarefa básica era a luta contra a ampliação das faixas de estatização da economia e contra o que via como verdadeira subversão da ordem social vigente. Enfim, procurando delinear uma Constituinte de corte ‘privatista’, além de conservadora do ponto de vista político e social. 97

Como coloca Dreifuss, que estudou minuciosamente a movimentação direitista na Assembleia Constituinte, podemos observar que a preocupação do Centro Democrático são as fontes de lucro da burguesia. Seus principais objetivos ao tentar modificar a redação inicial, realizada pela Comissão de Sistematização, eram intervir nas garantias trabalhistas, na proposta de reforma agrária e na participação do Estado na economia.

97

Idem. P. 111-112.

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Estamos diante então das manutenções dos signos do atraso e da dominação de classe no Brasil: a superexploração do trabalho e o latifúndio. O Centrão tentava aprofundar a superexploração, tentando derrubar os direitos trabalhistas propostos pela esquerda, manter o latifúndio – determinante para nossa economia dependente – e começar as reformas neoliberais, ao cortar boa parte da participação do Estado na economia. O Centrão na verdade era um “direitão”. Composto pelos setores mais conservadores da sociedade, se colocava como um “rolo compressor do empresariado” (como colocou Dreifuss) no qual sua principal meta não era propor, mas sim, demolir, destruir as propostas mais progressistas. O nome de “centro” é mais uma das repetidas amostras da direita brasileira em não se assumir como tal. O conservadorismo nesse país se traveste de “posição moderada”, levando a risca os preceitos do liberalismo político, ao tentar nos convencer de que o Estado e por extensão a política é um espaço de negociação entre diferentes classes sociais. Os árbitros dessa disputa (Estado e políticos) conseguiriam a proeza de atender a todos e deixá-los satisfeitos. Nada mais falacioso. A luta de classes ficou evidente também nos trabalhos da Assembleia Constituinte.

9.2

A ação da direita na Constituinte

A direita conseguiu fazer a maioria da Assembleia Constituinte, mesmo que alguns representantes fossem trepidantes devido às politicagens personalistas. As ações do conservadorismo passavam nesse momento para as mobilizações de classe em prol da redução dos direitos trabalhistas (o que acentua a superexploração do trabalho), a defesa do latifúndio frente às tentativas de reforma agrária e iniciar a retirada do Estado da economia já visando a implementação do neoliberalismo no país. O empresariado identificava a participação do PDT e do PT como o grande empecilho na Assembleia. Não pelos números, já que os dois partidos juntos elegeram 40 constituintes. Mas suas propostas de cunho social fizeram várias vezes com que políticos da direita mudassem de posição, já que não queriam ficar conhecidos como aqueles que emperraram a ampliação de direitos à maioria da população.

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Para isso foi montado o Centro Democrático, reunindo os partidos de direita. Essa aglutinação volátil da direita barrou em vários momentos as propostas mais progressistas, como a reforma agrária, ou ao conceder mais um ano de mandato ao presidente José Sarney (totalizando cinco). Mas também mostrou momentos de indecisão, como nas discussões sobre direitos trabalhistas. Os anos de 1987 e 1988, quando esteve em funcionamento a Assembleia Constituinte, foram de intensas movimentações dos representantes do empresariado, das multinacionais, latifundiários e militares. Todos afluíram para Brasília, no intuito de articular posições comuns a partir do Centrão e barrar as propostas vindas da esquerda. A União Democrática Ruralista (UDR), grupo de latifundiários que defendiam a violência para fazer frente ao MST e outros movimentos de trabalhadores rurais, tentava trazer também o pequeno produtor. Fez uma epopeia em forma de campanha política no interior do Brasil e grandes comícios, inclusive em Brasília, onde dizia defender também os interesses do pequeno e médio proprietário. A União Brasileira de Empresários levava a diante uma cruzada contra os direitos trabalhistas e pela desregulamentação e privatização da economia. Apesar de alguns momentos de conflito com os pequenos e micros empresários, a questão dos direitos trabalhistas entre unia todos os segmentos da classe. Inviabilizar os direitos do trabalhador significa menos custos e mais lucros. O próprio Palácio do Planalto agia diretamente para frear na Assembleia o que contradizia o grande capital. O interesse de Sarney e seus ministros era garantir mais um ano de mandato. Ele deveria cumprir quatro anos a frente da presidência da República, mas pleiteava do Congresso mais um. Tratava-se de uma artimanha da direita para ganhar mais tempo para preparar uma candidatura capaz de deter Brizola e Lula, respectivamente, o primeiro e o segundo nas intenções de voto segundo pesquisas na época. Ensejos golpistas foram tentados para impedir as diretas em 1988. A presidência de instituições, como FIESP e a Federação do Comércio de São Paulo chegaram a procurar as Forças Armadas e até o ex-ditador Geisel para articular uma possível intervenção militar em caso de eleição presidencial em 1988.

98

Nada disso foi necessário, já que o Centrão garantiu

o presidencialismo e o ano adicional de mandato a Sarney. Com isso, as eleições presidenciais eram jogadas para 1989, tempo que deveria ser utilizado para uma candidatura de consenso da classe dominante.

98

Idem. P. 203.

161

O acordo com o Centro Democrático era a concessão de mais um ano de mandato presidencial a Sarney e em troca, a ação direta do Palácio do Planalto em assuntos de grande interesse para a classe dominante. Não houve resistência para o prolongamento do mandato de Sarney, já que era um interesse de classe evitar a ascensão da esquerda com reais chances de eleger o presidente na primeira eleição direita pós-Ditadura. Sarney se comprometeu em liberar entraves burocráticos enfrentados pelos empresários e o controle do Estado sobre investimentos privados. A essa altura o Plano Cruzado já tinha caído em descrédito, assim como o PMDB. Entretanto, o presidente poderia negociar, já que não corria mais riscos passadas as eleições para governadores e para o Congresso Constituinte. A presidência e o ministério escolhido pelo “democrata” Tancredo agiam contra os interesses populares. Estava também entre suas missões coibir e convencer aqueles membros do Centro Democrático que não eram firmes em suas votações, principalmente, em questões sociais e trabalhistas. Era necessário, como interesse da classe dominante, vetar a diminuição da jornada de trabalho para 44 horas semanais, a licença paternidade, o direito irrestrito à greve, o voto aos dezesseis anos, a nacionalização da exploração mineral e as facilidades às empresas nacionais frente ao capital estrangeiro. O empenho do Palácio do Planalto nessas pautas foi uma retribuição à atuação do Centrão ao conseguir aprovar mais um ano para o mandato presidencial de José Sarney. A direita ainda não tinha um candidato definido e Brizola despontava nas pesquisas, como alternativa à desilusão com o Plano Cruzado. O Centrão também garantiu o regime presidencialista na Constituição, contra a defesa do parlamentarismo, pauta do PT. O primeiro grande embate onde se evidenciava a luta de classes na Constituinte era a reforma agrária. Pilar de boa parte dos problemas socioeconômicos brasileiros, a revisão das normas relativas à produtividade rural, função social da terra e um plano de assentamento e apoio à pequena propriedade e à agricultura familiar eram bandeiras da esquerda. Com a criação do MST os trabalhadores rurais voltavam a se organizar depois de duas décadas de arbítrio e despontavam como uma força social democratizante na Nova República. Em contrapartida, os latifundiários se organizaram na União Democrática Rural (UDR) para fazer o lobby em prol do latifúndio. Essa organização defendia uma resposta armada às ocupações promovidas pelo MST e agia com extrema violência e presunção na defesa de seus interesses. Ronaldo Caiado era seu líder mais conhecido e se tornou uma figura política conhecida na época pela sua truculência proporcional à sua habilidade política de reunir aliados às causas latifundiárias.

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A principal bandeira da UDR era barrar a proposta de que a propriedade fundiária deveria estar atrelada à função social da terra. Essa ideia vinda dos movimentos sociais era uma prerrogativa importante para combater o latifúndio e a especulação imobiliária de terras ociosas e griladas. Assim, a propriedade rural somente seria reconhecida caso estivesse cumprindo sua função social de agropecuária e outras atividades. A desapropriação de terras para a reforma agrária também era uma das pautas dos trabalhadores do campo, assim como a limitação do tamanho dos latifúndios, mesmo que produtivos. A articulação da UDR conseguiu uma vitória nesse ponto, já que somente as terras improdutivas seriam passíveis de serem desapropriadas para fins da reforma agrária. Os grandes latifúndios com produção, independente do tamanho, da foram com que cresciam e se cumpriam ou não uma função social, não seriam tocados. De quebra ainda conseguiu derrubar a correção monetária para os produtores que possuíam dívidas. Estava garantida a permanência da mais degradante instituição brasileira e causadora de boa parte das mazelas sociais na história do país, o latifúndio. Nas décadas seguintes ficaria clara a repressão da economia brasileira. A partir dos anos 1990, com a liberalização total da economia e o crescimento combinado com alta dos índices de desemprego – fenômeno da fase neoliberal do capitalismo, a indústria entraria em queda e a agroexportação voltaria a responder por boa parte do PIB e do comércio internacional do país. Soja, cana, gado e celulose. Ou seja, uma economia de colônia. Em relação ao petróleo e à mineração, o caso foi mais ambíguo. O monopólio da extração e propriedade do petróleo permaneceu com a Petrobras. No caso das minas, o setor deveria ser nacionalizado, mas permitia as atividades de mineradoras estrangeiras, desde que elas industrializassem a matéria-prima no Brasil. À mineração como atividade fim ficou restrita a empresas nacionais. Nos anos 1990, em conjuntura mais favorável, as multinacionais virariam o jogo. De qualquer forma, a maior parte das empresas de mineração estrangeiras presentes no país atuava em consórcio com o capital brasileiro. A única coisa que elas tiveram que fazer foi aumentar a participação das empresas brasileiras na parceira. Pouco mudou na mineração após a constituição. O caráter dependente da nossa economia ficava evidente nessa questão, mostrando como multinacionais se adaptavam às regras constitucionais porque as empresas brasileiras já estavam praticamente todas ligadas ao capital estrangeiro. A União tinha a propriedade do solo, mas não da produção mineradora. Mas era na ordem econômica que o embate era mais ferrenho. O pânico se alastrava pela classe dominante ao ver propostas vindas da Comissão de Sistematização, como o direito

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de greve irrestrito, limite de trabalho de seis turnos ininterruptos, licença maternidade, pagamento de 50% de hora extra e a redução da jornada de trabalho para 44 horas semanais. Os empresários bradavam que seria impossível manter o país funcionando com tantos custos sociais. Que os direitos trabalhistas encareceriam em demasia a força de trabalho e provocaria desemprego, inflação e falências. A burguesia acionava o seu velho discurso de que o “custo” da força de trabalho onera os proprietários dos meios de produção e serviços, sem tocar no lucro. Pelas contas da UB, o impacto imediato seria de 28,4% sobre os custos de produção, caso todos os direitos trabalhistas propostos pela Comissão de Sistematização fossem aprovados em plenárias. Em médio prazo poderia subir para apocalípticos 40%. Mas, segundo Dreifuss, a alta seria insignificante em curto prazo, já que os salários e benefícios no Brasil respondiam entre 12 a 27% dos custos de produção. Nos países centrais, essa taxa varia entre 60% e 70%. 99 O que estava em jogo na verdade era a superexploração do trabalho. Esse elemento basilar de lucros vultuosos e fenômeno vital para a sustentação do capitalismo dependente na periferia. Todo e qualquer direito trabalhista é uma perda para a classe dominante, já que é parte da mais-valia extraordinária que deixa de ser retirada da degradante situação de trabalhadores e trabalhadoras na periferia do sistema capitalista internacional. Além disso, era necessário impedir ao máximo a organização dos trabalhadores. Para isso, os empresários se articulavam para restringir o direito de greve ao máximo. Primeiro derrubando o direito de greve irrestrito dos trabalhadores. Depois tentando proibir certas categorias de organizar movimentos grevistas, principalmente os funcionários públicos. O voto aos dezesseis anos também era refutado pela classe dominante por considerarem que a maior parte desse eleitorado seria para os partidos de esquerda. A permanência da dependência e da superexploração do trabalho eram perceptíveis como principais objetivos da atuação do empresariado contra medidas específicas, entre elas: a jornada máxima de 44 horas de trabalho semanal, o direito irrestrito de greve, a definição do que seria considerada “empresa nacional”, e o tabelamento dos juros, que segundo proposta da Sistematização, só poderiam chegar a 12% ao ano no máximo. Outros pontos importantes para o capital associado com multinacionais era a nacionalização da exploração de minerais e petróleo e a preferência de aquisições de produtos e serviços de empresas nacionais. Usou-se de terrorismo psicológico contra os trabalhadores para tentar criar um clima contra as principais propostas trabalhistas:

99

Idem. P. 216.

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Enquanto isso, a empresa Belgo-Mineira distribuía, entre os seus 7600 metalúrgicos e os demais 13 mil empregados das 30 empresas coligadas, um folheto denominado “As seis horas que abalaram o Brasil” (fruto de um estudo do Instituto Brasileiro de Siderurgia, presidido por André Mussetti), que já servira à campanha de convencimento dos parlamentares contra o turno de seis horas. Além disso, ameaçava com o fechamento do restaurante e com a suspensão do pagamento dos 30 minutos da refeição, se a lei fosse aprovada no segundo turno. E advertia para o aumento dos dias de trabalho e para os riscos à saúde do trabalhador, com o aumento das trocas de horário. Em São Paulo, Antônio Ermírio de Moraes, superintendente do grupo Votorandim, fez o coro sobre a inconveniência do turno de seis horas, acenando com o fantasma do sucateamento do setor de siderurgia, explicando que não havia nenhuma empresa preparada para esta inovação. Reforçando os argumentos, Amaury Temporal, presidente da Confederação das Associações Comerciais, afirmou que o turno de seis horas levaria a uma redução da eficiência da economia brasileira. Finalmente, o próprio governo se engajaria na luta, junto aos empresários. 100

Os direitos trabalhistas configuraram-se como a maior batalha da Constituinte. Os empresários sabiam que tinham que retirar boa parte das propostas feitas na Comissão de Sistematização ainda na votação de primeiro turno. Uma derrota nesse momento específico era praticamente definitiva, já que no segundo turno eram necessários 280 votos, margem que a volatilidade do Centrão não cobriria com certeza. Muitos constituintes eram candidatos nas eleições de prefeitos no ano de 1988 e não queriam ficar reconhecidos por terem defendido propostas antipopulares. A burguesia, com auxílio do presidente Sarney, jogou baixo, chegando em alguns momentos a assinalar uma anulação da Constituinte e a convocação de uma nova:

Alguns dias depois, o Planalto desencadeou uma série de pressões. As mais diversas possibilidades foram manejadas, desde zerar os trabalhos da Constituinte (...) passando por tentativas de adiar a votação do projeto constitucional (articulada, entre outros, pelo ministro do Exército, o general Leônidas Pires Gonçalves), até o pronunciamento em cadeia nacional do presidente Sarney, advertindo que a nova Carta levaria o país ‘ao caos’. Paralelamente, assistiu-se ao esforço de parlamentares como Afif Domingues e Roberto Campos para obter o adiamento das eleições municipais. Argumentava-se que a realização do pleito atrasaria a Constituinte, já que muitos parlamentares se envolveriam nas eleições – até como candidatos -, podendo deixar sem quórum a Assembleia. Mas por trás, insinuava-se uma outra questão: de olho nas eleições (como prefeitáveis ou como cabos eleitorais de outros candidatos) os constituintes não se arriscavam a votar de forma impopular. E muitas das emendas supressivas do empresariado, encampadas por lideranças do Centrão, tinham um perfil ou imagem de ‘antissocial’ ou ‘antinacional’. 101

Várias eram as intenções da classe dominante para modificar o texto originário da Comissão de Sistematização, mas os que versavam sobre a legislação trabalhista eram, sem 100

Idem. p. 240.

101

Idem. p. 243.

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dúvida, os que receberam mais empenho do empresariado. As medidas referentes às relações de trabalho concediam aos trabalhadores direitos básicos de estabilidade no emprego, segurança benefícios. Isso diminuía o grau de superexploração do trabalho imposto pelos patrões, que como vimos, é o pilar da economia capitalista dependente. A classe dominante, por meio da União Brasileira de Empresários (UB), conseguiu barrar a estabilidade no emprego. Essa medida formulada pela CUT e defendida na Constituinte pelo PT e o PDT, impedia qualquer demissão injustificada. Mas o Centrão entrou em cena e negociou que demissões injustificadas seriam resolvidas com indenizações compensatórias. A jornada de trabalho foi aprovada em 44 horas semanais, o que desagradou boa parte do empresariado, que desejava 48 horas. No caso de funções onde o trabalho fosse ininterrupto, o turno de trabalho foi fixado em 6 horas diárias. No entanto, a burguesia brasileira, agindo novamente pelo Centrão, conseguiu retirar a expressão “máximo de 6 horas”, o que fez com que milhões de trabalhadores tivessem que negociar 8 horas de trabalho com uma de descanso, ao invés de 6 sem intervalo. No adicional de férias, a UB foi derrotada. O salário no mês de férias deveria ser num valor de um terço acima do que o normal. A classe dominante tentava manter o salário de férias igual às outras remunerações do ano. Na verdade, pela burguesia nem existiria férias, quanto mais remuneradas. Esse direito dos trabalhadores, assim como o um terço a mais de salário no mês de descanso, foi mantido. Outra derrota empresarial nas questões trabalhistas foi a manutenção do aviso prévio proporcional ao tempo de trabalho, com o prazo mínimo de 30 dias e o prazo máximo de 5 anos para a prescrição das causas trabalhistas urbanas e 2 anos e meio para os trabalhadores rurais. As mobilizações da UB junto da UDR para diminuir o tempo do aviso prévio e da prescrição no setor rural foram em vão. Também foram aprovados a ampliação dos 120 dias de licença maternidade, a criação da licença paternidade de cinco dias e o seguro desemprego. O direito de greve foi uma das mais disputadas discussões da Constituinte. No final, os trabalhadores conseguiram assegurar o direito de greve, a não intervenção do Estado nos sindicatos e o direito de livre organização sindical, inclusive para funcionários públicos. No entanto, os trabalhadores de serviços considerados essenciais (saúde, transporte, telecomunicações, água, energia e sistema bancário) tiveram restrições no seu direito de greve. Esses serviços, em caso de greve, não poderiam parar totalmente e sua greve deveria ser comunicada previamente ao poder pública e à população. Em caso de danos ao patrimônio

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público e agressões, os grevistas poderiam ser presos e julgados, o que abriu uma margem para a intervenção militar e policial sobre movimentos grevistas nos governos Sarney e FHC. Na questão da dependência, o empresariado agiu fortemente para adequar o Brasil ao novo momento da divisão internacional do trabalho, o neoliberalismo. Isso significou toda uma articulação para desestatizar boa parte da economia e prevalecer os interesses privados, notoriamente, do capital monopolista nacional e estrangeiro. As telecomunicações continuaram sob controle acionário do Estado, mesmo com os apelos do empresariado, assim como o abastecimento de gás canalizado. A mineração deveria ser exclusivamente de empresas nacionais, salvo empresas estrangeiras que extraíssem minérios para suas próprias indústrias no Brasil. Essa norma não adiantou muito, já que as mineradoras brasileiras eram todas parceiras de empresas internacionais. O petróleo continuou sob controle da Petrobras. O setor da saúde também excluiu a participação de empresas estrangeiras. Houve um racha na questão relativa à caracterização da empresa nacional. Os empresários ligados ao capital estrangeiro defendiam que empresa brasileira deveria ser aquela com sede e administração no Brasil e constituída sob leis do país. Não funcionou. Qualquer filial estrangeira poderia ser considerada uma empresa nacional dessa forma. Essa medida desagradava os grandes monopólios nacionais, com destaque para as empreiteiras, que financiam boa parte das campanhas eleitorais dos políticos. Para ser considerada de capital nacional, a empresa tinha que ter o controle efetivo por empresários brasileiros (maioria dos acionistas e do poder decisório em mãos de brasileiros). Os donos deveriam residir no Brasil e as empresas nacionais teriam prioridade na compra de produtos e serviços por parte do poder público. Teria, pela Constituição, certa proteção por tempo determinado para poder se desenvolver em setores estratégicos. A remassa de lucros das multinacionais deveria ser regulamentada por lei ordinária posterior, caso que não foi para frente. O setor militar foi atendido nas suas reivindicações e permaneceu com a possibilidade de intervir na ordem interna e a não reincorporação dos militares legalistas que se opuseram ao Golpe de 1964. Também permaneceu a proibição da elegibilidade de militares. A proposta do voto facultativo aos dezesseis anos foi aprovada sob grande campanha do movimento estudantil, com destaque a UNE (União Nacional dos Estudantes). Também foram garantidos os votos dos analfabetos e o direito dos indígenas de terem seus territórios reconhecidos, não sendo mais apresentados como pessoas incapazes de se auto-organizarem.

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Os direitos trabalhistas e as tentativas de dar certa proteção para o capital nacional eram propostas vindas da organização dos trabalhadores em partidos, sindicatos e movimentos sociais. A vitória em algumas discussões relativas à proteção ao trabalho foi resultado da intensa mobilização da classe trabalhadora nos anos 1980, por meio de greves e mobilizações. Os embates entre representantes do empresariado (apoiados por militares e outros grupos específicos da classe dominante) e os trabalhadores, revela uma luta de classes dentro da Constituinte. As propostas que causaram maior polêmica foram justamente as que tocavam nas questões da superexploração do trabalho e da dependência. A rejeição classe dominante à regulação do capital estrangeiro, a proteção ao capital nacional e ao setor estatal da economia, assim como aos direitos trabalhistas, nada mais era do que a necessidade do capitalismo na periferia em manter os pontos necessários de sua existência. Isso equivale dizer que houve uma grande mobilização dos empresários e seus representantes políticos para a manutenção do capital estrangeiro de forma ativa na economia brasileira, já que a maior parte das grandes empresas em atividade no país é filial de multinacionais, ou empresas com algum tipo de participação estrangeira. Ao mesmo tempo, as proteções ao trabalho eram um empecilho aos lucros exorbitantes que a classe dominante aufere dentro do mecanismo da superexploração do trabalho. Mais do que isso, é uma necessidade o número alto de desempregados e o aprofundamento progressivo da superexploração como condição sine qua non de sobrevivência do capitalismo dependente na concorrência internacional, já que parte do seu lucro é absorvida pelos países centrais. Esse fato também é importante porque marca o total abandono do que ainda restava da política neodesenvolvimentista do Plano Cruzados pelo governo federal. Como representante da classe dominante, o governo Sarney não conseguiria por fim a desigualdade social, pois não realizou as reformas de base necessárias para tirar o país do atoleiro, como a reforma agrária e a taxação da remessa de lucros das empresas estrangeiras. Não enfrentaria, mas sim, aprofundaria a superexploração do trabalho e a dependência. A burguesia brasileira e seus sócios internacionais conseguiram sair vitoriosos ao comandar a Transição de forma conservadora. Elegeram a maior parte dos constituintes e, se não conseguiram evitar todas as propostas da esquerda, também não saíram desse processo em uma situação ruim. O pacto com o governo de Sarney para garantir mais um ano de mandato e o adiamento das eleições presidenciais selou os interesses burgueses com o fisiologismo de alguns políticos de destaque.

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Com isso, a classe dominante poderia se preparar melhor para a eleição presidencial, quando se livraria do titubeante governo Sarney e poderia propor as reformas estruturais que desejava ao país, baseadas no neoliberalismo. Logo encontraria o rosto necessário para essa empreitada, Fernando Collor de Mello, então governador de Alagoas. Com cara de jovem bem sucedido e prometendo a “modernização” do país, na verdade Collor era uma raposa política, representante da oligarquia latifundiária nordestina e, em matéria de política, um genuíno “filhote da Ditadura”. Por fim, boa parte da proteção às empresas nacionais e da legislação trabalhista seria derrubada nos próximos dez anos. A vitória conservadora de Collor no ano de 1989 inauguraria um novo período histórico do capitalismo dependente brasileiro, que teve seu ápice nos dois mandatos presidenciais de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002). Seriam colocadas em prática as políticas neoliberais, desregulamentando boa parte do que havia sido aprovado na Constituinte.

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10

A ELEIÇÃO PRESIDENCIAL DE 1989

Passadas as discussões da Assembleia Nacional Constituinte e a promulgação da “Constituição Cidadã” em 2 de setembro de 1988, o mundo da política tinha novos horizontes. Estavam fundadas as novas regras do país e se aproximavam as eleições para prefeitos, em novembro de 1988, e presidenciais para o ano de 1989. A farsa do Plano Cruzado, a hiperinflação, a permanência dos graves problemas socioeconômicos impostos à maioria da população e o desgaste ao defender medidas antipopulares na Constituinte, fez o PMDB sofrer baixas nas suas fileiras e uma grande derrota nas urnas. Ainda durante o ano de 1988, importantes líderes do PMDB saíram do partido, fundando o PSDB (Partido da Social-Democracia Brasileira). Entre os dissidentes estavam Mario Covas, Fernando Henrique Cardoso e José Serra. As políticas do governo Sarney naufragaram e desagradaram aos mais variados grupos. As massas de trabalhadores organizadas em partidos de esquerda, sindicatos e movimentos sociais sempre estiveram na oposição. As posições do PMDB sempre destoavam dos interesses populares na Constituinte. No entanto, uma boa parte da burguesia brasileira e da classe média também estava descontente com os rumos do país e clamava por mudanças. As forças de oposição ao Plano Cruzado marcariam uma grande vitória nas eleições municipais de 1988. O PMDB, apesar de ganhar em números de municípios (1606), encolheu drasticamente em número de vitórias em capitais (de 19 para apenas 4). Até seu aliado PFL fez mais capitais, seis no total. Por outro lado, a esquerda cresceu bem, com o PDT fazendo 4 capitais e o PT 3. As principais cidades do país estavam na mão da oposição: Luiza Erundina do PT venceu em São Paulo, Marcelo Alencar do PDT no Rio de Janeiro e o novíssimo PSDB cravou uma importante vitória em Belo Horizonte, com Pimenta da Veiga. As eleições municipais de 1988 castigaram o chamado “Centro Democrático”, o Centrão, tanto entre os mais humildes, quanto entre os empresários que não se empenharam nas campanhas de políticos que vacilaram em votações consideradas importantes para a classe dominante. Essas votações eram, principalmente, as referentes aos direitos trabalhistas e à participação do capital estrangeiro na economia brasileira. O empresariado não se sentiu derrotado na Constituinte, mas sentia que poderia ter restringido ainda mais os direitos trabalhistas. A maior parte do capital nacional, ligado às multinacionais, também dar os seus “jeitinhos” para garantir a seguridade de suas alianças financeiras. Ao mesmo tempo, as eleições municipais serviam de termômetro para a eleição

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presidencial que ocorreria no ano seguinte. E a temperatura era altíssima, devido ao crescimento do PDT e do PT, além da projeção de suas principais lideranças, respectivamente, Brizola e Lula, e a mobilização dos movimentos sociais nos mais variados segmentos da sociedade brasileira. Os políticos “tradicionais”, na sua grande maioria, velhas raposas da época ditatorial, foram severamente derrotados. O Centro Democrático ainda conseguia se manter no interior de pequenas cidades, mas a derrota nas grandes capitais era gritante, principalmente com São Paulo e Rio de Janeiro nas mãos da esquerda. Tanto as forças populares, quanto boa parte da direita sabiam que o país precisava de reformas estruturais urgentes. Porém, as reformas que ambos tinham em mente eram completamente distintas e isso se refletiria na campanha presidencial de 1989.

10.1

Dois projetos de reforma estrutural

Em 1988 a direita ainda não tinha candidato. As pesquisas de intenção de voto mostravam ampla vantagem de Leonel Brizola (PDT). Lula, do PT, também era um dos postulantes ao cargo pela esquerda. Ambos os partidos cresceram muito nas eleições municipais. O PSDB, que lançaria Mario Covas para presidente, ainda era muito novo e sua pauta que tentava conciliar neoliberalismo e projetos sociais era pouco clara para o empresariado. O PMDB se encontrava totalmente em queda e Ulysses Guimarães pagaria a conta do Plano Cruzado. O partido que em 1986 fez quase todos os governadores e era recordista em número de prefeituras e congressista veria o seu candidato alcançar míseros 4,43% dos votos em 1989. De nada adiantou a distribuição de cargos, concessões de rádio e televisão e outras fatias do poder público. O empresariado sabia que se encerrava um ciclo da economia dependente brasileira e outro deveria ser aberto por um novo rosto no mundo da política. O repúdio popular às falcatruas do Plano Cruzado e aos políticos tradicionais, a corrupção, os interesses pessoais dos políticos antes dos da Nação e a situação miserável da maior parte da população levavam a uma retumbante desilusão com a Nova República. As eleições presidenciais de 1989, primeira eleição direta para presidente em quase trinta anos no país, traziam a certeza de que o Brasil precisava ser passado a limpo. Era necessária uma

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profunda reestruturação socioeconômica do país para lidar com a desigualdade social alarmante e o novo momento da economia mundial, onde o capitalismo apresentava mudanças profundas. A campanha presidencial de 1989 e a própria eleição em si representaram um duplo embate. Um embate de classe, já que as candidaturas mais destacadas representavam claramente classes sociais distintas: Collor a burguesia e as candidaturas de Lula e Brizola os trabalhadores. O segundo embate era o de projeto de transformação de Brasil. Enquanto PT e PDT defendiam uma maior democratização da economia e da política, Collor representava a mudança estrutural que desejava a classe dominante, uma modernização reflexa que alinha o Brasil ao momento neoliberal da economia internacional. As eleições presidenciais de 1989 eram na verdade, portanto, o embate final do processo de transição. Desde a política de Abertura no governo Figueiredo que as classes sociais e seus projetos antagônicos vinham se confrontando pela nova configuração do país. O embate entre Diretas Já ou Colégio Eleitoral, a instalação da Constituinte e suas discussões, principalmente em relação aos direitos trabalhistas e à soberania nacional, chegando às eleições de 1989, demonstravam uma forte confrontação entre a classe dominante, que mudava as regras do jogo com o único objetivo de manter os pilares do seu poder, e uma proposta democrática e popular oriunda da reorganização das forças de esquerda. Constitui-se um fato lamentável que não tenha havido uma coligação entre PT e PDT. Uma candidatura conjunta de Lula e Brizola teria uma chance de vitória quase certa na conjunta daquele momento. A direita se encontrava atordoada com o crescimento de ambas as siglas do campo da esquerda e procurava criar, literalmente, um novo candidato, já que os políticos tradicionais do conservadorismo pareciam destinados ao fracasso frente o anseio popular por mudanças. Tanto PT, quanto PDT, não se colocavam como partidos revolucionários, nem defendiam que, caso seus candidatos fossem eleitos presidente, este seria o primeiro passo para a instalação do socialismo no Brasil. Certo é que tanto Lula quanto Brizola significavam naquele momento a ruptura com o controle político por parte da classe dominante e o real significado que o povo esperava da Transição: uma modificação radical do pauperismo e do estado de penúria que vivia a maior parte da população. A vitória dos partidos de esquerda em algumas capitais nas eleições municipais de 1988 e o bom desempenho nas pesquisas de intenção de votos de Brizola e de Lula para a presidência mostravam como o povo brasileiro rompia claramente com a camarilha que se encontrava no poder. Mesmo tendo seu protagonismo político roubado pelas elites, a massa

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da população condenaria o PMDB e demais políticos tradicionais oriundos do regime militar (a maioria no PFL e PDS). PT e PDT propunham manter o capitalismo, mas aprofundando as políticas sociais. Suas propostas passavam por pontos que desagradavam claramente o empresariado, como a distribuição de renda, os serviços públicos, a reforma agrária, a participação do Estado na economia, o controle da remassa de lucros, dos bancos e principais recursos econômicos do país. No caso do PDT, havia um diferencial importante que consistia na sua radical posição anti-imperialista, atacando ferozmente o pagamento da dívida externa, as multinacionais, os organismos internacionais, como o FMI (Fundo Monetário Internacional) e o governo estadunidense. Entre as promessas de Brizola durante a campanha estava, caso eleito, “fechar a Rede Globo no dia seguinte”. Essas propostas permitiriam um empoderamento político dos trabalhadores organizados e representariam um forte golpe contra as elites nacionais e internacionais. Portanto, em caso de vitória de Brizola ou Lula, era clara a situação de revés para a classe dominante, a qual estaria num terreno muito incerto, já que as forças populares seriam colocadas em posição mais vantajosa na luta pelo poder. O projeto presidencial do PDT e do PT era um projeto de transição real para uma democracia, para além de direitos constitucionais. Seria a readequação da economia para as necessidades das massas, a busca pela soberania e autonomia do país, uma maior proteção trabalhista contra as ambições do grande capital e a participação política dos trabalhadores de forma efetiva. A direita, principalmente os empresários, buscava dar uma resposta a isso. Também era evidente para a classe dominante que um ciclo de desenvolvimento do capitalismo dependente tinha terminado (o investimento direto do capital estrangeiro no mercado interno). Sua superestrutura política se desfez com o término da Ditadura, e a Transição tal como foi realizada era uma manobra da burguesia para não perder o poder em um momento de ebulição social e reorganização das forças políticas que contestavam seu poder de classe. Sufocada as Diretas Já, garantida a eleição de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral e todo o embate na Constituinte, a classe dominante se volta para as eleições presidenciais. Nesse pleito finalmente o empresariado poderia claramente colocar, através de um candidato ainda não escolhido, a sua proposta de reorganização estrutural do capitalismo dependente brasileiro. Com o advento neoliberal, ocorre uma nova reconfiguração da divisão internacional do trabalho (DIT). Os países periféricos teriam suas economias reajustadas de acordo com as

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necessidades do sistema capitalista internacional. As décadas de 1980 e 1990 marcam na periferia do capitalismo a transição entre a fase de investimento estrangeiro direto no mercado interno para o neoliberalismo. Nessa nova fase da DIT, o sistema de produção, principalmente os parques produtivos de tecnologias mais antigas, é repartido ao longo do globo. O controle da produção permanece nos centros do sistema capitalista (Estados Unidos, Europa e Japão), assim como o monopólio das tecnologias mais avançadas. Ganha grande destaque também, o sistema financeiro e o setor de serviços que passam a ser a mola propulsora do capitalismo, deslocando a produção para uma posição não mais protagonista. A liberalização do comércio, a abertura do mercado interno para os importados e, principalmente, a privatização das empresas estatais eram os eixos principais para a implementação do neoliberalismo no Brasil, desejo da classe dominante do país. A reforma naquele momento era imperativa também para a classe dominante. Porém, a sua reforma desejada era totalmente da almejada pelas forças populares. O objetivo do empresariado e os demais grupos pertencentes à elite brasileira desejavam implementar uma modernização reflexa, uma reestruturação do capitalismo dependente para adequá-lo ao neoliberalismo em nível mundial. Para essa reestruturação era imperativo a renovação e aprofundamento da dependência e da superexploração do trabalho. Esse plano se encontrava ameaçado naquele momento devido ao avanço dos representantes populares na sociedade e mais incisivamente, nas candidaturas presidenciais de Brizola e Lula. A classe dominante desenvolveu então uma articulação política no intuito de mostrar um candidato que se descolasse do sistema político tradicional brasileiro e encarnasse a “modernização” desejada pelas elites. Por meio do monopólio midiático e do apoio financeiro, Fernando Collor de Mello surgiria como a face “moderna” da direita, propagandeado como aquele capaz de tirar o país do atoleiro e colocá-lo no século XXI.

10.2

Fabricando Collor

Fernando Collor de Mello era governador do estado de Alagoas. Ao contrário do que foi montado pelos meios de comunicações monopólicos, em especial a Rede Globo de televisão, Collor não tinha nada de “moderno” em relação à política brasileira. Filho de político da velha UDN (agrupamento da direita liberal e entreguista antes do Golpe de 1964)

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pertencia à oligarquia alagoana. Durante a Ditadura era filiado ao partido oficial, o PDS, pelo qual se elegeu deputado federal e foi nomeado prefeito de Maceió. Era sócio da Rede Globo, sendo proprietário de uma reprodutora da emissora no seu estado. No Colégio Eleitoral que elegeu indiretamente Tancredo Neves presidente da República, votou no candidato do PDS, Paulo Maluf. Todas as credencias de Collor mostram que era um genuíno filho da classe dominante e suas posturas foram as mais conservadoras possíveis para um político civil ligado ao regime militar. Suas posses passavam pelos principais elos da burguesia nacional, o latifúndio, a propriedade de empresas e os meios de comunicação. Mas esse não era o Collor que a população brasileira conheceu. A mídia sob controle do capital apresentou o político alagoano como a cara nova que a política brasileira tanto precisava. Fernando Collor, então com 40 anos, era sempre mostrado na mídia como um homem bonito, elegante, esportista (pilotava jet-ski e até caças aéreos), mais jovem do que era e antenado com as mudanças necessárias para o Brasil. A candidatura Collor foi fabricada pela mídia no sentido de responder aos anseios de mudança que foram a tônica das lutas sociais na década de 1980. A direita precisava pegar carona nesse discurso e redirecioná-lo para as mudanças que ela desejava rumo ao neoliberalismo, e não de aprofundamento da democracia, como desejavam o povo brasileiro e as forças do campo de esquerda. O lançamento de Collor no cenário de presidenciáveis não despertou muito interesse no início. Outros candidatos tradicionais da direita estavam no páreo, como Mario Covas (PSDB) e Ulysses Guimarães (PMDB). No entanto, o crescimento nas pesquisas de intenção de voto dos candidatos de esquerda Brizola (PDT) e Lula (PT) e a lembrança das eleições municipais de 1988, em que a esquerda conquistou importantes capitais, levaram os diversos setores da direita brasileira a apoiar cada vez mais a candidatura Collor. A classe dominante brasileira chegou a Collor eliminando outros possíveis candidatos. Nomes como Marco Maciel, Orestes Quércia, Aureliano Chaves e Afif Domingos e outros foram colocados de lado, assim como outros que chegaram a sair candidatos, como Ulysses e Covas. Os motivos variavam desde a não confiança em alguns candidatos devido sua participação na Constituinte (caso de Covas) até o fato do repúdio nas urnas de boa parte dos pertencentes ao Centro Democrático durante os trabalhos de formulação da nova carta magna. Boa parte dessas figuras não cumpria os requisitos para ser o “novo” que a direita precisava para o momento político da época.

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Alguns membros do Centro Democrático, ao perceberem que as caras políticas conhecidas do campo da direita não promoveriam uma candidatura de sucesso pensaram na velha solução militar. Foi ventilada a possibilidade da candidatura do general Leônidas. No entanto, o empresariado e boa parte dos militares se colocaram contra a ideia. Luis Eduardo Magalhães (PFL-BA) lembrou que “os votos agora são contados lá fora. E lá fora certamente será muito difícil o general Leônidas conseguir apoio, porque a população não quer ver de novo um militar no comando do país.” 102 Isso não quer dizer que os militares estavam desconectados com as movimentações dos setores mais conservadores da sociedade. Fizeram questão de colocar a necessidade da unidade da direita em prol de candidato único. E alardeavam a necessidade de uma “cruzada democrática para salvar o Brasil de uma ditadura socialista.” 103 Candidatos pitorescos também forma colocados de lado. Paulo Maluf (PDS) ainda conseguiria lançar sua candidatura, mas não recebeu o apoio da classe dominante a qual pertencia, alcançando apenas 8,28% dos votos. Uma possível candidatura de Jânio Quadros foi pensada, mas não decolou e o próprio Jânio disse que se retirava da vida política. A UDR, com seu líder Ronaldo Caiado, talvez o agrupamento mais coeso politicamente da classe dominante, ficou muito manchada com o assassinato de líder seringueiro Chico Mendes, em Xapuri (AC). 104 Caiado não chegou nem a 1% dos votos. O empresariado procurava uma cara nova, que pudesse se apresentar como um signo do “moderno” e evitar, como sempre nas posturas liberais, “ser de esquerda ou de direita”. O candidato ideal de veria estar longe da esquerda, mas ao mesmo tempo, ser uma alternativa ao carcomido governo Sarney e toda a política econômica fracassada que representava. Ou seja, o candidato seria das elites, mas seria apresentado como oposição. Talvez Quércia se enquadrasse nesse perfil que encontraria seu rosto em Collor. Mas o político paulista foi barrado dentro do PMDB pela ambição pessoal de Ulysses Guimarães em ser presidente (ambição que não seria satisfeita). Afif Domingues também poderia ser uma saída para o empresariado, mas foi avaliado como sem penetração popular.

105

Somente Collor

correspondia a todas as exigências para se tornar o candidato ideal do establishment. O tempo

102

René Dreifuss. O jogo da direita. Petrópolis: Vozes, 1989. P. 273

103

A frase é do periódico da direta militar Letras em Marcha de dezembro de 1988. IN: Dreifuss. Op cit. P. 274.

104

Idem. P. 272-284.

105

Para toda a movimentação da direita não só na escolha do candidato presidencial, mas também para a Assembleia Constituinte, consultar René Dreifuss. O jogo da direita. Petrópolis: Vozes, 1989.

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era curto e era nítido que a esquerda chegaria ao segundo turno, seja com Brizola, com Lula, ou no pior dos cenários possíveis para a classe dominante, com os dois. Collor construiria sua retórica não só sobre o discurso de levar o Brasil para a modernidade, mas também sobre o signo de oposição. A direita, principalmente por meio dos meios de comunicação, capitaliza a ideia de mudança radical, de rompimento de anos de inflação e miséria e dos políticos tradicionais da Ditadura. Era com esse sentimento que a população aguardava a eleição presidencial de 1989, a primeira em quase trinta anos. Em um trabalho de marketing midiático, Collor foi fabricado como um contestador do sistema, pegando vácuo no sentimento de renovação. A classe dominante lançava sua candidatura para realizar as mudanças econômicas necessárias e atualizar o caráter dependente do capitalismo brasileiro, na fase neoliberal da divisão internacional do trabalho. Fernando Collor saiu do PMDB durante o mandato, para reforçar a sua desvinculação com a política tradicional – da que, na verdade, fazia parte – e se filiou a um partido nanico, o Partido da Reconstrução Nacional (PRN), apenas para se candidatar à presidência. Nos seus discursos e comícios, usou o genérico termo da corrupção para atacar a política estatal. Dizia que seria o “caçador de marajás”, em alusão a funcionários públicos que enriqueciam com dinheiro público. Nesse discurso já se encontra a retórica neoliberal, em apresentar o estatal/público como sinônimo de ineficaz e corrupto, enquanto que a iniciativa privada seria exemplo de lisura e bom funcionamento. Collor não seria um político tradicional, porque esses seriam “todos iguais”, numa clara tentativa de se mostrar diferente de todos os demais candidatos. Era necessário, e assim o foi, ocultar seu passado de filho da oligarquia nordestina. Esfumaçou-se o fato de ter sido do PDS, indicado prefeito de Maceió pela Ditadura e de se eleger governador de Alagoas utilizando-se do Plano Cruzado do PMDB, partido que pertencia na época do pleito estadual (1986). Até seu voto em Maluf em detrimento de Tancredo no Colégio Eleitoral foi esquecido. Theotonio dos Santos teceu uma interessante comparação entre Collor e outro político da história brasileira que chegou à presidência apresentando um discurso semelhante, Jânio Quadros:

Outra vez, a classe dominante recorria a essas figuras messiânicas com a capacidade de aglutinação para dar-lhe, em seguida, o apoio do voto conservador, do voto da classe média-alta e das demais classes favorecidas do país. Esta tem sido sua maneira de assegurar uma maioria eleitoral contra a ameaça de uma vitória eleitoral da esquerda, sempre postergada por essas táticas que terminam gerando problemas maiores do que pretendem resolver.

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Como ocorrera com Jânio Quadros, a vitória de Collor era uma vitória de “pirro”, pois ele concentrava enormes contradições que jamais poderia resolver: falava em nome do povo e das classes mais desfavorecidas para servir às classes mais favorecidas, responsáveis direitas pela miséria dessa população. Falava em nome da independência política e da concentração da autoridade advinda do voto, quando era um típico produto de uma máquina política e do controle dos meios de comunicação pela classe dominante. 106

A candidatura de Collor foi um trabalho publicitário em criar o candidato jovial e símbolo da mudança que almejava o país. Ao mesmo tempo, a direita hegemonizava o debate da mudança e redirecionava o sentimento de rechaço da população à política econômica do governo Sarney e à classe política “tradicional”. A reestruturação necessária do capitalismo dependente brasileiro para a classe dominante e seus sócios internacionais era travestida de combate à corrupção, modernização como sinônimo de acesso a bens materiais e culpando o Estado e os setores públicos da economia, numa clara alusão às ideias neoliberais. O trepidante governo Sarney e a hiperinflação favoreciam esse discurso. A propaganda midiática foi primordial para a vitória de Collor. Primeiro, as mídias monopolizadas, principalmente a Rede Globo, criaram a imagem do candidato, modelo de sucesso individualista. Depois, trataram de dar forma ao discurso da austeridade fiscal, da falência do Estado, do falso moralismo contra a corrupção. Temas muitas vezes sem consubstancia, mas que direcionavam para manipular a opinião pública no sentido de entrar na onda neoliberal e, ao mesmo tempo, mostrar Collor como oposição à situação então vigente. O combate às forças de esquerda também foi realizado através do monopólio midiático. Repetidas vezes eram veiculadas cenas da queda do Muro de Berlim (ocorrida naquele ano) para associar Lula e Brizola com uma ideologia supostamente falida. Collor também repetia o discurso do “pacto social”, ou seja, a falácia empresarial de que todas as classes sociais deveriam se sacrificar num momento de crise profunda como aquele. A campanha de Collor, mais tocada pela Globo (que operava como um partido em campanha) e pelo empresariado, do que pelo seu pequeno partido (PRN) procurava fazer alianças com Luís Antônio Medeiros, sindicalista pelego e presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo. A aliança com Medeiros significa que tanto trabalhadores quanto empresários apoiariam Collor e as mudanças de cunho neoliberal que esse prometia. Também tinha como objetivo quebrar a primazia da CUT entre as centrais sindicais, já que essa se posicionava mais à esquerda e era ligada ao PT. 106

Theotonio dos Santos. A Evolução Histórica do Brasil: Da Colônia à Crise da “Nova República”. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994. P. 284.

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A ameaça de uma nova intervenção militar também era muito bem trabalhada pelo governo, o empresariado e a mídia, no sentido de convencer o eleitorado de que votar nas candidaturas de esquerda poderia levar o país ao caos e de volta à Ditadura. Sarney, num claro sinal de que a Nova República era uma “democracia” incompleta e tutelada, usava as Forças Armadas contra as greves, dizendo que os trabalhadores paralisados na CSN, Embraer e Vale do Rio Doce cometiam um “crime contra o povo”. O alarmismo era utilizado para amedrontar o povo e defender a “ordem”, como na fala do empresário Antônio Ermírio de Morais ao dizer que “ou botamos o país nos trilhos ou o processo democrático corre perigo e vamos voltar a bater continência”. 107 As greves em 1989 pipocavam nos mais variados setores. Nesse momento era aplicado o Plano Verão do governo Sarney, novamente aumentando o custo de vida e congelando salários. As greves eram o instrumento que os trabalhadores tinham para negociar um aumento salarial e conseguir um alento nas suas difíceis vidas. Os grevistas, a CUT e o PT eram apresentados pela mídia monopólica como intransigentes, vândalos e baderneiros, num claro sinal de campanha midiática orquestrada para atirar na esquerda e apresentar Collor como o candidato que acabaria com essa bagunça. A propaganda fornecia o retrato de um país tornado pelo ‘terrorismo sindical’. De fato, muitas greves pecaram pelo desequilíbrio. Mas não se pode esquecer o grau de descontentamento e o arrocho salarial a que vinham sendo submetidas diversas camadas da população, durante a vigência do Plano Verão. Vivia-se uma sequência de ‘confiscos salariais’, resultantes de medidas tópicas anteriores. Além disso, muitas manifestações violentas – como a da Central do Brasil no Rio – apresentavam o selo inconfundível da provocação e do trabalho de infiltração policial. O clima de desconfiança aumentaria com a denúncia da presença de agentes do Centro de Informações do Exército na CUT e no PT, acusados de terem retirado material de divulgação. E se tornaria ainda pior após o estranho quebra-quebra nos pátios de uma montadora de veículos de São Paulo. 108

As eleições de 1989 se configuraram como uma luta de classes aguda por meios eleitorais, algo inédito na história brasileira. Além disso, a eleição presidencial era a evidência de que o país passaria por uma reforma estrutural profunda. Tratava-se também do embate entre qual projeto de transição sairia vitorioso e realizaria as reformas dentro dos moldes que desejava: o projeto popular, com duas candidaturas separadas, Brizola e Lula; ou o projeto de modernização reflexa do capitalismo dependente, capitaneado por Fernando Collor de Mello. 107

108

Dreifuss. Op cit. P. 268. Frase publicada no Jornal do Brasil de 26 de outubro de 1988 e em O Globo de 28 de outubro de 1988. Idem. p. 272.

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Graças ao trabalho midiático, Collor ficou em primeiro lugar no primeiro turno com 28,52% dos votos. Lula e Brizola brigaram voto a voto pelo segundo lugar. No fim, deu Lula (16,08%), contra Brizola (15,45%). Os demais resultados foram: Covas (10,78%), Maluf (8,28%), Afif Domingos (4,53%) e Ulysses Guimarães (4,43%).

109

As urnas mostraram um

claro rechaço aos políticos tradicionais e a necessidade de mudança em relação à situação socioeconômica do país. O segundo turno colocaria frente a frente um empresário e um líder sindical. Numa rara cena, ainda mais em país periférico, a luta eleitoral evidenciou a luta de classes e dois projetos antagônicos de país. Lula significava a participação política das massas num processo de desenvolvimento do país com referência social. Enquanto isso, Collor era o rosto do individualismo burguês, que apresentava “modernização” como sinônimo de consumismo e acesso aos padrões de vida das elites do Primeiro Mundo. Ou seja, um projeto inviável no capitalismo periférico brasileiro baseado na superexploração do trabalho. Na semana final antes do segundo turno, a Rede Globo, maior cabo eleitoral de Collor, promove um debate entre os dois candidatos. Esse debate foi editado de modo a mostrar eloquentes respostas de Collor e somente os momentos em que Lula balbuciou ou não se saiu tão bem em uma questão. Essa versão editada do debate foi repetida a exaustão nos dias anteriores à votação, assim como cenas da queda do Muro de Berlim. Era clara a tentativa de mostrar Lula como alguém despreparado para ser presidente, principalmente por estética preconceituosa de classe, já que “não sabia falar direito” e não “tinha diploma”. Collor vence as eleições no segundo turno com 53,03% contra 46,96% de Lula. O povo brasileiro foi enganado, não por um candidato, mas sim, por uma peça de publicidade, um personagem criado pela grande mídia, em especial a Rede Globo de televisão. Collor, filho das elites que governam esse país desde 1500, nunca atenderia aos desejos de dias melhores nutridos pelos trabalhadores. O pauperismo generalizado, a inflação que deteriorava os salários e o caráter dependente da economia brasileira nunca poderiam ser resolvidos por uma figura que pertencia à classe dominante, classe que se nutria exatamente dessa situação como sustentáculo da sua hegemonia. A vitória de Collor significou a resolução de todos os problemas da classe dominante desde o momento que se configurou a insustentabilidade do regime militar. A luta na Transição contra uma vitória das ruas, com a campanha das Diretas Já, que foi sufocada pelo Colégio Eleitoral, os embates de classe durante os trabalhos da Assembleia Nacional 109

Vito Giannotti. História das lutas dos trabalhadores no Brasil. 3ª edição revista e ampliada. Rio de Janeiro: Mauad X, 2009. P. 268.

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Constituinte, principalmente em relação aos direitos trabalhistas e a participação do capital estrangeiro na economia brasileira; culminando com a eleição de Collor, derrotando duas claras opções de esquerda (Lula e Brizola, que apoiou o candidato petista no segundo turno) foi um movimento consciente da classe dominante em modificar o sistema político brasileiro, sem nenhuma mudança estrutural que lhe fizesse perder as rédeas do país e que lhe deixasse em posição vantajosa para colocar em prática as mudanças que ela desejava no edifício social brasileiro. Em termos de exclusão socioeconômica e afastamento das massas da política, o Brasil continuou o mesmo. Mudanças estruturais viriam, mas pela direita e não pela esquerda. O empresariado nacional e estrangeiro travou lutas contra as forças populares para impedir sua chegada ao poder, mas também, com a intenção de colocar em prática sua própria reestruturação socioeconômica do país, num claro movimento de modernização reflexa, onde o capitalismo dependente brasileiro passa por uma reformulação para se adequar ao novo momento do sistema capitalista internacional. Esse momento é o da globalização neoliberal, onde o processo produtivo é desmembrado em várias regiões do mundo, tendo como polo monopolizador de decisões e de tecnologias de ponta os países centrais. A dependência era reatualizada, com a apropriação do patrimônio público nacional por empresas estrangeiras, a entrada dos produtos importados, a reprimarização da economia e a obediência aos ditames do Fundo Monetário Internacional (FMI) e outros organismos internacionais controlados pelos Estados Unidos e seus aliados. A vitória de Collor fecha o ciclo do investimento estrangeiro direto no mercado interno e passa o Brasil para a nova fase da divisão internacional do trabalho, a globalização neoliberal. A superexploração do trabalho seria aprofundada com a adoção da multifuncionalidade do trabalhador, o desemprego estrutural, o crescimento da informalidade e a diminuição da participação industrial na economia brasileira. O século XXI se aproximava e de fato o mundo caminhava para o encurtamento de distâncias geográficas, mas também, para o crescimento das distâncias socioeconômicas.

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11

NEOLIBERALISMO: A REESTRUTURAÇÃO CAPITALISTA NO BRASIL

Os anos 1980 no Brasil expressaram uma intensa luta de classes que permeou todo o processo de Transição. O fim do regime ditatorial era iminente, mas a forma como se daria o novo momento político e econômico que o sucederia ainda não estava claro. As movimentações de todas as forças políticas do país determinaram os rumos a se seguir. Mobilizações de massa e articulações da classe dominante disputaram cada passo a se seguir na pretensa “redemocratização” do país. As elites brasileiras e seus sócios internacionais procuravam minar as ações das forças populares de modo a garantir sua supremacia de classe sobre os interesses dos trabalhadores. A Nova República nasce sob a égide do monopólio midiático para o controle das massas, a perpetuação de quadros civis da Ditadura no comando do país e a utilização das Forças Armadas para coibir grandes greves de amplitude nacional, mostrando como eram frágeis e tênues os limites da “democracia”. A derrota da campanha das Diretas Já pela eleição presidencial, a vitória de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral, e as disputas na formulação da nova Constituição, ressaltam o enfrentamento entre grupos políticos que representavam interesses de classe antagônicos. Todo esse embate desemboca nas eleições presidenciais de 1989, primeira em quase trinta anos no Brasil. A burguesia brasileira e o capital estrangeiro já tinham garantido uma Transição segura para o capital no fim do regime militar e na escolha de Tancredo Neves e José Sarney. Passado o momento de tensão política, a classe dominante do país podia agora se dedicar à implementação das políticas neoliberais, atualizando o papel do Brasil no cenário internacional, com o aprofundamento da dependência e da superexploração do trabalho. No entanto, como resultado dialético do processo de Transição e fim da Ditadura, forças populares foram liberadas para se reorganizarem, mesmo estando sob os limites do capitalismo. As condições de extrema pobreza e violência que eram impostas à maioria da população levaram ao crescimento dos partidos de esquerda e de suas lideranças, Brizola (PDT) e Lula (PT). Antes das eleições de 1989 os dois apareciam como favoritos à vitória no pleito. Para a classe dominante completar o ciclo de vitórias na Transição era necessário vencer as eleições presidenciais de 1989, com um candidato que, ao mesmo tempo, fosse um arauto das práticas neoliberais e apresentando como uma “novidade” no cenário político

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brasileiro. Políticos tradicionais ligados à Ditadura não cairiam no gosto popular a ponto de evitar uma vitória de um dos candidatos da esquerda. O que se configurava na eleição presidencial de 1989 era o esgotamento do período do investimento externo direto no mercado interno brasileiro. Essa fase da Divisão Internacional do Trabalho já vinha sendo substituída na periferia do sistema capitalista pela globalização neoliberal. No Brasil, ela leva à derrocada de sua superestrutura política, a Ditadura, e abre espaço para sua substituição em disputa por dois projetos: o elitista, de modernização reflexa de nossa condição dependente por meio do neoliberalismo, ou o direcionamento de uma democratização socioeconômica e política representada pela esquerda em partidos e movimentos sociais. Devido às maquinações empresariais e midiáticas, foi literalmente construído um personagem, o candidato Fernando Collor de Mello, como um político jovem, moderno, ousado e contestador de todo o sistema tal como estava colocado. Muito diferente do verdadeiro Fernando Collor de Mello, filho das oligarquias nordestinas, político oriundo dos quadros civis da Ditadura, personalista e corrupto. A candidatura Collor foi financiada pelo empresariado brasileiro e estrangeiro, além da campanha midiática favorável feita por todos os veículos de comunicação monopolizados, especialmente a Rede Globo. Brizola, que liderava as pesquisas de intenção de votos um ano antes da eleição, não chegaria ao segundo turno por pouquíssima diferença em relação a Lula, segundo colocado. Collor lidera o primeiro turno e venceria a eleição no segundo turno. O embate Collor x Lula era um raro momento onde a luta de classes se mostrou clara numa decisão eleitoral. Estavam em confronto os dois projetos de transição política no país, que vinham se enfrentando durante toda aquela década. O confronto final foi vencido com deslealdade midiática pelas forças conservadoras. Estava selada a vitória do capital. Inicia-se a implementação do neoliberalismo, mais um momento de modernização reflexa da economia do país. A democratização seria estancada pela permanência dos signos do atraso histórico brasileiro, nossa dependência econômica, a superexploração do trabalho e as imensas desigualdades sociais.

183

11.1

O neoliberalismo: reestruturação do sistema capitalista

A partir da década de 1970, as ideias neoliberais começam a ganhar destaque no cenário

internacional.

O

capitalismo

com

intervenção

do

Estado

na

economia

(keyneseanismo) e o Estado de bem-estar social começam a ser desmontados devido à tendência decrescente da taxa de lucros, maximizadas pelos dois choques do petróleo em 1973 e 1979. As primeiras experiências neoliberais foram colocadas em práticas no Chile e na Argentina sob ditaduras, como se fossem ratos de laboratório. Com a sociedade proibida de se manifestar contra Pinochet e os generais argentinos, era muito simples desregulamentar direitos trabalhistas e vender o país a preço de banana, privatizando empresas públicas e serviços. O Chile passa de uma taxa de pobreza de 19% no último ano do governo socialista de Salvador Allende (1973), para 38,7% ao final da ditadura de Pinochet em 1990.

110

Mas quando aplicado no centro do sistema capitalista internacional é que o neoliberalismo se torna hegemônico no mundo. A eleição de Margareth Thatcher no Reino Unido (1979) e de Ronald Reagan nos Estados Unidos (1980) selaram de vez o fim do keyneseanismo e do Estado de bem-estar social. Com as experiências socialistas do Leste Europeu entrando em colapso, o capitalismo se sentia livre para aniquilar as garantias do welfare state. O neoliberalismo abria novos espaços para o investimento privado, principalmente por meio da privatização de empresas estatais e serviços públicos. Para aumentar os lucros, além da venda do patrimônio público, houve um aprofundamento da exploração do trabalho, com a terceirização, a retirada de direitos e o desemprego estrutural a partir da adoção de maquinário de alta tecnologia que despende cada vez menos de trabalho humano em números quantitativos. 111 Como em todo momento de reestruturação do sistema capitalista, o neoliberalismo promoveu mais uma fase de brutal concentração de capital. Cada vez mais as megacorporações, com sedes nos países centrais, monopolizam a produção, a circulação e o consumo mundial. O neoliberalismo é o momento em que a financeirização do capital adquire 110

Dados do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento). IN: Carlos Eduardo Martins. Globalização, dependência e neoliberalismo na América Latina. São Paulo: Boitempo, 2011. P. 337.

111

Para uma total análise do neoliberalismo como reestruturação do capitalismo e da divisão internacional do trabalho, ver o capítulo 2 dessa dissertação.

184

cada vez mais importância, como também a fusão entre diversas empresas, criando multinacionais cada vez mais poderosas. Isso promoveu uma brutal concentração de renda no centro do sistema capitalista e ainda muito pior na periferia, devido aos seus já alarmantes problemas socioeconômicos. As grandes empresas e seus sócios foram os únicos que lucraram com esse novo momento do capital. O crescimento global entre 1973 e 2000 foi de 3,2; muito abaixo dos 4,9 no período do welfare state de 1950 a 1973. O corte do Brasil foi ainda mais brutal: de 1950-1973 o país cresceu em média 6,8. De 1973 a 2000 apenas 3,2. 112 A divisão internacional do trabalho também passa por mudanças com a reestruturação do sistema capitalista. Os processos produtivos são desmembrados em escala planetária, repassando as produções de baixa e média composição técnica para a periferia do sistema. Os países centrais mantém o monopólio de comando desse sistema de produção global, assim como das tecnologias de ponta (microeletrônica, informática, novas fontes de energia e biotecnologia). Mesmo quando apontam para situações de crescimento, economias neoliberais apresentam também aumento do desemprego. Ao contrário do que diz o discurso neoliberal, de que a desregulamentação das leis trabalhistas traria mais emprego, as economias neoliberais têm na situação de desemprego estrutural seu mecanismo básico para elevar o grau de superexploração. A quebra do pleno emprego, o enfraquecimento dos sindicatos e medidas como a terceirização e a flexibilização permitiram o aumento dos lucros. Com isso se aumenta o número de desempregados que força os salários para baixo. Além disso, aqueles trabalhadores que permanecem empregados passam para atividades informais, sem cobertura social, recebem salários e condições mais precárias no quis respeito à intensificação e extensão da jornada de trabalho. Na América Latina, situada na periferia do sistema capitalista internacional, com exceção de Cuba, podemos dividir a instalação do neoliberalismo em duas fases: nos anos 1980, com a crise da dívida e nos anos 1990, com o Consenso de Washington. A região passa por mais um período de modernização reflexa, que iria aprofundar o caráter dependente de suas economias e o mecanismo básico de seu funcionamento, a superexploração do trabalho.

112

Ivo Lesbaupin; Adhemar Mineiro. O desmonte da Nação em dados. Petrópolis: Vozes, 2002. P. 88-89. Dados do FMI.

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Em quase toda a região, incluindo o Brasil, a aplicação do receituário neoliberal coincidiu com o fim de ditaduras militares. Dessa forma, a aplicação das ideias econômicas neoliberais é coincidente com processos que se pretendiam de “redemocratização” da vida política e cidadã. No entanto, as próprias características do neoliberalismo impostas sobre os países latino-americanos não permitiu a concretização da desejada democracia. Os regimes políticos da região ficaram com democracias emperradas, no meio do caminho. Logo se percebe os limites dessas “democracias”, que na verdade, só existem no papel. A maior desigualdade entre ricos e pobres, junto com o desemprego estrutural e a informalidade fizeram com que os anos de hegemonia do neoliberalismo fossem de continuidade da miséria para as massas. Toda a América Latina está empacada em um “fetichismo democrático”, onde somente superficialmente vivemos sob as normas desse sistema político.

11.2

O neoliberalismo no Brasil: um panorama estrutural

Se tratando de Brasil, a década de 1980, momento em que é realizada a Transição, vivenciou a Crise da Dívida, a maior crise da história do capitalismo dependente brasileiro. Justamente pelo grau de caos socioeconômico em que se encontrava o país foi necessário às forças conservadoras extinguir o regime militar e realizar a troca de regime político, sem, no entanto, realizar qualquer mudança estrutural em prol da maioria e com o cuidado de afastar as forças populares dos centros de poder. Essa operação delicada na arena política era realizada sob o pano de fundo da ação das economias centrais, principalmente os Estados Unidos, que aprofundavam os problemas socioeconômicos do Brasil e de toda a América Latina. A necessidade de recursos dos países centrais em um momento de crise leva à retirada de parte dos capitais investidos na periferia e a cobrança das dívidas e juros contraídos pelos países latino-americanos. O endividamento irresponsável realizado pela Ditadura, na maioria das vezes para obras públicas extremamente inúteis, levou o país para a total insolvência e, consequentemente, para a recessão. Como o Brasil, as demais economias periféricas quebram e vão à bancarrota uma atrás da outra. O repatriamento de capitais e a vulnerabilidade dos países periféricos favoreciam as multinacionais dos países centrais, que se lançam em uma

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nova rodada de concentração de capitais, dessa vez forçando a abertura total dos mercados nacionais dos países da periferia do sistema e a privatização das empresas e serviços públicos dos mesmos. O grande capital nacional da periferia se movimenta para auxiliar na abertura dos mercados para os importados, na privatização e nos acordos internacionais com instituições como o FMI (Fundo Monetário Internacional) e o Banco Mundial (BIRD). Sua opção entre a possibilidade de lucro ao se associar cada vez mais com o capital estrangeiro ou o bem-estar da nação é facilmente verificável em favor da primeira. A primeira fase do neoliberalismo na América Latina (Crise da dívida – anos 1980) é marcada então pela repatriação de capitais pelos países centrais, notoriamente os Estados Unidos. Dessa forma as nações centrais aumentam sua concentração de capitais, reforçam suas economias e suas multinacionais e deixam as economias dos países periféricos enfraquecidas, necessitando de créditos e investimentos. O retorno desse capital necessário para a periferia seria realizado mediante o seguimento à risca das regras ditadas pelo FMI, conhecidas como ajustes estruturais. Esses ajustes estruturais nada mais eram que a imposição da liberalização total dos mercados, com a abertura para produtos importados, sem proteção à produção industrial nacional; além da privatização das empresas estatais. Fica claro que o enfraquecimento das economias latino-americanas foi deliberadamente feito para aumentar a concentração de capitais nas grandes empresas e enfraquecer as economias dependentes a ponto que a única forma de retorno dos capitais transnacionais era a abertura de setores da economia até então vedados a esse capital estrangeiro. Esses setores que se abrem às empresas multinacionais nos anos 1990 são aqueles controlados anteriormente pelas empresas estatais, além do fim das restrições aos importados. Abre-se assim a segunda fase do neoliberalismo na América Latina, o Consenso de Washington. Nesse momento são implementadas as políticas neoliberais na América Latina. No Brasil, como discutido anteriormente, o neoliberalismo começa justamente como política de governo do primeiro presidente eleito pós-Ditadura, Fernando Collor de Mello. A abertura do mercado brasileiro aos importados e a privatização do patrimônio público são desastrosas para a economia nacional e elevaria as já gritantes disparidades socioeconômicas do país. Com a entrada de produtos importados, a burguesia e a classe média fizeram uma farra ao consumir produtos de alta qualidade. No entanto, a abertura aos produtos importados leva à falência de boa parte das empresas de capital nacional, por não terem condições de concorrer com gigantes multinacionais.

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Mesmo empresas estrangeiras já instaladas no Brasil fecham boa parte de suas fábricas. Outras partes do mundo – principalmente a Ásia - ofereciam uma força de trabalho mais barata (porque imensamente superexplorada) do que o país, e com a abertura do mercado interno à importação, não necessitavam manterem unidades produtivas no Brasil. As empresas que permanecem aqui, quase todas filiais ou associadas ao capital estrangeiro, aumentam sua compra de máquinas de tecnologia avançada o que leva a um duplo movimento em relação à força de trabalho. O primeiro, a demissão em massa devido à adoção de tecnologia que dispensa o número de trabalhadores dedicados ao processo produtivo utilizados naquele momento. O segundo, o aumento da superexploração dos trabalhadores que conseguem permanecer empregados, porque passaram a realizar múltiplas funções (característica do toyotismo). A situação de desemprego estrutural permanente garante o achatamento salarial e leva ao aprofundamento da superexploração e das desigualdades sociais. O aumento da presença de multinacionais no país, seja com presença direta, ou como sócio e acionista de empresas brasileiras públicas e privadas, reforça o caráter dependente da nossa economia. Nosso país passa cada vez mais, a cada novo movimento do sistema capitalista, a uma perda gradual de autonomia econômica e política. Com a entrada pesada de empresas estrangeiras, as pequenas e médias empresas de capital nacional, e que dependem muito da compra de maquinário das grandes indústrias monopolizadas pelo capital estrangeiro, procuram aumentar o lucro para sobreviver a um mercado cada vez mais hostil a elas. Esse aumento nas receitas somente pode vir pela adoção de mais superexploração do trabalho, combinando mais-valia absoluta e mais-valia relativa com a remuneração da força de trabalho abaixo do seu valor real para auferir mais lucro e fazer com que essas pequenas e médias empresas sobrevivam na globalização capitalista. Com o patrimônio público vendido e a remessa de lucros cada vez maior das multinacionais, o país gera muito menos riqueza do que antes. Na verdade, gera riquezas, mas elas estão privatizadas e são, em sua maioria, apropriadas por outras nações. Na necessidade de mais capital e investimento, os governos brasileiros dos anos 1990 tentam fazer o país mais “atraente” para o capital estrangeiro, principalmente especulativo, que permite a rápida entrada de capitais no Brasil. Esse perigoso jogo com a financeirização do capital, típica do neoliberalismo, traria mais mazela para a maioria da população e dialeticamente, mais lucros para o grande capital: aumento dos juros, restrição do crédito, elevação do custo de vida, flexibilização da legislação

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trabalhista que permite o aprofundamento da superexploração e atenuação da legislação fiscal e ambiental. O empresariado brasileiro já defendia a adoção das medidas neoliberais desde a década de 1980, antenado com as mudanças ocorridas no cenário internacional. Para a classe dominante, era necessária uma reforma na estrutura socioeconômica brasileira. Contudo, diferentemente das forças de esquerda, que também identificavam a necessidade de mudanças para diminuir as desigualdades, o caminho defendido pelo empresariado e demais grupos componentes da classe dominante é o neoliberalismo, que marcaria uma nova fase de superexploração e aumento das desigualdades sociais. A defesa dos preceitos neoliberais já estava presente nos meios de comunicação pertencentes à classe dominante, além de suas agremiações partidárias e institucionais. O governo Sarney muitas vezes recebeu críticas por parte da burguesia por não diminuir a participação do Estado na economia. Porém, o grau de volatilidade política da década de 1980 não permitia uma ação governamental para implementar o ideário neoliberal. As contradições políticas do processo de Transição fizeram com que a classe dominante tivesse que canalizar suas energias para manter sua hegemonia num momento conturbado de mudança de sistema político. Todo o processo das Diretas Já, a eleição de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral, Assembleia Constituinte e das eleições presidenciais de 1989 levou a uma necessidade de deixar as políticas neoliberais em segundo plano, mesmo que sua defesa recebesse holofotes midiáticos de vez em quando. A obra feita pela FIESP “Livre para crescer. Propostas para um Brasil moderno” 113 lançada em 1990 é um bom retrato do que defendia a burguesia brasileira. Muitas propostas que seriam materializadas nos governos Collor, Itamar e FHC. As ideias da classe dominante passavam pelos pontos principais do receituário neoliberal, como privatização, flexibilização dos direitos trabalhistas e redução do papel do Estado na economia. O setor estatal deveria estar instruído pelas leis do mercado, como se fosse uma empresa privada com concorrentes. Esse tipo de pensamento coloca os direitos sociais como mercadorias e defende a retirada da participação do Estado em vários setores vitais para as pessoas mais pobres por supostamente não apresentar “competência” para tal (um argumento tipicamente mercadológico). Esse argumento se encontra dentro da lógica que o que é público é ruim e o que é privado é bom. O sucateamento proposital e as frações mínimas do 113

Federação das Indústrias do Estado de São Paulo. Livre para crescer. Propostas para um Brasil moderno. São Paulo: Cultura Editores Associados, 1990.

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orçamento federal destinados a vitais setores, como saúde e educação, não são levados em conta pelo apetite voraz da iniciativa privada. Os industriais paulistas defendiam a liberalização total do comércio exterior brasileiro, compreendendo que o momento anterior da DIT, baseado no investimento estrangeiro direto no mercado interno, tinha sido superado. Os custos de produção menores de outras partes do mundo levaram as multinacionais a investirem seus capitais produtivos em outras localidades que permitissem um grande volume de exportações. Para que o Brasil voltasse a ser “atraente” ao investimento estrangeiro era necessário seguir a fórmula neoliberal. “Atraente” no linguajar empresarial significa cortar gastos com direitos trabalhistas e isenções fiscais, que levariam a instalação de indústrias no país. De qualquer forma, as indústrias instaladas no Brasil não produzem o que o povo brasileiro necessita, mas sim, o que garanta os lucros das empresas estrangeiras. O papel do Estado na economia e os direitos trabalhistas consagrados na Constituinte de 1988 eram permanentemente atacados pelo patronato. As salvaguardas em relação aos trabalhadores eram apontadas como responsável pelo déficit público. Não se levava em conta o pagamento da dívida e os projetos de caráter duvidoso tocados pela Ditadura. A revisão destes ao longo dos anos 1990 seria uma obsessão por parte da classe dominante, tal grande ou até maior que a famigerada pauta da burguesia em relação ao corte de impostos (dos ricos, claro). Além da redução de direitos trabalhistas, também é uma bandeira neoliberal a livre negociação, ou seja, a não mediação do Estado, por meio da Justiça do trabalho, nos litígios entre patrões e empregados. O objetivo do empresariado é desmantelar a força dos sindicatos e fazer com que o “negociado vale mais do que o legislado”, o que significaria rasgar a CLT (Consolidação das Leis do Trabalho). Mesmo defendendo um mercado de capitais na questão do crédito financeiro e a autonomia do Banco Central, o caráter de classe do Estado e das ideias neoliberais fica evidente quando a burguesia defende a permanência da atuação estatal em algumas áreas. Podemos observar isso nos empréstimos concedidos pelo BNDES (Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social) às empresas privadas – incluindo estrangeiras – e outras concessões e apoios a alguns setores, como o agronegócio. A adoção do neoliberalismo é de um caráter tão vassalo por parte da burguesia brasileira que se abre mão claramente do desenvolvimento de processos produtivos de alta tecnologia, que como vimos, corresponde a um dos fatores da hegemonia do centro do

190

sistema capitalista sobre a periferia. No documento produzido pela FIESP podemos constatar isso: As vantagens comparativas de longo prazo em países como o Brasil estão associadas ao movimento de migração de crescente número de produtos e de processos que atingiram a maturidade (estabilidade) tecnológica nos países desenvolvidos; as incursões do Brasil em setores de tecnologia de ponta devem se concentrar em etapas do processo produtivo que não onerem o custo de produção. Para obter os ganhos de produtividade necessários à ampliação da competitividade do país no mercado mundial, deve-se eliminar a variância da proteção e dos incentivos, reduzir a verticalização excessiva da economia, investir em formação de capital humano e eliminar as barreiras à competição. 114

Nos pontos mais delicados para o social, saúde e educação, a burguesia brasileira mais uma vez coloca direitos como mercadorias. O único ensino que o Estado deveria garantir é a Escola Básica. Para os neoliberais, não há razão para as universidades públicas serem gratuitas, setor que sofreria pesados ataques ao longo da década de 1990. Acabar com o SUS (Sistema Único de Saúde) seria inviável e até perigoso politicamente, mas seu sucateamento foi levado ao extremo, fazendo com que a classe média migrasse para planos de saúde privados. Dentro das políticas de saúde defendidas pelo neoliberalismo brasileiro estava o controle familiar. 115 Todas essas ideias e outras mais eram constantemente veiculadas na grande mídia, como forma de convencimento da população de que a liberalização total do comércio, as privatizações e a diminuição da participação do Estado na economia seria a rota do Brasil para o Primeiro Mundo, sempre com a ênfase na questão da “modernização” do país. Qualquer argumento que criticasse tais propostas além de não ter o mesmo espaço na mídia era taxado como “atraso”, “arcaico”, paternalismo que protegia a incompetência, além de outros jargões da área empresarial. O que estava em construção era uma cidadania baseada no consumismo e não em direitos políticos. Uma sociedade regida pela lógica de mercado ao extremo concede direitos ao cidadão na proporção de capacidade de consumo que ele possui. A implementação do neoliberalismo nega preceitos básicos de cidadania que fazem parte da compreensão de um sistema político democrático. A implementação do neoliberalismo é um dos fatores que nos permite qualificar o regime político brasileiro de “pós-ditatorial”, e não democrático. As próprias características do neoliberalismo inviabilizam a democracia.

114

Idem. p. 317.

115

Idem. p. 319-321.

191

O controle da classe trabalhadora se dá pelo enfraquecimento de sua capacidade de organização política, quebrando sindicatos e precarizando e terceirizando postos de trabalho. Dessa forma, o cidadão é controlado por estar separado dos que sofrem a mesma exploração que ele e sequer se reconhecem como pertencentes ao mesmo grupo social. Atomizado, esse indivíduo é controlado pela precariedade das suas condições trabalhistas e sociais. O neoliberalismo se constituía dessa forma também como ideologia, com o objetivo de convencer os brasileiros de que suas propostas seriam benéficas para todos. Como pensamento da classe dominante, suas mazelas eram mascaradas e apresentadas como incompetência individual de quem não conseguiu ascender por culpa própria. Isso vale tanto para os indivíduos, como em relação a países. O Brasil deveria aproveitar as “oportunidades” que se abriam devido à implementação das ideias neoliberais em sua economia. Do contrário, seria um perdedor no cenário internacional. Os valores neoliberais são impostos como consenso. Na década de 1990 era muito recorrente o argumento de que “não há outra saída”, utilizando como fatos concretos exemplares o desmanche do socialismo no Leste europeu, o fim da União Soviética e a adoção de práticas capitalistas por nações outrora socialistas, como a China. As próprias forças de esquerda ficariam perdidas devido à avalanche neoliberal dos anos 1990 e não conseguiria mais realizar mobilizações contundentes (com algumas exceções, como o MST) contra os governos neoliberais. Os maiores partidos de esquerda pós-ditatoriais, PT e PDT, seguiriam um longo caminho de degeneração ideológica e capitulação frente à ordem capitalista. Nesses marcos socioeconômicos é que se estabelece o neoliberalismo no Brasil, durante os governos de Fernando Collor, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso. Doze anos de catástrofe econômica e social que aprofundaria a desigualdade, a dependência e a superexploração do trabalho. Doze anos em que o país passaria longe da esperança de que a “redemocratização” significaria melhora para os graves problemas que vivia o povo brasileiro.

192

11.3

Governo Collor e o início da implementação das políticas neoliberais

A vitória de Fernando Collor na eleição presidencial de 1989 marcou o fim das indefinições da classe dominante brasileira que apareceram em alguns momentos do governo Sarney. A tentativa de uma política econômica desenvolvimentista serviu mais para manter a esquerda longe do poder (e mesmo assim, quase não funcionou, já que a luta de classes foi muito acirrada) do que para tirar o país da maior crise da sua história. A maior parte do empresariado já clamava pelas reformas neoliberais no Brasil, e somente não fez oposição ferrenha a Sarney desde o início, pois sabia que havia muito em jogo no tabuleiro político (Constituinte e eleições em todos os níveis da República). A necessidade de reformas estruturais no edifício socioeconômico brasileiro era latente. Em entrevista à revista Veja, o próprio Ministro da Fazenda de Sarney, Maílson da Nóbrega nos últimos dias de governo já antevia: “O Estado precisa ter seu papel redefinido no Brasil para que sejamos um país moderno”. 116 Dois projetos de reforma se enfrentaram para definir os rumos do país: um popular, de aprofundamento da democracia e de diminuição das desigualdades, o outro elitista, que prometia uma “modernização” que se baseava no consumismo e no desmonte do patrimônio público. Esses dois projetos se enfrentaram durante todos os momentos decisivos do processo de Transição na década de 1980. O projeto elitista saiu vencedor, com a adoção do neoliberalismo a partir da eleição de Collor como presidente do Brasil. As ideias neoliberais, já fortemente divulgadas como única solução possível para a crise pela mídia monopolizada, ganha ainda mais reforço. As mudanças seriam feitas sob a legitimidade “democrática”, em um momento de grande ansiedade, já que se tratava do primeiro governo eleito pelos cidadãos em quase trinta anos. A democracia se torna dessa maneira um elemento retórico da implementação de políticas que inviabilizam a própria democracia. A inflação passava de 2000% ao ano. No dia seguinte da posse do novo presidente, a sua ministra da Fazenda, Zélia Cardoso de Mello, declara o confisco da poupança de milhões de brasileiros. Essa medida foi alardeada durante a campanha eleitoral por Collor, dizendo que se Lula fosse eleito este confiscaria a poupança dos brasileiros e geraria o caos nas 116

Flávio Henrique Calheiros Casimiro. Cultura política e cidadania no Brasil (1986-2002): a construção de uma visão de mundo neoliberal. In: Dialogos – Revista dos alunos de pós-graduação em história da UERJ. n. 4, 2010. p. 51.

193

finanças da classe média. Pois bem. Collor faz exatamente o que acusava o seu antigo rival e nos primeiros dias de governo (!). Os salários também são congelados, perdendo 84% do seu valor em relação à medição da última inflação. 117 Collor tenta dirigir o país de modo completamente personalista, fruto de sua construção como “candidato modelo” feita pela própria mídia e a burguesia. Seu ministério não possui pessoas qualificadas nas diversas áreas do governo, nem políticos de renome. Monta uma equipe feita por amigos e conhecidos, dentro de um jogo de favores com a coisa pública, num claro desrespeito com o país e seu povo. Os favores pessoais nos cargos eram tantos, que a imprensa na época chegou a apelidar seu governo de “República das Alagoas”, em referência ao estado natal do presidente. Seu plano econômico tem como objetivo restringir drasticamente os gastos públicos, os salários e a poupança, na esperança de conter os mecanismos que elevavam a inflação. O problema é que esse plano não pode durar por muito tempo, pois a economia precisa de liquidez, ainda mais num momento de financeirização do capital como o que se instala na globalização capitalista. A dívida pública corria as finanças do Estado e eram agravadas pela necessidade de se manter um superávit comercial. Os títulos da dívida pública brasileira eram vendidos para se tentar atrair capital, mas os juros destes eram cada vez maiores, já que claramente investir no Brasil nesse momento era muito arriscado. O mercado interno brasileiro, devido à miséria da população, continua muito escasso. A falta de renda leva ao baixo consumo, o que puxa a inflação, mecanismo usado pela classe dominante como transferência de renda dos mais pobres para os mais ricos, maximizando lucros. O confisco das poupanças jogou a classe média contra o governo. Esse dinheiro obtido com o confisco se esfumaça no pagamento da dívida externa, deixando o país sem liquidez e capacidade de negociação financeira. Os títulos da dívida são vendidos, mas, com a falta de liquidez, o governo não tem condições de pagá-lo. Ao mesmo tempo, Collor inicia o processo de privatização das empresas estatais, fechamento de instituições públicas e a dispensa de funcionários públicos. No quadro econômico vivido pelo país então, trata-se de uma irresponsabilidade sem tamanho, já que o Brasil estava se desfazendo de empresas que poderiam gerar divisas para lidar com sua profunda crise. O discurso neoliberal propagado pelo governo e massificado pela mídia monopolizada apresentava as estatais como um fardo, como uma fonte de gastos do governo e por isso coparticipante do endividamento do país. O futuro mostraria justamente o contrário.

117

Vito Giannotti. História das lutas dos trabalhadores no Brasil. 3.ed. Rio de Janeiro: Mauad X, 2009. p. 284.

194

O Brasil vendeu empresas que poderiam gerar recursos, extinguindo mais uma fonte de capitais. A imprensa fazia o papel de desinformar, propagandeando o ideal neoliberal como única solução para os problemas do país. O estatal era apresentado como arcaico e a privatização como solução mágica para os problemas do país, que traria eficiência e modernidade. No momento em que as experiências socialistas do Leste europeu se desmanchavam, o “discurso único” do capitalismo ganhava força, fato que permanecerá hegemônico até meados da década de 2000. Mesmo assim, nas eleições de 1990, Leonel Brizola retorna ao governo do estado do Rio de Janeiro, e o PDT, o PT e o PSDB avançam no número de prefeituras. Os planos econômicos de Collor são um fracasso na contenção da inflação, na liquidez e na tentativa de controle do endividamento do país. O FMI pressiona cada vez mais para o governo levar a frente o projeto privatizante e liberalizante da economia. As condições para os empréstimos do FMI passavam pelo fim ou restrição das tarifas alfandegárias, abrindo caminho para os importados, redução drástica nos investimentos públicos, notoriamente saúde, educação, habitação e saneamento (o que atinge os mais pobres) e a privatização das empresas estatais, além da demissão e congelamento de salários do funcionarismo público. Os ditames do FMI nada mais são do que a criação das condições necessárias para a entrada violenta das multinacionais no país por meio de produtos importados, além da dominação de áreas até então fora do controle privado e estrangeiro, por serem controladas por empresas públicas. O ciclo iniciado nos anos 1980, com a repatriação de capitais e a quebra das economias latino-americanas (sendo o Brasil o mais afetado porque o mais endividado) se completa, com o capital estrangeiro retornando, como uma onda na praia que quebra cada vez com mais força a cada retorno. A economia brasileira nos anos 1990 é engolida pela financeirização especulativa e a indústria nacional é totalmente dominada por monopólios estrangeiros. Os resultados para o povo são dramáticos. Mais de 100 mil funcionários públicos colocados em “disponibilidade”. A FIESP noticia 110 mil demitidos nas indústrias de São Paulo. 118 O “crescimento” econômico no governo Collor mostra clara recessão:

118

Idem. P. 285.

195

“Crescimento” econômico no governo Collor Ano

Desempenho

1990

-4,3

1991

1,0

1992

-0,5

Fonte: dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). IN: Theotonio dos Santos. Globalization, emerging powers, and the future of capitalism. Translated by Mariana Ortega Breña. Latin american perspectives, issue 177, Vol. 38. No. 2, March 2011. P. 56.

Os trabalhadores não aguentam mais tanta recessão, inflação e arrocho salarial. Os trabalhadores das empresas públicas que se encontravam nos planos de privatização são os mais mobilizados, como na CSN. As greves continuam acontecendo, mas já não mais com a magnitude das realizadas na década de 1980. O discurso neoliberal é empurrado goela abaixo pelos meios de comunicação a serviço do empresariado e do grande capital. Em 1991 é fundada a Força Sindical, central sindical pelega que defenderia o neoliberalismo com unhas e dentes. A Força Sindical é o braço da direita entre os trabalhadores sindicalizados, financiada pela FIESP e estimulada por Collor. A direita avança sobre o meio sindical para quebrar por dentro a resistência dos trabalhadores contra o neoliberalismo. Quando não pela cooptação, o capitalismo se manifesta pela violência, como fica claro na criminalização dos movimentos sociais. O Movimento dos trabalhadores Sem Terra (MST) sempre é um dos mais atingidos por estar em batalha contra um dos pilares da classe dominante no Brasil: o latifúndio. Durante o governo Collor se iniciou a caçada ao MST, que perdeu incontáveis militantes devido à violência no campo. Agnor Bicalho Vieira, mais conhecido como “Parafuso”, um dos primeiros dirigentes do MST colocou que durante o governo Collor “queimei coisas que não deveria queimar. Mas a repressão era muito forte” 119

, em relação a documentos do Movimento. No entanto, no primeiro semestre de 1991 começam a aparecer as primeiras denúncias

de corrupção no governo Collor. O séquito de compadrio em que se baseava a equipe governamental do presidente se locupletava dos cofres públicos de maneira voraz. A cada novo escândalo um novo membro do governo era exposto como participante ou cúmplice.

119

Eduardo Scolese. Pioneiros do MST: caminhos e descaminhos de homens e mulheres que criaram o movimento. Com fotos de Sérgio Lima. Rio de Janeiro: Record, 2008. p. 114.

196

As denúncias muitas vezes ganhavam contornos de rixas pessoais, principalmente, a partir do momento em que Pedro Collor de Mello, irmão do presidente e reconhecido desafeto, começou a endossar as denúncias contra o governo na grande imprensa. O Brasil acompanhava aquela palhaçada que se tornava as acusações contra o presidente e seus ministros e assessores, enquanto as necessidades da população estavam, como quase sempre, em segundo plano. As greves e mobilizações políticas no país, que ocorriam no governo Collor devido aos ataques neoliberais ao patrimônio público e à miséria imposta à população, ganham mais força com as denúncias de corrupção. Já em julho de 1991 começam a surgir os primeiros protestos exigindo a renúncia do presidente. Nesse momento, essas mobilizações estão restritas aos partidos e movimentos sociais organizados do campo da esquerda. A própria classe dominante começa abandonar Collor, ao ver que ele não é confiável. Apesar de ter iniciado a implementação das políticas neoliberais no Brasil, o modo personalista de direção por parte do presidente, a tentativa de ter uma certa autonomia em relação aos distintos grupos políticos, o fato de ter desagradado alguns setores da classe dominante (como o pequeno e médio empresário ligado à produção) e a incontrolável voracidade com que seus protegidos devoravam as finanças públicas em sucessivos casos de corrupção, faziam com que Collor fosse, gradualmente, sendo deixado sozinho pelo empresariado, já à procura de alguém que pudesse dar a continuidade necessária para o projeto neoliberal. 120 Collor tentou manter uma liderança bonapartista, mas os sucessivos casos de corrupção, a desconfiança da própria classe dominante que outrora lhe apoiou e a mobilização popular levariam ao impeachment do presidente. Collor tentava ainda mostrar algum apoio popular, convocando as pessoas para apoiá-lo (a famosa frase “não me deixem só”). Ao contrário, o que se vê é uma gigantesca mobilização de massas, principalmente dos jovens, nas ruas do Brasil pedindo o impedimento do presidente. Esse movimento ficou conhecido como “caras-pintadas”, devido ao fato dos jovens presentes nas manifestações pintarem os rostos de verde e amarelo. Essas manifestações eram uma demonstração de como a mídia monopolizada poderia ser tão tacanha. O mesmo conglomerado de veículos de imprensa responsáveis pela fabricação de Collor como 120

Somente PFL e PTB aceitaram participar do governo Collor nesse momento, e apenas a FIESP e a Força Sindical ficaram até o fim com o presidente. Essas duas entidades, há vinte dias de se votar o impedimento do presidente, fizeram um ato público na Praça da Sé, em São Paulo, com o slogan “A favor das reformas modernizadoras”. Vito Giannotti. Op Cit. P. 290.

197

“candidato do novo” inflava os jovens a ir às ruas para depor o presidente. Novamente o destaque ficava para a Rede Globo, que transmitia na época a série “Anos Rebeldes”, em que retratava jovens que lutaram contra a Ditadura. 121 Collor, abandonado pelas próprias forças que o criaram, e sofrendo grandes pressões populares nas ruas foi escorraçado do Planalto. A votação do processo de impeachment foi massacrante no Congresso: 441 votos a favor, 32 contra e 23 abstenções ou ausências. Encerrava-se assim o ciclo político da Ditadura. Collor é o último político oriundo do antigo regime ditatorial que chegou à presidência. A partir daí, somente políticos pertencentes aos mais diversos quadros políticos de oposição à Ditadura conseguiriam alcançar o posto mais importante da República. O governo Collor termina muito distante de qualquer modernidade que havia sido prometida na época de campanha eleitoral. O Brasil ainda convivia com taxas astronômicas de inflação e miséria. O município de Teotônio Vilela (em Alagoas, estado natal do presidente) apresentava uma mortalidade infantil de quase 500 crianças mortas para cada mil nascidas. Mais de 35 milhões de crianças e adolescentes estavam em famílias com renda inferior a um salário-mínimo. 122 O regime político pós-ditatorial brasileiro se encontrava muito longe de qualquer coisa que lembrasse uma democracia. O pauperismo generalizado imperava e a desigualdade social só crescia. Os únicos beneficiados foram uma parte da burguesia e da alta classe média, que viviam em padrões de Primeiro Mundo. O capital estrangeiro monopolizava cada vez mais os setores estratégicos da economia brasileira. O neoliberalismo estava em marcha no país e, recuperado das querelas políticas que levaram à deposição do presidente, retomaria sua rota de destruir a economia nacional e a vida de milhões de brasileiros.

121

Ditadura que criou a Globo em 1965 e que a mesma apoiou até o final.

122

Dados da ONU e do IBGE presentes em Vito Giannotti. Op cit. P. 292.

198

12

FERNANDO

HENRIQUE

CARDOSO:

SURGE

O

HOMEM

DO

NEOLIBERALISMO NO BRASIL

As graves denúncias de corrupção e as grandes mobilizações de massa contra o presidente Collor levaram ao seu impedimento. Seu modo personalista de dirigir o país, montando um corpo de ministros e funcionários de confiança unicamente pela proximidade pessoal com o presidente, fez com que a Nação fosse dirigida pela “República das Alagoas”. Esse governo de compadres se mostrou extremamente incompetente e corrupto. Desagradou boa parte da classe dominante que o elegeu e que perdeu a confiança em Collor conforme se desenrolava os sucessivos esquemas de corrupção. A classe média se colocou prontamente contra ao confisco de sua poupança por parte dos planos econômicos do Governo Federal. Os trabalhadores viviam em plena miséria. Aqueles organizados em partidos de esquerda e movimentos sociais já estavam, desde sempre, contrários ao governo e tomam as ruas no momento em que suas reivindicações econômicas se encontram no rechaço popular à corrupção. O impeachment de Fernando Collor demonstrou como o regime pós-ditatorial estava não construindo a democracia, mas na verdade, aprofundando as desigualdades sociais do Brasil e reforçando a dependência. Ao mesmo tempo, foi uma demonstração de como a sociedade brasileira tinha sim capacidade de organização e estava disposta a exercer a democracia que diziam a ela existir no país. A deposição de Collor e todo o processo que levou a essa situação fez com que os processos de privatização e implementação das demais políticas neoliberais fossem momentaneamente paralisados. No entanto, isso não se configurava numa vitória da esquerda e de um projeto de reformas populares e democráticas, mas sim, numa rearticulação de forças da classe dominante para se livrar de Collor, que de figura central do neoliberalismo se tornou um incomodo. Ao mesmo tempo, articulava-se nos bastidores políticos e empresariais quem poderia continuar as mudanças promovidas pelo neoliberalismo no país. Collor é substituído por Itamar Franco, seu vice-presidente, que deveria concluir o tempo de mandato original do presidente eleito. Assim, assumindo em 1992, permaneceria até 1994, ano em que seriam realizadas novas eleições para o cargo mais importante da República. Itamar foi o primeiro político oriundo da oposição à Ditadura a chegar à presidência. Foi membro do MDB, onde sempre se posicionou contrário aos ditames ditatoriais, ao contrário das negociações espúrias de Tancredo Neves. Nas eleições

199

presidenciais Itamar estava sem partido. Sua passagem pelo nanico PRN, partido de Collor, foi rápida e durante o governo já demonstrava discordâncias com os rumos políticos apresentados.

12.1 O governo Itamar e a retomada do projeto neoliberal

Itamar Franco tentou dar ares de “comitê de salvação pública” ao seu governo. Com a deposição de Collor tendo sido resultado de pressões de classes sociais e grupos políticos distintos, Itamar tentou implementar essa heterogeneidade no seu governo, no intuito de, com a colaboração das mais diversas forças da sociedade, dar fim aos altíssimos números de inflação e os graves indicadores sociais. Dessa forma, Itamar tenta romper com tradições políticas oriundas dos quadros civis da Ditadura, sem, no entanto, romper com esses mesmos quadros. Concomitantemente, tenta atrair as forças de esquerda para o governo, oferecendo ministérios. O PT e PDT colocariam pessoas de confiança nos ministérios do Trabalho e da Justiça respectivamente, mas logo se retirariam devido à continuidade do programa de privatizações das empresas estatais. O governo contava ainda com a participação do PSDB e do PFL. Itamar tentou articular um governo que tentasse juntar todas as forças de oposição à Ditadura, da esquerda, até a oposição liberal. Dessa maneira truncada, essas forças de oposição ao antigo regime militar chegariam ao poder, mesmo que sua fração popular democrática tenha se retirado rapidamente. O governo Itamar ficou assim configurado pela antiga oposição liberal à Ditadura e alguns quadros civis pertencentes ao antigo regime. Essas tentativas de Itamar de tentar fazer o novo a partir do velho não dariam certo. Muito menos a participação da esquerda no governo, que prontamente se retira do mesmo ao observar a continuidade do programa de privatizações. Em 1993 foi a leilão a CSN (Companhia Siderúrgica Nacional), símbolo de desenvolvimento da Era Vargas e do patrimônio público nacional. Centrais sindicais e partidos políticos de esquerda se mobilizam para impedir o leilão da CSN (cena que se repetiria em todas as sessões de venda de empresas estatais). No entanto, essas manifestações não agregam a massa, permanentemente sofrendo uma lavagem cerebral por parte dos meios de comunicação ao mostrar as estatais como um fardo de inoperância para

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o Estado brasileiro. Luiz Antônio Medeiros, pelego de marca maior e um dos líderes da Força Sindical, foi convidado para bater o martelo da venda da CSN no Rio de Janeiro de modo a mostrar que a classe operária também estaria a favor das privatizações. Também nesse ano ocorre o plebiscito sobre o sistema de governo, no qual os brasileiros deveriam escolher entre monarquia ou república e entre presidencialismo ou parlamentarismo. A república presidencialista vence, com apoio das forças de esquerda. Esse plebiscito foi uma forma de mascarar os reais problemas do país, pegando carona numa clausula da Constituição de 1988 que previa sua revisão em 1993. Tentativas de retirar boa parte dos direitos trabalhistas por parte dos políticos conservadores foram tentadas, mas embarreradas pelas forças de esquerda no Parlamento e nos movimentos sociais. Tem início também as Marchas para Brasília, forma com que vários movimentos sociais se mobilizaram ao longo dos anos 1990, na qual caravanas de trabalhadores seguiam para a capital federal com suas pautas de reivindicações, quase sempre nunca atendidas. Principalmente o MST se notabilizou por gigantescas mobilizações desse tipo durante toda a década. Entregue às forças conservadoras e incapaz de solucionar as pautas trazidas pelo movimento popular, Itamar Franco nomeia como ministro da Fazenda Fernando Henrique Cardoso (FHC) do PSDB. FHC seria responsável por colocar em prática um plano econômico – o Plano Real - que prometia acabar com a inflação e o déficit público por meio das receitas do FMI (Fundo Monetário Internacional) de privatizações, retirada do Estado da economia e de setores de proteção social, além do congelamento de salários. A colocação desse plano econômico em prática estava totalmente direcionada com a eleição presidencial de 1994, na qual, pelas pesquisas de intenção de votos, Lula (PT) era apontado na frente dos demais candidatos. Para novamente evitar uma vitória da esquerda, as forças conservadoras brasileiras se mobilizam com o objetivo de fazer do Plano Real o cabo eleitoral do ministro Fernando Henrique Cardoso, que seria lançado como candidato à presidência num consenso da direita. A articulação contou com grande participação internacional, já que o FMI liberou 20 bilhões de dólares para a execução do Plano Real. Em pleno ano de campanha presidencial salários e preços são congelados e a moeda drasticamente desvalorizada. Essas medidas domariam a inflação e aumentaria, de forma momentânea, o poder de compra da população, o que mudava radicalmente o quadro eleitoral, como nos mostra Vito Giannotti:

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As bases políticas do Plano Real eram as receitas neoliberais do FMI. Ele garantia, em primeiro lugar, a livre entrada de capitais estrangeiros e uma forte recessão. Como consequência, viriam a desindustrialização, a privatização das empresas criadas pelo Estado e a retirada do Estado dos serviços públicos de saúde, educação, transporte e de toda a infraestrutura. Esta análise que a esquerda fazia, embora correta no médio prazo, era difícil de ser apresentada aos trabalhadores de imediato, pois a contenção da inflação era muito atrativa. Para o conjunto da população, o congelamento dos preços e a nova moeda, o real, trouxeram um alívio imediato. As camadas mais pobres sentiram imediatamente os efeitos. O povo passa a conviver com crediário fácil e este fato logo se reflete no aumento do consumo, antes reprimido pela inflação. Célebre ficou o preço extremamente baixo do quilo do frango, a R$ 1,00, e do iogurte, que se tronara acessível a um público que antes o desconhecia. O dólar passou a ter equivalência com o real, o que fazia a alegria da classe média, com suas viagens para Cancún, Miami e Orlando. A esquerda denunciava o plano como eleitoreiro e alertava para seus efeitos futuros, baseando-se em exemplos de outros países. Ele traria um forte desemprego, a destruição dos serviços públicos e uma maior concentração de riqueza. Nesse clima, e com essa análise, a esquerda sindical e partidária subestima o impacto das medidas econômicas sobre as expectativas da população, cansada de vinte anos de inflação.123

Essa capacidade fugaz de consumo para uma enorme população que nada consumia há duas décadas maquiava as mazelas do neoliberalismo. Essa cortina de fumaça não duraria muito tempo, mas seu objetivo era realmente temporário o suficiente para virar o quadro eleitoral e eleger FHC como presidente da República. Com sua vitória no primeiro turno a classe dominante brasileira e o capital internacional tinham a garantia da continuidade do projeto neoliberal no país e o seu aprofundamento. Mais do que isso, o neoliberalismo ganhava mais uma vez a legitimidade das urnas, como se a população tivesse conscientemente escolhido essa política econômica. A vitória de FHC em 1994 está baseada na implementação do Plano Real e sua supressão da inflação astronômica, o que não significa que a inflação continuaria impedindo o bem-estar da população brasileira nos anos seguintes. Essa base para o desenlace do Plano Real e a vitória de Fernando Henrique também foi obra de uma ampla aliança de direita que lhe deram maioria no Congresso Federal, apoio do FMI nos momentos decisivos (suas duas eleições, em 1994 e 1998), o terrorismo midiático contra a esquerda feito nos principais veículos de comunicação do país e certo “prestígio de oposição à Ditadura” do PSDB que fazia com que vários analistas influentes da época não o vissem como um partido de direita.

123

Vito Giannotti. História das lutas dos trabalhadores no Brasil. 3ª edição revista e ampliada. Rio de Janeiro: Mauad X, 2009. P. 294. Dialeticamente, no ano (1994) em que essas medidas neoliberais ganhariam seus contornos definitivos no Brasil com a ascensão de Fernando Henrique Cardoso, o México, país que tinha seguido os ditames do FMI à risca e que tinha entrado numa severa recessão, assistia a primeira grande mobilização antineoliberal do mundo, o nascimento do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), grupo guerrilheiro socialista que aponta as mudanças neoliberais como fonte dos problemas socioeconômicos do povo mexicano.

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12.2 Fernando Henrique Cardoso: intelectual orgânico da burguesia e realizador do neoliberalismo no Brasil

Fernando Henrique Cardoso sempre foi uma personalidade destacada por onde passou. Intelectual de renome a partir dos anos 1960 e 1970 foi aluno de Florestan Fernandes na USP (Universidade de São Paulo). Senador pelo MDB na Ditadura e pelo PMDB a partir do fim do bipartidarismo em 1979. Trabalhou ativamente na campanha de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral em 1985, na Constituinte e na dissidência do partido que fundaria o PSDB em 1988. Foi indicado como ministro da Fazenda de Itamar Franco para estabelecer o Plano Real, que o galvanizaria a presidência da República nas eleições de 1994. Os dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso como presidente do Brasil (19952002) marcam o auge do neoliberalismo no país, com a desnacionalização da economia, as privatizações e os ataques ao trabalhador em sua forma mais extremada. A presidência de FHC marca o definitivo complemento do processo de modernização reflexa, ao reforçar o caráter dependente da economia brasileira na nova divisão internacional do trabalho neoliberal. Aparta também qualquer possibilidade de identificarmos o sistema político brasileiro como democrático, devido ao aumento da desigualdade social, do desemprego e da criminalização dos movimentos sociais. No entanto, é pouco falado que a produção intelectual de Fernando Henrique nos anos 1970, que o levaria a ser um cientista social reconhecido em todo o mundo, já demonstrava as preferências de FHC pelo controle indiscriminado do capital estrangeiro em nossa economia como única forma de desenvolvimento possível para um país periférico. Também é destacada na produção intelectual do ex-presidente antes de chegar a esse posto, sua preferência pela democracia liberal e pelo pacto de classes conservadoras para o fim da Ditadura e construção de um novo sistema político brasileiro. A obra basilar de Fernando Henrique Cardoso, “Dependência e desenvolvimento na América Latina” escrita junto com o chileno Enzo Faletto e publicada pela primeira vez em 1970, já denotava alguns dos principais pontos que se materializariam nos mandatos presidenciais do autor. Na época, FHC era tratado como um intelectual marxista, que, no entanto nunca tinha sofrido imposições da Ditadura. Seus livros circulavam tranquilamente e até seu centro de pesquisa independente, o CEBRAP, foi fundado na época, com dinheiro da Fundação Ford.

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Nas décadas de 1960 e 1970 discutia a questão da teoria da dependência, da qual Fernando Henrique fazia parte. No entanto, ele não está veiculado com a teoria marxista da dependência, de Ruy Mauro Marini, Theotonio dos Santos e Vânia Bambirra, que compõem muito da estrutura teórica desse trabalho. FHC dá contornos a um pensamento onde apresenta o caráter dependente da economia brasileira, mas defende que mesmo nessa situação seria possível o desenvolvimento e a “modernização” do país. A noção de desenvolvimento defendida por Fernando Henrique é a liberal-burguesa, onde a simples existência da produção e consumo (este extremamente restrito por parte dos grupos dominantes) de bens duráveis já significa desenvolvimento. Não importa o quanto desigual é a concentração de renda no país ou o grau de miséria que vivia a maior parte da população. A transformação de uma parte da estrutura produtiva na direção de uma composição técnica mais avançada já denotaria a situação de desenvolvimento, mesmo que a grande maioria do povo brasileiro sequer sonhasse em consumir os produtos originários dessa produção e que a mesma fosse viável por meio da superexploração dos trabalhadores. Os avanços dos setores produtivos que apresentam maior concentração de capital exigem um novo aprofundamento da superexploração do trabalho e mais articulação com setores estrangeiros de forma subordinada. FHC não via o menor problema dos investimentos diretos do capital externo no mercado dos países dependentes, como o Brasil. Sua preocupação era que essa forma de desenvolvimento econômico, para ele única forma, não necessitava passar por uma Ditadura, mas sim, poderia ser realizada dentro de uma “democracia” liberal. No pensamento da teoria da dependência de Fernando Henrique, a participação direta do capital estrangeiro no mercado interno levaria a uma diversificação da economia brasileira e a redução da saída de excedentes financeiros, já que as empresas multinacionais teriam que reinvestir os lucros nas suas unidades presentes no país. Além disso, esse processo levaria a uma especialização da força de trabalho, principalmente no setor de serviços, o que aumentaria a renda e expandiria o mercado interno. Fernando Henrique não levava em conta, ou não queria levar, a superexploração do trabalho como mecanismo base das economias dependentes do sistema capitalista, que gera a mais-valia extraordinária e impede a participação da esmagadora maioria da população no consumo. Ao mesmo tempo, contrariando outro mecanismo básico do capitalismo dependente, FHC não atenta para o detalhe que a maior parte dos lucros das multinacionais continua se evadindo do país na forma de remessas de lucros e que o reinvestimento nas próprias unidades produtivas é uma parte ínfima dos seus lucros. Isso porque, para a

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permanência de empresas estrangeiras no Brasil, o governo concede uma série de regalias tributárias e facilidades em formas de leis de incentivos, assim como o pagamento da força de trabalho abaixo do seu valor real. A burguesia brasileira e latino-americana em geral somente é autônoma para garantir a permanência das condições de reprodução do capital estrangeiro e associado em seus países. Isso se deu por meio da instalação de regimes ditatoriais, muitas vezes com características fascistas de controle de massas e de terrorismo político e social. Sem contar a brutal concentração de renda que permitia os lucros das grandes empresas pela superexploração dos trabalhadores. FHC não via alternativa à periferia do capitalismo se não tirar algum proveito da sua situação de dependência. Essa vantagem seria a modernização do seu setor produtivo e a possibilidade de consumo dos produtos mais avançados pertencentes ao grupo dos bens duráveis, prioritariamente automóveis e eletrodomésticos, mesmo que esse consumo fosse restrito à burguesia local e à alta classe média. A oposição de Fernando Henrique estava somente ao regime ditatorial, não de forma revolucionária, mas no sentido de que essa associação de forma subalterna ao capital estrangeiro não necessitaria mais, na década de 1970 e 1980, de um regime militar. A dependência não só poderia trazer desenvolvimento para o país, mesmo que extremamente restrito, como também poderia ser feito com democracia pluripartidária que não ameaçasse esse mesmo status deprimente em que a Nação e o povo brasileiro se encontravam. FHC estava na verdade, se opondo à teoria marxista da dependência, na forma de um não-debate. Isso porque, enquanto seus livros circulavam livremente no Brasil em plena Ditadura, autores como Ruy Mauro Marini e Theotonio dos Santos tinham suas obras proibidas em território nacional. Até hoje, principalmente Marini, é pouco conhecido do público acadêmico, quiçá do grande público, devido a um verdadeiro boicote intelectual, que para mim corresponde a uma verdadeira política deliberada de manter esses autores intelectualmente exilados, no intuito de que suas ideias não sejam conhecidas e perigosamente postas em prática. Fernando Henrique agiu de maneira desleal ao mentir sobre a teoria marxista da dependência, ao argumentar que os autores dessa vertente negavam a possibilidade de desenvolvimento em conluio com a dependência, ou seja, desenvolvimento do próprio sistema capitalista na periferia. Daí sua tese “Dependência e desenvolvimento”, ao defender a possibilidade de se obter o segundo na condição primeira.

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A mentira perpetrada por FHC está em colocar que a teoria marxista da dependência seria a teoria da “estagnação”, de que o desenvolvimento capitalista na periferia seria inviável e que esse só seria possível no socialismo. Daí o “canto da vitória” de Fernando Henrique e os seus com seu “desenvolvimento com dependência” viável. Essa linha de pensamento sobre a dependência ganhou status de pensamento único sobre o assunto e somente começa a ser questionada com mais vigor na academia brasileira a partir do século XXI. 124 O que a teoria marxista da dependência coloca não é a impossibilidade do capitalismo na periferia, mas sim, a ideia de desenvolvimento que traga soberania econômica e bem-estar social, nos moldes nas economias centrais. A dependência, por suas próprias características, somente pode levar a mais dependência e aprofundamento de seu mecanismo básico, superexploração do trabalho. FHC simplesmente nega a existência da superexploração do trabalho, confundindo-a com mais-valia relativa. Dessa forma traça a possibilidade de desenvolvimento e dependência, baseado na exploração da mais-valia relativa e aumento da produtividade.125 Não é a teoria marxista da dependência que nega o desenvolvimento no capitalismo, mas Fernando Henrique que nega o desenvolvimento autônomo por uma posição de classe pró-capital. Para quem é o desenvolvimento de FHC? Para as mesmas elites responsáveis pela Ditadura e pela miséria da população? Uma sociedade baseada nessas condições não pode ter nenhum dos seus aspectos denominados como “desenvolvidos”. Curioso perceber que os mandatos presidenciais de Fernando Henrique Cardoso potencializaram a dependência no Brasil e da nova DIT no país, justamente com a argumentação de que se estava desenvolvendo o país e modernizando-o. Mais uma vez fica o questionamento, a partir dos dados que serão apresentados no próximo capítulo, que desenvolvimento é esse baseado no desemprego, na informalidade e na superexploração. FHC teoriza sobre alguns dos mecanismos da dependência apenas para abraçar a sua suposta inexorabilidade. Como não vê, ou não quer ver, maneiras de superar a dependência e possui um entendimento burguês do que seria desenvolvimento, sua atuação como político e, principalmente, como presidente, é aprofundar a dependência num novo momento da DIT, o 124

Para saber mais sobre o “pensamento único” acerca da teoria da dependência no Brasil e as inverdades proferidas por Fernando Henrique Cardoso e outros sobre a teoria marxista da dependência, ver Fernando Correa Prado. História de um não-debate: a trajetória da teoria marxista da dependência no Brasil. IN: Comunicação e política, v. 29, nº2, 2010. P. 68-94. 125

Como trabalhado no capítulo 2, a superexploração do trabalho se dá pela conjugação da mais-valia absoluta, com mais-valia relativa e o pagamento da força de trabalho abaixo do seu valor real, fazendo com que o capitalista se aproprie de parte do tempo necessário de trabalho para a reprodução da própria força de trabalho do operário.

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neoliberalismo. Dessa forma, FHC formula e aplica as políticas necessárias para uma nova modernização reflexa do país que levam a um novo patamar de dependência. O que Fernando Henrique Cardoso realizaria como presidente seria apenas colocar o que defendia já na época de sociólogo. A massificação da entrada do capital estrangeiro na economia brasileira, no entendimento de que o desenvolvimento pode ser alcançado com a dependência. Desenvolvimento para FHC significa produção de bens duráveis e consumo dos mesmos por parte da restrita fração da população do país que se encontra no topo da pirâmide social. No entanto, o momento em que Fernando Henrique se torna presidente, a divisão internacional do trabalho já tinha passado da fase do investimento estrangeiro direito no mercado interno dos países periféricos para a globalização neoliberal. Com isso, FHC também “moderniza” sua concepção de “desenvolvimento e dependência”, adaptando-a para o novo momento do capitalismo internacional. O aprofundamento da dependência passa pela liberalização e financeirização da economia brasileira pelo capital estrangeiro, a privatização das empresas estatais e o aprofundamento da superexploração pela terceirização, retirada de direitos trabalhistas, arrocho salarial e desemprego estrutural. No campo político, na década de 1970 e 1980, Fernando Henrique já advogava a “redemocratização” do país como a forma de um pacto social, principalmente com a participação política dos militares e políticos civis da Ditadura. A concessão de parte do poder a quadros opositores liberais seria a melhor forma para realizar a Transição no Brasil. Em nenhum momento FHC tem apreço por mobilizações de massas, como ocorreriam em 1984 na campanha das Diretas Já, nem em discursos de lideranças políticas. Fernando Henrique clamava por um “realismo político” dos detentores do poder para que esses abrissem o regime. Empenhou-se na campanha de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral e era um dos homens fortes do PMDB no momento da Transição, chegando a líder do governo no Senado. Como bom defensor da classe dominante, FHC defendia uma Transição pactuada com o regime militar. O processo de mudança de sistema político deveria ser feito nos gabinetes e longe da rua. Fernando Henrique citou como exemplo a transição espanhola pós-franquista,126 onde se “ganhou” a democracia, mesmo com “custos sociais”. Típico do academicismo tratar fome, miséria, desemprego e violência com palavras atenuantes, como “custos”, jargão empresarial. 126

Fernando Henrique Cardoso. O espelho convexo. IN: QUINTANA, Enrique Fontana (et al); A transição que deu certo: o exemplo da democracia espanhola. Apresentação: Fernando Henrique Cardoso; Prefácio: Adolfo Suárez; Tradução: Martha Soares Cirne de Toledo, José Eduardo de Faro Freire. São Paulo: Trajetória cultural, 1989. P. 09-14.

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A classe dominante que FHC representa acordou a Transição nos gabinetes, com medo das mobilizações de massas que cada vez mais cresciam. E se mobilizou posteriormente na Constituinte, nas eleições presidenciais de 1989 e no próprio governo de Fernando Henrique para cada vez mais atualizar os alicerces da dependência e o seu poder de classe. A oposição liberal à Ditadura da qual se origina FHC não tinha problemas com a miséria da população imposta pela superexploração do trabalho. Apenas precisa retirar o entulho autoritário da política brasileira para não só manter uma estrutura socioeconômica excludente, como aprofundá-la. A implementação do neoliberalismo junto com a construção do sistema político pós-ditatorial foi uma grande obra da direita brasileira em renovar a estrutura de exploração dos trabalhadores e ainda conseguir um elemento retórico poderoso de legitimação: o voto direto e uma constituição não-ditatorial, que legitima o neoliberalismo como, supostamente, uma escolha deliberada do povo brasileiro por meio de mecanismos democráticos. A maior parte da intelectualidade brasileira tem um respeito quase divino com a figura de Fernando Henrique Cardoso. Sua defesa da transição negociada e da “modernização” do país sem “radicalismos” é tida como um ceticismo cerebral de grande virtude que domina o sentimento. A razão segura a emoção e a ideologia. Uma posição compreensível para qualquer um que conheça os doutores brasileiros, notoriamente comprometidos com a ordem do capital, seu academicismo vaidoso e sua posição de classe. Gilberto Felisberto Vasconcellos apresenta muito bem a figura de FHC: Fazendo carreira acadêmica, FHC propugna administrar a parceria subalterna da dependência externa, porém realizada dentro de um quadro institucional democrático. Portanto o jovem professor de sociologia era no fundo a mesma coisa de 1994, principalmente porque pregava gerencialmente que não havia necessidade da existência da ditadura, nem tampouco necessidade de romper os laços com o desenvolvimento associado do imperialismo. Eis um aspecto bastante curioso em sua notável carreira de professor da USP: ele é considerado unanimamente um autor de esquerda hábil em fazer paráfrase do marxismo, ao substituir a palavra burguesia por empresário e ao abandonar a palavra imperialismo, a qual não deveria ser usada pelos schollars, por causa da excessiva conotação emocional. A “teoria da dependência” de FHC, formulada em co-autoria com um ilustre sociólogo latino-americano [o chileno Enzo Falleto], é uma jogada bem-sucedida para expurgar o imperialismo como bode expiatório das interpretações do Brasil a partir de 1964. 127

127

19.

Gilberto Felisberto Vasconcellos. O Príncipe da Moeda. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1997. P.

208

Com o desenvolvimento capitalista no Brasil dependendo de capitais e tecnologia de ponta, FHC elabora toda a teoria que a classe dominante precisava. Mais do que isso, colocaria sua visão teórica em prática durante os oito anos em que foi presidente da República. Deixaria o país mais “atraente” para o investimento financeiro internacional e a instalação de fábricas também pertencentes a multinacionais, por meio da privatização do patrimônio público, da flexibilização do trabalho, liberalização dos importados e condições propícias à especulação financeira. Fernando Henrique concedeu à burguesia brasileira as ferramentas intelectuais necessárias para um fim tranquilo do regime militar e a implementação do neoliberalismo no Brasil. Obviamente, pela dialética histórica, forças políticas populares se opuseram a esse plano das forças conservadoras em momentos-chave, como a Constituinte e as eleições presidenciais. No entanto, sairiam derrotadas. O próprio Fernando Henrique seria um dos grandes artífices dessa vitória do conservadorismo ao não só se tornar o candidato das elites, mas também implementar as mais pesadas modificações neoliberais em nossa economia. A industrialização e o controle das economias periféricas, como a do Brasil, pelo capital estrangeiro dos países centrais não é um signo do progresso, como defende FHC, mas sim, um aprofundamento da dependência e dos mecanismos básicos: superexploração e desigualdades sociais. Como vanguarda na defesa desse projeto, Fernando Henrique Cardoso configurou-se como um intelectual orgânico da burguesia e o máximo representante da classe dominante brasileira na globalização do capitalismo neoliberal. Os mandatos de FHC como presidente é a superação dialética do projeto ditatorial de dependência, livrando-se das amarras estatais que ainda existiam na fase do investimento estrangeiro direito no mercado interno dos tempos dos generais. O Brasil passa a estar fortemente atrelado à nova divisão internacional do trabalho advinda da globalização neoliberal. Com Fernando Henrique, a burguesia brasileira renova a dependência e mantém as condições básicas de sua dominação de classe, agora mais fortemente arraigadas, já que envernizadas pela tinta invisível da “democracia”.

209

13

A ERA FHC: A CATÁSTROFE NEOLIBERAL

A vitória eleitoral de Fernando Henrique Cardoso em 1994 consolidou definitivamente o modelo neoliberal no Brasil. Tendo como base um amplo arco de alianças da direita brasileira, o apoio do empresariado, do capital estrangeiro e dos latifundiários, além claro, do maior parte burguês do país, a mídia monopolizada, o novo presidente tinha condições extremamente favoráveis para seguir com a implementação do seu Plano Real. Durante seu primeiro mandato, conseguirá aprovar no Congresso, graças à compra de votos e outras falcatruas, uma Emenda Constitucional que instauraria a reeleição para os cargos executivos. Isso abriu a possibilidade de FHC concorrer à reeleição em 1998, situação em que se saiu vencedor mais uma vez no primeiro turno. Claramente, a hegemonia neoliberal foi consolidada em seus oito anos de governo, tanto nas medidas principais da economia, quanto na ideologização da sociedade e da política. Os anos 1990 ficariam então marcados pelo auge do neoliberalismo no país, com a desnacionalização da economia, a financeirização especulativa sobre os interesses nacionais e a desregulamentação do trabalho. Os indicies socioeconômicos mostrariam um país em frangalhos, com persistentes problemas sociais de uma das nações mais desiguais do mundo. O aprofundamento da dependência e da superexploração do trabalho foram as marcas da era FHC, renovando o caráter subalterno da economia brasileira no novo momento da divisão internacional do trabalho, a globalização neoliberal.

13.1

A economia política da dependência no neoliberalismo

Durante a década de 1980, o neoliberalismo era aplicado nos países centrais. Nesse momento, essas economias passam por um novo momento de concentração de capital. Boa parte dessa concentração de capitais vem da cobrança dos juros da dívida e da retirada de investimentos dos países latino-americanos, principalmente o maior devedor naquele momento, o Brasil. Os Estados Unidos, como a nação central do sistema capitalista internacional e a que possuía mais investimentos na América Latina foi a grande responsável por esse aspirador financeiro realizado nos anos 1980.

210

Para a América Latina, esse momento significou a maior crise do capitalismo dependente na região. Esses países, em sua grande maioria governados por ditaduras militares, entraram em processo de total insolvência financeira, inflações que alcançavam números estratosféricos e indicies sociais assustadores (que já não eram bons anteriormente). Na grande imprensa internacional e nos meios acadêmicos a década de 1980 na América Latina ficou conhecida como “a década perdida”. A expropriação de capital por parte dos países centrais, principalmente da economia estadunidense, aumenta a dívida externa e reduz a massa de mais-valia, as taxas de lucro e mais-valia não acumulada na periferia. Essa situação provoca uma queda na alta esfera de consumo em economias onde o número de consumidores já era extremamente restrito devido à superexploração do trabalho. Esse movimento leva a uma queda dos investimentos, aumento do desemprego e redução salarial, o que leva novamente ao quadro de superexploração. O salário mínimo, tendo julho de 1940 como base 100, cai de 61,78 em 1980 para 29,09 em 1990. 128 Findado as discussões políticas com o fim da Ditadura e o processo de Transição, o neoliberalismo pode se afirmar no Brasil nos anos 1990. É no período pós-ditatorial, utilizando-se de uma “legitimidade democrática” que as ideias neoliberais são aplicadas no país e também se tornam hegemônicas no campo político-ideológico. Instauram-se a liberalização do comércio de importados, a sobrevalorização cambial, a privatização de estatais e o superávit primário. Essas medidas levam a uma desnacionalização da economia e à vulnerabilidade especulativa no campo financeiro. Isso aumenta o nível de desemprego e a terceirização do trabalho, rebaixa os salários e amplia a superexploração. A capacidade de consumo se torna ainda mais restrita e a economia do país passa por uma reprimarização, já que as indústrias brasileiras não possuem capacidade de competir com os produtos importados e as multinacionais. O Brasil passa a ser um exportador de bens de consumo e componentes industriais de baixo e médio valor agregado, além das commodities, seguindo o novo papel dos países dependentes na nova divisão internacional do trabalho. O momento do capitalismo em que vivemos coloca a produção do conhecimento e do desenvolvimento técnico-científico como pontos principais para uma posição de autonomia no cenário internacional. A Era FHC e implementação do neoliberalismo voa na direção 128

Fonte: PIB per capita – FGV/IBGE. Salário-mínimo: Decretos do Governo. Elaboração: DIEESE. Saláriomínimo referente à capital paulista. IN: Ivo Lesbaupin; Adhemar Mineiro. O desmonte da Nação em dados. Petrópolis: Vozes, 2002. p. 101.

211

contrária dessa diretriz. Aprofunda-se a dependência do país em relação à tecnologia de ponta e percebe-se uma reprimarização brutal da economia e da pauta de exportações brasileira. Para o cumprimento dessa nova função da periferia do sistema, o Brasil abre seu mercado totalmente aos produtos importados, o que leva à falência do parque industrial nacional e o consequente aprofundamento da monopolização do setor produtivo no país pelo capital estrangeiro. Temos assim um redimensionamento da dependência, que termina com o processo de substituição de importações iniciado durante a Grande Depressão e que reconfigura o papel do país no sistema capitalista internacional. Essa situação de concentração de capital é complementada pela introdução de novas tecnologias produtivas (propriedade das multinacionais) que dispensam boa parte da mão de obra. Coloca-se dessa forma um contingente gigantesco de trabalhadores na condição de desempregados, o que acarreta a baixa dos salários e a renovação da superexploração daqueles que permanecem em seus postos de emprego, agora com multifunções. Abre-se dessa forma uma situação de desemprego estrutural, na qual uma boa parte dos trabalhadores não somente está fora do mercado de trabalho formal, como não possuem a menor possibilidade de retornarem a essa condição. Cresce o número de trabalhadores informais e terceirizados, uma característica do neoliberalismo. Esses trabalhadores, por não estarem protegidos pela legislação trabalhista, estão ainda mais expostos à superexploração e à precarização das suas condições de sobrevivência. Portanto, no neoliberalismo temos em certos momentos algo raro: o crescimento econômico com alta do desemprego. Isso revela o grau de concentração de renda e desigualdade social que o neoliberalismo impõe à sociedade. Somente a burguesia, principalmente à ligada ao setor financeiro, e os altos executivos bem pagos para administrar o capital são beneficiados. A burguesia industrial não possui alternativa se não se associar ao capital estrangeiro, provocando a desnacionalização total da produção na periferia. A classe média vive dias de consumo restrito e a grande maioria da população, os trabalhadores que geram a riqueza, continuam vivendo na mais absoluta miséria e com seu trabalho ainda mais precarizado e superexplorado. Mesmo com o aumento do nível de escolaridade no Brasil nas últimas décadas desde o fim da Ditadura, isso não se traduziu em níveis de vida e bem-estar melhores para grande parte da população. Isso porque a superexploração do trabalho, mecanismo principal do lucro na periferia capitalista, precisa remunerar a força de trabalho abaixo do seu valor real, inclusive retirando parte do tempo necessário de trabalho. A maior escolarização não garante

212

ao brasileiro comum uma posição menos degradante no mercado de trabalho, ou rendimento que o elevem a uma categoria de consumo mais alta. Assim, as economias dependentes como o Brasil, também apresentaram tendência ao desemprego, como as economias centrais. Mesmo com o crescimento do valor da força de trabalho devido sua escolarização, se mantém a pressão pela queda dos salários. O aumento do número de desempregados tende a ser mais dinâmico que o crescimento da intensidade do trabalho e da qualificação do trabalhador. O desemprego é a forma de aumentar a massa de mais-valia no capitalismo monopolista neoliberal, forçando a queda dos salários. Dessa forma, a superexploração se aprofunda com o neoliberalismo dos anos 1990. Seus novos contornos brutais se dão pela liberalização comercial, o aprofundamento da heterogeneidade tecnológica dos países dependentes e o aumento do desemprego devido à absorção de novas tecnologias no aparato produtivo. A massa de desempregados rebaixa o valor dos salários e perpetua a superexploração.

13.2 Modernização reflexa: o aprofundamento da dependência no neoliberalismo brasileiro

O governo Fernando Henrique foi responsável pelo maior crime contra o patrimônio público brasileiro, ao empreender um programa de privatização e de liberalização comercial sem precedentes. Importantes empresas estatais em setores estratégicos, como geração de energia, telecomunicações e mineração foram vendidas a preços irrisórios, além da precarização deliberada dos serviços públicos, como saúde, educação e previdência, forçando a classe média a optar por serviços privados. A política econômica de FHC foi baseada unicamente no “ajuste estrutural” no intuito de transformar o país em uma grande mercadoria, que poderia ser vendida em pedaços ao capital estrangeiro e servir de quintal para a especulação financeira. O Brasil se transformou em uma oferta para o lucro fácil de multinacionais, do capital especulativo e banqueiros. O neoliberalismo propagado por Fernando Henrique Cardoso e seus partidários prometia incluir o Brasil numa era de desenvolvimento, emprego e “modernidade”. Nada mais falacioso. Por meio de dados coletados por Ivo Lesbaupin e Adhemar Mineiro 129 129

Ivo Lesbaupin; Adhemar Mineiro. O desmonte da Nação em dados. Petrópolis: Vozes, 2002. Nessa obra os

213

mostraremos como os oito anos de mandato de FHC aumentaram o desemprego, a vulnerabilidade externa, a desnacionalização e as condições socioeconômicas degradantes para a maior parte da população. A começar pelo crescimento econômico, o governo FHC apresenta taxas medíocres. Enquanto nos anos 1980, que são reconhecidamente o pior momento do Brasil e da América Latina, o país cresceu 1,6%, na década de 1990 o país cresceu 1,8%, caracterizando mais uma década perdida. Nos mandatos de Fernando Henrique (1995-2002) o resultado foi insignificantemente maior: 2,4%. As medidas neoliberais são reconhecidamente falsas no que tange crescimento econômico. Entre 1900 e 1980, mesmo com todas as variações econômicas, mudanças estruturais e reboliços políticos de nossa história, o crescimento do país nunca esteve abaixo dos 4% por década. 130 A produção de riqueza bruta do país cresceu. Porém numa variação ínfima e extremamente oscilante, o que revela falta de investimento (já que as estatais, que poderiam ser o mecanismo de investimento do Estado em setores estratégicos foram leiloadas) e uma economia sem estabilidade, vulnerável às variações e ataques especulativos do mercado internacional. A necessidade de criação de um superávit para honrar o pagamento das dívidas também explica a taxa de investimento medíocre da Era FHC:

autores compilaram todos os dados possíveis sobre as mazelas da Era FHC contra os trabalhadores e o patrimônio público nacional. Os dados apresentados foram resultado de estudos de importantes instituições, como o IBGE, o DIEESE, a ONU entre outros. 130

Idem. P. 8. Dados do IBGE e IPEA.

214

Evoluções e variações do Produto 131 1994

1995

1996

1997

1998

1999

2000

2001

PIB

817,4

851,9

874,6

903,2

904,3

911,7

951,4

965,8

PIB

5,85%

4,22%

2,66%

3,27%

0,12%

0,82%

4,35%

1,51%

4,3%

2,8%

1,2%

1,9%

-1,2%

-0,5%

3,0%

0,2%

16,7%

16,5%

18,1%

17,7%

16,2%

15,7%

nd

705,6

775,6

808,3

787,7

531,1

593,8

504,8

(variação) PIB per

capita

(variação) Taxa

de 15,3%

investimento PIB em US$

547,7

Fonte: Dados do IBGE, IEPA, BACEN e FGV, 2001.

Os dados nos mostram uma economia que apesar do crescimento do PIB, sua variação foi muito baixa. A atividade econômica se arrasta no país. A taxa de investimento é praticamente estável num baixo patamar, a variação do PIB per capita diminui gradualmente chegando à recessão em alguns momentos. O PIB traduzido em dólares encolheu ao longo do governo FHC. O Plano Real, colocado em prática ainda quando Fernando Henrique era ministro da Fazenda de Itamar, conseguiu construir uma hegemonia na população brasileira entorno da candidatura de FHC devido ao controle da inflação. De fato, foram-se os tempos de inflações de três e até quatro dígitos anuais. No momento imediatamente posterior à implementação do Plano Real, inicia-se uma queda vertiginosa da inflação que se constata até 1998. No entanto a sobrevalorização do real ao dólar, na paridade 1/1, era insustentável. Essa medida serviu para que durante um curto tempo uma parte da população pudesse ter acesso aos produtos importados e viagens para o exterior. Essa onda de consumismo também serviu para reforçar a hegemonia a favor do neoliberalismo e seu candidato/presidente Fernando Henrique Cardoso. Com o Brasil sendo puxado para a realidade do sistema financeiro mundial, essa paridade seria abandonada em menos de quatro anos e a inflação voltaria a subir. Não são mais os números astronômicos dos anos 1980 e início dos 1990, mas não podemos comprar com o período aqui discutido. A partir da implementação do Plano Real em 1994 o padrão de 131

Idem. P. 12. PIB em bilhões de reais. PIB em US$ em bilhões de dólares. Dados do IBGE, IEPA, BACEN e FGV.

215

inflação se modifica. Uma inflação de 8 % ao ano já se traduzia em um caos econômico para as pessoas mais pobres, acabando com seu poder de consumo e mantendo o pauperismo generalizado da população brasileira. Essa situação é facilmente verificável no segundo mandato de FHC (1999-2002). Índice de Inflação pelo IBGE132 1995 INPC

1996

1997

75,36% 15,52% 5,99%

1998

1999

2000

2001

2002

3,78%

4,85%

6,22%

7,49%

12,53%

Fonte: DIESP, 2002.

A ideia do Plano Real ao realizar uma abertura comercial, uma liberalização financeira e o câmbio sobrevalorizado era aumentar a concorrência com os produtos nacionais, evitando o aumento dos preços e dos salários, dando cabo da inflação. Na verdade, as indústrias nacionais não tinham como competir com megacorporações internacionais que possuíam muito mais capitais e custos de produção mais baixos em outras partes do mundo. O resultado foi uma retração violenta da indústria no Brasil e uma nova rodada de monopolização do parque produtivo nacional pelo capital estrangeiro. Com a privatização de empresas estatais e pontos estratégicos, se abria uma parte da economia até então vedada ao capital internacional. O neoliberalismo dos anos 1990 marca então um aprofundamento na desnacionalização da economia brasileira e a perda de controle e autonomia do país sobre sua economia e decisões políticas. A desnacionalização da economia se dá não só pelo controle produtivo nas mãos do capital estrangeiro, mas também, pelo aumento da dívida externa. Com as indústrias nacionais falindo, o câmbio sobrevalorizado insustentável e as empresas públicas agora não mais nas mãos do Estado a dívida brasileira sobe. A dívida externa que era 27,8% do PIB em 1991 sobe para 41,6% de tudo que o país produzia em 2002.

133

Vale lembrar que o país também

possui uma pesada dívida interna, que na verdade, se encontra nas mãos de bancos dirigidos por estrangeiros. A participação do capital estrangeiro em ativos nacionais cresceu de 14,8% a 36,4% das empresas líderes de 1991 a 1999. No mesmo período as empresas estatais retraem suas

132

Idem. P. 13.

133

Carlos Eduardo Martins. Globalização, dependência e neoliberalismo na América Latina. São Paulo: Boitempo, 2011. P. 332.

216

receitas de 44,6% para 24,3%. De 1996 a 1999 as empresas privadas brasileiras também reduzem suas receitas de 44,1% para 39,3%. O capital estrangeiro aumentou sua participação no setor de serviços de 9,4% para 26,1% entre 1991 e 1999. Mas o maior impacto com certeza é nas indústrias, onde o capital internacional aumentou sua participação de 36% para 53,5%.134 O Brasil apresentava em 1999 o mesmo índice de utilização do PIB na área de pesquisa e desenvolvimento de 1988 (!): 0,87%.

135

Dessa forma, esses trabalhadores que

perderam seus empregos na destruição das indústrias nacionais não foram para o setor de serviços (teoricamente mais qualificado e melhor remunerado), mas sim, para a informalidade ou o desemprego. As empresas industriais presentes no Brasil não produziam para o mercado interno, mas sim, estavam articuladas com a produção internacional, produzindo o que suas matrizes nos países centrais ordenavam para exportação. Assim o país cumpre sua posição de economia dependente na globalização. A política de manter juros altíssimos, “os maiores do mundo” como se dizia na época, a facilidade com que o capital internacional devorava todos os setores da nossa economia e a privatização a preços irrisórios de empresas estatais que poderiam investir em pontos estratégicos da economia levou o país a apresentar um saldo comercial negativo, uma redução das suas reservas internacionais e o aumento da dívida externa total.

134

Idem. P. 333.

135

Idem. P. 334.

217

Setor Externo 1994-2001 pelo Banco Central (em bilhões de US$) 136 1994

1995

1996

1997

1998

1999

2000

2001

Exportações

43,5

46,5

47,7

53,0

51,1

48,0

55,1

58,2

Importações

33,1

50,0

53,3

61,3

57,6

49,3

55,8

55,6

Saldo

10,4

-3,5

-5,6

-8,4

-6,5

-1,3

-0,7

2,6

-18,0

-24,3

-33,1

-33,6

-25,1

-24,7

-23,2

38,8

51,8

60,1

52,2

44,6

36,3

33,0

35,9

148,3

159,2

179,9

200,0

241,6

241,5

236,2

228,6

Comercial Resultado das -1,7 transações correntes Reservas Internacionais Dívida Externa Fonte: Banco Central do Brasil, 2001.

Os indicadores da dívida pública e a carga tributária também mostravam retrocesso. Entre 1994 e 2001 a dívida líquida do setor público aumentou de 153,2 bilhões de reais para 660,9 (mais que o quádruplo!). A dívida pública federal no mesmo período saltou de 61,8 bilhões de reais para 624,1. A carga tributária subiu de 27,9% do PIB para 34,4%. Uma economia endividada que penaliza o cidadão a contribuir mais e mesmo assim não consegue estancar o ritmo ascendente da sua dívida. 137 O que os dados da economia brasileira no período nos mostram é que o governo FHC não conseguia controlar a dívida e se apresentava sem recursos. Essa falta de recursos se explica pela privatização, pela concentração de renda e, principalmente, pela remassa de lucros e as facilidades ofertadas às empresas multinacionais instaladas no Brasil. Ao contrário do que propagava o governo e a ideologia neoliberal, os déficits públicos não se davam pela inoperância das empresas estatais ou os custos com o pagamento do funcionarismo público. A especulação financeira e a desnacionalização da economia é o que realmente esvaziava os cofres públicos. Ou seja, as medidas neoliberais agravaram de modo avassalador os problemas econômicos e financeiros do país. Os juros altos e o déficit comercial atraem a especulação financeira.

136 137

Ivo Lesbaupin; Adhemar Mineiro. Op cit. P. 15. Idem. P. 17. Dados do Banco Central e do IBGE.

218

Para continuar a honrar o pagamento da dívida no mercado internacional, o Brasil é obrigado a realizar o superávit, economia realizada como comprovação de possibilidade de pagamento. Essa exigência era uma das várias impostas pelo FMI e o Banco Mundial para a realização de empréstimos. Os superávits são realizados com cortes no orçamento, principalmente em áreas sociais (como saúde, educação, transporte e habitação), como reza a cartilha no mercado financeiro internacional. Os prejudicados são os mais pobres, parcela da população que mais precisa desses serviços públicos. Os fluxos de capitais negativos no comércio externo brasileiro e nas suas transações financeiras, somente poderiam ser “sanados” com mais abertura ao capital internacional, na tentativa de obter rendimento e solvência. A entrada desses capitais somente pode significar mais dependência, pois ele sairá do mesmo jeito, perpetuando a grave situação econômica do país. Os superávits exigidos pelo FMI e pelo Banco Mundial para realizar os empréstimos “salvadores” somente são concedidos com mais superexploração do trabalho e corte em áreas sociais. A dependência mostra aqui uma de suas características básicas: a de se autoperpetuar. A equipe política neoliberal de Fernando Henrique enganou o país ao defender que os empréstimos internacionais viam para sanar as dívidas e balancear os resultados negativos no comércio exterior. Na verdade, a participação de organismos internacionais, como o FMI, acontece somente para aumentar os lucros a médio e longo prazo por meio de novas dívidas e abrem mercado para sócios em multinacionais abocanharem setores da economia que até aquele momento estavam sob esfera público e estatal. A renegociação da dívida no início dos anos 1990 criou reservas monetárias que foram totalmente perdidas devido ao déficit criado pela macroeconomia neoliberal. A privatização das estatais foi a joia da coroa do neoliberalismo, pois é o momento em que se abre mercado para capitais internacionais, um dos pontos básicos para a se entender a destruição do keyneseanismo a partir da década de 1970. Em busca de um novo momento de expansão e monopolização do capital, as grandes empresas forçam as privatizações para se apropriar de setores até então vedados para sua acumulação pelo Estado. O controle da opinião pública para formar um ambiente favorável às privatizações foi garantido pela mídia burguesa que batia nas mesmas teclas. As estatais foram acusadas de serem inoperantes por não estarem submetidas à concorrência do mercado, os funcionários públicos eram incompetentes porque não podiam ser demitidos e a privatização levaria essas empresas à lógica de mercado e, num ambiente de concorrência, teriam que diminuir as tarifas. O Estado se livraria de um grande peso, que era sustentar essas empresas ineficazes

219

que só davam despesas. As estatais seriam a origem dos déficits do governo, colocação que já vimos ser falsa. Obervamos que o déficit público não abaixou durante a gestão de Fernando Henrique Cardoso, muito pelo contrário, aumentou em demasia. A venda das estatais não resolveu os rombos nas contas públicas como falsamente alardeava o governo neoliberal. Soma-se a isso o fato que antes da privatização o governo investiu pesadamente na infraestrutura de certas empresas e ficou com as dívidas empresariais e trabalhistas que essas tinham, mesmo depois de vendê-las. Só a Telebrás, maior leilão de comunicações do mundo, recebeu investimentos de R$ 21 bilhões de reais nos dois anos que precederam sua venda por R$ 22,2 bilhões. O governo empreendeu R$ 87 bilhões nas empresas estatais e arrecadou nas suas vendas R$ 85,2 bilhões, ou seja, o país teve prejuízo na venda das empresas públicas.

138

A qualidade dos serviços e a redução das tarifas também não melhoraram, ao contrário do que alardeava FHC e os seus. Com o controle monopólico de serviços essenciais, como transmissão de energia, telecomunicação e transportes, todas as tarifas sofreram altas de preços. Empresas de telefonia estão entre as que mais recebem queixas no PROCON e recursos na Justiça por péssimos serviços. O setor de energia foi o mais vexatório de todos, com o país tendo que passar por um racionamento de energia durante o ano de 2001 devido ao não investimento dos novos donos das empresas. Os brasileiros, devido às privatizações, possuem hoje serviços caros e de péssima qualidade nas mãos de empresas, na maioria das vezes estrangeiras e de forma monopólica. A decisão de setores estratégicos da Nação está em mãos de outros países, o que torna o Brasil extremamente vulnerável não só na economia, mas também na sua soberania política. As estatais que foram apresentadas como fardos para o Estado, na verdade poderiam gerar dividendos se corretamente administradas, além de cumprir sua função, coceder bons serviços a preços acessíveis à população. A venda das estatais deu prejuízo ao país em curto prazo, pelo auferido não compensar o investimento anterior, e a longo prazo, por retirar possibilidades de conseguir recursos. Mesmo empresas não privatizadas, como a Petrobras, sofreram com o neoliberalismo. Boa parte do capital aplicado na gigante do petróleo é estrangeiro, apesar do Estado ainda ser o sócio majoritário da empresa. O atentado à soberania nacional em relação ao petróleo foi a quebra do monopólio da Petrobras no setor, que garantiu a exploração de reservas de petróleo

138

Dados de Aloysio Biondi. IN: Ivo Lesbaupin; Adhemar Mineiro. Op cit. P. 30-31.

220

e gás em áreas descobertas e mapeadas pela petroleira brasileira. Ou seja, o povo paga todo o gasto científico de pesquisa e as multinacionais ficam com o lucro. O governo FHC revogou o artigo 171 da Constituição que distinguia a empresa brasileira de capital nacional da empresa brasileira de capital estrangeiro. Ambas foram consideradas brasileiras, o que lhe permite participação de licitação de obras públicas, contratação de bens e serviços pelo Estado, exploração de reservas minerais e hidráulicos e ainda obter financiamentos com dinheiro público, geralmente via BNDES. Essas medidas reforçavam a entrada do capital privado, sobretudo o estrangeiro, em setores da economia até então geridos por empresas públicas e nacionais. Contudo, o maior escândalo do programa de privatizações no governo Fernando Henrique foi o leilão da Vale do Rio Doce. O Brasil abriu mão do controle de uma das maiores mineradoras do mundo, num país que o maior produtor de quase todo minério que existe. O preço da Vale do Rio Doce era orçado em mais de cem bilhões de dólares, mas foi vendida por míseros R$ 3,4 bilhões. Um assalta ao patrimônio nacional construído ao longo de décadas. 139 A venda das empresas estatais e o sucateamento do serviço público também serviam para colocar servidores em “disponibilidade” e acabar com as vagas no serviço público em funções que exigiam somente o ensino primário completo. Assim estava aberta a porta para a terceirização de empregos como serventes, seguranças, ascensoristas, entre outros. Os ataques aos funcionários públicos e à legislação trabalhista eram a forma do neoliberalismo aumentar o desemprego e forçar os salários para baixo, aprofundando a superexploração.

13.3 Modernização reflexa: o aprofundamento da superexploração no neoliberalismo brasileiro

No neoliberalismo do capitalismo dependente, a forma que se encontra para o aumento da superexploração é o desemprego estrutural e a precarização do trabalho, por meio da terceirização e da informalidade. As medidas de desregulamentação, flexibilização dos direitos trabalhistas e a adoção de novas tecnologias no setor produtivo prometia um mundo com mais emprego e menos trabalho. A informática e sua aplicação na produção eram 139

Vito Giannotti. História das lutas dos trabalhadores no Brasil. 3ª edição revista e ampliada. Rio de Janeiro: Mauad X, 2009. P. 302.

221

defendidas como forma de menos esforço e a retirada de direitos trabalhistas baratearia a mão de obra e diminuiria o desemprego. Nada mais falacioso. O neoliberalismo nos anos 1990 marcaria uma época de aumento do desemprego e de maior superexploração na terceirização e na informalidade. Aqueles que conseguiram manter seus empregos também seriam mais superexplorados segundo uma das novas características da organização do trabalho: o trabalhador multifuncional, ou seja, aquele que realiza a sua tarefa e de todos os outros colegas que foram despedidos. Os números não deixam dúvidas. A taxa de desemprego no país, segundo a CEPAL, cresceu ao ritmo de 9,6% ao ano entre 1989 e 2003. A média anual da América Latina no mesmo período foi de 5,4%.

140

A porcentagem de trabalhadores com carteira assinada nas

principais regiões metropolitanas do Brasil segundo o IPEA já era menos que a metade do total de trabalhadores em 1994 (49,3%) e cairia para 45,0% em 2001. A taxa de desemprego na região de São Paulo, segundo o DIEESE, passou de 14% em 1994 para 20% da população economicamente ativa em 2002. Dados da própria FIESP, sindicato patronal mais ativo do país, mostra que o emprego na indústria despencou em São Paulo durante o governo Fernando Henrique, encolhendo 2/3 a partir de 1994 até o início do século XXI. 141 O resultado disso só poderia ser concentração de renda brutal. Segundo o IBGE, o percentual da distribuição do PIB no primeiro mandato de FHC foi de respectivamente para trabalho x capital de 38% a 40% em 1994 para 44% a 36% em 1998. O DIEESE apontou que o rendimento anual médio do trabalhador, tendo como base 100 o ano de 1985, caiu de 69,93 em 1995 para 59,52 em 2001. 142 O governo Fernando Henrique Cardoso utilizou de todo seu poder político para retirar o máximo de direitos possíveis do trabalhador. Seus objetivos eram reduzir os gastos dos empresários com os direitos trabalhistas, impedir e enfraquecer a organização dos trabalhadores para oferecer menor resistência frente ao capital e aumentar a superexploração do trabalho, favorecendo o crescimento dos lucros e atraindo empresas estrangeiras devido à diminuição dos custos com a força de trabalho. Entre as principais medidas nesse sentido estão: a desistência de aplicar a convenção 158 da OIT (Organização Internacional do Trabalho) que estabeleceria a obrigatoriedade da justificativa por escrito de demissões sem justa causa, o trabalho no comércio aos domingos, o 140

Carlos Eduardo Martins. Op cit. P. 309.

141

Ivo Lesbaupin; Adhemar Mineiro. Op cit. P. 19-21.

142

Idem. P. 22.

222

banco de horas, estabelecimento e regulamentação de contratos temporários, inclusive no funcionarismo público, de trabalhadores por tempo determinado, sem estabilidade e acesso aos direitos trabalhistas. Foi derrubada a cláusula que garantia 100% de adicional por horas extras de trabalho. Retirada da concessão de aviso prévio de sessenta dias aos empregados dispensados sem justa causa. Também não há mais a garantia de que o empregado, vítima de acidente de trabalho, não seja demitido num prazo de 180 dias. Retirados também o 60% de adicional por trabalho noturno e a contagem do tempo gasto com transporte na jornada de trabalho. Em 1997 a correção do salário-mínimo foi desvinculada dos índices de inflação, justamente a partir do momento em que a inflação começaria uma nova curva ascendente. As empresas não eram mais obrigadas a aumentar o salário de acordo com os índices de inflação. Cabe a cada sindicato negociar e se mobilizar para garantir aumento dos salários, exatamente num momento em que observamos o enfraquecimento dos sindicatos com a hegemonia neoliberal e a queda do trabalho formal. Os últimos anos da década de 1990 foram de profunda crise e pauperismo da população novamente. A jornada parcial foi regulamentada em 1998 com redução proporcional de salários e benefícios. A Justiça do Trabalho também foi atacada, no sentido de se fazer o “negociado sobrepor o legislado”. Essa tentativa de extinção da CLT não deu certo por completo, mas algumas características suas foram aprovadas avulso, como a extinção do juiz classista e a instituição das comissões de conciliação prévia, por onde as queixas dos trabalhadores devem passar, com amplo assédio moral e controle dos patrões. Somente em caso de não resolver as pendengas nessas comissões é que o trabalhador pode acionar a Justiça do Trabalho. A reforma trabalhista auxiliou também na terceirização e do trabalho por contrato determinado. Após dois anos de contrato, o trabalhador contratado passa a continuar no local de trabalho por período indeterminado. A lei 2490/98 retriou essa prerrogativa, colocando os dois anos como tempo máximo de contrato, levando a uma rotatividade de empregados contratados em empresas, inclusive em instituições públicas, que mantém o número de desempregados e a rotatividade de trabalhadores precarizados alta, rebaixando salários. A terceirização é um poderoso mecanismo de redução de custos, superexploração e quebra da capacidade de organização política dos trabalhadores. Andréia Galvão nos coloca:

Afim de eliminar essas restrições [à terceirização], o governo enviou ao Congresso o PL 4302/98 que, dentre outras medidas, estende a atuação da empresa de trabalho temporário ao campo, aumenta a duração e o prazo de prorrogação do trabalho temporário e amplia as possibilidades de terceirização. A terceirização serve para flexibilizar direitos, pois as empresas tomadoras de serviços se livram do pagamento

223

de encargos sociais e os trabalhadores terceirizados ou subcontratados recebem menores salários e menos benefícios que os trabalhadores contratados diretamente pela empresa. Além disso, os trabalhadores terceirizados não são funcionários da empresa em que exercem o trabalho, não podem ser legalmente representados pelo sindicato da categoria preponderante naquela empresa, o que divide os trabalhadores. 143

Essa reforma trabalhista foi acompanhada de uma reforma administrativa e da polêmica reforma da previdência. A reforma administrativa marcou o fim da equiparação salarial entre ativos e inativos. Implementou avaliações de desempenho no funcionarismo público visando demitir os que não rendessem o que o Estado desejasse. Mesmo com a avaliação periódica de desempenho aprovada, na prática a reforma administrativa não conseguiu acabar com a estabilidade no funcionarismo público. A reforma da previdência foi uma das medidas mais vis contra o trabalhador brasileiro dentre tantos ataques perpetrados pelo governo FHC nos anos 1990. A aposentadoria passou a ser pelo tempo de contribuição e não mais pelo tempo de serviço. Ou seja, trabalhadores informais (a grande maioria como vimos nos números anteriores) que não contribuíram com o INSS somente poderiam se aposentar por idade, que também aumentou, 65 anos para homens e 60 anos para mulheres para os trabalhadores urbanos. Trabalhadores rurais podem requerer a aposentadoria com cinco anos a menos nos dois casos. A reforma da previdência também trocou o número de salários-mínimos de pagamento por um teto nominal que reduz o valor recebido pelo trabalhador aposentado. Acabou com as aposentadorias especiais, com exceção de trabalhadores do ensino básico e trabalhos insalubres. Criou uma idade mínima para a aposentadoria no serviço público. E criou o fator previdenciário, um intrincado cálculo que contabiliza tempo de contribuição e valor da mesma, com a expectativa de vida do trabalhador. Quanto mais cedo o individuo se aposenta, menos recebe de aposentadoria. Um assunte aos trabalhadores brasileiros, obrigados dessa forma a trabalhar na velhice para receber mais de benefício. 144 As artimanhas retóricas do neoliberalismo, amplamente difundidas pela mídia comercial, levaram a uma situação amarga e triste. Milhões de trabalhadores Brasil a fora pensavam que a redução dos direitos trabalhistas realmente aumentaria o número de vagas de emprego, ao desonerar parte dos custos dos patrões com a força de trabalho. Como vimos, o desemprego é parte estrutural para a manutenção da superexploração no neoliberalismo.

143

Andréia Galvão. Neoliberalismo e reforma trabalhista no Brasil. Rio de Janeiro: Coedição, Renavan, FAPESP, 2007. P. 217.

144

FHC não conseguiu taxar os aposentados. Coube a Lula fazer essa “façanha” no seu governo “de esquerda”.

224

Portanto, o desemprego que o governo dizia combater com a flexibilização dos direitos trabalhistas era na verdade criado pelas próprias políticas neoliberais. A flexibilização laboral, uma exigência da classe dominante para maximizar lucros e do capital estrangeiro para aumentar os investimentos no país, eleva o grau de superexploração devido ao trabalho precarizado. Ao mesmo tempo, controla o trabalhador pela precariedade. Seu salário baixo e a dificuldade e até impossibilidade de organização política o leva à resignação de sua condição miserável como forma de manter seu emprego. Sendo assim, o neoliberalismo atinge sua plenitude no Brasil na presidência de Fernando Henrique Cardoso, onde a superexploração do trabalho, seu mecanismo básico, é alçada a um novo patamar. A precariedade do trabalho e o desemprego estrutural galopante são as condições necessárias para a imposição da rebaixa dos salários e a maior superexploração da força de trabalho. Os anos 1990 foram marcados por uma série de derrotas para os trabalhadores, que poderiam até ser pior, se não houvesse passeatas e mobilizações por parte das centrais sindicais, sindicatos e movimentos sociais, principalmente o MST.

13.4

E a democracia?

A principal fonte de legitimidade para a implementação de medidas antipopulares como as realizadas por FHC é o sufrágio universal. Com o fim da Ditadura a direita brasileira e seus sócios internacionais não precisaram mais se esconder atrás dos generais. Estava aberta temporada de legitimação “democrática” da burguesia no país. Todos os solavancos dialéticos da Transição foram vencidos pela classe dominante para que se chegasse nesse cenário. Um regime aparentemente democrático em que as elites brasileiras pudessem renovar o caráter dependente da economia brasileira e sua desigualdade berrante imposta à maioria da população sem necessitar de regime “autoritário” (como escrevia o sociólogo Fernando Henrique). A classe dominante fez uma transição de sistema de governo sem perder os anéis, nem os dedos e atualizou a dependência brasileira, agora num novo momento da divisão internacional do trabalho. Contudo é necessário mais do que um simples regime sufragista para que seja feita uma democracia. Não pode ser chamado de democrático um regime em que o partido do então presidente FHC, o PSDB, compra deputados e senadores para votar a emenda da

225

reeleição. Conjuntamente a essa medida foi aprovada com o FMI um empréstimo bilionário, segurando a paridade 1/1 do real com o dólar durante as eleições de 1998, para que Fernando Henrique Cardoso fosse reeleito no primeiro turno com 54% dos votos e que semanas depois levou a moeda brasileira a despencar. Logo o dólar estava quase na casa dos R$ 4,00 reais e a inflação e o desemprego dispararam. FHC terminaria o mandato em 2002 com menos de 25% de aprovação popular. Não é democrático um governo vender a preço de banana o patrimônio público de um país construído ao longo de praticamente todo o século XX sem consultar a população por meio de um plebiscito. Com essa medida, encarecer e piorar a qualidade dos serviços prestados, chegando à ridícula e alarmante situação do “apagão” (racionamento de energia) de 2001. Está longe da democracia um governo que destina metade do seu PIB para o pagamento da dívida externa e interna, mas que em 1995 repassava apenas 4,8% para a saúde e o saneamento e reduz esse montante para 3,9% em 2001. Nem tampouco o que rebaixa os investimentos em educação de 3% das riquezas produzidas no país no mesmo período para 2%, nem o que gastava em 2001 apenas 0,14% do PIB com habitação em um país com um déficit de residências que passa dos 10 milhões de casas. 145 O sistema político pós-ditatorial brasileiro baseia seus argumentos de legitimidade em todo um conjunto de direitos políticos e civis que constam na Constituição de 1988. No entanto, não há possibilidade de desfrutar plenamente dos direitos clássicos do pensamento liberal sem uma democracia socioeconômica. Dados do IBGE de 2001 indicavam que o 1% mais rico da população detinha 13,1% da riqueza do país, praticamente o mesmo dos 50% mais pobres, que tinham 14%.

146

Estes eram os mesmos percentuais de 1992, ou seja, a

desigualdade permaneceu estagnada em ponto altíssimo durante os anos 1990. Outro dado assustador, dessa vez do IPEA, está na manutenção do coeficiente de Gini. Esse indicativo, que mede a desigualdade dos países (quanto mais próxima de zero menos desigualdade, quanto mais próximo de 1 mais desigual é uma sociedade) apresentava o indicativo de 0,60 em 1999, o mesmo dado de 1978 (!). A desigualdade era a mesma no Brasil durante duas décadas. O país tinha em 1999 53 milhões de pessoas classificadas como pobres

145

Dados levantados pelo INESC. IN: Ivo Lesbaupin; Adhemar Mineiro. Op cit. P. 39.

146

Idem. P. 55.

226

e 22 milhões como indigentes, mas que na verdade o número real é infinitamente maior, visto que só é considerado pobre quem ganha até um salário-mínimo. 147 O sistema político que se dizia democrático está controlado por famílias ricas, ligadas ao empresariado, latifúndios, mídia monopolizada e outros setores da classe dominante. As campanhas eleitorais são milionárias, inviabilizando a participação popular. Só consegue se eleger quem tem dinheiro para gastar em campanhas milionárias. E só tem dinheiro para campanhas milionárias aqueles que fazem pactos com empresas privadas para o financiamento e que recebem um excelente retorno em caso de vitória do candidato, geralmente em licitações de fornecimento de material, de obras e outros serviços. A implementação das políticas neoliberais nos anos 1990 inviabilizam a própria democracia, pois em uma sociedade capitalista dependente, o neoliberalismo aprofunda o fosso entre ricos e pobres. Os direitos humanos e civis presentes em nossa Carta Magna somente podem ser plenamente exercidos por uma parcela minoritária da população, já que a cidadania plena somente é exercida por aqueles que podem pagar num mundo de direitos mercantilizados. Vivemos assim em uma sociedade permeada por um “fetichismo democrático”, onde, a todo o momento, somos bombardeados pela informação de que vivemos em uma democracia, mas constantemente esbarramos nos limites da mesma. Os movimentos sociais que se colocavam contra a hegemonia neoliberal foram violentamente reprimidos por uma polícia que ainda é “educada” da mesma forma da Ditadura e por políticos do regime militar que ainda gracejam pela vida pública do país. Os maiores massacres de sem-terra ocorreram no governo Fernando Henrique Cardoso (Corumbiara 1995 e Carajás 1996). No fim da Ditadura, nos anos 1980, o MST estampava na capa de seu jornal o nome dos integrantes de sua direção geral. Nos nossos tempos de “democracia” mantém os nomes de sua direção em segredo, com exceção de algumas poucas figuras públicas. Nossa “democracia” é a mesma que demitiu petroleiros na greve da Petrobrás de 1995, readmitidos posteriormente devido à mobilização dos trabalhadores do setor, simplesmente por lutarem por seus direitos. Essa mesma greve foi encerrada com a invasão das refinarias paralisadas pelo Exército a mando do então presidente Fernando Henrique Cardoso. O número de homicídios no Brasil cresceu 50,2% entre 1991 e 2000, ao mesmo tempo em que também cresciam o desemprego e a desigualdade. 148

147

Idem. 54-57.

148

Idem. P. 57.

227

Os políticos parecem viver em outro país, com seus salários astronômicos e suas regalias que parecem ser retiradas de um código feudal de senhores de terras, de homens e da Justiça. Fazem de Brasília um grande balcão de negócios do capital numa das cidades mais caras do país cercadas por cidades-satélites que vivem afundadas na miséria e na violência urbana desde sempre. A participação popular se resume a votar de dois em dois anos, ou de quatro em quatro, entre os representantes de uma classe a qual não pertencem. Não há real escolha de projetos distintos na política brasileira, a não ser entre quem vai administrar melhor os negócios do Estado a favor da burguesia e do capital estrangeiro. Os grandes partidos de esquerda surgidos com o final do regime militar se degeneraram de tal forma que esqueceram suas bandeiras de luta do passado e se transformaram em fiéis defensores da ordem neoliberal. Sem a possibilidade de uma alternativa política, não há qualquer resquício de democracia no Brasil. O regime pós-ditatorial brasileiro é um regime de ideologia única, onde qualquer forma de contestação ao sistema político se encontra ausente do grande público e encontra um cenário muito adverso para se colocar como alternativa. Os dias obscuros da Ditadura foram deixados para trás, porém, muito ainda há o que se construir de novidade para que possamos realmente viver num sistema democrático e não no limbo pós-ditatorial em que nos encontramos.

228

CONCLUSÃO

O que é o Brasil do século XXI? Um país capitalista dependente, com a superexploração do trabalho como mecanismo básico de acumulação de capital, economia completamente controlada por grupos estrangeiros e um sistema político com contornos pretensamente democráticos, mas sem nenhuma densidade que se traduza na realidade cotidiana de seus cidadãos. A relação presente-passado é uma das mais ricas características que a historiografia pode dar ao intelecto humano. Para nos conhecermos é necessário estudarmos e compreendermos as variantes do nosso passado, os momentos decisivos, tudo aquilo que foi, mas também aquilo que não foi. O Brasil atual ainda se encontra em uma encruzilhada histórica devido à conjuntura que se iniciou em 1985. Obervamos que a própria Ditadura iniciou um projeto de Abertura, em que o grupo hegemônico entre os militares desejava se retirar do poder devido ao desgaste econômico iniciado em meados da década de 1970. A partir desse momento o mundo passava por uma profunda crise econômica que levou à retirada de investimentos estrangeiros do Brasil, principalmente os norte-americanos, e à cobrança da dívida externa com juros estratosféricos. Nosso país entrará então na “década perdida” devido à Crise da Dívida, a maior crise da história do capitalismo dependente brasileiro. Contudo, a cobrança da dívida que levou o Brasil e os demais países latino-americanos à falência, fazia parte de um quadro econômico maior. Estava em marcha a implementação do neoliberalismo no mundo, que levaria a uma nova concentração de capital por parte dos países centrais. A desregulamentação das leis trabalhistas e a privatização de serviços públicos e empresas estatais também fazia parte das ideias neoliberais que passaram a ser dominantes no mundo a partir dos anos 1980. O advento do neoliberalismo modifica a divisão internacional do trabalho de maneira aguda. Com a concentração de capital por meio das multinacionais, os Estados Unidos e demais países centrais forçam a liberalização total do comércio com os países periféricos, rompendo a resistência de políticas protecionistas e desenvolvimentistas nas nações mais pobres. As burguesias dependentes apoiam esse movimento para maximizar seus lucros na

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associação com o capital estrangeiro e possuir mercadorias, serviços e padrões de vida de Primeiro Mundo. Assim se forma a chamada globalização capitalista, fenômeno que reestruturaria a produção, circulação e consumo no sistema capitalista internacional. Para a divisão internacional do trabalho, a globalização significou o esgotamento da fase de investimento estrangeiro direito no mercado interno e a passagem para o neoliberalismo. Nessa fase, as grandes corporações desmembram o processo produtivo ao redor do mundo, sempre buscando baixos custos de produção. A perifeira fica com a produção primária e industrial de baixa e média composição técnica. As nações centrais reservam para si o monopólio das tecnologias mais avançadas e o controle dessa produção em escala planetária. Essa reestruturação do capitalismo no mundo coincidiu no Brasil com o fim da Ditadura militar e a crescente contestação a esse regime, com a reorganização da esquerda e demais setores populares. A classe dominante também desejava o fim do regime de exceção, mas por outros motivos. Era necessário colocar em prática as novas normas neoliberais então vigentes no mundo, para atualizar a dependência. A Ditadura era uma superestrutura política do momento anterior que poderia e deveria ser modificada para apressar a implementação dos ditames neoliberais. A mobilização popular pelo fim da Ditadura e do pauperismo generalizado imposto pelos militares levou à campanha das Diretas Já, uma das maiores ondas de protestos da história do país, que assustou toda a elite brasileira, tanto a que estava no governo, quanto a oposição liberal. O rechaço popular total à Ditadura e o avanço de popularidade de líderes de esquerda, como Brizola e Lula, levaram a um pacto conservador feito nos gabinetes, entre Tancredo Neves, um dos líderes da oposição liberal-conservadora à Ditadura e figuras próceres do regime. A derrota das Diretas Já reforçou o afastamento das massas dos momentos protagonistas na história do país, mostrando que a história se fazia pela elite. Tancredo Neves é eleito indiretamente presidente da República pelo Colégio Eleitoral, ainda recebendo apoio do sentimento de esperança que a população tinha em relação ao fim da Ditadura. O povo brasileiro esperava não só democracia, mas que um novo sistema político trouxe-se solução para a situação caótica de miséria e abandono em que viva a maior parte dos cidadãos. Tancredo morre antes de ser empossado como presidente e a o cargo mais importante do país para José Sarney, um dos líderes civis da ditadura que acabara de terminar. Seu governo é um desastre ao enganar o povo com um congelamento de preços temporário apenas para que seu partido vença as eleições para governadores e tenha maioria na Assembleia

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Nacional Constituinte em 1988. A tentativa de manutenção de um desenvolvimentismo sem direção naufraga ainda mais a combalida economia brasileira. O processo de formulação da nova Constituição e as eleições presidenciais de 1989 demonstraram uma intensa luta de classes no país e o embate entre dois projetos de uma necessária reforma na vida pública nacional. De um lado a esquerda, com um projeto de reformas de base, que repartisse a renda, amparasse a população nos graves problemas sociais e aprofundasse a frágil democracia brasileira concedendo protagonismo às massas. Do outro o projeto neoliberal das elites colonizadas que se apresentava como a “modernização” definitiva do país, mas que na verdade nada mais era do que o movimento necessário da classe dominante brasileira para renovar a dependência e adequar o país à nova configuração da divisão internacional do trabalho. Os ataques do empresariado durante os trabalhos da Constituinte foram incisivos na participação do capital estrangeiro na economia brasileira e na tentativa de restringir qualquer defesa ao trabalhador. Mesmo com a vitória de propostas da esquerda, boa parte da proteção ao trabalho e à indústria nacional seria desmantelada ao longo dos anos 1990. Isso porque as eleições presidenciais de 1989 marcaram a vitória do projeto neoliberal, então com a candidatura de Fernando Collor de Mello. A partir de então começa a implementação do neoliberalismo no país, com a privatização de empresas estatais e o ataque aos trabalhadores. No entanto, a situação sofrível da economia continuou se agravando. Aliada as acusações cada vez mais constantes de corrupção, Collor sofrerá uma intensa mobilização de massas pela sua deposição. A inabilidade política do então presidente levaria ao abandono de boa parte da própria classe dominante que o criou, principalmente o aparato midiático monopolizado, com destaque para a Rede Globo. As reviravoltas da política levaram a uma breve pausa na aplicação das medidas neoliberais que somente iriam ser retomadas após o impeachment de Collor. O Plano Real implementado no governo de Itamar Franco pelo seu ministro da Fazenda Fernando Henrique Cardoso foi decisivo para os rumos do país. Garantiu a vitória de FHC, acabou de vez com a proposta da esquerda para o momento pós-ditatorial e criou uma hegemonia ideológica na sociedade brasileira devido ao controle da inflação e a um fugaz momento de aumento do poder de compra. Toda essa euforia seria destruída por oito anos de privatizações, terceirizações, retirada de direitos trabalhistas, desemprego estrutural e aumento da desigualdade social e da violência. No Brasil a “democracia” veio junto com o neoliberalismo, com a privatização, o individualismo consumista e a precarização do trabalho. Ou seja, com mudanças estruturais

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que inviabilizam um sistema democrático de política porque não permite à maioria da população condições básicas de vida. O direito à vida digna é acessível somente aos que podem pagar como num roteiro de ficção científica distópica, mas que, como sempre, se torna mais estranho do que a fantasia. O processo de Transição no Brasil foi concomitante ao aumento de influência das ideias neoliberais. O fim do próprio regime militar está conectado às mudanças que aconteciam no capitalismo mundial. Com o término da Ditadura, forças sociais contrárias e a favor do capital entraram em um novo processo de disputa política, mais aberto do que o anterior, porém com seus limites impostos pela ordem do capital. A década de 1980 foi o cenário para esse embate, onde cada avanço das forças popular-democráticas era respondido com um contragolpe das forças conservadoras. Nessa conjuntura, podemos identificar a campanha das Diretas Já x eleição de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral, os embates na Constituinte e a disputa eleitoral entre o aprofundamento da democracia (com Brizola e Lula) e o projeto de modernização reflexa da burguesia brasileira (representado por Collor), como os momentos-chave de disputa de poder entre classes. O que estava em jogo era o rompimento da condução da economia e da política econômica pelas classes dominantes, ou mais um período de atualização da dependência brasileira no sistema capitalista internacional. Prevaleceu a última opção, que permitiu à implementação do neoliberalismo no país, fazendo dos anos 1990 uma continuidade do crescimento econômico ridículo, do aumento da desigualdade entre ricos e pobres, a permanência da miséria, da precariedade dos serviços públicos e a superexploração do trabalho. As mazelas impostas ao povo brasileiro pelo neoliberalismo inviabilizaram a democracia. Nosso regime pós-ditatorial afasta o povo dos momentos de decisão, coloca a participação política traduzida somente no direito ao voto, criminaliza movimentos sociais e concede ao neoliberalismo e toda a desigualdade social que ele provoca uma chancela que o legitima: o sufrágio. O pós-Ditadura não significou a mudança socioeconômica que o povo brasileiro aguardava no momento da Transição. A mudança veio, mas não na forma demais democracia política e social. A volta de uma república liberal foi a cortina de fumaça democrática encontrada pela classe dominante e seus sócios estrangeiros para hegemonizar a sociedade a partir do víeis neoliberal. Ao contrário de uma sociedade mais justa, permanecemos com índices de desenvolvimento humano baixíssimos, uma violência que se espalha na mesma

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proporção do individualismo e um descaso com a maior parte da população que se reflete nas péssimas condições dos serviços públicos. O que houve a partir da Transição foi um aprofundamento do caráter dependente da economia brasileira. O neoliberalismo marca a atualização da divisão internacional do trabalho para a periferia do sistema. O Brasil passa a ser um produtor de bens primários e de mercadorias industriais de média e pequena composição que se encaixam na escala global de produção comandada pelos centros hegemônicos. Continuamos afastados do domínio das tecnologias de ponta em um momento do capitalismo onde o conhecimento e a técnica ganham cada vez mais importância para a acumulação de capital e a soberania nacional. Junto com a renovação da dependência, seu mecanismo básico de acumulação, a superexploração do trabalho, também sofreu modificações. O desemprego estrutural passa a ser um fator de grande importância devido à implementação de tecnologias avançadas no parque produtivo brasileiro e às características da reestruturação produtiva, como a multifuncionalidade do trabalhador. Dessa forma, a superexploração é aprofundada de duas formas. A primeira, porque o número maior de desempregados joga os salários para baixo e força o trabalhador a executar múltiplas funções no objetivo de não perder seu emprego e aumentar o lucro do patrão. Por outro lado, vários demitidos nos anos 1990 seriam admitidos em outros postos de emprego, terceirizados, com extrema debilidade de seus direitos trabalhistas e impossibilidade de se organizar politicamente. Mais uma vez, a retirada de direitos e a precarização do trabalho reduzem os custos com capital variável dos empresários, aumentando seus lucros. A história da Transição e do período pós-ditatorial no Brasil é a história de sua acomodação a um novo momento do sistema capitalista internacional, a globalização neoliberal. Os acontecimentos compreendidos nessa conjuntura histórica são as manifestações da luta de classes entre os que operaram essa renovação da dependência e os que resistiram como puderam a ela. A situação atual no Brasil não demonstra esperanças de grandes mudanças em curto prazo. O campo da esquerda construído no final da Ditadura e responsável durante bom tempo pela resistência ao neoliberalismo foi totalmente cooptado pelo discurso da direita, sofreu uma definitiva degeneração ideológica e de capacidade de combate político. O caráter dependente de nossa economia permanece, mesmo que os recentes governos tentem servir a mais de um senhor ao mesmo tempo. O ciclo das forças políticas progressistas pós-Ditadura se esgotou. No entanto, outra grande característica da história é a capacidade que ela tem de nos surpreender. Isso porque a história, não esqueçamos, é feita pelos homens. E geralmente,

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pelos homens que têm capacidade de ousar. As mudanças que o povo brasileiro necessita ainda estão por serem conquistadas, assim como, ainda estão para serem formulados os sujeitos revolucionários que as levaram a cabo. Há uma enorme tarefa a se cumprir. Essa tarefa consiste na composição de uma real alternativa de esquerda ao povo brasileiro que possa incidir diretamente contra os alicerces da dependência, hegemonizar a sociedade com um discurso nacionalista-revolucionário e antiimperialista, sem o qual nenhuma alternativa verdadeiramente revolucionária na América Latina é possível. Aglutinar a massa de trabalhadores, principalmente os precarizados no setor de serviços e na informalidade e fazer dele uma reserva popular revolucionária. Essa linha política somente pode conceber uma sociedade soberana e justa se caminhar sempre na direção da ruptura da dependência e do sistema capitalista como um todo. Os atores e atrizes dessa mudança podem já estar por aí. Seu encontro e convergência sobre os principais problemas da Nação e do Povo brasileiro abrirão um novo ciclo de alternativas e lutas políticas. O Brasil tem um importante papel a desempenhar no século XXI, principalmente se voltar suas atenções a uma integração latino-americana dos povos, da solidariedade e de opções ao capitalismo. A história continua e suas possibilidades são infinitas. Cabem às trabalhadoras e trabalhadores a construção das avenidas por onde passará a humanidade livre. Quem viver verá. E quem não viver, mas lutar para alcançar tal situação fará parte de um dos mais belos capítulos de nossa existência.

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