Corpo com corpo: instrumentos, homens e animais

May 28, 2017 | Autor: Filomena Silvano | Categoria: Visual Studies, Visual Anthropology, Material Culture Studies, Work and Labour, Cultura Material
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Filomena Silvano (FCSH-UNL-CRIA) Corpo com corpo: instrumentos, homens e animais RESUMO Nos anos 1997 e 1998 acompanhei as rodagens dos filmes “Esta é a minha casa” (Rosa Filmes/RTP 1997) e “Viagem à Expo” (Rosa Filmes/RTP 1999) de João Pedro Rodrigues e, em 2010, uma parte das filmagens dos filmes “Alvorada Vermelha” (Blackmaria 2011) e “A última vez que vi Macau” (Blackmaria 2012), de João Pedro Rodrigues e de João Rui Guerra da Mata (cineasta que também havia integrado a equipa de filmagem dos dois primeiros). Em ambos os casos, tomei a experiência de participação na equipa de rodagem como um trabalho etnográfico – observei e interpretei o mesmo real que os cineastas filmaram – sendo que a esse trabalho inicial se juntou posteriormente um outro, de interpretação do real a partir das imagens cinematográficas. O filme “Alvorada Vermelha” passa-se em Macau, no interior do histórico Mercado Vermelho. Inicia-se com a abertura, de madrugada, do mercado, e apresenta-nos sucessivas imagens de abate, tratamento e venda de animais. As imagens de João Pedro dão-nos acesso a uma poética do uso dos instrumentos (Tim Ingold) que envolve os corpos, os instrumentos e as técnicas num todo que, para ser compreendido, terá de prescindir da clássica oposição entre humano e não humano (Philippe Descola). Tendo o filme como ponto de partida, a comunicação propõe-se pensar a questão do trabalho e das técnicas a partir de um ponto de vista que, convocando a ideia de empatia (Kuchler e Were), una, num todo indissociável, os instrumentos de trabalho e os corpos dos humanos e dos animais.

Alvorada Vermelha, João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata

Corpo com corpo: instrumentos, homens e animais Entre 1997 e 1998 participei, enquanto antropóloga, na concepção e nas rodagens de dois filmes realizados pelo cineasta João Pedro Rodrigues sobre uma família de emigrantes portugueses que vivem em Paris - Esta é a minha casa e Viagem à Expo (Rosa filmes, 1997; 1999). Essa experiência permitiume articular, no meu trabalho de interpretação do real, dois registos diferentes :

as

minhas

observações

de

terreno

e

as

imagens

cinematográficas do mesmo terreno. O meu trabalho foi assim submetido a uma dobra interpretativa : a antropóloga trabalhou também com a interpretação, feita pelo cineasta, daquilo que ela própria viu, observou e interpretou. Desocultar o real não é uma tarefa exclusiva dos investigadores em ciências sociais, por vezes cruzamo-nos com outras abordagens e elas conduzem-nos até coisas que nos estavam vedadas. Foi com essa convicção epistemológica que, mais de dez anos passados, fui ter com os cineastas João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata a Macau para participar, uma segunda vez, nas rodagens de dois filmes : Alvorada Vermelha e A última vez que vi Macau, (Blackmaria, 2011; 2012).

O corpo de José o artesão Quando os antropólogos trabalham questões que se prendem com os processos de construção das identidades pessoais estão necessariamente a lidar com um campo metodológico que trabalha as experiências perceptivas e as modalidades de presença e de acção no mundo, campo que, segundo Csordas (1994), integra a noção de “embodiment”. No entanto, as etnografias apresentadas para estudar essas questões só muito raramente passam por uma abordagem do corpo. Se é verdade que, desde o texto de Mauss “As técnicas do corpo”1, publicado em 1936, a antropologia concebe a construção dos corpos como um processo que integra as formas de construção de si, também é verdade que essa articulação, apesar de conceptualmente aceite, se revelou sempre de difícil operacionalização. Seguramente por múltiplas razões, sendo, a meu ver, uma delas a dificuldade etnográfica que ela arrasta consigo: como é que se observam os corpos e, sobretudo, como é que depois se descreve a dimensão experiencial dos mesmos? Como refere Marcus, essa “démarche” tem falhado, mesmo no filme etnográfico: “O que faltava não era o corpo mas a experiência de existir nele.” (Marcus 1995 : 249) Quando nos anos 1990 comecei a trabalhar com as imagens relativas aos dois primeiros filmes as evocações resultantes das imagens criadas por João Pedro incitaram-me a reter a atenção sobre os corpos dos membros da família. Eu tinha visto uma parte das vidas desses corpos – tinha até partilhado uma parte das suas experiências de existência – mas quando vi as imagens percebi que não tinha visto tudo (ou, dito de outra forma, que não tinha tomado consciência de tudo). No caso de José, a diversidade das formas que o seu corpo assumia foi uma revelação. Nas imagens visionadas foi possível identificar pelo menos quatro formas corporais. Delas retenho aqui aquela a que chamei o “corpo do artesão”. Aparece em Esta é a minha casa quando José chega à sua oficina de sapateiro e começa a trabalhar. As imagens de trabalho mostram várias sequências de gestos que me impressionaram sobretudo pela precisão e 1

Proposta que podemos considerar que foi posteriormente apropriada, de forma produtiva, quer por Foucault (1989) - com a noção de “techniques de soi” – quer por Bourdieu (1979) – com a noção de “habitus”.

certeza que revelam 2 . O “corpo do artesão” é um corpo seguro de si e afirmativo da sua existência no mundo. Numa sequência longa em que José aparece a trabalhar e depois a receber de um cliente o respectivo pagamento, percebemos que nesse contexto de interacção social o corpo de José exprime uma segurança afirmativa que, noutros contextos, nunca aparece. No meu entender, ela relaciona-se com o facto de o seu trabalho, que ainda comporta uma dimensão artesanal muito significativa, se basear na certeza do “bem fazer”. Numa certeza que tem duas dimensões. Uma delas, a que poderei chamar “dimensão intelectual”, sustenta-se numa lógica de pensamento que não procura a novidade ou a invenção, mas antes a aplicação de soluções óbvias e partilhadas pelos vários membros de uma mesma comunidade (neste caso de sapateiros3): quando entrega um trabalho a um cliente, José está certo de o ter feito exactamente como ele deve ser feito. Apesar de se tratar aqui de uma segurança que tem por base uma dimensão intelectual ela manifesta-se, ou dá também forma, ao corpo. A outra dimensão tem a ver, de forma mais directa e óbvia, com a relação entre o corpo e a matéria. Se, como propõe Jean-Pierre Warnier (2005), considerarmos as condutas motrizes como uma matriz de subjectivação, percebemos que o gesto repetido, e consequentemente certeiro, faz parte de uma corporalidade que participa dessa mesma qualidade. No filme Viagem à Expo, pode ver-se um longo plano em que José e Johnny, ao deambularem por Alfama, encontram uma oficina de um velho sapateiro. Lentamente, e revelando simultaneamente curiosidade e respeito, ambos vão entrando até começarem a falar com o proprietário. Quando a conversa se instala, o corpo de José muda e volta a assumir a forma, segura e assertiva, do corpo do artesão parisiense. A forma como manuseia os sapatos e os comentários que faz expressam essa segurança, construída pelo trabalho mas que quase parece ontológica. Falam de coisas técnicas, dos preços dos arranjos e do facto de a profissão já não ser como o velho sapateiro, que se prepara para a abandonar, a conheceu. No fim José revela 2

“Aqui temos um limite, ou talvez mesmo o limite humano fundamental: a linguagem não é uma ‘ferramenta espelho’ adequada para os movimentos físicos do corpo humano”. (Sennett 2009 : 111) 3 A este respeito, H. Tessenow (1983), um arquitecto alemão que trabalhou no início do século XX, afirmava: “Hoje em dia, o trabalho do artesão, do ponto de vista do designer ou do arquitecto, dá sempre a impressão de roçar o lugar comum. Porque a verdade é que a resolução artesanal mais óbvia é também aquela mais próxima da certeza. E é da certeza que se deve sempre partir.”

que tem o mesmo ofício: que possui também uma oficina em Paris. Essa cena, em que dois artesãos, um no fim da vida e outro em plena idade adulta, se encontram num beco escuro e degradado da cidade de Lisboa, é, a meu ver, a mais comovente do filme. É a única cena que evoca a morte, num filme que dá a ver o prazer de viver. Foi assim que me surgiu a questão do trabalho no écran. Relacionada com o corpo e com as possibilidades de o dar a ver. Corpo com corpo O filme Alvorada Vermelha passa-se em Macau, no interior do histórico Mercado Vermelho. Inicia-se com a abertura, de madrugada, do mercado, e apresenta-nos sucessivas imagens de abate, tratamento e venda de animais. Tal como havia acontecido na oficina de José acompanhei em Macau as filmagens feitas no interior do Mercado. E apesar de já ter escrito as reflexões que aqui vos acabei de apresentar - estando por isso disponível para olhar com atenção para os gestos, para os corpos e para os instrumentos - quando vi as imagens de João Pedro e de João Rui voltei a ter a sensação de que elas desocultavam um real que me havia estado anteriormente vedado. A absoluta sintonia entre os movimentos dos corpos dos artesãos, a manipulação dos instrumentos e os corpos dos animais manipulados era visível e impressionou-me; no entanto, essa mesma sintonia é, nas imagens cinematográficas, transportada para uma dimensão emocional que a coloca num outro lugar. Penso que as imagens de Alvorada Vermelha nos dão acesso àquilo que Tim Ingold chama uma poética do uso dos instrumentos (Tim Ingold). A

situação

observada

no

Mercado

Vermelho

trás

consigo

uma

particularidade: não se trata exactamente de artesãos que com matérias constroem coisas, mas antes de artesãos que a partir de corpos vivos constroem “alimentos”. Mas apesar de o “artefacto” final ser aqui os fragmentos comestíveis dos corpos dos animais, a questão da relação entre os artesãos, os instrumentos e a matéria coloca-se tal como Tim Ingold a apresenta: “O artefacto é portanto a cristalização de uma actividade no interior de um campo relacional e as regularidades das suas formas

correspondem às regularidades do movimento que os faz” (251). O que fazem os artesão com os seus instrumentos apoia-se numa relação com os animais que se sustenta na própria manipulação – conhecimento - dos seus corpos. Trata-se, nos termos de Kuchler e Were, de uma prática que é feita no interior de uma “empatia” com a matéria: “Nós afirmamos que a selecção e a manipulação técnica dos materiais vão a par com uma empatia, uma espécie de intersubjetividade que permite o reconhecimento do potencial de certos materiais para responder a espectativas essenciais e permite chegar a resultados específicos”. Tal como os cesteiros de Tim Ingold constroem a forma seguindo, com a matéria, as curvas que melhor se lhe adaptam, também os talhantes e os peixeiros e peixeiras de Macau cortam os corpos seguindo, ou “sentindo”, as linhas que estes lhes sugerem (“o artesão sente a matéria prima sobre a qual trabalha, tal como o oleiro sente a argila e o carpinteiro sente a madeira, e é a partir desse processo de sensações que a forma do recipiente aparece” Ingold 34). A empatia entre os corpos – o de quem corta e o daquele que é cortado – é tão táctil que por vezes o olhar está ausente (há momentos em que os artesãos olham para a câmara continuando, com a mesma certeza, a operar sobre os corpos dos animais). Tal como havia acontecido com as imagens do sapateiro José, as pessoas são aqui os corpos em trabalho. As pessoas não precedem, não são anteriores aos corpos. Os corpos são elas próprias e elas próprias são os corpos. São pessoas construídas no trabalho, na relação com os instrumentos e com os animais que abatem, cortam e preparam para a alimentação humana; a construção de si integra nelas a relação com os animais por elas trabalhados. Como a construção de si do cesteiro integra as fibras entrosadas e a construção de si do caçador integra os animais abatidos (Ingold). É por isso que uma antropologia que separa o humano do não humano é uma antropologia condenada à incompreensão do mundo. “A ideia segundo a qual a unidade de análise da antropologia é fornecida pelos humanos é portanto, no meu entender, um bloqueio que obscureceu a análise das dimensões propriamente políticas da vida colectiva (...)”

Philippe Descola.

Nota final: O filme Alvorada Vermelha foi censurado pelas autoridades de Pequim durante a estadia do Presidente da República Portuguesa na China.

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