CORPO DE BAILE: UMA VOZ DISSIDENTE EM SUA ÉPOCA

May 28, 2017 | Autor: R. Bittencourt | Categoria: Portuguese and Brazilian Literature, Literature, João Guimarães Rosa, Corpo de Baile
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ÁGORA Revista Eletrônica Ano IX nº 18

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CORPO DE BAILE: UMA VOZ DISSIDENTE EM SUA ÉPOCA

Rodrigo do Prado Bittencourt 1

RESUMO: O livro Corpo de Baile, de João Guimarães Rosa, surge em 1956, em meio à expectativa de que o novo governo brasileiro, o do presidente Juscelino Kubitschek, seria bom e traria desenvolvimento e estabilidade ao país. O Brasil, com isso, saía de uma das mais profundas crises de sua História, iniciada com a morte de Getúlio Vargas, e que ocasionou a sucessão de três presidentes em apenas dezoito meses. A obra de Rosa não vai, entretanto, aderir à euforia em torno do novo presidente e mostrar uma realidade que o Brasil urbano queria esquecer: um mundo rural onde dinheiro e progresso não são as coisas mais importantes da vida, mas sim a beleza da natureza, as surpresas da vida e as relações humanas. PALAVRAS-CHAVE: Guimarães Rosa; Modernidade; Sertão; Desenvolvimento. ABSTRACT: The book Corpo de Baile, by João Guimarães Rosa, appeared in 1956, amid expectations that the new Brazilian government, of President Juscelino Kubitschek, would be good and would bring development and stability to the country. Brazil, with it, came out of one of the deepest crises of its history, started with the death of Vargas, which caused the succession of three presidents in just eighteen months. The Rosa's work will not adhere, however, to the euphoria that involved the new president and to show a reality that urban Brazil wanted to forget: a rural world where money and progress are not the most important things in life, but the beauty of nature, the surprises of life and human relations. KEYWORDS: Guimarães Rosa; Modernity; Backland; Development.

Corpo de Baile é lançado em 1956, momento em que o Brasil saía de uma grave crise de legitimidade governamental. A causa das dificuldades por que o país passara foi algo ocorrido em 1954: o suicídio do então presidente Getúlio Vargas, que causou grande comoção popular e deixou um vazio político de autoridade, que apenas com muito custo se resolveu. O segundo livro de Guimarães Rosa é lançado num momento de euforia modernizante que não poderia ser

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Doutorando em Literatura de Língua Portuguesa: Investigação e Ensino pela Universidade de Coimbra. [email protected]. www.agora.ceedo.com.br [email protected] Cerro Grande – RS F,: 55 3756 1133

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maior, pois sucedia ao caos político, à crise econômica e à ameaça de guerra civil surgidas após o suicídio de Vargas. Após o suicídio de Getúlio, assume o vice-presidente Café Filho. Este, por causa de uma doença, se afasta do cargo, assumindo, então, a presidência da república, Carlos Luz, presidente da Câmara dos Deputados. Este, acusado pelo general Lott de arquitetar um golpe de Estado, em união com a UDN e parte das Forças Armadas, foi impedido de governar por um “contra-golpe” ou “golpe preventivo”, comandado por Lott. Assim, assume o vice-presidente do Senado: Nereu Ramos que se mantém no poder por três meses, com o país em estado de sítio, até a posse de Juscelino, eleito o próximo presidente do Brasil. O curioso é que Carlos Luz, deposto, continua presidente da Câmara. Como afirmou Skidmore: “O Congresso reconheceu, sem legitimar totalmente, a transferência de poder imposta pelos militares” (SKIDMORE 1979, p.195). Esse conturbado período, em que o Brasil teve três presidentes e dois golpes de Estado, se considerarmos a tentativa de golpe de Carlos Luz e Lacerda e o “golpe preventivo” de Lott, em apenas dois anos, não foi caótico apenas por isso. Este período assistiu a uma verdadeira idolatria política centrada na figura de Vargas, o “Pai dos Pobres”, o presidente que se suicidara, acusado de mandante do atentado da Rua Toneleiros, que matou um oficial da Aeronáutica e feriu levemente Carlos Lacerda, líder da UDN. Esse suicídio causou enorme comoção nas massas: então, os pobres agora estariam “órfãos”? O que fariam eles sem Getúlio? O estado de comoção popular era tão grande que serviu de justificativa para a tentativa de golpe de Estado de Carlos Lacerda, que em seu livro Depoimento, disse a respeito: “Eu era a favor de um golpe que evitasse o golpe por via eleitoral.” (LACERDA 1977, p. 162). Ele foi um dos que tentou articular o fracassado golpe de Carlos Luz. Isso porque a comoção foi de âmbito nacional e o suicídio de Vargas teve repercussão no imaginário popular durante anos. Lessa, em seu Getúlio Vargas na literatura de cordel afirma: Entre as personalidades que mais impressionaram e fascinaram as classes desprotegidas do Brasil, tornando-se temática da poesia popular, que sempre, instintivamente, procurou servir o seu mercado interno, Getúlio Vargas foi, sem dúvida, uma dos maiores. Somente Padre Cícero inspirou número maior de folhetos. Nem Antônio Silvino, nem Lampião, com seu apelo sempre renovado pela exploração do cinema, deram lugar à produção literária maior. A de Getúlio é dez vezes superior, pelo menos. (...) Em sua época, porém, e muitos anos depois de sua morte, Getúlio foi o tema de maior venda e de maior aceitação entre os humildes consumidores de cordel. (LESSA 1973, p. 59).

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Dentro desse clima de incertezas e insegurança, de orfandade, o Brasil passava por um enorme caos político, com a mudança repentina de presidentes até a posse de Juscelino. Esse período de crise de autoridade e governos fracos e sem sustentação política é aquele em que Rosa escreverá Grande Sertão: Veredas e Corpo de Baile e pode muito bem ser comparado ao período em que ocorrem as ações descritas nesses livros: a República Velha 2, hiato de poder entre o absolutismo mal disfarçado do Segundo Império e o governo ditatorial e centralizado de Getúlio Vargas. Ressaltei a centralização como característica do governo Vargas porque mesmo antes da instauração do Estado Novo, em 1937, e o recrudescimento do governo em uma forma mais ditatorial e opressiva, o governo Vargas já se mostrava diferente dos que o antecederam durante a República Velha pelo seu aspecto nacional e centralizado, próprio das exigências do Movimento Tenentista que o susteve. Essa atitude centralizadora prevaleceu, graças ao braço forte de Vargas, mesmo que contrária à vontade de alguns de seus aliados. Como aponta Bueno:

É interessante observar a esse respeito que a constituição de um poder centralizado não era um objetivo das elites que apoiaram a revolução de 1930. O partido Democrático Paulista, por exemplo, que havia apoiado a revolução de outubro foi o primeiro a romper com a coalizão que havia levado Vargas ao poder, aliando-se ao Partido Republicano Paulista, que por razões óbvias estava disposto a obter vingança contra os que haviam impedido a posse de Júlio Prestes. (BUENO, 2011).

Enquanto a República Velha se voltou apenas para os interesses das oligarquias locais mais poderosas do país, sobretudo as de São Paulo e Minas Gerais, e não tinha uma política nacional, pois os próprios partidos políticos eram de âmbito estadual e não havia um governo voltado para a integração do país e que o governasse pensando nele como um todo, Vargas representou uma tentativa de instaurar essa visão mais ampla, nacional. Interessante é pensar, nesse ponto, como uma das personagens de Rosa parece se apropriar dessa bandeira política de um governo que pense no Brasil como um conjunto e não atenda apenas aos interesses das elites dos estados mais ricos. Bandeira que será erguida pelo tenentismo e da qual Vargas tomará posse, após 1930. Segundo Lacerda, “os Tenentes procuraram dar um sentido militar à campanha

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Situo Corpo de Baile na República Velha, pois todas as suas novelas estão interligadas por meio de personagens de umas que aparecem em outras. Assim, todas são do mesmo período e, ao mesmo tempo, são contemporâneas das ações de Grande Sertão: Veredas, uma vez que a prostituta Nhorinhá desse livro também aparece em Corpo de Baile, o Grivo a encontra na sua viagem. Para uma cronologia de Grande Sertão: Veredas, ver RONCARI, L. O Brasil de Rosa. São Paulo: Editora da UNESP, 2004. www.agora.ceedo.com.br [email protected] Cerro Grande – RS F,: 55 3756 1133

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do Rui Barbosa (uma espécie de desenvolvimento dos quartéis da campanha civilista)” (LACERDA 1977, p. 120) o que nos remete mesmo a essa busca por uma unidade nacional que fosse além do sentimento patriótico, mas que gerasse instituições que a garantissem e formasse um civismo que a colocasse sempre na “ordem do dia”. Não se está afirmando aqui que a personagem de Rosa ou Vargas realmente acreditassem nessa causa e que por ela lutassem, mas apenas que personificaram, ou ao menos tentaram personificar, essa luta, ainda que com fins meramente mesquinhos de poder e vitória eleitoral. A personagem em questão evidentemente é Zé Bebelo, de Grande Sertão: Veredas, que após sua primeira vitória na luta contra os jagunços, fará um discurso e ordenará a Riobaldo que faça um também. Conta-nos Riobaldo: “Ao que Zé Bebelo elogiou a lei, deu viva ao governo, para perto futuro prometeu muita coisa republicana. Depois, enxeriu que eu falasse discurso também. Tive de. – ‘Você deve de citar mais é em meu nome, o que por meu recato não versei. E falar muito nacional...” – se me se soprou. Cumpri. O que um homem assim devia de ser deputado – eu disse, encalquei. Acabei, ele me abraçou.” (ROSA Grande Sertão: Veredas, páginas 149 e 150). Vargas representou a ordem e nacionalidade. Com sua centralização política, fez da capital federal um centro onde se decidiam as mais importantes questões do país, em oposição aos conchavos das cidadezinhas do interior e das salas de visita das fazendas, típicos do governo de oligarquias locais da República Velha. Com seu governo de mão forte, trouxe a estabilidade e a sustentação política que lhe garantiram o poder e não deixaram brecha para golpes de estado e tentativas de solapar sua autoridade. Prova disso foi sua vitória sobre a Revolução Constitucionalista de 1932, em que, com apenas 2 anos de governo, venceu aquele que era o estado mais poderoso e rico do país – São Paulo. Isso porque Vargas soube não romper com as oligarquias locais, mas ampliou sua base de domínio, não contando agora, como seus antecessores da República Velha, com o apoio apenas de Minas Gerais e São Paulo, mas de oligarquias de todo o país, que lhe deram o sustento para enfrentar o forte movimento oposicionista de São Paulo. Até Minas Gerais, tradicional aliada dos paulistas, o apoiou na repressão à Revolução Constitucionalista de 1932, garantindo a estabilidade do governo Vargas. Disse Skidmore: “Vargas havia sido cuidadoso ao selecionar seu apoio para enfrentar São Paulo. Ele cultivou os líderes de Minas Gerais e do Rio Grande do Sul, argumentando que a conspiração paulista não lhes traria benefício algum” (SKIDMORE, 1979, p. 38). Faz-se necessário atentar para os percalços pelos quais passou a chamada República Velha para entendermos o quanto o governo Vargas representou no imaginário popular e no www.agora.ceedo.com.br [email protected] Cerro Grande – RS F,: 55 3756 1133

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cenário político uma ação ordenadora, unificadora e pacificadora. Este período foi marcado pela Guerra de Canudos (1896-7), a Revolta da Vacina (1904), a Greve de 1907, a Revolta da Chibata (1910), Sedição de Juazeiro (1914), a Guerra do Contestado (1912-1916), a Greve de 1917, a Revolta dos 18 do Forte de Copacabana (1922), a Revolta Paulista de 1924, a Comuna de Manaus (1924) e o mais importante movimento de todos, para o âmbito nacional, a Coluna Prestes (1925-1927). Isso sem falar nas revoltas puramente locais e ações de pequena escala. Deve-se ter em mente que Arthur Bernardes governou praticamente todo o tempo de seu mandato em estado de sítio (1922-26) e mesmo durante o governo Washington Luís (1926-30), bem mais brando que seu antecessor, o estado de sítio continuou a vigorar em alguns estados, para o combate à Coluna Prestes. Diante disso tudo, Vargas representou, como disse, ordem e paz. Bem como Juscelino, em 1955. Aliás, em 1955, qualquer um que emergisse do caos e do vazio deixado pela morte de Vargas seria considerado um pacificador e ordenador. Alguém que poria fim às “forças e os interesses contra o povo” que levaram Getúlio à morte e que ainda rondavam o centro do poder do país, desestabilizando-o. Juscelino assumiu esse papel muito bem. Carismático, ousado, empreendedor e com amplo apoio político, apesar de ter vencido a eleição por muito pouco (tendo sido o presidente eleito com a menor votação do período de 1945 a 1960), o político mineiro conseguiu fazer um governo estável, sem grandes amaeças ao status quo, trazendo novamente a ordem e a pacificação. Mais que isso, ele, como Vargas, tentou mostrar a encarnação do progresso, do avanço econômico e social que o país precisasava e que era supostamente boicotado pelas forças oligárquicas tradicionais e os aliados dos interesses norte-americanos, congregados especialmente na UDN, mas espalhados por todos os partidos. Seu bordão “Cinquenta anos em cinco” ficou famoso e é lembrado até hoje, como marca ideológica de seu governo, como símbolo da busca a esse progresso que só poderia ser obtido com um presidente corajoso e determinado, capaz de enfrentar os poderosos que não o desejavam. Por causa dessa imagem, Juscelino fora acusado até de ser apoiado pelos comunistas, o que fez com que ele demorasse para anunciar sua candidatura à presidência, esperando para ver se os militares não tentariam impedi-lo de concorrer ao cargo. Entretanto, pouco havia de comunismo em Juscelino e seu governo caminhou mais em direção ao alinhamento com as políticas desejadas pelos Estados Unidos que em direção a um apoio à União Soviética. Juscelino promoveu uma grande abertura ao capital estrangeiro e criou uma política de oferecerecimento de crédito ao consumidor. Foi em seu governo que se www.agora.ceedo.com.br [email protected] Cerro Grande – RS F,: 55 3756 1133

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instalaram as fábricas automotivas estrangeiras no Brasil e se ampliou consideravelmente a malha rodoviária do país (com a construção das rodovias Belém-Brasília, Régis Bittencourt, Fernão Dias e a BR-364), o que permitiu uma penetração maciça de capitais estrangeiros e consolidou a adesão do brasileiro ao “American way life”. Eletrodomésticos se popularizaram; foi o auge do rádio e do cinema nacional; surgiram as revistas de grande circulação nacional, como Seleções e O Cruzeiro; a Bossa Nova ganhou o mundo e o Brasil, pela primeira vez, se sagrou campeão mundial de futebol, vencendo a Copa de 1958. Na economia, “entre 1955 e 1961, a produção industrial cresceu 80%”, sendo que o setor de “equipamentos de transporte” teve crescimento de “600%”. (SKIDMORE, 1979. p.204). A euforia era grande. Esse progresso em direção ao capitalismo industrial e de consumo significou mais que uma aliança das classes altas com o modelo de vida norte-americano e do governo com os capitais estrangeiros. Com as rodovias criadas por JK e a construção de Brasília, essas mudanças atingiram inclusive o interior do país, os rincões afastados e antes isolados do mundo moderno. Em seu governo se deu uma acentuação muito forte do processo de urbanização e houve também, graças à construção de Brasília e às fábricas automotivas instaladas em São Paulo, um intenso processo de migração interna. Assim, o Moderno passa a entrar em contato com o Tradicional, o Urbano com o Rural, cenário semelhante ao descrito por Rosa em seus livros, em que o Sertão se vê sempre às voltas com os avanços da Modernidade, interagindo sempre de modo original e único com as novidades vindas de longe. Juscelino e Vargas assumiram o comando do país após períodos de instabilidade e governos fracos. Rosa escreve Corpo de Baile em meio ao período de incertezas que antecedeu e assistiu ao começo do governo de seu amigo Juscelino Kubitschek, retratando um Sertão em meio à crise de autoridade que antecedeu o governo Vargas. Não quero dizer, com isso, que Rosa queria retratar o Brasil pré-Juscelino no Sertão da República Velha de Corpo de Baile. Não é crítica genética que estou buscando fazer. O que me interessa com essa longa digressão é contextualizar a obra não no momento de sua escrita, mas de sua primeira recepção pelo público. Foi o público desse período da História que pela primeira vez leu Corpo de Baile e registrou suas impressões por meio da crítica acadêmica e de artigos de jornais e revistas. Essas primeiras impressões afetaram o modo como lemos a obra hoje, e entender um pouco mais dos caminhos tomados pela crítica é o que me interessa para entender melhor o texto em si e separar o que nele está escrito do que porventura possa atribuir a ele de minha experiência pessoal de leitor, ainda que seja impossível fazer essa www.agora.ceedo.com.br [email protected] Cerro Grande – RS F,: 55 3756 1133

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separação por completo. Analisar a crítica e a recepção nos ajuda a avaliar nossa própria posição de crítico, a partir do princípio que é preciso reconhecer o lugar que a obra ocupa na História e de que lugar da História queremos julgá-la. Assim, vislumbrar o que a crítica diz não apenas nos ajuda a entender melhor a obra, aproveitando das análises já feitas, mas também a entender o quanto nossa leitura é influenciada pela crítica que nos antecedeu e tentar ser mais que um mero repetidor do que já foi dito até para, se possível, tomar novos caminhos ainda não trilhados pelos que desbravaram os caminhos do Rosa. Um fato importante dentro dessa contextualização é que podemos indagar se o próprio Rosa não comungava do clima de euforia experimentado por muitos durante os anos JK. Euforia que se consolidou ao longo de seu mandato, mas que, como espero ter demonstrado, se baseou na expectativa de ordem e estabilidade que o novo presidente eleito representava. Ordem e estabilidade que não dependiam tanto da pessoa de Juscelino, mas do fato de ele ter sido eleito democraticamente e de modo legítimo, o que seguramente serviria para por fim às inúmeras tentativas de golpe e conspirações que sucederam à morte de Vargas. Não importa se Juscelino ganhou uma eleição “apertada”, o importante é que foi eleito pelo povo e era o presidente de direito e de fato e que ninguém poderia contestar isso. Já não se tratava de um vice-presidente, como Café Filho, um presidente da Câmara, como Carlos Luz, ou um vice-presidente do Senado, como Nereu Ramos. O poder já não passaria de mão em mão, “como uma batata quente”, sem ninguém saber por quanto tempo aquele que o assumiu se manteria no cargo. Então, não importava se Juscelino seria um bom presidente ou não, havia a esperança de um governo normal, sem contratempos e incertezas e isso animava as pessoas. O general Lott garantiu a posse do novo presidente e os gopistas já não tinham argumento para contestar a legitimidade do novo eleito. Também não dispunham de aliados em altos cargos, como foi o caso de Carlos Luz e mesmo de Café Filho, para poderem arquitetar golpes e imposturas. Assim, a euforia que se formou durante o mandato de Juscelino começou na certeza da estabilidade e ela provavelmente haveria, mesmo se outro tivesse sido eleito. Some-se a ela, porém, o clima desenvolvimentista criado por Juscelino, seu carisma e sua posição de “populista”, próxima da do idolatrado Vargas. Rosa era amigo pessoal do novo presidente, o conhecera quando serviu como voluntário da Força Públca de Minas Gerais, que apoiou o governo Vargas na luta contra os paulistas revoltosos de 1932. Além de amigo, era colega de profissão: ambos eram médicos de formação e agora se dedicavam a servir ao país. www.agora.ceedo.com.br [email protected] Cerro Grande – RS F,: 55 3756 1133

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Há que ser salientada a importância da ordem e da estabilidade na época. Essas realidades são sempre buscadas pelos que comandam o Estado Nacional, mas na época isso era ainda mais forte. Devemos lembrar que se estava em meio à “Guerra Fria”, o conflito ideológico, político e econômico entre os Estados Unidos e a União Soviética pela hegemonia na geopolítica do mundo pós-guerra. Os dois grandes vencedores da Segunda Guerra Mundial agora se enfrentavam pelo domínio do planeta e qualquer país, por mais fraco e insignificante que fosse deveria ser disputado a ferro e fogo. Os dois gigantes buscavam estabelecer aliados e consolidar suas zonas de influência, fazendo da política internacional um tabuleiro de xadrez que obrigava todos a tomar uma posição, a favor de um ou de outro. O que não se podia era ficar neutro, “em cima do muro”, pois as duas potências exigiam um alinhamento claro com sua política e seus interesses, pressionando os países mais fracos com promessas de ajuda econômica e transferência de tecnologia e ameaças de invasao militar e bloqueio econômico. Assim, a posição do Brasil devia ser definida. O país pertencia à mais tradicional zona de influência dos Estados Unidos, a América Latina, e até entrara na Segunda Guerra Mundial por pressão dos norte-americanos. Estes, além disso, obtiveram de Getúlio Vargas a autorização para montar uma base militar no Nordeste.

O governo Dutra (1945-1950) posicionou-se

claramente como aliado dos Estados Unidos.Todavia Vargas, seja pelo seu nacionalismo, seja pelas suas simpatias com o fascismo, sempre inspirara desconfiança nos norte-americanos e voltou ao poder em 1951. A fundação da Petrobras, em 1953, feriu o interesse de grandes petrolíferas dos Estados Unidos e alguns discursos do então presidente alarmavam as lideranças da potência. Com a morte de Vargas e o clima de incertezas e conspirações que assolou o país, o temor por parte dos norte-americanos de que os comunistas chegassem ao poder, seja por eleições, seja por algum golpe de Estado, era grande. Assim, a pressão sobre o país cresceu. O governo de Juscelino, portanto, representava um alívio não só para os brasileiros, mas para os poderosos líderes do bloco ocidental capitalista, os Estados Unidos. Prova é que não faltaram iniciativas norte-americanas de aproximação do Brasil e de promoção do “American way life” em terras tupiniquins. Skidmore diz: “o Governo Kubitschek poderia contar com fontes de expansão dos fundos públicos no exterior, tais como o Governo dos Estados Unidos e as agências internacionais de empréstimo. (...) Enquanto o Brasil ganhava investimentos privados

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externos para o seu setor privado interno, também obtinha investimentos públicos externos para o seu setor público interno” (SKIDMORE, 1979, p. 207). Assim, a posse de Juscelino aliviou a pressão norte-americana e trouxe mais tranquilidade aos brasileiros. Não se pode esquecer de que o Brasil era, econômica e politicamente, um dos principais países da América Latina, juntamente com Argentina e México, e que os Estados Unidos não estavam dispostos a perder um país tão importante assim para os comunistas e deixálos instalar um enclave “vermelho” bem na zona de influência mais fiel aos norte-americanos, no seu “quintal”. Se os Estados Unidos ameaçaram atacar militarmente o Brasil de Vargas, caso Getúlio não declarasse guerra ao Eixo, durante a Segunda Guerra Mundial, o que não fariam se vissem os comunistas tomando conta do poder no país? E é preciso ter em conta que por “comunista”, era taxado qualquer um que falasse em justiça social, liberdade de expressão, combate à pobreza ou liberdade em relação às ações norte-americanas. “Nacionalismo”, então, já era sinônimo de “comunismo”. Isso porque, em tempos de Guerra Fria, a política norteamericana recrudesceu e forçou os outros países a esse recrudescimento também. Se Juscelino fora acusado de comunista, o candidato ideal para os norte-americanos era Juarez Távora, da UDN, que perdeu por apenas 400 mil votos. Mas, uma vez eleito, o político mineiro se mostrou bem longe de uma postura esquerdista e, alinhado com a política norteamericana, buscou o desenvolvimento econômico e abriu o país ao capital estrangeiro. No entanto, a situação internacional não era tranquila e isso fazia os norte-americanos mais desconfiados e exigentes de demonstrações de apoio irrestrito por parte de seus aliados. Com o fim da Segunda Guerra e o declínio das potências da Europa Ocidental, como Alemanha, França e Inglaterra, inicia-se o processo de descolonização da Ásia e da África, o que tornava o cenário internacional tenso, uma vez que cada país novo que surgia poderia se alinhar aos Estados Unidos ou à União Soviética, constituindo uma mudança no delicado equilíbrio de forças entre as superpotências. Os ânimos estavam acirrados e poucos tentavam de fato uma terceira via entre esses dois caminhos. A descolonização da Ásia aconteceu logo após o fim da Segunda Guerra, mas as colônias africanas estavam começando a colher as conquistas de suas lutas por independência justamente nesse momento. O Egito, que se declarara independente em 1952, só em 1956 esteve livre de fato de soldados britânicos e só nesse ano nacionalizou o Canal de Suez, dando origem a uma complexa e perigosa crise internacional envolvendo Israel, as antigas potências européias (França e Inglaterra) e as novas superpotências hegemônicas (EUA e URSS). www.agora.ceedo.com.br [email protected] Cerro Grande – RS F,: 55 3756 1133

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No final de 1954, surgiu a truculenta guerra de libertação da Argélia contra o domínio francês; em março de 1956, Marrocos e Tunísia se tornam independentes deste mesmo colononizador e o mais importante: desde 1954, quando os franceses foram expulsos da Indochina, o Vietnã preocupava seriamente os norte-americanos, que já haviam se envolvido há pouco num conflito na região (a Guerra da Coréia, de 1950 a 53). Lembremos que em cada conflito envolvendo um pequeno e pobre país como estes, a sobrevivência da raça humana estava em jogo, uma vez que o conflito de interesses entre Estados Unidos e União Soviética poderia desencadear uma guerra atômica que pusesse fim aos seres humanos. Em 14 de maio de 1955, surge o Pacto de Varsóvia, aliança militar entre os países comunistas, liderados pela União Soviética, com o intuito de ajuda mútua em caso de conflitos bélicos com países fora do grupo. Essa aliança é uma resposta a OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte), que, fundada em 1949, reunia os países da Europa Ocidental aos Estados Unidos numa aliança militar de atuação conjunta. Diante dessa paz armada, qualquer faísca poderia provocar um incêndio, e se proliferar as intervenções, oficiais ou não, evidentes ou secretas, das superpotências na política das nações menos poderosas. Não apenas os governos-títere se proliferam, bem como, em algumas regiões do mundo, as ditaduras. É o caso da América Latina, onde as ditaduras serão uma constante e o envolvimento dos militares na política um fato corriqueiro. Já em 1955, na Argentina, o desgastado Perón é deposto por um golpe de estado realizado por militares, que deixariam o poder em 1958 para voltar a ele em 62. Em 1956, ano de publicação de Corpo de Baile e Grande Sertão: Veredas, a tensão na política internacional só aumenta. O ano começou com uma surpreendente declaração de Kruschov, líder da União Soviética, em 23 de fevereiro, de que Stalin fora um genocida e que não se devia continuar com o “culto à personalidade” em que consistia a veneração de sua memória. Entretanto, as já citadas independências do Marrocos e da Tunísia virão logo em seguida, em março; e em outubro, um incidente abalará o mundo: a Revolução Húngara. Nem mesmo a Crise de Suez, começada em poucos dias depois da insurreição húngara, merecerá tanto destaque quanto esse movimento rebelde. Não por sua capacidade bélica ou poderio. Os húngaros foram rapidamente esmagados pelos tanques soviéticos. Em 18 dias, não havia mais revoltosos dispostos a serem mortos pelos russos. Todavia, o impacto desse movimento foi grande. Não só porque mostrou as rachaduras no poderio soviético, a desunião do bloco de países do Leste Europeu entre si e a União Soviética ou a fraqueza da propaganda www.agora.ceedo.com.br [email protected] Cerro Grande – RS F,: 55 3756 1133

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comunista em persuadir os habitantes de países com governos-títere de que eles tinham autonomia e que apenas se beneficiavam com as ligações com os russos. Mais que isso, a Revolução Húngara significou que a crise geopolítica poderia se instalar em qualquer lugar e mesmo os países mais próximos das superpotências e, por isso mais sujeitos ao seu domínio, poderiam ser vítimas da ação de seu arquinimigo e se transformar de aliado em oponente. O Estado Soviético encarou a Revolução Húngara como resultado de uma ofensiva norte-americana para desestabilizar seu domínio em pleno Leste Europeu, onde ele era mais forte. Assim, a guerra atômica poderia se desencadear a qualquer momento, e seu início, ao contrário do que até então se pensava, já não estava restrito aos longínquos sudeste asiático ou centro e norte da África, mas poderia ocorrer em qualquer lugar. Três anos depois essa ruptura ocorrerá no bloco norte-americano, com a Revolução Cubana de 1959, que começou justamente em 1956, e a Crise dos Mísseis que a ela se seguirá, em outubro de 1962, será o ápice da tensão entre União Soviética e Estados Unidos, sendo que nunca o mundo esteve assim tão perto de uma guerra atômica de proporções apocalípticas. Além disso, o esmagamento da Revolução Húngara de 1956 significou o fim de um sonho de liberdade. Os húngaros haviam se organizado, quase que espontaneamente, em um governo constituído por assembleias populares de participação direta e livre, abertas a todos que quisessem. Foi curto o período em que isso se deu, naturalmente, devido à invasão soviética, mas poucas vezes o mundo assistira a governos tão democráticos e populares como este, semelhante aos próprios sovietes que deram origem à Revolução Russa de 1917 e que foram, após o triunfo do partido bolchevique, domesticados, calados e tornados inócuos, até que desapareceram totalmente, em pouco tempo (ARENDT,2004). Durante todo esse período, o presidente norte-americano foi Eisenhower, militar e comandante supremo das tropas dos Estados Unidos na Segunda Guerra. Na União Soviética o líder também era um militar, Kruschov. Os EUA tinham a bomba H desde 1952 e os soviéticos a conseguiram em 1955. Em meio a essa ameaça constante de destruição total da vida humana, o progresso passa a ser visto com certa desconfiança por alguns, ainda mais por possibilitar ao homem a satisfação de seus piores desejos e de ser usado cada vez mais com fins bélicos. Se Rosa não se diz explicitamente a favor ou contra esse progresso, ele busca retratar a vida de personagens que estão longe dele, num sertão que ainda tem espaço para mitos e crenças

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e onde algumas belezas da vida ainda podem se contempladas com calma e maravilhamento. Este é o “clima” de Corpo de Baile, é seu tom. Se Grande Sertão: Veredas testemunha um conflito quase que sem fim que agride e prejudica o sertão, as novelas de Corpo de Baile são mais “inocentes”, mais voltadas para a contemplação de um mundo maravilhoso que se perdeu com o avanço da Modernidade. Afinal, não se vê, onde reina a Modernidade e sua lógica pragmática e capitalista, fazendeiros que mandem seus empregados buscarem poesia, como fez Cara-de-Bronze, na novela com esse mesmo nome, com o Grivo, ou pessoas que atendem a misteriosos recados vindos de montanhas, como Pedro Orósio, em Recado do morro. Tampouco a Modernidade dá espaço aos loucos, marginalizados e artistas, tidos por improdutivos (sendo o lucro e a produtividade os principais valores modernos), e que são justamente os que decifrarão a mensagem que vai se compondo para avisar Pedro Orósio da traição que se arma contra ele. Também nela não há lugar para a sabedoria dos idosos, como a de Lina, de A estória de Lélio e Lina, ou como a do Velho Camilo, de Uma estória de Amor. Meninos com a criatividade e a riqueza imaginativa de Miguilim e Dito estão desaparecendo num ambiente em que até as brincadeiras de criança se tonram cada vez mais rotineiras e banais, programadas pelos adultos que criam seus brinquedos e video-games. Em contraposição a um ambiente como o do Mutum, onde tudo era brincadeira, até a família entrar em crise. Assim, se Campo Geral apresenta os sofrimentos de Miguilim com a desagregação de sua família e o trabalho infantil, ainda longe de ser abolido, seja no campo ou nos faróis das grandes cidades e em seus lixões, não deixa de trazer à tona também um clima de forte união entre os irmãozinhos da família e sua capacidade de brincar e se divertir com tudo. Por fim, temos Buriti, onde o amor é mais importante que o dinheiro, e o patriarca Iô Liodoro se preocupa mais com sua satisfação sexual que com os lucros da fazenda, objeto de atenção de seu vizinho, o mesquinho Nhô Gualberto. Há aqui ainda o Chefe, um sertanejo que atormentado de medo de ser atacado de noite, não dorme, escutando cada barulhinho da mata, numa integração surpreendente com a flora e a fauna, capaz de deslumbrar o homem moderno que nem imagina a riqueza da vida existente numa mata, ainda mais de noite, tendo perdido a sensibilidade para com a natureza. O governo Juscelino representou uma euforia desenvolvimentista. Foi o público desse período que leu Corpo de Baile. Nessa obra, porém, Rosa não faz um elogio desmedido do www.agora.ceedo.com.br [email protected] Cerro Grande – RS F,: 55 3756 1133

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progresso, que vence tudo e avança civilizando e acabando com o Sertão, como a ideologia do período (e não só do período, mas de todo o Ocidente pós-revolução industrial) defendia, mas mostra um Sertão que interage com o Moderno, sim, mas tem suas características e riquezas próprias, sem vergonha de ser o que é. Daí a importância fundamental dos escritos rosianos para esse Brasil que, em meio às incertezas de sua política interna e às da Guerra Fria, que traziam o medo da destruição de todo o planeta, traz um norte em que se apoiar. Se Juscelino quis encarnar o progresso e apresentá-lo como necessidade e bem supremo para o país, respondendo à crise de autoridade e estabilidade política que o precedera com promessas de rápido desenvolvimento, Rosa não propõe o mesmo. É no Sertão que ele vai buscar belezas e referências que porgresso nenhum pode construir e das quais o homem não pode prescindir. Se é verdade que em momentos de desespero o homem se apóia em qualquer coisa e se na instabilidade e no medo busca alguma tábua de salvação, é bem provável que, para muitos, o progresso representasse esse importante auxílio. Afinal, não estava tão longe assim a crença de que a educação e o progresso civilizariam o homem de tal modo que ele não mais se deixaria escravizar pelo ódio e por seus preconceitos e desejos mesquinhos. Ainda mais que é fácil acreditar num mundo novo onde tudo será bom quando o mundo atual se encontra insuportável; é fácil querer fugir da realidade com uma busca utópica de perfeição. Os nazistas induziram os alemães a isso. Rosa, porém, em meio ao período de instabilidade política pós-morte de Getúlio e préposse de Juscelino, busca em outro período de instabilidade, a República Velha, o retrato de uma realidade que está longe dos valores progressistas, mas conhece uma outra dinâmica. Diante da crise, não é o progresso que ele apresentará, com suas máquinas e sua produtividade, mas, sim, o humano e sua necessidade de afeto, sua imaginação e sua capacidade de sonhar e amar. Rosa não fará uma discussão sobre as vantagens e desvantagens do progresso, mas a apresentação desse universo fabuloso de Corpo de Baile com certeza serviu para lembrar a muitos dos que o leram que havia muita coisa sendo esquecida e deixada de lado no Brasil que, destroçado pela confusão política que se tornou a sucessão de Vargas, apoiou quase que com todas as suas forças Juscelino e sua proposta de progresso. Difícil era combater uma vertente de ação defendida justamente num momento tão precário, em que o país precisava tanto de líder e estava tão disposto a seguir suas ordens. Talvez Rosa nem quisesse se opor às propostas de progresso irrestrito e desenvolvimentismo, embora www.agora.ceedo.com.br [email protected] Cerro Grande – RS F,: 55 3756 1133

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isso não pareça combinar com seu perfil. Consciente e intencionalmente ou não, ele trouxe uma alternativa a isso e foi uma voz dissidente a olhar justamente para aquilo que o Brasil queria esquecer: o sertão, onde o progresso ainda não penetrara. Enquanto o Brasil Moderno se envergonhava desse sertão, querendo que o progresso o dominasse e civilizasse, Rosa e suas personagens estavam preocupadas com coisas muito mais duradouras que as inovações e o desenvolvimento econômico e tecnológico. Num mundo em que o tempo parece não passar, o autor mineiro apresenta ao homem seu outro lado, cada vez mais esquecido. Diante da supremacia desse lado animal, que quer garantir bens de consumo que tragam a sobrevivência e o conforto de seu corpo, escravo das necessidades fisicas, Rosa lembra ao homem seu lado humano, justamente o que o separa dos animais: sua capacidade de sonhar, de imaginar, de pensar de modo abstrato. Rosa deu voz àqueles que envergonhavam a elite do país, que, em busca de progresso e estabilidade, não se dispunha a olhar para o campo e a vida do homem do sertão. Deu voz em mais de um sentido: não apenas pelo fato de narrar “estórias” (segundo a própria terminologia do autor, que preferia usar esse termo ao termo corrente: “história”, resgatando do inglês a diferença entre history e story) em que os sertanejos figuravam como as personagens principais, mas também por reproduzir sua linguagem, sua fala toda peculiar. Com uso de neologismos e muito arcaísmo, Rosa funde a linguagem culta e erudita de um narrador instruído com a fala coloquial sertaneja e caipira de suas personagens, recriando literiariamente a realidade que o Brasil moderno e urbano queria ver modernizada, como uma cópia de si. A própria construção de Brasília, no meio do país e em meio a essas terras sertanejas, mostrará como o ideal de modernidade e urbanização vigente no país buscará realizar um projeto de futuro que passe por civilizar e dominar o Sertão. Sertão, porém, de riquezas inestimáveis, que não pode ser suprimido. Rosa não se deixa fascinar por esse projeto e continua a buscar algo além, “Metafísico”, como disse a Lorenz (1983) na entrevista que a ele concedeu em 1965. As estórias que abrem e fecham seu Primeiras Estórias, de 1962, por exemplo, se remetem a Brasília, à construção dessa bela cidade, mas a criança que protagoniza esses dois textos não se fascina com as obras ou máquinas nela usadas, como faria um olhar voltado para o progresso. Ele se fascina com aves, seres da natureza, em sua simplicidade e veracidade. Fascina-se justamente com essa natureza que está sendo destruída em nome do progresso. O que mostra mais uma vez a posição de Rosa

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enquanto dissidente dessa visão utilitarista e progressista. Não que ele fosse contra o progresso ou a Modernidade, mas buscava algo que estava muito além, algo mais perene e sutil: o Belo. Esse Belo não precisa ser algo desligado do mundo, aéreo e metafísico, mas tem, sim, ligações com a História e a sociedade e (por que não?) com os meios de produção. Todavia é algo duradouro, um traço da cultura que, como todos os valores mais fundamentais e importantes, tende a permanecer em voga por um tempo considerável e mudar apenas aos poucos, de modo quase imperceptível. Não como os traços conjunturais descritos acima a respeito da política brasileira, que podem mudar da noite para o dia. Rosa se interessava por essa permanência, por essa valorização do passado (os arcaísmos são exemplos disso) e contemplação do presente. Daí sua condição de diferente, de voz a ecoar na contramão do senso comum e da ideologia dominante. Minha leitura vem, portanto, extender as análises de Lopes (2009) sobre Grande Sertão: Veredas e Finazzi-Agrò (2009) acerca de Primeiras Estórias para Corpo de Baile, bebendo das análises de Starling (1998) e Roncari (2004) para identificar os elementos políticos e sociais do texto literário rosiano. Os textos de Corpo de Baile parecem bem mais estáticos, de enredo mais simples e mais pobre que os de Sagarana e Grande Sertão: Veredas. De fato, poderíamos resumir os enredos, as efabulações de alguns desses textos em poucas palavras. Isso, a meu ver, não é sem propósito. Se em Grande Sertão: Veredas Rosa vai denunciar a violência sem sentido e a dominação dentro das relações sociais do Brasil na corda bamba entre a Modernidade e o Patriarcalismo; se ali ele abordará o tema do mal e as impossibilidades de se construir um sujeito inteiriço, uno, sem rupturas e contradições, em Corpo de Baile, o autor mineiro vai retratar um mundo que a ânsia desenvolvimentista não conhece e está prestes a destruir. A lentidão com que as coisas aí acontecem e a aparente falta de mudanças (apenas aparente, pois as mudanças ocorrem, para os olhos dos que as saberm ver) são justamente a riqueza de um mundo que nos convida à contemplação da vida e da natureza, que nos convida a um outro ritmo de vida, em que o homem se torna mais completo e não uma mera máquina de trabalho e auto-reprodução. Podese até dizer que o não-ritmo dos acontecimentos do Sertão oferecem, em Corpo de Baile, em oposição à adoração ao progresso sem fim, o resgate da vita contemplativa (ARENDT , 2010) e o posicionamento do homem como ser capaz não apenas de “fazer”, mas de simplesmente “ser”, como defendia o monasticismo cristão dos Padres da Igreja e toda a tradição do Zen-Budismo.

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