Corpo e alma: notas etnográficas de um aprendiz de boxe

June 8, 2017 | Autor: Jorge Villela | Categoria: Anthropology, Mana
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do livro, os dias finais de Leach. Em trecho comovente, relata seu contato silencioso com um Leach já sedado, mas que retinha uma vitalidade que se sentia no calor de suas mãos. Na cerimônia funerária singela, como queria Leach, não foi possível evitar a procissão solene da capela do King’s College ao portão de saída, cuja ordem, Tambiah comenta, Leach – o observador de rituais – teria antecipado: o caixão, a família, o Provost, o Vice-Provost, convidados e fellows por ordem de importância. Aqui, como implicitamente em todo o livro aliás, a biografia de um se torna, em parte, autobiografia do outro.

WACQUANT, Loïc. 2002. Corpo e Alma – Notas Etnográficas de um Aprendiz de Boxe. Rio de Janeiro: Relume Dumará. 294 pp.

Jorge Mattar Villela Doutorando, PPGAS-MN-UFRJ

Não se paga necessariamente o preço da platitude quando se adota o estilo ligeiro e sedutor da escrita. Esta fórmula prosaica poderia estar gravada no pórtico do livro de Loïc Wacquant. Corpo e Alma – Notas Etnográficas de um Aprendiz de Boxe é a etnografia de um ginásio de boxe realizada após um período de três anos de trabalho intensivo de campo em Woodlawn, comunidade afro-americana de baixa renda na cidade de Chicago. Constituído por três textos independentes – mas indissociáveis uns dos outros, tal como enfatiza o autor na apresentação –, o livro é daqueles que podem ser lidos em diversos níveis de profundidade, segundo o interesse específico de cada leitor, apresentando um caráter, por assim dizer, pluridimensional. Portanto, embora esteja

claramente incluído no gênero da etnografia, o livro não é restrito a um público de cientistas sociais e muito menos ao dos antropólogos. O estilo do autor possibilita aos não especialistas um mergulho em uma realidade social que não a sua própria, abrindo portas para o contato com o gênero etnográfico. Sua leveza, contudo, não força a análise a abdicar de sua profundidade e tampouco a descrição a abrir mão de sua densidade. Por outro lado, para os iniciados, Corpo e Alma estimula a reflexão e a renovação de temas clássicos do domínio antropológico, tais como a “produção do corpo”, a “observação participante” e as “relações interétnicas”, as relações entre o microcosmo com o macrocosmo, por exemplo. Ao mesmo tempo que retoma tópicos canônicos, as abordagens são vastamente inovadoras. Veja-se o caso do trabalho de campo. Desnecessário ressaltar o aspecto quase coextensivo existente entre permanência em campo e a constituição da antropologia. Sua afinidade é tal que, desde as últimas décadas do século XIX, mesmo quando não era considerado fator caracterizante do ofício do antropólogo, o trabalho de campo começava a minar os antigos métodos do evolucionismo sociocultural, invadindo os interesses dos próprios antropólogos evolucionistas, produzindo etnógrafos cada vez mais aptos a se assenhorar de seus dados, publicando seus próprios resultados. É bem verdade que alguns antropólogos do final do século XX puseram em crise a observação de campo, colocaram-na entre parênteses como objeto mesmo de reflexão e de dúvida. É verdade, também, que atualmente ela sofre ameaças mais poderosas, porque mais silenciosas e invisíveis, que a diluem e confundem com outros métodos de pesquisa.

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O texto de Loïc Wacquant apresenta uma novidade, patente já no subtítulo. Nele, o observador que descreve se insere ele próprio como objeto e sujeito da observação. As notas etnográficas são, ao mesmo tempo, as de um antropólogo em trabalho de campo e as de um aprendiz de boxeador. Além disso, o etnógrafo elimina a tradicional clivagem entre o “estar lá” da observação e o “estar aqui” da redação descritiva/tradutora. Ao lançar mão de longas passagens de seu caderno de campo, o autor simultaneamente impede-se de falar em nome dos outros e transforma a observação em ato descritivo. Inverte a fórmula tradicional “observação participante”, tornando método a já levantada hipótese de uma “participação observante”. Portanto, o observador torna-se um experimentador; a experimentação, um meio a serviço da observação. Na antropologia, os métodos rendem-se com freqüência, e com resultados positivos, ao objeto que se procura conhecer. Ao definir o aprendizado do boxe, Loïc Wacquant mostra que seu processo se fixa na “fronteira do que é dizível” (:60), não é constituído pela transmissão de noções, que suporia a existência de modelos normativos independentes de sua execução (:61). Por isso, fazer ciência do boxe, esta “arte social”, exige que “mergulhemos nele como pessoa, que nele se faça a aprendizagem e que se viva as principais etapas desde o interior” (:60). Para Wacquant, o boxe é uma prática por excelência, segundo a definição proposta por Pierre Bourdieu (:60). Seria possível dizer, com certa licença, que se trata de um desses processos formadores do que Henri Bergson chamava de “memória contração”, funcionando para além ou aquém da reflexão racional e do domínio da consciência. Ou seja, algo em que aos atos e às práticas não

corresponde nenhuma experiência a eles transcendente; é uma prática cuja lógica “só pode ser apreendida na ação” (:120). Misturando observação e experimentação, campo e transformação, Corpo e Alma trata do processo de produção não apenas do corpo do boxeador, mas também de seu espírito, de um aparelho sensório-motor modificado por práticas cotidianas minuciosas, invisíveis, contínuas, ao mesmo tempo individuais e coletivas, cujos efeitos são imperceptíveis a olho nu. Ou para usar as palavras de Wacquant, “esta natureza particular que resulta do longo processo de inculcação do habitus pugilístico” (:119). Esse é o entroncamento onde emergem as mais interessantes reflexões que o livro traz. Tratado muitas vezes como objeto natural, desde que Marcel Mauss o tornou interessante para as Ciências Sociais, o corpo, na obra de Loïc Wacquant, não é exatamente o alvo de uma progressiva culturalização, mas de uma “remodelação” através das práticas disciplinares do gym (:31). É preciso reconhecer que Wacquant não esclarece esse ponto e oscila entre o corpo desnaturalizado e o corpo como objeto natural, conforme a definição de Mauss, entre a remodelação e a culturalização do corpo. Modeladoras ou remodeladoras, as práticas do ginásio possibilitam uma “conversão perceptual, emocional e mental que se efetua sobre um modo prático e coletivo, sobre a base de uma pedagogia implícita e mimética […] que pacientemente redefine um a um todos os parâmetros da existência do boxeador” (:23). De todo modo, o gym, espaço liminar, “antídoto da rua” (:275), é essa “usina”, esse local “onde se fabricam estas mecânicas de alta precisão que são os boxeadores” (:273). As descrições analíticas da produção do corpo culminam quando o “apren-

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diz de boxeador” sobe no ringue para disputar “o maior torneio amador do Meio-Oeste” (:25), o Golden Gloves, o tema do último dos três textos que compõem Corpo e Alma. Local das misturas, o relato da entrada de “Busy” Louie no ringue conjuga observador, experimentador e observado, observação, descrição e narração, sem solução de continuidade (:271-293). A fronteira entre natureza e cultura não é a única posta em questão e reflexão pelas análises de Loïc Wacquant. Para ele, a produção do boxeador para o “mais individual dos esportes” só é possível através de práticas coletivas, e “oferece uma superação em ato da antinomia entre o individual e o coletivo” (:35), embora em certos casos hesite entre a superação da dicotomia e sua admissão: “o paradoxo de um esporte ultra-individual cuja aprendizagem é completamente coletiva” (:120, ênfases no original). De modo que, ao menos no vocabulário utilizado e nos referenciais teóricos, em diversas passagens, coletivo e individual permanecem em estado de mistura, mas como entidades distintas. O gym continua essencializado, assim como o corpo sobre o qual ele trabalha, funcionando como “comunidade moral”, como “sistema de crenças e de práticas” ao modo de Durkheim, conforme citação do próprio autor (:120). Quanto ao meu elenco de virtudes desta obra, embora mais ou menos evidente, não será ocioso lembrar que ela é um exemplo rico de como a antropologia e, sobretudo, o gênero etnográfico é, ou pode ser em certos casos, um poderoso agente desmistificador de um determinado universo social cujos resultados finais são intensamente difundidos. Os boxeadores profissionais são midiatizáveis o que provoca um semnúmero de discursos sobre o boxe de cunho e objetivos jornalísticos e sensa-

cionalistas. Disso o autor fornece diversas referências ao longo do texto. No caso específico de Corpo e Alma, o alvo da desmistificação é ligeiramente diferente do que aparece em um artigo anteriormente publicado em Mana (2000). Lá, Loïc Wacquant mostra o mundo dos boxeadores (apresentado por eles mesmos) como sendo extremamente negativo. O boxeador como o explorado, como um jogador da loteria, constantemente comparado a um animal de corte, a uma prostituta, a uma vítima do vampirismo dos empresários. Nos artigos que compõem Corps et Âme, o autor apresenta-nos o boxe como um meio de fugir da realidade da rua, como uma possibilidade, como uma arma contra a delinqüência. Da formação do boxeador – inculcação da disciplina, remodelação espiritual, física e mental – ao boxeador profissional, altera-se a relação entre o microcosmo e o macrocosmo. Descrição etnográfica, análise sociológica e experiência literária, Corpo e Alma possibilita ainda ao leitor livrarse dos clichês e do imaginário prêt-àporter criado em torno do universo do boxe.

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