CORPO E CONHECIMENTO – caminhos para o Eu, caminhos para o Sagrado

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INSTITUTO DE YOGATERAPIA CURSO DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES EM YOGA

Kênia Kemp

CORPO E CONHECIMENTO – caminhos para o Eu, caminhos para o Sagrado

Campinas 2016

Kênia Kemp

CORPO E CONHECIMENTO – caminhos para o Eu, caminhos para o Sagrado

Trabalho de conclusão de curso de formação em Yoga apresentado ao Instituto de Yogaterapia de Campinas como requisito parcial para a obtenção do título de Professor de Yoga. Orientadores: Bassoli.

Campinas 2016

Márcio

Assumpção

e

Rosangela

Kênia Kemp

CORPO E CONHECIMENTO – caminhos para o Eu, caminhos para o Sagrado

Trabalho de conclusão de curso para Formação de Professores de Yoga apresentado ao Instituto de Yogaterapia como requisito parcial para a obtenção do título de Professor de Yoga.

Aprovado em: ____ de _______ de _____.

__________________________________________ Márcio Assumpção – Instituto de Yogaterapia (orientador)

__________________________________________ Rosângela Bassoli – Instituto de Yogaterapia (orientador)

ब्रह्म सत्यं जगन्मिथ्या जीवो ब्रह्म इव नापरः Brahma satyaṁ jaganmithyā jīvo brahma iva nāparaḥ O Absoluto (brahma) (é) a Verdade (satyam); o mundo (jagat) é ilusório --nem real, nem irreal-- (mithyā); (e) a alma individual (jīvaḥ) não (é) (na) outra (aparaḥ) que o Absoluto (brahma iva)--isto é, "o jīva não é diferente do Absoluto"--. Śaṅkarācārya

RESUMO Retomando a História do pensamento na Índia e Grécia Clássica, pontua como essas duas Filosofias possuem ter pontos de convergência. Nas obras de autores Ocidentais considerados cânones como Aristóteles e Platão destacam-se prováveis influencias dos textos sagrados védicos. A partir de então, desenvolve uma abordagem histórica onde essas convergências se desfazem para encontrarmos uma visão de mundo atual dentro da qual a cultura Ocidental transforma a prática do Yoga e o contato com a sabedoria védica um terreno de dificuldades interpretativas. Essa dificuldade relacionada a diferentes matrizes de conhecimento reflete nas noções e valores sobre o corpo, a partir do qual construímos nossa relação física com os āsanas ou em outras práticas do Yoga tais como os exercícios respiratórios, a meditação e até mesmo o relaxamento. Entende-se que as dificuldades de adequação a uma cultura diferente tem um impacto para além do corpo, chegando às nossas estruturas de percepção do Eu, e de como lidamos com os sentimentos e nossa relação com o objetivo do Yoga segundo Patañjali, que é a liberação / libertação (moksha) através da relação com o Sagrado.

LISTA DE FIGURAS

Figura 1: localização da chamada “Civilização do Vale do Indo”, que se desenvolveu entre 2600 a 1800 a.C.......................................................................................... 14 Fig 2. Çiva Pashupati, “O Senhor dos animais”......................................................... 16 Fig 3. Divindade de três faces sentada em postura de Yoga. Selo em Terracota da civilização de Mohenjo-Daro ................................................................................ 17 Figura 4 - Vedic Scriptures, por Shri Vaavilala Srinivasa Sharma............................. 22 Figura 5 – A Sagrada Literatura do Hinduismo por George Feuerstein, The Yoga Tradition ............................................................................................................... 31 Figura 6– Mapa da Grécia e suas colônias por volta do ano 500 a.C. ...................... 36

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 7 2 CONHECER E CONSCIENTIZAR O CORPO EM DOIS BERÇOS DA SABEDORIA – ÍNDIA E OCIDENTE ........................................................................ 11 2.1 A GRANDE ÍNDIA, A ORIGEM DOS TEXTOS REVELADOS E LEMBRADOS 12 2.1.1 HINDUÍSMO E RELIGIÃO, DOIS CONCEITOS POLÊMICOS........................ 32 2.2 A GRANDE GRÉCIA, ORIGEM DOS TEXTOS FUNDADORES DA FILOSOFIA OCIDENTAL .............................................................................................................. 35 3 DESDOBRAMENTOS DA GRÉCIA, A HERANÇA DA FILOSOFIA..................... 43 4 O ENCONTRO DE DUAS TRADIÇÕES ................................................................ 50 5 CONCLUSÕES ...................................................................................................... 59 6 REFERÊNCIAS ...................................................................................................... 62 ANEXO A .................................................................................................................. 65 ANEXO B .................................................................................................................. 66 ANEXO C .................................................................................................................. 67 ANEXO D .................................................................................................................. 68

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1 INTRODUÇÃO Ao iniciar esse trabalho uma questão se repetia constantemente, talvez em função das aulas do curso de Formação de Professores no Instituto de Yogaterapia: por que no Ocidente há tanta dificuldade em desenvolver nas aulas de Yoga a relação com a espiritualidade? Por que a procura pelo Yoga entre nós, não indianos, gira apenas em torno do “exercício físico”, os āsanas? Minha própria trajetória pessoal no Yoga é marcada dessa forma. Tive um contato precoce com o assunto ainda em minha infância, quando minha mãe começou a praticar. Não me recordo de vê-la praticando, mas durante toda a vida os livros que ela adquiriu para estudar o assunto me fascinaram, e permaneceram como uma “curiosidade”. Meu contato com a primeira professora de Hatha Yoga foi na UNICAMP quando recebia aulas semanais que me deixaram absolutamente empolgada. Foi marcante quando ela solicitou se algum aluno gostaria de conduzir o relaxamento como ela vinha fazendo, e imediatamente me disponibilizei. Mas não durou muito tempo, apenas meu semestre final enquanto cursava o Doutorado em Ciências Sociais. Dois anos mais tarde é que definitivamente transformei a prática em algo permanente. As aulas de Iyengar Yoga transformaram o fascínio anterior em rotina consistente, e o momento da prática de āsanas em um processo de desvendamento daquilo que parecia ser um “outro” corpo cujas percepções atingiam níveis profundos e guiavam para novas formas de estar em relação com o mundo. Apesar de minha empolgação com o assunto, apenas muitos anos mais tarde, durante um retiro em uma fazenda em Itu, com a presença de um professor indiano, Tattwa é que fui despertada para a importância da prática devocional (bhakti, भक्ति). Até então, o Yoga me empolgava pela prática dos āsanas. Mas aquele retiro e o curso me trouxeram uma nova perspectiva. Me dei conta que não era apenas um salto de qualidade na minha prática física que estava procurando, mas uma forma de compreender, estudar e canalizar toda minha experiência para outro âmbito. Essa questão me levou a refletir em torno de algumas hipóteses de trabalho. A primeira delas é a que segue. A concepção de Eu na Índia está fundada nos Vedas, na relação com o Absoluto (brahma). Por isso, independente da escola onde um indiano aprenda Yoga, o

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trabalho da vida yogue é desenvolver o autoconhecimento e o caminho para a libertação (moksha), como Patañjali anuncia nos Sutras. Por outro lado, a concepção do Eu no Ocidente moderno está fundada no desencantamento do mundo, ou seja, na visão materialista das forças que determinam a relação individuo-sociedade. Um mundo desencantado, segundo Weber é esse onde a lógica racional dos objetivos materiais determinam toda a nossa vida; “tempo é dinheiro”. Assim, entre nós, o trabalho com o corpo é desenvolver autoestima, confiança, determinação, capacidade física e bem estar para enfrentar o cotidiano social. O corpo não é visto como um meio para a vida espiritual. Essa, buscamos nos rituais que fazem parte de nossas crenças, e é um momento exclusivamente de relação com o sagrado, é unicamente mental. A partir disso comecei a delinear o eixo deste trabalho. Procura-se abordar a constituição da individualidade na Índia e no Ocidente. Para tanto, recorre-se a um quadro comparativo entre a sabedoria védica e a filosofia ocidental. Esse trajeto parte de um ponto de vista histórico. A origem da civilização védica no Vale do Rio Indus e seu legado, e a origem da civilização grega clássica. Ambas culturas e saberes são exatamente aqueles com os quais todo praticante de Yoga no Ocidente precisa lidar e interpretar ao entrar para o campo das práticas relacionadas ao Yoga. A grande dificuldade para todos, parece ser como adequar informações, conceitos, uma visão de mudo enfim que vem de um referencial cultural distinto. Assim, o desenvolvimento deste trabalho vai para além de trazer uma história da Índia e uma história da Filosofia Ocidental. Trata-se da cognição do EU. E como esse processo de cognição interfere em nossa imersão no universo do Yoga. Praticar āsanas, pranayamas, meditação, auto estudo, enfim, tudo que está envolvido com essa prática exige esse esforço de incorporar novas lógicas de mundo, novas lógicas de corpo. É dessa perspectiva que aqui se coloca o autoconhecimento como fator decisivo sobre o qual pouco se reflete durante o desenrolar das aulas ou mesmo de uma prática pessoal. Trata-se neste texto, da tentativa de compreender como duas matrizes sobre a compreensão de Eu, podem interferir diretamente no desenvolvimento de tais práticas para todos os níveis de praticantes.

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Não temos consciência dessas matrizes o tempo todo, mas elas jazem como estruturas a partir das quais passamos a constituir um novo horizonte à medida em que avançamos, seja no ato físico dos āsanas, seja no momento do mergulho interior no momento do relaxamento e da meditação. Dessa forma, o conteúdo deste texto pretende, através da retomada das duas matrizes culturais que aproximamos no Yoga, que são a Índia e a Grécia, perceber como esse processo, mais ou menos consciente e explicito para cada praticante, mas especialmente decisivo para aqueles que passam pela formação como professores-instrutores, pode ser crítico. A referencia à “Grécia” é na verdade muito mais figurativa, para fazer referencia a origem do mundo de conhecimento como herdamos. Este trabalho não pretende uma revisão e analise detalhada de todo o pensamento grego, mas apenas daquilo que nos permite orientar a discussão como colocada anteriormente. Dessa forma, entende-se que os gregos se desenvolveram dentro de tais condições históricas que seu conhecimento correspondia, ao mesmo tempo em que gerava, uma visão de mundo e saberes capazes de atravessar diferentes períodos históricos como o domínio do Império Romano, o período feudal e o início do mercantilismo colonial, sendo transportado por pensadores e movimentos culturais que desembocaram no Renascimento. Este por sua vez, o gigantesco movimento alimentado pela cultura greco-romana e por razões históricas conhecidas, todas as culturas ocidentais são herdeiras desse berço cultural. A Índia por sua vez, “surge” no nosso horizonte histórico como o lugar onde nossos colonizadores buscavam especiarias. Pouco conhecemos sobre sua herança, no que diz respeito a currículos escolares, informações da mídia e até mesmo em contatos quotidianos, se comparado ao mundo grego. Essa Índia surge assim através desses “outros” diferentes, exóticos, as vezes transformados em estereótipos, e portanto, antropologicamente falando, em desconhecidos. Por isso o resgate neste texto de um pouco da História, na tentativa de dar referenciais para o quadro comparativo das duas culturas como necessárias para a trajetória dos praticantes de Yoga.

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Para isso, destaca-se alguns eixos que devem orientar a leitura no desenvolvimento dos capítulos, quais sejam, em primeiro lugar como cada cultura construiu através de seus saberes a legitimação do que é considerado valido e verdadeiro para o conhecimento; em segundo lugar, o corpo como local de compreensão do eu e sua a relação com o sagrado e com o mundo empiricamente observável; e finalmente, o corpo como local de compreensão do indivíduo em relação às forças materiais da sociedade, ou seja, como esta impõe e modela um corpo adequado às suas condições históricas. Assim, a Índia é apontada aqui como o lugar onde o conhecimento parte da afirmação do “eu sou” como resultado da compreensão do Absoluto, com o divino, ou sagrado. E a Grécia como origem do conhecimento do “eu sou” como resultado da compreensão das forças materiais da sociedade. Quais então seriam as soluções para cada Eu. Como o trabalho do Yoga e o trabalho das práticas de exercício físico do Ocidente divergem ou confluem.

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2 CONHECER E CONSCIENTIZAR O CORPO EM DOIS BERÇOS DA SABEDORIA – ÍNDIA E OCIDENTE Yoga is part of the larger tradition of the Veda whose central focus is selfknowledge. According to it, the view that we are only our physical selves is not only incorrect but source of our misery. Once we know our true nature, we become capable of experiencing the most wonderful happiness. Yoga é parte da grande tradição do Veda cujo foco central é o autoconhecimento. De acordo com ele, a visão que somos apenas os nossos corpos físicos não é apenas incorreto, mas fonte de nossa miséria. Uma vez que conhecemos a nossa verdadeira natureza, tornamo-nos capazes de experimentar a felicidade mais maravilhosa. (Subash Kak, no Prefácio de “Yoga Tradition”, Georg FEURSTEIN. Tradução pessoal)

Voltar para tempos históricos remotos não significa necessariamente um afastamento de nossa realidade presente. Somos herdeiros de tradições, adaptações, transformações culturais que podem ter sido tênues ou mesmo radicais. O conhecimento atual sobre o Humano é resultado do conjunto de saberes que foram construídos ao longo de nossa história em todas as culturas. Mas nem todos eles são significativos para o modo de vida que rege nossas condutas. Definitivamente o chamado “berço greco-romano” permanece como um referencial majoritário uma vez que foi decisivo na criação das ciências modernas e da Filosofia como pano-de-fundo do cenário onde se desenrola todo o debate sobre nossas instituições e a construção dos processos sociais que orientam nossas condutas atualmente. Na cultura ocidental, herdeira desse referencial, recebe-se informações e transmitese conteúdos que transformam o debate grego em algo sempre atualizado, pois incorporado ao nosso dia-a-dia. Como se trata de um universo de saberes muito amplo,

destaca-se

como

eixos

importantes

dessa

herança

neste

texto,

especialmente as ideias fundadoras sobre a lógica e os processos de construção do conhecimento humano, e sobre anatomia e funcionamento do corpo humano. Ou seja, como nossa visão de mundo e as categorias de compreensão são tornadas válidas ou não, e todas as ciências da saúde que abordam o corpo humano. Quando praticamos Yoga, são exatamente esses dois referenciais de conhecimento e julgamento de valores que precisam ser equacionados, mas dentro de uma lógica

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e um corpo de conhecimento bastante distintos do ambiente familiar à cultura Ocidental. Quando os comandos durante uma aula de Hatha Yoga conduzem a uma perspectiva onde o corpo e a mente precisam ser aspectos integrados e coerentes, coloca-se o cenário do que pode vir a ser uma imensa dificuldade para muitos praticantes e alunos iniciantes. É neste momento, onde respirar e perceber o tempo do movimento do corpo não pode ser diferente dos pensamentos e emoções, uma vez que a ansiedade ou o fato de não estar “presente” parece transformar esse simples ato em algo que deveria ser natural para uma atitude “difícil”, “complexa” que pontuamos como emblemático desse processo de adequação a uma “outra” cultura. No pensamento Ocidental, praticar fisicamente o corpo é uma atitude autônoma e “naturalmente” diferente de entrar em contato com emoções, pensamentos ou tentar controlá-los. Por isso a perspectiva deste capítulo é abordar a herança dos povos que nos legaram o conhecimento sobre o Hatha Yoga e estabelecer paralelos, injunções, coincidências que possam dar sentido às herança culturais de mundo da qual estamos munidos quando ingressamos nesse terreno. Índia e Grécia surgem como horizontes possíveis em nossa bagagem para encontrarmos no final o território sobre o qual se desenrola nossa prática do Yoga, que é o “tapetinho”.

2.1 A GRANDE ÍNDIA, A ORIGEM DOS TEXTOS REVELADOS E LEMBRADOS É sabido que a civilização hindu e todo seu registro documental de conhecimento através de textos como o Veda, Bhagavad Gita e Mahabharata são bem anteriores historicamente as civilizações europeias e o berço filosófico ocidental, que é a Grécia. Em termos comparativos, os historiadores e decodificadores dos antigos textos sagrados da Índia, atribuem a primeira obra do chamado “período védico”, ao ano de 1400 a.C aproximadamente com o Rig Veda. Apesar de ter sido escrito entre 1200 e 600 a.C., o Rig Veda já era uma obra composta de vários hinos em homenagem a deuses arianos transmitidos oralmente muitas gerações antes de ter sido codificado. O conjunto da civilização do vale do Rio Indus remonta a aproximadamente 2500

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a.C. Já os textos do historiador grego Homero conhecido por sua “Epopéia”, “A Ilíada” e “A Odisséia” datam de 750 a.C. Existe um grande debate entre historiadores sobre a origem da cultura védica, e sua influencia no que passou a ser chamado de Hinduísmo. Até o início dos anos 2000 era sustentada a tese segundo a qual os povos dravidianos, autóctones da península Índica, teriam sido colonizados por povos invasores de origem europeia, os arianos. Esses povos teriam trazido novas tecnologias como a metalurgia e o conhecimento que teria possibilitado séculos mais tarde a escrita dos livros sagrados. Alguns autores sugerem que o sistema de castas teria sido organizado pelos arianos. Esse período conhecido como a “Era de Bronze” da história da Índia, foi marcada pela divisão do território em dezesseis cidadesEstado conhecidas como Mahajanatos. Essa tese da invasão ariana como único fator que possibilitou o imenso desenvolvimento cultural da civilização hindu hoje é considerada eurocêntrica, e datada do século XIX serviu para justificar a pretensa superioridade dos povos que deram origem aos textos bíblicos em relação aos sagrados textos védicos. O próprio termo “arianos” para designar os povos nômades, que com a invenção dos carros com tração animal passaram a ocupar vários territórios a partir de 1800 a.C., há uma enorme controvérsia. A palavra “arya” aparece nos textos védicos em sânscrito e segundo especialistas, era uma autodenominação para povos vindos do Irã. Mais tarde, essa denominação ganhou outro significado que seria “nobreza”, também uma autodenominação para diferenciar na hierarquia social grupos de pessoas que ocupavam posições de privilégios e poder, na chamada civilização védica (Swami Sunirmalananda, 2008). Já no século XIX da era cristã, o “arianismo”, um movimento que tenta resgatar a origem genética dos povos europeus, atribui sua origem biológica aos povos nórdicos e combina ideologias de superioridade racial com interpretação histórica. Esse movimento gera reações contrárias, adeptos, radicalismos de toda ordem e prioriza a questão genética ao invés do legado cultural dos vários povos que sucessivamente construíram a história em uma imensa região que abrange todo o continente europeu se estendendo até o leste nos limites do que hoje é a China.

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Achados arqueológicos estudados e publicados em um livro de 1982, trazem uma nova versão aos fatos e passam a reforçar a tese que hoje é sustentada por vários indólogos1 que defendem que a chegada dos nômades arianos encontrou uma civilização já muito avançada. O autor mais conhecido, Georg Feuerstein afirma inclusive que povos dravídicos e arianos teriam erigido, concomitantemente a grande civilização hindu. Essa civilização entra em colapso logo mais ou menos 400 a 500 anos após a chegada dos arianos. Há controvérsias mas muitos admitem que isso se deveu a seca do Rio Sarasvati cuja existência real ainda não foi totalmente comprovada, mas aparece registrado nos Vedas2. Sua localização de acordo com as escavações arqueológicas, situa-se em um território que hoje corresponderia parte ao Paquistão e parte a Índia propriamente dita, conforme mostra a figura abaixo.

Figura 1: localização da chamada “Civilização do Vale do Indo”, que se desenvolveu entre 2600 a 1800 a.C. Fonte: Encyclopedia Britannica Kids, disponível em >http://kids.britannica.com/elementary/art-89036/The-Indus-Valley-civilization-occupied-land-inwhat-is-now>, acesso em 29 Julho 16 17:30. 1

Termo muito utilizado para se referir àqueles que tomam a Índia e sua herança histórico-cultural como objeto de estudos. 2 Algumas pesquisas recentes com imagens de satélites retomam a possibilidade da existência real do Rio 2 Algumas pesquisas recentes com imagens de satélites retomam a possibilidade da existência real do Rio Sarasvati. Mesmo que sua extinção tenha ocorrido há muitos séculos em um período de intensas mudanças climáticas, seu leito seco pode ser percebido, como nas imagens da reportagem de Archaeology online em , acesso em 31 Julho 16, 09:55

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No livro de Georg Feurstein, “A Tradição do Yoga”, explica que a “Era Védica” pode ser datada entre os anos de 4500 – 2500 a.C. O estudo da história da grande e antiga civilização que se desenvolveu na península índica desde sempre foi comprometida pela ausência de “documentos históricos”. Apesar de ser uma civilização letrada e intelectualmente profícua, não há registros do que compreendemos como História, e sequer a presença de algum intelectual historiador como o grego Heródoto, o helênico Polibus, os romanos Tucidides ou Livy, como observa o matemático e historiador D. D. KOSAMBI. A explicação de KOSAMBI se fundamenta na ausência de preocupação com a realidade material e o imenso desenvolvimento espiritual daquela civilização. O autor afirma que todos os documentos antigos indianos que sobreviveram são estritamente religiosos e ritualísticos e que o desconhecimento por parte dos escritores das características da estrutura social da época leva a tentativa de extrair história a resultados que podem ser nulos ou conclusões absurdas que devem ser lidas apenas como a maioria das “estórias” sobre a Índia. (KOSAMBI, p.15, 2008)3. Nenhum tipo de relato quotidiano é encontrado por historiadores, que procuram evidencias como documentos governamentais de antigos príncipes, correspondência entre governantes de diferentes cidades. Tudo que foi deixado de legado pelo período da chamada “civilização védica” é o conjunto de “textos sagrados”, que para efeito das exigências da historiografia científica ocidental, não são considerados como válidos enquanto prova do que “realmente aconteceu”. De acordo com referencias astronômicas encontradas no Rig-Veda a maior parte dos hinos teria sido composta no quarto milênio a.C., ou até mesmo no milênio anterior. Pesquisas recentes afirmam que não houve uma “invasão ariana” de estrangeiros que teriam trazido influencias aos povos védicos, mas antes, que os povos védicos já estavam presentes na Índia na época do florescimento da chamada “civilização do Indo”. Somados aos vestígios arqueológicos é possível afirmar que essa civilização não se opõem ao universo cultural que é retratado nos hinos védicos. Assim o autor propõe 3

texto disponível em , acesso em 06 de Julho de 16, 23:02

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que os estudiosos são “obrigados a concluir daí que os habitantes de Harappa e de Mohenjo-Daro, bem como centenas de outras cidades que se erguiam nos vales do Indo e do Sarasvati, por um lado, e os arianos védicos, por outro, eram um único e o mesmo povo”. (FEURSTEIN, p.103). Podemos encontrar essa teoria sendo disseminada no meio científico brasileiro, em um artigo publicado no ano de 2013. O autor reforça a informação sobre a revisão atual a respeito da origem do conhecimento sagrado que deu origem ao Yoga, e apresenta ilustrações e fotos de objetos arqueológicos que nos permitem compreender o contexto histórico do surgimento da civilização hindu e os vestígios mais antigos das práticas relacionadas ao Yoga. Embora existam diferentes teorias sobre a miscigenação entre as duas culturas, a imposição pela força parece ser a mais lógica, já que um dos textos litúrgicos de maior importância do hinduísmo, o Rig Veda, descreve a luta entre os lentos carros de boi do povo autóctone (drávidas agricultores) e os ágeis carros de guerra dos arianos, puxados a cavalo nos combates entre os dois povos (p.3-6)3. Embora as escavações arqueológicas feitas em Mohenjo Daro e Harappa, duas grandes cidades indianas pré-arianas do Vale do Rio Indo, tenham preenchido algumas lacunas de conhecimento, as incertezas e contestações ainda predominam. Essas cidades apresentavam um nível de organização urbanística impressionante, inclusive com sistemas separados de aquedutos de água limpa e rede de esgoto, sem paralelo em outras culturas da mesma época. Alguns sinetes de barro encontrados na cidade pré ariana de Mohenjo Daro mostram gurus semelhantes às da divindade Çiva, o patrono do Yoga, em postura de lótus, uma das mais importantes posturas de meditação e outros em posturas utilizadas até hoje entre praticantes de Yoga (Figuras 1 e 2). Isso não representa uma prova definitiva, mas reforça os indícios do Yoga ter sua origem na própria cultura indiana pré-ariana. Uma coisa ao menos parece evidente – as práticas psicofísicas do Yoga não apareceram em nenhuma outra cultura indo europeia fora da Índia, o que aumentam as probabilidades desses conhecimentos serem originários dos povos dravídicos autóctones e não dos arianos invasores. (DEVEZA, 2013, p.205)

Fig 2. Çiva Pashupati, “O Senhor dos animais” (Fonte: Allchin B, Allchin R. The rise of civilization in India and Pakistan. Cambridge World Archaeology, p. 211)

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Fig 3. Divindade de três faces sentada em postura de Yoga. Selo em Terracota da civilização de Mohenjo-Daro (Fonte: Disponível em: http://flickr.com/photos/28433765@N07/3231796696)

Na citação anterior fala-se sobre duas cidades da Índia, Monhenjo-Daro e Harappa, que podem ser localizadas conforme a Figura 1. Trata-se de cidades muito antigas, cujas escavações arqueológicas têm revelado um importante desenvolvimento material da civilização mais antiga da Península Índica como vemos a seguir: Harappa era uma cidade da civilização Hindu que floresceu em torno de 2600 a 1700 a.C. no Sudoeste da Asia. O harappanos utilizavam os mesmos tijolos de tamanho e pesos padronizados que foram usados em outras cidades do Indo: como Mohenjodaro e Dholavira. Essas cidades foram bem planejadas com ruas largas, poços públicos e privados, drenos, plataformas de banho e reservatórios. Uma de suas estruturas mais conhecidas é a Grande banho de Mohenjodaro. Havia outras culturas altamente desenvolvidas em regiões adjacentes de Baluchistan, Ásia Central e Índia peninsular. A cultura material e os esqueletos do cemitério Harappa e outros sítios testemunham uma mescla contínua das comunidades, tanto do oeste como do leste. Harappa foi construída antes do florescimento do que nós chamamos a antiga civilização Hindu, e continua a ser uma cidade viva hoje. (A Brief Introduction to the Ancient Indus Civilization, , acesso em 27 de Maio de 2016, 16:51. Tradução nossa.)

Os vestígios urbanos dessa civilização tiveram como conteúdo de valores a preocupação em codificar, sistematizar e registrar o conhecimento psicoexistencial acumulado. A existência de um conjunto de textos sagrados da tradição védica, que remonta a um período muito anterior a qualquer civilização europeia, sugere que eles tenham sido em alguma medida uma fonte de conhecimento para muitos povos que direta ou indiretamente tiveram contato com essa civilização.

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Esse período da formação e desenvolvimento da civilização harappana coincide com o que se aceita para a linha histórica da origem do Yoga como “Yoga Protoclássico”, (INSTITUTO DE YOGATERAPIA, Apostila no. 1). O mundo antigo carecia de formas sofisticadas de comunicação, mas as guerras e as rotas comerciais sempre colocaram em contato um grande numero de povos e suas culturas. Atualmente podemos repensar as ideias que nos levam a supor uma total autonomia do conhecimento desenvolvido por todas as antigas civilizações. Um grande conquistador da Macedônia, conhecido em nossa história como Alexandre o Grande, realizou campanhas de conquista de povos asiáticos entre os anos de 256-323 a.C. No verão de 327 Alexandre marchou para o Punjab e o Vale do Indo. No ano seguinte, seu primeiro filho morreu na Índia. No norte da Índia, Alexandre derrotou os exércitos do rei Porus. Impressionado com sua bravura e nobreza, Alexandre restabeleceu Porus como rei e ganhou sua lealdade. Continuando o seu progresso em direção ao leste, Alexandre chegou ao Ganges, onde seus exércitos se recusaram a ir mais longe, e depois de 2 dias de luta Alexandre regressou. O exército voltou para o oeste ao longo do Indus, mas quando Alexandre ficou gravemente ferido ao lutar com os ferozes guerreiros Malli, seu exército estava sobrecarregado com tristeza. Eles aplaudiram sua recuperação, e todas as animosidades foram perdoadas. (extraído de Encyclopedia.com em: )

Muitos autores têm sugerido atualmente que a antiga civilização que se desenvolveu na Península Índica possa ter influenciado governantes, pensadores e religiosos em civilizações como a egípcia, a chinesa e a grega. K. M. Panikkar, (Apud LÚZIO, s/d, p.5) sustenta que a Península mantinha um importante comercio com embarcações romanas vindas do Egito, e que escavações arqueológicas comprovam a rota comercial nessa época entre o Mediterrâneo e os Estados do sul do subcontinente indiano. Existe uma tendência a pensarmos as culturas muito antigas como entidades autônomas, totalmente distintas e que teriam desenvolvido uma visão de mundo e técnicas autóctones. Por isso a tendência até hoje em distanciarmos Ocidente de Oriente. Se por um lado, não há duvidas mesmo para um observador leigo que nossas culturas ocidentais têm mais pontos de conflito do que inflexão com as culturas orientais, por outro é interessante como tem sido resgatada a capacidade de alcance de certos aspectos culturais, que se disseminaram possibilitando o

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surgimento de conjuntos de ideias e técnicas produtivas que são resultantes da riqueza dos encontros de diferentes povos. Além disso, mesmo com meios de comunicação e transporte muito menos desenvolvidos que os nossos atualmente, os contatos sempre fizeram parte de interesses de guerra e dominação de um povo sobre outros, como pela necessidade de estabelecimento de relações comerciais. Imperadores, exploradores e viajantes, religiosos que migravam em busca da vida missionaria, representantes de governantes fossem burocratas ou militares, comerciantes sagazes. Tenham ou não deixado um relato como o caso de Marco Polo ou Alexandre o Grande, representam um movimento de encontros entre tradições e culturas que aprenderam e mantiveram dessa influencia aquilo que consideravam mais importante para seus povos. A chamada “Rota da Seda” que atravessava uma imensa quantidade de territórios ligando a China a Turquia para chegar a Europa pode ser um exemplo para lembrarmos que o isolamento total é muito mais uma projeção para que possamos dar legitimidade e criatividade às nossas próprias heranças culturais do que propriamente uma realidade histórica. Por isso compreendo que o vasto e profundo conhecimento da cultura védica, por ser razoavelmente mais antiga do que todos os outros “berços” civilizatórios da humanidade, deve ter influenciado em medidas e proporções que infelizmente jamais poderemos resgatar com precisão, todas as outras civilizações que com esse povo tenham mantido contato. Ainda, se considerarmos que os textos sânscritos carregam conhecimento de ordem tanto científica quanto filosófica e de investigação sobre a existência humana e sua forma de relação com o Absoluto4, é inegável que se tratou de uma civilização seminal. Minhas leituras baseadas na Filosofia grega sofreram uma reinterpretação à luz do conhecimento sobre o Vedanta e os livros sagrados, como detalharei melhor adiante. É inegável a presença de elementos da ordem do pensamento lógico e seu conteúdo que passam a pontuar a obra dos clássicos gregos, de forma menos concisa, menos precisa, mas igualmente orientada a pensar a relação do homem com a transcendência, e mesmo a relação do homem com seu corpo físico. 4

- Denomino de “Absoluto” a existência de uma realidade primeira que poderia também ser chamada de “Divino” ou ainda “Sagrado”. Essa realidade primeira é anterior ao mundo material como conhecemos, sendo a causa de sua origem e regras de funcionamento.

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O grande conjunto de textos sagrados que formam a base do conhecimento védico pode ser organizado cronologicamente como segue. A chamada “Era Védica” remonta de 2000 a 3000 anos a.C. ou mesmo anteriormente. Denomina-se Vedas o conjunto das mais antigas escrituras sagradas encontradas como obra dessa civilização. A palavra Veda em sânscrito significa conhecimento, e essa obra fundamenta toda a cultura que se desenvolveu nesse período e permanece até os dias de hoje como fundamento religioso para de bilhões de indivíduos. Além disso, é baseado em seus preceitos e conhecimentos que Patañjali registra a primeira obra histórica sobre o Yoga, os Sutras. Os quatro livros do Veda têm uma origem remota como aponta Campos Neto (2009) na introdução de seu artigo. A primeira versão em papel dos Vedas provavelmente tenha sido no século II a.C., quando o povo hindu desenvolveu um sistema de escrita. Segundo lendas e historiadores, eles teriam sido organizados por Vyasa, um sábio que seria a encarnação de Vishnu, deus que, em todos os ciclos de criação e destruição do Universo, tem a função de elaborar as escrituras em número de quatro livros, cujo intuito é o de garantir que os cânticos se propaguem e se eternizem. Vyasa seria responsável por outros textos sagrados do Hinduísmo como o Mahabharata que foi ditado por ele a lorde Ganesha, o deus com cabeça de elefante, o qual teria transmitido as palavras para o papel. Historiadores indianos e especialistas em História da Índia contam que são estimados que os quatro Vedas – RigVeda, YajurVeda, SamaVeda e AtharvaVeda – teriam sido compilados entre 1490 e 900 a.C.; todavia, qual seja a sua origem é nos textos védicos que estão os principais conceitos e símbolos do Hinduísmo como, também, os deuses, as lendas e os ensinamentos que lhe dão forma e unidade à Religião.

O primeiro livro registrado teria sido o Rig Veda, que deu origem a dois outros, Yaur Veda e Sama Veda; há ainda o Atharva Veda que pode ser anterior ou simultâneo ao Rig Veda. Aranyakas e Upanishads, além do Ayur Veda datam do chamado período “Pós Védico” e completam a lista. Entre os estudiosos da tradição, muitos fazem uma distinção entre os chamados “textos revelados” ou “shruti”, e os “textos lembrados” ou “smriti”. Shruti é um texto canônico, que consiste de revelação e verdade inquestionável, e é considerada eterna. Refere-se, principalmente, ao Vedas. Smriti é um texto complementar e pode mudar ao longo do tempo. É autorizado apenas na medida em que está em conformidade com a base de shruti.

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A revelação é uma “categoria essencial no domínio religioso, pois todas as religiões se entendem a si mesmas como reveladas” segundo Borges (2012, p. 10). O autor esclarece que as revelações “não caem do céu” como se pensa de maneira simplista. Trata-se, segundo ele de um processo que envolve lógicas de compreender a realidade, que podem estar pautadas para toda uma comunidade que podemos denominar crentes, na relação com o sagrado. Enquanto para outra parte da sociedade, a lógica empírica é suficiente. Borges explica que há uma realidade única para crentes e não crentes, mas os primeiros são levados pela convicção de que a realidade empiricamente perceptível não é o limite, e assim são levados a compreender que existe uma Presença implicada no que vê. Os não crentes por sua vez exigem comprovação e não aceitam algo que se “percebe” sem ser tangível. Citando Andrés Torres Queiruga, conclui que “não se interpreta o mundo de uma determinada maneira porque se é crente ou ateu, mas é-se crente ou ateu porque a fé ou a não crença aparecem ao crente e ao ateu,(...), como a melhor maneira de interpretar o mundo comum.” (op. Cit.). A partir de uma experiência religiosa de fundo por parte do profeta ou fundador religioso, desencadeia-se um processo vivo de aprofundamento, depuração e tentativas de maior compreensão da relação com o Divino, que dá origem a tradições religiosas ou religiões e que acaba por ganhar expressão e sedimentar em livros sagrados, considerados “revelados”. (idem, p. 11)

Conclui-se que o surgimento de textos revelados na tradição védica, envolvem não necessariamente um profeta, mas gerações sucessivas de estudiosos que transmitem um mesmo conhecimento até que ele seja codificado e transformado em um documento textual. Para compreensão do surgimento dos textos ao longo do tempo e sua divisão entre canônicos e lembrados, é possível encontrar uma sistematização como a que segue.

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ESCRITURAS HINDUS Shruti Rig, Yaur, Sam, Atharva Vedas



Samhitas Brahmanas Karma Kanda

Upa Vedas Ayur Dhanur Gandharva Shilpa or Stahapatya





Aranyakas

Upanishads

Gyana Kanda

Upasana Kanda











Smurti

Vedangas

Darshanas

Shastras

Agms

Puranas

Shiksha Chhanda Vyakama Nirukda Jyotisha Kapla

Vaisheshika Nyaya Sankhya Yoga Minasa Vedanta

Niti Smrutis

Shakta Sahiva Vaishnava

Ramayana Mahabharat





Geeta

Figura 5 - Vedic Scriptures, por Shri Vaavilala Srinivasa Sharma. Adaptada do original disponível em Vaachaspathi Veda Vidya, . Acesso 30 Julho 16, 12:30

Considerando a grande produção de textos, surgiu ao longo do tempo escolas que se dedicaram ao estudo e interpretações muito próprias. Isso possibilitou a criação de especializações, subdivisões e tendências, ao aceitar ou negar influencias e novos autores (ver ANEXO A). Sobre o conteúdo desses textos sagrados, há temas e objetos pertinentes a todos os aspectos da experiência de vida em sociedade como por exemplo informações sobre valores pessoais, conceitos filosóficos, injunções práticas, história e mito, orações e mantras, detalhes da adoração / liturgia, várias artes e ciências5. Para ilustrar ainda mais sua abrangência, os seis textos do Vedanga são organizados de acordo com a necessidade de manutenção das tradições védicas. 5

Publicado eletronicamente por ISKCON Educational Services, na página Heart of Hinduism. Texto disponivel em , acesso em 29 de maio de 2016, 18:25.

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Mesmo que muito de sua integridade possa ter sido modificada ou perdida ao longo do tempo, bem como a exigência com suas disciplinas e estudos, esses textos não deixam de revelar o empenho dos mestres que ao longo dos séculos se dedicaram a eles. O Siksha se debruça sobre o estudo dos sons e pronuncias associadas a cada silaba; Chhanda com a maestria da rima e da métrica; Vyarkarna se dedica ao estudo da palavra e estrutura das sentenças; Jyotisha com o estudo dos corpos celestes de forma a apontar datas auspiciosas para os rituais; e Kalpa com os procedimentos éticos, morais e preceitos associados aos rituais como um modo de vida.6 Sobre essa fase arcaica da tradição do povo hindu, não fosse pelos textos registados em sânscrito, não haveria qualquer vestígio material das práticas do Yoga. O que manteve viva a tradição foi a relação entre os mestres, os Gurujis e Swamis7 e seus aprendizes. Muitos autores ressaltam que a história do Yoga tem sido constantemente reconstituída muito mais pelo que a tradição relata, do que propriamente por documentos. A datação dos textos sânscritos considerados “revelados” são os mais antigos, e os “lembrados” fazem parte da tradição oral pois são constantemente acrescidos de comentários de mestres. Sobre essa relação entre os textos revelados e os “lembrados”, ambos os conjuntos fazem parte do estudo das filosofias hindus bem como do aprofundamento das práticas do Yoga. Tradicionalmente a relação entre mestres e aprendizes tem mantido a leitura, interpretação e adoção de estilos de vida vivos ao longo de gerações. Tal conjunto de conhecimento, dada a linguagem arcaica muito peculiar,

6

Texto disponível em HINDUWEBSITE.COM , acesso em 30 Julho 16, 18:10 7 Apesar de parecerem bem semelhantes, os termos “Guru” e “Swami” possuem diferenças, mas o uso dos termos é polemico e parece confuso as vezes. Em minhas pesquisas pude encontrar a afirmação de que Guru é alguém que recebeu instrução espiritual e se expõe ao público, se tornando um guia, um professor; enquanto Swami tem a mesma instrução mas permanece recluso (Pujya Guruji em vídeo disponível em inglês < https://www.youtube.com/watch?v=YY5t4B9JY0o>. Já em WIKIPEDIA, há um extenso texto bem referenciado onde lemos: “No Hinduísmo, o guru é considerado uma pessoa respeitada com qualidade de um santo que ilumina a mente do seu discípulo, um educador de quem se recebe um mantra iniciatório, e aqueles que instrui os rituais e cerimônias religiosas.” , acesso em 29 Julho 16, 09:48. Mas o uso corriqueiro se faz com poucas diferenças, e muitos professores afirmam que “qualquer um pode ser um Swami”, contanto que não precise mais ser guiado, pois já é um guia de si mesmo, enquanto Guru e discípulo se refere a uma relação, como entre pai e filho, no texto de Swami Balendu, disponível em < http://www.jaisiyaram.com/blog/guru/3039-what-is-a-swami-and-why-is-a-guru-different-7-sep-09.html>, acesso em 29 Julho 16, 09:00.

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bem como o estilo, exige a presença de um comentarista habilitado. Como explica Lilian C. GUGELMIN Aliás, a prática do comentário ao texto é parte da cultura sânscrita, ao menos no que concerne aos textos de caráter " técnico" , aqueles que descrevem uma teoria ou ensinam algo a alguém: da medicina à arte de domar elefantes, da cerimonialística à gramática, todos os tratados sânscritos receberam comentários e elucidações posteriores. Isto porque, devido ao caráter eminentemente oral da cultura sânscrita, os saberes essenciais foram sintetizados em frases extremamente concisas, os sûtra, que deveriam ser memorizadas e recitadas por todos os aprendizes, e transmitidas oralmente, apenas de mestre para discípulo, ao longo das gerações. (Esta prática milenar é até hoje muito valoriza da na Índia: nenhum pandit ou sábio é digno deste título se não for capaz de repetir de cor, integralmente e em sânscrito, os tratados fundamentais de sua área de conhecimento.) Cada sûtra de que se compõem estes tratados constitui, portanto, um conceito ou corpo de ideias reduzido ao máximo, que, como numa fórmula matemática, representa uma conclusão sintética de determinada teoria e de seus experimentos, e não o caminho percorrido pelo raciocínio até tal conclusão; este deve ser recuperado na exposição oral do texto pelo mestre. (GULMINI, p.596)

A necessidade da relação estreita entre mestres e aprendizes na tradição védica não parte de uma relação institucional que tenha sido construída a partir da simples hierarquia e menos ainda da necessidade da manutenção dos dogmas, como nas religiões judaico-cristãs. Em Tattvabodhaḥ, o conceito de sraddha (Śaṅkarācārya: 2006, p.37) explica que o elo dessa relação se encontra no que podemos traduzir como confiança. Śri Śaṅkarācārya explica que essa confiança envolve uma multiplicidade de aspectos como o reconhecimento da capacidade de ensino pelo mestre; a audição atenta às lições que não se converta em mera aceitação, mas em entendimento; deixar que as duvidas surjam e sejam resolvidas. Além desses preceitos orientarem a relação mestre e aprendizes, o aprendiz deve estende-la também ao Vedanta. Por fim, Śri Śaṅkarācārya explica que para objetos o conhecimento pode ser obtido através de uma via dupla que seria a percepção associada ao processo lógico de dedução. Mas, observa, Vedanta não é um objeto e sim um “meio de conhecimento na forma de palavras que revelam a natureza livre de limitação do sujeito” (Śaṅkarācārya: 2006, p.39). Vedanta se refere a parte final dos Vedas e trata do autoconhecimento (Śaṅkarācārya: 2006, p.10). O uso do termo se disseminou até os dias de hoje através de interpretações que lhe atribuíram múltiplos significados. Alguns preferem definir Vedanta como estritamente filosófico, outros acentuam seu caráter

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predominantemente religioso. Há ainda muitas referencias que não distinguem entre filosofia e religião, igualando ambos na definição de Vedanta. Como todo o conhecimento construído pela civilização védica e registrado através de textos que são sagrados, mas não usam a palavra religião, e que têm uma lógica de aprofundamento do saber, mas não usam a palavra filosofia, tentamos aproximar de nossa compreensão linguística e cultural. Isso provoca a tentativa de aproximação de termos e conceitos, que para fins ilustrativos cumpre seu proposito, mas que induz a rigor a mais equívocos e pode colaborar para a perpetuação dos lapsos, muito mais que para as pontes entre Ocidente e Oriente. Por isso, alguns estudiosos contemporâneos de Vedanta como é o caso de Jonas Masetti, concluem que Vedanta é ciência ou filosofia? Se não é proposto um sistema de crenças poderíamos concluir que é um estudo científico ou filosófico, porém esse também não é o caso. Eles têm como base a experiência dos objetos, mas não é possível elaborar teorias sobre algo que não seja tangível à percepção. A nossa realidade percebida é a base da ciência e do pensamento filosófico. Vedanta lida com a natureza do “eu”, que está por detrás das experiências e que nenhuma pode realmente tocar, por isso não se trata de uma filosofia. Seria como filosofar sobre um objeto que nunca foi visto e que não tem nenhuma conexão conosco. O que se poderia pensar sobre ele? O conhecimento proposto se dá pelo uso de um meio “externo” ao sujeito, que figurativamente funciona como um “espelho”. Assim como a olho não é capaz de ver a si mesmo, ninguém é capaz de “ver” o “eu”. Vedanta é como um espelho: funciona como um meio de conhecimento para aquilo que não podemos ver sozinhos. (texto disponível em , acesso em 29 Julho 16, 18:33)

Ainda segundo Glória Arieira, para que Vedanta seja um meio de conhecimento independente dos sentidos, senão seria um mero simbolismo ou uma estória, “Vedanta revela algo sobre o sujeito que outros meios não têm acesso” (informação verbal)8. E ela conclui que da forma como Patañjali traz nos Sutras, Yoga capacita o sujeito para essa visão absoluta do Eu. Da mesma forma que na obra Tattvabodhaḥ, todos os textos sagrados hindus exigem essa interpretação e mediação dos mestres para que os conceitos não sejam apropriados de forma incompleta ou equivocada.

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- palestra sobre os Yoga Sutra de Patañjali, proferida em 27 de Junho de 2015 no Yogaterapia, em Campinas, SP.

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Nessas obras a concepção sobre Homem e Universo se encontram imbricados de tal forma que não é possível sua compreensão como fenômenos distintos. “De acordo com o Samkhya9, o universo tem origem a partir da interação entre dois princípios metafísicos: a ‘Consciência Pura’ ou ‘Alma Imaterial’, denominada ‘Purusha’, e ‘Matéria Original Pura’, denominada ‘Prakriti’.” (CASTRO, 2009: 32). O autor ressalta que o termo “pura” que se relacionam aos princípios metafísicos indicam a ausência de forma bem definida e portanto, estados indiferenciados. Com a interação desses dois princípios é que surge um outro denominado “Buddhi” ou intelecto, que nos permite o contato sensorial com o mundo e sua organização e interpretação pela consciência humana. Ainda de acordo com o Samkhya, a composição dos objetos do mundo externo deriva de cinco elementos básicos que são éter (Akasa), fogo (Tejas), terra (Prithivi), água (Apas) e ar (Vayu). A eles estão relacionados todos órgãos sensoriais humanos como nariz, olhos, pele, língua e ouvido e ainda as sensações especificas como som, toque, cheiro, cor e/ou forma e sabor ou ainda nossos órgãos motores que são mãos, pés, voz, órgãos reprodutivos e de excreção. Toda a prática medica indiana ayurvédica é baseada nesse principio filosófico-religioso que postula e entende o ser humano como um microcosmo da natureza. O corpo humano bem como toda a realidade material impermanente, portanto relativa, deriva das infinitas possibilidades de combinação dos cinco elementos. Essas combinações resultam em estados chamados de “gunas” que são classificados em três, a saber: “tamas” que seria o estado de inércia; “rajas” para o estado de agitação e ‘sattva” para o estado de equilíbrio (YOGATERAPIA, apostila para formação de professores no. 2). As gunas estão presentes nas cinco dimensões do humano, que são: o corpo físico, ou feito de comida (Annamayakosa), o envoltório energético (Pranamayakosa), o envoltório mental (Manamayakosa), o envoltório intelectual (Vijnanamayakosa) e o envoltório espiritual (Atmamayakosa).

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- Sankya está entre os sistemas mais antigos e influentes da filosofia hindu clássica. É uma espécie de dualismo metafísico que separa tudo em “prakriti” e “purusha”, isto é, “natureza” ou “matéria” e “pessoas”. Para esse sistema, tudo ligado à natureza é singular. Texto disponível em: Sankya – Namu ,acesso em 27 Julho 2016, 10:46

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Esses princípios de explicação de mundo contidos nos textos sagrados constituem um saber único, cujas proposições servem para organizar todas as práticas quotidianas, da alimentação ao estudo. Explicando melhor, eles regem sem qualquer conflito de princípios e informações todos os aspectos da vida humana, e isso se torna evidente se destacarmos a medicina ayurvédica e o próprio Yoga. As práticas medicinais indianas baseadas no Ayurveda, não se organiza apenas como uma prática curativa, mas também de manutenção de indivíduos saudáveis através de hábitos de alimentação, oleação do corpo, tipos de higiene para cada parte do corpo além da meditação e do Yoga. O primeiro registro documental sobre o Yoga, o texto conhecido como Sūtras, de autoria do mestre Patañjali, surge por volta do ano 300 d.C., bem posterior aos Vedas portanto. Mas sua contribuição foi muito importante, e apesar de pouco consenso em torno de sua vida e obra, ele é considerado um marco do período que posteriormente ficou conhecido como “Yoga Clássico” na divisão histórica. Ele sistematizou e codificou de forma pioneira a tecnologia do Yoga. Não há uma biografia de Patañjali, e como aponta Feuerstein (2000: p. 270 et seq.), há mesmo muitas duvidas sobre a real autoria de muitos dos trabalhos atribuídos a ele. Uma em razão de na mesma época haver muitos homônimos e outra pela ausência de documentação historiográfica, como de resto carece todo o passado da Índia, como já apontado anteriormente. Ainda segundo o autor, pode-se afirmar que sua obra foi contemporânea a existência do budismo, e a sua era uma entre as muitas escolas de Yoga de então. Mas sua importância já era reconhecida, pois “de todas as escolas que existiram nos primeiros séculos da Era Cristã, a escola de Patañjali foi a que acabou sendo reconhecida como o sistema oficial (darshana) da tradição yogue”. (idem, p.272) Há muitos mitos sobre Patañjali. O mais importante deles afirma que ele era uma deidade chamada Ananta, e que tomou o nome Patañjali porque queria ensinar o Yoga na Terra e caiu (pat) do Céu sobre a palma (anjali) de uma mulher virtuosa chamada Gonika (op.cit.).

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Uma das narrativas orais que sobrevive a seu respeito, pude ouvir em uma aula com o Prof. Faeq Biria10 que conta que Patañjali era uma criança superdotada e em idade precoce já falava e versava sobre assuntos muito complexos. Como um intelectual dedicado, que não se interessava por rotinas semelhantes a jovens de sua idade, e isso despertou a preocupação de seu pai que proferiu a ele seu desejo de vê-lo casado. Sem dar importância a isso, Patañjali continuou a escrever muitos livros, e uma noite, após colocar o ponto final nos Sutras, que terminam com a palavra Iti, ele olha assustado para o lado e vê uma mulher em pé, junto a ele. Então pergunta quem é ela, que responde: “sua esposa”. E ele indignado retruca que nunca se casou. No que ele replica: “quem você acha que lhe trouxe comida, arrumou sua cama, lavou suas roupas esse tempo todo?” (Informação verbal). Mas apesar de toda a polemica em torno das obras que teriam sido de fato ou não de sua autoria, a interpretação de Patañjali não diverge dos textos sagrados e seu conteúdo são aforismos que apresentam as razões para praticar Yoga de acordo com a lógica védica. Patañjali indica os princípios do que ele denomina oito partes / membros do Yoga, ou “Astanga Yoga”, que fundamentam e atribuem a razão a todo o conjunto de práticas que envolvem a vida de um praticante e que são: yamas, niyamas, asanas, pranayamas, pratyahara, dharana, dhyana e samadhi. Divididos em três fases ou estágios, todos os exercícios indicados conduzem o praticante em sua busca da alma. Na primeira, segunda e terceira fase ou estágios, teríamos a busca exterior (bahiranga sadhana). Através dos exercícios de Yamas e Niyamas se referem ao conjunto de preceitos éticos que “controlam as emoções e as paixões, conservam o praticante em harmonia com seus semelhantes.” (BASSOLI, 2012:23). Os exercícios de āsanas preparam o corpo para o assento meditativo através de um estado saudável “em harmonia com a natureza”(IYENGAR, 2016: 25). As fases ou estágios seguintes, “ensinam o aspirante a regular a respiração e, desse modo, a controlar a mente” ”(IYENGAR, 2016: 26). São os exercícios de pranayama e têm como finalidade controlar a energia vital e os exercícios de prathyahara promovem a abstração dos sentidos, libertando-os da “escravidão dos objetos de desejo” (Idem). Estes estágios constituem a busca interior (antaranga sadhana). 10

Aula do o Prof. Faeq Biria na I Convenção Nacional em Iyengar Yoga entre os dias 15 a 20 de Abril de 2016, em São Paulo, promovida pela Associação Brasileira de Iyengar Yoga.

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Os exercícios de dharana que auxiliam na concentração, dhyana que é a meditação e samadhi que é a iluminação, mantêm os praticantes em harmonia consigo mesmo e com o seu Criador. “O yogi não olha em direção ao céu para encontrar Deus. Ele sabe que Deus está em seu interior, conhecido como Antaratma (o Ser Universal Interior).” (Idem, ibdem). Esses estágios constituem a busca da alma (antaratma sadhana). Portanto, todos os livros sagrados estão em perfeita harmonia e giram coerentemente em torno dos mesmos preceitos e lógica de mundo. Dentro dessa lógica, o sentido da existência humana é o encontro com o verdadeiro estado de natureza de nossa espécie, que é a felicidade (Ananda). Mas não a felicidade trazida por objetos ou situações externas ao individuo, e sim como um estado de plenitude essencial, algo ilimitado e não-qualificado. Ou como explica o Swami Dayananda Saraswati11 Analisando um momento de alegria, o verdadeiro objeto de amor é descoberto. Percebo que um imutável sujeito desfruta a felicidade em todas as experiências: somente eu permaneço, enquanto tudo o mais muda. Se bem que o tempo passe, ánanda não muda. Embora eu não o experiencie continuamente, quando ele ocorre é sempre o mesmo sentimento de alegria.(...) Tampouco depende do ambiente ou da situação de vida daquele que o desfruta. Mendigo e rei, ambos, experienciam a mesma plenitude.(...) Assim, a felicidade realmente não tem nada a ver com objetos ou situações, mas apenas com o sujeito, Eu. O que mais amo é o Ser que brilha no momento da alegria quando a mente não está buscando, e está satisfeita. Quando não nego minha natureza ilimitada, procurando em outra parte uma plenitude, descubro-a como sendo meu próprio ser. O Ser é a verdadeira fonte de felicidade, o ilimitado ánanda que busco.

O conhecimento sobre o ser humano e suas características, ou sobre a origem do Universo e seu funcionamento se encontram condensados nos textos sagrados, na forma de aforismos que exigem que a transmissão desse conhecimento não apenas seja sempre em um relação de mestre e aprendiz, ou Gurus e “seguidores”, como também não supõe a negação ou confronto de ideias para que sejam descartadas e substituídas. O que não significa ausência de questionamentos. Segundo B.K.S. Iyengar (2016:33), a relação entre discípulo e mestre, ou śiṣya e guru “é muito especial” pois há uma dedicação que transcende as relações sociais, e envolve para além do afeto, do amor e da disciplina, também vínculos espirituais, 11

- Texto disponivel no blog YOGA.PRO.BR, em , acesso em 27 Julho 16, 18:45.

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como a devoção, para que se chegue ao objetivo último, que é a “senda de Deus”. “Com confiança em seu aluno, o guru se esforça arduamente para que ele assimile o ensinamento, estimulando-o a fazer perguntas e a conhecer a verdade por meio do questionamento e da análise.” É curioso observar que essa relação de transmissão de conhecimento onde se mesclam hierarquia, confiança, devoção, disciplina, amor, como é colocado pelo mestre Iyengar, é encarado no Ocidente com imensas ressalvas. A relação entre professor e alunos entre nós é, na maior parte das vezes pautada pela formalidade, pela impessoalidade, pelo distanciamento e apesar da admiração, jamais pela devoção. Isso reproduz a concepção cientifica e filosófica ocidental de sujeito e objeto como polos que devem se manter distantes para obter a imparcialidade. Portanto, a concepção sobre o que é o conhecimento se estende às relações de ensino e aprendizagem em cada cultura. Todo conhecimento humano, independente da cultura que o cria entretanto, gira em torno das questões e a busca de respostas para o mundo que nos rodeia e nossa própria constituição. Em Śaṅkarācārya (2006) encontramos a perspectiva da filosofia hindu sobre o questionamento que é impulsionado na “busca pela verdade”. Śri Śaṅkarācārya (2006: 42) afirma que “a verdade, tattva, é que existe uma real, satyam, e tudo o mais é aparente, mithya.” Ou seja, a realidade aparente é mutável, inconstante, e “quando analisado, chegamos sempre a outra coisa” (idem). Portanto, o verdadeiro conhecimento para a filosofia hindu se baseia naquilo que tem um estado imutável, portanto cognoscível e explicável. Essa dimensão está em Ātmā, que é o ser. “Nossa natureza essencial, nossa verdade, é eterna, imutável, absoluta” (idem, p.43) enquanto os papéis assumidos socialmente ao longo da vida é aparente e mutável. Portanto o auto conhecimento, o estudo do que somos em essência impulsiona e atravessa todos os textos sagrados e o repertorio construído por essa civilização. Segundo essa perspectiva, Ātmā, o eu, é sat, ou aquilo que existe sempre , “ele existe na forma de pura consciência, cit. E essa consciência, que é sempre existente, é ananda, completa em si mesmo” (idem, p. 45). A respeito do surgimento histórico desse conjunto de textos sagrados, muitos estudos permitem uma organização temporal que os distribuem ao longo do tempo.

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Isso nos permite compreender como as mudanças sociais devem ter sido afetadas pela apropriação e circulação desse conhecimento depositado em tais obras. George Feuerstein, que escreveu um livro considerado referencia para a história do Yoga, propõe um esquema para compreendermos o surgimento de o uso dos textos sagrados ao longo do tempo, como representado a seguir.

Figura 6 – George Feuerstein, The Yoga Tradition, “A Sagrada Literatura do Hinduismo”

Esse conjunto absolutamente robusto de conhecimento não tem paralelo em nenhuma outra civilização, se considerarmos as datas de seus registros. Ao longo do tempo, como aponta o texto que o autor inseriu de forma explicativa dentro da seta que aponta para cima, houve um “gradual processo de cristalização da cultura védica para o Hinduísmo”. Isso significa uma transformação de costumes, e até de instituições sociais como as castas, que foram se transformando no que hoje conhecemos como Hinduísmo.

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2.1.1 HINDUÍSMO E RELIGIÃO, DOIS CONCEITOS POLÊMICOS

O termo Hinduísmo é bastante polemico e deve ser utilizado apenas por sua popularização como referencia a um conjunto histórico das doutrinas, das práticas culturais e da visão de mundo deixada pelos povos védicos, e como bem explica Feuerstein no esquema acima reproduzido, “cristalizados” em algo que nós ocidentais entendemos como hinduísmo. Esse termo parece ter origem na forma como os europeus erroneamente passaram a designar os povos existentes para além do Rio Indus. Entretanto, como nos chamou a atenção ainda no sec. XIX, Swami Vivekananda em uma de suas conferencias para os ocidentais, faz um esforço no sentido de elucidar aos europeus o uso indevido do termo “hinduísmo” ou “hindus” para se referir às pessoas que vivem na Índia e praticam seus próprios rituais. Ele afirma que “seja qual possa ter sido seu significado em tempos antigos, perdeu toda a sua força nos tempos modernos, porque todos os povos que hoje vivem desse lado do rio Indus, não mais pertencem a uma única religião.”12 Além do equivoco sobre a pretensa uniformidade ritualística dos povos orientais, está o fato de que não se encontra em qualquer texto sagrado da Índia qualquer registro da palavra hinduísmo, e menos ainda qualquer aceitação pelos povos mais antigos sobre o uso de tal termo para a eles nos referirmos. Isso se encontra bem registrado em um texto atual do Swami Sunirmalananda onde ele afirma que: Em primeiro lugar, o termo hindu não é um termo sânscrito. Em segundo lugar, ele nunca foi encontrado nos Vedas ou na literatura religiosa que veio a seguir. Nenhum dos grandes acharyas como Shankara, Ramanuja e outros, usou esse termo. Em terceiro lugar, esse termo não tem nenhum significado. Dessa forma, o próprio nome está errado. Na opinião geral, o termo hindu foi usado pelos persas. Eles não conseguiam pronunciar a palavra Sindhu – quando falavam à respeito do rio Sindhu. Assim, pronunciavam hindu. Dessa palavra mal pronunciada surgiu o nome hinduismo.

Entretanto, mesmo com todo esse desconhecimento de nossa parte, o termo acabou sendo imensamente popularizado e é amplamente utilizado. Até mesmo por Swamis e Gurujis da Índia.

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- Vivekanda, APUD “Hinduísmo”, por Swami Sunirmalananda no portal da Web “Grupo escolar. Texto disponivel em , acesso em 29 maio de 16, 16:18.

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Acredito que somada a distorção semântica e de representação da cultura da Índia apontadas acima, temos ainda um outro e importante uso inapropriado, quando os próprios hindus modernos se referem às suas tradições espirituais como uma “religião”. Esse conceito aparece nas conferencias de Vivekananda nas ultimas décadas do século XIX, e no próprio Swami Sunirmalanandam, um contemporâneo nosso, citado anteriormente. Atualmente de fato, há um grande conflito de informações e interpretações não apenas sobre o conceito de hinduísmo, mas sobretudo se a filosofia védica e as práticas de Yoga fazem parte de uma religião. Da mesma forma como a palavra Yoga pode ser traduzida como reunir, ligar e juntar, pode ser entendida também como união e comunhão segundo Iyengar (2016, p.23) entre a nossa vontade com a vontade de Deus, e isso pode ser entendido como a união daquilo que nunca foi a principio separado, mas que percebemos enganosamente como tal. De forma muito semelhante a palavra religião tem origem na palavra latina religare e é traduzida como religação, no caso entre homem e Deus. Mas as semelhanças possíveis não avançam além disso. A palavra religião não é encontrada nos livros sagrados, e segundo palestra do Professor Faeq Biria, por ocasião da Primeira Conferencia Nacional em Iyengar Yoga, no Yoga Sutra de Patañjali também não há qualquer menção a esse conceito. Segundo o Professor Faeq: “os religiosos te dão um guarda chuvas para se proteger, mas Patañjali não te dá nada para se agarrar. Apenas os sutras” (informação verbal13). De fato não é possível apontarmos nos shruti qualquer “garantia” de bem estar espiritual apenas por acreditar na existência de uma realidade suprema. Mas antes pelo contrario, a visão da existência como resultante do Absoluto passa a dar ao aprendiz total responsabilidade sobre seus atos e pensamentos. Não há um Deus que venha nos salvar ou garantir felicidade, saúde, prosperidade e sucesso. Não há um ritual que nos livre das coisas ditas, feitas ou pensadas. A conduta cotidiana e a ética de vida regrada devem partir de uma determinação e da vontade de cada um. Não há dogmas ou formas de troca para garantia de méritos ao longo da vida. 13

- A Convenção foi promovida pela Associação Nacional em Iyengar Yoga entre os dias 15 a 20 de Abril de 2016, em São Paulo.

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Śri Śaṅkarācārya em sua obra “Tattvabodhaḥ – o conhecimento da verdade”, nos ensina que a busca da verdade é o caminho para aqueles que desejam a liberação. A verdade é a capacidade de discriminar o eterno do não-eterno. O eterno é Brahman, que também é único. O não eterno tem um limite no tempo, pois teve um inicio e terá um fim (Śaṅkarācārya, 20016, pp. 23-28) . E a liberação, ou mokṣa, pode ser explicado como se livrar das cadeias da existência, do eterno ciclo de nascimento, vida e morte que caracteriza o mundo aparente e tornado denso. Nos estudos de Vedanta, é possível apreendermos que a visão de mundo presente nos Vedas e em todos os livros sagrados não se encontram representadas por uma instituição religiosa. Não há sacerdotes, mas há templos. Não há ordenação, mas há um caminho espiritual que leva pessoas a serem consideradas mestres, os Swamis, os Gurujis. Não há santos, mas há uma rica iconografia de deuses que são avatares do Absoluto e nos facilitam a compreensão da ordem do universo. São figuras sagradas como Bhrama, Viṣṇu e Śiva. Não há dogmas, mas há uma explicação do universo e seu funcionamento tanto na ordem absoluta como na relativa. Talvez por nossa lógica institucional exigir que qualquer paralelo se transforme em uma tradução literal, ou seja, que coisa que correm paralelamente se transformem em coisas idênticas pela nossa visão de mundo ocidentalizada, todos esses “mas” acabaram levando todos os envolvidos no debate, tanto ocidentais como orientais a utilizarem o conceito de religião para se referir ao hinduísmo. Nem todos os pensadores ocidentais reforçam equívocos e demonstram limites em relação a historia da Índia e seu conhecimento. Autores como o filosofo Schopenhauer; o também filosofo Mircea Eliade; o cientista Deprak Chopra, entre outros, não apenas se dedicaram a compreender, mas deram um importante impulso para que se aprofundasse os estudos sobre diferentes aspectos do conhecimento, da cultura e das práticas relacionadas à grande tradição védica. Entre eles, é importante destacar o trecho de Max Muller, linguista, orientalista e mitólogo de origem alemã que entre 1849 a 1874 estudou hinduísmo e se dedicou a publicação de seis volumes do Rigveda-Samhita, faz um verdadeiro tributo a herança deixada pela grande Índia como vemos abaixo. “Se quiséssemos encontrar, no mundo todo, o país mais dotado de riquezas, do poder e a da beleza que a natureza pode conceder – em alguns sentidos o

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próprio paraíso na terra – eu apontaria a Índia. Se a mim fosse perguntado sob que céu a mente humana desenvolveu algumas das suas mais preciosas dádivas, que tenha refletido, da forma mais profunda, sobre os maiores problemas da vida e encontrado soluções para alguns deles, que merecerá a atenção mesmo daqueles que estudaram Platão e Kant – eu apontaria a Índia. E se eu perguntasse a mim mesmo em que literatura nós, aqui na Europa, que fomos nutridos quase que exclusivamente pelo pensamento dos gregos e dos romanos, e pelo pensamento da raça semítica, a judaica, podemos encontrar os ajustes tão necessários para tornar nossa vida interior mais perfeita, mais abrangente, mais universal, na verdade uma vida mais verdadeiramente humana, não apenas para esta vida, mas para uma vida transfigurada e eterna – novamente eu apontaria a Índia.” (Max Muller, APUD Swami Sunirmalananda, no Portal “Grupo Escolar” da World Wide Web)

2.2 A GRANDE GRÉCIA, ORIGEM DOS TEXTOS FUNDADORES DA FILOSOFIA OCIDENTAL A história da filosofia é a história do pensamento criado pela civilização clássica grega. Por compreender uma vastidão de autores, obras, temas, conceitos enfim, procura-se destacar como foco para o presente trabalho alguns pensadores e textos que tratem de aspectos relacionados ao Yoga e sua filosofia contida nos Vedas. A saber, as concepções sobre a mitologia; as explicações que posicionam o ser humano em relação ao universo; a forma como conhecemos o mundo que nos rodeia e o mundo interno, da produção de pensamentos e sensações; e finalmente as ideias sobre o corpo humano como ferramenta de relação com esse mundo e constituição do eu. A civilização grega clássica compreende um período muito longo que foi periodizado em ciclos de desenvolvimento nos quais diferentes povos e culturas se desenvolveram e colaboraram para chegar ao que conhecemos como Grécia Clássica. Retomarei do ponto que aqui nos interessa, e que inicia com o final do chamado Período Micênico, se desenrola entre os anos de 1900 a 1100 a.C. e é considerada uma civilização que teria dado origem ao período grego propriamente dito, segundo achados arqueológicos. Tudo indica que essa civilização atingiu seu apogeu por volta do ano 1200 a.C. e seu desaparecimento pode ter sido resultante da chegada das invasões arianas no sul da Europa, trazendo povos como os dórios, jônios, eólios e aqueus.

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A história da Grécia Clássica tem inicio com o final da civilização micênica portanto, e se encerra com o marco histórico da morte de Alexandre o Grande, em 323 a.C. Esse foi o período em que a cultura grega clássica se expande através da ocupação de colônias pelos gregos conforme ilustração a seguir.

Figura 6 – mapa da Grécia e suas colônias por volta do ano 500 a.C., fonte:

As obras dos escritores gregos Hesíodo e Homero dão início a sistematização do pensamento grego, cujo marco seria o livro Metafísica de Aristóteles, em 570 a.C. Apesar dele não ter sido rigorosamente o primeiro filosofo, deve-se a sua obra o estudo, sistematização e registro do pensamento de filósofos anteriores. Por isso Aristóteles é considerado simbolicamente aquele que deu inicio a um tipo de pensamento que passou a ser chamado de Filosofia. A ele também é atribuída a criação da palavra Filosofia, como explicado mais adiante. Todas as grandes civilizações ou culturas tribais desenvolveram algum tipo de explicação para a origem e evolução do universo para a qual os mitos servem como marcadores simbólicos de eventos, de forças e disposições, e a isso chamamos de cosmogonia. Mas os gregos começam a se diferenciar exatamente nesse ponto.

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Todo conhecimento grego anterior a Aristóteles parecia já trazer preocupações sobre formas de explicação para a origem do Universo que não se resumissem a mitologia de então. O pensamento grego de então se baseia fortemente na busca de explicações para a origem e evolução do universo sem o recurso dos mitos como narrativa, ou seja, em uma cosmologia. Portanto, os filósofos gregos iniciam um tipo de investigação e questionamento de mundo baseada em uma metodologia e raciocínios que dão origem ao pensamento científico. Daí a importância de seu legado para o mundo ocidental. Esse pensamento segundo Marilena Chauí, traz as bases e os princípios fundamentais de todo o desenrolar do conhecimento e dos valores do mundo Ocidental como razão, racionalidade, ciência, ética, política, técnica, arte. Para exemplificar o alcance de sua influencia em toda a nossa história, a autora destaca que Aliás, basta observarmos que palavras como lógica, técnica, ética, política, monarquia, anarquia, democracia, física, diálogo, biologia, cronologia, gênese, genealogia, cirurgia, ortopedia, pedagogia, farmácia, entre muitas outras, são palavras gregas, para percebermos a influência decisiva e predominante da Filosofia grega sobre a formação do pensamento e das instituições das sociedades europeias ocidentais. (CHAUI, 2000, p.21)

A palavra filosofia em grego significa “amor a sabedoria” e é formada pela conjunção dos termos “philos” que é conhecimento ou saber, e “sophia” que é o amor. Pitágoras teria afirmado que a sabedoria plena e completa pertence aos deuses, mas que os homens podem desejá-la ou amá-la, tornando-se filósofos. O surgimento desse tipo de pensamento reflexivo, critico, analítico e dependente da dedicação à razão surge como consequência do rompimento com antigas tradições gregas que se pautavam pela recitação de épicos, poemas e mitos. As obras de Hesíodo como “O trabalho e os dias” ou “Teogonia”, e de Homero com “A Ilíada” e “A Odisseia” datam de um período imediatamente anterior ao período filosófico propriamente dito. Os nomes que os sucederam são muito popularizados até hoje, e trata-se de autores como Pitágoras, Sócrates, Aristóteles e Platão para mencionar apenas os mais conhecidos, uma vez que o conjunto completo da

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filosofia grega sabemos compreender dezenas de autores cujos pensamentos foram exaustivamente explorados em uma imensa bibliografia no Ocidente. Hesíodo e Homero parecem representar o auge e ao mesmo tempo o marco final de um período em que a literatura se dedicava a explicações sobre a origem do Universo e as questões humanas totalmente pautados pela existência de uma densa mitologia. A partir de então, os mitos passam a ser substituídos unicamente pelas causas naturais como forma de explicação de mundo. Rompe-se com as tradições orais adquiridas através da transmissão por gerações. Esse rompimento permite a emergência de um pensamento que qualifica a filosofia grega como “única” e que permite o surgimento das ciências. Quais teriam sido os motivos da emergência de um tipo de pensamento investigativo, metódico e crítico que permitiram o rompimento com as tradições? Segundo Vernant (2000, pp. 41-54) o surgimento da pólis como modelo político de organização das comunidades gregas teria sido fundamental. Ele argumenta que a popularização do domínio da escrita como forma de permitir a discussão das leis e dos mecanismos de poder colocados em prática pela democracia das cidadesestados teria deslocado o foco de preocupações dos pensadores gregos. No novo modelo de demos a epopeia homérica, que antes era um domínio da corte e cantada nos palácios para então se tornar conteúdo poético das festas, sofre uma profunda transformação. “Tornando-se elementos de uma cultura comum, os conhecimentos, os valores, as técnicas mentais são levadas à praça pública, sujeito à critica e à controvérsia (Vernant, 2000: 42-3).” Uma mudança política portanto influenciou a forma de construção do conhecimento. “(...) a discussão, a argumentação, a polemica tornaram-se as regras do jogo intelectual, assim como do jogo político” (idem, ibdem). A partir desse momento todo o pensamento ocidental se volta para o uso da razão como único processo confiável. Dessa estrutura de pensamento é que deriva toda a construção histórica de conhecimento ocidental que culmina com o amadurecimento das ciências, atualmente legitimadas pelas conquistas do que entendemos como qualidade de vida material, civilização, tecnologia, progresso e assim por diante.

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Esse movimento que permite as sociedades europeias profundamente influenciadas pelo saber herdado da Grécia Clássica, e que se volta das tradições para a razão, me parece ser o ponto critico de distanciamento e compartimentação das noções sobre corpo, individuo, sagrado e ética que determinam até os dias de hoje a impossibilidade de nos apropriarmos do conhecimento védico como um conjunto indivisível. O legado filosófico grego nos caracteriza por um tipo de pensamento compartimentado, com a necessidade de exaustão de temas e objetos de forma autônoma e pouco integrados, ao passo que o Vedanta que é o estudo dos Vedas exige um raciocínio diagonal, onde todas essas dimensões se encontram interligadas e mutuamente determinadas. Para ilustrar esse deslocamento dos mitos e do pensamento religioso para a confiança na razão, retomarei, sem pretensão de aprofundar a discussão sobre todos os filósofos gregos, alguns excertos, conceitos e argumentação que permita esclarecer as diferenças entre o pensamento tradicional védico e a filosofia grega. Para Sócrates, como registrado por seu discípulo Platão, alma e corpo seriam dimensões complementares da vida humana, mas com características bem distintas e perceptíveis. Para ele a alma se assemelha ao que é divino e imortal, enquanto o corpo é mortal, multiforme e desprovido de inteligência. Inaugura-se com essas concepções entre os gregos um debate que se estende em toda a filosofia ocidental até o século XIX. Se considera-se que o corpo é mortal e a alma imortal, como o ser humano conhece o mundo? Nascemos com algum conteúdo intelectual, portanto inato, ou ao contrário seríamos “vazios” ao nascer e dependemos da experiência através dos sentidos e da inteligência para esse processo? A isso os gregos respondem que há conteúdos inatos, que Sócrates chama de reminiscências nos “Diálogos” registrados por Platão, ou lembranças imemoriais de outras vidas (PLATÃO, 1961, pp. 73-113). Para a filosofia grega portanto, a relação entre os âmbitos da mortalidade e da imortalidade em nossa espécie se resolve através da expressão do conhecimento e da inteligência humanas. Para os gregos desse período então, cada individuo já nasce com os conceitos de “razão” e “verdade” a respeito de coisas que nos são apresentadas mesmo que pela primeira vez, sem a necessidade de experiências previas.

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Chauí (2000, p.86) apresenta o posicionamento de Platão a respeito, através do mito do pastor Er, uma ilustrativa história que explica a memoria e seu “problema” que é o esquecimento. O pastor Er, da região da Panfília, morreu e foi levado para o Reino dos Mortos. Ali chegando, encontra as almas dos heróis gregos, de governantes, de artistas, de seus antepassados e amigos. Ali, as almas contemplam a verdade e possuem o conhecimento verdadeiro. Er fica sabendo que todas as almas renascem em outras vidas para se purificarem de seus erros passados até que não precisem mais voltar à Terra, permanecendo na eternidade. Antes de voltar ao nosso mundo, as almas podem escolher a nova vida que terão. Algumas escolhem a vida de rei, outras de guerreiro, outras de comerciante rico, outras de artista, de sábio. No caminho de retorno à Terra, as almas atravessam uma grande planície por onde corre um rio, o Lethé (que, em grego, quer dizer esquecimento), e bebem de suas águas. As que bebem muito esquecem toda a verdade que contemplaram; as bebem pouco quase não se esquecem do que conheceram. As que escolheram vidas de rei, de guerreiro ou de comerciante rico são as que mais bebem das águas do esquecimento; as que escolheram a sabedoria são as que menos bebem. Assim, as primeiras dificilmente (talvez nunca) se lembrarão, na nova vida, da verdade que conheceram, enquanto as outras serão capazes de lembrar e ter sabedoria, usando a razão. Conhecer, diz Platão, é recordar a verdade que já existe em nós; é despertar a razão para que ela se exerça por si mesma. Por isso, Sócrates fazia perguntas, pois, através delas, as pessoas poderiam lembrar-se da verdade e do uso da razão. Se não nascêssemos com a razão e com a verdade, indaga Platão, como saberíamos que temos uma idéia verdadeira ao encontrá-la? Como poderíamos distinguir o verdadeiro do falso, se não nascêssemos conhecendo essa diferença?

Para os gregos, os filósofos seriam os indivíduos que se dedicam sobretudo a razão e a verdade, enquanto outros indivíduos se dedicam mais a riquezas, posição social e assim por diante. Há portanto uma diferenciação concreta entre os indivíduos e que podem ser resultantes de fatores anteriores ao momento vivido, o presente. Com relação ao corpo, é bastante rica a produção filosófica grega. A curiosidade e a dedicação de gerações de filósofos, desde Hipócrates que hoje ocupa o lugar de “patrono da medicina” torna essa civilização talvez a mais influente em todo o desenvolvimentos de nossa cultura sobre a relação individuo-corpo, saberes e técnicas de tratamento do corpo, ou mesmo os experimentos e investigação sobre o corpo. No período clássico, são emblemáticos o pensamento de Platão e Aristóteles. Herdeiros de uma antiga tradição, desenvolveram amplamente conceitos sobre o corpo, a alma e a mente. Para Castro (2009) eles preservam algumas ideias

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anteriores ao mesmo tempo em que propõem novas abordagens. Basicamente a aceitação dos elementos que formam o universo como água, fogo, éter e ar, mas acompanhados de um intenso debate sobre a importância, origem e função da razão, a que eles denominam também de juízo. As semelhanças dessas teorias com as apresentadas no capitulo anterior parecem ser bastante evidentes, e reforça a ideia de relacionar muitos autores gregos com todo o conhecimento do período védico na Índia séculos antes. Tais possíveis influencias também são sugeridas em Nunes (2008, pp. 25-26) ao comentar a provável influencia dos renunciantes indianos sobre o pensamento dos filósofos helenísticos que foi apontada a partir do movimento transcendentalista na Europa no século XIX, em autores como Henri Thoureau, ou mesmo na obra de Louis Dumont no século XX, com o título “O Individualismo”. Afirma Nunes que Essa influência se faz mais provável pela intensificação da relação entre a Índia e o mundo helenístico por conta da consolidação do império alexandrino. Mas mesmo que essa relação entre as filosofias orientais e os estoicos seja difícil de se comprovar, o fato é que as suas semelhanças foram trazidas à tona pelos transcendentalistas.

Sobre a relação entre corpo humano, produção de conhecimento e alma as semelhanças continuam. Em Platão, a alma seria dividida em três partes, duas delas mortais e uma imortal, que seria vinda do próprio universo. O cérebro seria uma manifestação dessa ultima, e controlaria todo o resto do corpo. As duas outras se localizariam uma no tórax, no coração nos dotando de coragem e sentimentos, enquanto a outra se localizaria no abdômen entre o diafragma e o umbigo próximo ao fígado e seria a sede dos desejos. O corpo é por ele encarado como um limite, um cárcere para a alma, dada sua finitude. Há então uma valorização do aspecto imortal através da mente e uma desvalorização do aspecto mortal através do corpo. Já Aristóteles, entende que todo ser é possuidor de apenas uma alma, e que o coração seria o órgão mais importante e vital para a humanidade. A partir da perspectiva que sensações e razão são de ordens distintas, ele equivale a alma à razão, pois ambas se caracterizam pela imaterialidade, enquanto as sensações dependem do mundo material e finito. O corpo aristotélico não se constitui em um entrave para a alma, mas sim como potencia de manifestação desta. Em Aristóteles a alma não tem relação com algo espiritual mas aproxima-se muito mais do conceito de vida, e está presente em todos os seres animados, não apenas no Homem.

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O importante em ressaltar nesse debate filosófico grego é que ele se encontra como pano de fundo de toda um cultura sobre o corpo e a mente que marca nossa sociedade até os dias de hoje. Instituições como “academia”, “museu”, “teatro”, “ginásio”, “escola”, “maratona” todas foram concebidas e desenvolvidas nesse mesmo período. Os gregos se pautavam por um ideal humano, que seria a perfeita combinação entre o cultivo da razão através da filosofia e o cultivo de um corpo preparado para a guerra e/ou para as demonstrações em disputas públicas. Para isso desenvolveram uma proposta de formação escolar conhecida como “Paidéia”, onde os meninos recebiam uma completa instrução que incluía aulas de ginástica, retórica, matemática, música, literatura, oratória, dança, poesia, aritmética. “O surgimento da Paidéia se dá com base na universalidade do bem, do justo, do belo, e é assim que se desenvolvem os ideais de formação do homem grego.” (AMORIN; GRÜN: 2011). Entretanto em um período posterior haverá uma cisão entre as disciplinas de cultivo do físico e as de ordem intelectuais que parecem permanecer até a atualidade para as sociedades ocidentais. A Paidéia pode nos servir também para mais uma comparação com a cultura indiana. Os ashrams, antigos “monastérios” onde os estudiosos se isolavam para cultivar o intelecto, praticar Yoga e meditar em lugares isolados na natureza, como bosques e cavernas, proporcionavam aos ermitões uma experiência histórica muito semelhante.

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3 DESDOBRAMENTOS DA GRÉCIA, A HERANÇA DA FILOSOFIA

A herança grega atravessa a história da Europa e se expande com o colonialismo a partir das Grandes Navegações para o “Novo Mundo” a partir de 1500. Todo o conjunto de concepções de mundo e de ser humano derivam do berço grego, e em cada momento histórico sofrem influencias de relações sociais que transcendem a preocupação com o saber. Assim, durante toda a Idade Média sob o poder institucional da Igreja Católica, as obras e toda a discussão filosófica permanecem sob a égide dos interesses que são ao mesmo tempo espirituais e de manutenção da ordem social. É com o Renascimento que o Ocidente volta a tomar contato com essa herança, sem interferência e/ou controle da Igreja. Esse conhecimento se dissemina em setores sociais antes impedidos do acesso, e tem inicio um ciclo de conhecimento que desemboca na criação das modernas ciências. Retomando portanto desse ponto, o saber ocidental passa a se caracterizar pelo debate, confronto de ideias e a relação mestres-aprendizes passa a supor a superação e substituição de conceitos, em direção oposta ao saber filosófico hindu, como apontado em capitulo anterior. As teorias sobre a razão e a verdade como inatas ao ser humano e resultado de experiências de vidas que se sucedem será substituída por Descartes com seu “racionalismo” no século XVII. Descartes mantem a concepção sobre os conteúdos inatos ao ser humano, mas retira o conteúdo mítico, argumentando que o espírito humano é possuidor de três diferentes tipos de ideias segundo suas origem e qualidade. Estas seriam as “ideias adventícias” que resultam de nossas sensações, percepções e lembranças e dependem dos órgãos dos sentidos; as “ideias fictícias” que resultam de nossas fantasias e imaginação; e finalmente as “ideias inatas” que independem da experiência mas nos abastecem com as capacidades de conhecer a verdade e usar a razão. Estas seriam, segundo palavras de Descartes, a “assinatura do Criador”, pois teriam sido colocadas por Deus nas criaturas racionais. Mas que tipo de ideias seriam essas? Para ele, as ideias matemáticas e a confiança na existência de Deus.

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As ideias inatas, são claras e distintas, mas não possuem relação com a mera invenção. Elas se produzem pelo entendimento sem recurso à experiência. “Elas subsistem no nosso ser, em algum lugar profundo da nossa mente, e somos nós que temos liberdade de as pensar ou não. Representam as essências verdadeiras, imutáveis e eternas, razão pela qual servem de fundamento a todo o saber científico.”14 Muitos filósofos levantaram problemas com o inatismo platônico ou cartesiano. Apontando para os limites e contradições das verdades eternas dentro do quadro de descobertas científicas e mudanças morais ao longo da história, entendem que precisaríamos de uma nova explicação sobre a inteligência humana. Assim surge entre os filósofos ingleses, a partir do séc. XVI as teorias que deram origem ao “empirismo”. Segundo eles a mente humana seria “tábula rasa” ou da “folha em branco”. São representantes dessa filosofia nomes como Francis Bacon, John Locke, George Berkeley e David Hume. Assim, nasceríamos apenas com as capacidades intelectuais, sobre as quais construímos gradativamente os nossos pensamentos através da experiência, da inteligência, da lógica e da memoria. Aliando a percepção à lógica, seja através da dedução, do principio de causalidade ou mesmo pela memoria associativa, somos capazes de construir ideias coerentes e verdadeiras que se submetem a razão. Ideias baseadas nas noções de universalidade, necessidade e causalidade dariam sustentação ao pensamento humano que tem como característica a capacidade do conhecimento objetivo da realidade. Os embates filosóficos e conflitos entre as teses que defendem ser o conhecimento interno ao sujeito e inatas, versus as que defendem ser o conhecimento externo ao sujeito e portanto empírico, são superadas a partir do final do sec. XVIII por Immanuel Kant, que é de origem prussiana, após a publicação de uma obra marcante intitulada “Critica da Razão Pura”. Kant aponta erros em ambas as teorias, mas chama a atenção para uma outra forma de compreensão sobre o conhecimento. A razão é inata e nos fornece a forma 14

- Texto disponivel em , acesso 16 de Julho 16, 10:58

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do conhecimento, porem sem qualquer conteúdo. Enquanto a experiência nos fornece todos os conteúdos. É como se fossemos de fato uma folha em branco mas capazes de oferecer normas aos registros e conteúdos que recebemos a cada momento. Com isso o sujeito, através de suas próprias categorias de conhecimento, que são a somatória de sua experiência acumulada no meio, e como essa se combina as estruturas psíquicas internas do sujeito, produzem sujeitos conhecedores do mundo que são únicos. Por isso para Kant não existem verdades únicas e imutáveis, pois não há mundo único e imutável. A realidade não se encontra fora dos sujeitos, nas coisas a serem conhecidas, mas em nós mesmos que organizamos e qualificamos o conhecido. A solução kantiana para a teoria do conhecimento marca um momento muito decisivo para a filosofia ocidental. Tal foi o impacto de sua abordagem que essa teoria sobre a relação sujeito e objeto ficou conhecida como a “revolução copernicana” ou seja, Kant introduz com o que ele chamou de “eu transcendental” para se referir ao sujeito observador como alguém ao mesmo tempo dotado de estruturas mentais previamente estabelecidas sobre as quais interage de forma constante os objetos do mundo. Mas para Kant, o sujeito conhecedor criaria então seu próprio universo, pois ele seria um expectador do mundo que o rodeia, apreendendo e qualificando o mundo de acordo com suas categorias de pensamento. É apenas com Hegel que a filosofia ocidental insere o sujeito como alguém dotado de possibilidade de interferir nesse processo, pois para Hegel o mais importante é esse “expectador”, pois ele conhece o mundo para conhecer a si mesmo (GIROTTI, 2010). Mais uma vez temos a representatividade de autores que encontram semelhanças entre a filosofia ocidental e os textos sagrados védicos. Sharman (1962, p. 10) é enfático ao afirmar que A Revolução Copernicana de Kant é celebrada como a doutrina que introduz para a Filosofia Europeia que o conhecimento requer ambos sensações e pensamento, que ‘conceitos sem percepção são vazios e percepções sem conceitos são cegos’, e que toda situação de conhecimento pressupõe necessariamente o eu. (...) A contribuição definitiva de Hegel se deveu a persistente insistência que o eu não pode ser tomado como substancia mas como sujeito e que esse sujeito não significa o ego empírico mas o

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transcendental e ainda a Absoluta Ideia imanente correndo pelas categorias que são variou estágios do pensamento. (...) De fato, a origem desse verdadeiro Idealismo já repousava, muitos séculos antes de Kant e Hegel, nas Upanishads. (Tradução nossa)

A partir da perspectiva deste texto, se somada a esse trajeto da teoria do conhecimento da filosofia trouxermos a luz também as noções sobre o mundo a ser conhecido, que se torna a partir de Descartes restrito ao mundo evidente empiricamente, observável e comprovável, obtemos como resultado todo o complexo conjunto da produção material e intelectual de nossa época. Importante salientar que todas as teorias expostas acima ainda permanecem como paradigmas que informam a produção intelectual de toda a comunidade acadêmica ocidental. Alguns cientistas tendem ao racionalismo cartesiano enquanto outros adotam a perspectiva kantiana e também há representantes hegelianos. Até onde sabemos não existe qualquer estatística ou levantamento sobre a representatividade de cada uma dessas teorias, entretanto há uma perceptível hegemonia, um poder das perspectivas racionalistas (HESSEN, 1980) que descartam a intuição ou qualquer outra ferramenta que não seja a razão como forma de construção do conhecimento. Principalmente nas chamadas “ciências duras” ou hard sciences, que monopolizam o saber sobre o corpo humano da perspectiva biológica, química ou mesmo biomecânica. O desenvolvimento desse debate carece ainda de um ultimo recurso fundamental e por isso deve-se citar a ultima e decisiva contribuição representada pelo pensamento de Schopenhauer. Para este ultimo, que concorda com a perspectiva de Kant, entre nossas categorias de entendimento de mundo poderíamos somar a intuição espiritual, que nos possibilita compreender o mundo a partir de um conjunto de ferramentas que fogem à lógica racional. Kant não inclui essa perspectiva, mas é exatamente ela que permite a toda uma comunidade ocidental interpretar a validade e o conhecimento trazidos pelos textos sagrados hindus ou de qualquer das demais tradições como o budismo por exemplo (MESQUITA, 2007). É o pensamento de Schopenhauer que inaugura uma ponte entre oriente e ocidente que permite até os dias atuais a legitimação dos conceitos sobre o sagrado e a

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interpretação espiritual como recursos válidos na construção do conhecimento. Mas trata-se de uma minoria pouco representativa frente aos grandes cânones do pensamento que invalidam toda e qualquer expressão de conhecimento verdadeiro baseado em pressupostos que não foram empiricamente averiguados, como por exemplo, a criação do Universo e suas supostas leis como resultantes da presença do Absoluto. Mas, em que dimensão essa filosofia e os autores citados refletem na cultura, nas mentalidades de nossa vida quotidiana e podem ter qualquer relação com práticas como o Yoga, o estudo do Vedanta e o público que aborda-se aqui? Através da obra de Max Weber entendemos que a história do mundo ocidental a partir do desenvolvimento do capitalismo como um sistema organizador e estruturante de todas as sociedades, é a história da emergência de uma ética de mundo baseada no crescente desencantamento e na crescente racionalização da vida. Significa dizer que as categorias tradicionais, religiosas ou espirituais como ordenadoras da vida social foram sendo substituídas por categorias cada vez mais racionais. Como evidência desse processo temos a secularização de todas as instituições e processos sociais. A burocracia, o planejamento, a tecnologia, os objetivos práticos com resultados quantificáveis são sintomas dessa realidade que modela a atuação de indivíduos, grupos e sociedades inteiras (GIDDENS, 2005: 34). Para Weber, as dimensões da tradição, afetiva e mesmo referentes aos valores humanos teriam sido colocadas em um plano inferior no quadro das motivações para as ações quotidianas na lógica dos sujeitos. Assim temos atualmente não apenas um sistema de poder político e econômico extremamente racionalizados, mas uma produção científica e cultural regidas pelos mesmos princípios. Essa racionalização trata-se portanto de um poder ordenador da vida, que atravessa todos os âmbitos de nossas relações com os outros indivíduos. No que se refere especificamente a relação do individuo-corpo com o poder instituído em nossas sociedades, é necessário citar a obra de Michel Foucault. O conjunto da obra de Foucault insere de forma emblemática a compreensão da constituição do sujeito moderno. Ele investiga genealogicamente os processos através dos quais em nossa sociedade os saberes e seus discursos, os poderes e suas instituições e os sujeitos em sua vida quotidiana se relacionam através de

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mecanismos imbricados para permitir a submissão às forças sociais que nos governam. Para ele o corpo é a origem e ao mesmo tempo o ponto final onde se erige e revela o controle da vida social. Em suas investigações, demonstra que consentimos a um governo e a uma ordem social na medida em que eles se corporificam em nossa experiência de mundo. A corporeidade é um momento de constituição do self, mas não autônoma, e sim submissa a um árduo treinamento quotidiano de controle através dos conceitos de higiene física, saúde, preparo para o trabalho e estudo, onde a disciplina e a vigilância são estados permanentes. Disciplina e vigilância essas que se manifestam na estrutura institucional dos espaços físicos que ocupamos como a escola, o hospital e as clinicas, os presídios, os manicômios, os asilos, as fabricas, e assim por diante. É nesses espaços que se desenrola nosso treinamento físico e emocional ao longo da vida. É nesses espaços onde manifestamos nossa capacidade de nos adequar a rotinas e hábitos que exigem reações e disposições que parecem se confundir com nosso Eu. Foucault denomina esse processo de treinamento para a vida social de uma “microfísica do poder”, pois é a partir de níveis sutis e não evidentes materialmente que nos constituímos como sujeitos de um mundo controlado. Em seu jargão, passamos por processos de “docilização dos corpos”, nos tornando pouco rebeldes e facilmente controláveis para uma vida em todo normatizada, regrada, constantemente vigiada. Em Foucault, o poder não seria um fenômeno externo ao sujeito dominado e detido apenas por alguns capazes de dominar de forma maciça e homogênea, mas antes ele se encontra na forma de uma rede ou cadeia de relações onde todos seriam capazes de exerce-lo. A maioria submetida a um tipo de poder não é constituída por indivíduos impotentes, mas antes sujeitos ativos que se constituem a partir dessa situação (FOUCAULT, 1981:183). Se Platão cria uma máxima que até hoje se mantem muito vivida para o senso comum, a dualidade entre corpo e alma, pois para ele “o corpo é a prisão da alma”, Foucault inverte essa noção, pois que considera que a alma nos leva à existência e se constitui como uma das peças no domínio exercido pelo poder sobre o corpo, “a alma, efeito e instrumento de uma anatomia política: a alma, prisão do corpo” (Foucault, APUD SILVEIRA et al, 2003: 177). Nosso corpo não é apenas um

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repositório orgânico para uma existência inteligente, mas resultado modelável por nossos valores, de nossas tecnologias de verdade, de saber, de poder. Poder esse que não se restringe em nossa compreensão a maquina do Estado, a uma classe social ou a um tipo de ideologia, mas a todo um sistema de verdades, de conhecimento tornado ou não legitimo, de possibilidades de percepção do corpo e suas expressões de saúde, prazer, dor, desejos ou limites. É esse corpo e esse individuo foucaultiano que estão sendo resgatados como o objeto desse estudo, na medida em que considero que a busca atual pela prática do Yoga como bem-estar físico é consequência de corpos aprisionados em almas cujas verdades são impostas pelas tecnologias de verdade, saber e poder.

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4 O ENCONTRO DE DUAS TRADIÇÕES

Nos capítulos anteriores, foi realizado um resgate da historia do pensamento védico de onde se originou o Yoga e também da filosofia ocidental que desemboca em nossa condição social, de conhecimento e de conceitos sobre o corpo como o desfrutamos atualmente. Entendo que praticar Yoga exige que os alunos compreendam seu próprio corpo dentro de referenciais e sentimentos que apontam para suas determinações culturais, morais, além é claro, de suas expectativas sobre os resultados dessa técnica. O Yoga como exercício de asanas, exige um olhar para si mesmo. Esse olhar não é o mesmo que acontece em outras práticas como as ginasticas e esportes ocidentais. Não há espelhos, não há competição, e principalmente, o corpo gerado pela prática de Yoga não se assemelha com aqueles exibidos em revistas, telenovelas, anúncios publicitários nos quais indivíduos que se exercitam são visivelmente

identificados

pelas

formas

de

músculos

hipertrofiados

e/ou

correspondem a modelos de beleza em nossa cultura. Mesmo que o instrutor não mencione em sua aula qualquer conteúdo sobre Sutras, chakras, iluminação e liberação, e assim por diante, apenas o desafio de respirar de forma consciente, entender a técnica de construir um asana, permanecer durante algumas respirações imóvel, e relaxar no final já traz ao praticante um desafio e um estranhamento. Nada dessa rotina se assemelha a nossa tecnologia do eu. Nada dessa sequencia de atos físicos se assemelha a nossas técnicas corporais. Portanto entendo como Foucault, que nosso corpo não é independente e alheio a nossos saberes. Nosso corpo não é independente dos poderes que determinam nossos horários de atividade e descanso, de jejum e alimentação, de explicações sobre nossa saúde e dos profissionais habilitados aos seus cuidados e assim por diante. Esse corpo e esse eu aprisionados a seu tempo histórico entretanto, podem ser também entendidos como ferramentas cujas novas experiências sirvam para emancipar, descolonizar, ou ao menos colocar dentro de novas dimensões a relação com o mundo. Para refletir sobre essas questões, trarei a contribuição de

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antropólogos, professores de Yoga e acadêmicos em geral para nos guiar na tentativa de esclarecer esse processo de encontro dos praticantes de Yoga com um novo corpo-eu. Algumas questões em torno da prática de Yoga podem nos introduzir a essa esfera de autores e temas, como por exemplo com que significados a prática de Yoga é interpretado pelas pessoas atualmente; quais seriam as motivações para procurar essa, e não outra prática; o que as mantêm praticando ao longo do tempo. Como prática de autoconhecimento, o Yoga contempla uma multiplicidade de práticas conforme Patañjali em sua classificação das oito partes. Os professores instrutores podem conhecer essa visão do campo clássico conforme sua formação, e outros que podem eventualmente ter se habilitado em outras escolas não deixam de compreender que não são meros condutores das técnicas corporais. Entretanto os alunos chegam com expectativas que correspondem a um imaginário cultural cujas representações resultam de formações discursivas muitas vezes díspares ou mesmo contraditórias. Gnerre

e

Schenkel

(2011)

destacam

entre

esses

discursos

a

“filosofia

emagrecedora” que habilita o praticante a chegar “naturalmente” a um corpo esbelto e trabalhado por mudar a consciência do praticante em contato com sua filosofia, “um corpo ilimitado” capaz de contorcionismos e flexibilidade sem par, ou ainda de habilidades ímpares para a pratica sexual “capaz de obter/proporcionar o êxtase sexual através de poses exóticas”, ou ainda a melhoria das emoções com a diminuição da ansiedade e dos níveis de estresse. Mas trata-se de um escopo dispare para os quadros de compreensão compartimentadas de nossa herança filosófica, onde corpo e mente se encontram desvinculados. Portanto, praticar Yoga apresenta aos novatos uma serie de desafios que lhes colocam em uma nova posição sobre si mesmos, como vemos no trecho de Nunes Em cada exercício, em cada posição, o instrutor pede que os alunos estejam atentos ao que acontece no corpo, as sensações, os pensamentos que aparecem na paisagem mental, as emoções. Todos esses aspectos são passíveis de observações, são objetos. Isso quer dizer que nós somos algo além deles, diz Pedro [Kupfer]. O sujeito é colocado, assim, na posição de observador distanciado de si mesmo, como um flaneur de si mesmo que viaja interiormente pelas próprias emoções, pensamentos, corpo, sacrificando estes aspectos de si em favor de algo que está por trás desses elementos,

algo que os ilumina. (p. 75)

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Essa iluminação não está acessível a todos os novos praticantes, e talvez muitos deles sintam um imenso desconforto por ter que lidar com matrizes de discursos que sedimentaram durante séculos imagens de yogues indianos as vezes caricatas ou exageradas de faquires sujos, mendicantes e ignorantes (GNERRE e SCHENKEL, 2011). As vezes ainda romantizadas pelos renunciantes capazes de entrega a propósitos mais nobres do que a perversa realidade materialista de nossa civilização (NUNES, 2008). Outras ainda como perspicazes sábios detentores de segredos e técnicas exóticas que podem proporcionar uma felicidade sem precedentes em nossa cultura. As formações discursivas que foram se sobrepondo ao longo de nossa história de contato e distanciamento com o Oriente não pode ser deixada de lado nesse quadro excêntrico, através do qual precisamos “enquadrar” em nossas mentes e corpos ao que a Índia, o Yoga, seus costumes, suas crenças e seus mestres podem nos expor ou submeter. Entretanto, apesar de possíveis receios ou estranhamentos, a procura pelas práticas do Yoga tem crescido constantemente nos países ocidentais nas ultimas décadas. Muitos autores (NUNES, SIEGEL et. Al., GNERRE) associam esse interesse a disseminação e crescimento das influencias associadas a um grande campo denominado de “cultura alternativa”. O termo alternativo se refere a hábitos, crenças, conhecimentos e rituais fora do campo da cultura dominante. Dominante pois tratase de uma cultura que a partir do eixo econômico capitalista perpetua uma condição dos indivíduos dentro de um sistema social que para se reproduzir, controla os valores, a visão de mundo e até mesmo o uso da energia humana através da organização da mão de obra como força de trabalho. Essa cultura dominante converge para aspectos como o consumismo, as religiões dos grandes ramos judaico-cristãs que sustentam uma sociedade sem conflitos de crenças, até detalhes como hábitos de alimentação e tratamentos de saúde, ou consumo de produtos culturais como os da grande mídia. Como explica Nunes (2008, p. 14) Esses valores dominantes são: no campo religioso, as práticas religiosas institucionais; no campo terapêutico, a biomedicina; no campo político, o poder institucionalizado; no campo ecológico, o estilo de vida consumista e destruidor do meio ambiente.

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Assim, surge concomitantemente aos movimentos sociais de direitos civis durante a década de 1960, uma cisão geracional que através do movimento hippie reaproxima o Ocidente do Oriente agora não mais em termos da mera curiosidade pelo exótico ou pela mera necessidade de domínio econômico das civilizações distantes. O interesse dos jovens desde a década de 60 por novas formas de comportamento e visão de mundo, foi capaz de gerar um novo repertorio cultural. Especificamente apontado pelos autores mencionados acima, para o crescimento do Yoga entre os ocidentais, temos os chamados Novos Movimentos Religiosos e a contracultura. Partes integrantes da cultura alternativa, as comunidades que se dedicaram a algum deles, encontram no Yoga uma forma de expressão para solucionar o esgotamento promovido pela cultura dominante em grande parte das populações, especialmente as comunidades dos grandes centros urbanos. Siegel et.al. (2013, p. 174) indicam que como o Yoga se transformou em um “aromático bouquet de sincretismos religiosos” pois deriva de diferentes influencias como o Hinduísmo, Budismo, Jainismo e do Sikhismo. Oferecendo ensinamentos espirituais através de retiros (ashrams) e templos, se organizam para outorgar iniciações aos adeptos e inseri-los em uma hierarquia monástica e vertical. A busca por uma vida espiritual que fugisse aos padrões institucionais predominantemente vigentes até então, encontra representação em muitos movimentos religiosos associados ao Yoga que os autores apresentam como no trecho abaixo Dentre as quinze tradições yogues selecionadas para o estudo, nove podem ser classificadas como Novos Movimentos Religiosos, já que obedecem a certos aspectos religiosos ou uma síntese deles. Fazem parte deste conjunto: Self Realization Fellowship (Yogananda); IskonHare Krishnas (Prabuphada); Centro de Yoga e Meditação Ananda Marga (Prabhat Ranjan Sarkar); Organização Brahma Kumaris (Dada Lekhraj); Organização Sri Sai Baba (Sai Baba); Casa de Sri Aurobindo (Sri Aurobindo Gosh); Sociedade Internacional de Meditação Transcendental (Maharishi Mahesh); Grande Fraternidade Universal (S.R. de la Ferrière); 3HO Instituto de Kundalini Yoga do Brasil (Harbhajan Singh). (op.cit., itálicos pelos autores)

Já para os adeptos da contracultura voltaram seu olhar para outras expressões, e segundo Nunes (2008, p. 86), durante as décadas de 1960 e 70, tivemos uma “busca desenfreada” por coisas do Oriente, transformando a Índia em “moda”. “Maharishi foi um dos responsáveis por despertar este modismo, quando se ligou

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aos Beatles e outros grandes nomes do cinema, para difundir a sua ‘meditação transcendental’” (op.cit.). As expressões da contracultura foram muito abrangentes, e Wullstein (2009, p.36) lembra que a partir da matriz californiana, tornou-se um fenômeno mundial, com comunidades de jovens desenvolvendo agricultura de legumes e frutas, bijuterias e acessórios inspirados na Índia, roupas, túnicas e incensos. A música e a literatura encontram também seus representantes como a autora bem destaca Na música, vamos encontrar o então famoso Ravi Shankar que encantava a todos com seus instrumentos exóticos. Na literatura, os preferidos eram os autores indianos ou ocidentais envolvidos com a cultura oriental, tais como: Jiddu Krishnamurti (...), Rabindranath Tagore, Khalil Gibran, Hermann Hesse, Aldous Huxley, Paul Brunton, Bhagwan Rajneesh e tudo que se relacionasse ao Yoga. (op.cit.)

A busca pela “expansão da consciência” é o fio motivador para que essa geração procure se aproximar das propostas do Yoga. Mas como bem ressalta Nunes (2008, p.28 et.seq.) esse período caracteriza a cultura yoguica no Ocidente, e também no Brasil, por uma excessiva psicologização e experimentação com o corpo. O contraponto do interesse e apropriação do Yoga nesse período deixa como resultados, ainda segundo Nunes (p. 35 et.seq.), uma aculturação e uma institucionalização do Yoga entre nós. Aculturação para Nunes se refere a perda de autenticidade do conjunto original do Yoga quando transposto a um ambiente novo, segundo o discurso daqueles que o trazem do Oriente para cá. A necessidade de adequação a outro modelo de atitude, de pensamento, valores e até mesmo das técnicas corporais, leva a um afastamento das tradições religiosas onde surgiram. Nunes (2008, p.37) destaca que “originariamente estas técnicas religiosas têm o intuito de aproximação com o divino, mas quando desvinculadas de suas respectivas tradições transformam-se em tecnologia de alteração de estados corporais, psíquicos ou fisiológicos.” Sobre o impacto da institucionalização, o autor aponta que a especialização e a crescente profissionalização da prática, levaram os novos professores a um comportamento de criar e buscar espaços de atuação pautados mais pelo profissionalismo e tecnicismo do que pelo “carisma espiritual” ou aprofundamento

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religioso. É o momento em que o Ocidente se esforça, não no sentido de se igualar a um oriental, mas de se descolonizar dos antigos modelos euroamericanos através de uma apropriação de novos conteúdos. Esse “outro” oriental passa a servir como um verniz em uma estrutura desgastada que entretanto, motiva e seduz pela aparência de novo. Não demora para que dentro desse quadro, o Yoga se transforme em mais um tipo de mercadoria, encontrando seu lugar até se encaixar no sistema dominante. Algumas décadas mais tarde, a essas manifestações contraculturais e de religiosidades alternativas, soma-se um outro movimento que é o das medicinas alternativas e complementares. Mais uma crise de esgotamento e decadência dos paradigmas

e

práticas

dominantes,

dessa

vez

relacionados

a

medicina

institucionalizada, proporciona um novo momento de aproximação com o Yoga, quando o período a que Nunes denomina de “psicologização e experimentação” parecia já enfraquecido. A partir desse momento, a apropriação do Yoga vai conhecer então uma nova fase, a que Nunes (2008, p.34) denomina de “corporificação / desencantamento”. Os objetivos da prática passam agora pela busca de um “novo corpo”, sem a motivação psicológica e religiosa da fase anterior, mas de acordo com nossa lógica racional de um mundo desencantado (ver p.46). A racionalidade e o pragmatismo são fatores determinantes na forma como os indivíduos compreendem e assimilam as estruturas do Yoga. As chamadas terapias alternativas, ou práticas não convencionais, passam a ser apontadas como soluções complementares ao tratamento de uma serie de enfermidades cujo tratamento da medicina convencional não revertia para os pacientes em um ganho de qualidade de vida ou mesmo em respostas positivas, fosse por suas abordagens muito invasivas, fosse por gerar efeitos colaterais indesejados. Além das enfermidades como câncer, doenças crônicas ou da saúde mental, o envelhecimento e a obesidade passam a exigir abordagens e técnicas para as quais a medicina convencional passou a ser considerada insuficiente. Muitos autores (Siegel et.al. 2013, Pontes 2011, Furlanetti 2014) destacam a importância dessa mudança e o impacto institucional para profissionais da saúde, quando

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Em 2002, a Organização Mundial da Saúde (OMS) reconhece o Yoga como uma prática integrativa/complementar de saúde, que: atua como exercício físico, respiratório e mental; relaxa e contrai músculos, ocasionando automassagem sobre as glândulas endócrinas; expande a capacidade respiratória; e exercita a parte cognitiva e a atenção, por meio da meditação. Também, preconiza o autocuidado sem excessos nem vícios, uma alimentação saudável e vegetariana, a prática de uma ética e, sobretudo, a não-violência. (Siegel et.al., 2013, p.14)

O interessante é notar que nesse período, uma pesquisa sobre práticas complementares no currículo de medicina (Küllkamp et al., 2007, p.235) aponta que entre estudantes do curso de medicina convencional, 96,6% de entrevistados afirmam ter algum conhecimento sobre o assunto Yoga, 76,6% apontam a disposição para aprender e 73,6% indicariam a seus pacientes, apenas 10% afirmam ter sido um tema abordado em sala. Já para a medicina ayurvédica, que faz parte da mesma origem e tradição, 5,1% afirmam conhecer, 0,0% afirma que o tema foi abordado em aula, 44,2% gostariam de aprender e 10,1% recomendariam ou apoiaria o uso por seus pacientes (ANEXO C). Isso denota como a apropriação dessas tradições orientais ocorrem de forma parcial e de acordo com disposições culturais momentâneas, como os autores citados anteriormente destacaram. Como um fenômeno muito recente em nossa história, a presença dessa grande tradição védica no Ocidente parece ainda ser um movimento em ondas de modismos e/ou recursos de complementação ao nosso repertorio de conhecimento e de práticas. Tais ondas que atualizam e revisam o interesse ocidental pelo Oriente, ainda não foi suficiente para forjar um corpo, ou um ser que identifique no Yoga uma totalidade de preceitos e práticas que não podem ser desconectadas. Furlanetti (2015, p. 49 et seq.) em seu estudo aponta para o fato da crise no sistema médico tradicional levar a busca de alternativas para os tratamentos de saúde. É uma crise de paradigma, que coloca em cheque as noções meramente biomédicas como competentes e efetivas para os cuidados de saúde. Modelos mais integrativos, com terapêuticas menos focadas na clinica, que adotem práticas preventivas fazem parte de um novo cenário mundial, estimulado pela Organização Mundial de Saúde (OMS).

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Por isso homeopatia, Yoga, acupuntura, tai chi, entre outras práticas passam a integrar o cotidiano das pessoas, tendo se ampliado bastante nas ultimas décadas, tanto no âmbito comercial, como em instituições publicas como o SUS ou escolas. A forma como isso se deu entretanto reforça para outros autores além de Nunes a ideia de uma fase de desencantamento. Para Furlanetti (2014, p.57) por exemplo As abordagens modernas do Yoga foram se resignificando tornando progressivamente mais secular, pragmático e racionalista, adaptando-se à tônica ocidental, sendo aplicado como técnica de fitness e encaixando-o, cada vez mais, dentro da esfera conceitual de medicina alternativa. Atualmente há uma revalorização dessas práticas, sobretudo pelos profissionais com formação biomédica, porém ainda há dificuldade dos usuários relatarem suas experiências com essas praticas a esses profissionais.

Essa fase de desencantamento entretanto não se desenvolve sem um grande debate no campo dos profissionais e praticantes de Yoga. As críticas de uma excessiva comercialização, de uma descaracterização do saber e do aspecto devocional que o originou, gestou uma última e atual fase da incorporação do Yoga no ocidente a que Nunes (2008, p.38) denomina de “resgate/ reencantamento”, e que se caracteriza por uma busca moderna da tradição. É nessa nova fase que o Vedanta passa a ser valorizado como uma forma de tornar a presença da cultura yoguica no Ocidente algo mais próximo de seu registro e uso original, como a Índia mantem vivo até os dias de hoje. A oferta e crescimento de cursos tanto presenciais como a distancia, pode ser percebido no Brasil nos últimos anos. A representatividade desse saber tem crescido, e entre os estudiosos do Yoga no Brasil é percebido como uma importante mudança de padrões. Não há consenso a esse respeito, pois como foi afirmado ao longo desse texto, Yoga não é um campo homogêneo, e sim uma grande arvore cujos galhos e raízes se espalham desde seu surgimento. Ao longo dos milênios através dos quais continua existindo, e com sua disseminação para além das fronteiras da civilização que a criou, não há qualquer possibilidade de que se caracterize como um campo estático. As novas formas de desdobramento que trazem para o Yoga espaços sociais antes inexistente, deve dar ao processo de desenvolvimento dessa tradição fora de seu lugar de origem, novos significados e trazer novos padrões de conduta. Muitos pensadores da Antropologia têm proposto novas formas de refletir sobre os contatos

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interculturais e os fenômenos de apropriação, empréstimos ou transformação cultural dentro de conceitos como o de hibridismo cultural. A “mistura” de culturas com diferentes matrizes resulta nessa hibridização. Autores como Homi Babbha, Néstor Garcia Canclini e Stuart Hall fazem parte desse grupo (SOUSA, 2012). Com a globalização, as trocas de informações culturais adquiriram uma intensidade nunca antes experimentada, uma vez que com o desenvolvimento dos meios de comunicação e transporte, as distancias e o tempo estão “encurtados”, aproximando povos e culturas cujos contatos exigiam um processo mais longo. Para esses autores entretanto, apesar do hibridismo funcionar como uma “ameaça” às autoridades colonizadoras e dominantes, ele resulta de um processo onde o conflito e a tensão se fazem presentes. “[Ele] Resulta da contestação do discurso hegemônico dominante no qual a autoridade do colonizador é subvertida através da ironia do colonizado, que exige que suas diferenças culturais sejam observadas, produzindo assim, um discurso híbrido.”(op.cit.,p.5) Não se trata de um simples processo de adaptação a novos conteúdos culturais, ou de ressignificação apenas, mas da “junção entre duas matrizes culturais distintas” como Canclini afirma. No hibridismo cultural, os sujeitos não conseguem obter uma “sensação de completude ao dialogar com outras culturas”, mas permanecem num processo de indecisão e conflito pois tomam consciência que sua identidade está sendo reformulada, constantemente reconstruída. Se tomarmos a comunidade do Yoga no Ocidente, compreendendo a busca por uma interpretação, tradução, adaptação ou cópia como descrito nas fases ou ondas descritas acima, podemos perceber essa tensão. Tem se tratado de uma construção de novas formas de incorporação da cultura oriental, como da desconstrução de estereótipos, caricaturas ou equívocos anteriormente estabelecidos pela cultura dominante. A busca pela(s) identidade(s) yogue(s) no Ocidente continua.

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5 CONCLUSÕES Na tentativa de aproximar Índia e Grécia como duas diferentes tradições de conhecimento para compreender como nos relacionamos atualmente com o Yoga, foi possível constatar alguns vínculos históricos muito remotos que possibilita interpretar o quanto as antigas civilizações se assemelhavam em termos de indagações sobre a existência e as condições humanas. A partir da revisão bibliográfica, foi surpreendente a presença de autores europeus, norte americanos e indianos que desenvolvem pesquisas e reforçam o conceito da civilização védica como um importante manancial de saberes que pode ter, direta ou indiretamente influenciado através dos séculos tantas outras culturas. Muitos processos sociais que sempre se sucederam ao longo da história humana permitem trocas culturais, influencias e transformações cujos resultados talvez jamais possamos mensurar e compreender completamente. A consolidação dos grandes impérios na Antiguidade, os contatos através de mercadores, religiosos, processos imigratórios que realocam povos desde sempre, viajantes e exploradores, comerciantes e navegantes, e porque não citar os piratas, ladrões, gangues e saqueadores em geral que praticavam pilhagens. Todos esses processos sempre permitiram que as culturas humanas se desenvolvessem num contexto facilitador para gerar trocas culturais, conteúdos materiais e imateriais caracterizando-as como estruturas dinâmicas que se transformam constantemente a partir de duas forças conjuntas, que são a das influencias externas, e das influencias internas. A antropologia afirma que da mesma maneira como qualquer indivíduo se transforma como consequência das interações com outros indivíduos, as culturas também o fazem. E não parece ter sido diferente no tempo em que se desenvolveu a grande civilização védica, como em qualquer período histórico entre quaisquer culturas. Mas é fundamental ressaltar que as forças internas também são atuantes e transformadoras. Assim como cada individuo processa uma mesma informação ou experiência de forma distinta em relação a outros, um povo que entra em contato com outros fará usos e interpretações próprias. Quando uma tradição cultural é transposta a outra realidade há um esforço interpretativo por parte dos interessados. A prática do Yoga chega ao Ocidente, e portanto também no Brasil, relacionada com o interesse por uma forma de lidar com

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o corpo a partir da perspectiva de uma visão de mundo bastante distinta. Trata-se da cultura do “outro” sobre a qual há um profundo interesse, mas sobre ele se sobrepõe preconceitos, imagens distorcidas e as vezes caricaturais, receios, que constituem as formações discursivas com as quais todo iniciante vai se deparar em alguma medida. A Índia é então encarada como um repositório de “respostas” diferentes das nossas, mas que devem se “encaixar” em nossa forma de compreensão. Assim, alguns a encaram como uma “fuga” de nossa própria cultura, e aderem pelo que pode ter de “alternativo” a uma cultura dominante com a qual não estão felizes, enquanto outros a encaram como uma forma de “ciência” diferente da nossa. De fato o percurso histórico da chegada e permanência do Yoga no Ocidente, e especificamente no Brasil passou por fases que adquirem contornos e são marcadas por um contexto cultural amplo onde se mesclam o imaginário cultural bem como a nossa produção de conhecimento. É nesse quadro que os praticantes de Yoga bem como os professores transitam e procuram se situar de acordo com disposições que são ao mesmo tempo muito pessoais, mas que não podem estar sempre livres do meio que os circunda. Entre tantos aspectos interessantes que poderiam ser destacados nesse processo, chama especial atenção o fato que não apenas “nós” construímos e reconstruímos a Índia e o Yoga em nosso quadro de compreensão a cada fase dessas, mas “eles” passam por um período interessante no qual suas tradições adquirem uma importância global nunca antes experimentada. Isso também os posiciona nesse jogo de identidades e alteridades nas mesmas condições. Os “outros” que detêm em sua história a criação de tudo a que denominamos hinduísmo, dentro do qual podemos localizar o Yoga, precisam agora desenvolver mecanismos de enfrentamento para manter esses saberes e práticas e permitir sua transmissão em contextos predominantemente exógenos, mas ao mesmo tempo responder pelo que o resto do mundo faz em relação a eles. A prática do Yoga e o estudo Vedanta se encontra de tal forma disseminado que começam a surgir reinterpretações, releituras, que seu campo de atuação torna-se extremamente complexo. Isso cria novas formas, novas instituições, e porque não, até mesmo um novo campo que se sobrepõe ao anterior. Nesse contexto, poderíamos lembrar quantas pesquisas cientificas começam a surgir para comprovar ou não efeitos e eficácias de práticas como a meditação, os pranayamas ou até mesmo a prática

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constante de asanas. A incorporação e o uso social que venha a se fazer disso, traz para esse meio novas condições de enfrentamento, um novo imaginário cultural sobre ele, e obviamente expectativas que exigem posicionamento de todos os integrantes do meio. Quando os portugueses chegaram ao Brasil em 1500, pensaram estar chegando na Índia, e chamaram aos nativos de “índios”. Os portugueses colonizaram na Índia os estados de Goa, Damão e Diu, de onde saíram apenas na década de 1960. Entre o Brasil e a Índia existia Portugal. Agora fazemos parte de um mesmo bloco econômico denominado BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). Nossos laços internacionais sempre foram regidos por uma logica de grandes interesses que nos colocam “unidos” de forma a nos distanciar. Talvez o crescimento da comunidade yogue no Brasil permita pela primeira vez em nossa história, uma aproximação mais autentica. Estamos tão próximos e tão distantes.

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ANEXO A

fonte: TIMELINE OF INDIAN PHILOSOPHY por Amit Ray, disponível em , acesso em 30 Julho 16, 13:09

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ANEXO B

KALYAMA, Archarya. Yoga - Repensando a Tradição. São Paulo: Ibrasa. 2003. Desenho mostrando o colapso da civilização védica nos rios Indo e Sarasvati e o reassentamento do rio Ganges, (p.43). Baseado em FEUERSTEIN, G. A Tradição do Yoga, p. 141

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ANEXO C

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ANEXO D

Estátua de bronze de Zeus, séc. V a.C. Imagem disponível em , acesso em 02 Agosto 16, 11:35

Birabhadrasana ii – B.K.S.Iyengar, imagem disponível em , acesso em 02 Agosto 16, 11:39

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