Corpo e disciplina na carreira de comissária de bordo na Varig

July 31, 2017 | Autor: Carolina Castellitti | Categoria: Sociology, Anthropology, Urban Anthropology
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CORPO E DISCIPLINA NA CARREIRA DE COMISSARIA DE BORDO NA VARIG 1 Carolina Castellitti 2 Doutoranda PPGAS/MN/UFRJ

Meu interesse pela carreira de aeromoça partiu, em primeiro lugar, da possibilidade de dar continuidade as pesquisas que venho realizando desde a graduação, sobre trajetórias conjugais de mulheres de camadas medias e suas interfases com outras dimensões da vida, como a da ocupação. Neste sentido, é o modo de lidar com a interação entre o que podemos denominar o “projeto familiar” e o “projeto profissional”, em uma carreira que coloca desafios muito específicos aos sujeitos, pelo menos em termos da organização espaçotemporal da jornada de trabalho que devem enfrentar – e que na realidade se estende muito alem disso, o que me resultou particularmente instigante da vida de estas mulheres. No entanto, esta justificativa não diz nada em relação à outra escolha que tampouco é casual, que tem a ver com carreiras que pertencem ao passado e que acabaram junto com a empresa que as acolheu: a Varig, companhia aérea brasileira fundada em 1927 e que encerrou suas atividades em 2006. É o meu vinculo com uma pessoa que foi comissária de bordo da Varig até a falência da companhia, e minha familiaridade com o significado dessa carreira, tão ditoso em seu exercício quanto dramático no seu final, que me despertou o interesse pelas trajetórias dessas mulheres. Esse é o percurso que desemboca em minha pesquisa de doutorado, que propõe indagar as trajetórias de vida das comissárias de bordo da Varig a partir de sua própria narração do passado e do presente. Talvez os únicos recortes que ate o momento delimitam esta indagação sejam de tipo geracional e de gênero. O primeiro, porque se trata de uma geração de mulheres que ingressou na profissão por volta dos anos 1970 e ali permaneceram até a falência da Varig, uns 30 anos depois, atravessando todo o período de auge e decadência da companhia. Neste contexto temporal, a quebra da empresa as encontrou em uma situação especialmente complicada, com 50 anos de idade e uma hiperespecialização profissional, o que se traduziu em uma perspectiva complexa de reinserção 1

Trabalho apresentado no Seminário Interno dos Alunos do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional/UFRJ, realizado entre os dias 9 e 11 de dezembro de 2014. 2 Email para contato: [email protected]

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profissional. Em relação ao gênero, pelo menos nesta etapa inicial de pesquisa indago trajetórias de mulheres principalmente por uma questão de dados, pois ate o momento só tenho me topado com narrativas femininas3. No entanto, embora se trate de uma questão a aprofundar, considero que as transformações da condição da mulher na profissão de aeromoça e no espaço mais geral da aviação comercial4 colocam importantes questões para a análise. Neste texto me proponho iluminar uma parcela muito especifica desse quadro mais geral, que tem a ver com as condições do ingresso, do aprendizado e do exercício “sucedido” da profissão de comissária de bordo na Varig. Tratarei por tanto da lógica institucional da Varig no relacionamento com seus funcionários, refletida nos valores inculcados durante a carreira e no exercício da profissão, que podem ser formais e traduzíveis em forma de regras, ou informais e dependentes do contexto e da autoridade em questão. Segundo mostrarei, apesar do que a noção de lógica institucional possa aparentar, o que me proponho não requer um exercício de distanciamento e abstração intelectual, pois os próprios atores refletem sobre esse “método”, “estilo de administrar”, também chamado de “religião variguiana”. Com esse objetivo, apresento duas trajetórias de mulheres que se tornaram comissárias de bordo da Varig em momentos históricos diferentes, atravessando com sucesso as diferentes etapas e promoções oferecidas. Apesar das semelhanças de suas trajetórias – ambas nasceram em Porto Alegre e posteriormente se mudaram para o Rio de Janeiro; ingressaram na carreira de comissária na Varig muito jovens, e ali permaneceram até a aposentadoria; nenhuma delas casou, nem teve filhos – uma delas, mais velha, entrou na Varig uns vinte anos antes do que a outra, em um contexto de crescimento da empresa, e

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Atualmente me encontro no primeiro ano do doutorado, que corresponde a uma etapa de construção e definição da pesquisa, e de finalização dos créditos das disciplinas teóricas. Por tanto, tenho me dedicado ao mapeamento de informações relativas às aeromoças da Varig disponíveis em materiais impressos e digitais, como livros (entre os que tenho encontrado autobiografias e outros relatos em primeira pessoa), jornais, revistas, blogs e outros sites dedicados à aviação comercial brasileira. Embora neste percurso tenham começado a aparecer contatos e possibilidades de entrevistas, estou deixando esses caminhos abertos para uma etapa posterior, em que possa me dedicar em forma mais aprofundada ao trabalho de campo. 4 No trabalho As mulheres na aviação brasileira, Fay e Guimarães (2013) observam que apesar dos avanços em relação à presença feminina na cabine de comando, ainda há muito poucas mulheres pilotos e estas devem enfrentar inúmeros obstáculos para ascender na carreira. Por outro lado, até o momento não tenho encontrado nenhum trabalho que se dedique as transformações atuais em torno ao gênero do próprio cargo de comissário de bordo (algumas pessoas têm me comentado, e eu mesma observei em algumas ocasiões, que na atualidade é muito mais fácil encontrar comissários homens, mas infelizmente isto não passa de uma observação casual).

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hoje é considerada “um exemplo e uma inspiração para todos aqueles que se dedicam à arte de bem atender” (Custodio, 2014). Como procurarei mostrar a partir distintas narrativas5, Alice E. Klausz se transformou rapidamente de aprendiz em funcionaria de confiança do então presidente da companhia e logo depois instrutora, participando da elaboração do primeiro Manual de Comissários e Balconistas. Através de sua trajetória, pretendo iluminar as condições do surgimento da carreira de aeromoça no Brasil e os valores que nortearam o desenvolvimento dessa carreira desde seus inícios. A segunda trajetória é a de Cláudia Vasconcelos, comissária de bordo da Varig desde 1972 até 2001. O relato de Cláudia, que compõe um livro inteiro e resulta por tanto muito mais rico em detalhes, nos permitirá uma melhor aproximação à vida na Varig como experiência de aprendizado e trabalho em uma época considerada como o auge da companhia. Alice Editha Klausz, a “primeira comissária do Brasil” Alice E. Klausz começou sua carreira na Varig em agosto de 1954, após ler um anuncio dessa empresa no jornal convidando jovens para a profissão de aeromoça6. Junto com ela foram admitidas outras 19 mulheres, que conformariam o primeiro grupo de comissárias da companhia, que até esse momento só operava com comissários homens. Um ano antes, a Varig tinha passado por uma grande reestruturação depois de receber autorização do governo para operar voos aos Estados Unidos. Estes voos seriam realizados por novas aeronaves, o que no mundo da aviação comercial se traduz em novas complexidades para a tripulação responsável em termos de atendimento aos passageiros e segurança. Segundo a própria Alice em entrevista para o Jetsite, a decisão de contratar aeromoças veio do então presidente da companhia, Ruben Martin Berta, visando o atendimento da clientela feminina, pois se tratava de voos longos, equipados com poltronas-leito. Em suas palavras, “seria no mínimo deselegante ter homens cuidando das 5

Segundo o mencionado em relação a etapa atual da pesquisa, neste trabalho utilizo uma variedade de materiais que se encaixam no que normalmente se conhece como “fontes secundárias”: são discursos produzidos por outros agentes e para outros propósitos que não os da presente pesquisa. Para citar só os principais, utilizo duas narrativas em primeira pessoa com características autobiográficas, realizadas por duas comissárias da Varig, que foram publicadas em forma de livro e divulgadas e comentadas em blogs criados pelas próprias autoras. Também utilizo uma entrevista realizada a Alice E. Klausz por um site dedicado à aviação comercial, denominado “Jetsite”, e outros materiais jornalísticos disponíveis na Internet e citados nas referências deste trabalho. 6 Nos materiais que utilizo para este trabalho, as próprias autoras utilizam os termos “comissária” e “aeromoça” em forma indistinta, embora pareça existir uma preferência pelo termo “comissária”, principalmente em frases que aludem à auto-identificação.

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senhoras passageiras à bordo. Naquela época, era comum as pessoas trocarem de roupa em pleno voo e dormirem trajando pijamas”7. Embora no imaginário social contemporâneo a profissão de aeromoça esteja fortemente associada à figura feminina, nos primórdios da aviação comercial este era um espaço absolutamente masculino e as primeiras propostas de ter uma mulher como parte da tripulação não foram muito bem recebidas. Nos primeiros anos de atividade, as empresas de aviação comercial designavam um funcionário de terra (geralmente um despachante de aviação) para viajar como passageiro e prestar auxilio em caso de necessidade. Já no final da década de 1920, a Pan American Airways foi a primeira a solicitar a seus couriers – chamados assim por serem os responsáveis pela carga postal – um treinamento de primeiros socorros e de conhecimentos náuticos. Foi este papel no cuidado e no atendimento à saúde, através da figura da enfermeira, o que possibilitou a admissão de mulheres na profissão. Mesmo na Varig, a necessidade de contar com mulheres para “cuidar” das passageiras (mulheres) é aludida por Alice como uma condição mínima de “elegância”. Foi assim que 1930, a americana Ellen Church foi a primeira mulher a entrar para a aviação como aeromoça. Enfermeira e com formação em pilotagem, não teve sucesso na procura de emprego como piloto, mas teve a visão de propor o a contratação de jovens enfermeiras para auxiliar no atendimento aos passageiros. Segundo explica a comissária Rosa M. Custodio no seu blog, Os argumentos de Ellen Church foram aceitos pela empresa e depois passaram a ser usados nas campanhas publicitárias das empresas que procuravam atrair um número cada vez maior de passageiros, numa época em que viajar de avião não era comum e exigia muita coragem. A ênfase nas qualidades femininas foi sendo explorada de tal forma que as empresas deixaram de contratar rapazes e a profissão passou a ser vista como essencialmente feminina. Anos depois, essa situação teve seu fim, quando um candidato ao trabalho de aeromoço foi recusado pela United Air Lines por ser homem. Ele questionou seu direito na justiça e ganhou a causa. (CUSTODIO, 2014)

A aeromoça mulher passou assim de ser útil como enfermeira, a ser “elegante” como atendente e, pela mesma via, atraente como publicidade. No Brasil, o primeiro voo com

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Todas as falas de Alice Klausz em primeira pessoa foram extraídas da entrevista publicada no site Jetsite, que não possui data de publicação, mas é possível deduzir que tenha sido realizada por volta do ano 2010. A única informação que introduz a entrevista, além de alguns dados muito gerais sobre a trajetória da entrevistada, é que a mesma foi realizada “em seu impecável apartamento no bairro do Leblon, Rio de Janeiro”.

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aeromoças mulheres seria realizado pela Varig no dia 28 de julho de 1955, com destino a Nova York. Alice E. Klausz, que passou a ser conhecida como a primeira aeromoça do Brasil, formaria parte da tripulação de este voo inaugural. Inicialmente eram dois voos semanais que partiam do Rio de Janeiro e seguiam para Nova York, com escala em Belém, Port of Spain e Santo Domingo, e de regresso continuavam para o sul, passando por São Paulo, Porto Alegre, Montevidéu, até Buenos Aires. Segundo lembra “Dona Alice” em relação àquele primeiro voo, “foi longo, chegamos mortas de cansaço ao destino mas também com a sensação de dever cumprido. Seu Berta queria tudo sempre impecável e acho que no final da viagem ele não ficou decepcionado”. Ruben Berta, que foi o presidente da Varig até sua morte em 1966, acompanhou a carreira de Alice de perto, assim como a de todos os funcionários, pois segundo ela explica, tinha um “estilo paternalista”, generoso e “tratava a todos como se fossem filhos”. Rubem Berta foi um presidente muito importante na historia da Varig, em geral por sua intensa dedicação numa época em que a companhia viveu uma grande expansão, e mais especificamente por uma variedade de iniciativas que ele estimulou e contribuiu a realizar, como a Fundação de Funcionários da Varig, criada em 1945 e que após sua morte passaria a se chamar Fundação Ruben Berta. Alice o relembra como uma pessoa muito séria, focada e, sobretudo, exigente, que “se dedicava de corpo e alma para a companhia”. Alice Klausz, que por influencia da linhagem materna até os nove anos só falava alemão, tinha estudado biblioteconomia e trabalhava nessa área, e na época do ingresso na Varig também tinha começado a estudar direito, curso que teve que interromper e só acabaria concluindo uns vinte anos depois. Em 1957, um pouco mais de três anos depois de ter ingressado na empresa, Alice seria promovida a instrutora de comissários, para o qual teria que realizar um curso na companhia Swissair, em Zurique. A Varig tinha acordos de cooperação com esta empresa e a Lufthansa, que eram consideradas como “modelos perfeitos de organização e, sobretudo, bons serviços” pelo então presidente, Ruben Berta. Este tipo de ações era mostra, para Alice, de como a Varig investia em seus funcionários e fazia de todos, “sem distinção”, profissionais muito bem preparados. Como ela afirma, “a companhia sempre teve orgulho de seu time e nunca, nunca economizou na formação de seus quadros”. Ao retornar ao país após a experiência na Swissair, Alice ajudou a montar os cursos de treinamento e posteriormente a Escola de Comissários da Varig, que foi ideada

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pelo presidente como uma “escola modelo na região, no mínimo a melhor de América do Sul, e que pudesse até servir para treinar comissários de outras empresas”. Graças a sua formação como bibliotecária, ela também foi convidada pelo presidente para desenvolver os manuais da Varig (de comissários e balconistas), e para essa tarefa lhe foi assinada uma sala especial e uma secretaria. A relação com o presidente Ruben Berta, sempre caracterizada pelo respeito e admiração, só sofreu alguma tensão em relação à insistência de Alice de manter sua residência em Porto Alegre, resistindo o pedido do presidente de se estabelecer no Rio de Janeiro, principalmente a partir de 1961 quando a Varig comprou a Real Transportes Aéreos. Segundo ela relata, “quando disse que queria continuar no Sul, por razões, pessoais, Seu Berta ficou uma fera e disse que iria me demitir. E ia mesmo. Bem, para que isso não acontecesse, capitulei e uma parte do meu tempo foi dedicada a cuidar do padrão de serviços nos hotéis Tropical, que a Varig herdou quando assumiu o controle da Real naquele mesmo ano de 1961. Viajava para todas as cidades onde tínhamos hotéis: Iguaçú, Manaus, João Pessoa”. Em 1965, dois dias antes do fechamento da Panair, Ruben Berta chamou Alice, comentou sobre o iminente acontecimento e disse que ela iria se trasladar para a Europa, para cuidar do serviço que a Varig assumiria com essas novas rotas. Era uma informação de caráter segredo, o que demonstra a grande confiança que o presidente mantinha com sua funcionaria. Finalmente o deslocamento não ocorreu porque nos exames de saúde requeridos lhe foi detectado um câncer em face inicial, e Alice permaneceu no Brasil para o tratamento. Ela continuaria responsável pela Rede Tropical até 1984, cuidando do treinamento de comissárias na Escola e participando dos voos como Chefa de comissários. Segundo Dona Alice, “era corrido, mas eu sempre fui solteira e isso facilitava. Talvez até por isso nunca tenha me casado. Ou melhor, me casei foi com a carreira, com a Varig mesmo. [...] O que fazia era minha obrigação. Eu era severa, eu sei, mas muita gente por aí, quando me encontra, me agradece e me diz: [imitando voz de menina] ‘Dona Alice, obrigada, aprendi muito com a senhora’. Eu sou apaixonada pelo que faço, sabe, e exigia que as meninas fossem também”. Em maio de 1976 foi realizado no Rio de Janeiro o primeiro Congresso Mundial de Comissárias e Comissários de Voo. Alice Klausz participou do evento como Diretora da

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Escola de Comissários da Varig, e sua fala deu ênfase as condições da formação e do intenso treinamento dos comissários nesta companhia. Esta “mensagem”, disponibilizada no blog de RM Custodio, constitui uma amostra do tipo de pedagogia propugnado nessa instituição - pelo menos em relação aos comissários, mistura de controle rigoroso, disciplina e “paternalismo”, isto é, seguimento pessoalizado dos alunos e estabelecimento de um sistema de recompensas e prêmios mais ou menos informal, como a concessão de bilhetes aéreos para familiares. Se, como afirma Alice, a “arma secreta” da Varig era seu esmerado serviço de bordo, o serviço em si e o atendimento dos comissários eram alvo de estrito controle. Nas palavras da comissária, “ser exigente não era um capricho. Era um método. Melhor que nós reparássemos em cada detalhe, pois é isso que o passageiro faz. Então, melhor que nós corrigíssemos tudo ou quase tudo antes que os passageiros o fizessem. Eu lhe digo: só assim é que a Varig poderia competir contra as gigantes Air France, Lufthansa, PanAm”. Dona Alice, como seus alunos a chamam, aposentou-se aos 60 anos de idade, em 1989, depois de 35 anos de carreira, como comissária e instrutora. No mesmo ano de sua aposentadoria foi convidada a participar de um voo à base da Marinha na Antártida, e após lutar pela melhoria do serviço de bordo desses voos (pois “acreditava que era necessário que servissem comida quente, chá, café, bebidas reconfortantes”), lhe foi concedida a possibilidade de permanecer como comissária oficial, função que continuou realizando ate entrados seus 80 anos. No final da mencionada entrevista, Dona Alice é convidada a refletir sobre sua experiência na Varig, à qual vai se referir, emocionada, como uma universidade da vida inteira, uma verdadeira mãe, que “cuidava do bem estar de seus funcionários, que sabiam retribuir à altura”. “Claudia da Varig”

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Cláudia Vasconcelos entrou na Varig em 1972, com 17 anos de idade. Ela morava em Porto Alegre na casa da sua avó, após sua mãe ter sido aprovada em um concurso e transferida para uma cidade a pouco mais de 100 km da capital. Cláudia tinha trabalhado em uma clinica dedicada à saúde mental, e fazia um curso de investigadora na policia, mas 8

Todas as citações relativas à trajetória de Cláudia foram extraídas do livro de sua autoria intitulado Estrela Brasileira. O livro apresenta uma narração em primeira pessoa, do panorama geral da historia da Varig, usando a trajetória da autora como “coluna dorsal, sem a audácia de querer fazer disso uma autobiografia” (VASCONCELOS, 2011).

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seu sonho era passar no vestibular de alguma universidade publica para estudar medicina 9. Do mesmo modo que Alice, embora vinte anos depois, um dia se deparou com um anúncio da Varig no Correio do Povo convidando jovens para a carreira de aeromoça e decidiu fazer sua inscrição. Sobre o dia da entrevista, ela lembra “depois de blefar sobre as aptidões no idioma inglês e mal acreditar ter enganado a banca examinadora, composta por poderosos chefões do comissariado de voo, fui alvejada por toda espécie de perguntas. Ao lado de uma implacável balança com medidor de altura, tremia feito vara verde na cadeira solitária em frente a eles, com o rosto avermelhado e algumas espinhas instaladas inoportunamente”. Nesta primeira fase da entrevista, segundo explica mais adiante, eram observados os itens relativos à aparência pessoal: “altura mínima de 1,60m compatível com o peso, pele saudável, belo sorriso e desenvoltura”. Sendo aprovados, os candidatos eram encaminhados para a área responsável pelos exames psicotécnicos e depois para o Serviço Medico, para realizar exames completos (audiometria, eletrocardiograma, ginecologia, odontologia, etc.). Uma vez realizados os exames, os candidatos eram aptos para iniciar o curso no Rio de Janeiro e recebiam uma passagem para o traslado. Para Cláudia, foi o primeiro encontro com um avião. Já no Rio, recebiam o uniforme, regulamentos e materiais dos cursos, e eram levados para os locais onde seriam alojados: os homens em um hotel e as mulheres em um pensionato de irmãs católicas, localizado ao lado da igreja Nossa Senhora da Paz em Ipanema. Segundo relata Cláudia, ao chegar foram recepcionadas pelas freiras, que “com muita delicadeza por trás das palavras imperiosas, nos ditaram as práticas que deveríamos adotar: rezar antes das refeições, comer o que fosse servido, proibição de consumo de bebidas alcoólicas, manutenção da limpeza dos quartos e banheiros, horário-limite de chegada à noite, respeito ao silencio noturno, etc”. Para Cláudia não foi difícil se adaptar àquele rigor, pois já vivenciara uma experiência semelhante quando sua mãe foi transferida para Lajeado, e ela e sua irmã permaneceram em Porto Alegre em um pensionato de freiras. Os cursos de formação de comissários tinham três meses de duração, com uma carga horária de oito horas diárias. Incluíam disciplinas como medicina de aviação,

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Mais tarde, Cláudia prestaria vestibular em economia e embora conseguisse freqüentar as aulas com muita dificuldade, já que dependida “da boa vontade do escalador”, conseguiria se formar alguns anos depois. Ela menciona ter recebido um convite do Presidente Hélio Smidt para ser economista da Varig, que acabou rejeitando por não oferecer uma melhora de salário.

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primeiros socorros, meteorologia, normas e organograma da empresa, tipos de aviões, serviço de bordo etc. Nas aulas práticas, os alunos tinham que aprender desde sobrevivência na selva e combate a incêndios, até expressão oral e “etiqueta”. Estas aulas eram ministradas por professoras que seguiam as regras da “mestra” Maria Augusta Nielsen, fundadora de Socila, escola de etiqueta e “boas maneiras” freqüentada por mulheres da alta sociedade carioca a partir dos anos 1950. Nesses cursos as aprendizes de aeromoça eram instruídas em regras para “aprender a sentar”, “cruzar as pernas”, “portar-se à mesa”, higiene pessoal e postura, “cortes e coques de cabelo”, maquiagem, uso de acessórios e cuidado do uniforme. Mais tarde, Cláudia se refere à então Chefa de Comissárias, uma ex-inspetora de voo muito elegante e delicada, proveniente de uma “família abastada”, que no cargo atual exercia um controle estrito do “manequim” e da aparência pessoal das comissárias, controle simbolizado pelo “binômio balança/espelho bem ao lado de sua mesa”. Nesses anos, a Escola de Formação de Comissários era dirigida por Dona Alice, a quem Cláudia se refere como uma “gaucha de origem germânica que mantinha o treinamento sob absoluto controle, com postura impecável, cabelos sempre muito bem penteados, maquiagem discreta, roupas elegantes e sóbrias com poucos adornos, educação irretocável, falando vários idiomas, o andar ‘encaixado’ e a voz marcante num sorriso pontual”. Segundo Cláudia, durante sua administração da “escolinha”, Alice inculcou em todos seus alunos valores, princípios e reverencia no trato pessoal, assim como o respeito às hierarquias, e a exigência de “não misturar a vida pessoal com a profissional”. Para Cláudia, Dona Alice era rigorosa, mas tinha uma “natureza maternal e suave”; transmitia um conceito de disciplina que era sinônimo de estética, harmonia e tratamento formal. Aos conteúdos formais e à estrita disciplina do corpo e dos comportamentos (ELIAS, 2009), ela acrescentava uma série de alertas mais “informais” relativos à uma “clara divisão hierárquica que devia ser respeitada piamente”, entre os comandantes e demais técnicos, e o resto da tripulação. Essa hierarquia se refletia, por exemplo, nos restaurantes nos quais era servido o almoço: os comissários almoçavam no “restaurante B”, junto com funcionários de menor grau como mecânicos, office-boys e pessoal de limpeza. Cláudia também teve uma carreira exitosa, e rapidamente foi atravessando toda a escala de promoções que a companhia oferecia: dos voos nacionais para os internacionais, e

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entre os diferentes tipos de aviões. No entanto, ela reconhece que “este conceito de promoções era valido somente para as comissárias; até então, não concorríamos aos cargos de chefia, o que fazia sentido na medida em que trabalhávamos numa empresa gaúcha onde imperava o machismo”. Mas este é um dos poucos reclamos que se encontrão ao longo do livro, pois o trabalho na Varig é em geral alvo de orgulho e elogios por parte de Cláudia. O respeito pelas hierarquias (de funções e de gênero) e “a origem germânica disciplinadora que norteou os parâmetros a serem atingidos”, junto ao comprometimento de Ruben Berta, obstinado pela perfeição em atendimento e segurança, eram os fundamentos da “religião variguiana” para Cláudia. Com esses fundamentos a companhia lograva exitosamente transformar um grupo muito heterogêneo de pessoas (oriundas de diversas partes do Brasil e do mundo), em um conjunto coeso, focalizado no objetivo a ser alcançado, “que era basicamente atender ao passageiro de forma a conquistá-lo, transformando-o em cliente fidelizado”. Além do respaldo da Fundação Ruben Berta, que garantia a distribuição dos lucros da empresa investindo na área da assistência social, “os salários eram atraentes e as vantagens oferecidas muito convidativas”. Para Cláudia, através destas medidas a Varig “aumentava o comprometimento dos funcionários e a satisfação dos familiares, resultando em maior produtividade: era o círculo vicioso da mais bem-sucedida experiência socializante do Brasil”. Por outro lado, em uma época em que viajar era “um verdadeiro evento”, os voos internacionais constituíam cenários caracterizados pelo “glamour”, e por meio deles os comissários tinham acesso a todo um mercado de luxosos produtos importados, como jóias e roupas de grife. Segundo Cláudia, “foi nesse período que blusas Courrèges, saias Channel, sapatos Charles Jourdan, bolsas Pierre Cardin e conjuntos Cacharel se tornaram integrantes do meu vocabulário e, eventualmente, de meu armário. Foi também quando vi a face mais cruel da profissão, que tinha a solidão como sua companheira mais constante, amenizada pelo consumo de antidepresivos, drogas e álcool por alguns colegas”. Ao final do livro ela vai se referir novamente ao papel da “compensação material” para preencher “lacunas emocionais”: “o consumismo era a válvula de escape”. A diferença de Alice, Cláudia teve que viver em carne própria o declínio e a crise da companhia que por tanto temo “a acolheu”. Não cabe neste trabalho me dedicar a uma

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questão tão complexa, mas de modo geral podemos mencionar que, independentemente dos graves acidentes, que representaram cada um em si uma crise especifica, a partir de 1996 a Varig começou a ter balanços negativos e nunca mais se recuperou completamente. Muitos fatores concorreram para este desenlace, alguns de índole macroeconômica, como as subidas no preço internacional do petróleo, outros de índole local, relativos às orientações políticas dos distintos governos nacionais, e outros mais específicos ao próprio desenvolvimento do campo da aviação comercial no Brasil e no mundo. No que diz respeito aos funcionários, talvez a primeira demonstração desse final dramático foi a liquidação do AERUS, um fundo de pensão para os trabalhadores da aviação criado em 1982 pela Varig, a Cruzeiro e a Transbrasil. Segundo Cláudia, nesse período “centenas de funcionários e pensionistas foram à depressão profunda e, como resultado, desenvolveram cânceres de angústia, sem ter condições de arcar com despensas de saúde e o sustento de suas famílias”. Entre doenças e suicídios, morreram mais de 300 dos participantes do AERUS. Naquela época, Cláudia exercia sua função de chefia com dificuldades, tendo que dirigir um grupo enorme de comissários sem ter como lhes garantir possibilidades de melhorias profissionais efetivas. Em suas palavras: “quanto a mim, que me achava tão forte, não resisti à pressão constante e entrei em depressão. (...) Percebi que a vibração que me movia em direção aos aviões da vida havia se extinguido. Lamentei, mas senti vontade de abrir a porta daquele charuto metálico e me atirar no vazio. (...) Dali em diante, foi um penar constante, pulando de psiquiatra em psiquiatra da Aeronáutica e da Varig”. No dia 11 de setembro de 2001, o mesmo dia do atentado às torres gêmeas do World Trade Center (acontecimento que, por si mesmo, trouxe importantes transformações para o serviço da aviação comercial no mundo), Cláudia foi aposentada da Varig. Mas as demissões em massa só começaram em julho de 2006, “levando ao desespero funcionários dedicados que haviam acreditado numa possível recuperação, muitos deles com mais de cinqüenta anos: velhos demais para arranjar emprego, sem mercado de trabalho que os absorvesse nem idade suficiente para solicitarem aposentadoria”. Caminhos a andar Por se tratar de uma etapa preliminar da pesquisa, minha intenção neste texto foi trazer para o debate uma seleção de “falas” e algumas impressões etnográficas bastante

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prematuras. Por tanto, a modo de fechamento tentarei recuperar em forma mais sistemática algumas dessas impressões e explicitar possíveis caminhos interpretativos, que espero que o debate contribua a confrontar, desdobrar e de diferentes modos desenvolver. Em primeiro lugar, sinto a responsabilidade de chamar a atenção para uma inconsistência entre o lugar outorgado ao corpo no titulo deste trabalho e a seleção de relatos escolhidos. Acho que o modelo das trajetórias acabou limitando o espaço que pretendia dar à problematização do corpo das comissárias, que junto à noção de disciplina, me parecem ser tão centrais no discurso destas mulheres quanto instigantes para a análise antropológica. Os capítulos finais do livro de Cláudia, extremamente auto-reflexivos, estão cheios de metáforas nas que elementos relativos à corporalidade aparecem alternativamente como veiculo ou como tenor: o hábito de servir os clientes de forma respeitosa, que leva a se comportar da mesma maneira fora do serviço, porque “ta na veia servir”; a sujeição à escala de voo é comparada à adaptação a “travesseiros, colchões e camas de diversos modelos e tamanhos”, e ambos os hábitos encenam “a maleabilidade para ajustar nossos corpos e mentes ao que nos era oferecido”; a contínua exigência de manter a forma, a apresentação pessoal e o comportamento impecáveis, é representada pela ideia do uniforme como “uma prisão em forma de tecido”. A ideia de “corpos maleáveis”, “ajustáveis”, nos faz remeter quase automaticamente à noção de corpos dóceis de Foucault que, não por acaso, se encontra atrelada a suas analises sobre a disciplina. Segundo vimos no relato de Cláudia, a noção de disciplina transmitida no ensino da profissão de comissária de bordo estava diretamente dirigida ao corpo, sua “apresentação”, sua “beleza” e seus movimentos. Por outro lado, a conjunção de outros tipos de saberes que foram se adicionando de forma acessória ao exercício da profissão, sendo oferecidos como “benefícios”, saberes vinculados à medicina e ao conhecimento do corpo10, pode ser interpretada na mesma direção, como mecanismos de uma anatomia política que, em palavras de Foucault, Define cómo se puede hacer presa en el cuerpo de los demás, no simplemente para que ellos hagan lo que se desea, sino para que operen como se quiere, con las técnicas, según la rapidez y la eficacia que se No livro Estrela Brasileira se mencionam dois desses benefícios: o Serviço Médico, “criado com o intuído de atender os funcionários da empresa em todos os escalões”, composto por médicos de diversas especialidades, enfermeiras e assistentes sociais (Cláudia se detém mais extensamente no serviço de psiquiatria); e o Programa Vigilantes do Peso, “atendendo não somente às questões estéticas, mas atingindo o seu foco principal: a reeducação alimentar”. 10

13 determina. La disciplina fabrica así cuerpos sometidos y ejercitados, cuerpos "dóciles". La disciplina aumenta las fuerzas del cuerpo (en términos económicos de utilidad) y disminuye esas mismas fuerzas (en términos políticos de obediencia). En una palabra: disocia el poder del cuerpo; de una parte, hace de este poder una "aptitud", una "capacidad" que trata de aumentar, y cambia por otra parte la energía, la potencia que de ello podría resultar, y la convierte en una relación de sujeción estricta. (FOUCAULT, 2002, p. 142-143)

Nesta direção, também caberia nos perguntarmos pelas possibilidades de agencia dos corpos assim produzidos, exercitados, “embelecidos”, nos limites do exercício “correto”, permitido e esperado pela chamada lógica institucional transmitida. Estou pensando, por exemplo, nos relacionamentos entre comissárias e técnicos, ilícitos do ponto de vista da norma de “não misturar a vida pessoal com a vida profissional”, mas tão comuns e pouco controláveis como o evidencia a quantidade de casamentos entre comissárias e pilotos. A relação entre aprendizado e corpo também remete ao conceito de habitus de Pierre Bourdieu, principalmente na discussão sobre a noção de sentido prático. No livro Méditations pascaliennes, Bourdieu dedica um capitulo à ideia do conhecimento por corpos, e em relação à noção de habitus afirma que uma de suas potencialidades radica em resgatar o “aspecto ativo” do conhecimento prático que a tradição materialista (em referencia ao Marx das Thesen über Feuerbach) já tinha deixado em seu poder. Nesse sentido, afirma: Ésta es, precisamente, la función de la noción de habitus, que restituye a la gente un poder generador y unificador, elaborador y clasificador, y le recuerda al mismo tiempo que esa capacidad de elaborar la realidad social, a su vez socialmente elaborada, no es la de un sujeto trascendente, sino la de un cuerpo socializado, que invierte en la práctica de los principios organizadores socialmente elaborados y adquiridos en el decurso de una experiencia social situada y fechada. (BOURDIEU, 1999, p. 181)

Por outro lado, a relação entre aprendizado, corpo e disciplina também é problematizada na análise que empreende este autor sobre a assimilação da dominação masculina que opera na naturalização da construção social dos corpos como femininos e masculinos (BOURDIEU, 2000, p. 36). Na observação das mulheres cabilas e recuperando as contribuições da tradição feminista, o sociólogo francês vai observar que a moral feminina se impõe sobre tudo através de uma disciplina constante que afeta todas as partes do corpo e é exercida continuamente mediante a pressão sobre as roupas e o cabelo. São estas maneiras de ensinar às mulheres a ocupar o espaço, andar, e adotar posições corporais

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convenientes. Se as observações do autor sobre essas posições corporais femininas não bastassem para nos deslocarmos automaticamente aos ensinos transmitidos na carreira de comissária de bordo comentados acima, o próprio Bourdieu traz este exemplo para dizer que todo o que permanece em um estado implícito no aprendizado normal da feminilidade, alcança sua máxima explicitação nas “escolas de aeromoças” e seus cursos de comportamento e de “saber estar” (BOURDIEU, 2000, n. 46). Finalmente, foi a partir do capítulo já citado das Méditations pascaliennes que comecei a pensar nos rasgos do tipo de formação e relação de trabalho implicado na carreira de aeromoça que se aproximam das análises de Goffman sobre as instituições totais. Recuperando esse conceito, Bourdieu propõe a ideia de aparelho, através do qual a instituição tende a consagrar aos agentes que dão tudo por ela (o partido, a igreja, ou a empresa, são os exemplos que ele dá). El apparátchik que lo debe todo al aparato es el aparato hecho hombre, dispuesto a darlo todo a un aparato que le ha dado todo: se pueden poner en sus manos, sin temor, las más altas responsabilidades, puesto que nada puede hacer para hacer progresar sus intereses sin que, precisamente por eso mismo, satisfaga también las expectativas y los intereses del aparato. BOURDIEU, 1999, p. 208)

Estas noções contribuem a esclarecer dinâmicas institucionais como as do sistema de recompensas e prêmios referido anteriormente, enunciado por Alice a partir da ideia de que a Varig “cuidava do bem estar de seus funcionários, que sabiam retribuir à altura”; assim como iluminar a relação de forte identificação com a empresa, abertamente declarada em ambos os relatos11. No entanto, a ideia de instituição total por si própria, segundo foi proposta por Erving Goffman, aponta vários elementos constituintes de profissões como a de aeromoça. Embora neste caso os indivíduos não se encontrem completamente isolados da sociedade, se encontram sim isolados durante o voo e, o que resulta mais importante, trata-se de uma profissão que impõe uma regulação muito particular do tempo e do espaço, durante o serviço (no voo) e também depois, nos pernoites entre voos em distintas cidades do mundo. Nas palavras de Cláudia, “a escala de voo regia nossa vida”. Também neste sentido, em sua 11

Narrando sua experiência na promoção para o mais alto cargo hierárquico da carreira de comissária, Cláudia lembra as divisas douradas identificando meu cargo, presas às mangas do casaco, tinham sabor de conquista, e o nome escrito em baixo-relevo na plaqueta de ‘Chefe de Equipe’ me enchia de satisfação. A sensação de pertencimento era tal, que desde que entrei na Varig as pessoas só se referiam a mim como “Cláudia da Varig”.

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pesquisa sobre os aprendizes de boxe, Loïc Wacquant recupera uma analogia nativa da prática pugilística com o exercito para se referir à academia de boxe como uma “instituição quase total” (WACQUANT, 2002, p. 75). O papel da disciplina nesta prática também é central, assim como o sentimento de pertencimento, e a exigência de “sacrifícios” para além da academia. As aproximações são muitas e os contrastes também, mas o sentido do exercício não deve ser afirmar se o trabalho na aviação comercial constitui uma atividade do tipo das realizadas em instituições totais, mas nos permitir enxergar caminhos, propriedades e sutilezas que talvez de outro modo passariam desapercebidas. Por exemplo, no caso de uma prática comumente reconhecida pelas “liberdades” que oferece (segundo um senso comum que associa liberdade a “viajar pelo mundo inteiro”), reconhecer que, embora essas possibilidades existam e sejam uns dos motivos da escolha da profissão, e de orgulho e satisfação por quem a exerce, as restrições em termos de organização do tempo e manutenção de laços sociais são muitas. É uma das ambigüidades constituintes da profissão, que aparece constantemente no relato de Cláudia, como quando afirma “nenhum de nós tinha direito a feriados ou datas importantes e devia cumprir regras e padrões com vigor. Os laços familiares eram distendidos pela ausência continua”. Trazer a tona o papel da disciplina e do corpo na formação da comissária de bordo, assim como o diálogo proposto com alguns conceitos da tradição antropológica, é um dos caminhos possíveis para dar inteligibilidade às condições dessa carreira e, um aspecto que aqui foi menos elaborado, ao drama que significou a falência da Varig para todas as pessoas que tinham dedicado suas vidas a essa empresa. Os outros caminhos possíveis são numerosos e também instigantes, como por exemplo, um dos que mais me interessa que tem a ver com o papel da família e da conjugalidade na vida destas mulheres, que aqui apareceu muito brevemente mencionado. Na realidade, não é uma questão que tenha muita cabida nas narrativas12, o que provavelmente seja um signo da complexidade do papel dos vínculos afetivos na vida dessas mulheres. Ainda são muitos os caminhos à andar.

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A diferença de Alice, que em um relato muito menor menciona que ser solteira seguramente a ajudou a poder realizar todas as responsabilidades que tinha na empresa, Cláudia em nenhum momento se refere a suas experiências conjugais. No começo do livro, menciona algumas ocasiões em que sua “virgindade” teria representado uma dificuldade para lidar com certas situações, mas depois disso não volta a falar de relacionamentos, namoros, casamentos, filhos etc.

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REFERENCIAS ARQUIVO JETSITE. A 1º comissária do Brasil. Disponível em: http://www.aviacao comercial.net/jetsite/reportagens _1comissaria.htm. Acessado por última vez no dia 14 de novembro de 2014. BOURDIEU, Pierre. 2000. La dominación masculina. Barcelona: Anagrama. _____ 2011. Meditações Pascalianas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. CUSTODIO, Rosa M. Comissárias de voo & suas historias de vida. Disponível em: http://

rmcustodio.blogspot.com.br/2014/06/breve-historico-da-profissao-o-pioneiro.html.

Acessado por última vez no dia 14 de novembro de 2014. ELIAS, Norbert. 2009. El proceso de la civilización: Investigaciones sociogenéticas y psicogenéticas. México: Fondo de Cultura Económica. FOUCAULT, Michel. 2002. Vigilar y Castigar: nacimiento de la prisión. Buenos Aires: Siglo XXI. GOFFMAN, Erving. 2001. Internados: ensayos sobre la situación social de los enfermos mentales. Buenos Aires: Amorrortu. VARIG Brasil. História. Disponível em: http://www.varig-airlines.com/pt/index.htm. Acessado por última vez no dia 14 de novembro de 2014. VASCONCELOS, Cláudia. 2011. A Estrela Brasileira. Petrópolis: KindleBookBr. WACQUANT, Loic. 2002. De corpo e alma: notas etnográficas de um aprendiz de boxe. Rio de Janeiro: Relume Dumará.

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