CORPOS INTERSEX BORRANDO FRONTEIRAS DO DISCURSO MÉDICO

May 22, 2017 | Autor: Juliana Sampaio | Categoria: Intersexuality, Health, Saúde, Intersexualidade
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ CENTRO DE HUMANIDADES DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA CURSO DE PSICOLOGIA

JULIANA VIEIRA SAMPAIO

QUIMERAS: CORPOS INTERSEX BORRANDO FRONTEIRAS DO DISCURSO MÉDICO

FORTALEZA (CE) 2010

JULIANA VIEIRA SAMPAIO

QUIMERAS: CORPOS INTERSEX BORRANDO FRONTEIRAS DO DISCURSO MÉDICO Monografia apresentada à Coordenação de Graduação do Curso de Psicologia, da Universidade Federal do Ceará, como parte dos requisitos para a obtenção dos créditos da disciplina de Monografia.

Orientador: Prof. Dr. Ricardo Pimentel Méllo.

FORTALEZA 2010

JULIANA VIEIRA SAMPAIO

QUIMERAS: CORPOS INTERSEX BORRANDO FRONTEIRAS DO DISCURSO MÉDICO Monografia apresentada à Coordenação de Graduação do Curso de Psicologia, da Universidade Federal do Ceará, como parte dos requisitos para a obtenção dos créditos da disciplina de Monografia.

Orientador: Prof. Dr. Ricardo Pimentel Méllo.

FORTALEZA 2010

Sampaio, Juliana Vieira. Quimeras: corpos intersex borrando fronteiras do discurso médico / Juliana Vieira Sampaio. – 2010. 71 f. ; 31 cm. Cópia de computador (printout(s)). Monografia (Graduação) – Universidade Federal do Ceará, Centro de Humanidades, Departamento de Psicologia, Curso de Psicologia, Fortaleza(CE), 07/12/2010. S183q

Orientação: Prof. Dr. Ricardo Pimentel Méllo Inclui bibliografia.

1-INTERSEXUALIDADE. 2-SEXO(PSICOLOGIA). 3-TEORIA QUEER. I- Méllo, Ricardo Pimentel, orientador. II - Universidade Federal do Ceará. III- Título. CDD (22ª ed.) 616.694

JULIANA VIEIRA SAMPAIO

QUIMERAS: CORPOS INTERSEX BORRANDO FRONTEIRAS DO DISCURSO MÉDICO Monografia apresentada à Coordenação de Graduação do Curso de Psicologia, da Universidade Federal do Ceará, como parte dos requisitos para a obtenção dos créditos da disciplina de Monografia.

Orientador: Prof. Dr. Ricardo Pimentel Méllo.

Data da defesa: ____/____/____ Conceito: _____________

BANCA EXAMINADORA ______________________________________ Prof. Dr. Ricardo Pimentel Méllo (UFC) (Orientador)

_______________________________________ Profª. Dra. Luciana Lobo Miranda (UFC) (Membro)

_______________________________________ Ma. Juliana Frota da Justa Coelho (Membro)

Aos que Quimeras.

caminharam

comigo

entre

AGRADECIMENTOS Agradeço à minha família, Julio meu pai, Joana minha mãe e Jean meu irmão, simplesmente por existirem na minha vida. Ao Victor por ajudar com os textos em espanhol e estimular para que continuasse escrevendo esse trabalho. Em especial, agradeço por, sempre, estar disposto a me acompanhar nesse e em outros caminhos, mesmo quando me perco. Ao Ricardo, meu orientador, por me oferecer carona quando perdi o bonde. Por me mostrar o quanto pode ser prazeroso pesquisar. E por sempre me tirar dos lugares de certezas e verdades. Ao grupo de Práticas Discursivas, sempre muito animador e provocador, que me incentivava a não parar de pesquisar, mesmo nos momentos mais difíceis. As que seguiram outros caminhos Layla, Ivna, Camila, Thainá, Rose, Rayssa, Hanna e Luciene. As que chegaram Cely e Raquel. Ao grupo de sempre: Juliana Ribeiro, Hanna, Ivna e Layla. Ao grupo do bosque, Luciene, Luísa e Juliana Ribeiro, pela conversas sempre divertidas no fim do dia. A Juliana Ribeiro, pela serenidade nos momentos de aflição e por sempre ter todas as bibliografias e filmes. A Luísa, pelas inúmeras perguntas, sempre acompanhadas por um semblante questionador. Pelos livros e filmes. Pelos sorrisos e programações culturais de Fortaleza. Aos membros da banca por terem aceitado participar desse momento importante da minha vida.

Não me pergunte quem sou e não me digam para permanecer o mesmo: isso é moral de estado civil; ela rege nossos papeis. Que ela nos deixe livres quando se trata de escrever. (FOUCAULT, 2008, p. 28).

RESUMO Esta monografia teve como objetivo pesquisar de que modo a concepção de corpo normal, pautada no saber médico biologicista, gerencia os corpos intersex. Segundo a Sociedade Intersex Norte Americana (ISNA, 2010) intersex é um termo utilizado para nomear corpos cuja anatomia “não se encaixa nos padrões de sexo masculino e feminino”. Trazemos para dialogar sobre esses corpos, um movimento oposto a normalização biomédica: o Movimento Queer. Este surge em meados da década de 1980, nos Estados Unidos, reunindo diferentes grupos que questionavam a heteronormatividade e as chamadas políticas de identidades, reunindo diversos estudiosos da temática gay, lésbica, feminista, transexual, entre outros. Usamos documentos como fonte principal de análise para a compreensão da intersexualidade. Adotamos a postura de tratar esse material documental como prática discursiva. Foram eleitos documentos cuja fonte de produção se origina no saber médico, e os classificamos em duas categorias: acadêmico e jurídico. Analisamos nesses documentos a concepção de corpo normal, os exames realizados para o diagnóstico de intersexualidade, quais características um corpo deve apresentar para ser nomeado como feminino ou masculino e quais intervenções são realizadas nesses corpos diagnosticados e classificados: o uso de fármacos e cirurgias para des-re-fazer um corpo normal. Palavras-chaves: Intersexualidade, Práticas Discursivas, Dispositivos, Teoria Queer.

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

CAPA

Quadro, La Chimére,

do pintor francês Gustave Moreau. Disponivel em:

http://www.artnet.com/artists/lotdetailpage.aspx?lot_id=456BD4EE795B83F18D BE928603321B3C. FIGURA 1 Fotografia disponível em: DORINA, Quaglia. O paciente e a Intersexualidade: Aspectos clínicos, endócrinos, anatomo patológicos e genéticos. São Paulo: Sarvier, 1980.

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FIGURA 2 Fotografia disponível em: DORINA, Quaglia. O paciente e a Intersexualidade: Aspectos clínicos, endócrinos, anatomo patológicos e genéticos. São Paulo: Sarvier, 1980.

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FIGURA 3 Fotografia disponível em: DORINA, Quaglia. O paciente e a Intersexualidade: Aspectos clínicos, endócrinos, anatomo patológicos e genéticos. São Paulo: Sarvier, 1980.

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SUMÁRIO

1. ENTRANDO NO TEMA

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2. SABERES COMO JOGOS DE PODER

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2.1. Dualismos: natural/cultural, real/construído, sexo/gênero

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2.2. Dispositivos da sexualidade

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2.3. Onde fica a intersexualidade?

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3. CAMINHANDO ENTRE QUIMERAS

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3.1. Documentos como Práticas Discursivas

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3.2. Documentos Escolhidos

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3.3. Trabalho de investigação: onde estão as pistas?

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4. O QUE A MEDICINA TEM A FALAR SOBRE INTERSEXUALIDADE

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4.1. O que torna um corpo masculino ou feminino

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4.2. Justificativas para intervenção

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4.3. Quais as intervenções realizadas nos corpos intersex?

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5.

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SERÁ QUE CHEGUEI AO FIM DE TODOS OS CAMINHOS?

REFERÊNCIAS

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APÊNDICES

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1. ENTRANDO NO TEMA

Participo do grupo de práticas discursivas desde 2008, que além de outras temáticas, realiza estudos sobre o movimento Queer, violência, gênero e sexualidade. As nossas discussões semanais sobre diferentes textos relacionados com as temáticas anteriormente expostas sempre são muito animadas e cheias de questionamentos. Isso nos leva a pesquisar de forma leve, sem cobranças academicistas. O grupo também adota uma postura crítica no campo da Psicologia Social, que, como nos fala Mary Jane Spink (2004), exige um esforço de desconstrução de noções profundamente arraigadas na nossa cultura. Os estudos que têm como foco a desnaturalização do sexo, gênero e sexualidade contrapõem-se a normas da nossa sociedade onde a sexualidade não é “simplesmente aquilo que permite a reprodução da espécie” (...) que dá “prazer ou gozo”, mas “o lugar privilegiado em que nossa „verdade‟ profunda é lida, é dita” (FOUCAULT, 2009a, p. 229). Esse embate nos instiga a continuar pesquisando, já que sentimos todos os dias em nossos corpos as marcas dessa “verdade”, que busca apontar onde podemos ir e o que podemos ou não fazer. Nesse contexto, passamos a referir-nos ao tema de pesquisa específico deste trabalho: as pessoas nomeadas como intersex1. Trata de um tema que proporciona várias provocações, uma vez que tais pessoas são condenadas a certos modos de viver, por não apresentarem corpos que satisfaçam aos padrões “normais” de sexo biológico. Em nossa sociedade para sermos inteligíveis precisamos ter um gênero que se associa a um sexo inscrito na superfície dos nossos corpos. O sexo dita o banheiro no qual devemos entrar, a roupa a ser vestida, como nos comportarmos, quem devemos desejar etc. Esse dispositivo2 regula nossas vidas e, no caso da intersexualidade, essa regulação é levada a níveis extremos, a ponto de justificar intervenções cirúrgicas inclusive em recém-nascidos. Para pesquisar aspectos da concepção de corpo normal, pautada no saber médico biologicista como fator que gerencia os corpos intersex, dividimos o trabalho em quatro capítulos. No primeiro capítulo questionamos a naturalização das categorias sexo e gênero. O conceito de dispositivo da sexualidade de Foucault é fundamental ao exercício de 1

Utilizamos o termo intersex e intersexualidade, pois essa foi a terminologia adotada pelos ativistas intersexuais. Posteriormente serão discutidas as relações de saber e poder relativas à adoção de nomenclaturas diferentes para esses corpos em diversos momentos históricos. 2 Esse conceito será melhor explanado na página 15 desse trabalho.

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compreensão desta naturalização e por isso nos detemos nele. No segundo capítulo analisamos documentos, ou melhor, os usamos como fonte principal de análise para a compreensão da temática intersexualidade. Adotamos a postura de tratar esse material documental como prática discursiva. Ainda nesse capítulo, classificamos os documentos utilizados, bem como, apontamos os caminhos que foram traçados em direção a estas materialidades analisadas nesse trabalho. O terceiro e último capítulo da monografia, refere-se às análises dos documentos selecionados que se reportam a intersexualidade. No caso, foram eleitos documentos cuja fonte de produção se origina no saber médico. O primeiro tópico desse capítulo é sobre como este saber alça a intersexualidade como objeto de diagnóstico: a concepção de corpo normal, os exames realizados e o olhar clínico. No segundo tópico, analisamos que características um corpo deve apresentar para ser nomeado como feminino ou masculino. Em um terceiro tópico, discutimos às intervenções realizadas nesses corpos diagnosticados e classificados: o uso de fármacos e cirurgias para des-re-fazer um corpo normal. Por fim, o quarto capítulo se refere a um conjunto de indicações sobre o que está em jogo nas justificativas biomédicas para sustentar intervenções nesses corpos.

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2. SABERES COMO JOGOS DE PODER

Iniciamos esse trabalho com o mito de Hermafrodito, tendo como referência os escritos de FRANCHINI (2007) e GRIMAL (1992). Hermafrodito era filho dos deuses Hermes e Afrodite que herdou a beleza da mãe e a força do pai. Hermafrodito ao completar 15 anos decidiu viajar pelo mundo e durante a sua viagem conheceu a ninfa Sálmacis que reinava sobre as águas da região da Cária. Sálmacis se apaixonou perdidamente pelo jovem e tentou seduzi-lo com os seus encantos, mas não obteve êxito em sua conquista. Um dia, quando Hermafrodito foi se banhar em um lago, Sálmacis o surpreendeu e abraçou o rapaz fortemente pedindo para que os deuses e as águas do lago, das quais ela era rainha, não permitissem que eles se separassem nunca mais. Hermafrodito tentava se esquivar dos braços da ninfa, quando subitamente ele sentiu o quanto era grande o amor que Sálmacis sentia por ele e que esta união permitiria que se tornassem perfeitos e completos. A partir desse dia, todas as pessoas que mergulhassem no lago estariam destinadas a abrigar os dois sexos em um só corpo. Desta forma, muitos homens temiam banhar-se no local com medo de perder a sua virilidade. Esse mito ilustra um dos discursos que circula sobre a intersexualidade: fala de corpos completos, mas, em diferentes contextos, esses corpos podem causar desconforto e serem vividos como corpos “ambíguos” ou como se lhes “faltassem partes”. Segundo a Sociedade Intersex Norte Americana (ISNA, 2010) intersex é um termo utilizado para nomear corpos cuja anatomia não se adéqua aos padrões de sexo masculino ou feminino. O nosso foco na pesquisa é sobre estes corpos, “estranhos”, “fantásticos” e “sem fronteiras”, muitas vezes assim classificados por serem rechaçados em nossa sociedade. Trazemos para dialogar sobre esses corpos, um movimento oposto a normalização biomédica: o Movimento Queer. Este surge em meados da década de 1980, nos Estados Unidos, reunindo diferentes grupos que questionavam a heteronormatividade e as chamadas políticas de identidades, reunindo diversos estudiosos da temática gay, lésbica, feminista, transexual, entre outros (SPARGO, 2009). Para tal; utilizamos como referência principal Judith Butler e Beatriz Preciado. Elas se alinham a autores que questionam a normatividade, a naturalização dos corpos e os regimes de verdade sendo inspirados pelo filósofo francês,

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Michel Foucault. No Brasil, temos como referência principal a este trabalho, Mariza Corrêa e Paula Sandrine Machado. A palavra Queer foi empregada “originalmente” em sentido pejorativo, para discriminar e ofender pessoas que não se encaixavam nas regras heteronormativas. Os movimentos de diversidade sexual, em um ato subversivo, passaram a utilizar o termo para unir aqueles que, de alguma forma, causavam estranhamento à sociedade e lutavam para sair do campo da invisibilidade. Esse movimento de apropriação do discurso permite uma “autodenominação” e uma “re-significação” da palavra, como aponta Preciado (2002). O Movimento Queer não se restringe ao meio acadêmico (Teoria Queer), mas se constrói como movimento político que questiona a heteronormatividade, o binarismo de gênero, a coerência naturalizada entre sexo, gênero, desejo, sexualidade, performance e práticas sexuais. Butler (2008) se refere ao processo de formação do sujeito que é “convidado” pela sociedade a assumir uma “identidade” que, no caso do sexo, deve estar inserida na matriz heterossexual. É nessa mesma ação que também são instituídas as zonas de exclusão: alguns corpos que não se acomodam no padrão normal, que também é discursivamente construído, deixam de gozar do status de sujeito. A autora os caracteriza como corpos abjetos. El „sexo‟ no es pues sencillamente algo que uno tiene o una descripcíon estática de lo que uno es; será una de las normas mediante las cuales ese „uno‟ puede llegar a ser viable, esa norma que califica un cuerpo para toda la vida dentro de la esfera de la inteligibilidad cultural. (BUTLER, p. 19, 2008).

Butler (2002) se recusa a dar exemplos sobre que corpos poderiam ser considerados abjetos, pois, segundo a autora, estabelecer um modelo poderia levá-la de volta a normatividade e a rigidez. O Movimento Queer, dessa forma, critica todos os processos de construção de identidades, entendidas como posições naturalizadas ou fixas de sujeitos, pois, ao se criar um padrão possível de vida, também se criam zonas inabitáveis, de ameaça, perturbação e repúdio. Então, também categorias como raça, classe, religião, gênero e nacionalidade são questionadas dentro dessa perspectiva.

2.1. Dualismos: natural/cultural, real/construído, sexo/gênero

A desnaturalização das categorias de identidade é um dos processos centrais na ampliação das possibilidades de constituirmos modos de vida mais criativos e libertários. Essa

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desnaturalização nos impele a também questionar o uso de dualismos como natural/cultural, real/construído, que acabam sendo fundamentais na constituição do dualismo sexo/gênero os tratando como se fossem categorias naturais. Anne Fausto-Sterling (2002) e Judith Butler (2008) discutem em seus textos que o conceito de natureza deve ser repensado, pois ele não pode ser entendido como categoria prédiscursiva, como se não houvesse uma história que compõem esta pretensa naturalidade, fazendo as práticas humanas existirem antes mesmo das suas marcas socioculturais. As autoras alertam também para não incidirmos no extremo oposto de entender a natureza apenas como uma superfície de inscrição que espera passivamente assumir o seu significado social. Assim, afirmar que discursos constroem as nossas vidas não é alegar que nele ela se origina, como se bastasse um foco linguístico sem análise de suas condições de existências, estratégias e efeitos. O conceito gênero foi utilizado pela primeira vez em 1947 por Anke Ehrhardt e John Money que trabalhavam com crianças já caracterizadas como intersex (FAUSTOSTERLING, 2002; PRECIADO, 2008). O termo gênero, nessa situação, era concebido como o “sexo psicológico”: Ehrhardt e Money queriam demonstrar que, independentemente do sexo (anatomia e/ou genética) de nascimento do sujeito, o gênero poderia ser moldado pelos pais, já que este seria construído socialmente. Durante o movimento feminista da década de 1970, o conceito gênero foi adotado para criticar a “opressão” sofrida pelas mulheres e impingidas por homens. As chamadas teóricas feministas alegavam que o gênero, como categoria construída socialmente, provocava as diferenças entre homens e mulheres (FAUSTO-STERLING, 2002; PRECIADO, 2008; SCOTT, 1995). Dessa forma, tais feministas ajudaram a construir a concepção de que o gênero tem origem social por ser construído culturalmente e o sexo tem origem biológica, por ser uma espécie de real-natural. Consequentemente, ao falarmos sobre gênero deveríamos no remeter aos termos, masculino e feminino; e o conceito de sexo corresponderia a uma oposição anatômica entre pênis e vagina. As ativistas feministas entendiam que com a mudança na concepção de gênero cultural (masculino/feminino) seria possível uma resignificação das relações entre homens e mulheres. Apenas na década de 1980 algumas teóricas (como Teresa de Lauretis e Denise Riley) dentro do próprio movimento feminista passaram a questionar os conceitos de sexo e gênero, compreendendo que estes nos levam a compreensão do sexo, como algo natural e de

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ordem biológica, ignorando que todas essas categorias, inclusive a natureza, são construídas socialmente. Dentre estas teóricas temos a própria Butler. A diferença sexual para Butler, não se resume ao aspecto material-físico, por ser marcada pela construção de práticas discursivas. Butler afirma que o gênero é uma prática discursiva por meio da qual o ser humano adquire inteligibilidade social e reconhecimento político e que “la matriz de las relaciones de género es anterior a la aparición de lo „humano‟.” (BUTLER, p. 25, 2008). Por isso o gênero é performático, ou seja, o gênero se manifesta em cada momento, em cada gesto, em cada ato, em cada experiência (Carlos Bento, 2007, p. 08). Já Beatriz Preciado (2002), entende o gênero como protético, comparando-o com 3

o ”dildo” , porque ambos não passariam de uma imitação das “ficções” naturalizadas socialmente do que é ser homem/mulher e do que é um falo. O dildo e o gênero desestabilizam os conceitos de natural e artificial, imitado e imitador. De toda a forma o que podemos concluir das posturas destas autoras é que o gênero produz, compulsoriamente, corpos sexuados, no qual os corpos que atendem algumas normas são inseridos no sistema heteronormativo. Por outro lado, os que fogem do “real masculino/ feminino” são apresentados como acidentes, exceções e perversões, o que acaba renaturalizando a norma reguladora do sexo/gênero (PRECIADO, 2002).

2.2. Dispositivo da sexualidade. É pelo sexo efetivamente, ponto imaginário fixado pelo dispositivo de sexualidade, que todos devem passar para ter acesso à sua própria inteligibilidade (já que ele é, ao mesmo tempo, o elemento oculto e o princípio produtor de sentido), à totalidade de seu corpo (pois ele é uma parte real e ameaçada deste corpo do qual constitui simbolicamente o todo), à sua identidade (já que ele alia a força de uma pulsão à singularidade de uma história). (FOUCAULT, p. 170, 2009b).

A sexualidade tem um lugar privilegiado no controle e na docilização dos corpos, segundo Foucault (2009b). Em seu livro História da Sexualidade I, expõe sobre a forma com que a produção de saberes favoreceu a que o dispositivo da sexualidade fosse construído. O autor aponta algumas estratégias que possibilitaram não só o domínio dos corpos, também a

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“Dildo é um objeto desenhado para ser inserido na vagina e no ânus, se diferenciando dos vibradores; estes possuem modelos análogos aos dos dildos, mas com aparato tecnológico que os permitem vibrar.” (GREGORI, 2004 apud. PEREIRA, p. 501, 2008).

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própria produção da sexualidade como: a histerização do corpo da mulher, pedagogização do sexo da criança, a socialização das condutas de procriação e a psiquiatrização do prazer perverso. A sexualidade é o nome que se pode dar a um dispositivo histórico; não à realidade subterrânea que se apreende com dificuldade, mas à grande rede da superfície em que a estimulação dos corpos, a intensificação dos prazeres, a incitação ao discurso, a formação dos conhecimentos, o reforço dos controles e das resistências, encadeiam-se uns aos outros, segundo algumas grandes estratégias de saber e poder. (FOUCAULT, p. 117, 2009b).

Para Foucault (p. 246, 2009a) dispositivos são “estratégias de relações de força sustentando tipos de saber e sendo sustentadas por ele”, que englobam instituições, leis, discursos, enunciados científicos, proposições filosóficas e morais, cuja função estratégica é o exercício do poder em um determinado momento histórico. O dispositivo pode ser discursivo e não discursivo. Dessa forma, em nossa sociedade, alguns discursos são instituídos como verdadeiros e têm como efeito de poder a constituição de normas que interditam e permitem determinadas práticas, ditam o que é normal e patológico e por fim estabelecem determinados modos de viver. Foucault (2009a) nos questiona sobre que tipo de poder na sociedade ocidental tem a capacidade de produzir discursos de verdade. O autor aponta que os discursos reconhecidos como científicos estabelecem, nesse momento histórico, regimes de verdade. Por „verdade‟, entender um conjunto de procedimentos regulados para a produção, a lei, a repartição, a circulação e o funcionamento dos enunciados. A „verdade‟ está circularmente ligada a sistemas de poder, que produzem e apóiam, e a efeitos de poder que ela induz e que a reproduzem. (FOUCAULT, p. 14, 2009a).

Foucault (2009b) narra que a partir do século XVIII a sociedade ocidental, ao contrário do que muitos pensavam, incitou a que as pessoas falassem cada vez mais sobre sexo (confissão4) e não só isso, também estimulou a produção de discursos verdadeiros sobre o tema. A idéia de que o sexo tem leis próprias e que vai além do corpo e do somático, das sensações e dos prazeres, surge nesse período. “O sexo pôde, portanto, funcionar como significante único e como significado universal” (FOUCAULT, p. 168, 2009b). As ciências biológicas propiciaram a construção de padrões de normalidade da sexualidade humana, consequentemente permitiram o domínio sobre a vida (biopoder) e a 4

“Por confissão entendo todos estes procedimentos pelos quais se incita o sujeito a produzir sobre sua sexualidade um discurso de verdade que é capaz de ter efeitos sobre o próprio sujeito” (FOUCAULT, p. 264, 2009a)

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morte. O biopoder possibilitou disciplinar os indivíduos por meio de diversos dispositivos (hospitais, prisões, escolas etc.), como também ter o controle da população com a construção de saberes sobre saúde, longevidade, etc. Por tanto, o biopoder é, ao mesmo, tempo individualizante e totalizante. Nas relações de poder, a sexualidade não é o elemento mais rígido, mas um dos dotados da maior instrumentalidade: utilizável no maior número de manobras, e podendo servir de ponto de apoio, de articulação às mais variadas estratégias. (FOUCAULT, p. 114, 2009b).

Preciado (2008) afirma que hoje não podemos ignorar as novas tecnologias de mudança e controle corporal. Dessa forma, aponta que o conceito de biopoder foucaultiano, deve ser reconhecido como importante, porém não alcança, (e Foucault não pode ser cobrado por isso), as transformações que as diversas tecnologias fizeram na vida humana (e viceversa). Assim, para compreender a docilização dos corpos, a autora sugere o uso do conceito “tecnobiopoder”, empregado por Donna Haraway (também inspirada em Foucault), pois, segundo Preciado, os nossos corpos são tecnocorpos que utilizamos como próteses diariamente. O gênero, alerta Preciado (2008), é uma categoria necessária para o desenvolvimento de algumas técnicas farmacopornográficas de normalização e transformação do corpo. Esse conceito permite que os corpos sejam transformados por meio de terapias hormonais, cirurgias de transexualização e “definição sexual”, no caso de pessoas intersexuais. Assim, podemos relacionar essas discussões ao tema desta pesquisa. Os critérios utilizados por uma equipe médica para designar o sexo do recém-nascido, é uma espécie de ficção política, assim como os “critérios psicológicos” que permitem as pessoas se autodenominarem

como

homem/mulher

e

heterossexual/homossexual.

Esses

ideais

reguladores encontram suporte “somático e biosubjetivo individual” (PRECIADO, p. 85, 2008). Os objetivos dessas tecnologias farmacopornográficas, segundo Preciado (2008), é a produção de um corpo dócil, cuja capacidade de produzir prazer estará voltada unicamente para a produção de capital. Llamo „programación‟ de gênero a una tecnología psicopolítica de modelizacíon de la subjetividad que permite producir sujetos que se piensan y actúan como cuerpos individuales, que se autocomprenden como espacios y propiedades privadas, com una identidad de gênero y una sexualidad fijas. La programación de gênero dominante parte de la siguiente premisa: un individo = un cuerpo = un sexo = un gênero = una sexualidad. (PRECIADO, p. 90, 2008).

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O gênero permite um certo conhecimento sobre si, sobre os próprios desejos, comportamentos e afetos. Nesse contexto os hormônios passam a ser fábricas de subjetividade e afetos. Terapias hormonais são indicadas para uma feminilização ou masculinização, não só do corpo, mas também do comportamento. “El género (feminidad/masculinidad) no és ni un concepto, ni una ideologia, ni una performance: se trata de uma ecología política.” (PRECIADO, p.89, 2008). Fausto-Sterling (2002) afirma que o sexo é literalmente construído, e que o saber médico, um dos responsáveis por sua naturalização, ironicamente cria tecnologias capazes de “re-construir” a genitália de pessoas intersex e de mudar o “sexo” de pessoas transexuais. Os cirurgiões removem partes, cortam, utilizam materiais sintéticos, colocam próteses, prescrevem hormônios, para fazer um sujeito de sexo “normal/real”.

A autora nos

exemplifica de que forma alguns hormônios se tornaram sexuais: No período de 1900 a 1940 os cientistas escavaram a natureza de modo particular, criando a categoria dos hormônios sexuais. Os próprios hormônios se tornam marcadores de diferença sexual. Então, a descoberta do hormônio sexual ou de seu receptor em qualquer parte do corpo (por exemplo, as células dos ossos) torna sexual aquela parte do corpo previamente neutra em relação ao gênero. Mas se analisarmos a questão historicamente podemos ver que os hormônios esteróides não precisavam ter sido divididos nas categorias, sexual e não sexual. Poderiam, por exemplo, ter sido considerados como hormônios do crescimento, afetando ampla gama de tecidos, inclusive os órgãos reprodutores. (FAUSTO-STERLING, p. 77, 2002)

Continuando as questões levantadas por Anne Faust-Sterling (2002), Preciado (2002) questiona a construção de alguns órgãos como sexuais. Os órgãos responsáveis pela reprodução passaram a ser identificados como órgãos sexuais, em detrimento de uma sexualização total do corpo. Los órganos sexuales como tales no existen. Los órganos que reconocemos como naturalmente sexuales, son ya el producto de una tecnología sofisticada que prescribe el contexto en el que los órganos adquieren su significación (relaciones sexuales) y se utilizan com propiedad, de acuerdo a su „naturaleza‟ (relaciones heterosexuales). Los contextos sexuales se establecen por médio de delimitaciones espaciales y temporales sesgadas. La arquitectura es política. (PRECIADO, p. 27, 2002).

Para exemplificar que estamos vivendo uma ficção somática em nossa sociedade Preciado (2008) vem nos indagar de que forma a rinoplastia (cirurgia no nariz) é considerada uma cirurgia estética, enquanto a vaginoplastia (construção cirúrgica de uma “vagina”) e faloplastia (construção cirúrgica de um “pênis”) são consideradas cirurgia de redesignação sexual. O discurso é um meio de ação do poder, dessa forma, esses dois procedimentos

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cirúrgicos, quando nomeados de modos diferentes, passam também a serem regulados de formas distintas. Enquanto o primeiro procedimento pode ser realizado de acordo com a escolha do indivíduo, o outro processo é controlado pelo Estado, e apenas com a “permissão” deste, torna-se possível a intervenção cirúrgica. Preciado (2002) em seu livro Manifesto Contra-Sexual faz uma análise crítica e subversiva dos mecanismos de regulação da sexualidade e propõe, ironicamente, que assinemos um “contrato contra-sexual”, para regular nossas vidas. A contra-sexualidade é “inspirada” no conceito foucaultiano de resistência, de modo que as práticas contra-sexuais seriam uma alternativa a sexualidade moderna, na qual todos deveriam se dedicar ao prazer saber, em detrimento da disciplina e da produção. Em uma sociedade contra-sexual seria instituída a equivalência entre os corpos, e não igualdade, como alerta Preciado. O corpo como um todo passa a ser sexualizado e os órgãos reprodutores deixam de serem identificados como órgãos sexuais. O sexo, para Preciado, é uma tecnologia de dominação heterossexual, que reduz o corpo a zonas erógenas, produzindo desse modo a masculinidade e a feminilidade, além de centralizar no pênis a produção do impulso sexual. Preciado (2002) apresenta o controle do espaço corporal, como uma ação política, na qual apenas alguns órgãos ganham o status de sexual, enquanto outros são excluídos. O ânus ganha destaque para autora, como um possível centro de transição para uma revolução contra-sexual. Subversivamente Preciado (2002) enumera algumas características do ânus que permitiriam as mudanças, acima citadas. Primeiro como todos têm ânus, este poderia ser um centro erógeno universal; segundo, mesmo esta sendo uma zona de prazer, não se configura como orgásmico; e por último, esse órgão não estaria ligado à reprodução (PRECIADO, p. 27, 2002).

2.3. Onde fica a intersexualidade?

As crianças intersex já nascem tendo de resistir á normalização, pois seus corpos colocam em questão a concepção do sexo como algo natural. A suposta correspondência entre a anatomia da genitália, os órgãos internos, hormônios, características sexuais secundárias e cromossomos, é quebrada quando os médicos colocam seu olhar clínico sobre essa superfície.

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Mauro Cabral, ativista intersex, aponta que a intersexualidade abrange inúmeras situações em que o corpo não se encaixa nos padrões masculino e feminino, isso inclui: Sin ánimo de exhaustividad, a aquellas que involucran mosaicos cromosómicos (XXY, XX0), configuraciones y localizaciones particulares de las gónadas - (la coexistencia de tejido testicular y ovárico, testículos no descendidos) como de los genitales (por ejemplo, cuando el tamaño del pene es "demasiado" pequeño y cuando el clítoris es "demasiado" grande de acuerdo a ese mismo standard del que antes hablaba, cuando el final de la uretra está desplazado de la punta del pene a uno de sus costados o a la base del mismo, o cuando la vagina está ausente...). Por lo tanto, cuando hablamos de intersexualidad no nos referimos a un cuerpo en particular, sino a un conjunto muy amplio de corporalidades posibles, cuya variación respecto de la masculinidad y la femineidad corporalmente "típicas" viene dada por un modo cultural, biomédicamente específico, de mirar y medir los cuerpos humanos. (CABRAL, p. 284, 2005).

Intersexualidade, não é, e não foi a única forma de nomear esse estado corporal. Partindo da premissa de que palavra é ação (prática discursiva5), compreendemos que a mudança de nomenclatura implica, também, em diferentes gerenciamentos, que seriam regulados por diferentes práticas e saberes. Desta forma, não se pode responsabilizar apenas o saber médico pelo gerenciamento de corpos. FAUSTO-STERLING (2002), aponta que no início do século XIX advogados e juízes eram encarregados dessa tarefa. Porém, nesta rede de saberes e fazeres, o saber médico despontou como arauto da verdade sobre nossos corpos. Este saber aponta com seus conceitos se os corpos estão adequados para a vida binária humana. Encontramos, na literatura médica, inúmeros termos utilizados para nomear um mesmo corpo. Quando nos referimos a “Anomalias da diferenciação sexual”, por exemplo, nos remetemos a ideia de patologia causada por um desenvolvimento biológico “anormal”, o que resulta na busca de uma terapia que possibilite a normalização desse corpo. Por sua vez o termo “genitália incompletamente formada” está pautado na compreensão de que todas as pessoas nascem homens ou mulheres, naturalizando, dessa forma, a inscrição do sexo nos corpos. A função do saber médico nos casos intersex seria então identificar qual o “sexo verdadeiro” deste corpo e completar nele o que falta para que se torne inteiramente masculino ou feminino. (MÉLLO, ALEXANDRE, SAMPAIO, p. 01, 2009).

Podemos observar que um processo de mudanças na concepção de corpo. Além disso, a disponibilidade de novas técnicas, de exame e intervenções, possibilita também a mudança no gerenciamento do corpo e da vida. Com o advento da biologia molecular algumas mudanças ocorreram dentro da medicina moderna e também no controle da intersexualidade. Pode se ter um exemplo disso no Consenso de Chicago ( LEE, 2006): um evento médico que 5

O termo práticas discursivas será discutido na página 25.

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reuniu 50 especialistas no ano 2005 na cidade de Chicago onde foi decidido que os médicos deveriam optar por usar a nomenclatura “Disorders of Sex Development" (DSD) em detrimento do termo intersex. Segundo esses especialistas os termos antigos eram pejorativos e confusos para os pacientes. Analisando as novas subdivisões criadas no documento, percebemos que o enfoque nesse novo modelo é dado a genética (MACHADO, 2008). Butler (2008) e Preciado (2002) nos falam que durante a ecografia (exame de imagem feito em gestantes, para acompanhar o desenvolvimento do feto) realizada pelos médicos, ocorre a transformação de seres “neutros” em meninos e meninas. Esse processo é reiterado por diversas autoridades e instituições (como família, escola, hospitais), em vários momentos da vida. É nesse processo que o sexo/gênero é naturalizado. O corpo pode ser compreendido como um texto socialmente construído, no qual, antes mesmo do nascimento, alguns

códigos

são

reafirmados

como

naturais.

Preciado

(2002)

entende

essa

nomeação/reafirmação como parte de um contrato social, tal como o “sim” dito em uma cerimônia de casamento. El sexo adquiere su efecto naturalizado y, sin embargo, en virtud de esta misma reiteración se abren brechas y fisuras que representan inestabilidades constitutivas de tales construcciones, como aquello que no puede definirse ni fijarse completamente mediant la labor repetitiva de esa norma. (BUTLER, p. 29, 2008).

A intersexualidade provoca fissuras nos padrões normais de sexo que oferece apenas duas possibilidades de existência, masculino-pênis ou feminino-vagina e por isto o corpo que escapa dessa regra deve ser “normalizado”. A medicina, por meio de tecnologias fármaco-cirúrgicas, corta o que tem em “excesso” e coloca o que “falta”. A busca compulsória por corpos normais é extrapolada no caso da intersexualidade. Machado (2008) sustenta que os corpos intersex borram as fronteiras naturalizadas entre o que é ser homem e mulher, “durante muito tempo os hermafroditas foram considerados criminosos, ou filhos do crime, já que sua disposição anatômica, seu próprio ser, embaraçava a lei que distinguia os sexos e prescrevia sua conjunção” (FOUCAULT, p. 45, 2009b). As pessoas intersex não são aceitas em nossa sociedade por serem seres abjetos, como nos fala Butler (2002), eles “não gozam do status de sujeito”. As ficções construídas do que se espera de um corpo masculino ou feminino não se adéqua ao que é lido nesses corpos e os condena a certos modos de viver, que nesse caso transita por hospitais, medicamentos, cirurgias, hormônios, mutilações etc. Os nossos corpos transitam por saberes médicos,

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expressos, por exemplo, em documentos. Estes produzem práticas sociais como veremos no capítulo seguinte.

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3. CAMINHANDO ENTRE QUIMERAS6. Por que vou girando sem rodas e voando sem asas nem penas? Por que minha roupa desbotada se agita como uma bandeira? E que bandeira tremulou no espaço em que não me esqueceram? Pois não foi onde me perderam que eu me dei, enfim, por achado? Esse onde termina o espaço se chama de morte ou infinito? (Pablo Neruda, 1974).

Inúmeras interrogações surgiam com os estudos sobre o Movimento Queer, a desnaturalização do sexo e a desconstrução de um corpo normal. Mas, estas interrogações se multiplicaram frente à materialidade dos corpos intersex: afetou-nos, desestabilizou e principalmente nos tirou de um lugar de certeza e verdade. Remeteu-nos a corpos que, como dissemos acima (página 19) de alguma forma, já nascem resistindo ao padrão do corpo considerado normal, caracterizado por advogar a existência de apenas duas formas de genitália possíveis de serem aceitas em nossa sociedade. A intersexualidade suscita importantes reflexões sobre os paradoxos identitários quase invisíveis, propiciando análises sobre a construção do corpo sexuado, seus significados sociais e políticos, assim como sobre o processo de normatização e controle social não apenas dos intersex, mas também de todos os corpos. A experiência intersex mostra em níveis extremados a normalização compulsória dos corpos e das identidades, pois evidencia a restrição das identidades de gênero ao binarismo homem-mulher e das identidades sexuais a uma suposta coerência necessária entre corpo sexuado, práticas e desejos. (PINO, 2007, p. 02).

Movidos por perguntas e incertezas iniciamos um levantamento bibliográfico7 sobre intersexualidade, nos deparando, com autores estudiosos do Movimento Queer, como Paula Sandrine (2008) e a Nádia Pino (2007). Por outro lado, este levantamento também nos fez encontrar com textos e discussões sobre a construção do sexo como algo natural e “escrito” no corpo. Não só em textos vindos de nosso levantamento de literatura sobre o assunto, mas também pudemos ver que a Psicologia por meio dos cursos de graduação, em diversas 6

“Quimera s.f. (Do gr. Khimaira, pelo lat. Chimaera.) 1. Monstro fabuloso, com cabeça de leão, corpo de cabra e cauda de dragão. 2. Produto da imaginação, idéia falsa, utopia: embalar-se em quimeras. 3. Organismo (em geral uma planta criada artificialmente) composto de diversas (frequentemente duas) variedades celulares que têm origem genética diferente.” (LAROUSSE, p. 757, 1999). 7

Deteremos-nos com mais detalhes sobre o levantamento bibliográfico na página 28.

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disciplinas como Psicologia do Desenvolvimento, Fundamentos de Psicopatologia, Psicopatologia Infantil, Métodos Projetivos da Avaliação propõem um ser humano geralmente binário, tornando o que foge disso, anormalidade a ser tratada, corrigida e normalizada. Dentre a bibliografia pesquisada uma obra nos chamou atenção especialmente: um número especial sobre estados intersexuais na infância da Revista Pediatria Moderna (1968). Neste número específico sobre o assunto, os artigos descrevem as crianças intersex como anormais, doentes e perigosas. Essas crianças estariam propensas a desenvolver graves distúrbios psiquiátricos, como alerta Stanislau (1968): O portador de anomalia sexual – no caso especialmente genital – tem uma concepção errônea da estrutura e das funções do próprio corpo, com consequentes distúrbios do esquema corporal. Sobre esse se assentam, secundariamente, os aspectos patológicos do reconhecimento da anomalia, minusvalia de si mesmo, com as consequentes deformações do eu e tentativas de compensação, não raro com sentimento de rebeldia e revolta, agressão latente ou manifesta. Por outro lado, a incapacidade ao ato sexual normal ou à maternidade engendram no indivíduo elementos de ordem deliquêncial, com marginalização da conduta e distúrbios sociais diversos. (KRYNSKI, p. 55, 1968).

Estudando este e outros documentos, percebemos que o saber médico é o principal regulador e gerenciador dos corpos intersex. Interessados em pesquisar o que se falava sobre esses corpos e que práticas circulavam nestes desses discursos, iniciamos, então, uma revisão da literatura em documentos médicos. Esse estudo teve como consequencia a publicação do artigo “XY0: Dispositivo da sexualidade e o saber médico no controle dos corpos intersex”. Nele buscamos compreender “de que modo a concepção de corpo normal, colocada em circulação por meio de artigos, manuais e resoluções médicas, constroem e controlam os corpos intersex, tornando-os inabilitados para a aceitação social.” (MÉLLO, ALEXANDRE, SAMPAIO 2009, p. 01). Desse modo, esta monografia constitui-se como mais um passo nesse caminho entre documentos que vimos percorrendo em um universo de quimeras, corpos fabulosos, mas que na literatura médica surgem como doentes.

3.1. Documentos como Práticas Discursivas. As fontes documentais foram incorporadas ao próprio cotidiano da cultura letrada e são instrumentos que divulgam e debatem esse cotidiano e até buscam a sua normalização. Assim, a pesquisa que toma como base de analise fontes documentais faz com que saiam da sombra, deixem de ocupar o lugar de “fontes secundárias”. Os

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documentos fazem parte da política, entendida, sob inspiração de Foucault, como “estética da existência”: a busca de dar um sentido às existências individuais, rechaçando uma política instrumental, que pretenda fazer vigorar o espaço público como veiculador e atualizador de ideias universais. (MÉLLO, p. 60, 2006).

Escolhemos como afirmamos acima, como principal fonte de pesquisa, documentos de domínio público, por entendê-los como práticas discursivas. Esse material possibilita a circulação de diversos saberes e práticas que podem reafirmar normas vigentes em nossa sociedade ou mesmo colocá-las em questão. Consideramos esses embates como constituintes de processos de negociação de informações, fundamentais para entendermos os diferentes modos de viver em nossa sociedade. O conceito de práticas discursivas remete, por sua vez, aos momentos de ressignificações, de rupturas, de produção de sentidos, ou seja, corresponde aos momentos ativos do uso da linguagem, nos quais convivem tanto a ordem como a diversidade. (SPINK, p. 45, 2004).

Desse modo, os documentos de domínio público são ao mesmo tempo produtos e produtores de práticas sociais. Essa característica faz com que sejam importantes instrumentos de governo e gerenciamento de corpos. Tal materialidade permite, também, termos contato com práticas de diferentes períodos da vida humana. Os documentos de domínio público refletem duas práticas discursivas: como gênero de circulação, como artefatos do sentido de tornar público, e como conteúdo, em relação aquilo que está impresso em suas páginas. São produtos em tempo e componentes significativos do cotidiano; complementam, completam e competem com a narrativa e a memória. Os documentos de domínio público, como registros, são documentos tornados públicos, sua intersubjetividade é produto da interação com um outro desconhecido, porém significativo e frequentemente coletivo. São documentos que estão à disposição, simultaneamente traços de ação social e a própria ação social. (PETER SPINK, p. 126, 2004).

Esses referenciais que vimos utilizando no trabalho nos impelem a um posicionamento crítico e ético em pesquisa, no qual estranhamos e questionamos categorias, tidas como convenções naturalizadas socialmente, tornando a pesquisa “um convite a examinar essas convenções e entendê-las como regras socialmente construídas e historicamente localizadas.”(SPINK, p. 33, 2004). Utilizamos, então, documentos para analisar tanto práticas cristalizadoras e normalizadoras, como também, fissuras e resistências que borram fronteiras de normalidade. A compreensão das práticas discursivas deve levar em conta tanto as permanências como, principalmente, as rupturas históricas, pela identificação do velho no novo e vice-versa, o que possibilita a explicação da dinâmica das transformações históricas e impulsiona sua transformação constante. Por meio dessa abordagem, buscamos construir um modo de observar os fenômenos sociais que tenha como foco a tensão

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entre a universalidade e a particularidade, entre o consenso e a diversidade, com vistas a produzir uma ferramenta útil para transformações da ordem social.”(SPINK, p. 61, 2004).

As práticas discursivas ganham destaque na produção de modos de viver, e os documentos de domínio público tem enorme importância na medida em que conceitos como sexo e gênero, como vimos buscando mostrar, se naturalizam em discursos (inclusive nos científicos). Assim, na medida que a linguagem, construindo saberes e práticas, produz acontecimentos. Entendemos por acontecimentos, não um fato dado, mas um jogo de forças: Não uma decisão, um tratado, um reino, ou uma batalha, mas uma relação de forças que se inverte, um poder confiscado, um vocabulário retomado e voltado contra seus utilizadores, uma dominação que se enfraquece, se distende, se envenena e uma outra que faz sua entrada, mascaradas forças que se encontram em jogo na história não obedecem nem a uma destinação, nem a uma mecânica, mas ao a caso da luta” acaso do jogo que “não é simples sorteio”, mas antes “risco sempre renovado”(FOUCAULT, p. 28, 2009).

Foi nesse jogo de forças que documentos médicos de domínio público foram utilizados nesse trabalho. Por entender, que de acordo com o momento histórico alguns saberes ganham poder de dominação e de verdade, escolhemos o saber médico como foco de estudo. Esse saber adquiriu o poder de estabelecer padrões de corpo normal e utilizar tecnologias para “ajustar” os corpos que não se encaixam em tais normas. Dar visibilidade ao que é escrito pelos profissionais que examinam os corpos antes mesmo do nascimento e determinam se esses são normais ou não, é um dos passos a ser dado no estudo sobre intersexualidade. O sexo é um dos primeiros discursos que marcam o corpo de uma criança e o responsável por essa marca é o médico. Nomeando como menino ou menina “aquilo” que é visto no exame de ultra-sonografia, os médicos legitimam como humano àquele ser que antes era apenas um pedaço de carne, um corpo sem alma (sem sexo, sem gênero). Não podemos ser ingênuos ao ponto de acreditar que as teorias médicas são aos produtores de determinada ordem social, mas também não podemos negar a sua importância no jogo de forças, que como apontamos acima, não expressas no ato de naturalizar os corpos e instituir modos de viver (MENEGON, 2004). A Medicina, com as categorias que cria, também é uma construção social, e, dessa forma, não escapa aos jogos de poder.

3.2 Documentos escolhidos.

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Foram escolhidos diferentes tipos de documentos médicos para serem examinados nesse estudo: um volume de uma revista médica de circulação nacional; um livro e uma tese de doutorado; e uma resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM). Esses documentos foram classificados em duas categorias como acadêmicos e jurídicos: 1) Acadêmicos: são incluídos livros, monografias, dissertações, teses, artigos, cujos autores sejam pesquisadores e /ou profissionais da área médica. Dentro da categoria documentos acadêmicos propomos duas subdivisões para análise, os textos que se dedicam apenas a explanações sobre os aspectos “biológicos” da intersexualidade e os que incluem em seus escritos discussões sobre os aspectos “psicológicos” desse tema. 1.1)

Acadêmicos biomédicos: contém aspectos anatômicos, genéticos, hormonais,

cirúrgicos. 1.2)

Acadêmicos psicobiomédicos: incluem análises sobre o sexo que a criança deve ser de

criada, negociação com a família no momento do parto para decidir sobre cirurgia “corretiva”, subjetividade, identidade sexual, auto-imagem, desenvolvimento psicossexual. 2) Jurídicos: são incluídas resoluções, atos normativos, leis, códigos de processo éticoprofissional, decretos, pareceres, jurisprudências, informes jurídicos, notas técnicas, despachos. Peter Spink (2004) nos fala sobre o uso de documentos de domínio público provenientes de diferentes fontes bibliográficas, “ás vezes não é um documento ou uma série específica de documentos que importa, mas a presença ubíqua de uma temática em documentos distintos que serve como sinal para a desfamiliarização inicial.” (PETER SPINK, p. 142, 2004). Os documentos escolhidos são de diversas fontes e foram escritos em diferentes períodos, o mais antigo data de 1969 e o mais recente é de 2005. Os documentos de origem acadêmica são importantes, pois, são muito usados para divulgar novos tipos de tecnologias. É possível, então, acompanhar o histórico da forma como o tema vem sendo abordado e as diferentes técnicas para diagnóstico e intervenções. Continuando o diálogo sobre documentos acadêmicos com Peter Spink (2004): Usar documentos desse tipo, que têm uma presença no campo de interesse e que são produzidos regularmente e de forma seriada, é um excelente caminho para a compreensão da gradativa emergência, consolidação e reformulações dos saberes e fazeres (SPINK, p. 146, 2004).

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O documento jurídico foi escolhido por ser um regulador de práticas por excelência. Dessa forma, este material aponta os procedimentos que devem realizados e orienta as ações médicas. Segundo Méllo (2007) utilizar fontes documentais em pesquisa “trata-se de considerar os documentos em sua articulação com: quem os produziu, em que ocasiões, que interesses estavam em jogo, como são lidos, quem os lê, que propósitos e negociações estavam em jogo etc.” (MÉLLO, p. 30, 2007).

3.3. Trabalho de investigação: onde estão as pistas?

A escolha dos documentos para composição desse trabalho teve motivações variadas. Inicialmente foram realizadas buscas sobre o tema intersexualidade em bancos de informações online tais como, Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível superior (Capes) e Scientific Electronic Library Online (Scielo)8. Nesse primeiro momento não obtivemos sucesso, pois, as publicações encontradas eram semelhantes às utilizadas no artigo que publicamos, XY0: Dispositivo da sexualidade e o saber médico no controle dos corpos intersex ( MÉLLO, ALEXANDRE, SAMPAIO, 2009). Diversos descritores foram usados nas buscas referentes a intersexualidade tais como “ambiguidade genital”, “genitália incompletamente formada” e “anomalias de diferenciação sexual”, mas o resultado pouco se modificava. Lembramos, então, do texto de Peter Spink (2004) sobre documentos de domínio público que relata o alerta de um arquivista quando o autor procurava documentos sobre autogestão em minas de carvão da Inglaterra, em um galpão “do tamanho de seis campos de vôlei”: O grande problema com arquivos é que eles nunca estão organizados para responder a pergunta que queremos fazer, especialmente as perguntas que vocês, investigadores, mais tarde querem elaborar. Ao contrário, são organizados de acordo com os usos que os depositários querem fazer deles (...). É um trabalho de detetive, vocês vão ter que indagar aonde podem estar as informações úteis para seu estudo. (SPINK, p. 132, 2004).

Começamos o trabalho de investigação buscando onde poderiamos encontrar pistas sobre os possíveis locais de arquivamento dos documentos sobre intersexualidade, que 8

“Um modelo para a publicação eletrônica cooperativa de periódicos científicos na Internet que permite a publicação eletrônica de edições completas de periódicos científicos, a organização de bases de dados bibliográficas e de textos completos” (SCIELO, 2010).

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apresentassem perspectivas diferentes das encontradas em artigos utilizados anteriormente, durante a construção do artigo XY0 (2009). Relemos os textos sobre intersexualidade estudados anteriormente e tivemos uma bela surpresa: entre as primeiras referências bibliográficas da tese de doutoramento de Paula Sandrine Machado (2008) há referência a uma revista médica, Arquivos Brasileiros de Endocrinologia e Metabologia, que publicou um volume especial sobre “diversas afecções que determinam ambiguidade genital, sexo reverso e disgenesia gonadal” (MACIELGUERRA, 2005). Seguindo essa pista, percebemos que a maior parte dos artigos médicos sobre intersexualidade estavam relacionados a revistas de pediatria, mas, principalmente, a revistas de endocrinologia. Esta especialidade médica está intimamente relacionada com o gerenciamento dos corpos intersex, que desde a infância são orientados a seguir terapias hormonais. Essa informação será analisada no próximo capítulo. A revista Arquivos Brasileiros de Endocrinologia & Metabologia (ABE&M), foi então, escolhida para compor esse trabalho por caracterizar como “o órgão oficial de divulgação científica da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM), afiliada à Associação Médica Brasileira.” (Arquivos Brasileiros de Endocrinologia & Metabologia, 2010). Este periódico está disponível no Scielo. Observamos que apenas o número especial dessa Revista que tem como tema “os distúrbios da determinação e diferenciação do sexo”, foi escolhido para nosso estudo, pois, apresenta artigos de pesquisadores influentes no estudo biomédico sobre intersexualidade, no Brasil, como, Durval Damiani e Ângela Maria Spinola-Castro. Os outros dois documentos acadêmicos que serão analisados nesse trabalho, são da biblioteca da Universidade Federal do Ceará (UFC). No período em que fazíamos o levantamento bibliográfico para a pesquisa, fomos informados, por uma das psicólogas do Hospital Universitário Walter Cantídio, que esta instituição já realizou o acompanhamento de crianças intersex. Supomos assim, que a biblioteca da UFC, especificamente a Biblioteca Setorial da Área de Saúde, teria várias referências bibliográficas sobre o tema e para lá nos dirigimos. Passamos, a procurar documentos sobre intersexualidade (usando esta e outras nomenclaturas). Porém, para nossa surpresa só exitem dois documentos sobre o assunto, em todas as sessões dessa biblioteca: um livro de 1980 (DORINA, 1980) e uma tese de 1969 (CARAKUSHANSKY, 1969), esta última publicada na Universidade Federal do Rio de

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Janeiro. Outras surpresas nos aguardavam. Na tentativa de ter acesso as duas obras, não as encontramos na seção indicada nas fichas de localização. Um funcionário da biblioteca indicou algumas prateleiras, localizadas no fundo da biblioteca do curso de Medicina, onde haviam alguns poucos livros antigos e mofados. Lá localizamos tanto a tese quanto o livro que procurávamos, já amarelados e malcheirosos. No entanto, destarte as ações do tempo, as obras pareciam ter “escapado” de danos causados por leitores, em especial, quando são muitas vezes manuseadas: as páginas estavam bem conservadas, como se as obras tivessem sido retiradas pouquíssimas vezes da estante. Esses dois documentos acadêmicos foram analisados, por serem as únicas bibliografias disponíveis na Universidade Federal do Ceará sobre intersexualidade. Acreditamos ser importante verificar que tipo de material a Universidade oferece sobre o assunto, já que, ela forma os profissionais que irão acompanhar, desde antes o nascimento, pessoas intersexuais. Finalizando nossa descrição sobre os documentos utilizados resta nos referirmos ao único texto não acadêmico que será utilizado nesse trabalho: a Resolução Nº 1.664/2003, do Conselho Federal de Medicina. Este documento jurídico está disponível no site do Conselho Federal de Medicina, órgão que “possui atribuições constitucionais de fiscalização e normatização da prática médica.” (Conselho Federal de Medicina, 2010). Escolhemos a Resolução para ser examinada, pois, nela se estabelecem regras e se normatizam práticas médicas como exposto no próprio site do Conselho Federal de Medicina (2010): As resoluções são atos normativos emanados dos plenários do Conselho Federal de Medicina e de alguns dos Conselhos Regionais de Medicina que regulam temas de competência privativa dessas entidades em suas áreas de alcance. Elas resultam do esforço dos órgãos supervisores, normatizadores, disciplinadores, fiscalizadores e julgadores da atividade profissional médica em todo o território nacional. No foco das resoluções, está o zelo pelo desempenho ético da Medicina, por adequadas condições de trabalho, pela valorização do profissional médico e pelo bom conceito da profissão e dos que a exercem legalmente e de acordo com os preceitos do Código de Ética Médica vigente. (Conselho Federal de Medicina, 2010).

A Resolução de Nº 1.664/2003 “define as normas técnicas necessárias para o tratamento de pacientes portadores de anomalias de diferenciação sexual.” Desse modo, esse material é imprescindível para analisar de que forma as práticas discursivas colocadas em circulação por meio de documentos médicos possibilitam o controle dos corpos intersex.

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Ao mesmo tempo, é preciso entender que a linguagem é ação e produz consequências. Nosso trabalho, é exatamente estudar a dimensão performática do uso da linguagem, trabalhando com consequências amplas e nem sempre intencionais (...) quando falamos, estamos invariavelmente realizando ações – acusando, perguntando, justificando etc. –, produzindo um jogo de posicionamentos com nossos interlocutores, tenhamos ou não essa intenção.(SPINK, p. 47, 2004).

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4. O QUE A MEDICINA TEM A FALAR SOBRE INTERSEXUALIDADE

Em diferentes períodos o corpo intersexual é apreendido de diferentes modos como nos aponta Spinola-Castro: Na Grécia antiga, os intersexos eram reverenciados e mortos enquanto os romanos, ao contrário dos gregos, não eram ambivalentes e matavam a todos. Na idade média, essa questão é raramente mencionada, a não ser como uma possível forma de punição divina ou como seres enviados pelo diabo. Durante o período da Renascença, os europeus viam os intersexos como curiosidades ou erros da natureza. A perda da conotação religiosa preparou as condições para o estudo sistemático dos estados intersexuais. (SPINOLA-CASTRO, p. 48, 2005)

O controle sobre os corpos intersex pelo saber médico tem início em meados do século XIX. “A medicina das perversões e os programas de eugenia foram, na tecnologia do sexo, as duas grandes inovações da segunda metade do século XIX” (FOUCAULT, p. 129, 2009b). É nesse contexto que o hermafroditismo (intersexualidade) é patologizado e a medicina começa a questionar em que parte do corpo está o sexo. A construção de novas tecnológicas na biomedicina marca também a mudança nos critérios diagnósticos para a intersexualidade e a “escolha” do sexo, como Machado (2008) e Pino (2007) apontam em seus estudos. O primeiro período, que vai do século XIX até a década de 1950, é nomeado com a “Era das gônadas”, pois a presença de testículos ou ovários iria apontar o verdadeiro sexo do sujeito. Nesse período são adotados os termos, “hermafroditismo verdadeiro” e “pseudo-hermafroditismo”, que continuam sendo utilizados até hoje nos textos médicos como, por exemplo, nos artigos da revista Arquivos Brasileiros de Endocrinologia e Metabologia (2005). Machado (2008) indica que essas nomenclaturas estavam fadadas a serem excluídas, pois, a possibilidade da existência de um “hermafrodita verdadeiro” colocaria em questão as diferenças naturalizadas entre homens e mulheres. O segundo marco é a “Era cirúrgica”, no qual o pesquisador John Money é o principal fundador e representante. Esse período tem início na década de 1950 e “decresce” na década de 1980. O surgimento de novas técnicas de anestesia e cirurgia permitiu intervenções cirúrgicas em bebês intersexuais. Mas não foi apenas isso que possibilitou as cirurgias em recém-nascidos: a construção da teoria de Money foi o grande marco dessa época. Money afirmava que as crianças nasciam com uma sexualidade neutra e até os 18 meses elas poderiam ter seus comportamentos sexuais modelados. Esse estudioso orientava que as crianças deveriam ser criadas de acordo com as possibilidades de “re-construção” de sua

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genitália. A divisão entre sexo e gênero emerge nesse contexto, a cirurgia construiria uma genitália masculina ou feminina (pênis ou vagina) e a criança poderia aprender a se comportar de acordo com o gênero correspondente (menino ou menina). Segundo Money, as crianças não deveriam saber o motivo das intervenções cirurgias, pois, isso poderia atrapalhar o seu desenvolvimento sexual. O caso mais famoso acompanhado por John Money foi o de John-Joan, que durante muito tempo foi utilizado para ilustrar o sucesso de sua teoria. Tento como referência os escritos de Mariza Corrêa (2004) relato brevemente a história de David, mais conhecido nos documentos médicos como John-Joan. Os gêmeos Bruce e Brian (assim nomeados por seus pais), em 1967, foram levados, aos oito meses, para fazer uma cirurgia de circuncisão, mas o procedimento de Bruce não foi bem sucedido. A maior parte do pênis de Bruce foi queimada. Os pais nesse período conheceram o trabalho de John Money, que orientou a castração, inúmeras cirurgias e terapia hormonal para “feminilizar” a criança. Money passou a orientar esse tipo de intervenção como padrão para os casos de intersexualidade. Nesse momento Bruce passa a se chamar Brenda. Mas a história de Bruce não acaba com esse fato, o seu pai percebendo o descontentamento do filho com os inúmeros procedimentos de feminilização, decidiu contar toda história a criança. Brenda passou a se chamar de David, fez outras inúmeras cirurgias para reverter o processo por qual passou, casou e adotou os filhos de sua esposa. Sabendo que os procedimentos aos quais ele foi submetido eram rotineiros nos hospitais, em casos de intersexualidade e meninos com “micro-pênis”, David decidiu contar a sua história a um jornalista, John Colapinto, que publicou o livro: “As Nature Made Him: The Boy Who Was Raised as a Girl” (2000). Depois, de relatar o que aconteceu com ele, David perdeu o emprego, foi abandonado pela esposa e se matou aos 38 anos em 2004, dois anos depois do seu irmão gêmeo ter feito o mesmo. As pessoas que nos anos anteriores foram submetidas, ainda bebês, aos procedimentos cirúrgicos, assim como David, cresceram e na década de 1980 começaram a contestar esse tipo de intervenção. Algumas associações foram criadas por pessoas intersex e seus familiares argumentando que as cirurgias “normalizadoras” na verdade construíam corpos mutilados e sem sensibilidade. Os ativistas em vários países lutam hoje para banir as cirurgias “reparadoras” do protocolo médico. Pino (2007) denomina esse momento como,

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“Era do consenso”, em que a equipe médica designa o sexo da criança com ajuda da família do paciente. Esse novo período pode ser chamado de era do consenso, porque propõe uma conduta individualizada, com base nas características de cada caso, considerando os aspectos culturais, religiosos e comportamentais, entre outros, além de uma ampla discussão das condutas futuras a serem estabelecidas para esses pacientes em diferentes esferas de atenção. (SPINOLA-CASTRO, p. 55, 2005).

Machado (2008) mostra que com o desenvolvimento da biologia molecular, a avaliação genética é utilizada pelos médicos para um “melhor” diagnóstico. Todos os documentos escolhidos para serem analisados nesse trabalho, inclusive o que data de 1969, fazem referência ao uso do cariótipo como material de auxilio na decisão sobre o “verdadeiro sexo” da criança. Fausto-Sterling (2001) nos apresenta que em pesquisas recentes alguns estudiosos defendem que o “responsável” pelo dimorfismo sexual seria o cérebro. Damiani (2005) afirma em seu trabalho que o estudo do cérebro será importante para designar o sexo de crianças intersex, pois impedirá inadequações sexuais. Essas inadequações, segundo Damiani (2005), seria a mudança da opção sexual no período da puberdade. Têm havido muitas dúvidas na atribuição do gênero a alguns desses pacientes e não têm sido infreqüentes inadequações sexuais, com mudanças de opções sexuais em época puberal, com grandes traumas tanto para o paciente como para seus familiares. A evolução dos conhecimentos nessa área (cérebro) poderá nos trazer elementos muito importantes para nos auxiliar na atribuição do sexo de criação em vários estados intersexuais e é um caminho que, apesar de estar ainda no seu início, merece ser percorrido. (DAMINI, p.37, 2005, grifo nosso).

4.1. O que torna um corpo masculino ou feminino? A Resolução Nº 1.664/2003 do Conselho Federal de Medicina (2003) considera como anomalias da diferenciação sexual as seguintes situações clínicas: genitália ambígua, ambiguidade genital, intersexo, hermafroditismo verdadeiro, pseudo-hermafroditismo (masculino ou feminino), disgenesia gonadal, sexo reverso, entre outras. Para se chegar a aos diagnósticos citados a Resolução enumera diversos procedimentos que devem ser obedecidos pela equipe médica. Os exames realizados nos recém-nascidos são: dosagens hormonais, citogenéticos, imagem, anatomopatológicos, avaliação genética e avaliação psicossocial. Infelizmente, ainda não há respostas para muitas questões cruciais quanto a etiologia, fisiopatologia e prognóstico individual e familiar em diversas situações. Se, por um lado, a existência de tantas questões em aberto instiga e fascina os pesquisadores dessa área, por outro lado é fonte de angústia no momento da definição do sexo de criação de recém-nascidos com ambigüidade genital. “Como fazer a escolha menos ruim?” – esse é o desafio a ser vencido nos dias de hoje. (GUERRA, p. 2, 2005).

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A escolha “menos ruim” está pautada nos parâmetros de corpo normal e o que se espera de um corpo masculino ou feminino. Durante avaliação clínico-cirúrgica se examina o tamanho do pênis e do clitóris. Os corpos devem estar anatomicamente “preparados” para uma relação heterossexual. O corpo feminino-passivo deve possibilitar a penetração e o corpo masculino-ativo deve ter a capacidade de penetrar. Os documentos analisados falam sobre a necessidade de recorrer a uma equipe multidisciplinar para um melhor diagnóstico. A equipe descrita pelo Conselho Federal de Medicina se limita as diferentes especialidades dentro da própria formação médica. Para a definição final e adoção do sexo dos pacientes com anomalias de diferenciação faz-se obrigatória a existência de uma equipe multidisciplinar que assegure conhecimentos nas seguintes áreas: clínica geral e/ou pediátrica, endocrinologia, endocrinologia-pediátrica, cirurgia, genética, psiquiatria, psiquiatria infantil. (Resolução Conselho Federal de Medicina Nº 1.664/2003).

O CFM (2003) afirma que “o maior objetivo dessa equipe não será apenas descobrir qual é a etiologia da anomalia da diferenciação sexual, mas sim obter uma definição racional sobre o sexo de criação mais recomendável”. Sob o olhar “atento” e “treinado” dos médicos o corpo começa a ser examinado, antes mesmo do nascimento, durante a ultra-sonografia em que o médico deve informar a gestante o sexo do feto. A anatomia dos “órgãos sexuais” é o primeiro local onde recai o olhar médico, que busca atentamente “sinais” que permitam nomear esse corpo como masculino ou feminino. Para isso, é necessário descrever detalhadamente o tamanho do falo, número, calibre e posição dos meatos9 (uretral, vaginal ou do seio urogenital), grau de fusão, rugosidade e pigmentação das pregas lábio-escrotais. É considerada ambiguidade genital todos os casos que apresentem micropênis e clitoromegalia (Resolução Conselho Federal de Medicina Nº 1.664/2003). O critério para definir se um pênis é “normal” ou um micropênis é o seu tamanho, mas o parâmetro que define o tamanho médio de um pênis varia de acordo com a literatura pesquisada. Segundo o Conselho Federal de Medicina (2003) o tamanho mínimo do pênis, em qualquer idade, deve ser superior a 2 cm; Damiani (2005) e Machado (2008) falam em um 9

Meato é uma abertura ou canal do corpo humano. Palavra de origem latina, meatus, que significa passagem. Em anatomia humana é um têrmo genérico que designa um orifício, uma passagem ou um pequeno canal através do qual circulam líquidos ou excreções.Meato uretral é a abertura da uretra por onde a urina, a ejaculação e líquidos parietais circulam. As dimensões do meato uretral ou urinário variam entre os sexos e entre indívíduos do mesmo sexo.

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tamanho a partir de 2,5 cm. Machado (2008) faz referência, também, ao tamanho máximo do clitóris, que seria de 0,9 cm. Os documentos médicos pesquisados utilizam o termo falo, para se referir à genitália do recém-nascido, apenas quando se tem o sexo definido, se fala em pênis ou clitóris. O ato de olhar é privilegiado na conduta médica nos casos de intersexualidade, Machado (2008) se refere em sua tese sobre o “treino do olhar” dos médicos para realizar um bom diagnóstico, decidir se a genitália é ambígua e qual o “verdadeiro sexo”. Preciado (2008) relata o uso de fotografias por Nadar, médico, em 1860: as fotos dão um “valor de realismo” na “representação” dos hermafroditas. As fotos são descritas: Los órganos sexuales son expuestos a la mirada fotográfica por una mano externa. La imagen da cuenta de su próprio proceso de producción discursiva (...) La mano del médico al mismo tiempo oculta y muestra los órganos sexuales estableciendo así una relación de poder entre el sujeto y el objeto de la representacíon. El rostro y, sobre todo, los ojos del paciente han sido borrados; el paciente no puede ser agente de su própia representacíon. (PRECIADO, p. 87, 2008).

Preciado (2008) afirma que a verdade do sexo nesse caso ganha um caráter de revelação visual, já que, a fotografia expõe uma situação que não poderia ser explicitada de outro modo. A autora argumenta que são esses critérios somatopolíticos visuais que permitem que a parte do corpo nomeada como micro-pênis seja extirpada e “re-des-feita” para dar lugar a uma vagina. Fotografias como essa mencionada por Preciado (2008) também são encontradas nos documentos pesquisados. O livro de Dorina (1980) traz o relato de inúmeros casos, acompanhados pelo autor, além das fotografias (Figura 1 e 2) de cada paciente. As fotos apresentam os pacientes, com os olhos cobertos por uma tarja preta, cujo corpo não se encaixa no padrão “normal” de masculino/feminino, seios e pênis co-existem. As genitálias são fotografas em close, algumas em dois momentos diferentes: no período do diagnóstico e após as intervenções médicas.

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Figura1

Figura2

As imagens dos órgãos internos, também, são analisadas, é verificada a presença das gônadas (testículos e ovários), útero e o posicionamento da uretra. O surgimento de novas tecnologias de imagem permitiu que esses exames fossem realizados sem a necessidade de cirurgias. A avaliação hormonal ganha destaque em meio a outros

tantos exames. A

produção de “hormônios sexuais” (testosterona, estradiol, progesterona, estrogênio, hormônio antimulleriano etc.) e a possibilidade do corpo ser sensível a essas substâncias é fundamental na designação do sexo. A medicina associa os hormônios à menstruação, desenvolvimento da genitália e das características sexuais secundárias (seios, barba, pêlos pubianos etc.). Dessa forma, os hormônios “confirmam” se a decisão médica por determinado sexo foi “correta”. A puberdade é entendida pela equipe médica como momento crucial no manejo dos pacientes, pois, a mulher precisa menstruar, homem não pode ter seios, mulher não pode ter pelos na face. A condição clínica conhecida como Homem XX (OMIM 278850), descrita em 1964 por De la Chapelle, é uma entidade rara que incide em 1:20.000 recém-nascidos do sexo masculino. A maioria dos pacientes (80%) não apresenta ambiguidade genital; assim sendo, este é um diagnóstico dificilmente feito na faixa etária pediátrica. Eventualmente, o diagnóstico pode ser feito na época da puberdade, uma vez que 1/3 dos pacientes desenvolvem ginecomastia. Esses pacientes apresentam, em geral, diminuição da pilosidade facial e tendência à distribuição feminina de pêlos pubianos. Os testículos têm pequeno volume, e o aspecto histológico assemelha-se ao da síndrome de Klinefelter. Com relação à estatura, esta tende a ser intermediária entre a masculina e a feminina. (DAMIANI, p. 79, 2005).

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Preciado (2008) no seu livro “Testo Yonqui” narra sua autoexperimentação corporal, em que aplica testosterona em seu corpo. São relatados no texto os efeitos do hormônio e as mudanças que acontecem em seu corpo, como por exemplo, o crescimento de pêlos faciais. A autora questiona a necessidade da regulação médica para o uso de uma substância que já existe em seu corpo, e a busca incessante pela coerência e por corpo “normal”. O controle dos hormônios e outras substâncias por meio do saber médico não ocorrem apenas no caso da intersexualidade, mas também, na reposição hormonal, durante a menopausa; no processo de transexualização, etc. A avaliação genética é relativamente recente nos protocolos médicos para o diagnóstico da intersexualidade. A tese de Carakushansky (1969) discorre sobre os benefícios que as tecnologias genéticas oferecem nesses casos, “a divulgação de técnicas de estudo de cromossomos durantes a mitose celular, fizeram nascer capítulo novo no estudo dos estados intersexuais.” (CARAKUSHANSKY, p. 09, 1969). A influência da genética no diagnóstico médico é tão grande que o Conselho Federal de Medicina pontua que o exame do cariótipo é obrigatório nessas situações. Não é apenas a presença do X e do Y que é examinada, mas também, é avaliada a quantidade de cromossomos sexuais. Dependendo do cariótipo varia a patologia, por exemplo: X0 - Síndrome de Turner, XXY – Síndrome de Klinefelter. A presença do X ou do Y não são os únicos determinantes na designação do sexo feminino ou masculino. Damiani (2005) relata três casos de “homens” com cariótipo XX e um parecer do Conselho Federal de Medicina fala sobre uma “mulher” XY. Podemos ter acesso aos pareceres emitidos por conselheiros e aprovados pelos plenários do Conselho Federal de Medicina e de alguns Conselhos Regionais de Medicina, em uma área específica do site que é destinada a legislação e processos. Os pareceres são: Respostas que emitem posicionamento técnico e ético sobre questões encaminhadas por diferentes setores da sociedade sobre aspectos relacionados ao exercício da Medicina. Esses pareceres não têm poder normatizador, mas ajudam no esclarecimento de certas nuances e podem subsidiar a elaboração de resoluções e outros instrumentos legais (...). É possível conhecer os pareceres aprovados pela entidade e por 14 CRMs. O banco de dados permite a busca de documentos produzidos de 1979 até o momento, sendo que a atualização regular das informações fica a cargo do Departamento de Parecer-Consulta do Conselho Federal. (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2010).

O parecer Nº 1726/2006 do Conselho Regional de Medicina do Paraná relata o seguinte caso de Pseudo-Hermafroditismo masculino:

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Estas pacientes apesar de serem geneticamente 46, XY, apresentam do ponto de vista hormonal uma total insensibilidade aos hormônios androgênicos desde a vida fetal até a vida adulta. Esta insensibilidade androgênica faz com que a genitália externa destas pacientes seja perfeitamente feminina e não existe qualquer dúvida em se estabelecer o sexo legal, de criação e psico social (sic). Tratam-se de “mulheres” totalmente femininas que são criadas como tal e assim devem permanecer. Ao nosso ver não se faz necessário criarmos dúvidas ou discutirmos os aspectos genéticos à estas pacientes. Devemos orientá-las como portadoras de “amenorréia primária” com conveniente desenvolvimento dos seus caracteres sexuais secundários sendo os mesmos totalmente femininos. (PARECER 1726/2006 – CRM-PR).

Podemos notar que a orientação da equipe médica em relação ao sexo de criação depende do resultado de inúmeros exames e o que se busca é uma coerência entre anatomia, características secundárias, cariótipo, hormônios e comportamento. Uma coerência entendida como similaridade ao que se considera padrão. No caso relatado também é interessante notar que a paciente não terá conhecimento da sua situação clínica, para que não existam dúvidas sobre sua sexualidade (o silêncio que circula em casos de intersexualidade será discutido adiante). Como comentado acima, outro indicador surge, atualmente, para “contribuir” no diagnóstico do sexo de crianças intersexuais: o “mapeamento cerebral”. Damiani (2005) afirma que é necessário o investimento em novas tecnologias de imagem e o estudo de padrões anatômicos e funcionais do cérebro e a sexualidade. A possibilidade de identificarmos essa marca cerebral do sexo em muito pode nos auxiliar na difícil tarefa de atribuição do sexo de criação em pacientes com anomalias da diferenciação sexual. Ainda nos dias de hoje, o desenvolvimento psicossexual, a atribuição de gênero e o tratamento cirúrgico em pacientes com anomalias da diferenciação sexual continuam tópicos controversos na literatura médica. Se há um comprometimento das estruturas cerebrais para um determinado sexo e se tivermos como avaliá-lo, teremos em mãos uma eficiente e poderosa arma no auxílio das decisões sobre o sexo de criação desses pacientes, talvez acarretando menos situações de inadequação sexual na vida adulta. (DAMIANI, p. 44, 2005).

Percebemos, em todos os documentos médicos estudados, que o tradicional diagnóstico médico, tem uma conotação diferente quando se refere a intersexualidade. Em casos de outras patologias, geralmente a equipe médica, só realiza alguma intervenção quando existe risco a saúde do paciente. No caso da intersexualidade, inúmeros procedimentos são realizados ainda que um corpo intersex não cause danos à saúde. O que está em jogo no diagnóstico é a busca “sexo verdadeiro” que está de alguma forma inscrito no corpo e só precisa de bons instrumentos e exames para ser lido e visto. Estamos agora em um outro contexto sócio-cultural e com mais informações decorrentes do avanço do conhecimento, o que amplia a possibilidade de entender

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melhor os mecanismos envolvidos e estabelecer diagnósticos mais precisos e com certo valor preditivo, mas a possibilidade de cometer erros nas decisões de gênero ainda é grande, pois algumas questões fundamentais ainda não foram respondidas, nem no que se refere aos processos que estabelecem essas decisões em pessoas sem alterações genitais, quanto mais naquelas que apresentam ambigüidade. Fica assim evidente que o médico, ao olhar um genital de aspecto ambíguo e fazer a pergunta menino ou menina, está diante do início de uma cascata de eventos que afetará essa criança por toda sua vida e com implicações às vezes muito maiores do que dizer simplesmente “menino” ou “menina”, mas descobrir a cada passo o que significa esse fato, processo esse que a maioria das pessoas não precisa de ajuda para identificar e estabelecer condutas. (SPINOLA-CASTRO, p. 58, 2005).

4.2. Justificativas para intervenção. Os diferentes documentos pesquisados expõem o quanto é difícil para medicina “tratar” a intersexualidade. A epígrafe da tese de CARAKUSHANSKY (1969) mostra o desconforto que esses corpos provocam: “Quando uma mulher dá a luz a um infante que não possui sexo bem definido, a calamidade ocorrerá na nação; o dono da casa não terá felicidade.” (profecia da babilônia, 1700 A.C. / epigrafe CARAKUSHANSKY, 1969). Damiani (2005) alega que a ambiguidade genital é uma “urgência médica”, pois, é necessário informar rapidamente o sexo da criança. Muitas questões têm sido levantadas com relação a crianças com anomalias da diferenciação sexual, que nascem com graus variados de ambigüidade genital. Esses casos têm sido encarados como verdadeiras “emergências médicas” e procura-se chegar a um diagnóstico etiológico precocemente, para que se possa atribuir um sexo de criação a estas crianças. (DAMIANI, p. 43, 2005).

A referência ao “social” como maior causador de sofrimento nesses casos, exclui a medicina do lugar de quem primeiro aponta esse corpo como anormal. O Conselho Federal de Medicina (2003) afirma que o nascimento de um bebê intersex é uma urgência biológica e social. O nascimento de crianças com sexo indeterminado é uma urgência biológica e social. Biológica, porque muitos transtornos desse tipo são ligados a causas cujos efeitos constituem grave risco de vida. Social, porque o drama vivido pelos familiares e, dependendo do atraso do diagnóstico, também do paciente, gera graves transtornos. (Resolução Conselho Federal de Medicina Nº 1.664/2003).

O artigo de Spinola-Castro (2005) fala em urgência mental e social. A autora critica as inúmeras cirurgias realizadas logo após o nascimento da criança e considera a possibilidade da intersexualidade deixar de ser uma urgência médica. Nesse sentido a autora parece desconsiderar que diagnosticar um corpo como portador de uma patologia, logo após o nascimento, é também uma ação intrusiva.

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Diante das inúmeras críticas e pelas evidências crescentes quanto à necessidade de tomar condutas menos intrusivas, foi sugerido por alguns pesquisadores que o atendimento ao paciente com ambigüidade genital, à exceção dos casos de HAC, não fosse mais considerado como uma emergência médica. Atualmente, esse atendimento pode não ser mais uma emergência médica, mas sempre continuará sendo uma emergência mental e social. A solução das emergências mentais requer tempo, educação, consultas e contemplação e só após esse processo a tomada das decisões. (SPINOLA-CASTRO, p. 56, 2005).

Cardoso (2005) em seu artigo informa a existência de uma triagem neonatal, na cidade do Rio de Janeiro. O diagnóstico precoce, em todos os documentos pesquisados, é motivo de preocupação para a equipe médica. O CFM indica que “pacientes com anomalia de diferenciação sexual devem ter assegurada uma conduta de investigação precoce com vistas a uma definição adequada do gênero e tratamento em tempo hábil” (Resolução Conselho Federal de Medicina Nº 1.664/2003). Spinola-Castro (2005) discorre sobre os inúmeros transtornos que podem acontecer com a demora de um diagnóstico preciso dos médicos. Além disso, quando nasce uma criança, a impossibilidade de saber de imediato o sexo, a necessidade de vários exames, o tempo para a realização do diagnóstico, as expectativas do grupo de convívio (amigos, parentes), a angústia de não poder dizer se nasceu um menino ou uma menina atinge os pais e familiares de uma forma muito contundente. Essa é uma situação com implicações legais e sociais, que cria inúmeras fantasias de medo e questionamentos pessoais, que interferem no processo de decisão, assim como repercutem em todo o processo de desenvolvimento, adaptação e aceitação da criança nas diferentes etapas da vida. (SPINOLACASTRO, p. 47, 2005).

Percebemos em alguns documentos que se levanta a possibilidade de se adiar a designação do sexo da criança, mas essa idéia é logo descartada. Ativistas intersex, como os que fazem parte da ISNA (Intersex Society American), advogam que as intervenções médicas devem ser adiadas, até o momento em que a pessoa possa decidir o que fazer (se é que têm algo que deve ser feito) com o seu corpo. Nas sociedades desenvolvidas ainda não existem evidências comprovadas de que postergar a cirurgia possa trazer melhores resultados, pois o tratamento em idade bem precoce é rotina, porém são exatamente desses países que existem os relatos de pacientes na idade adulta questionando condutas tomadas quando eram crianças e que provavelmente não dependem apenas do aspecto cirúrgico. (SPINOLACASTRO, p. 57, 2005). As dúvidas chegam a tal ponto que há autores preconizando que se deixe a criança sem ter seu sexo definido, e se aguarde que ela própria, mais tarde, decida qual seu sexo. Convenhamos que é uma conduta complicada, levando-se em conta que essas crianças serão obrigadas a viver em uma sociedade em que a definição sexual já deve estar estabelecida cedo. Em alguns países como a República Dominicana, Nova Guiné, onde há alta incidência de deficiência de 5-redutase tipo 2, aceita-se um "terceiro sexo", temporário, e essas crianças são mantidas nesse estágio de espera até que, na puberdade, ocorra a definição para o sexo masculino. Mesmo assim, as crianças passam por grande sofrimento em vista de serem proibidas de

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participarem de algumas atividades próprias do sexo masculino. (DAMINI, p. 4, 2005).

Sobre o adiamento das intervenções o Conselho Federal de Medicina orienta: [...] um erro na definição sexual pode determinar caracteres sexuais secundários opostos aos do sexo previamente definido. Sempre restará a possibilidade de um indivíduo não acompanhar o sexo que lhe foi definido, por mais rigor que haja nos critérios. Por outro lado, uma definição precoce, mas inadequada, também pode ser desastrosa. Há quem advogue a causa de não-intervenção até que a pessoa possa autodefinir-se sexualmente. Entretanto, não existem a longo prazo estudos sobre as repercussões individuais, sociais, legais, afetivas e até mesmo sexuais de uma pessoa que enquanto não se definiu sexualmente viveu anos sem um sexo estabelecido. (Resolução Conselho Federal de Medicina Nº 1.664/2003).

A heteronormatividade e a busca pelo “sexo verdadeiro” estão intimamente interligadas. Só são possíveis relações heterossexuais se o binarismo de sexo permanecer imutável e inquestionável. A definição do sexo/gênero adequado que encontramos nos documentos médicos se referem a adequação de uma sexualidade heterossexual. Os diversos documentos apontam o quanto é temeroso para as equipes médicas a quebra das congruências por eles construídas: A distorção da auto-imagem produz insegurança e leva a conflitos psicossexuais, que podem ser agravados por atitudes inadequadas da comunidade. Há necessidade de um estudo ambiental para prevenir esses desajustamentos, além do tratamento psicológico individual. A inversão psicossexual sem alterações fenotípicas pubertárias pode-se manifestar como travestismo, homossexualismo ou transeuxalismo. (DORINA, p. 9, 1980). Se dispusermos de métodos que avaliem a característica cerebral de pacientes com anomalias da diferenciação sexual teremos aí um elemento importante para a atribuição do gênero e poderemos, talvez, evitar que mudanças de sexo em idades posteriores ocorram, com grande dose de sofrimento para os pacientes e para seus familiares. (DAMINI, p. 43, 2005).

Nesse momento de “risco” é chamada a equipe de saúde mental, constituída por psiquiatras e principalmente por psicólogos. São esses profissionais quem devem garantir que a escolha por determinado sexo pela equipe médica, é o “sexo verdadeiro”. Orientar os familiares das crianças intersex sobre como essas crianças devem ser criadas é fundamental para o sucesso dos procedimentos. O atendimento dos portadores de anomalias da diferenciação sexual pela equipe de saúde mental visa construir uma relação positiva entre os pais e a equipe médica. Esta intervenção precoce é fundamental para maior fortalecimento emocional e enfrentamento à angústia que a situação provoca. Nesta circunstância, o núcleo social e familiar fica ambivalente e com sentimento de culpa nos primeiros momentos, pois é senso comum que a identidade sexual deve ser construída pelos

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familiares e sociedade, gerando, assim, forte ansiedade. Os profissionais em Saúde Mental devem considerar o paciente como um ser em desenvolvimento, minimizando as angústias suscitadas no meio social e familiar, ajudando-o a construir sua auto-imagem. (Resolução Conselho Federal de Medicina Nº 1.664/2003).

Percebemos nesse trecho da Resolução do CFM que o saber médico se apropria de termos da Psicologia para assegurar as intervenções. A teoria do desenvolvimento, nesse caso, é utilizada como fundamentação justificar que criança possa futuramente se “enquadrar” no padrão biomédico, não só de corpo, mas também, de sexualidade. É óbvio que o sexo legal deve ser atribuído de preferência levando-se em conta o sexo gonadal. No entanto, até recentemente, nos casos educados no sexo masculino, e que tinham mais de três anos de idade, não se aconselhava mudança do sexo atribuído, admitindo-se que sua identidade psicossexual já estava definitivamente consolidada. (DORINA, p. 120, 1980).

A equipe de saúde mental, não participa, frequentemente, na decisão sobre a designação do sexo, em casos de diagnósticos precoces. Mas, a situação se modifica quando o diagnóstico de intersexualidade ocorre após a primeira infância. Os profissionais da Psicologia auxiliam a equipe médica para identificar qual o sexo da criança ou do adolescente. As intervenções devem priorizar um “melhor desenvolvimento psicossexual”. “O paciente que inicia o tratamento na idade adulta deve sofrer uma avaliação psicológica completa. A identidade psicossexual deve orientar as medidas terapêuticas (...). O acompanhamento psicológico prolongado dos pacientes e de seus familiares é obrigatório.” (DORINA, p. 43, 1980). Em princípio, a designação de gênero deve ser orientada pelo que se considera o melhor prognóstico do ponto de vista psicossocial e psicossexual, baseado nos resultados e experiência obtidos através dos estudos feitos nas diferentes patologias e também no contato mais próximo com os familiares, mas também considerando os aspectos biológicos. (SPINOLA-CASTRO, p. 56, 2005).

Pino (2007) aponta que a intersexualidade não é uma doença, no sentido que causa danos a saúde do paciente, mas sim uma condição física que não se encaixa nos critérios de normalidade corporal que circulam. Nesse sentido o saber médico utiliza o saber psicológico para explicar as cirurgias em recém-nascidos, como indica o trecho abaixo: O objetivo inicial da cirurgia é permitir que a criança esteja de acordo com o sexo e gênero designados e, também, permitir aos pais um beneficio psicológico. Por questões óbvias, a maioria dos pais não conseguiria suportar essa situação proposta e a urgência para inserir a criança no contexto social é sempre muito grande. (...) Em médio prazo, o objetivo da cirurgia é permitir um crescimento ao menos sem os problemas psicológicos criados pelas diferenças físicas com outras crianças. Em

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longo prazo, a cirurgia tem como objetivo permitir uma atividade sexual satisfatória. (SPINOLA-CASTRO, p. 57, 2005).

A distinção entre o que é ser homem e o que é ser mulher, se cristalizou no saber médico ao ponto do editorial da revista Arquivos Brasileiros de Endocrinologia e Metabologia (2005) afirmar que: A distinção entre homens e mulheres é considerada absoluta na maioria das circunstâncias. Do ponto de vista popular, não há ninguém como os homens para localizar ruas e estradas em mapas de um país estrangeiro. Eles sempre sabem o preço da gasolina e, no instante em que ligam o motor de um carro, reconhecem o botão dos faróis, do ar-condicionado, do aquecimento e até mesmo do limpador de pára-brisas do vidro traseiro, aquele que as mulheres jamais conseguem aprender, mesmo cinco anos depois de terem comprado o carro. Já as mulheres, são capazes de dividir sua atenção entre o programa favorito de televisão, os cuidados com as crianças e uma ou mais atividades domésticas básicas. Diferentemente do homem, que quando assiste futebol fica totalmente absorvido e incomunicável. Estas diferenças podem, eventualmente, ocasionar conflitos de relacionamento, e até mesmo uma guerra, a famosa guerra dos sexos. (LATRÔNICO, p.1, 2005).

Esse discurso destina os corpos a determinados modos de viver. Ser homem ou mulher informa o que podemos ou não fazer. Desse modo os “corpos ambíguos” não são vivíveis, não existe esse lugar em nossa sociedade. O dispositivo da sexualidade, pautado no saber médico, institui regimes de verdade, que legitima os procedimentos da equipe médica. O poder não para de nos interrogar, de indagar, registrar e institucionalizar a busca da verdade, profissionaliza-a e a recompensa. […] estamos submetidos à verdade também no sentido em que ela é lei e produz o discurso verdadeiro que decide, transmite e reproduz, ao menos em parte, efeitos de poder. Afinal, somos julgados, condenados, classificados, obrigados a desempenhar tarefas e destinados a certo modo de viver ou morrer em função dos discursos verdadeiros que trazem consigo efeitos específicos de poder. (FOUCAULT, 2008b, p.180)

Nenhum dos documentos faculta a uma não intervenção. Assim, não existe a possibilidade de se viver um corpo “sem sexo” definido. Por isso as equipes se perguntam incessantemente qual o “sexo verdadeiro” desse corpo? A pergunta mais importante ainda permanece sem respostas definitivas ou conclusivas, ou seja, o que faz de nós homens ou mulheres, meninas ou meninos? Se os cromossomos, hormônios, genitais, o cérebro ou a forma como se aprende a pensar a respeito de nós mesmos e dos outros. Aplicar este tipo de pergunta a pacientes com ambigüidade genital representa um grande desafio. Através da cirurgia, reposição hormonal, ou apoio psicológico, tenta-se oferecer a esses pacientes uma possibilidade de adequação física e emocional. (SPINOLA-CASTRO, p. 58, 2005).

4.3. Quais as intervenções realizadas nos corpos intersex?

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Alex: já foi alguma vez a sala de cirurgia pra ver como mutilam os corpos? Alvaro: Ele não mutila corpos, os concerta. Ele faz seios e narizes por dinheiro, mas prefere outras coisas. Alex: Como o que? Alvaro: Não sei, deformações. Os caras que nascem com 11 dedos, meu pai tira. Alex: você disse que ele não mutila, e agora você diz que tira dedos. (Filme XXY10, 2007).

Esse diálogo faz parte do filme XXY (2007). Alex, jovem intersex, conversa como Álvaro, filho de um cirurgião plástico que foi visitar sua família. Os dois jovens têm percepções diferentes sobre o trabalho do cirurgião, Alex entende as operações como uma mutilação e Alvaro como concerto. Os corpos intersex estão no meio desse campo de disputa, entre o saber médico, que tira pedaços do corpo para “concertá-lo” e os que defendem a não intervenção, como os ativistas intersex e o Movimento Queer. O final de todos os capítulos do livro de Dorina (1980) é destinado a orientar a conduta médica para o tratamento das patologias, que tenha como característica a ambiguidade genital. Os procedimentos mais indicados são cirurgias “re-paradoras” e terapia hormonal. Podemos encontrar orientações parecidas na Tese de Carakushansky (1969), ele informa que no caso de Pseudo-Hermafroditismo masculino alguns pacientes em que o sexo de criação escolhido foi o feminino, as correções cirúrgicas foram iniciadas antes dos 12 meses de idade, “a feminização da genitália externa consistiu na amputação do falo, exteriorização da vagina e plástica de pequenos lábios.” (CARAKUSHANSKY, p. 48, 1969). A outra intervenção recomendada é a psicoterapia, mas só quando há indicação da equipe médica. Carakushansky (1969) fala sobre um dos casos, por ele atendido, em que foi indicado o atendimento psicológico: Um único paciente apresentava desajuste psicológico evidente fazendo necessário seu encaminhamento a estudo especializado. Este paciente, com idade de 7 anos, ainda permanecia com a corda e hipospádia não corrigida, sendo obrigado a urinar em posição característica do sexo feminino. Foi obrigado a abandonar a escola porque sua genitália dúbia havia se tornado motivo de pilheria entre os companheiros. (Carakushansky, p. 49, 1969).

Poucos são os casos em que os médicos optam por transformar os corpos intersex em “homens”. Quando isso ocorre é indicada a mastectomia (retirada dos seios) e o tratamento com testosterona injetável. O uso de hormônio é indicado para a maioria dos 10

O filme XXY conta a história de Alex, jovem intersex cujos pais não permitiram que os médicos realizassem “cirurgias reparadoras” logo após o seu nascimento.

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pacientes, geralmente a terapia hormonal é iniciada logo após a determinação do sexo. Os hormônios irão garantir, como mencionado anteriormente, que as características sexuais secundárias sejam “compatíveis” com o sexo escolhido. O estrógeno é de enorme benefício psicológico para as pacientes, pela feminilização da silhueta (com aparecimento de mamas, arredondamento dos flancos) e pela afirmação de feminilidade através das menstruações induzidas pelo hormônio. (DORINA, p.17, 1980).

Vera Menegon (2004) aponta que no discurso de algumas mulheres, a menstruação é diretamente associada à sexualidade e feminilidade. Esse discurso também se repete na fala de Dorina (1980). Percebemos em todos os documentos médicos estudados que existe uma prevalência na escolha pelo sexo feminino, no processo de designação sexual. As intervenções para a masculinização do corpo ocorrem geralmente quando o diagnóstico é tardio e a criança nos exames psicológicos indica uma orientação psicossocial masculina. Como no caso da Figura 3 que é apresentado por Dorina (1980), o jovem foi “criado” como menino, mas desenvolveu mamas na puberdade. Foi indicada a mastectomia, colocação de próteses testiculares e injeções quinzenais de testosterona.

Figura 3

Pino (2007) e Machado (2008) confirmam a “preferência” na construção de corpos femininos pela equipe médica. O ditado médico,“It’s easier to poke a hole than to build a pole.” (é mais fácil cavar um buraco do que construir um poste) é usualmente citado em

artigos que discorrem sobre intersexualidade.

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A preferência quase que sistemática pela criação no sexo feminino baseava-se no conceito de que, do ponto de vista cirúrgico, seria mais fácil construir uma vagina do que um pênis com funcionalidade sexual futura. Pensava-se na identidade feminina como o resultado apenas de uma socialização adequada, o que seria alcançado pela reconstrução cirúrgica do genital externo. (SPINOLA-CASTRO, p. 55, 2005).

Dorina (1980) defende que “as crianças com genitália ambígua a decisão a ser adotada deve pender para a linha feminina, de preferência quando houver anuência da família nesse sentido” (DORINA, p. 43, 1980). Damiani (2005) confirma essa posição: Apesar de pouco frequente no contexto das anomalias da diferenciação sexual, o HV (Hermafroditismo verdadeiro) é sempre um desafio em termos de compreensão fisiopatológica e da própria opção do gênero de criação. Qualquer cariótipo pode estar presente e a variedade de apresentações clínicas é bastante grande. Na maioria dos casos, tem-se privilegiado a opção pelo sexo feminino, pelas possibilidades de preservação do tecido ovariano, usualmente funcionante e com possibilidades de fertilidade. (DAMINI, 2005, p. 7).

Pino (2007) questiona a escolha usual pelo sexo feminino, apontando que em nossa sociedade seria mais fácil a construção de corpos passivos, além da preocupação com a homossexualidade feminina ser menos frequente. Os corpos femininos e masculinos são construídos priorizando as características que são esperadas culturalmente de cada gênero. Para o sexo feminino, o primeiro fator considerado é a preservação da capacidade reprodutiva, depois a possibilidade em ter relações sexuais prazerosas e poder ser penetrada por um pênis. Para o sexo masculino em primeiro lugar preserva-se o tamanho e a possibilidade erétil do pênis, depois a capacidade de sentir prazer, associado à ejaculação e à capacidade de penetrar uma vagina e, finalmente, a reprodução e a possibilidade de urinar em pé. (PINO, p. 04, 2007).

A construção de corpos femininos requer a mutilação da genitália, retirada de parte do clitóris, construção de uma vagina, dilatações vaginas (para ser possível a penetração de um pênis), como comenta Dorina (1980): A plástica para a formação de uma neovagina deve ser indicada em todos os casos em que houver um útero bem formado e ovários funcionantes (...). Nos caos de útero rudimentar sólido uma vagina adequada pode ser obtida através de métodos não cruentos, tais como aplicação de pressão com dilatador simples na fosseta vaginal. (DORINA, p. 130, 1980).

A Figura 3 uma apresenta um caso do livro de Dorina (1980) em que uma criança é submetida a ablação do clitóris, para ter um corpo adequado ao sexo feminino. Muitos ativistas intersex protestam contra esse tipo de tratamento, em que o paciente não é consultado e sofre graves mutilações, perdendo a sensibilidade na genitália.

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Figura 3 Em uma sociedade como a nossa, conhecemos, é certo, procedimentos de exclusão. O mais evidente, o mais familiar também, é a interdição. Sabe-se bem que não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar de tudo em qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar qualquer coisa. […] Notaria apenas que, em nossos dias, as regiões onde a grade é mais cerrada, onde os buracos negros se multiplicam, são as regiões da sexualidade e as da política: como se o discurso, longe de ser esse elemento transparente ou neutro no qual a sexualidade se desarma e a política se pacifica, fosse um dos lugares onde elas exercem, de modo privilegiado, alguns de seus mais temíveis poderes. Por mais que o discurso seja aparentemente bem pouca coisa, as interdições que o atingem revelam logo, rapidamente, sua ligação com o desejo e com o poder. (FOUCAULT, p. 09-10, 2008).

A normalização dos corpos institui quem está autorizado a ter determinadas experiências corporais, quem pode “ser ativo” ou “passivo” em sua relação (como se isso fosse possível!). No caso dos corpos intersex o processo de normatização se torna mais “cruel”, pois, esses corpos desde o seu nascimento precisam ser re-(des)-feitos para se encaixarem no padrão homem, mulher. Como se existisse esse homem ou essa mulher normal. O poder produz saberes e técnicas que possibilitam o controle dos corpos. O poder exercido sobre os corpos foi o que permitiu segundo Foucault (2009b) a construção de saberes sobre a anatomia, fisiologia, sobre o organismo. O controle da sociedade sobre o indivíduo não se opera simplesmente pela consciência ou pela ideologia, mas começa no corpo, com o corpo. Foi no biológico, no somático, no corporal que, antes de tudo, investiu a sociedade capitalista. O corpo é uma realidade bio-política. A medicina é uma estratégia bio-política. (FOUCAULT, p. 80, 2009a).

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A medicina como estratégia bio-política dita quais práticas são possíveis e regula a sexualidade da população. A medicina, em nossa sociedade, é um dos poucos saberes autorizados a falar sobre o sexo. A Resolução do Conselho Federal de Medicina (2003) mostra o “novo” posicionamento médico perante a família e o paciente com intersexualidade. A equipe médica deve ficar disponível para falar sobre o caso com os interessados. Durante toda a fase de investigação o paciente e seus familiares ou responsáveis legais devem receber apoio e informações sobre o problema e suas implicações. No momento da definição final do sexo, os familiares ou responsáveis legais, e eventualmente o paciente, devem estar suficiente e devidamente informados de modo a participar da decisão do tratamento proposto. (Resolução Conselho Federal de Medicina Nº 1.664/2003).

Fica delimitado, nesse trecho, quem deve falar sobre a intersexualidade e quem deve ouvir sobre o assunto. A participação de familiares e pacientes no tratamento se limita a está informado sobre o assunto. O CFM (2003) ainda pontua que se o paciente apresentar “condições deve participar ativamente da definição do seu próprio sexo”. Questionamos quais seriam as condições que alguém deveria apresentar para poder opinar sobre o seu próprio sexo e corpo. Os documentos médicos analisados apontam que as crianças não têm as condições necessárias para decidir sobre o seu corpo. A infância permanece sem fala. O Parecer 1726/2006 do Conselho Regional de Medicinal do Paraná, citado anteriormente na página 39, expõe a orientação sobre a conduta médica em relação ao paciente no caso de intersexualidade. A paciente não sabe o porquê das intervenções que serão realizadas em seu corpo futuramente, supostamente, segundo o médico, para não ocorrer nenhum problema relativo a sua sexualidade. […] seria necessário saber até onde se exerce o poder, através de que revezamento e até que instâncias, frequentemente ínfimas, de controle, de vigilância, de proibições, de coerções. Onde há poder, ele se exerce. Ninguém é, propriamente falando, seu titular; e, no entanto, ele sempre se exerce em determinada direção, com uns de um lado e outros do outro; não se sabe ao certo quem o detém; mas se sabe quem não o possui. (FOUCAULT, 2005, p. 75).

No caso da intersexualidade é notório que as pessoas intersex e seus familiares em negociação com o saber médico, não têm o poder sobre o sexo. Spinola- Castro (2005) aponta que as famílias, quando convidas a falar, raramente se contrapõem as decisões médicas. O saber médico, como detentor de um status de verdade, não é possível ser questionado pelos leigos sobre o assunto, familiares e pacientes.

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É sempre importante que os pais sejam orientados quanto aos benefícios e riscos da cirurgia sobre todas as opções disponíveis e das possibilidades da incompatibilidade do sexo de criação com a de identidade de gênero e distúrbios psicológicos na vida adulta. Os pais têm o direito de não aceitar o procedimento cirúrgico, o que de acordo com pesquisas realizadas raramente acontece. (SPINOLA-CASTRO, p. 57, 2005).

As intervenções médicas tentam transformar esse corpo abjeto em um corpo que se encaixe nos padrões de normalidade. Mas o corpo não é passivo, ele é fluido e está sempre se transformando. Por isso, o saber médico acaba destinando toda a vida desses corpos a intervenções intermináveis. O poder não se dá, não se troca nem se retoma, mas se exerce, só existe em ação, como também da afirmação que o poder não é principalmente manutenção e reprodução das relações econômicas, mas acima de tudo uma relação de força. (FOUCAULT, p. 175, 2009a).

O saber médico contribuiu intensamente para instituir um padrão de corpo normal, que estabelece requisitos para considerar um corpo como humano. Isso inclui quantidade de dedos, localização dos braços, cromossomos. Desta forma, também foram instituídos padrões de corpos masculinos e femininos. São medidos e controlados quais hormônios estão presentes no corpo; a quantidade desses hormônios; a presença do pênis e clitóris, o tamanho desses; o crescimento dos seios; o surgimento de pêlos, sua quantidade e distribuição pelo corpo; quantos buracos existem entre as pernas. Todas essas características devem estar organizadas para se nomear o corpo como masculino ou feminino e, consequentemente, para ser inteligível a nossa sociedade. Qual seria a diferença entre um clitóris de 15 cm, caso citado por Machado (2008), e um pênis com o mesmo tamanho? Saberes e tecnologias são construídos e ditam qual desses dois órgãos é naturalmente constituído para penetrar outro corpo, quando excitado. Nessa mesma lógica, corpos instituídos como masculinos e femininos compartilham os mesmos hormônios, mas apenas alguns estão autorizados a possuir determinada quantidade de hormônio e utilizá-los inclusive sinteticamente. Alex: O que está fazendo? Kraken: Cuidando de você. Alex: Não vai poder cuidar para sempre. Kraken: Até você escolher. Alex: O que? Kraken: O que você quiser. Alex: E se não houver nada pra escolher? (Filme XXY, 2007)

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Esse diálogo ocorre entre Alex, garota intersex, e seu pai, após ela ser agredida por garotos que desejavam observar a sua genitália e encontrar o que tinha de anormal com ela. A questão final de Alex “E se não houver nada para escolher?” coloca em questão o padrão normal de genitália. Seria possível viver com uma genitália considerada ambígua pelo saber médico? A experiência intersex levanta dilemas que não são fáceis de serem resolvidos. Por um lado, há indivíduos organizados reivindicando maior autonomia para gerir seus corpos e lutando para banir certas práticas e saberes científicos que marcam seus corpos e suas vidas de maneira irreversível e sem consentimento. Por outro, há uma lógica social e cultural que bane a autonomia corporal e nega reconhecimento social àqueles que não são identificados com ideais normativos do sexo e sua lógica binária e heterossexista. Lógica esta que perpassa todos os corpos, mas que no caso dos intersex, se radicaliza, pois são indivíduos que nascem com corpos diferenciados, aos quais não se atribui reconhecimento como corpo possível, mas como um corpo que tem de ser “des-feito” para se enquadrar naquilo que é considerado normal em nossa sociedade. (PINO, p. 04, 2007).

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5. SERÁ QUE CHEGUEI AO FIM DE TODOS OS CAMINHOS? Será que cheguei ao fim de todos os caminhos E só resta a possibilidade de permanecer? Será a Verdade apenas um incentivo à caminhada Ou será ela a própria caminhada? Terão mentido os que surgiram da treva e gritaram - Espírito! E gritaram - Coragem! Rasgarei as mãos nas pedras da enorme muralha Que fecha tudo à libertação? Lançarei meu corpo à vala comum dos falidos Ou cairei lutando contra o impossível que antolha-me os passos Apenas pela glória de tombar lutando? Será que eu cheguei ao fim de todos os caminhos... Ao fim de todos os caminhos? (Vinícius de Moraes, p 24-25, 2008)

Espero não ter chegado ao fim de todos os caminhos e sim iniciado uma trajetória que permitirá percorrer novos caminhos. E que nesses caminhos seja possível me perder e encontrar outr@s que desejem também caminhar sem rumo. Encontrei quimeras, nesse caminho: figuras fantásticas, que foram condenadas a viver como abjetas, por não terem corpos que se encaixam no padrão de normalidade. Para questionar as normas utilizei como referência o Movimento Queer, desnaturalizamos o sexo, o gênero, o social e a própria natureza. Documentos médicos foram as principais fontes de informações para construção desse caminho, pois, como práticas discursivas, estes fazem parte da governamentalidade dos corpos. Definimos, assim, “práticas discursivas como linguagem em ação, isto é, as maneiras a partir das quais as pessoas produzem sentidos e se posicionam em relações sociais cotidianas.” (SPINK, p. 145, 2004). O saber médico foi escolhido como foco, por ser o principal regulador dos corpos intersex e por ter ganhado em nossa sociedade o status de saber verdadeiro. Buscamos entender de que modo alguns saberes circulam como verdade e determinam práticas e modos de viver. Os corpos intersex são afetados radicalmente pelo dispositivo da sexualidade. A medicina examina, re-des-faz esses corpos para que possam ser vividos. A intenção não é apontar a medicina como a grande vilã, mas mostrar como esse saber contribui para a manutenção de determinados padrões de vida em nossa sociedade, regulando-os. E como o sexo continua expressando a verdade sobre o sujeito. Podemos citar outro dispositivo que controla todos os corpos, e os intersex de

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forma especial, o dispositivo jurídico. Para sermos reconhecidos como cidadãos precisamos nos apresentar como homem ou mulher não existe ambiguidade no registro de nascimento. Spinola- Castro (2005) aponta de que forma a legislação pode interferir na vida das pessoas intersex: Acrescente-se a isso a falta de uma legislação adequada de forma a proteger esses pacientes enquanto aguardam a avaliação médica para uma decisão quanto ao sexo de criação e que permita um registro civil temporário, o que lhes garantiria o acesso a postos de saúde, atendimento hospitalar a convênios médicos. Da mesma forma, também falta uma revisão da legislação vigente, que ainda considera a presença do cromossomo Y como o principal critério para o registro civil. (SPINOLA-CASTRO, p. 57, 2005).

Diferentes saberes estão articulados para gerenciar esses corpos. Perceber que o discurso utilizado pela medicina para justificar as intervenções nos casos de genitália ambígua está repleto de termos como desenvolvimento psicossexual, identidade, personalidade, sexo psicológico etc.; de alguma forma assusta e faz pensar sobre o papel da Psicologia em fazer circular discursos de normalização e patologização. Esses discursos são percebidos na frase que Stanislau Krynski (1968) utiliza para conclui o seu artigo sobre intersexualidade: “o que fazer para o resto da vida de um indivíduo portador de intersexo? Será ele no futuro um psicopata, um neurótico, um marginal ou um infeliz a pagar um erro da natureza?” Termino esse percurso com um texto que descreve de que modo a intersexualidade, pode ser vivida em nossa sociedade, hoje. Muitas souberam que eram diferentes em sua primeira infância. Pressentiram que seu nascimento não foi uma boa notícia para ninguém. Muitas passaram os primeiros anos indo e voltando de casa para o hospital. Muitas sofreram cirurgias destinadas a reduzir o tamanho de seu clitóris. Ninguém as perguntou. Ninguém as explicou o porquê. Muitas descobriram a verdade de sua história espiando seus registros médicos, às escondidas. Algumas tiveram que usar sua imaginação para reconstruí-la. Outras a descobriram vasculhando em livros de medicina. Algumas foram submetidas à vaginoplastias compulsivas e há meses e anos de dilatações vaginais. Muitas lidam todos os dias com a insensibilidade vaginal. Vivem em culturas onde seus corpos são temidos, são corrigidos, são mutilados. (...) Muitas levam na carne a experiência de uma violação sem fim. Para muitos e muitas elas nem sequer são reais. Nem sequer existem. Suas vidas parecem transcorrer pra lá da diferença sexual, pra lá do gênero, em um lugar nebuloso, sem tempo. (...) (Fragmento do texto político “As Inominadas”, apud. MACHADO, 2008, p. 189).

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APÊNDICE A

XV ENCONTRO NACIONAL DA ABRAPSO PSICOLOGIA SOCIAL E POLÍTICAS DE EXISTÊNCIA: FRONTEIRAS E CONFLITOS MACEIÓ (AL), 30/10 A 02/11 DE 2009 XY0: DISPOSITIVO DA SEXUALIDADE E SABER MÉDICO NO CONTROLE DOS CORPOS INTERSEX Ricardo Pimentel Méllo (UFC) [email protected] Juliana Ribeiro Alexandre (UFC) [email protected] Juliana Vieira Sampaio (UFC) [email protected] ______________________________________________________________________ 1. Discursos que atravessam os corpos intersex. Neste trabalho buscamos compreender de que modo a concepção de corpo “normal”, colocada em circulação por meio de artigos, manuais e resoluções médicas, constroem e controlam os corpos intersex, tornando-os inabilitados para a aceitação social. Hermafroditismos, ambiguidade genital, genitália incompletamente formada, anomalias da diferenciação sexual, estados intersexuais, intersexualidade são as diversas nomenclaturas que encontramos ao longo da pesquisa para se falar sobre esses corpos que causam estranhamento por não se encaixar em nenhum padrão aceito socialmente. A diversidade de termos também nos mostra como diferentes discurso e saberes de épocas distintas concebiam e concebem essas pessoas. A palavra hermafrodita surgiu na Grécia, como indica Anne Fausto-Sterling (2000 apud MACHADO, 2008, p.11). Um dos mitos, sobre o primeiro hermafrodita, conta que Hermes e Afrodite tiveram um filho de beleza inimaginável (Hermaphroditos) que despertou a paixão de uma ninfa. Essa ninfa estava tão apaixonada que colou o seu corpo no do seu amado, e assim os dois se tornaram um. A produção de diferentes nomenclaturas para referir-se a esse estado corporal ininteligível está relacionada a uma determinada concepção de corpo e sexualidade e, consequentemente, a práticas específicas de gestão dos corpos. Quando nos referimos a “Anomalias da diferenciação sexual”, por exemplo, nos remetemos a ideia de patologia causada por um desenvolvimento biológico “anormal”, o que resulta na busca de uma terapia que possibilite a normalização desse corpo. Por sua vez o termo “genitália incompletamente formada” está pautado na compreensão de que todas as pessoas nascem homens ou mulheres, naturalizando, dessa forma, a inscrição do sexo nos corpos. A função do saber médico nos

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casos intersex seria então identificar qual o “sexo verdadeiro” deste corpo e completar nele o que falta para que se torne inteiramente masculino ou feminino. O poder não para de nos interrogar, de indagar, registrar e institucionalizar a busca da verdade, profissionaliza-a e a recompensa. […] estamos submetidos à verdade também no sentido em que ela é lei e produz o discurso verdadeiro que decide, transmite e reproduz, ao menos em parte, efeitos de poder. Afinal, somos julgados, condenados, classificados, obrigados a desempenhar tarefas e destinados a certo modo de viver ou morrer em função dos discursos verdadeiros que trazem consigo efeitos específicos de poder. (FOUCAULT, 2008b, p.180)

As diversas culturas lidam e explicam o fenômeno da intersexualidade de diferentes modos, e o discurso tanto da falta como do excesso atravessam historicamente o “hermafroditismo”. Se por um lado alguns mitos falam sobre dois sexos em um só corpo, por outro temos o saber médico discutindo a imperfeição e a falta nas genitálias incompletamente formadas das pessoas intersex. O excesso de pelos, em corpos ditos femininos; micropênis; clitóris avantajado; hormônios que faltam ou estão em demasia também constroem um saber sobre a intersexualidade. Segundo a Intersex Society American (ISNA, 2006 apud PINO, 2007, p.2) intersex é uma definição geral usada para explicar a variedade de condições nas quais as pessoas nascem com órgãos reprodutivos e anatomias sexuais que “não se encaixam” na típica definição de masculino e feminino. O diagnóstico de intersexualidade é dado após avaliações clínico-cirúrgicas, anatômicas, genéticas, endocrinológicas e por imagem. Dispositivos e tecnologias são “criados” para se regular os corpos e somente a partir destes se torna possível discutir quais indivíduos são “normais”, “anormais”, “completos” ou “incompletos”. Foucault define dispositivo como “estratégias de relações de força sustentando tipos de saber e sendo sustentadas por ele” por meio de elementos discursivos e não discursivos e com uma função de dominação. (FOUCAULT, 2005, p. 246). A partir do “dispositivo da sexualidade” o saber biomédico “convenciona” qual o tamanho “adequado” do pênis e do clitóris, a quantidade de testosterona que uma “mulher” deve “naturalmente” ter no corpo, qual a aparência “normal” das genitálias masculina/feminina etc. e decide então quais corpos devem ser (des)(re)feitos. Uma discussão importante em relação aos intersex é sobre o que é feito com esse diagnóstico. A maioria dos médicos indica cirurgias “reparadoras”, afirmando que essas crianças possuem a genitália incompletamente formada e que por meio da cirurgia as correções serão realizadas. Além das cirurgias, hormônios são prescritos, dilatações vaginais são feitas regularmente para que esses corpos possam ser normalizados. Em uma sociedade como a nossa, conhecemos, é certo, procedimentos de exclusão. O mais evidente, o mais familiar também, é a interdição. Sabe-se bem que não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar de tudo em qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar qualquer coisa. […] Notaria apenas que, em nossos dias, as regiões onde a grade é mais cerrada, onde os buracos negros se multiplicam, são as regiões da sexualidade e as da política: como se o discurso, longe de ser esse elemento transparente ou neutro no qual a sexualidade se desarma e a política se pacifica, fosse um dos lugares onde elas exercem, de modo privilegiado, alguns de seus mais temíveis poderes. Por mais que o discurso seja aparentemente bem pouca coisa, as interdições que o atingem revelam logo, rapidamente, sua ligação com o desejo e com o poder. (FOUCAULT, 2008, p. 0910).

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Além do saber médico, outros saberes são convocados a falar sobre a intersexualidade. Aos juristas é dado o poder de decidir sobre quem está autorizado a “falar”, quem pode ou não exercer o seu saber sobre esses corpos. As “verdades” jurídicas tornam esses corpos habilitados a vida, a cidadania, a identidade, desde o momento do registro de nascimento das crianças intersex no qual deve está assinalado um sexo, masculino ou feminino. Outros indivíduos como familiares, as pessoas intersex e alguns movimentos políticos intersex também participam da discussão sobre o que deve ser (re)(des)feito nos corpos intersex. Os familiares são silenciados e o motivo das constantes idas ao hospital com seus filhos é um segredo velado que só pode ser confessado há poucos e com muita cautela. […] seria necessário saber até onde se exerce o poder, através de que revezamento e até que instâncias, frequentemente ínfimas, de controle, de vigilância, de proibições, de coerções. Onde há poder, ele se exerce. Ninguém é, propriamente falando, seu titular; e, no entanto, ele sempre se exerce em determinada direção, com uns de um lado e outros do outro; não se sabe ao certo quem o detém; mas se sabe quem não o possui. (FOUCAULT, 2005, p. 75)

Desta forma as famílias não têm a permissão para falar sobre a intersexualidade por medo e vergonha daquilo que nem mesmo conseguem compreender, restando apenas a possibilidade de “confiar” e se submeter ao saber médico para que seja solucionado o “problema”. Mesmo assim, permanecerá a dúvida do que este corpo terá se tornado após inúmeras intervenções as quais será sujeitado ao longo da vida. O relato a seguir de uma mãe de uma criança considerada intersex, foi retirado da tese de Paula Machado, “O sexo dos Anjos”, exemplifica as incertezas que cercam o “tratamento” do corpo intersex e de que forma os familiares são “passivos” nesse processo de organização de um “novo” corpo/sexo. Eu fiquei mais preocupada em ver se os médicos conseguiam consertar esse... se ia ficar definido uma coisa ou outra, né. Coisa que eu nem sei se ficou definido. Porque tu pergunta pros médicos e eles falam palavras que não... De repente, do jeito deles, eles especificam. Só que pra gente, como não é estudado, a gente não entende o certo, né? Mas, enfim, o médico, ele disse que as cirurgias foram dentro do que eles esperavam. Só que eles não disseram o que tiraram e o que estava no interior. Por fora, a gente percebeu que corrigiram. Agora, por dentro... não sei o que ficou. (MACHADO, 2008, p.225).

2. Gerenciamento dos corpos. O discurso de verdade sobre o corpo intersex, pautado no conhecimento médico, produz efeitos de poder que diagnosticam, classificam, regulam e destinam essas pessoas à certos modos de viver. Buscando compreender como artigos, resoluções, manuais e outros documentos médicos constroem um saber sobre a intersexualidade a partir de uma concepção essencialista e normativa do corpo é que selecionamos para análise textos de revistas científicas da área médica, conhecidas, ou de grande circulação e de diferentes períodos. Julgamos ser fundamental incluir também a Resolução Nº 1.664/2003, do Conselho Federal de Medicina (CFM), por este ser um documento que guia a prática médica, definindo as normas técnicas necessárias para o tratamento de pacientes portadores de anomalias de diferenciação sexual. O Conselho Federal de Medicina determina que a intersexualidade seja uma “urgência biológica e social”. Sobre tal urgência explica: O nascimento de crianças com sexo indeterminado é uma urgência biológica e social. Biológica, porque muitos transtornos desse tipo são ligados a causas cujos

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efeitos constituem grave risco de vida. Social, porque o drama vivido pelos familiares e, dependendo do atraso do diagnóstico, também do paciente, gera graves transtornos. ( Resolução Conselho Federal de Medicina Nº 1.664/2003).

Segundo Cabral (2003, apud. PINO, 2007, p.3) poucos são os casos de intersexualidade que acarretam danos para a “saúde”. Dessa forma, a intersexualidade não se caracteriza como uma doença que precisa de intervenções médicas, mas pode ser compreendida como um estado corpóreo que não se adéqua a determinados padrões sociais. Os estudos e pesquisas sobre intersex não devem se limitar ao estranhamento provocado por estes corpos, mas devem incluir normas culturais vigentes e as formas de naturalização do ser homem e ser mulher. A concepção de corpo “normal” pautada no (re)conhecimento médico constrói e controla os corpos intersex tornando-os inabilitados para a convivência social. Esta constatação dificulta discussões acerca do assunto, uma vez que ao se aceitar determinada genitália como incompleta, não há mais o que fazer senão completá-la. A patologização da intersexualidade que se faz presente no discurso médico torna urgentes as intervenções nesses corpos A presença de uma ambiguidade genital em recém nascido pode colocar em risco tanto a vida da criança quanto a integridade de seu psiquismo. A constatação de qualquer grau de ambigüidade obriga a tomada de medidas imediatas no sentido da elucidação etiológica, tratamento hormonal substitutivo quando indicado e atribuição do sexo da criança. Nada justifica que essa conduta seja postergada, pois o sexo social, uma vez estabelecido, poderá impedir a melhor decisão quanto ao sexo de criação da criança. (DUVAL DAMIANI, 1986, p. 75).

Os corpos são “corrigidos” sob a justificativa de proporcionar saúde às crianças, mas em função normalizações advindas de práticas discursivas oriundas do saber médico. Este pressupõe a necessidade de identificar as pessoas em um gênero (masculino ou feminino) e, socialmente, a fixação de uma “identidade” é que nos permite sermos reconhecidos como humanos. Os critérios levados em consideração para fazer as cirurgias também são baseados naquilo que se tem como expectativa de performance de cada gênero. Como podemos ver no trecho abaixo, nas intervenções cirúrgicas dos intersex, preserva-se nos homens, primeiramente, a sexualidade heterossexual e nas mulheres se preserva a reprodução e a maternidade. ... para o sexo feminino, o primeiro fator considerado é a preservação da capacidade reprodutiva, depois a possibilidade em ter relações sexuais prazerosas e poder ser penetrada por um pênis. Para o sexo masculino em primeiro lugar preserva-se o tamanho e a possibilidade erétil do pênis, depois a capacidade de sentir prazer, associado à ejaculação e à capacidade de penetrar uma vagina e, finalmente, a reprodução e a possibilidade de urinar em pé. (PINO, 2007, p.4).

Segundo Machado (2008), a maioria das cirurgias dos casos intersex é proposta para a “construção” de corpos femininos. Segue-se o ditado médico “é mais fácil cavar um buraco do que construir um poste”. E os “anseios sociais” também atravessam essa escolha, pois seria mais fácil “criar corpos passivos” do que um “pênis funcional”. Em um dos documentos pesquisados são apresentadas “Diretrizes para lidar com pessoas com genitália ambígua” onde o autor descreve passos a serem seguidos quando a equipe médica diagnostica casos de intersexualidade. O trecho seguinte se refere ao modo do

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saber médico que deve ser “cuidadosamente empregado” para identificar o “verdadeiro” sexo do indivíduo. Isso é considerado fundamental para resguardar a heteronormatividade, pois esse cuidado permitirá desenvolvimento heterossexual: “Quando a determinação é baseada no desenvolvimento mais provável, a maioria das crianças irá se adaptar e aceitar o gênero designado, o qual deverá coincidir com sua identidade sexual.”(DIAMOND, 1997). O Conselho Federal de Medicina, como pode ser visto no trecho abaixo, também confirma esta determinação de uma verdade sobre o sujeito, como se o sexo e o gênero estivessem naturalmente inscritos no corpo. [...] um erro na definição sexual pode determinar caracteres sexuais secundários opostos aos do sexo previamente definido. Sempre restará a possibilidade de um indivíduo não acompanhar o sexo que lhe foi definido, por mais rigor que haja nos critérios. Por outro lado, uma definição precoce, mas inadequada, também pode ser desastrosa. Há quem advogue a causa de não-intervenção até que a pessoa possa autodefinir-se sexualmente. Entretanto, não existem a longo prazo estudos sobre as repercussões individuais, sociais, legais, afetivas e até mesmo sexuais de uma pessoa que enquanto não se definiu sexualmente viveu anos sem um sexo estabelecido. O maior objetivo dessa equipe não será apenas descobrir qual é a etiologia da anomalia da diferenciação sexual, mas sim obter uma definição racional sobre o sexo de criação mais recomendável. ( Resolução Conselho Federal de Medicina Nº 1.664/2003).

A intersexualidade mostra o quanto o binarismo sexual e de gênero homem-mulher limita-se à busca compulsória pela normalização dos corpos e pela “congruência” entre o sexo biológico e as performances dos intersex. São essas perspectivas que atravessam a justificativa de “técnicas reparadoras”. Caso a pessoa intersex não desenvolva “normalmente” (heterossexualmente) a sua sexualidade a decisão médica é colocada em discussão. 3. Conclusão O saber sobre a intersexualidade como concebida nos atuais padrões da cultura ocidental deixou de ser exclusividade de um discurso médico, e foi incorporado pelas discussões sociológicas, antropológicas etc. Mesmo assim este modo de viver continua como uma “identidade” invisível, da qual pouco se deve falar fora do ambiente acadêmico ou hospitalar, por causar estranhamento, medo, desconforto etc. Com a seguinte frase o psiquiatra Stanislau Krynski (1968) conclui o seu texto sobre intersexualidade: “o que fazer para o resto da vida de um indivíduo portador de intersexo? Será ele no futuro um psicopata, um neurótico, um marginal ou um infeliz a pagar um erro da natureza?” A intersexualidade suscita importantes reflexões sobre os paradoxos identitários quase invisíveis, propiciando análises sobre a construção do corpo sexuado, seus significados sociais e políticos, assim como sobre o processo de normatização e controle social não apenas dos intersex, mas também de todos os corpos. (PINO, 2007, p. 2).

Segundo Machado “os corpos intersex seguem mostrando a falência da norma que estabelece que existem dois - e apenas dois - sexos, linearmente e necessariamente ligados a dois - e apenas dois – gêneros.” (MACHADO. 2008, p. 223). Os pacientes são estigmatizados e calados após terem seus corpos “des-feitos”, pois tudo que ocorre com os “órgãos sexuais” é

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considerado da esfera privada. Porém não se impede que alguns discursos sobre a intersexualidade circulem nos espaços públicos seguindo regras de exclusão e interdição. Muitas souberam que eram diferentes em sua primeira infância. Pressentiram que seu nascimento não foi uma boa notícia para ninguém. Muitas passaram os primeiros anos indo e voltando de casa para o hospital. Muitas sofreram cirurgias destinadas a reduzir o tamanho de seu clitóris. Ninguém as perguntou. Ninguém as explicou o porquê. Muitas descobriram a verdade de sua história espiando seus registros médicos, às escondidas. Algumas tiveram que usar sua imaginação para reconstruí-la. Outras a descobriram vasculhando em livros de medicina. Algumas foram submetidas à vaginoplastias compulsivas e há meses e anos de dilatações vaginais. Muitas lidam todos os dias com a insensibilidade vaginal. Vivem em culturas onde seus corpos são temidos, são corrigidos, são mutilados. (...) Muitas levam na carne a experiência de uma violação sem fim. Para muitos e muitas elas nem sequer são reais. Nem sequer existem. Suas vidas parecem transcorrer pra lá da diferença sexual, pra lá do gênero, em um lugar nebuloso, sem tempo. (...) (Fragmento do texto político “As Inominadas”, apud MACHADO, 2008, p.189)

Os movimentos políticos intersex e as pessoas intersex reivindicam autonomia e possibilidade de ser “diferente”. Criticam as normas sociais vigentes e reivindicam o fim das cirurgias, mas sabem que para terem “corpos habitáveis” precisam incorporar as regras impostas culturalmente. Não é desejada a criação de um novo sexo, intersex ou hermafrodita, mas mostrar o quanto são reduzidas as possibilidades de “identidade” socialmente disponíveis. O controle sobre os corpos não ocorre apenas na escolha do “sexo verdadeiro”, mas também na correlação entre corpo, comportamento, sexualidade e caracteres secundários do corpo. A experiência intersex levanta dilemas que não são fáceis de serem resolvidos. Por um lado, há indivíduos organizados reivindicando maior autonomia para gerir seus corpos e lutando para banir certas práticas e saberes científicos que marcam seus corpos e suas vidas de maneira irreversível e sem consentimento. Por outro, há uma lógica social e cultural que bane a autonomia corporal e nega reconhecimento social àqueles que não são identificados com ideais normativos do sexo e sua lógica binária e heterossexista. Lógica esta que perpassa todos os corpos, mas que no caso dos intersex, se radicaliza, pois são indivíduos que nascem com corpos diferenciados, aos quais não se atribui reconhecimento como corpo possível, mas como um corpo que tem de ser “des-feito” para se enquadrar naquilo que é considerado normal em nossa sociedade. (PINO, 2007, p.4).

Referências DAMIANI, Durval; DICHTCHEKENIAN, Vaê; SETIAN, Nuvarte. As ambiguidades genitais. Pediatria. São Paulo, 1986. N° 8, p.75-81. Disponível em . Acesso em: 20 de julho de 2009. DIAMOND, Milton; SIGMUNDSON, Keith. Tratamento da Intersexualidade: Diretrizes para lidar com pessoas com genitália ambígua. Archives of Pediatric & Adolescent Medicine. Honolulu, 1997. Vol. 151, p.298-304. Disponível em Acesso em: 20 de julho de 2009. FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. 17 ed. São Paulo: Edições Loyola, 2008.

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_________________. Microfísica do Poder. Tradução de Roberto Machado. 28a. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2008. KRYNSKI, Stanislau. Estados intersexuais na infância: Aspectos psiquiátricos. Pediatria Moderna. Vol. III, julho 1968, Nº 4. MACHADO, Paula S. O sexo dos anjos: representações e práticas em torno do gerenciamento sociomédico e cotidiano da intersexualidade, 2008. Tese (Doutorado em Antropologia Social), Universidade Federal do Rio Grande do Sul. PARECER 1726/2006 – CRM-PR. Processo consulta N.º 03/2006 – Protocolo N.º 477/2005. Assunto: Estado Interxessual – Pseudo Hermafroditismo. Parecerista: Conselheiro: Mauri José Piazza. Disponível em: http://www.portalmedico.org.br/pareceres/CRMPR/pareceres/2006/1726_2006.htm PINO, Nádia P. A teoria queer e os intersex: experiências invisíveis de corpos des-feitos. Cadernos Pagu, 2007. Resolução do Conselho Federal de Medicina Nº 1.664/2003. Define as normas técnicas necessárias para o tratamento de pacientes portadores de anomalias de diferenciação sexual. (2003). Disponível em Acesso em: 20 de julho de 2009.

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APÊNDICE B

RESOLUÇÃO CFM Nº 1.664/2003 (Publicada no D.O.U. 13 Maio 2003, Seção I, pg. 101 )

Define as normas técnicas necessárias para o tratamento de pacientes portadores de anomalias de diferenciação sexual. O Conselho Federal de Medicina, no uso das atribuições conferidas pela Lei nº 3.268, de 30 de setembro de 1957, regulamentada pelo Decreto nº 44.045, de 19 de julho de 1958, e, CONSIDERANDO que a Lei nº 3.268/57 confere aos Conselhos de Medicina a obrigação de zelar e trabalhar por todos os meios aos seus alcances para o perfeito desempenho ético da Medicina; CONSIDERANDO que o alvo da atenção do médico é a saúde do ser humano, em benefício da qual deverá agir com o máximo zelo e o melhor de sua capacidade profissional; CONSIDERANDO os avanços científicos no que tange ao reconhecimento das anomalias da diferenciação sexual, necessidade de educação continuada e divulgação em eventos médicos; CONSIDERANDO a necessidade do diagnóstico clínico e específico do prognóstico, e a instituição de tratamento adequado; CONSIDERANDO o decidido em Sessão Plenária Extraordinária deste Conselho Federal de Medicina, realizada no dia 11 de abril de 2003, com sucedâneo na Exposição de Motivos anexa, RESOLVE: Art.1º - São consideradas anomalias da diferenciação sexual as situações clínicas conhecidas no meio médico como genitália ambígua, ambigüidade genital, intersexo, hermafroditismo verdadeiro, pseudo-hermafroditismo (masculino ou feminino), disgenesia gonadal , sexo reverso, entre outras. Art. 2º - Pacientes com anomalia de diferenciação sexual devem ter assegurada uma conduta de investigação precoce com vistas a uma definição adequada do gênero e tratamento em tempo hábil; Art. 3º - A investigação nas situações acima citadas exige uma estrutura mínima que contemple a realização de exames complementares como dosagens hormonais, citogenéticos, imagem e anatomopatológicos. Art. 4º - Para a definição final e adoção do sexo dos pacientes com anomalias de diferenciação faz-se obrigatória a existência de uma equipe multidisciplinar que assegure conhecimentos nas seguintes áreas: clínica geral e/ou pediátrica, endocrinologia, endocrinologia-pediátrica, cirurgia, genética, psiquiatria , psiquiatria infantil;

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Parágrafo 1º - Durante toda a fase de investigação o paciente e seus familiares ou responsáveis legais devem receber apoio e informações sobre o problema e suas implicações. Parágrafo 2º - O paciente que apresenta condições deve participar ativamente da definição do seu próprio sexo. Parágrafo 3º - No momento da definição final do sexo, os familiares ou responsáveis legais, e eventualmente o paciente, devem estar suficiente e devidamente informados de modo a participar da decisão do tratamento proposto. Parágrafo 4º - A critério da equipe médica outros profissionais poderão ser convocados para o atendimento dos casos. Art. 5º - O tratamento de pacientes portadores de anomalias de diferenciação sexual deve ser realizado em ambiente com estrutura que garanta segurança, habilidades técnicocientíficas e suporte de acompanhamento, conforme as especificações contidas no Anexo I desta resolução. Art 6º - O tema “anomalia da diferenciação sexual” deve ser abordado durante eventos médicos, congressos, simpósios e jornadas, visando sua ampla difusão e atualização dos conhecimentos na área. Art 7º - Esta resolução entra em vigor na data de sua publicação.

Brasília-DF, 11 de abril de 2003.

EDSON DE OLIVEIRA ANDRADE

RUBENS DOS SANTOS

SILVA Presidente

Secretário-Geral

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EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS O nascimento de crianças com sexo indeterminado é uma urgência biológica e social. Biológica, porque muitos transtornos desse tipo são ligados a causas cujos efeitos constituem grave risco de vida. Social, porque o drama vivido pelos familiares e, dependendo do atraso do diagnóstico, também do paciente, gera graves transtornos. Além disso, um erro na definição sexual pode determinar caracteres sexuais secundários opostos aos do sexo previamente definido, bem como a degeneração maligna das gônadas disgenéticas. Um dos problemas mais controversos pertinentes às intervenções na criança é a conduta diante dos recém-nascidos com genitais ambíguos. Ninguém pode garantir que, apesar dos mais criteriosos conceitos, a definição sexual tardia dessa pessoa acompanhará o que foi determinado no início de sua vida. Também não se pode generalizar, por situações isoladas, que a definição sexual só possa ser feita em idades mais tardias. Sempre restará a possibilidade de um indivíduo não acompanhar o sexo que lhe foi definido, por mais rigor que haja nos critérios. Por outro lado, uma definição precoce, mas inadequada, também pode ser desastrosa. Há quem advogue a causa de não-intervenção até que a pessoa possa autodefinirse sexualmente. Entretanto, não existem a longo prazo estudos sobre as repercussões individuais, sociais, legais, afetivas e até mesmo sexuais de uma pessoa que enquanto não se definiu sexualmente viveu anos sem um sexo estabelecido. Diante desses dois extremos, há necessidade de uma avaliação multidisciplinar onde todos os aspectos sejam discutidos e analisados, para que a possibilidade de insatisfação seja mínima. A investigação, nessas situações, deve ser realizada por uma equipe multiprofissional, englobando várias especialidades: cirurgia, endocrinologia, radiologia, psiquiatra infantil, pediatria, clínica, genética e outras, na dependência da necessidade do paciente. O maior objetivo dessa equipe não será apenas descobrir qual é a etiologia da anomalia da diferenciação sexual, mas sim obter uma definição racional sobre o sexo de criação mais recomendável. Para tanto, além das avaliações especializadas, a interação com os pacientes e seus familiares é importantíssima. Precipuamente visando proteger os pacientes e orientar os médicos responsáveis nessas circunstâncias, compete ao Conselho Federal de Medicina, órgão disciplinador da prática médica no Brasil, a obrigação e o poder legal de normatizar a conduta profissional diante de pacientes com anomalias da diferenciação sexual. Considerando o exposto, esta exposição de motivos ilustra a necessidade de uma resolução sobre o assunto.

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Anexo I Exames e procedimentos recomendáveis para o diagnóstico e tratamento das anomalias da diferenciação sexual Os exames/procedimentos abaixo descritos devem ser selecionados de acordo com a suspeita diagnóstica: 1) Avaliação clínico-cirúrgica: a) Descrição genital detalhada tamanho do falo, número, calibre e posição dos meatos (uretral, vaginal ou do seio urogenital), grau de fusão, rugosidade e pigmentação das pregas lábio-escrotais. Em genitália de aspecto masculino, considerar ambigüidade quando: - gônadas não palpáveis - micropênis. Do ponto de vista prático, um tamanho peniano menor de 2 cm está abaixo da normalidade para qualquer faixa etária; - gônadas pequenas; - massa inguinal que poderá corresponder ao útero e/ou trompas rudimentares; - hipospádias graves. Em genitália de aspecto feminino, considerar ambigüidade quando: - clitoromegalia; - massa inguinal ou labial que possa corresponder à gônada; - fusão labial posterior. b) Palpação gonadal: gônada palpável/não palpável, localização, forma, volume e mobilidade. c) Avaliação anatomopatológica – análise de biópsia ou gônada removida, realizada por patologista experiente, capaz de identificar disgenesias gonadais e a estrutura básica da gônada. 2) Avaliação hormonal: a) Função adrenal – dosagem de precursores da síntese de cortisol elevados nos defeitos enzimáticos (hiperplasia adrenal congênita) : 17 hidroxiprogesterona (21 hidroxilase), composto S ou 11 desoxicortisol (11 hidroxilase), relação 17 hidroxipregnenolona/17 hidroxiprogesterona ou a relação dehidroepiandrosterona/androstenediona (3 betahidroxiesteróide desidrogenase), progesterona/17OHprogesterona (17 hidroxilase); b) Função gonadal (úteis no diagnóstico de disgenesias gonadais, defeitos da esteroidogênese gonadal) – Progesterona, 17OH progesterona, dehidroepiantrosterona – DHEA, androstenediona, testosterona, hormônio antimülleriano (HAM), inibinas;

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c) Insuficiente conversão ou ação periférica dos andrógenos testosteroma/Dehidrotestosterona (DHT), hormônio antimulleriano (HAM)

relação

Em casos excepcionais, a função hipotálamo-hipofisária pode estar comprometida. Nos casos em que o eixo hipotálamo-hipófise-gonadal não estiver ativado, realizar dosagens hormonais após estímulo com gonadotrofina coriônica humana - HCG na dose de 100U/kg/dia em 4 a 6 doses, via intramuscular. 3) Avaliação por imagem: a) Ultra-sonografia pélvica para verificar a presença de derivados müllerianos (útero e trompas) e a localização da gônada (não é capaz de identificar o tipo de gônada); b) Ultra-sonografia de rins e vias urinárias – detecta a associação de defeitos embrionários renais; c) Genitograma contrastado – facilita a programação da correção cirúrgica; d) Procedimentos endoscópicos – genitoscopia, laparoscopia. 4) Avaliação psicossocial: O atendimento dos portadores de anomalias da diferenciação sexual pela equipe de saúde mental visa construir uma relação positiva entre os pais e a equipe médica. Esta intervenção precoce é fundamental para maior fortalecimento emocional e enfrentamento à angústia que a situação provoca. Nesta circunstância, o núcleo social e familiar fica ambivalente e com sentimento de culpa nos primeiros momentos, pois é senso comum que a identidade sexual deve ser construída pelos familiares e sociedade, gerando, assim, forte ansiedade. Os profissionais em Saúde Mental devem considerar o paciente como um ser em desenvolvimento, minimizando as angústias suscitadas no meio social e familiar, ajudando-o a construir sua auto-imagem. 5) Avaliação genética: Deve incluir o aconselhamento genético, bem como os exames laboratoriais, sendo o cariótipo um dos exames obrigatórios. Quando disponível, outros exames poderão ser incluídos, como, por exemplo, hibridação in situ (FISH) e investigação molecular de genes relacionados à determinação gonadal, enzimas da esteroidogênese, receptor androgênico ou receptor do HAM.

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APÊNDICE C

CONSELHO REGIONAL DE MEDICINA DO PARANÁ RUA VICTÓRIO VIEZZER. 84 - VISTA ALEGRE - CAIXA POSTAL 2.208 - CEP 80810340 - CURITIBA – PR FONE: (41) 3240-4000 - FAX: (41) 3240-4001 - SITE: www.crmpr.org.br - E-MAIL: [email protected]

PARECER 1726/2006 – CRM-PR PROCESSO CONSULTA N.º 03/2006 – PROTOCOLO N.º 477/2005 ASSUNTO: ESTADO INTERSEXUAL – PSEUDO HERMAFRODITISMO PARECERISTA: CONS. MAURI JOSÉ PIAZZA

DOS FATOS A consulta versa sobre paciente portadora de “Estado Intersexual” – Pseudo Hermafroditismo masculino – Forma Familiar – conhecida pela eponimo como Síndrome de Morris ou Síndrome dos Testículos Feminizantes.

FUNDAMENTAÇÃO E PARECER É uma entidade descrita há muitos anos de pleno conhecimento em área da Ginecologia Endócrina. Estas pacientes apesar de serem geneticamente 46, XY, apresentam do ponto de vista hormonal uma total insensibilidade aos hormônios androgênicos desde a vida fetal até a vida adulta. Esta insensibilidade androgênica faz com que a genitália externa destas pacientes seja perfeitamente feminina e não existe qualquer dúvida em se estabelecer o sexo legal, de criação e psico social. Tratam-se de “mulheres” totalmente femininas que são criadas como tal e assim devem permanecer. Ao nosso ver não se faz necessário criarmos dúvidas ou discutirmos os aspectos genéticos à estas pacientes. Devemos orienta-las como portadoras de “amenorréia primária” com conveniente desenvolvimento dos seus caracteres sexuais secundários sendo os mesmos totalmente femininos.

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No entanto, pela presença dos testículos e existindo na vida fetal a presença de substância inibidora das estruturas mullerianas, produzida pelos testículos, não existirão na pélvis as 2 estruturas mullerianas e em vista disso inexistem tubas – útero e parte inferior da vagina. Como referimos, a genitália externa é totalmente feminina e a vagina poderá ser “curta” e em fundo cego, com profundidade variável. Psicologicamente são mulheres com boa orientação emocional na grande maioria das pacientes que acompanhamos e orientamos. Há que orientá-la como “portadora de agenesia uterina” e fazendo saber aos familiares, quando o diagnóstico é feito antes na infância que a menina necessitará, após o término da adolescência e do desenvolvimento dos caracteres sexuais secundários, da necessidade de extirpação das “gônadas ou hérnias” pelo maior risco de desenvolvimento tumoral em gônadas ectópicas. A extirpação desta gônada às vezes poderá ser feita precocemente e erradamente na infância, coexistindo no tratamento “hérnias” que poderão estar associadas.

CONCLUSÃO Ao nosso ver não há justificativa para criarmos “atrapalhos emocionais” maiores a estas pacientes. Concluímos que são “mulheres” com uma problemática endócrina, que necessitarão de suplementação hormonal após o procedimento de orquiectomia bilateral, e nenhum procedimento poderá ser realizado sem o consentimento informado.

É o parecer, s. m. j. Curitiba, 09 de janeiro de 2006.

Cons. MAURI JOSÉ PIAZZA Parecerista Aprovado em Reunião Plenária n.º 1744ª, de 23/01/2006 – Câmara I.

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