Corpos Opacos . Constelações Desiluminadas

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corpos opacos . constelações [des]iluminadas Karine Gonçalves Carneiro - 2/2013 Universidade Federal de Ouro Preto – UFOP Doutoranda em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC-MG Avenida Uruguai 578/302, Sion, Belo Horizonte, MG 31 8871-3180 [email protected]

[resumo] O presente artigo apresenta resultados e análises parciais de uma pesquisa empírica relacionada à observação da dinâmica que envolve os moradores de rua e a [con]formação de uma realidade sócio-espacial a partir de suas vidas na cidade de Belo Horizonte. O recorte espacial teve lugar em função da própria experiência de campo que originou pontos de observação e pesquisa. As considerações tecidas alicerçam-se na investigação urbana antropológica e enfatizam a possibilidade de aplicação da análise situacional para o entendimento dos conflitos existentes entre a forma como os moradores de rua estruturam seu cotidiano e as dinâmicas de outros sujeitos urbanos. As razões que cercam tal posicionamento pretendem contribuir para reforçar a necessidade, sobre a cidade, de um olhar que se dinamiza e que a perceba de perto e de dentro.

[palavras-chave]: moradores de rua, belo horizonte, análise situacional, espacialidade.

[abstract] This article presents results and partial analysis of an empirical research related to the observation of the dynamics that involve homeless and the way they form a social and spatial reality trough their everyday lives in the city of Belo Horizonte. The spatial focus came from the campus experience that originated observation and research points. The considerations presented are based on anthropological urban investigation and emphasize the possibility to apply a situational analysis in the understanding of present conflicts between the way homeless structure their lives and the dynamics of other urban actors. The reasons that delineate this posture intend to contribute to strengthen the need, over the city, of a look that drives and perceive it I from close and inside.

[key-words]: homeless, belo horizonte, situational analysis, spatiality.

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[introdução] Este trabalho apresenta dados e análises parciais de uma pesquisa cuja abrangência está relacionada ao modo como os moradores de rua, em sua dinâmica cotidiana, [con]formam uma realidade sócio-espacial e espacializam seus modos de vida, na cidade de Belo Horizonte. O material é fruto da observação de campo e as considerações a serem tecidas terão em Agier (1997) e Van Velsen (2010) um importante suporte no que concerne a investigação urbana antropológica com enfoque na análise situacional. As razões que cercam tal abordagem serão indicadas ao longo do trabalho e pretendem contribuir para reforçar a necessidade daquele olhar sobre a cidade que Magnani (2002) descreve como de perto e de dentro. Este olhar procura, conforme o autor aponta, opor-se àquilo que considera como uma visão de fora e de longe. A importância de tal postura está na possibilidade de vislumbrar temáticas próprias à cidade e à etnografia. De início, são necessárias algumas considerações que pretendem evitar o risco de generalizações descuidadas já que o escopo geral do trabalho é um tanto mais amplo do que os resultados que serão, neste momento, apresentados. Em primeiro lugar, destacase que não se compreende os moradores de rua de forma homogênea. Também, não se acredita que na extensão da cidade seus comportamentos multiplicam-se a partir de um padrão sistemático. As derivações de tais observações não foram ainda exploradas em profundidade, mas baseiam-se em leituras que indicam as nuances que permeiam aquilo que se torna distinção para os que têm a rua como local de [r]existência1. Para que se compreenda o âmbito geral da proposta – da qual este momento marca o princípio – é mister que se explicite o alcance pretendido. A intenção é a de entender, a partir um trabalho de campo extensivo e da análise das relações de poder2 materializadas no espaço urbano, as formas e as possibilidades que cercam as espacializações das atividades cotidianas dos moradores de rua. Ao considerar que ações tais como comer, dormir, socializar, higienizar, trabalhar, e outras mais, fazem parte do dia a dia desta população, buscar-se-á verificar os conflitos que se estabelecem no espaço público a partir do embate entre as possibilidades de tais espacializações e as ações que as confrontam a partir das relações com os distintos sujeitos atuantes no espaço da cidade. A análise terá, na cidade de Belo Horizonte, seu lugar.

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Dentro deste escopo, o que será apresentado, a seguir, constitui o que se definiu nomear como uma análise twilight3. A criação deste conceito originou-se das situações observadas em campo já que, por marcarem o início de um processo, pretende lançar uma luz parcial ao assunto. Tal procedimento objetiva o cuidado necessário para que se evitem generalizações, pois a busca por um padrão coerente que consiga descortinar e desvendar o cenário de ações e interações de sujeitos nos espaços observados poderá construir uma visão nebulosa da realidade. O intuito é o de mirar a realidade a partir da sobreposição dos próprios conflitos e incoerências observadas e, conforme aponta Barth (2000), distanciar do equívoco de tomar descrições como explicações.

[re]trajeto Foi o inesperado que marcou a situação inicial da atividade empírica e correspondeu a uma inversão. A partir de estudos prévios acerca dos principais locais de fixação dos moradores de rua nas grandes cidades4, traçou-se um percurso inicial que tinha como foco a região central da cidade de Belo Horizonte. O trajeto buscava cortar o perímetro da Avenida do Contorno, na direção Norte-Sul, com o objetivo de atingir o entorno da Praça da Estação – localizada no hipercentro do município e local de aglomeração de moradores de rua tanto no período noturno como diurno. O caminho permitia verificar, também, uma centralidade marcante da parcela interna à própria Contorno, a saber, a região da cidade conhecida como Savassi5 (Mapa 1). Como resultado da empreitada esperava-se verificar os principais pontos de permanência e as principais atividades desenvolvidas pelos moradores de rua, assim como algumas formas de interação entre eles e demais sujeitos do entorno. O trajeto proposto, entretanto, jamais chegou a ser concluído. Uma certa situação, que será explicitada no próximo item deste artigo, desencadeou todo um processo de consulta a sujeitos do cotidiano que gerou a redefinição da rota a partir de indicações destes próprios sujeitos. A insistência na essencialidade do centro definido como fundamental e necessário à compreensão das dinâmicas dos moradores de rua, a partir do que será apresentado a seguir, poderia ter sacrificado um contexto de interações existentes numa outra região. Por isso, não que se tenha na área pesquisada um ineditismo na forma como é feito o arranjo das práticas desses sujeitos – os moradores de rua –, mas vislumbra-se um potencial exploratório a partir do deslocamento da análise do centro da cidade para os limiares de um bairro. Em outras palavras, foi 3

possível perceber a existência de trânsitos reais em contraposição a localizações e percursos pressupostos. Tal fato revela o momento da observação direta como passível de tomadas de decisões e de alterações de abordagem. Ou como diria Magnani, o exercício etnográfico permitiu “captar determinados aspectos da dinâmica urbana que passariam desapercebidos, se enquadrados exclusivamente pelo enfoque das visões macro” (Magnani 2002:16).

Mapa 1: trajetos do percurso proposto e do realizado Fonte: Google Earth - alterado pela autora

LEGENDA: Região da Pça. da Estação Percurso proposto Percurso realizado

Desse modo, foi no campo que se definiu a área de observação, percorrida a pé, e foi também no campo que a observação fixou-se, de modo mais direto, nos que trabalham no comércio e serviços do local. Foram eles que à luz do dia deram conta de uma realidade que se inicia ao cair da noite.

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[dia] Em baixo de uma árvore, na Praça da Harmonia, cerca de 500m após o início do percurso proposto, havia um morador de rua que descansava. Com ele havia uma mochila, uma sacola de supermercado e uma garrafa de água. Ao lado, percebia-se uma cadeira quebrada com alguns panos. Nessa posição, permaneceu por todo o tempo da observação e, ao final do primeiro dia de pesquisa em campo, na mesma posição ele estava. Mas não foi esta imagem, relativamente expressiva de um cenário cotidiano em grandes cidades, que acarretou as alterações de percurso já descritas. Ao observar a cena, o olhar deteve-se sobre o cenário. De uma praça espera-se o sombreamento ocasionado pela arborização, os bancos para o descanso, lixeiras, caminhos, passagens. Havia, entretanto, algo de distinto ali. A praça estava decorada com objetos de modo semelhante à decoração do ambiente de uma casa. Um quadro estava fixado em um trecho do jardim, um prato de cerâmica em outro, um avião de brinquedo pendia de uma das árvores, um cozinheiro em miniatura estava amarrado no poste de sinalização e outros objetos pareciam estrategicamente colocados em pontos distintos (Fig.1 e Fig.2). Embora não tenha chegado a desvendar a situação, a curiosidade desperta conduziu ao momento seguinte.

Figura 1: avião de brinquedo na Praça da Harmonia

Figura 2: boneco/cozinheiro na Praça da Harmonia

Fonte: arquivo da autora (16/03/2013)

Fonte: arquivo da autora (16/03/2013)

O temor da ausência de um preparo prévio sobre a forma de abordar os moradores de rua com o intuito de evitar que fosse identificada como funcionária do poder público ou alguém com interesse em retirá-los dos locais onde permaneciam – temor que se revelou apropriado a partir de uma situação ocorrida neste mesmo dia6 –, fez com que buscasse informações sobre os detalhes decorativos da praça, não com o morador de rua que ali 5

descansava, mas com funcionários do posto de gasolina localizado em frente a ela. Embora respondessem que não haviam reparado nos elementos ali dispostos, indicaram que ao final do dia e princípio da noite, um número considerável de moradores de rua passavam pelo local, subindo e descendo a Av. Nossa Senhora do Carmo. Eles aproveitavam da movimentação do posto (também loja de conveniência com expressivo movimento à noite devido a proximidade com boates do entorno) para pedir dinheiro aos clientes. Com certa freqüência também pediam para utilizar os banheiros. A fala dos frentistas chamou a atenção e despertou o olhar para uma dinâmica do local que poderia ser fértil para a pesquisa. Talvez não fosse necessário chegar até o centro da cidade para coletar informações que poderiam ser de interesse para o trabalho. As sucessivas conversas realizadas no momento seguinte confirmaram tal possibilidade e conduziram à percepção de que, conforme aponta Fredrik Barth (2000), um contexto de pequena escala e de sociabilidade relativamente expressiva podem desencadear informações de relevância. A observação do autor é fértil para o que este trabalho pretende já que busca evitar lógicas e encadeamentos generalizados – seja pela perspectiva funcionalista, seja pela estruturalista7 – e mapear “o alcance dos encadeamentos presentes na cultura local, mostrando que esses encadeamentos são um artefato da vida” (Barth 2000:111). Nesse sentido, acredita-se que as alterações iniciais provocadas pela percepção do cotidiano local possam, conforme será descrito abaixo, contribuir menos para uma visão sistêmica do que para práticas cercadas de complexidades e conflitos. Em outras palavras, o exercício do olhar de perto e de dentro poderia identificar aspectos ausentes em uma visão já constituída por um a priori distanciado do cotidiano da cidade (Magnani 2002:11-18). Assim, a partir da conversa com o trabalhador do posto, a decisão foi a de descer a Av. Nossa Senhora do Carmo no sentido da região da Savassi. Nesse movimento, a dois quarteirões dali, em uma pequena praça que marca a subida de uma passarela que conduz ao outro lado da via, ocorreu a segunda abordagem. Ao conversar com a funcionária de uma lanchonete que lavava a calçada verificou-se que aquele local recebia, após o fechamento do comércio do entorno, grupos de moradores de rua que ali passavam a noite. Segundo ela, a situação era constante e o principal problema dizia respeito à limpeza do local pela manhã e ao uso de drogas. Ao deixar o local, o grupo – composto de homens, mulheres e crianças – deixava também “muita sujeira”. Restos de papelão, garrafas e o fato de fazerem do local um banheiro a céu aberto, fazia com que a 6

necessidade da faxina fosse uma constante ao abrir a loja. De acordo com ela, se quisesse saber um pouco mais sobre casos assim, poderia conversar com os trabalhadores de uma concessionária de veículos – Carbel –, logo abaixo, já que ali era ponto de um senhor que morava na rua há um bom tempo. Seguindo a indicação, a fala de dois trabalhadores da Carbel não apenas confirmou a situação como a desenhou de um modo mais preciso. O morador de rua que tinha sob a marquise da loja seu ponto de pernoite era um antigo conhecido. Há cerca de dez anos passava suas noites ali. A respeito dele não havia qualquer tipo de reclamação ou queixa já que se tratava de um senhor “de boa índole, tranqüilo e muito limpo”. Seu “ponto” era respeitado por outros moradores de rua já que mesmo nos momentos em que não estava presente ninguém se apropriava dele. Descreveram, ainda, que o senhor parecia possuir uma vida que se estruturava parcialmente fora das ruas já que sempre chegava ao local com roupas limpas, fruto da pertença a uma família com a qual teria uma série de problemas. Nenhuma queixa foi feita quanto ao comportamento do morador de rua, mas a menção ao álcool como companhia constante foi ressaltada. A sucessão das conversas que se desencadearam a partir deste momento ressaltou não apenas a reincidência da situação, mas questões passíveis de derivações pertinentes à pesquisa. Foram colhidas informações de funcionários dos comércios e serviços locais totalizando 17 pessoas. Cada fala preenchia espaços diurnos – com uma dinâmica noturna que não deixava rastros à luz do dia – e localizava moradores de rua em pontos da área que, assim, foi tomando forma. Cinco locais foram indicados como ponto fixo de pernoite de, pelo menos, 7 moradores de rua. Além dos já citados – o Senhor da Carbel e o grupo sob a passarela – foram também mapeados: um casal que há cerca de dois anos passa as noites sob a marquise de uma empresa de intercâmio – a Intervip; a varanda de um conjunto comercial, em frente à Praça Dom Silvério, que vem servindo de abrigo para um homem de meia idade há um ano; o jardim da loja de roupas – Catz – , na Rua Lavras, que abriga dois jovens adultos há dois anos (Mapa 2). Certamente, uma série de perguntas pode ser levantada e explorada a partir desta constatação: Por que elegeram estes pontos como local de fixação? Qual o tempo de sua duração de sua permanência no local? Para onde se movimentam durante o dia? O que os levaram a escolha destes pontos?

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Mapa 2: percurso realizado e pontos mapeados Fonte: Google Earth - alterado pela autora

LEGENDA: Pontos de pernoite de moradores de rua Pontos de parada e descanso [dia] de moradores de rua Ponto sem a presença de moradores de rua Percurso realizado

Além dos pontos fixos de pernoite, algumas vias foram identificadas como de passagem mais constante dos moradores de rua no período do fim de tarde e princípio da noite. Foram elas: a Rua Lavras, a Av. Nossa Senhora do Carmo e a Rua Padre Odorico. Acredita-se de interesse ressaltar que durante o trajeto foram percorridos dois pontos não vinculados às indicações dos entrevistados. Foram eles, a Igreja Nossa Senhora do Carmo e a Praça Nova Iorque. O jardim da igreja chamou a atenção pela identificação de um casal de moradores de rua que descansava sob a sombra de uma árvore (Fig.3). Em conjunto com o senhor da Praça da Harmonia – que deu início à trajetória –, foram os únicos moradores de rua identificados durante o dia. A praça Nova Iorque será um assunto a ser tratado posteriormente. 8

Figura 3: casal de moradores de rua em frente à Igreja N. S. do Carmo Fonte: arquivo da autora (06/03/2013)

Necessário ainda apontar que o trajeto foi realizado durante um dia, na parte da manhã. Às indicações dos informantes foram agregadas observações realizadas no local. A área delimitada a partir das observações e das conversas resultou numa espacialização majoritariamente localizada no bairro São Pedro. Tal fato despertou interesse tendo em vista a localização dos pontos de pernoite, em sua totalidade, em um dos lados da Av. N. S. do Carmo. Nos bairros Carmo e Sion, do outro lado da Avenida, não apareceram relatos que indicassem pontos de pernoite ou trajeto de moradores de rua (Mapa 3). Apenas na Igreja, em conversa com a secretária da paróquia, verificou-se que por saberem da possibilidade de algum tipo de assistência, recorrem ao local em busca de, principalmente, roupas. Para corroborar a informação, o trajeto foi estendido até a Praça Nova Iorque, no bairro Sion, que tem em seu entorno tanto edificações comerciais como residências. Após contatos com trabalhadores ratificou-se que a praça e seu entorno não se constituem como local de apropriação de moradores de rua.

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Mapa 3: pontos de pernoite, percurso e bairros Fonte: Google Earth - alterado pela autora

LEGENDA: Pontos de pernoite de moradores de rua Pontos de parada e descanso [dia] de moradores de rua Ponto sem a presença de moradores de rua Percurso realizado Morro do Papagaio Bairros

Mas se durante o dia a voz de comerciantes e trabalhadores fixou os moradores de rua em percursos e pontos específicos de uma dada região da cidade – estabelecendo uma dinâmica espaço-temporal –, tornou-se necessário verificar as informações no período noturno para que fosse possível estabelecer relações que viessem dar corpo ao trabalho proposto. Seria possível utilizar os conceitos de redes, situações e regiões, da forma como propostas por Agier (1997), para iluminar a pesquisa?

[noite] A verificação dos pontos de pernoite e dos trajetos mais recorrentes identificados, em campo, durante o dia, ocorreu a partir do retorno ao local, na parte da noite, num período de 15 dias. Os horários de visitação ocorreram entre às 22h e 02hs e como o 10

objetivo era, exclusivamente, o da verificação da existência de pontos de pernoite, optou-se por percorre os pontos de carro. As situações descritas pelos informantes foram confirmadas. Os moradores de rua não foram abordados, mas observados dentro das possibilidades de um trabalho que se inicia. Quanto aos pontos de pernoite, percebeu-se uma certa regularidade nos horários de chegada. A passagem pelos locais onde dormiam, em horários diferentes, possibilitou verificar também a regularidade do acesso a cada um deles. Pelo menos à noite, parecia haver um endereço que vinculava aquelas pessoas a um sistema fixo de pertencimento espacial. O modo como os moradores de rua espacializam o lugar de dormir parece permear possíveis táticas na escolha do local e no modo de sua própria vinculação a estes espaços. Com o “endereço” em mãos, a tarefa de localizá-los à noite resultou num exercício visual. Os cantos e frestas escolhidos pareciam pensados de forma a tornar os corpos opacos, destituídos de qualquer luminosidade que os tornassem perceptíveis (Figs. 4, 5, 6 e 7). Caixas abertas de papelão criavam anteparos, em alguns casos, possivelmente para dar privacidade, proteger do vento, marcar um território ou gerar uma certa segurança – deduções a serem exploradas em entrevistas posteriormente. Nesta situação, não foi possível verificar os pertences e objetos vinculados à dinâmica do dormir. Por outro lado, quando da ausência de barreiras e proteções, o corpo opaco deitava-se ao lado de um número mínimo de objetos: sacolas, jornais e cobertores.

Figura 4:Intervip pela manhã Fonte: arquivo da autora (16/03/2013)

Figura 5: Anteparo de papelão - Intervip pela noite Fonte: arquivo da autora (14/03/2013)

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Figura 6: Conjunto comercial – Praça Dom Silvério pela manhã Fonte: arquivo da autora (16/03/2013)

Figura 7: Conjunto comercial – Praça Dom Silvério pela noite Fonte: arquivo da autora (17/03/2013)

No que concerne aos trajetos, na grande maioria dos dias observados, foi possível identificar a presença de moradores de rua. Como não foi feita uma abordagem direta a eles, a identificação foi feita a partir da observação das roupas, dos objetos que carregavam – sacolas, bolsas e garrafas – e do modo como caminhavam. De tempos em tempos paravam para verificar o lixo deixado nas ruas. Como dito anteriormente, os relatos colhidos durante o dia foram verificados e confirmaram a realidade descrita. Sob o céu noturno, uma configuração de corpos opacos conforma uma constelação distinta da celeste. Pontos específicos do espaço urbano dão origem a uma constelação [des]iluminada composta por moradores de rua.

[análise twilight] Dentro das possibilidades de análise que cercam um momento de pesquisa incompleto, já que em seu início, cuidar-se-á, a seguir, de situações identificadas como conflituosas. Conforme considera Van Velsen (2010), tais conflitos serão tratados como normais e não como partes anormais do processo social. As idas a campo e as falas ouvidas deram margem a um caminho que circula conceitos relacionados à análise situacional. Essa última será entendida a partir de um contexto social mais ampliado, sem excessiva consideração para com a morfologia social e com a preocupação de não se abstraírem as variações, os comportamentos e os relacionamentos interpessoais. Em outras palavras, a idéia é ocupar de dados que sirvam para análises de contradições existente. Tal postura visa “entender como as pessoas convivem com as suas normas, que são, muitas vezes, conflitantes entre si” (Van Velsen 2010:453). 12

Dessa forma, acredita-se que as situações que serão apontadas possam lançar uma luz parcial ao assunto e constituir uma análise twilight. A consideração da análise desta forma definida vem em função, principalmente, da ainda ausente abordagem direta aos moradores de rua, da ainda ausente pesquisa a outras fontes documentadas e de uma área de pesquisa ainda restrita. Entretanto, como parte do processo já se descortina, considerações podem ser tecidas a partir de um feixe de luz lançado através de uma “análise situacional” (Van Velsen 2010:437-468; Agier 1997:59-88). E as situações observadas formatam quadros discrepantes, como veremos mais adiante, entre sujeitos urbanos distintos – de um lado comerciantes e funcionários do comércio, do outro, moradores de rua. Nesse sentido, embora num primeiro momento seja possível verificar a existência de normas distintas entre os dois grupos – a necessidade do ponto limpo para receber os clientes pela manhã em contraposição com as atividades e necessidades que cercam o ato de pernoitar na rua – foi percebida uma ambiência de negociação que afasta considerações pautadas por noções rigidamente estabelecidas tais como o permitido e o proibido. Ainda, para Van Velsen (2010), “a análise situacional, com sua ênfase no processo, pode ser, portanto, particularmente apropriada para o estudo de sociedades instáveis e não homogêneas” (Van Velsen 2010:459). Este é o cenário com o qual se deparou ao longo do processo de observação. O objetivo dentro desse aspecto foi o de formatar um olhar que pudesse perceber os fatos observados, menos como parte de um sistema cultural integrado e sim como um sistema discrepante no qual podem coexistir ações e situações de indivíduos como personagens e não somente como ocupantes de status específicos. Dessa forma, os indivíduos tornaram-se parte de uma rede de relações que incorporam não a forma certa ou errada de cada situação, mas que evidenciam correlações entre papéis distintos. Assim, o material levantado não se relaciona, unicamente, a ilustrar as situações, mas torna-se parte fundadora da análise. Nesse mesmo sentido, além da consideração das redes, Michel Agier (1997) adiciona necessidade de circunscrever os indivíduos e os conflitos que emergem de seus encontros numa análise de regiões e situações. Esses três aspectos – redes, regiões e situações – são passíveis de análise a partir da atividade de campo desenvolvida. Para isso, tentar-se-á focar nos conflitos levantados. 13

O primeiro deles, relacionado ao impacto da espacialidade formatada pelo ato de pernoitar, é indicador de formas de contexto de interação e, portanto da composição de situações. Uma das questões que este contexto de análise suscita está relacionada, conforme indica Agier (1997) à plurissituacionalidade dos lugares em função do momento do dia e do envolvimento dos atores presentes. Embora a pesquisa tenha se focado nos sujeitos que fazem parte do comércio local e nos moradores de rua, há ainda outros sujeitos em tal plurissituacionalidade. O espaço ocupado por cada um dos corpos que compõem a constelação dos moradores de rua na área de análise vai tomando forma à medida que o sol se esconde e que os pontos comerciais vão encerrando suas atividades. De modo semelhante, a mesma luz que traz os trabalhadores para abrir as lojas conduz os moradores de rua para outros lugares apagando as constelações de corpos opacos. Traz, assim, a possibilidade de utilização da área pelos usuários do espaço em seu período diurno. As compras e serviços rotineiros seriam impensáveis com a presença dos moradores de rua nas portas dos estabelecimentos. Essa última questão faz surgir aquilo que Agier (1997) considera essencial para que uma situação tenha interesse antropológico: uma definição emic e uma definição etic. A definição emic relaciona-se ao estabelecimento da situação pelos próprios atores e conduz a um mínimo de coerência comunicativa, a um sentido partilhado. Neste interim, é necessário pontuar que o conflito não se ausenta. Já a definição etic diz respeito ao ponto de vista do observador externo que coloca em ação constrangimentos globais. No primeiro aspecto, há um sentido partilhado de temporalidade que permite a negociação do ponto de pernoite relativamente à variável tempo. O tempo possível do pernoite é o tempo do horário não-comercial. Entretanto, ele está inserido em uma dinâmica do cotidiano – o comércio, a compra, a negociação de produtos e serviços. Esse confrontamento aparece de modo reincidente na fala dos informantes. Parte deles revela a dificuldade em lidar com a sujeira deixada pelos moradores de rua, pela manhã, e o estado que frequentemente os encontram devido ao uso freqüente de drogas durante a noite. Outra parte indica outro modo de lidar com o caso e que marca a negociação realizada entre os donos de alguns dos estabelecimentos e os moradores de rua. Negociação bem sucedida que torna possível a fixação destes últimos em cada um dos pontos desde que, ao saírem, pela manhã, limpem o local e retirem seus pertences. Em outras palavras, desde que apaguem suas marcas, rastros e vestígios para que tudo possa ser [re]configurado conforme a normalidade. 14

Essa observação conduz à questão da análise do ponto de vista da região e abarca um segundo conflito. Localizada em uma área da zona sul da cidade, portadora de um caráter nobre, a presença da constelação surpreende àqueles que dela tomam conhecimento. Essa questão parece vir daquilo que Agier (1997) chama de identidades externas pelo fato de emanar de atores exteriores ao espaço. Mas talvez, neste caso específico, atores exteriores ao tempo. A primeira impressão é a de que a distância estabelecida embora espacializada, seja fundamentalmente temporal. Ainda, como a área em questão conforma uma dinâmica mista no que concerne o uso do espaço – há muitos prédios residenciais no entorno – abre-se uma perspectiva para o aprofundamento da pesquisa diante a este grupo. De qualquer modo, as conversas com os trabalhadores já mencionados levantam duas perspectivas, uma de sentido mais solidário8 que indica a ausência de qualquer tipo de problema relacionado ao compartilhamento destes espaços – desde que respeitadas as variáveis da limpeza e horário – e, outra, demarcadora de uma região nobre que não pode passar por este tipo de constrangimento9. De qualquer modo é perceptível uma vertente fértil para o aprofundamento da pesquisa que diz respeito tanto à delimitação de regiões no que concerne às representações espaciais (o bairro nobre e a imagem que deve agregar) como no que diz respeito às representações morais (os clientes não podem encontrar essas pessoas quando chegam às lojas). Finalmente, no que concerne à questão das redes que operam no local, foi o ato de segui-las – mesmo que ainda de forma parcial por não ter perpassado outros grupos de sujeitos – que originou este trabalho. De acordo com Agier: “é nesse momento que ganha todo o sentido o princípio da articulação das situações na vida dos citadinos, que permite reconstituir a coerência das redes em diferentes ocorrências da vida urbana” (Agier 1997:78). Neste ponto, talvez o que esteja mais evidente nos fatos observados e que possam inseri-los na abrangência das redes diz respeito à natureza da relação social que está na base de sua existência e que constitui o que Agier (1997) denomina de cooperação. Há uma aliança baseada numa negociação, às vezes direta e outras vezes velada, que estabelece um limite de interação entre os moradores de rua e os sujeitos do comércio.

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Desse

modo

são

desenhadas

as

articulações

e

as

possíveis

conexões

e

compartilhamentos, o que não implica, entretanto, em ausência de tensões e conflitos.

[in]conclusão As limitações da proposta deste trabalho cercam aquele momento de uma pesquisa ainda em seu início. Entretanto, a oportunidade que se desenhou, a partir desta empreitada, foi a de desenvolver um raciocínio sobre as informações colhidas em campo e que conduziram à observação de que “não é a partir da própria cidade que emergem os conhecimentos da antropologia urbana, mas a partir de uma montagem de sequências da vida urbana retiradas de ínfima parte do curso real do mundo” (AGIER, 1997, p.59). Tal observação remete à referência feita, na introdução, ao conceito de de perto e de dentro de Magnani (2002). O momento de [in]conclusão10 reforça a necessidade de uma continuação do trabalho a partir de uma perspectiva que busca distanciar-se da visão dos indivíduos como seres atomizados. A intenção é a de, com base nos arranjos observados “apreender os padrões de comportamento (...) dos múltiplos, variados e heterogêneos conjuntos de atores sociais cuja vida cotidiana transcorre na paisagem da cidade” (Magnani 2002:17). E se a praça misteriosamente decorada, num primeiro momento constituiu-se como um cenário curioso, no momento seguinte conduziu a alteração de um percurso que transformou-se na possibilidade de verificar uma forma outra de conformações de redes, regiões e situações que perpassam uma constelação terrestre de moradores de rua e seus corpos opacos às vistas de sujeitos banhados de luz.

[referências] AGIER, Michel. 1997. Antropologia da Cidade: lugares, situações e movimentos. São Paulo: Editora Terceiro Nome. BARTH, Fredrik. 2000. “A análise da cultura nas sociedades complexas”. In: LASK, Tomke (org.). O guru, o iniciador: e outras variações antropológicas. Rio de Janeiro: Contra Capa. BROGNOLI, Felipe Faria. 1999. “Com a cara no mundo: seguindo os rastros dos nômades urbanos”. In: MARQUES, Ana Cláudia; BROGNOLI, Felipe Faria (orgs.).

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Andarilhos e Cangaceiros: a arte de produzir territórios em movimento. Itajaí: Editora da Univali. JUNIOR, Nivaldo (et al). 1998. “Serviços de saúde e população de rua: contribuição para um debate”. Saúde e Sociedade. Vol.7, n.2. MAGNANI, José Guilherme. 2002. “De Perto e De Dentro: notas para uma etnografia urbana”. Revista Brasileira de Ciências Sociais. Vol.17, n. 49. MICHEL, Foucault. 2008. Segurança, Território e População. São Paulo: Martins Fontes. NEVES, Delma. 2010. “Dossiê - Categorizações Deformantes: patrimônio de gestão dos pobres (mendigos, vagabundos, população em situação de rua)”. Revista Antropolítica – Revista Contemporânea de Antropologia e Ciência Política. Niterói, n.29, 2º sem. RIBEIRO, Bruno. 2009. “Moradores de rua perdem albergues no centro de São Paulo”. Folha de São Paulo, São Paulo, 26/04/2009. Disponível em: . Acesso em: 10/11/2011 VAN VELSEN, J. 2010. “Análise Situacional e o método de estudo de caso detalhado”. In: FELDMAN-BIANCO, Bela. Antropologia das sociedades contemporâneas: métodos. São Paulo: Ed. Unesp.

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Percebe-se que abordar as questões que envolvem aqueles que têm na rua seu locus de moradia, trabalho e vida envolve reconhecer uma série de fatores. Um deles está relacionado à própria categorização ou denominação dos grupos que se localizam nos espaços da cidade. Assim, um dos desafios é o de compreender a heterogeneidade do conjunto de pessoas que, quando geralmente identificadas pelo senso comum, carregam denominações que ressaltam um suposto perfil tais como mendigos, vagabundos e população ou morador de rua. Por outro lado, entretanto, como aponta a cientista social Delma Pessanha Neves (2010), para efeitos de trabalho político de requalificação social, no Brasil, alguns desses termos sofrem certa ressignificação e aparecem como meninos e meninas em situação de rua, população adulta em situação de rua ou, simplesmente, como população em situação de rua. BROGNOLI (1999), por exemplo, identifica e diferencia, em Florianópolis, Trecheiros e Pardais. 2

Pretende-se, para este fim, a utilização dos conceitos de biopoder e biopolítica de Michel Foucault. Embora a exploração desta perspectiva será realizada num próximo momento, é necessário que se aponte a forma como o autor os definem. O biopoder é o “conjunto dos mecanismos pelos quais aquilo que, na espécie humana, constitui suas características biológicas fundamentais vai poder entrar numa política, numa estratégia política, numa estratégia geral de poder” (Foucault 2008:3). Já a biopolítica é a forma de tratar a população como um conjunto de seres vivos e coexistentes, que apresentam características

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biológicas e patológicas específicas. (...) deve ser compreendida a partir da (...) gestão das forças estatais” (Foucault 2008:494). 3 Twilight é uma região de presença parcial de iluminação conformando penumbras. Por esta definição e pelas condições da pesquisa encaminhada até este momento é que se decidiu por utilizar este termo como forma de marcar um processo de trabalho ainda em andamento. Não se observou a aplicação deste termo em demais pesquisas já encaminhadas ou em desenvolvimento. 4

A delimitação de pesquisas nas áreas centrais está relacionada à compreensão de que essa população fixa-se predominantemente nestas áreas das cidades, “onde comércio e serviços em geral se concentram, atraindo maior afluxo de pessoas, o que possibilita a obtenção de alimentos e alguns recursos financeiros, sendo que, no período noturno, esses locais ficam praticamente despovoados e se transformam em abrigos” (Junior et al 1998:49). É o que se percebe, por exemplo, em uma situação descrita na cidade do Rio de Janeiro: “O ponto de maior concentração de moradores de rua no centro é na rua Boa Vista. A calçada vira uma enorme cama coletiva. Mendigos e policiais militares que patrulham a área dizem que, no centro, estão as melhores opções para quem não tem um lar. "Vem católico, evangélico e espírita para oferecer sopa. Nem dá para dormir.", brinca outro sem-teto, José Vicente de Freitas, 58 anos. “Mas a gente sabe que não é bem-vindo. Atrapalhamos a paisagem, aqui é ponto turístico”. (Ribeiro, 2009) 5

A região da Savassi é bastante conhecida tanto pelos serviços e comércio voltado para uma classe de maior poder aquisitivo como por condomínios residenciais cada vez mais verticalizados. 6

A única abordagem feita a uma jovem mãe, possivelmente moradora de rua, que estava com seu filho na mesma praça, horas depois, foi indicativa de grande desconfiança. As respostas foram dadas de modo curto e sem margens à prosseguimentos e explorações. 7

Para Barth (2000), a linguagem do estruturalismo gera abstrações que acabam por conduzir à ideia de uma apreensão daquilo que é verdadeiro nas formas e, assim, transformar a descrição em explicação. 8

Solidário no sentido mesmo do senso comum: da ajuda, do auxílio.

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Nesse sentido, duas pessoas perguntaram se iria fazer algo que pudesse contribuir para tirar os moradores de rua da região. 10

O [in] grafado à frente da conclusão reitera fatores algumas vezes já apontados no corpo deste artigo e relacionados ao processo de uma pesquisa em desenvolvimento.

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