CORPOS-TEXTO: a Colonização do Sexo pelo Gênero na obra de Judith Butler

June 1, 2017 | Autor: Cynthia Hamlin | Categoria: Judith Butler, Teoria Social, Realismo Crítico
Share Embed


Descrição do Produto

Corpos em Concerto: diferenças, desigualdades e desconformidades Cuerpos en Concierto: diferencias, desigualdades y disconformidades

Corpos em Concerto: diferenças, desigualdades e desconformidades Cuerpos en Concierto: diferencias, desigualdades y disconformidades

Jonatas Ferreira Adrián Scribano Editores/Compiladores

2011 Editora Universitária

UFPE

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. Proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, especialmente por sistemas gráficos, microfílmicos, fotográficos, reprográficos, fonográficos e videográficos. Vedada a memorização e/ou a recuperação total ou parcial em qualquer sistema de processamento de dados e a inclusão de qualquer parte da obra em qualquer programa juscibernético. Essas proibições aplicam-se também às características gráficas da obra e à sua editoração.

Capa: Romina Baldo Diagramação: Elvira de Paula Revisão: Autores

Catalogação na fonte: Bibliotecária Joselly de Barros Gonçalves, CRB4-1748 C822

Corpos em concerto : diferenças, desigualdades, desconformidades = Cuerpos em concierto : diferencias, desigualdades y disconformidades / organizadores, compiladores : Jonatas Ferreira, Adrián Scribano. – Recife : Ed. Universitária da UFPE, 2011. 364 p. Vários autores. Inclui bibliografia. ISBN 978-85-7315-884-7 (broch.) 1. Sociologia. 2. Corpo humano – Aspectos sociais. 3. Diversidade cultural. 4. Ciência política. 5. Igualdade. 6. Discriminação. I. Ferreira, Jonatas (Org.). II. Scribano, Adrián (Org.). 301

CDD (22.ed.)

UFPE (BC2011-068)

Autores Adrián Scribano é investigador independente do Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (CONICET); coordenador do Programa de Estudios de Acción Colectiva y Conflicto Social do Centro de Estudios Avanzados, Unidad Ejecutora do CONICET na Universidad Nacional de Córdoba, Argentina. Coordenador do Grupo de Estudios Sociales sobre los Cuerpos y las Emociones, do Instituto de Investigaciones Gino Germani da Universidad de Buenos Aires, Scribano conta com ampla produção acadêmica nas áreas de sociologia do corpo e das emoções. E-mail: [email protected]. Carolina Ferrante é formada em Sociologia pela Universidad de Buenos Aires (UBA) e doutoranda em Ciencias Sociales na mesma instituição. Bolsista do Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (CONICET) no Instituto de Ciencias de la Rehabilitación y el Movimiento (ICRM), na Universidad Nacional de San Martín (UNSAM), ela investiga questões relacionadas ao corpo, deficiência física e práticas esportivas. Dentre suas publicações podemos mencionar: Ferrante, Carolina y Ferreira, Miguel Angel V. (2009), “El habitus de la discapacidad: la experiencia corporal de la dominación en un contexto económico periférico”. Política y Sociedad, Vol. 46, No. 3; Ferrante, Carolina y Miguel Angel V. Ferreira (2008), “Cuerpo, discapacidad y trayectorias sociales: Dos estudios de casos comparados”. Revista de Antropología Experimental, No. 8; Ferrante, Carolina (2008), “Corporalidad y temporalidad, fundamentos fenomenológicos de la teoría practica de Pierre Bourdieu”. Nómadas: Revista crítica de ciencias sociales y jurídicas, Vol. II, No. 20; Ferrante, Carolina (2008), “Cuerpo, discapacidad y posición social: una aproximación indicativa al habitus de la discapacidad en Argentina”. Intersticios: Revista sociológica de pensamiento crítico, Vol. 2, No. 1. E-mail: [email protected]. Cynthia Lins Hamlin é professora do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFPE. Doutora em Pensamento Político e Social pela Universidade de Sussex, Inglaterra, seus principais temas de pesquisa incluem Teoria Social,

Metodologia das Ciências Sociais e Epistemologia Feminista. Entre suas principais publicações destacam-se: Hamlin, Cynthia (2002), Beyond Relativism: Raymond Boudon, Cognitive Rationality and Critical Realism. Londres e Nova York, Routledge; Hamlin, Cynthia e Brym, Robert (2006), “The Return of the Native: A Cultural and Socio-Psychological Critique of Durkheim’s Suicide based on the Guarani-Kaiowá of South-Western Brazil”. Sociological Theory, Vol. 24, No. 1. Brym, Robert; Lie, John, Cynthia Hamlin, Remo Mutzenberg, Eliane Veras Soares, Heraldo Souto Maior (2006), Sociologia: Sua Bússola para um Novo Mundo. São Paulo, Cengage; Hamlin, Cynthia (2008), “Ontologia e gênero: realismo crítico e o método das explicações contrastivas”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, Vol. 23. E-mail: [email protected]. Erliane Miranda é doutoranda em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco, bolsista Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), membro do grupo Ciência, Tecnologia e Sociedade e colaboradora do Comitê de Ética em Pesquisas com Seres Humanos do Hospital Oswaldo Cruz. Atualmente pesquisa reflexividade e consumo de psicofármacos. Entre suas publicações, mencionamos: Miranda, Erliane e Marcelo Pelizzoli (2008), “Melhorado geneticamente, patenteado e ameaçado: cuidado de si e dignidade humana em tempos biotecnológicos”. Revista Veritas, Vol. 53; Erliane Miranda e Raphael Douglas Tenório Filho (2007), “Da eugenia à algenia e o paradigma bioético”. In Marcelo Pelizzoli (org.). Bioética como novo paradigma. Petrópolis, Vozes. E-mail: [email protected]. Gabriela del Valle Vergara é licenciada em Sociologia pela Universidad Nacional de Villa María, mestra em Ciencias Sociales pela Universidad Nacional de Córdoba e doutoranda em Ciencias Sociales pela Universidad de Buenos Aires. Bolsista do CONICET, ela investiga temas relacionados a pobreza, trabalho, corpos e percepções. Entre suas publicações, encontramos: Scribano, Adrián y Gabriela Vergara (2009), “Feos, sucios y malos: la regulación de los cuerpos y las emociones en Norbert Elías”. Revista Caderno CRH, Vol. 22, No. 56; Vergara, Gabriela (2009), “Conflicto y emociones. Un retrato de la vergüenza en Simmel, Elías y Giddens como excusa para interpretar prácticas en contextos de

expulsión”. In Figari, C. y A. Scribano (comps.), Cuerpo(s), Subjetividad(es) y Conflicto(s). Hacia una sociología de los cuerpos y las emociones desde Latinoamérica. Buenos Aires, Centro de Integracion, Comunicacion, Cultura y Sociedad/ Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (CICCUS/CLACSO). E-mail: [email protected]. Glauber Lemos é mestrando em Sociologia no Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, Brasil. Rua da Matriz, 82, Botafogo, 22.260100, Rio de Janeiro-RJ, Brasil. E-mail: [email protected]. Graciela Magallanes é mestra em Educación Superior pela Universidad Nacional del Comahue, doutoranda em Ciências Sociais pela Universidad de Buenos Aires e Professora Associada em Metodología de la Investigación Social del Instituto Académico Pedagógico de Ciencias Sociales, Universidad Nacional de Villa María. Entre suas publicações, podemos citar: Graciela Magallane, C. Gandía, F. Llorente, A. Peano e R. Cena (2010), El Humor en tiempos de crisis. Acerca de su placer, disfrute y goce. Buenos Aires, Ediciones Ciccus; Magallanes, Graciela (2009), “Los placeres y sus vicisitudes”. Intersticios: Revista sociológica de pensamiento crítico. Vol. 3, No. 2; Magallanes, Graciela (2009), “Los surcos de las experiencias placenteras en la vida escolarizada y no escolarizada”. In Adrián Scribano y Carlos Figari (orgs.) Cuerpo(s), Subjetividad(es), Conflicto (s). Hacia una sociología de los cuerpos y las emociones desde Latinoamérica. Buenos Aires, CICCUS/CLACSO. E-mail: [email protected]. Jonatas Ferreira é professor adjunto do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Inovação Terapêutica da Universidade Federal de Pernambuco, bolsista do CNPq e coordenador do grupo Ciência, Tecnologia e Sociedade. Doutor em Sociologia pela Lancaster University, Inglaterra, foi durante oito anos editor da revista Estudos de Sociologia. Seu campo de interesses acadêmicos compreende o estudo das novas tecnologias da vida, a exemplo das técnicas de recombinação genética, nanobiotecnologia, produção de fármacos, além de temas relacionados à sociologia do corpo. Nesse campo amplo, tem publicado no Brasil e no exterior. E-mail: [email protected].

Jorge Ventura de Morais é professor e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco. PhD em Sociologia pela London School of Economics (Reino Unido), investiga atualmente temas relacionados à sociologia do futebol. Entre suas publicações recentes, encontram-se: Morais, Jorge V. e Túlio V. Barreto (2008),“As Regras do Futebol e o Uso de Tecnologias de Monitoramento”. Estudos de Sociologia, Vol. 14; Morais, Jorge V. e Túlio V. Barreto (2009), “La Regla del Fuera de Juego y la Dinámica del Fútbol: un Análisis a Partir de la Sociología Figuracional”. In Carina V. Kaplan & Victoria Orce (orgs.). Poder, Prácticas Sociales y Proceso Civilizador: los Usos de Norbert Elias. Buenos Aires, México (DF), Editora Noveduc. E-mail: venturademorais@gmail. com. Juan Pablo Aranguren Romero é formado em Psicologia pela Universidad Nacional de Colombia, historiador pela Pontificia Universidad Javeriana, mestre em Antropología Social y Política e doutorando em Ciencias Sociales pela Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales, Argentina. Bolsista do Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas no Museo de Antropología da Universidad Nacional de Córdoba, Argentina, e investigador do Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, Romero é autor de diversos artigos sobre corpo, subjetividade, memória, guerra e sofrimento. E-mail: [email protected], [email protected]. María Belén Espoz Dalmasso  é licenciada em Comunicación Social e doutoranda em Semiótica pelo Centro de Estúdios Avanzados-Unidad Acadêmica (CEA-UA)  da Universidad Nacional de Córdoba (UNC). Bolsista de pós-graduação do CONICET, integrante do Programa de Estúdios de Acción Colectiva y Conflicto Social do CEA- Unidad Ejecutora do CONICET (CEA-UE) e Profesora Ayudante da cátedra de Antropología Sociocultural da Escuela de Ciências de la Información da UNC. Entre suas publicações recentes, encontram-se: Espoz, María Belén, Cecilia Michelazzo y Patricia Sorribas (2010), “Narrativas en conflicto sobre una ciudad socio-segregada. Una descripción de las mediaciones que las visibilizan”. In Adrián Scribano e Eugenia Boito (orgs.) El purgatorio que no fue. Acciones profanas entre la esperanza y la soportabilidad. Buenos Aires,

CICCUS/CLACSO; Espoz, M. (2010), “Crear umbrales para explotar los límites de las ‘ciudades-barrio’: sensaciones y vivencias de jóvenes que habitan “Ciudad de mis Sueños””. Revista Brasileira de Sociologia da Emoção (RBSE), Vol. 9, No. 26; Espoz, M. (2009), “La Ciudad y las ciudadesbarrio: tensión y conflicto a partir de una lectura de la producción mediática de miedos en el marco de espacios urbanos socio-segregados”. Revista RELACES, No. 1. E-mail: [email protected] Maria Ester Lima Oliveira é doutoranda em Sociologia pelo Programa de Pós- Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco e mestra em Sociologia pelo mesmo Programa. Bolsista do Conselho de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pesquisa atualmente cultura corporal em homens de diferentes perfis socioeconômicos na cidade do Recife. E-mail: [email protected]. María Eugenia Boito é doutora em Ciencias Sociales, pela Universidad de Buenos Aires. Pesquisadora Assistente do CONICET, co-coordenadora do Programa de Acción Colectiva y Conflicto Social, Professora Adjunta encarregada do Seminario de Cultura Popular y Cultura Masiva na Escuela de Ciencias de la Información e Professora Adjunta en Comunicación y Trabajo Social na Escuela de Trabajo Social, Universidad Nacional de Córdoba. Entre suas últimas publicações, destacamos: Adrián Scribano y María Eugenia Boito (orgs.) (2010), El purgatorio que no fue. Acciones profanas entre la esperanza y la soportabilidad. Buenos Aires, Ciccus; Adrián Scribano e María Eugenia Boito (2010), “La ciudad sitiada: una reflexión sobre imágenes que expresan el carácter neocolonial de la ciudad”. Revista Actuel Marx Intervenciones, No. 9. E-mail: meboito@yahoo. com.ar. Micheline Dayse Gomes Batista é formada em Jornalismo pela Universidade Católica de Pernambuco e mestra em Sociologia pelo Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco. Como jornalista, integra a equipe do Caderno Economia do Diário de Pernambuco, dedicando-se a temas relacionados às novas tecnologias de informação e comunicação. E-mail: micheline.batista@ gmail.com.

Mauro Guilherme Pinheiro Koury é doutor em Sociologia e professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal da Paraíba, onde coordena os grupos de pesquisa GREM – Grupo de Pesquisa em Antropologia e Sociologia das Emoções – e GREI – Grupo Interdisciplinar de Estudos em Imagem. E-Mail: [email protected]. Roberta de Sousa Melo é doutoranda em Sociologia no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: [email protected]. Túlio Velho Barreto é pesquisador da Diretoria de Pesquisas Sociais da Fundação Joaquim Nabuco, Brasil, onde se dedica a temas relacionados ao futebol e ao uso de tecnologias de monitoramento. Suas publicações mais recentes são: Morais, Jorge V. e Túlio V. Barreto (2011), “The Flexibility of Football Rules and the Dynamics of the Game: a Figurational Analysis of the Offside Law”. Soccer & Society, Vol. 11, No. 1 (no prelo); Morais, Jorge V., Túlio V. Barreto e Simone Magalhães de Brito (2011),“Regras do Jogo vs. Regras Morais: Para uma Teoria Sociológica do Fair Play”. Revista Brasileira de Ciências Sociais (no Prelo). E-mail: [email protected]. Victoria D’hers é licenciada em Sociologia pela Facultad de Ciencias Sociales da Universidad de Buenos Aires (UBA) e bolsista de doutorado do CONICET no Instituto de Investigaciones Gino Germani, Facultad de Ciencias Sociales, UBA. Seus interesses acadêmicos estão voltados para os estudos sociais dos corpos e das emoções, e para a sociologia ambiental. Entre suas publicações, destacam-se: D’hers, Victoria (2009), “En cuerpo (y) alma.” Revista Intersticios, Vol. 3, No. 2; “Reflexión en torno a la relación enfermedad-contaminación. Hacia la emocionalidad.” Boletín Onteaiken, No. 8; “Exclusión. Discurso del cuerpo/en el cuerpo/sobre el cuerpo… ¿A pesar del cuerpo?” In Julio Mejía Navarrete (org.) Sociedad, Cultura y Cambio en América Latina. Universidad Ricardo Palma, Perú. E-mail: [email protected].

Sumário

INTRODUÇÃO ........................................................................................................ UN ANÁLISIS SOCIOLÓGICO DE PRÁCTICAS DISCRIMINATORIAS HACIA LAS PERSONAS CON DISCAPACIDAD A PARTIR DE LAS CATEGORÍAS DE LO NORMAL Y LO PATOLÓGICO .................................................................... Carolina Ferrante REGRAS E CÓDIGOS DE CONDUTA MORAL E ÉTICA: um passeio pelo imaginário urbano e pelas vivências, reflexões e comparações sobre a noção de sujo de homens comuns de classe média no Brasil Urbano do século XXI .................................. Mauro Guilherme Pinheiro Koury NOTAS ACERCA DO ESTATUTO DA PELE CORROMPIDA. Roberta de Sousa Melo NEGRO DE MIERDA, GEOMETRÍAS CORPORALES Y SITUACIÓN COLONIAL .................................................................................. Adrián Scribano e María Belén Espoz

13

25

51 81

97

EL CUERPO SUFRIENTE DEL MERCADO: “Sweat the Fat” .... 127 Juan Pablo Aranguren Romero ASCETISMO E CULTURA CORPORAL ................................................. Maria Ester Lima Oliveira

139

LAS REPRESENTACIONES ACERCA DEL CUERPO ................. Graciela Magallanes

155

O SECOND LIFE E A VIVÊNCIA DO “SEGUNDO CORPO” Micheline Dayse Gomes Batista TREINAMENTO DE TÁTICAS COLETIVAS E DISCIPLINAMENTO DOS CORPOS NAS CATEGORIAS DE BASE DO FUTEBOL: uma Análise das Práticas Sociais de Aquisição de Técnicas Futebolísticas ............................................................... Jorge Ventura, Túlio Velho Barreto e Glauber Lemos

179

201

CONSUMO DE PSICOFÁRMACOS: entre o cuidado consigo e a sintetização da catarse .............................................................................................. Jonatas Ferreira e Erliane Miranda

227

BASURALES Y DISCRIMINACIÓN. Cuerpos y Justicia Ambiental................................................................... Victoria D’hers

249

TRAMAS CORPORALES, PERCEPCIONES Y EMOCIONES EN LAS MUJERES RECUPERADORAS DE RESIDUOS DE CÓRDOBA (Argentina) . ....................................................................................... Gabriela del Valle Vergara

273

CORPOS-TEXTO: a Colonização do Sexo pelo Gênero na obra de Judith Butler ........................................................................................................... 319 Cynthia Lins Hamlin LA TAUTOLOGÍA DEL SOLIDARISMO EN EL BICENTENARIO: “Argentina abraza a Argentina” ............................... María Eugenia Boito

333

Corpos em Concerto: diferenças, desigualdades e desconformidades

Introdução

O tema do corpo está inextricavelmente ligado à história do pensamento ocidental. E, no entanto, essa ligação opera-se como algo que permanece impensado, algo sempre pressuposto e nunca trazido resolutamente à luz como questão prioritária. Assim como ocorre com o animal - que na história da metafísica é sempre o impensável a partir do qual uma essência humana se destaca, ganha sentido e contorno -, o corpo surge no ocidente como metáfora da organização política, estética, de coerência interna de um sistema de argumentação etc., porém ele nunca é explicitamente visado. Ao falar da especificidade do ser humano como ser da fala, como ser político que decide entre o justo e o injusto, por exemplo, Aristóteles o diferenciará do animal, da condição eminentemente corpórea deste. Neste conhecido momento da Política, uma imagem fundamental da ordem política lhe ocorre: “Ademais, a cidade é, por natureza, anterior à família e a cada um de nós tomados individualmente. É, com efeito, necessário que o todo seja anterior à parte; pois, uma vez destruído o corpo inteiro não haveria mão nem pé, a não ser por homonimia” (ARISTÓTELES, 1253a-1253b). Algo curioso acontece no recurso a esse tipo de tropo, todavia. Ora, o emprego da metáfora resulta em um deslocamento do sentido daquilo que, em princípio, deveria elucidar, prometendo acesso a um significado que, afinal, permanece suspenso, uma promessa. Os exemplos do corpo como metáfora da ordem poderiam se multiplicar. A cultura que corresponde ao ocaso da Idade Média, para a qual ainda há um lugar próprio para cada coisa e criatura, concebe o mundo também a partir dessa imagem. “A terra é como um corpo cuja parte mais nobre é o rosto. [...] É evidente que só podemos habitar a parte superior do universo, ‘a dianteira da terra’, ou seja, a parte que está voltada para a ‘dianteira do céu’. [...] O hemisfério de baixo estaria, de algum modo, ‘estragado’, corrompido, pois foi nele que Satã se enfiou como ponto final da queda” (KAPPLER, 1994, p. 32). Ai de nós, criaturas do sul! 13

A ideia de um corpo político e social é ainda a base da concepção hobbesiana de governabilidade. Nas primeiras linhas do famoso livro, Hobbes nos propõe: “Pois por arte é criado aquele grande Leviatã chamado bem comum, ou o Estado (em latim, Civitas), que é apenas um homem artificial, apesar da estatura e força maiores que o natural, para cuja defesa e proteção ele foi concebido; e no qual a soberania é a alma artificial, como que dando vida e movimento a todo o corpo; os magistrados e outros funcionários da judicatura e execução, juntas artificiais; recompensa e punição [...] são os nervos [...]”1. O modelo de coesão social e política proposto por Hobbes, a capacidade de produzir unidade a partir da diferenciação orgânica, é, por seu turno, frequentemente mobilizado pelo positivismo francês quando este procura explicar fenômenos sociais. É evidente que poderíamos afirmar que, de um modo ainda mais explícito, o corpo é preocupação central do darwinismo social, da criminologia lombrosiana, de uma antropologia que busca explicações para a cultura na ideia de raça. Nesse caso, porém, o campo das ciências sociais reduz o corpo à sua condição de fenômeno biológico. Seriam nossos corpos apenas um produto orgânico, natural, biológico? Em contraposição a esse tipo de formulação, o corpo que surge na obra de Gilberto Freyre, na década de 1930, é prenhe de significados culturais, signo fundamental que teremos de descolonizar, que teremos de livrar de certo determinismo biológico, para nos capacitarmos a compreender a especificidade da civilização portuguesa nos trópicos. É precisamente o biologismo, portanto, que Freyre (1999, p. xlvii) terá de superar para compreender o lugar do corpo na economia e cultura colonial, como o mostra a seguinte passagem de Casa Grande e Senzala: “Vi uma vez, depois de mais de três anos maciços de ausência do Brasil, um bando de marinheiros nacionais – mulatos e cafuzos – descendo não lembro se do São Paulo ou do Minas pela neve mole do Brooklyn. Deramme a impressão de caricaturas de homens. E veio-me à lembrança a frase de um livro de viajante americano que acabara de ler sobre o Brasil: “the fearfully mongrel aspect of most of the population”2. A miscigenação resultava naquilo. Faltou-me quem me dissesse então, como em 1929 Disponível em http://oregonstate.edu/instruct/phl302/texts/hobbes/leviathan-contents.html; acessado em 30 de setembro de 2010. 2 Traduzimos livremente: “o aspecto medonhamente vira-lata da maioria da população”. 1

14

Roquette-Pinto aos arianistas do Congresso Brasileiro de Eugenia, que não eram simplesmente mulatos ou cafuzos os indivíduos que eu julgava representarem o Brasil, mas cafuzos e mulatos doentes”. O corpo como chave de indagações sobre a sociedade é um tópos recorrente nas ciências sociais (clássicas e contemporâneas), e na latinoamericana em particular. O status helicoidal e mobesiano do corpo na constituição da sociedade e da subjetividade não apenas teve impacto nas reestruturações dos processos sociais como também nos modos de os conhecer. A centralidade epistemológica da temática aludida pode ser observada em três níveis: as implicações metodológicas, o impacto na redefinição das relações entre conhecimento e “sujeito cognoscente” e a multiplicidade dos estudos específicos que suscitou. As formas sociais de dominação, a presença de regimes e políticas corporais que acompanharam a hegemonia neoliberal, a presença cada vez mais pronunciada da estetização da corporalidade (e da política) e as múltiplas lutas por reconhecimento das diferenças e contra a discriminação puseram os estudos sobre o corpo em primeiro plano das ciências sociais. Neste contexto, a via privilegiada de conexão entre estruturação social e ciências sociais configura o fato de entender que o corpo é o locus da conflitividade e da ordem. É o lugar da conflitividade por onde passa boa parte das lógicas dos antagonismos contemporâneos. É daqui que é possível observar a constituição de uma economia política da moral, quer dizer, modos de sensibilidades, práticas e representações que põem em questão a dominação. Se o corpo é político, isso se deve ao fato de que ele é objeto de investimentos técnicos. Já em 1935, Marcel Mauss publica no Journal de Psychologie (v.32) o ensaio “As técnicas do corpo”. Seu foco de interesse seria a aquisição de um habitus corporal, técnico, e seu significado social. “Assim, durante muitos anos tive a noção da natureza social do ‘habitus’. Observem que digo em bom latim, compreendido em França, ‘habitus’. [...] Ela não designa os hábitos metafísicos, a ‘memória’ misteriosa, tema de volumosas ou curtas e famosas teses. Esses ‘hábitos’ variam não simplesmente com os indivíduos e suas imitações, variam sobretudo com as sociedades, as educações, as conveniências e as modas, os prestígios” (MAUSS, 2003, p. 404). 15

De fato, muito deve a sociologia do corpo ao pensamento francês. Consideremos, por exemplo, a fenomenologia que nos propõe Merleau-Ponty, seu postulado epistemológico, ontológico, ético e político de que não temos um corpo; de que somos um corpo. ‘Desabrochamos’ para o mundo de forma corpórea; e esse gesto nos determina a própria possiblidade de perceber o mundo. Se seguirmos o raciocínio fundamental da Fenomenologia da Percepção, descobriremos que esse nascer para o mundo, esse mover-se em direção ao mundo, é também técnico. Desde que nos habituemos a ele, que o integremos automaticamente aos nossos movimentos, um chapéu, um carro, passam a fazer parte da unidade de nosso corpo. A pergunta que a partir de Merleau-Ponty passamos a nos fazer é: que tipo de abertura para o mundo nossos envolvimentos técnicos nos possibilitam? Consideremos também as contribuições de Foucault e Bourdieu, ambos interessados num corpo político, cada um a seu modo; ambos contribuindo de forma substantiva para conferir relevância a esse tema que ganha visibilidade bastante particular a partir da segunda metade do século XX. Em que contexto histórico, cultural, uma atenção particular, ou seja, uma atenção de caráter sociológico, antropológico, político, com respeito ao corpo pode ser entendido? Em Hominescências, Michel Serres nos fala de uma revolução tecnológica, uma revolução na medicina, que nos faz considerar nossos corpos como algo mais do que um constrangimento, do que sofrimento, dores insuportáveis, algo mais do que aquele corpo que a filosofia e a religião precisam negar precisamente por ser palco de misérias e padecimentos atrozes. Ocorrem-nos os famosos versos de um nonagenário Sófocles falando, pela boca do coro, acerca da condição de Édipo, idoso e exilado em Colono – versos que ecoaram no pensamento ocidental desde então. O pessimismo acerca da vida faz sentido quando pensamos em seu corpo alquebrado pelos rigores da idade, em uma sociedade sem certas comodidades da vida moderna. Não haver nascido se avantaja a qualquer outra consideração, e, de haver nascido, voltar o quanto antes para lá precisamente de onde se veio é quando muito o segundo melhor[...]. 16

Uma cultura do corpo, por outro lado, pressupõe descobertas como antibióticos, anti-inflamatórios, analgésicos, pílulas anticoncepcionais, que tornem possível pensar e lutar pelo prazer em lugar de negá-lo junto a todo padecimento físico. Esse contexto técnico deve ser associado às lutas pela liberação dos corpos femininos, pela adoção de alternativas sexuais diferentes daquelas ditadas pela heteronormatividade, pelo próprio direito de redefinir e ressignificar esse corpo. No entanto, os corpos desidratados, torturados, famintos, adoecidos, de vastas parcelas da população mundial são produzidos e reproduzidos em meio a essas mesmas possibilidades. Consideremos, por exemplo, o valor da produção global de medicamentos. No ano de 1999, 15% da população mundial que vivia em países ricos consumiam aproximadamente 90% dos medicamentos produzidos no mundo (WHO, 2004). Essas informações nos remetem a uma situação altamente desigual; elas nos indicam que os países pobres testam medicamentos que os países ricos irão consumir. Em todo caso, a separação entre desejo e reprodução que a pílula anticoncepcional propiciou, ofereceu de fato momentum à luta feminista pelo controle do desejo, pelo controle sobre os corpos. E se o feminismo de primeira onda foca bem mais claramente questões relativas à igualdade civil entre homens e mulheres, a própria luta feminista é também uma oportunidade para que pensadoras como Elizabeth Grosz, Judith Butler, Barbara Creed, Anne Fausto-Sterling, Donna Haraway, considerem as diferenças que produzem corpos femininos. Bebendo de vertentes filosóficas sensíveis à diferença e ao tema da politização dos corpos nas sociedades industriais, como o pós-estruturalismo de Foucault, por exemplo, essas feministas passam a contribuir decisivamente para fortalecer o campo que constitui o tema de nosso livro. O corpo feminino assume sua dimensão política, tornando problemático pensá-lo como entidade natural, como substrato anterior à cultura, como algo que nos ancoraria a um real elementar. Quais são as implicações de entendermos, com Michel Foucault, o corpo como lugar em que a política se realiza em última instância? Que ele possa significar a partir de discursos diferentes em contextos culturais diferentes e que, portanto, a ideia de agonismo seja fundamental em sua delimitação histórica. 17

Dizer, portanto, que o corpo é lugar da política significa dizer que ele é espaço de embates, que a partir dele falaremos não apenas de emancipação, mas também de opressão. Na contemporaneidade, o corpo é aquilo sobre o qual o capitalismo investe estética, libidinal e economicamente. Em sua edição de 8 de setembro de 2010, a revista Carta Capital trazia matéria sobre modelos convertidas em out-doors, como a paraguaia Larissa Riquelme que tatuou em seu corpo propaganda de uma conhecida marca de desodorante. Perfurado, esquadrinhado, medido, cortado, medicalizado, potencializado, para alguns teóricos, o corpo será finalmente superado como objeto político. E, se para David le Breton (2005), ou Habermas (2000), haveria o que lamentar no fato de tratarmos a concretude biológica do nosso ser como coisa, como objeto, como acessório, para os teóricos do trans-humanismo, a exemplo dos extropianos, deveríamos trabalhar para dar um “adeus ao corpo” o mais rapidamente possível. Sob a forma de delírio ou da pragmática lógica do consumo, mesmo quando constatamos que ele vem se convertendo em coisa manipulada pela técnica, em “vida nua” constante e plenamente mobilizada pelos ditames biopolíticos do capitalismo, de sua promessa de prazer perpétuo, o corpo torna-se tema privilegiado das ciências sociais. Por isso, é necessário empreendermos esforço para compreender os envolvimentos culturais, discursivos, dentro dos quais nossos corpos do sul significam. Isto é o que propomos neste livro. E se acreditamos que essa iniciativa é modesta diante das complexas e infinitas perspectivas de entender a especificidade de nossa realidade, ela é também oportuna. Pois é preciso que comecemos a analisar a forma como nossa condição histórica, política, cultural, econômica, particular, nos é apresentada como concretude corpórea; do mesmo modo, é necessário entender o que a imanência desta concretude pode significar. Urge que pensemos, em todo caso, o que chamaríamos aqui de “nosso” no contexto desse horizonte fenomenológico mais íntimo e primordial. O presente livro inscreve-se dentro de uma tendência política ampla que aponta no sentido da integração econômica, cultural e científica SulSul. Mais especificamente, trata-se de um projeto de cooperação acadêmica e editorial entre o Programa de Estúdios sobre Acción Colectiva y Conflicto Social, Grupo de Estúdios Sociales sobre Cuerpos y Emociones 18

do Instituto de Investigaciones Gino Germani da Universidade de Buenos Aires, e o Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco, através do grupo de pesquisa Ciência, Tecnologia e Sociedade. De um ponto de vista amplo, entendemos essa iniciativa no contexto de um conjunto amplo de iniciativas de integração regional entre as quais podemos listar a proposta de uma Universidade Federal de Integração Latino-americana (UNILA) e, mais proximamente, a realização do XVIII encontro da Associação Latino-americana de Sociologia, na cidade do Recife, em 2011. Trata-se aqui, pois, de propor uma reflexão ampla e variada no campo da sociologia do corpo que seja, de algum modo, representativa de nossa diversidade cultural. Assim, em “UN ANÁLISIS SOCIOLÓGICO DE PRÁCTICAS DISCRIMINATORIAS HACIA LAS PERSONAS CON DISCAPACIDAD A PARTIR DE LAS CATEGORÍAS DE LO NORMAL Y LO PATOLÓGICO”, Carolina Ferrante trata do “asco e da pena como emoções estruturantes da percepção social da descapacidade nas sociedades contemporâneas. A partir das análises de Foucault e Canguilhem em torno do normal e do patológico, iluminados à luz dos aportes de uma sociologia dos corpos e emoções, intenta dotar de significação tais fatos, reduzidos pelo chamado senso comum à falta de educação ou à mera irracionalidade”. Seu objetivo último é refletir acerca da ‘incapacidade física’ “como relação de dominação, propondo um enquadramento teórico que amplie e complexifique as miradas tradicionais” sobre este assunto. A partir de investigação empírica realizada em 2009 nas cidades de João Pessoa, Recife, Belém, São Paulo, Curitiba e Brasília, Mauro Koury busca compreender a ideia de sujeira corporal através do imaginário urbano brasileiro. Em "REGRAS E CÓDIGOS DE CONDUTA MORAL E ÉTICA: Um passeio pelo imaginário urbano e pelas vivências, reflexões e comparações sobre a noção de sujo de homens comuns de classe média no Brasil Urbano do século XXI", Koury propõe "analisar o país em termos de sua cultura política e do seu sistema de classificação social, dos medos e receios, do comportamento e dos costumes dos informantes". O texto nos proporciona "um passeio pelas vivências, ansiedades, reflexões e comparações emitidas e traçadas pelos entrevistados", traçando, enfim, 19

"um panorama sobre como pensa o habitante urbano das grandes cidades e metrópoles brasileiras sobre o conceito de sujeira". Em “NOTAS ACERCA DO ESTATUTO DA PELE CORROMPIDA”, Roberta Melo se debruça sobre cirurgias cosméticas mal sucedidas e se pergunta como esse malogro é simbolizado. Fantasmas de descontrole, desordem e impureza, ostentando cicatrizes, hematomas, necroses, esses corpos circulam como lugar da confusão entre morto e vivo, artifício e natureza. Sua degenerescência remete a algo sobre o qual se perdeu o controle, constituindo uma ameaça ao olhar civilizado, precisamente na medida em que “representa a natureza deslocada e os arranjos culturais desestabilizados pelo descontrole da organização biológica do corpo”. Em “NEGRO DE MIERDA, GEOMETRÍAS CORPORALES Y SITUACIÓN COLONIAL”, Adrián Scribano e María Belén Espoz refletem acerca das estruturas experienciais e políticas dos corpos que permitem compreender o sentido da negritude nas sensibilidades sociais argentinas. Neste sentido, interessa também “dar conta das características do cenário geral (a cidade colonial) que o “negro de mierda” condensa, a expropriação e despossessão material ancoradas em políticas corporais...” e “da trama corporal de uma cidade colonial onde corpo-classe-espaço estruturam-se mediante um cromatismo sociovivencial que regula as geometrías corporais na situação colonial”. Juan Pablo Aranguren Romero analisa as formas retóricas sob as quais o corpo surge na publicidade contemporânea. Considerando criticamente os modelos clássicos de beleza, os sofrimentos pressupostos em processos de embelezamento por meio de cirurgias plásticas, seu ensaio constitui uma reflexão sobre o modo como as campanhas publicitárias realizamse na contemporaneidade – “um giro teórico que incorpora um discurso acerca do cuidado de si e uma política das emoções”. No artigo “EL CUERPO SUFRIENTE DEL MERCADO: “Sweat the Fat””, ele sustenta a necessidade de problematizar tanto este “giro teórico” como uma guinada das ciências sociais em direção ao corpo. Maria Ester Lima Oliveira propõe em “ASCETISMO E CULTURA CORPORAL” analisar os aspectos ascéticos da cultura corporal contemporânea. Levando em conta o contexto secular em que 20

tal ascese é realizado, a autora adota o conceito de bioascese proposto por Francisco Ortega como forma de compreender a disciplina, a valorização do sofrimento que se depreendem da cultura corporal produzida em academias de ginástica do Recife. Este trabalho visa ainda a contribuir para verificar a aplicabilidade do conceito de Ortega, procurando perceber seus limites. O ensaio “LAS REPRESENTACIONES ACERCA DEL CUERPO”, de Graciela Magallanes, descreve as representações acerca do corpo que são desenvolvidas por estudantes de ciências sociais. Sua “estrutura argumentativa está organizada do seguinte modo: em primeiro lugar, realiza-se uma análise teórica das representações sociais e suas zonas problemáticas. Em seguida, analisam-se as representações dos regimes, da sensualidade e do porte corporais, além da aparência física. Finalmente, algumas conclusões são estabelecidas sobre a representação do corpo na instituição universitária”. Micheline Dayse Gomes Batista busca realizar uma reflexão sobre as novas configurações que o corpo humano assume no ciberespaço e que questões esse fenômeno traz para pensarmos as identidades dos sujeitos no mundo contemporâneo. Em “O SECOND LIFE E A VIVÊNCIA DO “SEGUNDO CORPO””, a autora verifica que o jogo oferece a oportunidade de realizar a fantasia de plena customização de nossos corpos, no ritmo e ao sabor dos nossos desejos; e que esses desejos podem reproduzir padrões de beleza dominantes, mas que também podemos questioná-los. Tendo como limite virtual a imaginação e a fantasia, a sensação de controle absoluto proporcionada pela transformação corporal vivenciada no Second Life, o rompimento dos limites do corpo biológico mostra-se, no entanto, apenas ilusória. Em “TREINAMENTO DE TÁTICAS COLETIVAS E DISCIPLINAMENTO DOS CORPOS NAS CATEGORIAS DE BASE DO FUTEBOL: uma Análise das Práticas Sociais de Aquisição de Técnicas Futebolísticas”, Jorge Ventura, Túlio Velho Barreto e Glauber Lemos desafiam a crença popular de que o jogador de futebol tem um dom natural para este esporte. Em lugar dessa crença, os autores propõem que esse tipo de capacidade “é resultado de práticas sociais que visam ao disciplinamento e disposição dos corpos dos jovens atletas, aspirantes a 21

jogadores de futebol”. Para defender essa tese, estudam um repertório variado “de técnicas e táticas utilizadas por treinadores de futebol para conformar os corpos dos atletas aos ditames do jogo coletivo. Na base do “jogo bonito”, […] do dom concedido por Deus, estão o treinamento e disciplinamento de corpos através de práticas sociais coletivas amplamente conhecidas e utilizadas por profissionais deste esporte”. A partir de dados empíricos de uma pesquisa realizada entre os anos 2008 e 2009 na Região Metropolitana do Recife, Jonatas Ferreira e Erliane Miranda analisam a relação entre o consumo de psicofármacos (antidepressivos e ansiolíticos, especificamente) e a reflexividade exercida pelos sujeitos-consumidores destes tipos de medicamento. Indagando acerca do lugar do sofrimento na contemporaneidade, e postulando o que chamam de crise do pensamento trágico no ocidente, isto é, o fim da ideia de aprendizado pela dor, de uma experiência transformadora da própria finitude humana, a medicalização do sofrimento é apontada como radicalização do niilismo no ocidente. De acordo com o argumento central de “CONSUMO DE PSICOFÁRMACOS: entre o cuidado consigo e a sintetização da catarse”, esse é, no limite, a essência cultural daquilo que se poderia chamar, tomando de empréstimo o conceito de Giddens e Beck, de reflexividade no consumo de medicamentos psicoativos. Victoria D’hers nos traz uma reflexão acerca da gestão dos lixões a céu aberto na cidade e na província de Buenos Aires. Em “BASURALES Y DISCRIMINACIóN. Cuerpos y justicia ambiental”, ela revisa esta problemática a partir da perspectiva dos estudos sociais dos corpos e das emoções, afirmando a existência de espaços urbanos onde se realiza uma violência dupla: que ali residam seres humanos confundidos com o lixo, e que estes possam encarar tal experiência como “melhoras em suas trajetórias de vida”. A análise de tal situação, considera a autora, “pode dar pista para a compreensão dos fenômenos de racismo e discriminação ambiental, assim como suas estreitas conexões com uma dinâmica na qual a suportabilidade social é produzida”. Em “TRAMAS CORPORALES, PERCEPCIONES Y EMOCIONES EN LAS MUJERES RECUPERADORAS DE RESIDUOS DE CÓRDOBA (Argentina)”, Gabriela del Valle Vergara propõe analisar as experiências de mulheres catadoras de resíduos em 22

Córdoba e San Francisco a partir do enfoque da sociologia dos corpos e das emoções. “Tomando como base um conjunto de entrevistas realizadas durante o ano de 2008, postula a articulação das noções de tramas corporais, percepções e emoções que mostram como vivem e sentem cotidianamente a experiência deste tipo particular de trabalho extradoméstico. Para tal, apresentam-se três sessões nas quais se desenvolvem os conceitos principais e expressões das mulheres catadoras. Finalmente, afirma-se que a articulação conceitual proposta constitui uma ferramenta válida para os estudos das mulheres e do trabalho”. Para Cynthia Lins Hamlin, a obra de Judith Butler representa o ápice de um movimento a que poderíamos chamar de colonização do sexo pelo gênero. Analisando criticamente a obra de Butler, Hamlin propõe em “CORPOS-TEXTO: a Colonização do Sexo pelo Gênero na obra de Judith Butler” que “ao enfatizar o caráter socialmente construído não apenas do gênero, mas também do sexo, a natureza é totalmente subsumida na cultura e os corpos são tratados como epifenômenos, como meras superfícies textuais nas quais o discurso imprimiu sua marca”. Com base em uma ontologia realista, a autora argumenta que “embora o discurso tenha um impacto causal na constituição dos sujeitos, inclusive em seus corpos, este impacto é tanto possibilitado quanto restringido por uma dimensão material e, em larga medida, extradiscursiva. Ao minimizar a importância dessa dimensão, um movimento reconstrutivo central às nossas práticas culturais e políticas torna-se impossível, reduzindo seu papel à critica dos significados socialmente instituídos”. Finalizando este volume, com o artigo “LA TAUTOLOGÍA DEL SOLIDARISMO EN EL BICENTENARIO: “Argentina abraza a Argentina””, María Eugenia Boito “retoma reflexões prévias sobre solidarismo e pretende debater sobre a “revolução solidária””. Sua estratégia interpretativa inscreve-se fora do discurso da solidariedade, “instância a partir da qual é possível questionar a doxa que remete à apoliticidade da solidariedade, como fantasia social que gera práticas que se instituem repudiando o antagonismo de classe constituinte da formação social contemporânea”. “Para alcançar tal objetivo, em primeiro lugar, realizamse considerações teóricas sobre a operatória do solidarismo na regulação da suportabilidade/desejabilidade social, retomando a perspectiva de S. Žižek 23

sobre a ideologia; em segundo lugar, aborda-se a convocatória Argentina abraça Argentina dentro do marco da comemoração do Bicenteário, por parte da Red Solidaria, Margarita Barrientos e do ator Ricardo Darín; em terceiro lugar, como conclusão, retoma-se o percurso proposto, com vistas a expor alguns traços da “religião do desamparo neo-colonial” nos termos de A. Scribano, que expressa nas práticas do solidarismo analisadas uma máscara humanitária, adoção do capitalismo como religião-profana da qual ninguém renega ser praticante”. Jonatas Ferreira e Adrián Scribano

Referências ARISTÓTELES (1986). Obras. Madrid, Aguilar. FREYRE, Gilberto (1999). Casa-Grande e Senzala. Rio de Janeiro e São Paulo, Editora Record. HABERMAS, Jürgen (2000). O Futuro da Natureza Humana. São Paulo, Martins Fontes. KAPPLER, Claude (1994). Monstros, demônios e encantamentos no fim da Idade Média. São Paulo, Martins Fontes LE BRETON, David (2005). Adeus ao Corpo. São Paulo, Papirus Editora. MAUSS, Marcel. (2003). Sociologia e Antropologia. São Paulo, Cosac-Naify. SERRES, Michel (2001). Hominescências. O começo de uma outra humanidade. São Paulo, Bertrand - Brasil. WORLD HEALTH ORGANIZATION (2004). The World Medicines Situation. WHO. 24

Corpos en Concierto: diferencias, desigualdades y disconformidades

UN ANÁLISIS SOCIOLÓGICO DE PRÁCTICAS DISCRIMINATORIAS HACIA LAS PERSONAS CON DISCAPACIDAD A PARTIR DE LAS CATEGORÍAS DE LO NORMAL Y LO PATOLÓGICO Carolina Ferrante

Introducción Es posible pensar a la discapacidad como una relación de dominación, en la cual hay un opresor y un oprimido, conectados por una relación de violencia simbólica (BOURDIEU, 1999) que permite justificar y naturalizar dicha situación arbitraria (FERRANTE, FERREIRA, 2008). En la vida cotidiana de las personas con discapacidad esto se traduce en discriminación, opresión y exclusión (BARNES, 1998; FERREIRA, 2008, 2007; FILKEINSTEIN, 1980; OLIVER, 2008, 1998, 1990). Este trabajo nace a partir de una doble inquietud: una teórica, surgida de la lectura del texto de Patricio Pedraza (2009) en relación al asco y la discapacidad en la cultura griega y, otra, empírica, nacida de una investigación en curso referida al tema discapacidad y deporte3. En la misma busco analizar cómo influye en la experiencia de la discapacidad motriz adquirida la práctica deportiva. Para ello privilegio el uso de dos técnicas de recolección de investigación cualitativas: entrevistas en profundidad y auto-etnografía4 (MONTEROLa misma se enmarca en las tareas de investigación referidas a mi tesis doctoral en curso en la Facultad de Ciencias Sociales de la Universidad de Buenos Aires a través de una Beca Interna Tipo II otorgada por el CONICET (2007/2012). Título del proyecto de tesis: “Cuerpo, discapacidad y deporte. Análisis de las prácticas deportivas de los adultos con discapacidad motriz adquirida durante su vida en la Ciudad de Buenos Aires actualmente”. Directora: Graciela Ralón de Walton. Co- director: Adrián Scribano. 4 El trabajo de campo se realizó entre noviembre de 2007 y agosto de 2010. Siguiendo criterios de saturación teórica se trabajó con una muestra compuesta por 20 personas con discapacidad motriz adquirida que realizan deporte en la Ciudad de Buenos Aires. La misma se compuso de varones y mujeres, con un fuerte predominio de los primeros debido a una masculinización del campo. Para dar cuenta del carácter relacional de la discapacidad, asimismo, se reconstruyó la mirada experta, a 3

25

Carolina Ferrante

SIEBURTH, 2006; SMITH, 2005; WALL, 2006). Un elemento emergente del análisis de entrevistas es la existencia, en la vida cotidiana, de prácticas discriminatorias surgidas en la interacción en espacios “convencionales” (en palabras de los entrevistados) o “normales”. En dicha situaciones, los protagonistas son personas sin discapacidad y personas con discapacidad; los escenarios los constituyen espacios (físicos o símbolicos) reservados para las personas “normales”: un colectivo, un cine, la escuela, una oficina estatal, un club deportivo, una reunión familiar. Por ejemplo: La otra vez un colectivero que no me quería frenar me dijo “vos deberías ser un hijo de puta antes, por eso quedaste así”… (Jugador de rugby en silla de ruedas, 30 años) Un chico en la escuela venía y me pateaba el bastón, después lo echaron (Nadador con lesión medular, 31 años). Estamos en el entrenamiento, sentados en el banco mientras los jugadores terminan la jornada con un partido. La conversación vuelve sobre la situación de las personas con discapacidad. El entrenador me dice: “La sociedad no está preparada para ver esto. A nosotros (un club de básquet en sillas de ruedas) ha venido gente a vernos y se ha descompuesto”. Carolina: Descompuesto… ¿por qué? Entrenador: Y te dicen pobres los chicos que están en la silla… Y te pasa con gente cercana eh, un amigo mío vino a verlos y tuvo que salir porque no podía parar de llorar y sufre del corazón. Y me decía no ver a los chicos (Nota: son adultos de entre 25 y 65 años) no tienen las piernas, o no pueden caminar, no pueden trabajar, no pueden tener hijos… [Nota del 12 de agosto de 2010].

Estas actitudes que emergen cuando la persona con discapacidad ocupa un lugar no esperado de acuerdo a las expectativas colectivas en el espacio físico, son variantes de las surgidas cuando ocupa roles no esperados, como por ejemplo, el ser sexualmente activos: través de la realización de (19) entrevistas en profundidad a profesores de educación física, médicos fisiatras, terapistas ocupacionales, clasificadores internacionales, representantes de federaciones y clubes.

26

Un análisis sociológico de prácticas discriminatorias [...] categorías de lo normal y lo patológico

A Gabriel (un múltiple amputado en silla de ruedas) la familia de la novia no lo acepta. Imaginate cuando cayó este a la casa (risas), la abuela dijo “mi nieta sale con un monstruo”… El padre no entiende que su hija quiera estar con un (múltiple) amputado, fue al psicólogo, pero no hay caso. La chica para estar con Gabriel tiene que dejar a la familia, tiene que elegir (Jugador de básquet en silla de ruedas, 65 años) [Nota del 4 de agosto de 2010].

Tales escenas remiten a dos emociones: el asco y la pena despertada frente a ese otro en silla de ruedas o con un bastón. Asimismo, a través del desarrollo de la auto-etnografía, técnica de recolección de información en la cual el sociólogo pone en juego sus vivencias despertadas en el proceso de investigación, un elemento que llama mi atención es la tendencia de colegas, amigos y familiares a señalarme que el tema de investigación es muy “duro” y una recurrente inquietud en preguntarme si “estar con esa gente no te hace mal, no te da impresión”. La base de ese juicio, evidentemente, es la mirada médico rehabilitadora que reduce la discapacidad a una tragedia médica individual (FERREIRA, 2008), pero además, refleja el miedo a ver en cuestión la presunta propia normalidad. Es decir, las emociones despertadas por el cuerpo “anormal”, (en términos de Foucault) o el cuerpo no legítimo (como prefiero denominar siguiendo a Bourdieu (1991)) constituyen un elemento riquísimo para analizar la discapacidad como construcción social5. Sin embargo, ante esta situación, tradicionalmente, la investigación social se ha concentrado en el estudio de las personas con discapacidad. Ahora bien, la pregunta que surge al leer los relatos antes expuestos conduce la interrogación del lado del discriminador: ¿cómo comprender estás prácticas?; ¿qué siente la persona discriminadora al ver a alguien con discapacidad?; ¿cómo dotar de racionalidad a esta conducta y no caer en una explicación que reduzca este acto a cuestiones morales (como por ejemplo, la alusión a la “maldad humana”)? Se vuelve necesario, entonces, Los aportes más significativos al interior de las ciencias sociales para comprender la discapacidad como construcción social y fenómeno opresivo provienen del denominado modelo social de la discapacidad (BARNES, 1998; OLIVER, 2008, 1998, 1990; FILKEINSTEIN, 1980). Más adelante ampliaremos este tema. 5

27

Carolina Ferrante

poner la atención en la sociedad que discrimina y no en la persona con discapacidad (MORRIS, 2008). Un lugar común, muy presente en los medios masivos de comunicación6, pero también en algunos abordajes desde las ciencias sociales, es analizar estos fenómenos reduciéndolos a la “falta de concientización de la ciudadanía” o a la “falta de educación de las personas”. Sin embargo, tal lectura resulta simplificadora y, a mi entender, errónea. En primer lugar, es necesario partir del supuesto que afirma que las emociones surgidas en el acto de discriminación (asco, desprecio, odio, pena) poseen una significación y no son reducibles al plano de lo irracional (SARTRE, 1980). Las emociones no remiten, exclusivamente, a un fenómeno individual sino que son expresión de un a-priori histórico en el cual está inmerso el agente (MERLEAU PONTY, 1975). Es decir, que es imperioso recortar el análisis al mundo social en el cual surgen dichas emociones, o sea, en nuestro caso, un contexto capitalista en su fase neo-colonial dependiente (SCRIBANO, 2008). Por esto, los estudios que, para explicar el sentido de las prácticas discriminatorias en la sociedad occidental remiten a las prácticas exterminadoras de la antigua Grecia resultan, tal como señala Pedraza (2009), simplificadoras. Mi intención es enfantizar, siguiendo al autor español, que tales estudios corren el riesgo de esencializar la relación de dominación que sostiene a la discapacidad como fenómeno opresivo. La segunda objeción que se puede señalar es que lejos de ser hechos sociales reducibles a la conciencia, o a la falta de conciencia, constituye un error pensarlos en el orden de la conciencia tética. Es decir, parten de un supuesto sobre la acción erróneo que obstaculiza un análisis de la relación de dominación que expresan (BOURDIEU, 1991). Tales situaciones deben ser pensadas en el orden de la conciencia no tética, en el plano de aquello que fue sedimentado en el cuerpo como habitus, es decir, como esquema de percepción, pensamiento y acción (MERLEAU-PONTY; BOURDIEU, 1991). Completando las objeciones realizadas podemos decir que subyace en estos abordajes una mirada cartesiana del hombre, donde la educación Y por ello es que resultan preocupantes en función del rol que cumplen los medios de comunicación en la configuración del sentido común en las sociedades actuales (BOURDIEU, 1996 ). 6

28

Un análisis sociológico de prácticas discriminatorias [...] categorías de lo normal y lo patológico

correspondería al plano de lo mental. Por el contrario, es necesario comprender estas emociones como hechos corporales. Insistimos una vez más, no se trata de entenderlos en el orden de lo irracional, sino simplemente en un plano de una lógica no lógica (BOURDIEU, 1991) pero dotados de una significación que remite a una estructura social. No debe ser leída esta crítica bajo una lógica dualista que escinde el cuerpo de la mente, sino que comprendemos el cuerpo como lugar de la emoción o, pivote de la experiencia (MERLEAU PONTY, 1975). La tercera objeción es que la lectura que reduce los hechos discriminatorios a una falta de educación o ausencia de conciencia de la población omite el dato de que muchas veces tales situaciones de discriminación son reproducidas por algunas personas con discapacidad7. Una de las constantes que emerge del análisis de entrevistas en profundidad, realizadas a personas con discapacidad en el contexto de mi tesis en curso, es la distinción entre normales y anormales al interior del mundo de la discapacidad8. Sólo a título ilustrativo: Ahora acá estoy ayudando a dos hermanos, que son solitos, solos, solos, solos, no tienen a nadie, y una vez por mes vienen a comer a casa… Lejos de buscar generalizar esta afirmación, intención no contemplada en una investigación cualitativa y asumiendo la complejidad del universo de estudio (y que se relaciona con múltiples entrecruzamientos de la discapacidad con variables como: género, nacionalidad, etnia, tipo de deficiencia), lo que busco es exponer cuestiones emergentes del trabajo de campo realizado entre diciembre de 2007 y agosto de 2010. Tal vez el ámbito del deporte adaptado propicie esta especie de anatomía moral (EPELE, 2002) existente intra-discapacidad motriz. 8 La noción nativa de rengo, término a través del cual las personas que realizan deporte en silla de ruedas se identifican, remite a la idea de un caminar torcido, desviado. Dicha noción se remonta a la historia de la principal institución en la que se práctica el deporte adaptado, institución creada para el “tratamiento” de la poliomelitis en 1959. Las personas con secuela de polio, suelen caminar con bastones canadiense, rengueando, de donde viene el mote “rengo”. Hoy, erradicada la polio en Argentina, tal noción constituye un núcleo identitario de las personas con discapacidad. Asimismo es posible rastrear en las entrevistas realizadas pares opuestos que remiten a la familia normal// anormal, por ejemplo: Normal//Enfermo; Normal//Chiquitos con problemas/ Me ponía mal/ Tratar de evitarlo; Rápido, dinámico// Tonto, le faltan jugadores, boludo, lento; Salud//Piltrafa; Movimiento//No me podía mover; Normal//Gente con problemas; Normal//Circo de Moscú; Normal//Grupo muy cerrado; Normal//Robocop; Normal//Robot; Normal//Para; Normal// Cuadri; Convencional//Rengo; Rengo//Rengo de la cabeza; Rengo/ /Turu-rú; Rengo// Le faltan jugadores; Normal//discapacitados; Normal// amputado, polio, medulares; Llamar la atención// Esconder, Cosa que estorbaba; Linda, rubia, grandota, doctora// Feo; Trabajar/ /Ser un pobrecito. 7

29

Carolina Ferrante

Hay uno que es el normal y otro que está enfermo, uno tiene 48 años, el normal, y el enfermo tiene 30… Se fue con una moto debajo de un colectivo y quedó viste, camina, pero habla que no se le entiende y este pobre lo atiende, porque no tienen ni madre, ¡y si vos vieras cómo lo atiende! Yo los veía acá en el club, que lo traía, le daba de comer, viste parece, carbura un poco, pero carbura poco… Y una vez al mes ellos vienen viste, yo les hago ñoquis, comidas caseras con rico tuco viste, y ellos van a comer... (risas) y el enfermo me dice (risas) coca cola trucha nooo eh!, trucha nooo!! (lo dice burlándose, imitando a alguien que no puede hablar claro) (risas) y yo digo ¡la puta madre! (risas) este pobre, pretencioso. Entonces al otro viste le compro un vinito viste no tan caro… (…) (Marisa, 74 años). La gente de acá, los turu-rú, (risas) porque yo les digo los turu-rú (risas) porque acá al que camina acá algo le falla en la cabeza, le faltan los jugadores viste, (risas) Y mi hija, mirá lo que es la casualidad que me hija estudió de maestra paralítica cerebral, antes de que a mí me pasara esto, y yo le decía, ay Verónica, tantas cosas habrías sido maestra, pero de normales, (muchas risas) ¡yo me quería morir! viste y ella me decía, viste mami, vos no te tenés que quejar porque vos estás muy bien… (risas), yo estaba hecha una piltrafa y decía ¡esta chica me está tomando el pelo! Pero bueno es así… Yo veo los ciegos cómo se dan cuenta, porque yo pienso que hay muchas discapacidades, pero la más dura es para mí la ceguera… Después acá están los mentales, pero ¿sabés qué? ellos no se dan cuenta, le afecta a la familia… Si vos vieras acá los ciegos, soy amiga de una pareja de ciegos, él tiene 60 años, ciego de nacimiento, vos vieras yo digo, yo hablo castellano nada más y este ciego habla 4 idiomas! (risas), sabe tocar la guitarra, ¡tiene una amigovia! ¡una novia! (Marisa, 74 años). Los anormales son los cuadri, después los amputados, después vienen los para, y después los convencionales, los que caminan (Elena, 36 años).

Cuarta objeción, supuesto de partida de este trabajo, la discapacidad es una relación de dominación, por lo cual la cuestión de la discriminación remite a una cuestión política (ABBERLEY, 2008). De hecho, las categorías del juicio de las personas con discapacidad reflejan aquellos esquemas de percepción expresados en las situaciones de discriminación y que remiten 30

Un análisis sociológico de prácticas discriminatorias [...] categorías de lo normal y lo patológico

a dispositivos de regulación de las emociones y mecanismos de soportabilidad social propios de la sociedad industrial (SCRIBANO, 2007). En el origen de los mismos debemos remitirnos a un proceso de normalización desarrollado en el siglo XVIII ya que ponen en palabra el origen del acto de desprecio. Ahora bien, el fin de este trabajo es desentrañar cuál es el sentido de estas prácticas discriminatorias y mostrar cómo funcionan los dispositivos de regulación de las emociones en el cual se enmarcan. Para ello, partiremos de algunos abordajes sociológicos referidos a la discapacidad y el asco y, retomando tales señalamientos, describiremos el análisis de lo normal y lo patológico de Foucault y Canguilhem9. Finalmente, procederemos a dar respuesta a nuestra pregunta de origen. Nuestra tesis es que los fenómenos de discriminación sufridos por las personas con discapacidad pueden ser referidos al par normal/patológico y que no es posible comprender su significado sino son enmarcados en los dispositivos de regulación de las emociones y los mecanismos de soportabilidad que se erigen al interior del capitalismo. El proceso de normalización que sufre la sociedad industrial en el siglo XVIII constituye el principal dispositivo de regulación de las emociones que permite comprender el rechazo de aquello que se aleja de la norma; pero este análisis sería incompleto si no tenemos en cuenta los mecanismos de sorpotabilidad (SCRIBANO, 2007) que activa la presencia de un cuerpo “anormal”. Los mismos, anidados en juegos de fantasmas y fantasías sociales que permiten ocluir el conflicto (SCRIBANO, 2005).

Un aspecto señalado por Hughes y Paterson (2008) es que pese a la importancia que tiene al interior de la teoría social la obra de Foucault, su uso en estudios en el campo de la discapacidad ha sido relativamente escaso. Estos autores sostienen que “claramente una historia o una genealogía foucaultianas del impedimento y la discapacidad serían un buen vehículo para el trazado del mapa de los parámetros de construcción social del impedimento y para examinar la manera en que los ‘regímenes de verdad’ sobre los cuerpos con discapacidad fueron fundamentales para su gobierno y control” (HUGHES y PATERSON , 2008: 115). Un trabajo en esta línea es el realizado por Ferreira y Rodríguez Díaz (2009) “Desde la discapacidad a la diversidad funcional: un ejercicio de dis-normalización, Revista Internacional de Sociología (en prensa). La única diferencia entre este trabajo y el citado es en las fuentes utilizadas: los autores mencionados se basan en los planteos realizados por Foucault en Vigilar y Castigar y Genealogía del Racismo, mientras que yo en el presente limito el análisis exclusivamente a la obra Los anormales. 9

31

Carolina Ferrante

El asco y la discapacidad abordado sociológicamente Diversos autores han señalado que el rechazo que despiertan las personas con discapacidad en el mundo occidental se relaciona con una imagen fantasmagórica de desintegración representada por un cuerpo alejado de los mandatos del “cuerpo normal”, o, como prefiero denominar, cuerpo legítimo (BOURDIEU, 1982). En esta línea, Le Bretón (2002) y Goffman (2001) señalan que la presencia de un cuerpo discapacitado genera sentimientos de odio y desprecio debido a la ambigüedad que genera su rol social: la persona con una discapacidad es dejada de lado de la vida social normal, aunque formalmente se le reconoce que es un miembro pleno de la sociedad (LE BRETÓN, 2002). Según estos pensadores, la ambivalencia existente en el rol social de las personas con discapacidad es la que genera sentimientos o emociones como la de odio y desprecio. Afinando estas reflexiones, es posible pensar con Hanna y Rogovsky (2008) que en realidad tal ambigüedad no existe, y que el sentimiento de asco ante una persona con discapacidad se relaciona con la reducción de la persona al rol del enfermo y el etiquetamiento de anormal. La búsqueda de distinción a partir del refugio en la (propia) normalidad funciona y devela un proceso de normalización que conduce a despreciar a través del asco todo aquello catalogado de anormal. En este sentido, Foucault señala que si existe la expresión “vas a terminar en el patíbulo” (FOUCAULT, 2000: 41) es porque la misma posee una base histórica que incluye desde la medida correctiva hasta la muerte. Ahora bien, ¿cuál instancia de saber será la que definirá quienes entran en la categoría anormal? Esta respuesta es brindada por Foucault en Los anormales: la hipótesis central de este libro es que las técnicas de normalización y el poder de normalización no constituyen una mera conexión entre el saber médico y el poder judicial sino que a través de la pericia médico judicial, se configura la categoría de los anormales. Para este autor, el par normal-anormal surge en la modernidad, con el fin de tornar “previsibles, dóciles y útiles a los sujetos” (VALLEJOS, 2009: 96), intención vehiculizada a través de tres estrategias complementarias: la constitución discursiva del concepto anormal, la medicalización de la sociedad y la moralización de la sociedad” (VALLEJOS, 2009: 96). En el 32

Un análisis sociológico de prácticas discriminatorias [...] categorías de lo normal y lo patológico

próximo apartado retomaremos el análisis de la configuración histórica de la categoría anormal realizado por Foucault en Los anormales, ya que el mismo nos ayudará a llegar a una respuesta a nuestra pregunta de trabajo.

Constitución histórica de lo anormal. El abordaje de Michel Foucault. Michel Foucault a través del análisis de la transformación de la pericia psiquiátrica rastreará la constitución de lo que el denomina “poder de normalización”. La pericia médico-legal tal como establecía el Código Penal de 1810 instituía en Francia “que no hay crimen ni delito si el individuo se encuentra en estado de delirio” (FOUCAULT, 2000: 39). Así, a través de la práctica de la pericia se debía discernir si el sujeto acusado es enfermo (y, por tanto, el castigo que se le impone es terapéutico) o no (y, por ello, deviene responsable de su desvío, y como medida punitiva se establece la prisión). Pues bien, la pericia contemporánea sustituirá, a través de una serie de mecanismos que se entretejen en el siglo XIX, la exclusión recíproca entre el discurso médico y el discurso judicial por un juego de “doble calificación: médica y judicial” (FOUCAULT, 2000: 40) y sustituirá la disyuntiva institucional prisión versus hospital, castigo versus curación por el principio de una “homogeneidad de la reacción social” (FOUCAULT, 2000: 41). Este giro en la pericia médico-legal permite justificar socialmente la existencia de un continuo de instituciones que se ubican entre el delito y la enfermedad y que tendrán como objeto de atención al peligro, o más exactamente, al individuo eventualmente peligroso, que no es reducible ni a la figura del delincuente ni a la del enfermo sino a la del anormal. Así, el par perversión/peligro constituirá el núcleo de la pericia médico legal en donde, el primer elemento del par, lo perverso, a través de categorías morales (como las de maldad, orgullo, empecinamiento) hará posible unir conceptos médicos y legales, mientras que el segundo, el individuo peligroso, justificará la existencia de una serie de instituciones médico-legales que protegerán al cuerpo social de lo abyecto. Más precisamente, es posible afirmar que existe un poder, que no es médico ni judicial, sino de normalización que a través de la pericia médico legal funda la categoría de los anormales y deviene instancia de control del individuo 33

Carolina Ferrante

anormal. Así, según Foucault la categoría de anormal surgirá en el siglo XIX y se organizará en torno a tres figuras: el monstruo humano, el individuo a corregir y el onanista. Estos elementos no poseen una aparición sincrónica. El monstruo humano englobará personajes que reúnen la característica de ser considerados a medias hombres y a medias bestias (como el hombre bestia y los hermafroditas). Su protagonismo se desarrolla durante los siglos XVII y XVIII. Esta figura se configura en el dominio de lo jurídico-biológico, constituyendo una doble infracción de las leyes biológicas y sociales: 1) se aleja de la forma de la especie y 2) plantea problemas en las regularidades jurídicas (como por ejemplo las leyes de matrimonio, el bautismo, la sucesión). Así, existe una anormalidad estética y una anormalidad ética-moral, en la cual se combinará lo imposible y lo prohibido. Se inaugura un juego entre ambas dimensiones en donde la excepción a la naturaleza genera modificaciones en los efectos jurídicos de la trasgresión del derecho, sin suspender los efectos de la ley, sino exigiendo la creación de instituciones “parajudiciales y marginalmente médicas”. Asimismo, a través de la figura del monstruo se observa la evolución de la pericia médico legal que señalábamos más arriba, desde el acto monstruoso, problematizado en el siglo XIX hasta el surgimiento de la noción de individuo peligroso, noción central de las pericias contemporáneas. El individuo a corregir es un personaje más reciente que el monstruo. Su aparición es contemporánea a la inauguración de las técnicas de disciplina que se introducen en los siglos XVII y XVIII, tales como el ejército, las escuelas, los talleres y las familias. Concretamente, estas nuevas instituciones de domesticación “del cuerpo, del comportamiento y de las aptitudes” (FOUCAULT, 2000: 298) crearán el problema de aquellos que escapan a una normatividad que ya no será la de la ley. Pues bien, el marco jurídico negativo será reemplazado por un conjunto de métodos positivos de rectificación a través de las cuales se procurará la corrección de aquellos que se resisten a la domesticación. Una figura intermedia entre los métodos negativo y positivo de ejercicio del poder lo constituye el “gran encierro” del siglo XVII. A través del mismo, se excluye aquello que perturba las leyes de la ciudad, es decir, la conciencia burguesa y que incluye todas las formas de “inutilidad social”, pero se establece como justificación la necesidad de corregir una “ausencia moral” a través del trabajo forzado 34

Un análisis sociológico de prácticas discriminatorias [...] categorías de lo normal y lo patológico

(FOUCAULT, 2006). Es decir, entre las prácticas de internación y las exigencias del trabajo se establece una relación que se basa en la moral burguesa: en la Edad clásica la locura es percibida por medio de la condena ética al ocio y la valoración positiva del trabajo (FOUCAULT, 2006). En este sentido, el poder de normalización debe ser enmarcado dentro de un proceso de invención de nuevas tecnologías de poder, en el cual las técnicas de disciplina constituyen un punto central llevado adelante por la burguesía en los siglos XVIII y XIX10. Según Foucault, en los márgenes de las técnicas modernas de domesticación se dará el origen institucional de las principales discapacidades que hoy conocemos: discapacidad visual, sensorial, intelectual y motriz. Por último, en el siglo XVIII aparece la figura del onanista. La misma surge de la mano de las nuevas relaciones que se establecen entre sexualidad y familia y con el nuevo rol que cumplirá el niño al interior del grupo parental, caracterizado por una nueva importancia y valoración atribuida al cuerpo del niño y a la salud. Tal surgimiento se relaciona con el desarrollo de las técnicas de dirección de conciencia (como la confesión penitenciaria) y las instituciones educativas. En el siglo XVIII, la medicina, a través de una campaña contra-masturbación creará el cuerpo sexual del niño. En relación a él todo un saber y una nueva moral médica situará la etiología de múltiples y disímiles enfermedades en la masturbación infantil. Pero aún más, quienes serán responsabilizados de la práctica masturbatoria serán los padres del niño (se los acusará de falta de vigilancia, falta de interés por su hijo). Entonces, los efectos de la cruzada anti-masturbatoria exceden al rol del niño, ya que constituye una reconfiguración de la familia como nuevo aparato de saber/poder. A través de la misma se establece una nueva “economía de las relaciones intrafamiliares” que implica una solidificación de las relaciones padres-hijos y una inversión de la estructura de las obligaciones familiares (que antes iban de los niños a los padres y que ahora se revertirá). Pero a esta reestructuración de los lazos familiares corresponderá un cambio en el valor que une a los miembros del grupo: el principio de salud constituirá la ley fundamental de la vida filial. Asimismo, Para una descripción de las anatomopolíticas y biopolíticas se recomienda la lectura de Ferreira, M. A. V. y Rodríguez Díaz, S. (2009). “Desde la dis-capacidad hacia la diversidad funcional, un ejercicio de dis-normalización” (op. cit.). 10

35

Carolina Ferrante

la nueva distribución familiar implicará una organización de un vínculo cuerpo a cuerpo entre padres e hijos el cual se estructurará en base al deseo y al poder. Finalmente, la necesidad de un control y una mirada médica externa para regular estas nuevas relaciones habilitará la medicalización de la familia (y, a través de ella, de la sociedad). De esta forma, en torno a la categoría de individuo anormal, expresadas en las figuras del monstruo humano, el incorregible y el onanista, desde fines del siglo XIX, se instaurarán una serie de instituciones, discursos y saberes. Cada una de estas figuras tendrá sus sistemas de referencia científica autónoma. En el caso del monstruo se tratará de la teratología y la embriología; en el caso del incorregible la psicofisiología de las sensaciones, la motricidad y las aptitudes y en el caso del onanista, una teoría de la sexualidad. A la vez, señala Foucault, hay que enmarcar estos saberes específicos en tres fenómenos básicos que en parte modifican y anulan: 1) La elaboración de una teoría general de la degeneración, que a partir de la obra de Morel de 1857, “va a servir durante más de medio siglo de marco teórico, al mismo tiempo que de justificación social y moral de todas las técnicas de señalamiento, clasificación e intervención referidas a los anormales” (FOUCAULT, 2000: 301). 2) La organización de una red institucional compleja, que en el entre de la juridicción médica y la legal, cumpla un doble rol: el de recepción de los anormales y el de la defensa de la sociedad. 3) El giro por el cual el problema de la sexualidad infantil va englobar a los problemas del monstruo y el individuo a corregir, hasta convertirse en el siglo XX, “en el principio de explicación más fecundo de todas las anomalías” ( FOUCAULT, 2000: 301). En síntesis, hasta aquí hemos visto que a través de la construcción del individuo anormal, acaecida en el siglo XIX, el poder de normalización cumple una función política de control social de aquellos individuos que escapan a la norma.

36

Un análisis sociológico de prácticas discriminatorias [...] categorías de lo normal y lo patológico

Poder de normalización en Foucault y Canguilhem El poder de normalización debe ser comprendido en el contexto de lo que el pensador francés denomina la invención de “tecnologías positivas de poder”. Foucault rastrea en occidente dos grandes modelos de control de los individuos: 1) la exclusión de los leprosos (desarrollados en los siglos XVII y XVIII) y 2) la inclusión del apestado (propio del siglo XVIII). Mientras que el primer modelo se basa en la expulsión y separación de la ciudad, el segundo se ancla en una intención de fijar a la ley al individuo alejado de la norma en base a su ubicación en una cuadrícula. En la lepra se separan los enfermos de los “normales” mientras que en la peste no se da una marcación definitiva sino un examen continuo dentro de un campo de regularidad para saber si el individuo se ajusta a la norma de salud que se ha establecido. Entonces, una diferencia importante entre el primer modelo y el segundo la constituye el fin último que cada uno persigue: mientras que en la lepra se busca retirar la impureza que amenaza el cuerpo social, en el caso de la peste se intenta maximizar “la salud, la vida, la longevidad, la fuerza de los individuos” (FOUCAULT, 2000: 55), es decir, se promueve la producción de un cuerpo social sano. Ahora bien, en el siglo XVIII, la peste, como modelo de control político reemplazará al modelo de la lepra. Este proceso histórico que se acuña en la Edad clásica11 implica el pasaje de una tecnología de poder que “expulsa, excluye, prohíbe, margina y reprime, a un poder que fabrica, que observa, un poder que sabe y se multiplica a partir de sus propios efectos” ( FOUCAULT, 2000: 55)12. Tanto la noción de proceso de normalización, como las cuestiones metodológicas referidas a la concepción de la norma, Foucault las toma de Así, en la Edad clásica se elabora un arte de gobernar que incluye tres elementos en los cuales se puede distinguir niveles diferenciados: teórico, institucional y práctico: 1) una teoría jurídico-política del poder anclada en la noción de voluntad (su alienación, su transferencia, su representación política); 2) un aparato de estado y su red institucional y 3) una técnica general del ejercicio de poder transferible a diversas instituciones. Esta técnica posee un dispositivo tipo que es la organización disciplinaria y culmina en la normalización. 12 Desaparecida la lepra, sus estructuras organizativas permanecerán y dos o tres siglos más tarde, en esos mismos sitios, los “juegos de exclusión” (FOUCAULT, 2006: 18) se repetirán con un sentido completamente nuevo: será exclusión social, pero sobre todo “reintegración espiritual” (Ibid.). 11

37

Carolina Ferrante

la obra Lo normal y lo patológico de Canguilhem a quien remite expresamente en Los anormales. Concretamente rescata tres ideas del filósofo francés. 1) La referencia a un proceso general de normalización social, política y técnica que se desarrolla en el siglo XVIII y que posee efectos en los campos de la salud, la educación, la producción fabril y el ejército. 2) La norma es política, no puede ser entendida como una ley natural sino que posee un rol de exigencia y coerción en los espacios que se aplica. Por eso, la norma es portadora de una pretensión de poder, más precisamente, funda y legitima cierto ejercicio de poder. 3) La norma está relacionada a un principio de calificación y corrección, su función no es excluir y rechazar sino enderezar. Así, constituye una técnica positiva de transformación, correspondiente a un proyecto normativo. Pues bien, completando y discutiendo estos aspectos referenciados por Foucault en relación a Lo normal y lo patológico es posible realizar los siguientes señalamientos: Foucault sostendrá que es un error metodológico e histórico considerar al poder como un mecanismo negativo de represión cuya función es proteger, conservar o reproducir relaciones de poder de una clase determinada. Esto lo lleva a rechazar una explicación materialista del proceso de normalización. Sin embargo, esta afirmación resulta ambigua ya que en Los anormales, con posterioridad a esta afirmación, relacionará la invención de tecnologías positivas de poder con la revolución burguesa. Planteos similares pueden encontrarse en Historia de la locura en la época clásica. En Canguilhem (1978) tal ambigüedad no existe y hay una clara concepción materialista del proceso de normalización: el mismo constituye la manifestación de exigencias colectivas que son definidas por una sociedad histórica en virtud de aquello que es considerado “su bien propio” (CANGUILHEM, 1978: 186). Así como para el organismo vivo es necesario un dispositivo que regule sus necesidades fisiológicas, la sociedad requiere la regulación de las necesidades sociales; función que es llevada adelante por una clase normativa. Insistimos en este aspecto porque es clave para comprender las emociones despertadas por el cuerpo discapacitado en la actualidad. Según Canguilhem, el proceso de normalización se enmarca en un proyecto normativo instaurado entre el siglo 38

Un análisis sociológico de prácticas discriminatorias [...] categorías de lo normal y lo patológico

XVIII y XIX por una clase normativa que fija su propia percepción de lo normal como normal: Se podría decir, con otras palabras, tratando de reemplazar por un equivalente el concepto marxista de clase ascendente: entre 1759, fecha de aparición de la palabra “normal”, y 1834, fecha de aparición de la palabra “normalidad”, una clase normativa conquistó el poder de identificar – hermoso ejemplo de ilusión ideológica- la función de las normas sociales con el uso que ella misma hacía de aquellas cuyo contenido determinaba (CANGUILHEM, 1978: 193).

Lejos de implicar un mecanicismo, esta mirada considera como propiedad intrínseca del proceso de normalización la anticipación de una posible flexibilidad. Para Canguilhem la norma es aquello que instaura lo normal a partir de una decisión normativa, y, es por ello que considerará que la decisión en torno a tal o cual norma sólo puede ser entendida en el contexto de otras normas. En este sentido afirma que, la intención normativa en una sociedad histórica dada es indivisible. Así puede observar una interrelación entre las diferentes normas e inclusive una mutación de normas éticas a políticas, estéticas, técnicas o jurídicas. Dada esta correlatividad es que las normas siempre deben prever ciertas tolerancias de desvío. En síntesis, en Canguilhem existe una clara vinculación entre el carácter político de la norma y la identificación con una clase social determinada, planteo no realizado en Foucault de forma rotunda. Foucault señalará que la función de la norma no es excluir y rechazar, sino enderezar. Pues bien, Canguilhem no dirá exactamente esto: asumiendo el carácter inverso de la norma, es decir, señalando que una norma no es tal sino es puesta en relación con su opuesto, sostendrá que toda predilección a un orden dado es acompañada, la mayoría de las veces, por la aversión del orden posible inverso: “Lo diferente de lo preferible –en un dominio dado de evaluación- no es lo indiferente, sino lo rechazante o, más exactamente, lo rechazado, lo detestable” (CANGUILHEM, 1978: 188). Justamente, este planteo es el que permite hacer el puente con la intención correctiva de la norma: “La regla comienza a ser regla cuando arregla y esta función de corrección surge de la infracción misma” ( CANGUILHEM, 1978: 188). Esto es lo que permite afirmar el carácter históricamente 39

Carolina Ferrante

previo de lo anormal sobre lo normal, cuestión empíricamente demostrada por Foucault a través de la puesta en manifiesto de que es a través de la construcción de la categoría de los anormales, en el siglo XIX, cómo se instaurará el control sobre la normalidad. Estas dos observaciones las señalamos porque es fundamental para comprender el asco presente en las prácticas discriminatorias que buscamos analizar. Debe quedar claro, que pese a estas diferencias de interpretación en la lectura de Canguilhem, se considera sumamente valioso el análisis de Foucault y que sólo tratamos de hacer una lectura interesada de los textos para la comprensión de nuestra pregunta de trabajo.

Consideraciones finales Retomando nuestra pregunta inicial estamos en condiciones de abordar una respuesta provisoria a la misma. Para ello volveremos sobre algunas reflexiones anteriormente esbozadas. Siguiendo a Ricoeur podemos señalar que existen dos sentidos de lo normal en Canguilhem: se puede identificar la norma a la media estadística o se puede comprender a la norma como un ideal. En este mismo sentido, lo patológico admite también dos significaciones de la norma: en lectura negativa se reduce a déficit, deficiencia mientras que en sentido positivo, implica una organización diferente, con sus propias leyes. Pues bien, en nuestra sociedad se establece una noción que Ricoeur denomina insolente de la salud “que tiende a erigir lo normal, en el sentido de la media estadística, en norma, entendida como ideal” (RICOUER, 2008: 176). Podemos afirmar que el poder de normalización instaura esta noción insolente de la salud. La misma debe ser comprendida en el marco de la estructura social que la genera: “en una sociedad individualista que coloca en su cima la capacidad de autonomía, la gestión propia de su estilo de vida, es considerada una merma toda incapacidad de sustraerse de una relación de tutela bajo su forma de asistencia y de control” ( RICOUER, 2008: 177). Según Ferreira y Rodríguez Díaz y Toboso y Guzmán el cuerpo normal es definido en base a una norma médica que socialmente construida define determinadas capacidades requeridas “por las necesidades asociadas a nuestros patrones culturales de vida” (TOBOSO y GUZMÁN, 2009: 10). 40

Un análisis sociológico de prácticas discriminatorias [...] categorías de lo normal y lo patológico

Pues bien, creemos importante retomar los planteos de Canguilhem para resaltar que la organización de lo normal debe enmarcarse en el modo de respuesta a las necesidades sociales. Es por esto, que consideramos fundamental relacionar aquello que se erige como cuerpo normal, capaz o mejor, legítimo, aquél que cumple los requisitos y propiedades exigidas por la división social del trabajo (BOURDIEU, 1991). Tomando los aportes del modelo social se puede comprender a la discapacidad como el resultado de una estructura social opresiva que se adapta a las necesidades de las personas sin discapacidad y que homologa sus condiciones de existencia como clase oprimida (BARNES, 2008, 1998; OLIVER, 2008, 1998, 1990; FILKEINSTEIN, 1980). Así, las personas con discapacidad en tanto se alejan del “cuerpo capacitado” (anclado en el mito de perfección corporal e intelectual) constituyen una fuerza de trabajo no productiva y por ello son reducidos al rol de enfermos, formando parte de aquél ejército de reserva descripto por Marx (BARNES, 2008). Si bien compartimos lo supuestos del modelo social, se debe indicar su tendencia a olvidar que el cuerpo es el locus del conflicto y del orden (SCRIBANO, 2009: 14). Paradójicamente el modelo social en su versión materialista, tras el intento de desmedicalizar la discapacidad, olvidó el cuerpo deficiente como sujeto y objeto de estudio tras el miedo a caer en el ámbito de la biología asumiendo que así también se caía en el campo rehabilitador. Es necesario incorporar al abordaje del modelo social, una concepción del cuerpo como producto social y pivote de la experiencia (BOURDIEU, 1982; MERLEAU PONTY, 1975). Tal esfuerzo puede observarse es versiones recientes del modelo social, (como por ejemplo en los trabajos de Shakeaspeare y Watson (1996), Hughes y Paterson (2008) y Morris (2008) o en producciones enmarcadas en tal tradición como los de Ferreira (2009) y Kippen y Zuttion (2009)) que incorporan los aportes de la sociología del cuerpo13, centrando su interés en la problematización de la categoría impedimento o deficiencia14. En relación a la necesidad de incorporar al modelo social los aportes de la sociología del cuerpo Hughes y Paterson señalan: “Disponemos de un lenguaje elaborado, interpretativo y psicosocial para dar sentido a ese mundo de encuentros corporeizados (estigma, prejuicio, ansiedad) y la miríada de efectos que desempeñan una función en él, pero el modelo social lo dejó de utilizar basándose en que enmascara problemas políticos y de poder” (HUGHES y PATERSON, 2008: 120). 14 Estos estudios reconocen al cuerpo discapacitado como focus del poder, pero, a la vez, señalan que la misma es una relación encarnada y singular, variable de acuerdo a la condición de clase, etnia, 13

41

Carolina Ferrante

Realizada esta aclaración, consideramos que la discapacidad constituye una relación de dominación que no puede ser pensada al interior del capitalismo sino es relacionándola a su alejamiento al cuerpo legítimo (BOURDIEU, 1982). En un contexto capitalista neocolonial y dependiente el cuerpo legítimo es aquel que es flexible (SCRIBANO, 2007), aparentemente independiente y está físicamente conservado de acuerdo a reglas de productividad (LOUVEAU, 2007). El Estado como denominador de las identidades sociales legítimas otorga la hegemonía al modelo médico hegemónico (MENÉNDEZ, 1990) para reducir a la discapacidad al diagnóstico de un déficit anclado en un organismo individual. Si bien la medicina tradicional de occidente posee la hegemonía para definir qué es salud y enfermedad, sin embargo, creemos que resulta reduccionista limitar exclusivamente el poder de definición de la norma de salud a la medicina. Sostenemos que la definición de “cuerpo sano” se disputa en el campo de la salud, campo más amplio que el médico y que intervienen en esta puja diversos actores pertenecientes al llamado complejo moda-belleza (BOURDIEU, 2000). Podemos ver cómo la norma de la salud muta en una norma estética (belleza) y ética (bueno). Salud y enfermedad son normadas socialmente (RICOEUR, 2008) y se hacen cuerpo en propiedades corporales valoradas o despreciadas. A través de una economía política de la moral (SCRIBANO, 2007) se inculca el habitus de la discapacidad a partir del cual se asocia el cuerpo enfermo/feo/inútil al cuerpo sano/bello/útil (FERREIRA, 2007; FERRANTE, FERREIRA, 2008, 2007). De esta forma, la portación de una deficiencia conduce a la encarnación de un cuerpo discapacitado al cual corresponderá (o no) una definición estatal del cuerpo discapacitado (o “cuerpo no-legitimolegitimado”), concepción que no puede ser entendida si no es en relación a la definición del cuerpo legítimo al interior del modo de producción capitalista (BOURDIEU, 1999). En este sentido, la imagen social del cuerpo con la que cada agente cuenta desde su niñez, se obtiene a través de la aplicación “una taxonomía social cuyo principio con el de los cuerpos a los que se aplica” (BOURDIEU, 2000: 85). Las personas con discapacidad, al interior género, tipo de deficiencia. Con otras palabras, si es cierto que el cuerpo discapacitado es un cuerpo construido y reproducido por el saber médico, también es un cuerpo que resiste, produce quiebres y cuestionamientos a la norma médica que define qué es deficiencia.

42

Un análisis sociológico de prácticas discriminatorias [...] categorías de lo normal y lo patológico

de este a-priori histórico, se transforman en portadoras de un cuerpo socialmente descalificado y rechazable (FERRANTE; FERREIRA, 2008). Si pensamos en las prácticas discriminatorias señaladas en un comienzo, son situaciones en las cuales el único elemento indicador de una deficiencia es el cuerpo (o más precisamente, la hexis corporal). Así, dada la importancia que adquiere en la estructuración de las sociedades capitalistas el acercamiento al cuerpo legítimo (con sus consecuentes ganancias y pérdidas en diferentes especies de capital), se puede comprender el valor negativo que adquiere el cuerpo discapacitado (BOURDIEU, 1991) en tanto estigma (GOFFMAN, 2000). En su hexis, el cuerpo discapacitado se aleja del patrón de salud/belleza establecido, encarnando la infracción a que ello establecido como normal en sentido de valor ideal. Reconociendo este aspecto, Hughes y Paterson (2008) señalan que “los prejuicios que sirven de sostén a la construcción de la moda y lo bello se encuentran en el centro de la biopolítica contemporánea” (HUGHES y PATERSON, 2008: 114), y caracterizan a la sociedad capitalista actual como una “tiranía de la perfección”15. La reproducción de la mirada discriminadora al interior del mundo de la discapacidad puede ser comprendida con el producto de la aplicación de unos esquemas de percepción que son el resultado de la dominación (BOURDIEU, 2000) Así las prácticas discriminadoras intra-discapacidad es un acto de reconocimiento de la sumisión. En este sentido, las emociones despertadas por el cuerpo discapacitado en las prácticas discriminatorias se relacionan estrictamente con el poder de normalización. Toda la estructura social está viva en la interacción entre la persona con discapacidad y la persona sin discapacidad, bajo el modo de esquemas de percepción y apreciación inscriptos en los cuerpos de los agentes interactivos (BOURDIEU, 2000). A partir de diversos “filtros sociales” (FROMM, 1967) o habitus se aprehende la discapacidad como una tragedia médica personal (OLIVER, 2008) que se aleja de la norma socialmente establecida de cuerpo sano-bello, acarreando la aversión y el rechazo. Tal como señala Ricoeur, en tanto las personas Es en este sentido, que estos autores consideran que una política emancipadora de la situación de opresión y discriminación sufrida por las personas con discapacidad la constituye la de adoptar una política del cuerpo en la cual se cuestione la distinción entre discapacidad e impedimento. 15

43

Carolina Ferrante

con discapacidad escapan a la norma de salud socialmente establecida, no pueden vivir en comunidad y por ello se las expulsa: La sociedad querría ignorar, esconder, eliminar a sus discapacitados. ¿Y por qué? Porque ellos constituyen una amenaza sorda, un recuerdo inquietante de la fragilidad, de la precariedad de la mortalidad (RICOEUR, 2008: 177).

El asco despertado por el cuerpo discapacitado se relaciona con el miedo al aislamiento moral (FROMM, 1967) que implica el cuestionamiento a la norma. En la infancia, a través de la inculcación de habitus se incorpora la amenaza de aislamiento y ostracismo, constituyendo este el miedo humano más importante en la estructuración de la conciencia (FROMM, 1967; FOUCAULT, 2006). En palabras de Ricoeur: La línea de exclusión no está solamente trazada entre los sujetos considerados con buena salud y los sujetos discapacitados, atraviesa también la conciencia de cada uno. La perspectiva de la locura reemplaza el miedo al infierno, al mismo tiempo que se acerca la amenaza de la retribución social. La exclusión procede de cada interioridad propia; reemplazando la trascendencia, la inmanencia se revela más cruel que ella. El loco es mi doble infinitamente próximo (RICOEUR, 2008).

Según Ricoeur, estos son los prejuicios que la educación pública no ha podido detener. Podemos comprender que esto deba su razón a que las fantasías sociales constituyen mecanismos ideológicos que conducen a la aceptación de eso que supuestamente suprimen. Llegada esta instancia, para comprender el acto de discriminación podemos valernos de los aportes de la sociología del cuerpo y las emociones en lo relativo a funcionamiento del capitalismo en su fase actual. Siguiendo los planteos de Scribano (2005, 2007) podemos afirmar que el capitalismo funciona a partir de la existencia de dispositivos de regulación de las emociones y mecanismos de soportabilidad social que operan a partir de juegos de fantasmas y fantasías sociales. Así podemos pensar que el poder de normalización constituye un dispositivo de regulación de las emociones que nos explica por qué es rechazado el cuerpo discapacitado, mientras que los mecanismos de soportabilidad nos permiten comprender 44

Un análisis sociológico de prácticas discriminatorias [...] categorías de lo normal y lo patológico

cómo es que opera el mismo. En este sentido, el temor a la muerte social que activa la presencia de un cuerpo discapacitado es ocluida por la emoción del asco a través de la fantasía de acercamiento al cuerpo sanobello. En este sentido, las fantasías actúan haciendo olvidar lo histórico (la definición arbitraria de la categoría anormalidad), y es por ello que regulan las sensaciones, haciendo que el conflicto pase desapercibido. Con otras palabras, la eficacia de las fantasías sociales en tanto mecanismos de regulación de las sensaciones radica en su capacidad de ocultar los antagonismos de un modo pornográfico: los hace visibles eliminando el antagonismo inherente. De esta forma, permiten naturalizar situaciones conflictivas como formas no disruptivas (SCRIBANO, 2005). Finalmente, en la línea de realizar un aporte desde el pensamiento crítico a la revelación de la relación de dominación socialmente reprimida que ancla la discapacidad en el campo de la enfermedad y la anormalidad podemos tomar la investigación empírica como fuente de cuestionamiento de tales prejuicios y repensar contra-hegemónicamente las nociones de normal y patológico, salud y enfermedad. Si tomamos con Canguilhem la afirmación de que la salud es la capacidad de instaurarse una nueva norma, no cabría lugar a considerar a alguien que circula en silla de ruedas en lo plano de lo abyecto. Tal como plantea la intelectual y militante feminista Morris: Las experiencias de envejecer, de estar enfermo, de sufrir dolor, de tener limitaciones físicas e intelectuales, son todas parte de la experiencia de vivir. Sin embargo tener miedo significa que existen muy pocas representaciones culturales que generen una compresión subjetiva. El movimiento de la discapacidad necesita incorporar el principio feminista de que lo personal es político y afirmar el valor de nuestras vidas al darle voz a esas experiencias subjetivas. La investigación en el ámbito de la discapacidad, si es emancipadora, puede desempeñar un papel clave en este aspecto (MORRIS, 2008: 323).

En este mismo sentido, resulta interesante el planteo de Ricoeur: la enfermedad puede ser pensada en vez de cómo un defecto otro modo

45

Carolina Ferrante

de ser en el mundo, y es por ello sujeto digno de respeto16. Sin dudas una lucha por este reconocimiento podrá darse en el cuestionamiento de aquello que se erige como cuerpo legítimo.

Bibliografía ABBERLEY, P. (2008). “El concepto de opresión y el desarrollo de una teoría social de la discapacidad”. En: Barton, L. (Comp.), Superar las barreras de la discapacidad. Madrid, Morata. BARNES, C. (1998). “Las teorías de la discapacidad y los orígenes de la opresión de las personas discapacitadas en la sociedad occidental”. En: Barton, Len (Comp.) Discapacidad y sociedad. Madrid, Morata/Fundación Paideia. BOURDIEU, P. (2000). La dominación masculina, Anagrama, Barcelona. --------------- (1999). Meditaciones pascalianas, Barcelona, Anagrama. --------------- (1996). Sobre la TV, Barcelona, Anagrama. --------------- (1991). El sentido práctico, Madrid, Taurus. CANGUILHEM, G. (1978). Lo normal y lo patológico, México, Siglo XXI editores. EPELE, M. (2002). “Scars, Harm and Pain. About Being Injected among Latina drug using women”. Journal of Ethnicity in Substance Abuse. Vol. 1, Nº 1: 47-69. New York, The Haworth Press. “Es por ello que para el individuo considerado sano es importante encontrar en el individuo discapacitado los recursos de convivencia, de simpatía, de vivir y de sufrir con, ligados expresamente al estar enfermo. Que aquellos que tienen buena salud reciban esta proposición de sentido de la enfermedad y que ello les ayuda a soportar, su propia mortalidad” (RICOEUR, 2008:182). 16

46

Un análisis sociológico de prácticas discriminatorias [...] categorías de lo normal y lo patológico

FERRANTE, C. y FERREIRA, M. A. V. (2007). “Cuerpo y habitus: el marco estructural de la experiencia de la discapacidad”. Revista Argentina de Sociología (en proceso de evaluación). -------------- (2008). “Cuerpo, discapacidad y trayectorias sociales: Dos estudios de casos comparados”. Revista de Antropología Experimental. Nº. 8, http://www.ujaen.es/huesped/rae/articulos2008/29ferrante08.pdf. FERREIRA, M. A. V. (2007). “Prácticas sociales, identidad y estratificación: tres vértices de un hecho social, la discapacidad”. Revista Intersticios, Vol. 1, Nº 2. http://www.intersticios.es/article/view/1084/854. --------------- (2008). “Una aproximación sociológica a la discapacidad desde el modelo social: apuntes caracteriológicos”. Revista Española de Investigaciones Sociológicas. Nº 124, Madrid. http://www.um.es/discatif/ TEORIA/REIS_discapacidad.pdf. --------------- (2009a). “Discapacidad, corporalidad y dominación: la lógica de las imposiciones clínicas”. XXVII Congreso ALAS, Buenos Aires. FERREIRA, M. A. V. y RODRÍGUEZ DÍAZ, S.(2009). “Desde la discapacidad hacia la diversidad funcional, un ejercicio de dis-normalización”. Revista Internacional de Sociología, (en prensa). FINKELSTEIN, V. (1980). Attitudes and Disabled People: Issues for Discusión. New York, World Rehabilitation Fund. FROMM, E. (1967). “Conciencia y sociedad industrial” en La sociedad industrial contemporánea, México, Siglo XXI. FOUCAULT, M. A. V. (2000). Los anormales. Buenos Aires, FCE. --------------- (2006). Historia de la locura en la época clásica. Buenos Aires, FCE.. GOFFMAN, E. (2001). Estigma. La identidad deteriorada, Buenos Aires, Amorrortu.

47

Carolina Ferrante

HANNA, W. J. y ROGOVSKY, B. (2008), “Mujeres con discapacidad. La suma de dos obstáculos”. En: Barton, L. (Comp.), Superar las barreras de la discapacidad. Madrid, Morata. HUGHES, B. y PATERSON, K. (2008). “El modelo social de discapacidad y la desaparición del cuerpo. Hacia una sociología del impedimento”. En: Superar las barreras de la discapacidad. Madrid, Morata. KIPEN, E., LIPSCHITZ, A. (2009). “Demasiado cuerpo”. En: Rosato, A., Angelino, M. A (Coord.) Discapacidad e ideología de la normalidad. Denaturalizar el déficit. Noveduc, Buenos Aires. LE BRETÓN, D. (2002). La sociología del cuerpo. Buenos Aires, Nueva Visión. MENENDEZ, E. (1990). Morir de alcohol. Saber y hegemonía médica. México, Alianza Editorial Mexicana. MERLEAU-PONTY, M. (1975). Fenomenología de la Percepción, Barcelona, Península. MONTERO-SIEBURTH, M. (2006). “La Auto etnografía como una Estrategia para la Transformación de la Homogeneidad a favor de la Diversidad Individual”. En: la Escuela Universidad de Massachussets-Boston. Instituto para el Estudio de Etnias y la Inmigración Universidad de Ámsterdam. http://www.uned.es/congreso-inter-educacion-intercultural/Grupo_ discusion_1/74.pdf. MORRIS, J. (2008). “Lo personal y lo político. Una perspectiva feminista sobre la investigación de la discapacidad física”. En: Barton, L. (Comp.), Superar las barreras de la discapacidad, Madrid, Morata. MUNCEY, T. (2005). “Doing autoethnography”. International Journal of Qualitative Methods. 4(3), acesso: http://www.ualberta.ca/~iiqm/ backissues/4_1/pdf/muncey.pdf OLIVER, M. (2008). “Políticas sociales y discapacidad. Algunas consideraciones teóricas”. En: Barton, L., Superar las barreras de la discapacidad. Madrid, Morata/ Fundación Paideia. 48

Un análisis sociológico de prácticas discriminatorias [...] categorías de lo normal y lo patológico

--------------- (1998). “Una sociología de la discapacidad o una sociología discapacitada” en Barton, L. (Comp.): Discapacidad y sociedad. Madrid, Morata/ Fundación Paideia. --------------- (1990). The Politics of Disablement. London, The MacMillan Press. PEDRAZA, P. (2009). El mito de Hefesto: la constitución ambivalente de la discapacidad en los orígenes de la cultura occidental. Mimeo. RICOEUR, P. (2008). “La diferencia entre lo normal y lo patológico como fuente de respeto” en Lo Justo 2. Estudios, lecturas y ejercicios de ética aplicada. Madrid, Trotta. SMITH, C. (2005). “Epistemological intimacy: A move to autoethnography”, International Journal of Qualitative Methods. Vol. 4, Nº. 2. Acessado em http://www.ualberta.ca/~iiqm/backissues/4_2/pdf/smith.pdf. TOBOSO MARTÍN, M. y GUZMÁN CASTILLO, F. (2010). “Cuerpos, capacidades, exigencias funcionales… y otros lechos de Procusto”. Política y Sociedad. Vol. 47, N°1. Madrid, Universidad Complutense de Madrid. VALLEJOS, I. (2009). “La categoría de normalidad. Una mirada sobre viejas y nuevas formas de disciplinamiento social” en Rosato, A. y Angelino, M. A. (Coords.), Discapacidad e ideología de la normalidad. Desnaturalizar el déficit. Buenos Aires, Noveduc. SARTRE, P. (1980). Bosquejo de una teoría de las emociones. Madrid, Alianza Editorial. SCRIBANO, A. (2005). “La fantasía colonial argentina” en www.rebelion. org en el “El reino del revés”. SCRIBANO, A. y DE SENA, A. (2009). “Construcción de Conocimiento en Latinoamérica: Algunas reflexiones desde la Auto-etnografía como estrategia de investigación”. En Cinta de Moebio, (en prensa).

49

Carolina Ferrante

WALL, S. (2006). An autoethnography on learning about autoethnography. International Journal of Qualitative Methods. Vol. 5, No. 2, acessado em http:// www.ualberta.ca/~iiqm/backissues/5_2/pdf/wall.pdf.

50

Corpos em Concerto: diferenças, desigualdades e desconformidades

REGRAS E CÓDIGOS DE CONDUTA MORAL E ÉTICA: um passeio pelo imaginário urbano e pelas vivências, reflexões e comparações sobre a noção de sujo de homens comuns de classe média no brasil urbano do século XXI Mauro Guilherme Pinheiro Koury

Introdução O principal objetivo deste artigo é o de levar o leitor para uma viagem no imaginário urbano brasileiro e nas vivências, reflexões e comparações emitidas pelos entrevistados no decorrer de uma pesquisa maior, em andamento, sobre “Medos Corriqueiros e Imaginário Urbano”17. O trabalho de campo durante o ano de 2009 foi acrescido de uma enquete sobre o que é sujo ou sujeira, aplicada nas cidades de João Pessoa (Paraíba), Recife (Pernambuco), Belém (Pará), São Paulo (São Paulo), Curitiba (Paraná), todas capitais de estados brasileiros, e Brasília (Distrito Federal). São os resultados desta enquete, no interior da supracitada pesquisa maior em andamento, do que trata este artigo. Este trabalho, portanto, busca compreender o imaginário social urbano do homem comum brasileiro contemporâneo através de uma discussão sobre o que é sujo ou sujeira. Apresenta as principais categorias emitidas sobre o que é considerado como sujo e discute a importância da categoria Sujeira para o entendimento do Brasil urbano atual.

Sujeira e Imaginário Urbano Um balanço da literatura sobre a importância da noção de sujo ou sujeira nas ciências sociais se faz necessário. Os significados do adjetivo “sujo”, encontrados em vários dicionários da língua portuguesa Pesquisa coordenada pelo autor, no GREM – Grupo de Pesquisa em Antropologia e Sociologia das Emoções, Universidade Federal da Paraíba, campus I, Brasil. 17

51

Mauro Guilherme Pinheiro Koury

(BUARQUE DE HOLANDA, 1980; 1992), vão dos sentidos da falta de limpeza à sordidez; de algo manchado a maculado; de algo ou alguém infeccionado ou contagiado até a referência a alguma coisa com muitas incorreções ou emendas. Dentro de um contexto físico, a noção de sujo ganha o significado de um horizonte brumoso e mal definido. Em termos figurativos, sujo tem o significado de algo ou alguém que encerram elementos, dados, informações inconvenientes ou prejudiciais; bem como sinaliza algo ou alguém indecente, indecoroso e imoral. Chega mesmo a afirmar alguma coisa ou pessoa indigna, desonesta, sórdida ou canalha. O emprego da palavra em evidência, no Brasil, ganha os sentidos de alguém desmoralizado e que perdeu o crédito, alguém em quem não se pode confiar. Contém ainda uma concepção relacional disposta nos ditados “rir-se o sujo do mal lavado” ou “rir-se o roto do esfarrapado”, onde se zomba de alguém por falha que também lhe é própria. Em muitos casos, inclusive, chega a comparar o sujo e a sujeira ao diabo, demonizando o outro e/ou a coisa considerados sujos. A ação de sujar, deste modo, tem o sentido de tornar ou tornar-se sujo e, ao assim fazer-se, emporcalhar. A ação de sujar não apenas atinge o próprio indivíduo, mas possibilita a contaminação espaço-temporal onde o ato se realizou, infectando ou poluindo o ambiente e o outro ao redor. O objeto, o indivíduo ou a instituição onde existe, ou possuidora de sujeira tornam-se não confiáveis, porque a sujeira comporta o elemento do impuro, da impureza, que corrompe o espaço, o tempo e as relações ao seu redor. Assim, corromper, perverter, depravar faz parte da ação do sujo, de alguém ou algo que comporta sujeira. Esta ação tende a manchar, a macular, a conspurcar, a profanar, em si, tudo o que se toca ou tudo o que se encontra no entorno. O simbolismo religioso está cheio da dualidade limpo-sujo, puroimpuro, como parte da trajetória do sagrado e os compromissos dos homens para com ele; a literatura médica, também, coloca na relação entre o puro e o impuro toda uma discussão sobre o contágio e a transmissão de doenças, criando regras e códigos de conduta que procuram barrar a contaminação do ambiente e dos outros por aqueles impuros ou tocados pela impureza em sua volta. As ciências sociais estudam estas 52

Regras e códigos de conduta moral e ética: um passeio [...] no Brasil urbano do século XXI

duas representações da dualidade limpo-sujo, mostrando a construção social e cultural por trás destas práticas; e demonstram a sujeira como elemento de estratificação social (DUMONT, 2007; DOUGLAS, 1976). Elas compreendem que as práticas sociais pressupõem regras e códigos de conduta morais e éticos, construídos por cada cultura ou sociedade determinada, e que essas práticas e etiquetas estão dispostas e hierarquizadas conforme uma possibilidade hegemônica de bem estar e harmonia social. Durkheim (2000), em seus estudos sobre o social e sua relação com a construção societária, coloca a religião e a questão do sagrado no palco central da constituição da racionalidade social primeva e de uma teoria do conhecimento, e acrescenta as disposições e cuidados com a saúde como extensão deste esforço de racionalidade. A razão social constituída, assim compreendida, leva a crer a religião como esforço humano e social para a compleição do indivíduo social e suas instituições. Colocando a religião como elemento primevo de uma explicação da relação do homem com a natureza e o sobrenatural ao seu redor, e o colocando no centro deste universo simbólico desenhado. Marcel Mauss (1974), em seus estudos, amplia o caráter simbólico da formação cultural e social e põe a sociedade como instância motriz da própria simbolização e da criação de um sistema de classificação social que lhe é próprio, em um jogo permanente entre os homens em relação entre si e os elementos que adotam nos avanços para a compreensão da natureza e o sobrenatural ao seu redor, e os resultados desta relação social corporificada como cultura. A cultura daí emergida funda e refunda as disposições erigidas através de um código de condutas morais e éticas, que visam a assegurar a harmonia, o bem estar e a sempre instável relação dos homens com os elementos da natureza e do sobrenatural ao seu redor. Criam códigos de pureza, de purificação, e separam em graus variados os diversos tipos de puros até o mais impuro e sujo existente. Pureza e sujeira, portanto, são dois elementos de uma mesma relação. Dispostos, porém, em campos hierárquicos opostos, encontrandose em eterna tensão pela possibilidade de um intervir no outro: na ação de purificar o contaminado, ou na ação de contaminação do puro. A ordem e a organização social estando no equilíbrio entre as duas esferas. 53

Mauro Guilherme Pinheiro Koury

A sujeira, assim, como contraponto da pureza, encontra-se no reino da desordem, da desorganização social. É elemento que conduz à ideia imaginária da evitação e do impedimento: do que deve ser evitado, impedido, visto, sentido; enfim, a sujeira é vista como algo do reino da feiúra, do abominável, e que deve ser impedido e excluído. O sujo é aquele que provoca medo, receio. O apenas olhar o sujo ou a sujeira provoca sentimento de nojo, de enjoo e receio de contaminação. A ideia de polução e seu corolário contágio traz em si o desejo simultâneo de contenção, controle e, até, extermínio. A sujeira e tudo o que é considerado sujo remete à evitação, seja pela busca de contenção, pela segregação, pelo isolamento, ou pelo extermínio e morte. O imaginário social causado pelo que é considerado sujo, deste modo, cria campos de entendimento e visão de mão dupla: de um lado, a visão preconceituosa, que vê o outro, o contaminado, como aquele que deve ser isolado ou excluído. De outro lado, a visão envergonhada, que compreende e enxerga o outro através de si mesmo, como consequência da falta de um atributo que também é seu, e que deve ser escondido do olhar de um terceiro, ou cujos meios para a sua superação devem ser procurados. Elias (1990 e 1993), em seus estudos sobre a conformação dos costumes na sociedade alemã a partir do século XVIII e, principalmente, XIX, demonstra as bases de atribuições de novos costumes e as formas como antigos costumes foram depreciados como sujos e sujeira, no processo de individualização crescente da sociedade alemã do período. Mostra, ainda, como esse processo se fez pela interiorização da disciplina e do aumento da vergonha, como movimentos de afirmação da pessoa e do julgamento moral de si próprio e dos demais. A sujeira vista através da vergonha, então, era sentida como problema pessoal de cada indivíduo, não apenas no olhar para si próprio, mas – e principalmente – no olhar para o outro. O controle social, desta forma, colocava-se entre o indivíduo e o outro, através da vergonha e da exposição. Tudo era permitido desde que em uma intimidade pessoal ou dentro de uma intimidade compartilhada, nunca pública. No público, a exposição de uma intimidade não condizente com o social e culturalmente desejado transformava-se em abjeção, em punição, em risco de contaminação, em desordem. 54

Regras e códigos de conduta moral e ética: um passeio [...] no Brasil urbano do século XXI

Sennett (1998) segue e amplia esta análise e coloca a individualidade resultante do crescimento da esfera da intimidade como um declínio acentuado na sociedade ocidental do homem público. O que provoca dois processos antagônicos e simultâneos: o aumento da vergonha de exposição em público e um aumento do controle da desordem e da contaminação proveniente das esferas do considerado sujeira; e um desenvolvimento enorme do reino das perversões, como possibilidade de ação pessoal ou compartilhada no consentido, e da curiosidade de verificação do outro, do íntimo através do buraco da fechadura. O abjeto passa, assim, por uma mão dupla: o medo da contaminação e a busca do controle sobre ele; e o olhar curioso, que busca flagrar o outro em situações constrangedoras, em ambientes íntimos. Ou ainda, ao mesmo tempo, fazendo condenar aqueles que ousam expor a si mesmos em público e, simultaneamente, exibem-se perante o pressentimento de que alguém disfarçadamente os observa. O público, deste modo, coloca-se como prisioneiro do privado e, como tal, fragmenta-se e é apropriado pelo espaço da intimidade: ampliando as bases do individualismo e subsumindo o sujeito à esfera do desejo e da ampliação do sentimento da vergonha, e da ação envergonhada sobre seus próprios atos e da própria sociedade que o cerca. Simmel, em seu texto A tragédia da cultura (1998), dá as bases teóricas iniciais que orientariam posteriormente as análises de Sennett (1998) e Elias (1990; 1993). Goffman (1967), perseguindo os caminhos inspirados na análise simmeliana, estuda os processos de interação ritual e apreende que as relações entre os indivíduos são executadas e preenchidas por um ritual de conveniências e convenções sociais, onde o um e o outro respondem aos sinais esperados no decorrer do processo interativo: desde a forma de sentar, os gestos, as expressões e ruídos corporais e da face, até o expresso através da fala fazem parte de uma ritualística que, se falha, causa no outro constrangimento, deste modo, simultaneamente, a constranger o outro da relação. A falha desorganiza e é considerada como algo que provoca sujeira, ou que suja o ambiente, podendo, em determinadas situações, contaminar a todos os presentes. 55

Mauro Guilherme Pinheiro Koury

O processo de desorganização social causado pelo constrangimento afeta as relações entre os parceiros da conversação, podendo o que falhou ser desculpado ou até ser expulso e evitado de novas possibilidades interativas. O ritual poluído indica situações de desordem que desorganiza todo o ambiente, quando não o contamina. Em outro estudo sobre o estigma, Goffman (1988) vai mais além e revela que essa desordem não só se coloca nas formas de comportamento e de expressão, mas também em situações onde o outro da relação possui algum traço que o diferencia negativamente do parceiro ou dos parceiros da relação. Ele cita exemplos que vão do uso de óculos com um grau elevado para correção de miopia até a presença de sinais e marcas corporais: de uma simples pinta inconveniente em uma parte exposta do corpo do parceiro até um diferencial ligado a questões étnicas, posturas ou má-formação. Em outros exemplos, ele coloca aspectos mais diretamente ligados a costumes e moda: como o fato de não estar vestido de forma condizente, e o de não possuir vocabulário harmônico com o ambiente em que se encontra. Em mais outros exemplos, fala diretamente de aspectos sociais ligados à esfera econômica, como ser pobre ou aparentar pobreza, ou como ser de classe social considerada inferior à do ambiente em que se encontra, entre outros. O constrangimento podendo mesmo transformar o ambiente em um meio hostil, pondo fim à relação encetada, chegando a conduzir à promoção do isolamento ou à expulsão do constrangedor; ou, mesmo, concedendo formato de humilhação àquele que constrangeu o ambiente com o seu diferencial, servindo aquele de chacota e piadas entre os pares. A sujeira e a convivência com o sujo provocam um sentimento moral de rejeição que, se levado a extremo, conduz à busca de exclusão ou de extermínio do agente contaminador, ou provoca vergonha sobre o ambiente que o recebeu. Do mesmo modo, no indivíduo possuidor de algo considerado diferente e visto como desagradável ao ambiente em que se encontra, é provocado um sentimento de humilhação, de acovardamento, de vergonha pessoal por ser possuidor de algo que constrange o outro, ou por não se encontrar à altura do outro, ou dos outros, da relação. Assim, este 56

Regras e códigos de conduta moral e ética: um passeio [...] no Brasil urbano do século XXI

indivíduo vive em permanente culpa por não ser igual, e sua baixa estima o faz sentir-se inferior. Simone Weil (1979) - em seus estudos sobre a opressão e a condição operária - relata, em seu diário, o processo de vergonha e baixa estima que acompanha o ato cotidiano da pobreza operária. Relata a vergonha e a culpa sentida por ela, quando, ao sair da fábrica, depois de um dia extenuante de trabalho, senta-se em um ônibus para voltar para sua casa. Ela fala do sentimento de aversão à sua condição, que possivelmente iria causar no outro usuário, interiorizado, e se pergunta se ela tem o direito, mesmo pagando pelo transporte público, de sentar-se e sujar com sua pobreza e cansaço o ambiente do ônibus. Esse estado-limite de emoção demonstra como o sentir-se impuro, sujo, indigno, incapaz, diferente, advoga ao espírito de quem assim se sente, e dá o direito, àqueles que assim o consideram, da atribuição de um estigma social. Deste modo, desenvolve-se um conceito moral socialmente produzido que objetiva algo ou alguém que não é limpo, em todas as acepções. Lévi-Strauss (1970, pp. 107 a 164), analisando o mito “a viagem de canoa da lua e do sol”, na série: Mitológicas – A origem dos modos à mesa, diferencia a sujeira em três tipos: a sujeira no sentido próprio (representada por excrementos, bichos peçonhentos, inabilidades e falta de aproveitamento pessoal, falta de higiene etc.); a sujeira no sentido metafórico ou figurada (vergonha da condição pessoal, feiúra, velhice, entre outros aspectos) e a sujeira metonímica (no sentido de que eles, os outros, a produzem e, portanto, podendo ser nominada como um tropo onde o que ou quem produz sujeira pode ser designado como a própria sujeira; no caso do mito analisado, os urubus). Essa diferenciação metodológica é importante nos estudos da polução, pois ajuda a compreender a separação da sujeira em si das formas de assimilação cultural e simbólica do que é sujo, e dos sentimentos que envolvem os personagens na cena social: os que se sentem sujos, os que são tocados pela sujeira e podem ser contaminados e a própria nominação do sujo, como apropriação do universo por ele desorganizado para designar a própria sujeira e, assim, objetificar um preconceito ou estigma social. 57

Mauro Guilherme Pinheiro Koury

Em alguns estudos realizados por acadêmicos brasileiros, como os de Barbosa (2006) e de Fleischer (2002), que trabalham com o imaginário sobre a sujeira no Brasil contemporâneo e entre as housecleanners brasileiras nos Estados Unidos, por sua vez, a diferenciação metodológica do sujo é feita entre a sujeira física e a sujeira simbólica. A sujeira física tendo, em si, o próprio significado do que é considerado impuro, e a sujeira simbólica representando o imaginário social sobre o considerado impuro (sujeira física) e as formas de controle cultural e social sobre ele. Neste universo trazido por Barbosa e Fleischer, balizados nos estudos de Mary Douglas (1976 e 2005), da sujeira como algo fora do lugar, a questão da ordem é vista como não apenas a organização da desordem provocada pela sujeira (física), mas no seu combate permanente. Este mesmo sentido de diferenciação é trazido à tona no estudo de Caldeira (2000), ao estudar o sentimento de medo e a fragmentação dos laços sociais na cidade de São Paulo. Para ela, baseada nos estudos sobre pureza e polução de Mary Douglas, é “a clareza das categorias que permite o controle do perigo e a manutenção da ordem social” (p. 41). Adrian Forty (2007), ao estudar os objetos de desejo na sociedade ocidental desde o ano de 1750, também se baseia em Mary Douglas para discutir a arquitetura, o designer e o conceito de limpeza, e a imagem da higiene das formas. Diz que, principalmente, a partir do século XIX, o conceito de limpeza ocuparia um lugar significativo na obra de muitos designers, chegando mesmo a ser confundido com o conceito de ordem e beleza. A sujeira é, então, definida por ele, também com base em Douglas (1976), como “matéria fora do lugar: o sujo é o rótulo que atribuímos ao que percebemos como desordem, estado muitas vezes considerado ameaçador” (FORTY, 2007, p. 217). Segundo Forty (2007, p. 221), nas campanhas para a melhoria dos padrões de limpeza foram utilizados pelos reformadores e higienistas dois tipos de argumentos. Estes dois argumentos influenciavam um ao outro de forma concomitante, produzindo um imaginário social propício para uma sociabilidade em que a vigilância constante de si e do outro era o lema de sua própria existência e sentido (FOUCAULT, 1986). O primeiro tipo de argumentos recorria à razão e se baseava em critérios científicos, como foi o caso da ordem médica e os perigos de 58

Regras e códigos de conduta moral e ética: um passeio [...] no Brasil urbano do século XXI

contaminação causados pela falta de higiene e doença. Este primeiro tipo de argumento atingiria a arquitetura e as formas criadas por designers, em ambientes claros, de formas precisas, que exalassem funcionalidade e asseio, bem como um conjunto de ordens médicas e sociais de controle do impuro: ampliação de vias públicas; disciplinamento das casas; combate à doença e a insalubridade; desqualificação do saber popular sobre higiene e saúde; criação de espaços exclusivos para os mortos: os cemitérios; comparação da pobreza à sujeira e delinquência; criação de asilos de mendicância, entre outros18. O segundo tipo de argumento era, sobretudo, de ordem emotiva, e estimulava os sentimentos de ansiedade e culpa em relação à sujeira. A dimensão da desordem social é igualada à sujeira, e os esforços para combatê-la considerados como possíveis ajudas para unificar a experiência. “Só exagerando a diferença entre dentro e fora, acima e abaixo, macho e fêmea, a favor e contra, é que uma aparência de ordem é criada” (DOUGLAS, 1976, p. 4). Para Mary Douglas (1976, p. 5), portanto, rejeitar a sujeira equivale a rejeitar a ambiguidade, a anomalia e a desordem dentro de um contexto de uma ordem social e cultural específica: “a reflexão sobre sujeira envolve [sempre uma] reflexão sobre a relação entre ordem e desordem, ser e não ser, forma e ausência de forma, vida e morte”. Vernant (2002, p. 281), resenhando Mary Douglas, acrescenta que “é sujo o que só pode ser pensado como anomalia, aquilo cujo estatuto aparece como ambíguo, marginal e que questiona, por não ser integrado, a ordem da qual o grupo é solidário e cuja perpetuação deseja garantir”. Desta forma, a sujeira, e tudo o que representa o negativo e o outro com relação a um sistema de organização social e cultural, deve ser enfrentado com vistas à reconfiguração da ordem social. A sujeira também pode vir a ser integrada, - quando submetida a uma adaptação e uma acomodação dos preconceitos culturais existentes sobre ela; neste formato é remetida à ordem social como nova forma de expressão do olhar sobre o real. No movimento fotográfico dos anos de 1920, alguns aspectos da feiúra, do abominável, do que causava asco e Para uma visão de autores que trabalharam com essas questões ver, entre outros, Thompson (1989); Áries (1989); Davis (1990); Foucault, (1986 e 2007), entre outros. No Brasil ver os estudos de Koury (1986 e 2003); Diniz (2001); Reis (1991); Sá (1999), David (1995), entre outros. 18

59

Mauro Guilherme Pinheiro Koury

aversão, foram reconfigurados sob uma nova estética que os transformava em beleza. O feio é belo. A diferença marca, então, o elogio do plural (SONTAG, 1977; KOURY, 1998). Satisfaz a reflexão de que as coisas e as pessoas nunca são sujas em si, mas tornam-se sujas quando ocupam lugar que contradiz o sistema de classificação social determinado, nos quadros de uma cultura e de uma sociabilidade dadas. Toda análise e indagação que se debrucem sobre a sujeira, desta forma, têm por base uma reflexão das relações entre a ordem e a desordem e das relações possíveis entre os aspectos positivos e negativos dos processos de criação social. Processos que envolvem o binômio limpo e sujo, puro e impuro, os silêncios ou silenciamentos, e os discursos mortos e esquecidos ou subsumidos na lógica hegemônica social (KRISTEVA, 1986), que podem ampliar conceitos, revisá-los e integrá-los à ordem, em uma subversão de identidade, onde se acomoda a outrora desordem à lógica contemporânea da ordem. Estudar o comportamento e o imaginário social urbano do brasileiro atual sobre sujeira, deste modo, leva à reflexão e à busca de compreensão sobre as mudanças no comportamento e nos costumes dos homens comuns, moradores das grandes cidades brasileiras, e dos medos e receios por eles enfrentados na cotidianidade.

Informações básicas sobre a pesquisa Durante o primeiro semestre de 2009 foi realizada uma enquete em cinco capitais de estados brasileiros (João Pessoa, Recife, Belém, São Paulo, Curitiba) e no Distrito Federal com o objetivo de saber qual o imaginário urbano sobre sujeira e o que é sujo no Brasil de hoje. A aplicação dos questionários para o desenvolvimento desta enquete se deu durante o trabalho de campo para a coleta de dados para uma pesquisa maior, intitulada Medos corriqueiros e Sociabilidade urbana no Brasil19, sob a coordenação do autor. A questão de “o que é sujo” relacionado com “o que é medo” apareceu várias vezes em entrevistas Para resultados relativos à pesquisa Medos corriqueiros e sociabilidade urbana no Brasil, ver, entre outros trabalhos: Koury (2005, 2006, 2007 e 2008). 19

60

Regras e códigos de conduta moral e ética: um passeio [...] no Brasil urbano do século XXI

realizadas na primeira e segunda fases da pesquisa Medos Corriqueiros, chamando a atenção do autor. Daí haver aproveitado um momento de treinamento e aproximação com os locais onde a nova fase da pesquisa se daria para trabalhar a problemática do que é sujeira para os habitantes urbanos de seis capitais de estados do Brasil. Uma enquete nada mais é do que uma fotografia de um momento determinado, um instantâneo das inquietações dos entrevistados na ocasião em que foram abordados e concederam a entrevista. Assim, reflete apenas um momento, um estado de espírito dos acontecimentos e situações que interferem nas suas vidas em um tempo-espaço específico; o que pode mudar, se a mesma enquete for aplicada em outro dia, mês ou ano. Esta indicação é importante para enfatizar o aspecto superficial para o conhecimento científico de uma enquete e, também, para indicar que fotografias de momentos, se aplicadas em vários períodos de tempo nos mesmos espaços, podem ser comparadas e podem indicar conjuntos de inquietações identificadoras de um perfil comportamental de uma comunidade ou de uma nação. Daí sua significância para a pesquisa social. Mesmo que uma enquete seja aplicada apenas em um tempoespaço, a fotografia revelada através das respostas dos entrevistados fornece ao pesquisador subsídios importantes para a compreensão de hábitos, costumes, anseios, problemas e inquietações de uma população dada, que podem servir para a ilustração de fenômenos, mesmo que flutuantes, já que compõe apenas um instantâneo, na análise social. Portanto, a fotografia conseguida pela enquete do país, através de uma amostragem em seis capitais, permite indicadores analíticos em termos da cultura política, dos medos, receios e anseios, dos costumes, a partir das informações obtidas dos entrevistados, tornando possível ao pesquisador levar o leitor a um passeio sobre o imaginário brasileiro urbano nacional. Permite, também, revelar ao leitor as vivências, reflexões e comparações emitidas pelos entrevistados da enquete, acionadas por uma temática específica: no caso a enquete proposta pelo autor, sobre “o que é sujeira, ou sujo” para o entrevistado.

61

Mauro Guilherme Pinheiro Koury

Uma breve análise das categorias encontradas nas falas dos entrevistados

Foram entrevistadas 390 pessoas de ambos os sexos, com idade mínima de 15 anos, no conjunto das seis cidades trabalhadas, sendo 90 entrevistados para a cidade de São Paulo e 60 para as demais cidades da amostra. A abordagem foi feita de forma aleatória, em pontos de grande movimento ou aglomerações de pessoas, em diversos locais de cada cidade pesquisada. As pessoas que se dispuseram a conceder a entrevista ao pesquisador foram colocadas frente a duas questões básicas: “o que é sujo ou sujeira?” e “o que indica como sujo ou sujeira?”. As respostas a estas questões foram tabuladas e agrupadas em 12 grandes categorias analíticas: Falta de Higiene, Fluidos, Imoralidade, Falta de Confiança, Gente Fraca, Preconceito Étnico, Mendicância (Gente Pobre e Suja), Homossexualidade, Falta de Consciência Ecológica, Violência Urbana, Desrespeito ao Cidadão e Falta de Zelo com a Coisa Pública. Estas categorias ajudaram o pesquisador a perceber as grandes temáticas indicadas pelos entrevistados dentro de uma perspectiva de cada cidade pesquisada e sua comparação, fornecendo um mapa do imaginário sobre o que é sujeira ou sujo para o homem comum urbano brasileiro. Para a análise deste trabalho, estas 12 grandes categorias encontradas nas falas dos entrevistados foram sintetizadas em quatro: a categoria de Moralidade (que engloba as categorias de falta de higiene, fluidos, imoralidade, falta de confiança e gente fraca); a categoria de Preconceitos (que engloba as categorias de homossexualidade, etnia e mendicância, gente pobre e gente suja); a categoria de Violência Urbana; e, por fim, a categoria de Ética, política e cidadania. Interessa, aqui, apenas apresentar as categorias indicadas, tendo em vista a discussão feita acima sobre sujeira e sociabilidade. Não interessa, contudo, no âmbito deste artigo, trabalhar a questão no âmbito de gênero, nem de faixa etária ou econômica. Privilegiar-se-ão, sobremodo, as respostas dadas pelos informantes, de uma forma geral, na medida em que se quer entender o homem comum brasileiro e o seu pensamento imaginário sobre a questão da sujeira e do sujo, independentemente do cruzamento por sexo, 62

Regras e códigos de conduta moral e ética: um passeio [...] no Brasil urbano do século XXI

idade, escolaridade, renda ou religião; mesmo sabendo dos perigos que se corre na utilização de generalizações que poderiam ser aprofundadas pelas categorizações dos agentes das informações: os entrevistados. A categoria de Moralidade QUADRO I – A Categoria Moralidade - % Moralidade

João Pessoa Recife Belém São Paulo Curitiba Brasília Brasil

Falta de Higiene

16,7

11,7

10,0

8,9

23,3

13,3

13,6

Fluidos

13,3

3,3

5,0

4,4

15,0

6,7

7,7

Imoralidade

11,6

5,0

6,7

3,3

-

5,0

5,1

Falta de Confiança

8,3

5,0

8,3

4,4

11,7

-

6,2

Gente Fraca

5,0

1,6

1,6

-

-

-

1,3

Total

54,9

26,6

31,6

21,0

50,0

25,0

33,9

Como pode ser visto no Quadro I, acima, esta categoria engloba o maior numero de indicações dos entrevistados sobre o que eles afirmaram por sujeira. Dos 390 entrevistados no Brasil, 33,9% significaram a sujeira através de uma categoria que remete diretamente para o campo simbólico do puro-impuro, da limpeza-sujeira. Dualidades que operam com um conjunto de classificações sociais que remetem o sujo à desordem, à desorganização, à mentira e à perversão. As subcategorias que compõem a categoria de Moralidade podem ser divididas em dois grupos de situações. O primeiro dizendo respeito à sujeira física do corpo e do ambiente, onde se encontram a falta de higiene e os fluidos (escarros, excrementos, saliva, sangue, urina, lágrimas, cheiros etc.); e o segundo, que diz diretamente da questão do caráter, e encontra-se presente entre as perversões, a fraqueza pessoal, a preguiça, o cansaço, a falta de vontade, e a falta de confiança: traição, mentira, desonestidade etc. Ao se olhar a categoria de Moralidade, vê-se que ela corresponde a 33,9% da resposta dos brasileiros e varia de acordo com a cidade pesquisada: chega a 54,9% em João Pessoa e 50% em Curitiba, descendo para 31,6% na cidade de Belém, 26,6% em Recife, 25% em Brasília e 21% em São Paulo. O apontar como sujeira esses aspectos morais, associados à questão 63

Mauro Guilherme Pinheiro Koury

da falta de educação e da conformação do caráter, parece demonstrar uma preocupação com a desordem inerente à própria subjetividade que cada subconceito emite: os riscos com a saúde, provocados pela falta de higiene doméstica e da cidade, e a possibilidade de transmissão de vírus pela falta de cuidados básicos são receios emitidos e são exemplos desse processo; assim como, como lembra Rebouças (2000), a desordem causada pela sujeira, como falta de ordenação, causando desequilíbrio nos indivíduos em relação e no todo social. Do mesmo modo que o elemento de sujeira, apontado nos atos obscenos e na sociedade que não põe limite à exposição dos corpos e das perversões, fala da desordem e dos perigos inerentes a se viver em uma época onde “o respeito aos costumes e às tradições, ao bom comportamento e à família não mais existem”, como argumentou uma entrevistada. Esta categoria, com suas subcategorias, assim, parece apontar para a análise de Elias (1990 e 1993) sobre a autodisciplina e a vergonha causada pela desordem do outro, porque reflete a sua própria indisciplina e da sua cultura; e de Sennett (1998) e Giddens (2004), que direcionam o olhar para o declínio do público e a ascensão da intimidade. E uma e outra levam na direção de alguma coisa fora do lugar, no sentido dado por Mary Douglas (1976), que incomoda e que causa vexame, que enoja e causa vergonha e receio de contaminação. Os elementos físicos da sujeira, presentes nas subcategorias da categoria Moralidade, por outro lado, parecem direcionar a reflexão dos entrevistados para a dimensão metonímica da sujeira sugerida por LéviStrauss (1970), apontando aqueles que a cometem como porcos, como imundos e, na direção da perversão, de amorais e permissivos; são eles quem a produzem, são eles os sujos, os que causam sujeira e poluem o ambiente, contaminando o ambiente ao redor e, pior, envergonhando e contagiando a todos, pois a sujeira, nesse momento, passa a ser representada na sua dimensão simbólica e generalizante; é a sociedade permissiva que fecha os olhos à falta de educação e à quebra dos laços da tradição, ocasionando uma fragmentação que atinge a todos: a sujeira produzida emporcalha não só quem a produziu ou consentiu, mas a todos. Esse corromper simbólico, que contamina o social, parece produzir um sentimento de impotência em cada indivíduo presente, o que aumenta 64

Regras e códigos de conduta moral e ética: um passeio [...] no Brasil urbano do século XXI

o receio de contaminação e o medo de relacionar-se, ocasionando um sentimento de reserva pessoal e a ampliação do isolamento pessoal ou familiar, ao mesmo tempo em que provoca o crescimento de uma aversão sobre aqueles causadores da sujeira. O nojo incitado parece ser pertinente a emoções, comportamentos ou impressões que causam vergonha e pudor: as funções de excreção e sexuais do corpo humano (CONY, 2005, p. 52). A indicação da categoria Moralidade como sujeira traz em si uma espécie de reação que condena qualquer pessoa, qualquer objeto ou qualquer ideia que seja capaz de confundir ou contradizer as classificações tidas como ideais e colocadas, pelos entrevistados, no plano de um passado fantasiado como melhor, mas perdido e sem retorno. Reflexão esta que encaminha a análise para a segunda categoria: a dos Preconceitos. A Categoria Preconceito Quadro II – A Categoria Preconceito - % Preconceito Homossexualidade Mendicância, Gente pobre, gente suja Preconceito Étnico Total

João Pessoa Recife Belém São Paulo Curitiba Brasília Brasil 6,7

6,7

13,3

5,6

1,7

5,0

6,4

10,0

11,7

6,7

10,0

6,7

11,7

9,5

-

-

-

3,3

3,3

-

1,3

16,7

18,4

20,0

18,9

11,7

16,7

17,2

A categoria Preconceito agrupa três subcategorias analíticas que dizem respeito à questão da homossexualidade, da pobreza e do preconceito étnico. Ela traz a indicação de 17,2% dos brasileiros, que a veem como sujeira. É uma categoria que permanece uniforme nas indicações em cada cidade pesquisada, como pode ser visto no Quadro II. Exceto o preconceito étnico, apontado apenas por duas capitais, São Paulo e Curitiba, as outras duas outras subcategorias possuem variação mínima entre as cidades, com ressalva da cidade de Belém para a subcategoria Homossexualidade, que aparece com um índice de 13,3%, diferenciandose dos apresentados nas demais cidades. 65

Mauro Guilherme Pinheiro Koury

A categoria Preconceito revela a formação de estigmas sociais graves segundo os quais os outros da relação encontram-se fora dos padrões classificatórios da cultura de que fazem parte. Dentro de uma relação sujeira-limpeza, puro-impuro, estes estigmas se constituem em marcas que procuram naturalizar e impor modos de agir e posturas sociais e culturais através dos quais fabrica o outro da relação como alguém fora do lugar, como um desclassificado social, como um ser de segunda categoria, ou mesmo, nas formas mais radicais de comportamento, como um não ser. No caso da homossexualidade, a aversão aos que a praticam é vista através da desordem causada no sistema classificatório macho-fêmea, causando ansiedades. Estas estigmatizações aparecem quando as fronteiras externas de uma dada cultura, ou quando as linhas que delineiam as relações internas de uma sociabilidade, são ameaçadas. O medo do perigo das situações que não se encaixam nos sistemas classificatórios ideais parece pôr a pessoa em constante tensão e medo, daí a tendência a isolar o elemento da desordem e impor a ele atributos de demonização, como produto de forças malignas, impondo uma eterna vigilância. Em uma sociedade carnavalizada como a brasileira, os espaços de identificação da hierarquia macho-fêmea se fazem sentir no crescimento da homofobia, mas, ao mesmo tempo, parece haver relativa tolerância ao macho (hetero) que se veste de mulher em momentos festivos; bem como com relação ao lado festivo das bichinhas20, claro, “desde que elas se coloquem no seu lugar”, como afirmou um entrevistado, isto é, em uma espécie de limbo onde não reivindiquem inclusão social, nem busquem quebrar os limites classificatórios do entendimento do gênero. “Elas lá e nós cá”, afirmou outro entrevistado, que diz, inclusive, que gosta de ver “as bichinhas desfilarem em frente do meu ponto de ônibus, quando volto para casa no final do expediente”. Ou, como afirma outro entrevistado: Gosto de ver essa viadagem na televisão, imitando cantoras, sorridentes, umas verdadeiras artistas... Acho mesmo que é lá, do outro lado do vidro da televisão, que Bichinha, viadagem são termos muito usados no vocabulário popular brasileiro para designar o homossexual masculino, individual ou em grupo. Vários entrevistados usaram os termos na busca de desqualificar o ser humano homossexual e reclassificá-lo sob a ótica do pejorativo. 20

66

Regras e códigos de conduta moral e ética: um passeio [...] no Brasil urbano do século XXI

elas deveriam permanecer, como artistas inatingíveis, deusas. Mas isso não acontece. Elas são homens, e como tal ameaçam a nossa própria integridade moral.

A essa altura, o discurso muda para o preconceito e aversão mais aguda, simbolizando o lado diabólico do homem-mulher e a desordem provocada por essa desorganização. A maior parte dos que informaram a homossexualidade como sujeira, porém, advogam o isolamento e a rejeição total daquele que se desvirtua. Na cidade de Belém, várias mulheres e homens chegaram a aplaudir mães e pais de família que, ao descobrirem a tendência dos seus filhos para a homossexualidade, os expulsarem de casa. Em João Pessoa e São Paulo muitos creditam a desordem provocada pela homossexualidade aos males contemporâneos, entre eles, a AIDS é apontada como produto gay, bem como a degeneração dos costumes sociais em que vive o Brasil atual. A questão do preconceito étnico, por outro lado, só apareceu diretamente e de forma irrisória em duas capitais pesquisadas, as cidades de São Paulo e de Curitiba, ambas com 3,3% das indicações dos entrevistados. Nas duas cidades, embora os negros apareçam como a indicação mais precisa, chineses (coreanos), árabes, judeus e ciganos surgem também como indicações de estigmas sociais e são motivos de chacotas. Judeus e árabes aparecem como agiotas e ladrões no imaginário dos entrevistados que o afirmaram como sujos, os chineses e coreanos aparecem como contrabandistas, e os ciganos como marginais em potencial. São vistos como elementos de desordem e perigo, principalmente se além de problemas étnicos apresentarem a questão da pobreza em seu currículo. Se ricos, ou de classe média alta, a questão da etnia deixa de ser significativa, passando a haver certa tolerância em aceitar a diferença no ambiente social e mesmo familiar. A subcategoria Pobreza, assim, funda o grande hiato entre os brasileiros. Esta subcategoria presente na categoria Preconceito aparece, no imaginário dos entrevistados, ligada ao estigma de classe. São os pobres, os mendigos, considerados sujos, sem educação, sem acesso aos códigos de higiene e que enfeiam e sujam a cidade. São ameaçadores em si, vistos 67

Mauro Guilherme Pinheiro Koury

como marginais e ladrões, que provocam medo e receio na população. São vistos como drogados, maltrapilhos, que surgem de repente nos sinais de trânsito de cada cidade pedindo dinheiro ou assaltando. São não confiáveis, abjetos, elementos estranhos estabelecidos pela extrusão e que devem ser mantidos sob rígido controle social para que não avancem sobre o organizado e ameacem os cidadãos. Sim, a pobreza não é vista pelos entrevistados através do conceito de cidadania, mas, ao contrário, como elemento da desordem e da fragmentação social. Ou, como afirmou um entrevistado: [...] vejo um maltrapilho na rua e fico trêmulo, confuso, com medo. Se houver um canto que eu possa atravessar, eu sigo, mesmo que aumente o caminho, pois me sinto mais seguro por não passar frente a ele... Eu tenho pena das crianças, mas é uma pena de uma criança geral, não aquela que está ali, com um vidro de cola, drogado, na minha frente. Dessa eu corro, como corro do seu pai, da sua mãe, de quem lá que seja... Acho que o governo deveria achar um jeito de por essa gente sob controle, pois vai chegar o dia em que essa gente vai nos por sob controle, o controle do medo. Como já existe por aqui... é só olhar em volta e ver; é só olhar os jornais e vê....

Ao ser vista como bandida, através da ótica do medo de que “vai chegar o dia em que essa gente vai nos por sob controle...”, a pobreza urbana é estranhada, e sobre ela paira o desejo dos cidadãos de que seja retirada do corpo social, afastando o perigo que ameaça o entrevistado, sua família e a sociedade em geral. A categoria Violência Urbana QUADRO III – A Categoria Violência Urbana - % Violência Urbana

João Pessoa Recife Belém São Paulo Curitiba Brasília Brasil

Violência Urbana

5,0

11,7

10,0

39,0

20,0

23,3

19,7

Total

5,0

11,7

10,0

39,0

20,0

23,3

19,7

Esta categoria está associada à pobreza urbana e a sua demonização, situação em que pobres e mendigos são vistos como sujos, como bandidos 68

Regras e códigos de conduta moral e ética: um passeio [...] no Brasil urbano do século XXI

em potencial. Ela responde por 19,7% dos brasileiros que a indicaram como sujeira (Quadro III). O medo da violência e sua associação com a pobreza, porém, varia para cada cidade pesquisada em particular. Assim, na cidade de João Pessoa apenas 5% dos entrevistados indicaram a violência urbana como algo sujo e que lhes incomodava; na cidade de Belém, por seu turno, o índice é de 10%; na cidade do Recife, apesar de a cidade ser considerada pela mídia e pelas estatísticas nacionais como uma das cidades mais violentas do país, o índice de indicação dos entrevistados é de 11,7%. Em Brasília e Curitiba, as indicações da violência como algo sujo e que amedronta e intimida os entrevistados sobem para 23,3% e 20% respectivamente; a cidade de São Paulo, por sua vez, apresenta o índice de 39% e detém o maior índice de indicações da violência urbana como algo sujo, que assusta os informantes. Muitos dos entrevistados são claros na relação que estabelecem entre pobreza e violência, e no medo e sentimento de insegurança permanente que apresentam, mesmo no interior de suas casas. Uma entrevistada da cidade de São Paulo, por exemplo, fala do pânico diário de sair de casa, depois que “fui encurralada no meio de um tiroteio entre polícia e moradores da favela próximos” a sua residência. Um entrevistado de Brasília informa sobre os sequestros-relâmpago que assolam a cidade, “onde qualquer um pode ser vítima, e se não tiver dinheiro, pior, bau, bau, é morte certa”. Uma respondente de Curitiba, por seu turno, fala dos assaltos nos pontos de ônibus e nos parques da cidade, que a fazem ter medo de se deslocar; ela afirma que “se eu não tivesse que trabalhar vivia trancada em casa, sem sair para nada. Pedia tudo por telefone ou internet”. Um entrevistado de Recife fala que “nunca fui assaltado, mas morro de medo de que isso aconteça”, e conta que o vizinho ao lado de sua casa teve um revólver apontado para a sua cabeça na hora em que abria a garagem e que, por sorte, só lhe foi tirado apenas o carro. Um respondente de Belém fala da insegurança de viver na cidade, com assaltos constantes e arrastões. Um entrevistado de João Pessoa fala do gasto com a segurança que vem tendo nesses últimos anos. Informa que o bairro em que mora, Cabo Branco, transformou-se de um bairro pacato, onde todos se conheciam, para um lugar perigoso, onde os moradores têm medo de sair de suas casas; contou-nos que vive trancado, com muros altíssimos, cheio de grades e apetrechos de segurança: “Vivo numa prisão”, informa, 69

Mauro Guilherme Pinheiro Koury

“com medo até de botar o nariz pra fora de casa”. Todos os depoimentos relatam o medo generalizado, reforçando a ideia de “separação, purificação, demarcação e punição das transgressões” (DOUGLAS, 1976, p. 4), e dos transgressores como pobres e bandidos, em uma correlação onde um e outro se misturam e tornam-se um todo homogêneo e indiferenciado, como categorias excluídas da estrutura formal do poder e consideradas sujas, poluidoras e ameaçadoras. A associação entre pobreza e crime acompanha as sociedades ocidentais de longa data. No Brasil, desde o final do século XIX, com o final da escravidão, a necessidade de conter um contingente de trabalhadores livres, em número crescente, que aportavam nas cidades, levou a todo um processo de formação de leis que objetivavam a disciplina e o controle social, moral e higiênico das classes trabalhadoras. Novos controles prisionais, orfanatos, abrigos de mendicância, registros profissionais como controle e garantia do pobre trabalhador, entre outras formas de contenção, são produtos desta fase de consolidação do capitalismo no ocidente e no país. No século XXI, esta associação tem provocado novas formas de reconfigurações sociais nas cidades. Caldeira (2000), por exemplo, estuda as transformações ocorridas na cidade de São Paulo nas duas últimas décadas do século XX, apontando para a crescente fragmentação dos laços sociais entre cidadãos e pobres. Pobres, aqui, considerados como o outro, como o fora de lugar na ordem classificatória social, a não ser como um não ser, via desordem, isto é, como bandidos em potencial. Sonia Ferraz (2001), em um trabalho sobre as formas de morar nas cidades brasileiras neste início do século XXI, analisa a intensificação do medo generalizado de morar nas cidades e a arquitetura resultante da relação entre violência e pobreza. Para ela, o estreitamento da relação homem pobre e violência urbana é um fato construído diariamente pela mídia e que vem sendo capaz de produzir a sensação crescente de insegurança e medo das elites em relação à pobreza, contribuindo para uma maior segregação social e física e para o crescimento do mercado de proteção. Marcelo Souza (2008), discutindo a relação entre medo e cidade, e tendo como referência as grandes cidades brasileiras, fala sobre o 70

Regras e códigos de conduta moral e ética: um passeio [...] no Brasil urbano do século XXI

sentimento de insegurança que parece cada vez mais compor o cenário das cidades brasileiras, como se estivesse presente em todo lugar, a qualquer momento. Afirma que esse sentimento crescente e generalizado de insegurança toma conta de todos os habitantes urbanos. E, deste modo, é: [...] como se a ‘geografia do medo’... muitas vezes parece deslocar-se em parte da incidência objetiva dos crimes violentos, [e] se superpusesse à ‘geografia da violência’... [provocando] um medo generalizado... matizado de acordo com a classe, a cor de pele, a faixa etária, o sexo e o local de residência, [que] toma conta de corações e mentes (SOUZA, 2008, p. 54).

Tal medo generalizado atua recondicionando hábitos de deslocamento e lazer, influenciando formas de moradia e modelando discursos-padrão sobre a violência urbana, que reascende, amplia e consolida o próprio medo no íntimo de cada habitante em toda a cidade. A categoria Ética, Política e Cidadania Quadro IV – A Categoria Ética, Política e Cidadania - % Ética, Política e João Pessoa Recife Belém São Paulo Curitiba Brasília Brasil Cidadania Desrespeito ao 6,7 23,3 11,7 10,0 8,3 10,0 11,5 Cidadão Falta de Zelo com 16,7 15,0 16,7 11,1 8,3 25 15,1 a coisa pública Falta de Consciência 5,0 10,0 1,7 2,6 Ecológica Total

23,4

43,3

38,4

21,1

18,3

35,0

29,2

Esta categoria foi a que mais chamou a atenção do pesquisador pelo grande número de respondentes que afirmaram a política brasileira como algo sujo, 29,2%, o que corresponde a 114 entrevistados. Como pode ser visto no Quadro IV, os 29,2% de brasileiros que indicaram como sujeira a política brasileira encontram-se distribuídos pelas seis pesquisadas capitais de estados brasileiros do seguinte modo: 71

Mauro Guilherme Pinheiro Koury

23,4% na cidade de João Pessoa (PB); 43,3% em Recife (PE); 38,4% em Belém (PA); 21,1% em São Paulo (SP); 18,6% em Curitiba (PR) e 35% em Brasília (DF). O maior índice de indicação da política nacional como algo sujo foi encontrado entre os moradores da cidade do Recife, seguido de perto por Brasília; e os menores entre os respondentes de Curitiba, seguidos pelos residentes na cidade de São Paulo. As três grandes subcategorias onde as diversas respostas individuais dos entrevistados foram agregadas, relativas à questão da política como algo sujo, falam da Falta de Zelo com a Coisa Pública, com 15,1% das indicações, do Desrespeito ao Cidadão, com 11,5% das respostas, e Falta de Consciência Ecológica, com 2,6% das indicações. A subcategoria Falta de Consciência Ecológica foi indicada apenas por três das seis cidades pesquisadas: com 5% dos entrevistados da cidade do Recife; 10% dos respondentes da cidade de Belém; e 1,7% dos de Curitiba. Os entrevistados dispostos nesta subcategoria procuram ligar a questão da falta de consciência ecológica com o conceito de desenvolvimento sustentável, e elaboram uma crítica aos planos diretores da cidade. Os entrevistados apontam como sujeira a poluição do ar e dos rios, o desmatamento desenfreado, as queimadas, bem como o lixo acumulado nas encostas dos morros ou jogados nos rios e canais das cidades, entre outros aspectos. Coligando esta subcategoria com a do Desrespeito ao Cidadão, falam da falta de saneamento, com esgotamento sanitário a céu aberto ou ligado clandestinamente aos rios e às praias, prejudicando o lazer, a reserva de água potável e a saúde pública, causando epidemias e perigos de diversas espécies. Indicam ainda os gases poluentes, o mau cheiro das cidades, o chorume e os gases produzidos pelo lixo acumulado em depósitos de acolhimento sem nenhuma estrutura. Acusam os políticos de não se preocuparem com a questão, com grande prejuízo para as cidades e para os cidadãos que nela vivem. Remetem, assim, as suas narrativas para a associação da falta de consciência ecológica com as questões de falta de zelo com a coisa pública e do desrespeito com os cidadãos. A subcategoria Falta de Zelo com a Coisa Pública, por sua vez, fala diretamente contra a falta de ética na política e na administração pública brasileiras. Os entrevistados estabelecem claras comparações entre 72

Regras e códigos de conduta moral e ética: um passeio [...] no Brasil urbano do século XXI

a política praticada por políticos profissionais no Brasil e a sujeira, isso nas esferas federal, estadual e municipal, apontando elementos como a corrupção ativa, o desvio de verbas, a má aplicação dos recursos públicos, o descaso com as políticas públicas, principalmente ligadas à educação e à saúde e no controle da criminalidade, a questão da fome associada ao desvio de verbas e ao legislar e agir em causa própria. Esta subcategoria também fala da política como politicagem, e aponta os escândalos que a sociedade brasileira vivencia desde os anos finais do século XX até agora: como o desvio de verbas públicas, o mensalão, a operação vampiro e outras; ou como subornos, contratações ilícitas, enriquecimentos rápidos e inexplicáveis de políticos, e uso da máquina pública para cabide das mais diversas práticas abusivas de beneficiamento da família ou pessoal; ou ainda, como o eterno acabar em pizza das CPIs, os partidos como cabides de interesses estratégicos para uso pessoal, a falta de ética como fundamento partidário, entre inúmeros outros, como males do Brasil contemporâneo. Males que são apontados pelos entrevistados como sendo a prática política no Brasil, e que os fazem desabafar o nojo que sentem da política e dos políticos, considerados, como disse um entrevistado recifense, “como um bando de porcos no chiqueiro, quando aparece alguma lavagem (a mistura de restos de comida com que são alimentados os porcos criados em fundos de quintais)”. A subcategoria Desrespeito ao Cidadão, por outro lado, engloba respostas associadas à cidadania e à qualidade de vida dos habitantes da cidade, e onde se veem respostas ligadas a problemas de saneamento básico, de esgotamento sanitário, de falta de estrutura de transportes públicos, das condições das vias expressas (calçadas, ruas, avenidas, estradas), da carência de iluminação pública, da condição de higiene da e na cidade, entre outros. Esta subcategoria, também, encontra-se umbilicalmente associada com a da Falta de Zelo com a Coisa Pública, com comparações depreciativas alusivas às políticas legislativa e executiva do país, como as estabelecidas por um entrevistado insatisfeito com a falta de estrutura urbana do seu bairro, havendo sido recebidas promessas de melhorias, feitas por um vereador que recebera muitos votos dos moradores de lá: “pois é, doutor, os políticos são como gatos de rua, só aparecem quando querem se eleger, depois esquece o eleitorado”. Esta afirmação geral, dada por um entrevistado 73

Mauro Guilherme Pinheiro Koury

da cidade de Belém, sintetiza, grosso modo, uma boa parte das mágoas com os políticos por parte do homem comum, urbano, brasileiro. Essa queixa traz embutida outras tantas, que dizem respeito, principalmente, ao poder executivo, embora, em muitos casos, revele ainda uma mentalidade clientelista, por parte do eleitorado, quanto à relação político-eleitor. Promessas pessoais a possíveis eleitores – feitas durante a campanha por políticos e depois por estes esquecidas ao conseguirem assumir algum posto no poder legislativo ou no executivo – são apontadas por alguns entrevistados, que se colocam descrentes do voto e aproximam a prática política da podridão, e que veem o político como aproveitador e a política como sujeira. Por outro lado, a grande maioria das respostas reside no descumprimento de promessas de campanha para melhorias na infraestrutura urbana a partir do próprio bairro ou comunidade do eleitor. Outro conjunto significativo de indicações do desrespeito ao cidadão é colocado em alguns problemas de âmbito mais geral, que atingem os moradores das cidades dos entrevistados, como o episódio até hoje não resolvido do lixo na cidade do Recife (KOURY, 2009a); os problemas de transporte urbano; o estado de falência em que se encontram estradas, avenidas e ruas em todo o país, dificultando a circulação de automóveis e pessoas, aumentando o número de acidentes de trânsito e dificultando o tráfego diário nas vias públicas. Outro conjunto de respostas fala da falta de policiamento nas ruas, da falta de iluminação pública, dificultando a circulação de pessoas, principalmente das mais pobres, gerando medo. Outro aspecto associado como desrespeito ao cidadão e indicativo da política como algo que dá nojo fala da saúde pública e das dificuldades de seus usuários perante o desaparelhamento dos hospitais e postos de saúde no Brasil; da educação formal e do esfacelamento da escola pública nos três níveis, no país; fala ainda do distanciamento salarial dos políticos profissionais, bem como dos outros poderes, em relação ao salário do trabalhador comum, entre outros tantos aspectos. Outro núcleo de indicações fala diretamente da questão do trato da violência como fazendo parte de um comércio e uma indústria do medo. O que mostra a associação da política e do desrespeito ao cidadão com relação ao trato da violência pela res publica, isto é, como uma coisa do 74

Regras e códigos de conduta moral e ética: um passeio [...] no Brasil urbano do século XXI

povo. Este núcleo indica os políticos em cargos legislativos e executivos como os responsáveis pelo acirramento da violência no país, não por falta de recursos aplicados, mas pelo desvio destes recursos, seja em propaganda, seja por outras formas: despreparo das forças públicas, falta de policiamento estratégico, desinteresse real sobre a questão, embora com aparente interesse sobre a eterna fonte de recursos para estimular este comércio e indústria nos municípios, estados e país, ampliando a cultura do medo entre os cidadãos. Esta categoria mostrou-se importante nesse estudo por apontar aspectos acerca de como a população brasileira se relaciona com a política em desenvolvimento no país por intermédio de seus políticos profissionais. A falta de ética, o uso pessoal e partidário da máquina política, o desrespeito ao cidadão, são apontados como problemas estruturais da política no país que levam a descrença do eleitor para o destino de seu voto: “em qualquer político novo ou antigo que se vote, ele assumiu o poder vira um safado igual aos demais que só pensa no seu bolso e no seu benefício”, sintetiza uma entrevistada de João Pessoa; ademais, tais problemas apontados fazem com que a política seja vista como algo sujo. Esta categoria mostra também o lado clientelístico por trás das reclamações dos eleitores em relação aos políticos nacionais, e também indica um lado trágico desse desordenamento: a descrença na política e a anomia produzida por este ceticismo, bem como uma visão da política como um lugar onde “o sujeito pode se dar bem”, como insinuou um entrevistado de São Paulo. Uma enquete realizada em 2005, pelo Ibope, mostrou que 67% dos entrevistados afirmaram que, se estivessem no poder, fariam a mesma coisa que fazem os políticos que lá estão: roubar e colocar a máquina política a seu favor. Dados constrangedores que demonstram o imaginário do jeitinho pessoal, já tratado pelo antropólogo carioca Roberto DaMatta (2001), sobre a forma de ser do brasileiro; ou, da expressão popular: “rouba, mas faz”, como forma-síntese do político que se dá bem, mas também executa obras, tão comum na política nacional desde meados da década de cinquenta do século passado. Nunca, porém, a política foi tão mal vista no imaginário popular como nos últimos anos. Em várias respostas, os entrevistados ampliaram 75

Mauro Guilherme Pinheiro Koury

seu argumento com a indicação de “voto porque sou obrigado”, e da intenção de votar nulo ou em branco, “pois todos os políticos, no fundo, são iguais”: o que equivale a serem políticos desonestos e a só pensarem em si. Assim, sendo espelhada a desilusão com a política, com os políticos e com os poderes constituídos no país.

Conclusão A categoria Sujeira - analisada neste trabalho, e como foi visto no seu decorrer - é uma categoria analítica importante para a reflexão e compreensão do comportamento e do pensamento social do homem brasileiro urbano sobre o Brasil e sobre o imaginário acerca do que é considerado sujo e sentido como ameaça na vivência cotidiana dos informantes. Pelo demonstrado, parece haver ficado clara a relevância da sujeira para a reflexão antropológica e sociológica, na medida em que são destacados os elementos ou ideias que preenchem os sistemas de classificação social hegemônicos na cultura nacional, por trás daquilo pensado e afirmado como anomalia, como ambiguidade e como marginal e excluído. Mostrou, ainda, que a noção de sujeira traz em si, umbilicalmente situada, a ideia de ofensa contra a ordem e os valores sociais positivos - idealmente regidos e alimentados pelo sistema de classificação hegemônico-cultural - e suas ambiguidades na prática diária de sua vivência. A categoria Sujeira, aqui analisada, por fim, pôs ainda em relevo as correlações estabelecidas entre as estruturas do sistema social nacional e as formas mais ou menos explícitas de autoridade, com os elementos de polução e infração que com eles interagem como tensão e como enfrentamento. Dentro de um ângulo da moralidade, mostrou o sentimento de vergonhae baixa estima dos entrevistados ao informarem o sujo no cotidiano da cidade, das residências e das pessoas, permitindo uma via de mão dupla: de um lado, permitindo a formação de estigmas sociais, na objetivação de que algo ou alguém não é limpo, de acordo com os critérios de uma moralidade que classifica e desclassifica os outros da relação; dentro de um ângulo onde a ética espelha as classificações sociais ideais, 76

Regras e códigos de conduta moral e ética: um passeio [...] no Brasil urbano do século XXI

por outro lado, o trabalho mostrou a importância da categoria Sujeira para explicitar e apontar falhas no caráter e nas instituições sociais, como dito pelos entrevistados com relação à política e aos políticos nacionais. Este artigo, por fim, é uma tentativa de compreensão da categoria Sujeira através do imaginário urbano brasileiro. Nele se buscou analisar a cultura política do país e o seu sistema de classificação social, a partir dos medos e receios, do comportamento e dos costumes narrados pelos entrevistados que se dispuseram a apresentar ao pesquisador suas versões sobre o tema tratado. A forma como o artigo foi conduzido permite levar o leitor a um passeio através das vivências, ansiedades, reflexões e comparações emitidas pelos entrevistados em suas narrativas, esboçando um panorama sobre como pensa o habitante urbano das grandes cidades e metrópoles brasileiras sobre o conceito de sujeira.

Bibliografia ÀRIES, Philippe (1989). O homem diante da morte, 2ª edição, 2 vols. Rio de Janeiro, Francisco Alves. BARBOSA, Lívia (2006). “Cultura, consumo e identidade: limpeza e poluição na sociedade brasileira contemporânea”. In, Lívia Barbosa e Colin Campbell (Orgs.), Cultura, consumo e identidade. Rio de Janeiro, Editora da FGV. BUARQUE DE HOLANDA, Aurélio (1980). Dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro, Nova Fronteira BUARQUE DE HOLANDA, Aurélio (1992). Pequeno dicionário brasileiro da língua portuguesa – ilustrado. 15ª edição, São Paulo, Civilização Brasileira CALDEIRA, Teresa Pires do Rio (2000). A cidade dos muros. São Paulo, editora 34 e EDUSP. CONY, Venus Brasileira (2005. Mural dos nomes impróprios. Ensaio sobre o grafito de banheiro. Rio de Janeiro, sete letras. 77

Mauro Guilherme Pinheiro Koury

DAMATTA, Roberto (2001). O que faz Brasil, Brasil? 11ª edição, Rio de Janeiro, Rocco. DAVID, Onildo Reis (1995). O inimigo invisível. A epidemia do cólera na Bahia. 1855-1856. Salvador, Edição do Autor. DAVIS, Natália Zemon (1990). As culturas do povo. Rio de Janeiro, Paz e Terra. DINIZ, Ariosvaldo da Silva (2001). “A iconografia do medo”. In: Mauro Guilherme Pinheiro Koury (Org.), Imagem e Memória. Ensaios em Antropologia Visual. Rio de Janeiro, Garamond. DOUGLAS, Mary (1976). Pureza e Perigo. São Paulo, Perspectiva. DOUGLAS, Mary (2005). De la souillure: Essais sur les notions de pollution et de tabou. Paris, La Découverte. DUMONT, Louis (2007). Homo Hierarchicus: o sistema de castas e suas implicações. 2ª edição. São Paulo, EDUSP. DURKHEIM, Émilè (2000). As formas elementares da vida religiosa. São Paulo, Martins Fontes. ELIAS, Norbert (1990 e 1993). O processo civilizador. 2 vols., Rio de Janeiro, Jorge Zahar. FERRAZ, Sonia Maria Taddei (2001). Arquitetura da violência: morar com medo nas cidades. Quem tem medo de que e de quem nas cidades brasileiras contemporâneas? http://br.monografias.com/trabalhos/arquitetura-violencia-cidadescontemporaneas/arquitetura-violencia-cidades-contemporaneas.shtml (baixado em 10.6.2009) FLEISCHER, Soraya Resende (2002). Passando a América a limpo. O trabalho de housecleanners brasileiras em Boston, Mass. São Paulo, Annablume. FORTY, Adrian (2007). Objetos de desejo. Design e sociedade desde 1750. São Paulo, Cosac & Naify.

78

Regras e códigos de conduta moral e ética: um passeio [...] no Brasil urbano do século XXI

FOUCAULT, Michel (1986). Vigiar e punir. Nascimento da prisão. 4ª edição, Petrópolis, Vozes. FOUCAULT, Michel (2007). História da sexualidade, vol. I: a vontade do saber. 18ª edição, São Paulo, Graal. GIDDENS, Anthony (2004). A Transformação da Intimidade – Sexualidade, Amor e Erotismo nas Sociedades Modernas. São Paulo, Editora da UNESP. GOFFMAN, Erving (1967). Interaction ritual. New York, Anchor Books. GOFFMAN, Erving (1988). Estigma. Notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4ª. Edição, Rio de Janeiro, Guanabara. KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro (1986). “Trabalho e disciplina. Os homens pobres nas cidades do Nordeste: 1889 a 1930. In Vários Autores, Relações de trabalho e relações de poder: mudanças e permanências, Vol. 1. Fortaleza, Editora Universitária UFC. KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro (1998). “Fotografia e Pobreza”. In: Mauro Guilherme Pinheiro Koury (Org.). Imagens & Ciências Sociais. João Pessoa, Editora Universitária UFPB. --------------- (2003). Sociologia da Emoção. O Brasil urbano sob a ótica do luto. Petrópolis, Vozes. --------------- (2005). Medos corriqueiros e sociabilidade. João Pessoa, Editora Universitária UFPB. --------------- (2006). O vínculo ritual. João Pessoa, Editora Universitária UFPB. --------------- (2007). Sofrimento social. João Pessoa, Editora Universitária UFPB. --------------- (2008). De que João Pessoa tem medo? João Pessoa, Editora Universitária UFPB. KRISTEVA, Julia (1986). The Power of horror: an essay on abjection. New York, Columbia University Press. 79

Mauro Guilherme Pinheiro Koury

LÉVI-STRAUSS, Claude (1970). El origen de las maneras de mesa. México, Siglo Veintiuno. MAUSS, Marcel (1974). Sociologia e Antropologia. 2 vols., São Paulo, EPU/ EDUSP. REBOUÇAS, Lídia Marcelino (2000). O planejado e o vivido: o reassentamento de famílias ribeirinhas no Pontal do Paranapanema. São Paulo, Fapesp/AnnaBlume. REIS, João José dos (1991). A morte é uma festa. Ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo, Companhia das Letras. SÁ, Lenilde Duarte de (1999). Parahyba - uma cidade entre miasmas e micróbios. Os serviços de higiene pública, 1985-1918. Tese. Ribeirão Preto, USP. SENNETT, Richard (1998). O declínio do homem público. As tiranias da intimidade. São Paulo, Companhia das Letras. SIMMEL, Georg (1998). “O conceito e a tragédia da cultura”. (Org.) Jessé Souza e Berthold Öelze, Simmel e a modernidade. Brasília, Editora da Universidade de Brasília. SONTAG, Susan (1977). On photography. Middlesex, Penguin Books. SOUZA, Marcelo Lopes de (2008). Fobópole. O medo generalizado e a militarização da questão urbana. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil. THOMPSON, Edward Palmer (1989). A formação da classe operária inglesa. 2ª edição, 3 vols. Rio de Janeiro, Paz e Terra. VERNANT, Jean-Pierre (2002). Entre mito & política, 2a edição. São Paulo, EDUSP. WEIL, Simone (1979). A condição operária e outros estudos sobre a opressão. (Org.) Ecléa Bosi. Rio de Janeiro, Paz e Terra.

80

Corpos em Concerto: diferenças, desigualdades e desconformidades

NOTAS ACERCA DO ESTATUTO DA PELE CORROMPIDA Roberta de Sousa Melo

A disposição a modelar a pele, torneá-la, perfurá-la e recortá-la inaugura alterações nas capacidades físicas e afetivas daquele ou daquela que se entende como proprietário de um corpo. Tal disposição, por seu turno, é fundamentalmente concebível mediante o recurso a algum tipo de intervenção técnica por meio da qual busca melhoria de sua disposição orgânica e aprovação social. Com isso, intenta a recriação de si, bem como novas possibilidades de atuação nas relações sociais em que a aparência física aparece como elemento central. Nesses termos, partimos de uma perspectiva segundo a qual o corpo é um complexo de símbolos, e, nesse mesmo e único signo, reúnem-se o que Rodrigues (1983) classificou como as duas modalidades da existência humana: a ordem fisiológica material e a ordem ideológica moral. Num primeiro momento, interessa-nos a concomitância desse sensível e desse inteligível no corpo, elementos de fundamental importância na reflexão acerca da experiência de uma cirurgia estética mal sucedida, em que ocorre alguma deformação da integridade física e a frustração de expectativas sociais. Os “ruídos” na pele trazidos por essas alterações cirúrgicas parecem problematizar as codificações do corpo que condensam em si as codificações da organização social (RODRIGUES, 1983), fazendo subsistir um “fundo antropológico extremamente tenaz”, em que o corpo disforme torna-se a “medida do distanciamento espacial” (COURTINE, 2008: 257). Já nos disse John Merrick, no filme “Homem Elefante”, de David Lynch: “As pessoas se assustam com aquilo que não compreendem”. As transformações físicas acarretadas pelo malogro dessas cirurgias categorizam tal corpo como algo novo, estranho, desconhecido, e que ilustra o perigo das forças do organismo que transbordam os limites que lhes foram estabelecidos, ignorando o controle social e ameaçando-o. Seus resultados se refletem em reações orgânicas que entram em conflito 81

Roberta de Sousa Melo

com expectativas estéticas de caráter claramente normatizador. Essas reações não previstas criam corpos “não civilizados”, desproporcionais, desarranjando uma série de elementos que garantiam alguma estabilidade nas relações entre os corpos. Tais formas materializam a desordem de uma série de categorias antagônicas, a começar pela antinomia natureza/ cultura, estendendo-se a outros dualismos como puro/impuro, íntimo/ público, aceitação/recusa, vida/morte. Esta última oposição nos interessa de modo particular, uma vez que é precisamente a simultaneidade entre o vivo e o morto que encontramos em indícios de cirurgias mal sucedidas: em suas cicatrizes e necroses, por exemplo. Para os nossos fins, portanto, pretendemos nos concentrar no caráter específico dessas “rebeldias orgânicas”, ou seja, na experiência ambígua do “corpo morto” dentro de um “corpo vivo”, e/ou, ainda, na experiência de um corpo que morre para depois voltar a viver. A ideia de morte nos parece bem próxima da ideia do “desmembramento” do corpo ao qual corresponde a necrose de um tecido, por exemplo. Ao mesmo tempo, a cicatrização, que a substitui com o passar do tempo, parece apontar para o sentimento de “reconstituição” do corpo, muito embora não se aproxime da sua total recuperação.

Corpos disformes, impurezas e morte Com certa cautela, podemos aproximar a mutilação desses corpos à noção de poluição que Mary Douglas (1991) relaciona à vida social ao argumentar que o sentimento de repulsa que experimentamos diante de algumas poluições exprime uma ideia genérica da ordem social. A poluição simbolizada pelos corpos de que falamos parece não escapar disso. De modo especial, a ideia de “morte” acarretada pelos processos de necrose e a ideia de impureza se amalgamam, e essa associação parece apontar para algum perigo. E aqui podemos perceber de modo ilustrativo a forma pela qual o orgânico e o social se confundem nos modos através dos quais a apresentação dos corpos é percebida e avaliada: a carne escapa às tentativas de seu contorno, materializando elementos considerados repulsivos para os padrões morais e estéticos que significam e orientam a apropriação social do corpo humano. De tal modo, a morte da parte do corpo que sofreu a necrose corresponde a uma morte simbólica, já que as consequências 82

Notas acerca do estatuto da pele corrompida

“desastrosas” das cirurgias de embelezamento problematizam o “caráter eminentemente expressivo do corpo” (MERLEAU-PONTY, 2006: 222), diminuindo de modo abrupto a sua capacidade física e tornando suas relações com o corpo do outro uma experiência intimidadora. É assim que uma mulher pode, por exemplo, ter sua vida sexual comprometida pela ausência do seio corrompido pelo processo de necrose provocado por problemas circulatórios e/ou inflamatórios do pós-operatório. Tal mutilação materializa, de fato, a subversão de certos atributos de beleza e higiene culturalmente elaborados e instituídos, fazendo emergir na carne fundamentos de desordem, descontrole e impureza, possibilitando “[...] uma reflexão sobre a relação entre a ordem e a desordem, o ser e o não ser, a forma e a ausência dela, a vida e a morte. Onde quer que as idéias de pureza estejam fortemente estruturadas, a sua análise revela que põem em jogo estes profundos temas” (DOUGLAS, 1991: 10). Como sugere Sant’Anna, não é de agora que a cultura ocidental se vê compelida a se posicionar diante do orgânico e do que é considerado repulsivo no corpo. A esse respeito, a autora discorre sobre publicações já da década de 1960 e menciona a emergência de trabalhos de artistas plásticos e fotógrafos dispostos a evidenciar as centenas de usos do corpo na sociedade contemporânea: “Corpos em pedaços, corpos híbridos, monstruosos, estereotipados, mas também corpos que mostravam sem pudor a homossexualidade, a velhice, as sinuosidades do desejo e do sofrimento cravadas na carne” (SANT’ANNA, 2000: 239). As morfologias resultantes das cirurgias embelezadoras mal sucedidas são consideradas perturbadoras justamente por se guiarem por “modos de apresentação canônicos” dos quais terminam por se distanciar, produzindo, ao invés, formas do repulsivo sobre a carne. Sendo assim, o corpo-signo, que para além de suas particularidades deveria refletir ambiguamente os elementos promulgados pelos arranjos sociais nos quais trafega, passa a ser marcado pela desorganização, pelo ruído, pela entropia. Para abordarmos tais processos, recorremos ao conceito de estigma trabalhado por Goffman, considerando que esses indivíduos parecem inabilitados para uma aceitação social plena, uma vez que são portadores de sinais corporais que, de acordo com seu contexto social, evidenciam alguma coisa de extraordinário ou mau (GOFFMAN, 1988). É nesse 83

Roberta de Sousa Melo

sentido que, segundo o autor, o estigma termina por reafirmar os limites da normalidade ( GOFFMAN, 1988). É de fundamental importância atentarmos para o caráter “compartilhado” da repulsa ao qual o estigma está fundamentalmente atrelado. E isso parece ser particularmente verdadeiro nos casos em que o objeto de estigma não existia antes da intervenção técnica, isto é, antes da cirurgia mal sucedida. Ao contrário, o “novo estigmatizado” da pós-cirurgia compartilhava com “os outros” de uma mesma representação e estatuto do corpo e, por meio disso, seu corpo trafegava de modo fluido nas interações cotidianas. O estranhamento diante do corpo novo e deformado, diga-se, não se faz presente apenas como experiência diante do olhar do outro; ocorre também como transformação do olhar pousado sobre o próprio corpo, olhar que recua diante de si mesmo. Assim, como sugere Goffman, a autodepreciação pode ocorrer num momento de solidão do indivíduo diante do espelho, apesar de essa autoavaliação continuar mediada pelos códigos compartilhados, como sugere um dos relatos transcritos pelo autor: Quando finalmente me levantei (...) apanhei um espelho e me dirigi a um outro maior, fixo, para me olhar, sozinha. (...) Simplesmente fiquei estarrecida. Aquela pessoa no espelho não poderia ser eu. Eu me sentia por dentro como uma pessoa comum, feliz, saudável – não como aquela que eu via! Ainda assim, quando virei o rosto para o espelho, lá estavam meus próprios olhos olhando para trás, ardentes de vergonha... Aquele disfarce foi posto em mim sem o meu consentimento ou conhecimento (...) e foi a mim mesma que ele confundiu quanto a minha própria identidade. Eu me olhava no espelho e era tomada de horror porque não me reconhecia (GOFFMAN, 1988: 17).

Esse indivíduo passa a lidar, agora, em sua própria corporeidade, com elementos que não condizem com a estrutura inteligível da qual desfrutava antes da cirurgia, vivenciando um “choque perceptivo” ao olhar para si mesmo e se enxergar diferente de sua corporeidade anterior, da corporeidade idealizada, e do corpo dos demais. Disso decorrem elementos para se pensar nas formas de constituição da identidade relacionada com 84

Notas acerca do estatuto da pele corrompida

o corpo. Afinal, se esse corpo agora se vê como estranho, não o foi por toda sua vida, o que sugere uma nova percepção de si, concomitante às alterações físicas. O conceito de estigma remete a outro conceito, pensado por Goffman sempre a partir de “contatos mistos” e que dizem respeito aos “momentos em que os estigmatizados e os normais estão na mesma ‘situação social’, ou seja, em que se encontram na presença física imediata um do outro” (GOFFMAN, 1988: 22). Assim, [...] quando normais e estigmatizados realmente se encontram na presença imediata uns dos outros, (...) ocorre uma das cenas fundamentais da sociologia porque, em muitos casos, esses momentos serão aqueles em que ambos os lados enfrentarão diretamente as causas e efeitos do estigma (GOFFMAN, 1988: 23).

Os ruídos na pele se apresentam como medida daquilo que não se deseja, corroborando normas, regras e convenções que categorizam seus portadores como “feios”, “deformados”, “poluídos”, em relação aos corpos “normais” com os quais interagem nas relações cotidianas. O corpo que é afetado por ruídos na pele põe-se deslocado em relação a uma espécie de “média antropomórfica”, cujo esforço passa a ser a tentativa de regenerar sua “mácula” e de “reorganizar” sua carne. Nesse sentido, tenta-se esconder as cicatrizes e suprimir ao olhar do outro os resultados indesejáveis das cirurgias. Em seu “Tabu do corpo”, Rodrigues discorre sobre o nojo de um modo que nos interessa aqui. De fato, alguns aspectos de seu estudo parecem relevantes para melhor contextualizar a noção de “corpo repulsivo”. De acordo com o autor, o nojo dos produtos do corpo expressa, antes de qualquer coisa, uma transgressão ou um perigo sobre os limites entre natureza e cultura: A desordem a que o nojo reage é essencialmente o cruzamento irregular da linha de separação desses domínios. As coisas nojentas são frequentemente associadas a ‘formas pouco poéticas’ ou ‘coisas antiestéticas’, e sabemos que a beleza, vista sociologicamente, é antes de mais nada o produto de uma atividade ordenadora e sistematizadora, a ponto de estarmos de certa forma moralmente obrigados a preservar a beleza e 85

Roberta de Sousa Melo

adotar dela tudo o que porventura produzamos. (...) Um homem ou uma mulher são em geral julgados bonitos na medida em que suas formas se afastam da animalidade (RODRIGUES, 1983: 162).

As sequelas físicas decorrentes das práticas malogradas que nos interessam neste pequeno ensaio correspondem, portanto, à externalização de um “interior” tenebroso que sempre estaria na iminência de brotar na flor da pele, sendo a sua manifestação sempre uma ameaça, pois representa a natureza deslocada pelo descontrole da organização biológica do corpo, a natureza que invade os lugares de civilidade.

Cirurgias estéticas e a fabricação dos disformes Os corpos submetidos às cirurgias estéticas servem de palco às manifestações de padrões estéticos socialmente valorizados. Neste sentido, os cortes e perfurações decorrentes deste tipo de intervenção se diferenciam, por exemplo, das mutilações motivadas pelos ideais estéticos de expressões artísticas ao modo das performances de body art, com sua crítica das condições de existência: nesse último caso, “a intenção deixa de ser a afirmação do belo para ser a provocação da carne, o virar do avesso o corpo, a imposição do nojo ou do horror, (...) sua recusa dos limites impostos à arte ou à vida cotidiana” (LE BRETON, 2003: 45). Por sua vez, a expectativa em torno dos resultados de uma cirurgia com fins de embelezamento parece buscar renegar qualquer sinal de dilaceramento da pele, ainda que seja este um item inevitável ao corpo submetido ao bisturi. Do mesmo modo, sangue, pus, inflamações e mesmo o processo pós-cirúrgico da recuperação da parte do corpo alterada (o qual remete a outros atributos de fealdade, como inchaço, por exemplo) tornam-se uma espécie de tabu, talvez por ameaçar a exaltação do belo com o fantasma que ameaça todo processo radical de transformação corporal. O período pós-operatório é o momento obrigatório para o aperfeiçoamento deste corpo, que precisa ser temporariamente “feio” e incapacitado, mantido na reclusão, longe do olhar do outro e da cena social, até que esteja totalmente pronto para retomar suas atividades. O infortúnio dessas cirurgias, ao 86

Notas acerca do estatuto da pele corrompida

contrário, produz um corpo que “não sarou”, que não se recuperou da mutilação cirúrgica e que, portanto, deve-se manter afastado, sob pena de fazer circular a incivilidade e o descontrole que tanto se evita. Esses “corpos sem êxito” remetem à desconfiguração pela qual a carne teve de passar, fazendo permanente (ao invés de provisória) essa desconfiguração, expondo a fragilidade dos corpos e aproximando seu desmembramento a certa angústia de morte (JEUDY, 2002), esta que é o descontrole da perspectiva da civilidade, da subjetividade, da expectativa de controle humano sobre as forças naturais. A anormalidade atribuída a essas marcas corporais é muito próxima da condenação da obesidade registrada por Pinto Leite (apud HASSE, 2003: 57). Seu estudo sugere que o problema diz respeito a uma “deformação indesejada com caráter de inconveniência”, sendo o corpo obeso tido como doente e inválido, e, dada a “desproporção” de sua forma, como algo subjugado pela inércia. Para além disso, o autor verifica, no julgamento do corpo obeso, a existência de um estigma que nos parece familiar às mutilações que estamos abordando: trata-se da “incapacidade de conter os excessos que o dominam”, representando uma “aberração da qual se deseja afastamento” (PINTO LEITE apud HASSE, 2003: 57). A nosso ver, o exemplo do estado de necrose, o horror que lhe acompanha, parece materializar um mal, um momento de transição que não foi ultrapassado, a perda do controle sobre a carne, sufocada por sua inércia, e, ao mesmo tempo, a impossibilidade de realização plena das funções do corpo, quando justamente o que se espera é a manutenção do organismo desobstruído e, tanto quanto possível, equilibrado (ANDRADE LIMA, 1996). A manifestação de uma necrose evidencia a interrupção das funções corporais normais, sinalizando algo fora do devido lugar; é o “impuro” num local que não lhe cabe. Essa ausência de fluidez corresponde, por fim, ao que Machado e Silva (2008: 168) vislumbrou como sendo o “estatuto intermediário do homem desfigurado”: “não é doente, nem saudável, (...) não está fora nem dentro da sociedade”. Logo, essa não contenção dos excessos figurada sobre a carne significa a sua contaminação; ela, portanto, passa a ser estigmatizada pelos critérios culturais que orientam a revelação e a ocultação do corpo. 87

Roberta de Sousa Melo

A necrose, a cicatriz, o pus e toda sorte de mutilação ocasionada pelos maus resultados dessa técnica de embelezamento são vistos como sinal tangível da culpabilidade nascida da degradação do corpo (JEUDY, 2002: 86), sendo, por isso mesmo, “escatologias desnecessárias”, diferentemente da impureza da defecção que, não obstante todo o rigor civilizatório em torno das práticas de evacuação, estas são necessárias, justamente, por sua função descongestionante. A esse respeito, Elias nos mostra a falta de cerimônia com a qual necessidades físicas, naturais eram tratadas nos manuais de boas maneiras dos séculos XVI, XVII e XVIII. Essa “libertação escatológica”, de acordo com Andrade Lima, será substituída pelo que Roger-Henri Guerrand chamou de “a grande contração” (ou repressão), iniciada no século XIX, ou seja, o controle social sobre a individualidade passa por tornar algo básico, fisiológico, objeto de pudor (ANDRADE LIMA, 1996: 11). Entretanto, a mácula a que correspondem essas lesões póscirúrgicas ultrapassa a fronteira do privado, invadindo o espaço de ostentação reservado à beleza almejada na decisão de se submeter a uma cirurgia cosmética. A produção desse novo corpo estranho faz emergir, ao final das contas, o pavor diante daquilo que não podemos conhecer por completo, do que da natureza não podemos administrar por inteiro; enfim, é o drama da morte bem diante da vida (COURTINE, 2009). As sequelas físicas das cirurgias estéticas mal sucedidas deslocam as estranhezas do organismo para o jogo das relações sociais, efetivando a indissociabilidade da pessoa e do organismo. Os elementos de desfiguração do corpo passam a fazer parte das relações de interação simbólicas entre os indivíduos. Sob certo aspecto, podemos tomar as próprias marcas da civilização como um jogo de estratégias políticas para aliviar a sensação de impotência diante de certas manifestações da natureza, logo categorizadas como selvagerias, principalmente quando ameaçam os lugares já estabelecidos das coisas e das pessoas no campo pragmático das relações sociais. Isso se ilustra muito bem nas políticas corporais exercitadas quando da descoberta do Novo Mundo, momento em que a exploração dos espaços até então desconhecidos pelo europeu propiciou o seu encontro com “novos povos”: passou-se a questionar a condição humana dos recém-descobertos pelo fato de perceberem a ausência de suas concepções de civilidade na 88

Notas acerca do estatuto da pele corrompida

apresentação corporal do outro (estranhamento dos modos de se vestir - ou de se despir -, de gesticular, de andar etc.) (LAPLANTINE, 1996). Tornou-se questão fundamental ao europeu negar um estatuto humano ao “novo ser”, de modo que não fossem abaladas suas convicções, os modos de funcionamento de sua vida política e social, nem tampouco sua condição de raça superior já estabelecida. Alguns dos argumentos usados para negar-lhe tal condição eram religiosos: foi necessário colocar em xeque a existência de uma alma nos chamados selvagens. A diversidade da aparência física e dos modos corporais também soou como forte critério, levando o homem branco a recorrer constantemente ao que Laplantine chama de “metáfora zoológica”: “Assim [...] sendo considerado assustadoramente feio e alimentando-se como um animal, o selvagem é apreendido nos modos de um bestiário” (LAPLANTINE, 1996: 41). Interessante notar que juntamente com a repulsa diante do corpo do “selvagem” existia o fascínio que sua alteridade exercia. Segundo Laplantine, Montaigne, no século XVI, por exemplo, elogiava a “bondade natural” e a “ingenuidade original” do estado de natureza em que se encontravam os povos descobertos, mas sempre tomando o cuidado de estabelecer fronteiras de civilidade entre o velho e o novo mundo, na busca de localizar esses novos povos de modo a manter certo distanciamento, evitando, portanto, o risco de olhar para si mesmo e se descobrir, em algum aspecto, semelhante ao inusitado do orgânico que tanto inquieta e amedronta. Atualizando tudo isso para nossa discussão, notamos que as cirurgias plásticas que não deram certo exigem ocultar aquilo que escapa do domínio técnico e que não somos suficientemente capazes de “domesticar”. É necessário vigiar as formas corporais, mascará-las, ocultar suas manifestações inesperadas e isso, como sabemos, realiza-se numa dimensão altamente politizada, na qual se confabulam a gerência e o destino dos corpos. Essa questão se desdobra em várias outras. Por exemplo, se formos pensar na “artificialidade” da prótese de silicone ao substituir o “seio” natural, perceberemos que novas indagações se apresentarão, de modo a nos levar a refletir sobre o limite do que é artificialmente tolerável. Por que a imagem de uma cicatriz é mais rejeitada do que da própria prótese de silicone? Seria a naturalização desse artifício decorrência do controle 89

Roberta de Sousa Melo

e do conhecimento técnico cada vez maiores? Faz-se importante, pois, uma investigação acerca dos atributos contemporâneos de “desarmonia corporal”. As cirurgias mal feitas, com todos os seus indícios (cicatrizes, hematomas, necrose de algumas partes etc.) são parte constituinte do cenário do “inesperado”, do “não-planejado”, enfim, do tão temido “desconhecido” que subjaz à transformação corporal. Elas seriam o outro do ideário higienista pelo qual a impureza se faz desordem, justamente pela desestabilidade a que diz respeito. A higiene, ao contrário, é revelada como conhecimento de nós próprios, ou daquilo que nos é próprio (DOUGLAS, 1991: 6). Entretanto, a parte do corpo necrosada, embora esta seja impregnada pela ideia de morte que já abordamos, continua fazendo parte da dinâmica da vida social, justamente por ser o “avesso” sempre recrutado quando surge a necessidade de se reafirmar “aquilo que somos”. O corpo disforme é, portanto, uma espécie de corpo-reserva a ser convocado sempre que a crença do corpo normal necessite ser confirmada. Por essa dinâmica, os elementos de desfiguração são conduzidos pela “carne animada” até o plano das relações sociais, onde então se tem contato com o corpo do outro (momento de surgimento de uma intercorporeidade, segundo Viviani (2007: 7). Assim, essas formas corporais continuam impondo-se pelo mistério de sua presença-ausência, nunca totalmente presentes, mas também nunca totalmente eliminadas, justamente pela função pedagógica de reiterar os corpos “habituais”. Ainda que o “estranho” traga à tona o pavor do descontrole, ambiguamente ele reafirma os lugares: ele cria uma desordem na segurança ontológica e, ao mesmo tempo, garante a ordem simbólica (LE BRETON, 1992). Queremos dizer com isso que mesmo a necrose, pela ideia de morte que simboliza, aponta para uma pulsão por meio da qual o corpo fragmentado é elemento integrante das relações sociais orientadas pela imagem do corpo, podendo isso ser compreendido como uma experiência corporal que nunca repousa em si mesma (MERLEAUPONTY, 2006). Muito pelo contrário, o corpo disforme está bem longe de se encerrar, “é um poderoso atrativo de olhares e de comentários, um operador de discurso e de emoções” (LE BRETON, 1992: 75). Em suma, esse “tecido morto” mantém-se, assim, apoiado, parasitário, num corpo biológico que continua vivo. Porém, o vivo e 90

Notas acerca do estatuto da pele corrompida

o morto significam apenas no cotidiano das relações sociais, o que até agora nos tem levado a uma espécie de reflexão acerca das experiências do organismo no mundo-da-vida, ou de uma subjetividade corporificada, da identidade relacionada com a corporeidade. O dinamismo com que o corpo se faz, a um só tempo, presente e ausente, perpassado por uma memória social, psicológica, pelas experiências sensoriais e pela trajetória de suas vivências, permite-nos pensar no devir desses corpos mutilados, em seu tráfego, nos agenciamentos que passam a ser realizados por meio desses “modos corporais de ser-no-mundo” e no contexto da cultura material de que estamos tratando. Isso significa que tal dilaceramento da carne não oblitera a abertura do corpo que é, para Merleau-Ponty, condição ontológica de nossa existência. Podemos, pois, falar de sua “abertura para o mundo”, de tal modo que se faz pertinente a alusão à busca de um “novo equilíbrio”, o que se reflete na possibilidade de reação dos corpos ao poder objetivador e de fechamento do estigma. Ou seja, tal abertura ocorre apesar das relações de poder que configuram os arranjos em que esses corpos transitam: [...] aquilo que em nós recusa a mutilação e a deficiência é um Eu engajado em um certo mundo físico e inter-humano, que continua a estender-se para seu mundo a despeito das deficiências ou de amputações, e que, nessa medida, não as reconhece de jure (MERLEAU-PONTY, 2006a: 121).

Aqui, a ideia de destruição não parece totalmente separada da organização da ideia de vida. Ao contrário, nesses processos vitais enfatizase a morte como aquilo que abre a verdade desses organismos. Em outras palavras, o imaginário do corpo desfigurado - ao qual correspondem as formas alteradas pelas cirurgias mal sucedidas - não coíbe totalmente a projeção do corpo para fora de si. Este, enquanto suporte original das metamorfoses, pode muito bem exceder sua capacidade inventiva. Estamos tratando, portanto, da dinâmica desses corpos estigmatizados no mundoda-vida, os quais se constroem um instrumento e projetam em torno de si um mundo cultural (MERLEAU-PONTY, 2006a).

91

Roberta de Sousa Melo

Corpos disformes e a abertura para o mundo Enquanto fundamento descritivo da experiência cotidiana da corporeidade, a fenomenologia de ser-no-mundo de Merleau-Ponty propõe uma reflexão filosófica fundamentada no mundo sensível. Cremos que tal abordagem condiz com as experiências das atividades corporificadas em seus aspectos sociológicos, tal como estamos abordando, ao sugerirem que o corpo é o local onde a percepção é realizada. Mais: são corpos que percebem e que são percebidos, estruturas corporais abertas para o mundo. A ambiguidade morte e vida marcada nessas carnes não deixa de ser um fluxo, e justamente por esse teor extático é que os sujeitos reelaboram suas experiências afetivas e sociais. Destarte, o estigma atribuído a esses corpos pode tornar-se, ao mesmo tempo, local e instrumento de negociação, já que os sujeitos necessitam realizar um processo de recriação de si e do contexto social do qual fazem parte a partir do próprio ato que atribui significado ao estigma: Justamente porque pode fechar-se ao mundo, meu corpo é também aquilo que me abre ao mundo e nele me põe em situação. O movimento da existência em direção ao outro, em direção ao futuro, em direção ao mundo pode recomeçar, assim como um rio degela (JEUDY, 2002: 228).

A visibilidade dessas mutilações geralmente envolve a violência do encontro com o corpo do outro, muito provavelmente porque as imagens do corpo desmembrado são, na maioria das vezes, consideradas sinais patológicos de uma perda de unidade (JEUDY, 2002). O aniquilamento, quando visto no repouso do cadáver que logo será enterrado, talvez seja mais facilmente aceito do que o fracionamento de um corpo que continua trafegando, lembrando a si mesmo e ao outro o quão próxima de nós é a finitude, e, bem sabemos, “a menor subtração traz sofrimentos radicais à nossa soma indivisa” (SERRES, 2004: 19). Ainda assim, uma proposta inspirada na vertente pontyneana requer que a esses corpos deteriorados seja feita a devida menção, no sentido de localizá-los dentro do arranjo das práticas sociais do qual continuam fazendo parte e na qual continuam ativos. Dado o “desequilíbrio de suas 92

Notas acerca do estatuto da pele corrompida

proporções”, esses corpos disformes continuam em busca do equilíbrio, em sua capacidade de percepção motivada incessantemente em suas relações com os objetos e as pessoas. Reconhecendo as transformações na percepção de si e nas relações interpessoais acarretadas pelas vicissitudes da carne decorrentes das cirurgias mal sucedidas, argumentamos que há espaço para um processo criativo de reinvenção de si; e tanto quanto pode a pele refazer-se e o corpo ser alterado, as pessoas são capazes de elaborar novos agenciamentos e modos de ser-no-mundo. De acordo com Goffman, na tentativa de superação dos atributos do estigma, “a pessoa pode (...) tentar obstinadamente empregar uma interpretação não convencional do caráter de sua identidade social” (GOFFMAN, 1988: 20). Como exemplo, o autor cita a dedicação do indivíduo estigmatizado a dominar áreas de atividades consideradas, geralmente, como fechadas - por motivos físicos e circunstanciais - a pessoas com seu “defeito”. Isso pode ser ilustrado pelo exemplo do cego que se torna perito em esquiar ou em escalar montanhas (GOFFMAN, 1988). A potencialidade da experiência dos corpos-no-mundo nos parece um processo de aprendizado no qual modos de sentir, experimentar, perceber, ser percebido, são, sobretudo, vivenciados através de técnicas corporais ao modo de Mauss (1974). Ao mesmo tempo em que opera com suas qualidades morfológicas, estruturas fisiológicas e capacidades sensoriais, perpassam pelos códigos sociais e culturais, constituindo, assim, “uma base concreta e material, viva, vivida e em devir” sendo culturalmente potencializada (FERREIRA, 2009: 3). Restam ainda, a esses corpos pós-cirúrgicos, possibilidades de intervenções e utilizações na vida social, bem como os movimentos que lhes são possíveis, sensações e emoções que lhes são permitidas, e, ainda, funções e necessidades que lhes são exigidas (FERREIRA, 2009). Nesse sentido, uma mulher sem uma das mamas pode recorrer a um implante de silicone na tentativa de reviver as “memórias do seio”, de renovar suas sensações ao se encontrar com o corpo de outrem, instalando-se na prótese ou, inversamente, fazendo-a participar do caráter volumoso de seu corpo próprio. Pode, também, reelaborar sua vida sexual convivendo com a falta, transgredindo certas fronteiras pelas quais essa parte suprimida vem a ser um atributo de 93

Roberta de Sousa Melo

sensualidade feminina, renegociando as sensações e experiência afetivas que até então se realizavam mediante sua presença. Por tudo isso, esses corpos continuam se refazendo constantemente, apesar da sinalização de morte ou de aniquilamento demarcada sobre eles, o que significa, efetivamente, “viver com o corpo” envolvendo-se no mundo, aos moldes de Merleau-Ponty. O que pode o corpo é determinado pelo que ele continua a experimentar no mundo-da-vida. O prelúdio de morte registrado na necrose ou no fracionamento da carne, a nosso ver, não oblitera as possibilidades de ação no mundo desses corpos que experimentam esse jogo de ausência-presença. Ao mesmo tempo sujeito e objeto, o corpo de que falamos até agora não se fecha em si apesar de suas limitações, porque: [...] quer se trate do corpo do outro ou de meu próprio corpo, não tenho outro meio de conhecer o corpo humano senão vivê-lo, quer dizer, retomar por minha conta o drama que o transpassa e confundir-me com ele. Portanto, sou meu corpo (MERLEAU-PONTY, 1992: 269).

Referência Bibliográfica COURTINE, Jean-Jacques (2008). "O corpo anormal: história e antropologia culturais da deformidade. In Corbin, A.; Courtine, J. J.; Vigarello, G. (Org.),  História do corpo: as mutações do olhar: o século XX. Petrópolis, Vozes. DOUGLAS, Mary (1991). Pureza e perigo. Lisboa, Edições 70. FERREIRA, Vitor Sérgio (2009). Elogio (sociológico) à carne: A partir da reedição do texto “as técnicas do corpo” de Marcel Mauss. Disponível em: http://www.letras.up.pt/isociologia/uploads/files/Working37.pdf. Acesso: 12 de agosto de 2010. GOFFMAN, Erving (1988). Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro, LTC. 94

Notas acerca do estatuto da pele corrompida

HASSE, Manuela (2003). “O processo de apreensão e de re-criação do mundo”. Revista Pro-Posições. Vol. 14, No 2: 53-60. JEUDY, Henri Pierre (2002). O corpo como objeto de arte. São Paulo, Estação Liberdade. LAPLANTINE, François Brasiliense.

(1996). Aprender Antropologia.

São Paulo,

LE BRETON, David (2003). Adeus ao corpo. São Paulo, Papirus. _______________ (1992). A Sociologia do corpo. Petrópolis, Editora Vozes. MAUSS, Marcel (1974). Sociologia e Antropologia. São Paulo, Edusp. MERLEAU-PONTY, Maurice (2006a). A estrutura do comportamento. São Paulo, Martins Fontes. _______________ (2006b). Fenomenologia da percepção. São Paulo, Martins Fontes. RODRIGUES, José Carlos (1983). Tabu do corpo, Rio de Janeiro, Achiamé. SERRES, Michel (2004). Variações sobre o corpo. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil. VERENHITACH, Beatriz Daou (2009). O corpo modificado: implicações da mastectomia sobre a imagem corporal feminin. Disponível em: http://lasa. international.pitt.edu/members/congress-papers/lasa2009/files/VerenhitachBeatriz. pdf Acesso: 13 de agosto de 2010.

VIEIRA, Karine (2006). “O corpo da mulher em correção: subjetividade e cirurgia estética”. Dissertação de Mestrado em Psicologia pela Universidade de Fortaleza. VIVIANI, Ana Elisa Antunes (2007). “O corpo glorioso: um diálogo entre Merleau-Ponty e Michel Serres”. Revista da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação. No 9: 1-20.

95

Corpos en Concierto: diferencias, desigualdades y disconformidades

NEGRO DE MIERDA, GEOMETRÍAS CORPORALES Y SITUACIÓN COLONIAL. Adrián Scribano María Belén Espoz “…Ya mostraremos cómo lo que se llama el alma negra es una construcción del blanco” “…En otras palabras, el negro tiene que evitar el encararse con este dilema: blanquearse o desaparecer.” F. Fanon (Piel negra, Máscara Blancas, 1952)

Cuando los argentinos viajamos al exterior se nos suelen formular una serie de preguntas típicas que aprendemos a contestar casi automáticamente: ¿sabes bailar tango?, ¿los gauchos cómo son? ¿Uds. toman mucho mate, no?, pero nunca (o casi nunca) se nos pregunta sobre la existencia de etnias y/o razas en nuestro territorio. Hay un estereotipo de “argentino clase media” muy fuerte que, construido desde los relatos oficiales sobre la “argentinidad”, ha roto todo vínculo con lo negro, lo andino y/o la existencia de pueblos originarios. La situación paradojal la vivencia un extranjero que al llegar a nuestro país sabe (más o menos inmediatamente) que existen negros de mierda (NM) de los cuales hay que cuidarse y si es posible, evitar. El objetivo de este artículo es tematizar reflexivamente las estructuras experienciales y las políticas de los cuerpos a ellas asociadas que permitan comprender, al menos un poco más, el lugar y “sentido” del NM en las sensibilidades sociales. En la misma dirección nos interesa dar cuenta de las características del escenario general (la ciudad colonial) en que el NM condensa la expropiación y desposesión material anclada en las políticas corporales. La estrategia expositiva usada se puede sintetizar de la siguiente manera: en primer lugar, a modo de introducción una sumaria presentación 97

Adrián Scribano e María Belén Espoz

de la situación del NM en la Argentina. Luego caracterizaremos los componentes de la operación ideológica mediante la cual se configura una política de los cuerpos cuya base material es el NM que: 1) es una manera de cromatizar los espacios coloniales; 2) es un operador corporal; 3) se relaciona con la “gestión” del paisaje de los rostros segregados y; 4) se conecta directamente con lo prohibido. Por último, daremos cuenta de la trama corporal de una ciudad colonial donde cuerpo-clase-espacio se estructuran mediante un cromatismo socio-vivencial que regula las geometrías corporales en la situación colonial21 actual.

1.- Introducción: ¡Negros en la Argentina…! ¡… ¿De qué negro me hablas?...! En Argentina para los/las negros/negras22 está prefigurada una posición en la gramática de las acciones: la ausencia. Porque efectivamente no tendría otro significado que no fuera del orden de la primeridad en el sentido Peirceano (1988): remite a la sensación de ausencia de luz, ‘negrez’ por decirlo de un modo, y por tanto remite en principio a una ‘ausencia de color’. Esta ausencia que remite a la oscuridad pero en la ambivalencia de no ser, o ser un grado ‘cero’ del color, es una posible comprensión de la efectividad del término en sus diferentes aplicaciones a lo largo de la historia. Por eso mismo podría constituirse en un espacio clave –como espacio ‘vacío’- en relación a los discursos que se producen alrededor del conflicto de clase (por su potencial como ‘otras’ inversiones significantes que se realizan en sobre la materia o como uno de esos “espacios virtuales” sobre el cual fundar nuevas formas de acción de la multitodo subalterna”23). Pero también atada a los demás procesos de ‘autentificación’ de los que son objetos los pobladores del mundo del no. Sobre lo que aquí se entiende por situación colonial , cfr. (SCRIBANO, 2010d). En todo el escrito enunciamos en masculino y utilizamos NM para facilitar la escritura pero no desconocemos la enorme importancia de la visión de género que tiene este eje de la economía política de la moral cuestión que no podemos abordar aquí pero es de vital importancia para una mejor comprensión de lo que decimos. 23 CFR. Grüner, E. (2002: 87). 21 22

98

Negro de Mierda, geometrías corporales y situación colonial

Es en este marco que existen dos momentos en la tensión narrativa para el/lo negro en Argentina: la ausencia y la discriminación. Una primera pista introductoria, que tomamos solo como una huella sociológica, es parte del discurso estatal al respecto, traído aquí como testigo bajo la sospecha que servirá de propedéutica indicativa al tema que se desarrolla en el presente escrito. Por otro lado, el NM esta -y se hace- en el marco de una pintura de la situación colonial en la actualidad donde fabrica el escenario privilegiado de la racialización de las relaciones sociales. Estas dos referencias nos permitirán, al menos provisoriamente, “constatar” la vivencialidad expulsógena de que aquello que se materializa en el NM.

1.1.- Sobre la negritud en nuestro país: el lugar de un imposible. En nuestro país, el tema de la ‘negritud’ como punto de inflexión y reflexión desde las ciencias sociales tiene un carácter ‘naciente’, en el sentido que no ha sido objeto de estudio recurrente en un campo intelectual que todavía desconoce la propia condición histórica de dicho objeto como contexto que posibilito la imposición de una identidad nacional en este heterogéneo territorio.24 A partir de la creación (1995) del Instituto Nacional contra la Discriminación, la Xenofobia y el Racismo (INADI), organismo descentralizado creado por ley nacional (n° 24.512 - año 1995) y dependiente del Ministerio de Justicia y Derechos Humanos de la Nación Argentina, la problemática sobre la ‘negritud’ en Argentina adquiere un nuevo estatuto en tanto objeto de reflexión. Dicho organismo, funciona como institución de control y regulación (a partir de la realización de investigaciones volcadas hacia el diseño de políticas públicas) en relación a prácticas de discriminación y trato ‘desigualitario’ (en sus diversas dimensiones - ética, racial, sexual, Algunas líneas de investigación que sí identificaron esta problemática desde hace un tiempo son: Grosso (2008a; 2008b; 2009a; 2009b); Solomianski (2003) entre otros. 24

99

Adrián Scribano e María Belén Espoz

etaria, socio-económica, por discapacidad etc.) dentro del territorio nacional argentino. En este marco, se pueden rastrear algunas de las problemáticas vinculadas a la ‘negritud’ en nuestro país consideradas en las dos dimensiones que enunciábamos anteriormente (la ausencia/la discriminación): una en relación a los afro-descendientes donde se puede identificar cierto predominio de trabajos historiográficos que plantean la reconstrucción25 de aquellas identidades ‘negras’ presentes en la constitución identitaria de Argentina, eliminada – vía diversas políticas de Estado – del horizonte de lo pensable. En este sentido, el INADI en su Informe preliminar para el pacto de los derechos civiles y políticos señala a la comunidad afrodescendiente como, Sujeto de histórica discriminación (…). Es común escuchar frases como “en la Argentina no hay negras/os” o lo que es más usual aún es negar su presencia en la Argentina, desde la época colonial a la actualidad. Para enfrentar este flagelo, las diversas comunidades se han reagrupado en torno a diferentes organizaciones que luchan por revertir la histórica invisibilización de la que han sido objeto. Según la Fundación Gaviria “Existen investigaciones en diversos países americanos que, basadas en el hallazgo de objetos precolombinos con figuras de rasgos negros bien definidos, sostienen la teoría de la llegada de africanos al continente antes de los españoles. Sin embargo, la conformación de la comunidad negra argentina se desarrolla en tres momentos históricos: “El primer momento comienza en el siglo XVI y se consolida en los siglos XVII y XVIII con la trata de africanos esclavizados destinados a servir de mano de obra de los colonos europeos en América. (…) El segundo momento histórico comienza a fines del siglo XIX, se extiende hasta mediados del XX y corresponde a las inmigraciones provenientes de la islas de Cabo Verde, que llegaron en busca de mejores condiciones de vida que las impuestas por la administración colonial portuguesa en su país. (…) El tercer momento ocurre sobre todo a partir de la década de 1990. Sus causas son principalmente económicas aunque se combina a temores de persecución política. En este momento llegaron al país migrantes de Senegal, Nigeria, Mali, Sierra Leona, Liberia, Ghana y Congo. Asimismo, otros afrodescendientes arribaron en este período, provenientes de países latinoamericanos: Perú, Brasil, Cuba, Colombia, República Dominicana, Ecuador y Honduras. (…) En las últimas décadas, las comunidades afrodescendientes se han reagrupado en torno a varias organizaciones que luchan por revertir la histórica invisibilización de la que han sido objeto”. (Texto extraído del Decreto 1086/2005 - “Hacia un Plan Nacional contra la Discriminación”). 25

100

Negro de Mierda, geometrías corporales y situación colonial

y la Universidad de Oxford, en la Argentina existe un 6% de población afrodescendiente (cerca de 2 millones de personas).26

En este sentido, pensar la ‘negritud’ abre un amplio campo de indagación que requiere, en principio –aún con anterioridad a reconocer las prácticas discriminatorias en torno a ellos-, darle estatus a ese ‘grupo’ que forma parte de la argentinidad a partir del reconocimiento –al menos cuantitativo- de su existencia en tanto tal. En relación a la segunda dimensión, que distinguimos analíticamente pero que implica toda una serie de continuidades en relación a la primera, consideramos lo explicitado por el INADI en torno al “mapa de discriminación” que éste realiza en el 2006 en todo el territorio nacional, desglosado por provincias.27 Según este mapa, en la provincia de Córdoba, la discriminación por ‘color de piel’ representa un 11.1% (con 18 por ciento se encuentra la variable socio-económica en primer lugar) del total de personas entrevistadas que sufrieron algún tipo de discriminación y, aparece en primer lugar cuando la pregunta remite ‘a cuantas veces sufrió dicha discriminación’ (53,8 %) seguida por la variable ‘obesidad y sobrepeso’ (53,3%). En relación a la situación y el ámbito de discriminación aparecen el ‘laboral’ y el ‘escolar’ (33. 3% y 17,9 % respectivamente) como los más asiduos a tales prácticas. En el caso de la indagación sobre el tipo de percepciones no sufridas en carne propia, sino observadas en relación Plan Nacional contra la Discriminación, aprobado por Decreto 1086/2005, Fdo: Presidente de la Nación, Dr. Néstor Kirchner, Alberto A. Fernández, Alberto J. B. Iribarne, (p. 83) 26

Abarcando cada una de nuestras 23 provincias y la Ciudad de Buenos Aires, este mapa, constituido a partir de una encuesta cuantitativa que indaga en las representaciones, acciones y percepciones de las diferentes formas de discriminación de las/os argentinas/ os, pretende asegurar un mayor acercamiento y una mejor identificación de los diferentes problemas y aspectos de la discriminación con los que cotidianamente estamos confrontadas/o. A partir de indagar sobre percepciones, experiencias y representaciones, el mapa tenia como objetivo “De quiénes son las/os discriminadas/os y quiénes las/os discriminadoras/es. De los lugares donde se discrimina. De la escasa reacción ante un caso concreto. Del conocimiento o no de las/los argentinas/os sobre la posibilidad de denunciar los actos discriminatorios. De la responsabilidad que le cabe ante estos hechos a los poderes públicos. De los conceptos prejuiciosos que permanecen naturalizados” 27

101

Adrián Scribano e María Belén Espoz

a otros, también aparece la discriminación por ‘color de piel’ en primer lugar (28,8%) seguida por el nivel socio-económico (28,3%). Todos ellos aspectos que, variaran según género, edad, y nivel socio-económico de los entrevistados.28 De manera espontánea, según este estudio, los cordobeses definen a la discriminación como el acto de rechazo de un grupo o persona (74,3 %) seguidos por la ‘falta de respeto y ‘considerar inferior a ese grupo o persona (10.3 y 8,3% respectivamente). En relación a la ‘creencia’ sobre los grupos más afectados por la discriminación en la Argentina aparece en primer lugar los de nivel socio-económico mas bajo (57,5%) seguidos por la comunidad boliviana (41,5 %), la variable ‘la gente de piel negra’ se ubica en lugar 11 con un porcentaje del 8%, diferencia de la categoría ‘la gente de piel oscura’ que representa un 6,8%. En esta breve descripción de la problemática podemos intuir la conexión entre la variable socio-económica y la variable ‘color de piel’ –en la gama que va del negro al oscuro- : ambas encuentran en los mismos cuerpos el lugar de inscripción para prácticas discriminatorias.

1.2.- Situación Colonial

y

Pintura del Mundo Colonial29.

Escena 1 “¡El pasaporte es trucho, vengan a buscarla!”, exclamó la funcionaria de Migraciones en el Aeropuerto de Ezeiza cuando vio el pasaporte de María Magdalena Lamadrid, parada frente a su ventanilla. Toda la gente que estaba en la cola se dio vuelta para mirarla y ella se sintió morir de bronca. El argumento de Migraciones es que el pasaporte era nuevo y tenía códigos de seguridad no reconocidos por el sistema ya que Policía Federal no había informado sobre los cambios realizados en los documentos hacía una semana. Sin embargo, la mujer declara que, entre los comentarios que le http://www.inadi.gov.ar/inadiweb/index.php El material que se usa en el presente trabajo y que da forma a las “escenas e imágenes” es parte de los resultados de nuestras investigaciones colectivas en el marco del Programa de estudios sobre Acción Colectiva y Conflicto Social sobre dichas investigaciones CFR “El Purgatorio que no fue” (SCRIBANO y BOITO (Comp) CICCUS Bs. As. 2010). 28 29

102

Negro de Mierda, geometrías corporales y situación colonial

hicieron hubo uno que la destrozó: “Me decían que no podía ser argentina si era negra” (…) (Fragmento extraído de Diario CLARIN, 24 agosto 2002). Escena 2 Yo empiezo a hacer un recuento de las tribus urbanas y ellos van sumando los que olvido… ‘los cumbieros’…intervengo: y a los que les gusta mucho el cuarteto tienen alguna forma de identificarse????... las chicas dicen: ‘cuarteteros’!!!, los chicos: ‘los negros’!!!(…) Bueno todos estos podemos decir que son modelos diferentes de la juventud..¿ud coinciden con eso? Como que se trata de un tiempo en el que uno se puede encuadrar en cualquiera de estos modelos’…uno responde: ‘mas vale’!!….Alguno alguna vez paso por alguno de ellos? (cuentan que vieron una vez a un ‘viejo emo’, lo describen) …ud pasaron por alguna etapa de esas?? J: seee, el ‘cheto’ Yo: Como es eso? J: me compraba toda ropa de marca, bailar marcha, cambiar los bailes por los boliches… YO: que boliches? J: uy, una banda…a Bateens no se si conoce? El que esta en la Sabatini… Yo: pero que cambiaste? J: naa, nada al final porque no me gusta a mi…Naa, porque yo iba con zapatillas adidas, asi, con gorrita Niké y te discriminan igual… Yo: aha, pero como es que te sentías discriminado si supuestamente ibas con la misma ropa? J: No, qué misma ropa, cada uno iba con la suya!! –risasYo: no digo, con el mismo tipo de ropa… J: ahh, no si, va, yo iba con zapatillas anchas y ellos con esas lisitas… Yo: y vos no usabas esas zapatillas? J: si, si, pero igual 103

Adrián Scribano e María Belén Espoz

Yo: entonces? J: y si, te discriminaban porque asi como que te empiezan a mirar Yo: pero te dijeron algo alguna vez? J: era negro no me dejaron pasar una vez, que se yo… (Fragmento de un grupo de discusión en “Ciudad de mis Sueños”30).

La(s) pintura(s) del mundo colonial31 está(n) diseñadas y producidas en un plexo cromático y figuracional que se trama, gira y desenvuelve en torno a horizontes y personajes. Horizontes cuyos componentes visibilizan e invisibilizan las cosas y los sujetos en el marco de la perspectiva de una economía política de la moral cuyo eje vertebrador es la racialización en tanto practica ideológica. Personajes que, a través de sus relaciones reciprocas, construyen las maneras adecuadas de mostrar las disposiciones de los agentes en la usurpación, el saqueo y la expropiación. Ambas imágenes descriptas en el comienzo de ese apartado, remiten al ‘negro’ como personaje que demarca limites finos en torno al “ser” desde un preconcepto, al estar-siendo desde una mirada que colorea la acción de negro. Ello en relación a las formas de identificación hegemónica que se coagulan en nuestra sociedad, en un caso a la ‘identidad nacional’ y en la otra, al tenso juego del ser-parecer que se ata a marcos más amplios de interpretación amarrados a contextos de pobreza (a las condiciones de existencia). En uno hay ‘prejuicio’ en torno al ‘color de piel’, como fenotipo que expresa un malestar que ya está bajo la alfombra en nuestro país (“En argentina no hay negros de piel”). En el otro, hay un tipo de de prejuicio en torno a pautas culturales mucho más complejas, pero donde la clase y su postura como tal, activan los fantasmas de una diferencia radical (“los negros que quedan, son los mierda”). “Ciudad de mis sueños” es una ciudad-barrio resultado de la implementación de la política de hábitat social del Gobierno de Córdoba (Programa “Mi casa, mi vida”). 31 Como en otros trabajo de nuestro Programa de Investigación estamos usaremos en el escrito laexpresión colono no sólo como expresión metafórica de las clases-en-el-poder sino también más específicamente para designar a todos aquellos ligados a la gestión directa de las políticas de los cuerpos en contextos de segregación urbana encarnan dicha posición como los políticos, punteros, publicistas, etc. 30

104

Negro de Mierda, geometrías corporales y situación colonial

Si de alguna manera las dos escenas que abren esta reflexión evidencian la sensación de un malestar producido en torno a la atribución de un ‘color’ (perceptual o sentido) como marca identitaria, es porque en ella se traman las distancias que legitiman un tipo de relación de dominación característico en nuestras sociedades. Ello en tanto que dicha relación se produce en el marco de ‘la ciudad colonial’, escenario privilegiado que estructura las aludidas pinturas: pulcro y racional ordenamiento de la segregación clasista y habitacional, de los fantaseos y fantásmaticas que componen las sensibilidades sociales y de las políticas de los cuerpos. En este sentido, la ciudad de Córdoba, Argentina, no representa una excepción. Una ciudad que como tantas otras de América Latina, responde a un orden estratégico de urbanismo que segrega socio-espacialmente los cuerpos.32 Una ciudad que se vive a partir de una deseable distribución espacial (condicionando las posibilidades de movilidad y circulación) estableciendo específicos –y cada vez más restringidos- puntos de encuentro interclase, y que encuentra, a la vez, en los medios de comunicación masivos, una instancia fundamental para el despliegue de la producción de los componentes imaginarios e ‘ideales’33 que la constituyen, estableciendo así el horizonte deseable de su trama y sus personajes. Las aludidas tramas en las que se traba esa particular paleta (a) cromática que las dos escenas relatadas describen, regula las percepciones y sensibilidades sociales a partir de una figura/personaje cuyos contornos, en nuestra ciudad, adopta características específicas, a saber: el Negro de Mierda (NM). De esta manera, la figura (a las vez simbólica y material) del ‘negro’ como ‘espacio vacío’ se instituye en diversas ‘imágenes’ (como forma de relación social), asociadas todas ellas a una serie de identificaciones patológicas producidas en el juego que va de lo cromático a la discromatopsia. Esta operación es resultado de un procedimiento previo que en diferentes campos y según diversas estrategias, licua el conflicto a partir de la relexematización de algunos significantes vinculados a la Algunas de las reflexiones en torno a esta problemática se encuentran desarrolladas en LevsteinBoito (comps.) (2009), Scribano, (2009a;); Scribano-Boito (2010a); Scribano-Cervio (2010b); Espoz, (2009); Boito-Cervio-Espoz (2009). 33 CFR. Espoz-Michelazzo-Sorribas (2010). 32

105

Adrián Scribano e María Belén Espoz

noción de “clase”: ésta que ya no pueden ser ‘nombrada’ en su carácter conflictivo (menos de ‘subalterna’) porque nos encontramos en la ‘sociedad de la gente’, entonces adviene ‘lo negro’ como una vuelta esencialista a la naturalización de las relaciones sociales en contextos neo-coloniales. Este gesto institutivo de inversión producido en el marco de ciudades coloniales donde, la socio-segregación espacial imprime el sello del reino de la mercancía en la tierra, produce un ‘borramiento’ de esos cuerpos conflictivos que son el excedente material de la instancia de dominación socio-cultural, transfiriendo el conflicto bajo esa figura –a los ojos del régimen de visibilidad actual ya despojado de su carácter tensivo- del NM como agente natural de su propia condición de inconmensurabilidad social. Desnaturalizar dicha condición comienza con el ejercicio de desmotar la trama de imágenes por medio de las cuales el NM se instituye como una pieza clave del régimen de sensibilidad actual: operación que parte de ‘traer’ a la memoria la condición primera a la que se articula toda interpretación de la “negritud”/lo “negro” configurada en la narrativa de los “vencedores” (de la historia, de la sociedad, del orden) en ese juego de ‘sombras’ y ‘luces’ como espacios de fijación y a la vez, lectura, de los cuerpos. Lo negro (como sustantivo34) en un sentido amplio y en primera instancia, remite a su existencia como categorización de lo ‘otro’, a una serie de procedimientos de censura que harán posible, bajo la forma de ‘nombrar el peligro’ su existencia en tanto objeto. Sólo ese primer gesto de violencia permite producir toda la cadena de significantes que precisaran de una adjetivación “conclusa” para dar cuenta de diversas dimensiones de tal peligrosidad, que se condensa vía la naturalización del instante que lo origina como signo, de lo anormal, patológico, perverso, oscuro, demencial. Las adjetivaciones no son más que las operaciones ideológicas por medio de las cuales se congela al sujeto a portar ese signo como síntoma de su existencia. En nuestro país, las adjetivaciones que acompañan generalmente al sustantivo ‘negro’ -desde los discursos coloquiales hasta los formalesHablamos de sustantivos en tanto que el ‘negro’ tal como se entiende aquí, remite a una entidad fija, no contextual del que se predican las demás adjetivaciones. 34

106

Negro de Mierda, geometrías corporales y situación colonial

son ‘de mierda’/‘chori’/‘cabeza’/‘villero’/‘alma’. Todas ellas construidas a partir de un señalamiento argumentativo que explicita la no referencia a ‘negros de piel’, porque claro está ‘es imperdonable la propia identificación de sí mismo como racista’.35 En este sentido, la adjetivación que acompaña al ‘negro’ remite entonces a diversas dimensiones espacio/temporales de anclaje de ese sujeto en relación a sus condiciones de existencia a la vez que va determinando el horizonte de prácticas, conductas, comportamientos y apariencias –sobre todo físicas- de los mismos. ‘Mierda’ remite a excremento, “chori” remite a delincuente, “cabeza” a falto de modales y conocimiento de las buenas costumbres, simplemente torpe o ignorante y villero…Y villero remite a una experiencia explicita de condición socio-habitacional que carga, en la misma noción de vivencia, todas las otras significaciones. El caso de ‘negro de alma’ se torna más confuso y paradigmático ya que aquí no habría siquiera una referencia estricta a cierta ‘tonalidad’ de la piel que suele describir en el sentido común al negro (ya que en nuestro país un ‘negro’ podría ser ‘rubio y de ojos celestes’), sino que remite a esa ‘original’ relación que se establece entre zonas de iluminación/ oscuridad como primera operación ideológica que sustentó la experiencia colono/colonizado.36 Como podemos notar, adjetivar implica establecer una relación con el otro a partir del cuerpo (si porta o no en su cuerpo el estigma), de la sensación (de repugnancia, asco, miedo, temor) y de la acción (rechazo, indiferencia, exclusión, supresión). Pobreza y ‘negrez’ en nuestro país están estrechamente vinculados como pudimos ver hasta aquí. A partir de la producción de imágenes de las clases subalternas como ‘portadoras de peligro’ -del originario y el Es muy interesante destacar la serie de lexemas que se utilizan como sustitutivos para evitar una interpretación ‘racista’ del propio discurso cuando se hace referencia a los negros en nuestro país. Dicha operación ideológica desplaza bajo las designaciones ‘tez oscura’, ‘morocho’ la enunciación de lo ‘negro’ como interpretación del sentido común atado a una práctica racista. De allí que sin tapujos se pueda decir ‘negro de mierda’ sólo después de haber instalado toda una serie de caracterizaciones que legitiman el enunciado como interpretación desprovista de dicho carácter xenofóbico: si son definidos como aquellos de “tez oscura, mechas rubias, gorrita y una dentadura para nada envidiable” que “te roban, te rayan los autos, mandan a pedir a sus hijos, etc.” queda claro, sólo para el enunciador, que su interpretación está más que ‘justificada’ por una sucesión de acción de la cual el objeto de atribución es el responsable 36 Tener un ‘alma oscura’, en este sentido, se asocia a lo perverso, al pecado, a la culpabilidad – atravesada por toda la moral cristiana- que necesita ser ‘salvada’, es decir, normalizada. 35

107

Adrián Scribano e María Belén Espoz

venidero-, se instala toda una máquina discursiva que satura, ‘iluminando’, hasta ese aspecto imposible de ser percibido y menos aún, corroborado como dato: la ausencia de color. De allí que el NM como espacio vacio, como estructura vicaria, sea objeto de inversiones de sentido que configuran identidades esencializadas. Por esta vía podemos visualizar cómo en la pintura del mundo colonial el NM no es sólo un personaje más sino que emerge constituyendo el contraste “justo” para el olvido clasista y la expropiación excedentaria.

2.- La ciudad colonial y la operatividad del NM: una propuesta de lectura en clave cromática. Hablar de ciudad colonial es confirmar el diagnóstico actual del capital en su fase ‘imperial, neo-colonial y dependiente’: éste se funda en un entramado de intereses y sensibilidades que articulan los centros multipolares a través de sensibilidades vicarias y delegativas, en prácticas depredatorias de carácter planetario global, y en la amenaza de la fuerza como garantía de la dominación estructural, más acá de las particularidades locales. En este sentido, “la ciudad es colonial, porque instancia y reproduce las prácticas del colonizar”37 (SCRIBANO-CERVIO, 2010b). En este sentido, la ciudad ‘colonial’ (SCRIBANO-BOITO: 2010a; SCRIBANO-CERVIO, 2010b) como escenario privilegiado en el cual se traban y destraban las políticas de los cuerpos (mediante las políticas de alimentación, de educación, de salud, de hábitat, de transporte, etc.) y estructurada, como en el caso de la ciudad de Córdoba, por una distribución clasista de los cuerpos en dicho espacio, encuentra en la reproducción de ciertos personajes un lugar clave para la comprensión de los dispositivos de regulación de las sensaciones y los mecanismos de soportabilidad social (SCRIBANO, 2007a) que operan en la actualidad. Las pinturas existentes en ese marco, se establecen por la diagramación de una cartografía especifica en la ciudad colonial, que requiere, para su aprendizaje, la internalización38 (individual y colectiva) 37 38

Colonizar es ocupar, expropiar y tener el poder de decidir sobre las vida de los otros. En el sentido del establecimiento de ‘mapas cognitivos’ que nos permiten vivir una ciudad.

108

Negro de Mierda, geometrías corporales y situación colonial

de sus contornos, sus bordes y fronteras que demarcan los adentros/ afueras posibles -y deseables- de una Ciudad que se torna cada día más extraña (e ‘insegura’) para el individuo que la habita. Dicha cartografía, se configura, en esta perspectiva, a partir de la conexión entre estructuras narrativas, roles actanciales y máscaras identitarias que dan cuenta de una particular trama entre las posibilidades del decir-se y el hacer de los agentes en relación a sus vivencias ‘posicionadas’ socio-espacialmente, y las operaciones de dispositivos de regulación de la sensibilidad social sostenidos por un cromatismo de clase. En el juego del como me veo/como me ven que decanta en las definiciones del ‘cómo/qué soy’, reestructurado por una gramática del espacio socio-segregada por clases, las acciones se dejan leer desde prácticas de valoración social que involucran personajes, figuras ya clasificadas en el marco de esa distribución socio-espacial desde un cromatismo que activa las fantasías y fantasmas de una sociedad determinada. En esta línea de reflexión, uno de los personajes cotidianos y fantasmáticos de la ciudad en la situación colonial actual es el negro de mierda (NM) cuya escenificación, caracterización y libreto hunde sus raíces en una prolongada transposición (micro)-histórica, compleja y contradictoria, que va del indio, pasa por el gaucho, llega en forma de migrante interno, se instala como “cabecita”, vuelve como inmigrante sudaca y se consolida desapercibidamente en la aborrecida y abyecta “pobreza” del colonizado actual. Dicha trayectoria remite a instancias paralelas pero a la vez ‘simultáneas’, que sólo a partir de lectura del devenir histórico de las geometrías corporales, encuentra las huellas que explicitan el lugar iterativo que ciertos cuerpos ocupan en las instancias de dominación. Cuerpos que anclados –y moviéndose en las delimitaciones marcadas por una especie de ruta de la ‘pobreza’- en diversas escalas de la distribución geo-territorial y política del mundo actual, encuentra una y otra vez en dicho cromatismo de clase un lugar estratégico para la regulación de una política corporal que encuentra en la ciudad colonial su materialidad específica: el NM. Aquí cobra especial relevancia, el lugar de los medios de comunicación masiva (como instancia de producción social de experiencia en términos colectivos), como hacedores de dichos mapas.

109

Adrián Scribano e María Belén Espoz

En este sentido y como en toda situación colonial, no hay colono sin un negro de mierda donde descargar la culpabilidad e irracionalidad de un colonizado dibujado, representado y deseado como objeto de asistencia, caridad y represión. Ese negro sintetiza con su carne y con su imagen, el legado de las experiencias pasadas que hacen de su existencia la razón de la Razón, la libertad de la Libertad, zonas de oscuridad que devienen en espacios lumínicos del orden imperial. En este contexto es fácil comprender que la funcionalidad, disposicionalidad y contenidos ideológicos del NM, más allá que sean cambiantes (qué negro ocupa el lugar de NM –del afrodescendiente al pobre/paria/migrante-), sea una piedra angular de la situación colonial y de las sensibilidades sociales a ella asociadas. Dicha disposicionalidad –con sus contenidos ideológicos- implica reconocer varias dimensiones en las que se traman las sensibilidades sociales a partir de este personaje. Por un lado, con el NM se regulan las distancias corporales a partir del establecimiento de zonas de luminancia/oscuridad entre los cuerpos, disponiéndolos en cuerpos ‘para ser vistos’, cuerpos ‘para ser observados’, cuerpos ‘para pasar/ser desapercibidos’ que van cartografiando los espacios transitables-habitables-consumibles de la ciudad colonial; de allí que el NM sea un operador corporal, a partir de él se marca y desmarca con (y en) su cuerpo la geometría espacial que regula las posibles interacciones y desplazamientos en la ciudad que se atan a su presencia como punto de referencia estableciendo todo un sistema de identificación/valoración social que asigna cuerpos y colores a lugares (esos rostros son también las zonas de ‘inseguridad’ en tanto que condensan los excedentes de la lógica colonial y por tanto lo ‘subversivo’ que está latente e intermitente); en este último sentido, dichos rostros configuran el campo de gestión posible que resguarda el paisaje a/para los otros (“ciudadanos”) garantizando, hacia fuera, la evitabilidad de su confrontación39 y, hacia adentro, por medio de la moralización de esos ‘otros’, los encuentros esperables; finalmente, En este sentido se vuelve significativo considerar la información que se provee en diversos sitios web que ofrecen ‘mapas de las ciudades’ para el GPS donde se van demarcando las zonas ‘inseguras’ o ‘peligrosas’, ofreciendo rutas alternativas o de ser imposible, diseñando un camino lo menos peligroso posible. Un ejemplo es el caso de la página web http://www.proyectomapear. com.ar/ 39

110

Negro de Mierda, geometrías corporales y situación colonial

el NM se conecta con lo prohibido en tanto que da cuenta de lo forcluido, lo reprimido, lo confiscado de la experiencia racional que vuelve, siempre, violentamente, develando la lógica del deseo en su desnudez. El NM es así, el resultado de la acumulación diferencial de energías corporales y sociales que sirve de nodo referencial a las geometrías corporales. La combinación de factores del cuerpo piel, imagen y movimiento40 que se anudan en una obscuridad mal oliente. Desde las mismísimas herencias “genéticas” de la alimentación inadecuada, la socialización en contextos de violencia(s) de género(s), la laceración corporal por represiones superpuestas, la cotidianidad de un envenenamiento desapercibido, (provocado por la consecuencias de la presencia de minerales pesados en tierra y agua hasta la contaminación con los agrotóxicos del aire, el agua y los alimentos), son algunos de los factores que preparan y moldean al NM. En la raíz misma del cuerpo el colono construye, en su depredación sistemática de lo común, un sujeto que atravesado por las faltas y las precariedades se convierten en excusa de su moral.

3.- Cromatización de los espacios y operador corporal - Imagen 1: El NM cromatiza los espacios sociales. Coord: ¿y cuando van al Patio Olmos41 hablan con todos los otros de las tribus o...? E: no F: no V: es que no te hablan [risas] Coord: ¿ah, no te hablan? ¿cómo es, a ver? V: tenés que estar vestida como ellos sino ‘chau’ [se ríe] Coord: ¿y cómo definirían la...? E: un día nosotros fuimos con ella y unos chicos, y nosotros quisimos entrar y nos dijeron “no, esto no es para negros, es para floggers Para las nociones de cuerpo piel, cuerpo imagen y cuerpo movimiento, CFR Scribano (2007b; 2010c). Patio Olmos es un Shopping Center ubicado en pleno centro de la ciudad de Córdoba y punto de encuentro recurrente de jóvenes. 40 41

111

Adrián Scribano e María Belén Espoz

Coord: ¿a dónde? E: en el Patio Olmos, nos tuvimos que venir todos (Fragmento de Grupo de discusión con jóvenes de ‘Ciudad de mis Sueños’).

Las formas sociales del espacio colonial se cromatizan en y desde el NM. “En” por que el cuerpo cumple una doble función, es a la vez territorio en donde el colono despliega las apropiaciones excedentarias, y por que es soporte de lo desechable. La estructura colonial de relaciones se hace hueso en la falta de nutrientes básicos para los procesos cognitivos, se hace piel en las arrugas precoses de los jóvenes, se hace acontecimiento en las modas y tonalidades de peinados. El color que hiede es una señal que guetifica y marca las zonas habitables por los “cuasi” ciudadanos condenados a vivir en la levedad de un aislamiento por y en la mirada del colono. El cuerpo imagen del NM tiene sus respuestas desde el nacer ante la pregunta sobre quienes creen los otros que soy: esta hecho para orillar la ciudad para esquivar las miradas. La ciudad pulcra y ordenada en torno a políticas públicas42 (de las piedras pero también de las carnes) van asignando ‘zonas’ a cuerpos a partir de las operaciones cromáticas que condensan la oscuridad (como lo abyecto) de ciertas corporalidades. En ese sentido, el centro de la ciudad de Córdoba, como el punto de referencia de lo deseable a la mirada de ‘todos’ (una mirada cada día más regulada por la lógica del consumo y del turismo de la ‘gente’) y por ende, lugar paradigmático para activar el deseo de ‘ser visto’, encuentra en el relato introducido, al NM como indicador de ese plexo de lo vedado/permitido según un index corporal. Tampoco es azaroso que la identificación sea producida por un ‘agente de seguridad’: esos ‘especialistas’ en la anatomopolítica del detalle de las clases subalternas.

Hacemos referencia tanto al orden de las políticas públicas diseñadas e implementadas (en Córdoba) para ‘hábitat social’ (Programa ‘Mi casa, mi vida’) como así también a aquellas destinadas a la ‘modificación de normativas’ para el desarrollo inmobiliario privado y las de ‘embellecimiento’ de la Ciudad (Plan Director). 42

112

Negro de Mierda, geometrías corporales y situación colonial

Lo que ese cuerpo en ese espacio está marcando, es el juego de distancias deseables dentro de una ciudad, que evidencia, en su trasgresión (el salirse de ese espacio que se le asignó por medio de una política de hábitat social –el vivir en las ‘ciudades-barrios’-) su triple condición, del régimen de sensibilidad regulado por la predominancia de lo visual (para ser visto por ‘tv’, para ser observado por los sistemas de seguridad del Estado y el Mercado; para pasar desapercibido en tanto humano). Por ello también el NM es el nodo “desde” donde se construye la geometría de los cuerpos. Desde el NM se calculan las situaciones expulsógenas, las distancias debidas y esperables que separan el colono del colonizado, se trazan bordes, cruces, límites y fronteras de las interacciones posibles de las fracciones de clase de la ciudad colonial. Desde el NM se hilvana las proximidades y distancias que el colono usa para saber(se) en el lugar correcto, adecuado y valorable (en este caso, el ‘centro de la ciudad’). Al ver un NM se trazan líneas “imaginarias” que separan las consecuencias fantasmáticas del contacto, al sentir(se) próximo al NM se “disparan” los dispositivos de rechazo preventivo que garantizan el no contacto, al hablar con un NM se arman los “escudos protectores” propios de lenguajes inconmensurables. - Imagen 2: El NM como operador corporal Coord: ¿cómo que no los dejaron? Fer: ya me imagino tus amigos cómo llegaron Eli: no, fuimos con... ¿cómo se llama? con el Ángel y el Sebastián Fer: ah Coord: ¿cómo, cómo? a ver... Eli: o sea, porque entró... estaba un guardia en la puerta y nosotros íbamos a entrar y nos dice “no chiquita, esto no es para negros, es para floggers”; y nosotros tuvimos... Vane: pasa que parece que para ellos los floggers son más tranquilos Fer: sí, y terminan siendo peor Vane: los peores porque...

113

Adrián Scribano e María Belén Espoz

Coord: ¿ah sí, por qué? Fer: te miran y te dicen “black” así “negro” Vane: o sino hay algunos que tienen la vestimenta... Eli: o sino se hacen cagar entre ellos, los emos y los floggers [risas] Coord: a ver, vos que hablás de ‘diseño de indumentaria, vestimenta’, a ver, vos caracterizamelos... Vane: uh, no tengo ni idea Coord: estás hablando todo el tiempo de cómo se visten ¿qué es lo que...? Vane: y, que tienen diferencia para vestirse, todos tenemos diferencias. A veces te podés vestir como negra y no sos Coord: a ver, ¿qué es vestirse como negra, qué implica? Vane: como negra, con unas nike Fer: y las zapatilllas con tampones así, los jeanes Vane: o a veces pantalones… Eli: sí, porque, o sea, nosotros no nos podemos bur.... a nosotros no nos gusta cómo se visten ellos [risas] Fer: las musculosas es del barrio, mayormente las musculosas y las mangas cortas (Fragmento de Grupo de discusión con jóvenes de ‘Ciudad de mis Sueños’).

En conexión con lo anterior NM opera como una regulación en sí mismo. El NM es un operador corporal incluido en la estructuración fantasmática que vértebra los mecanismos de soportabilidad social. Por un lado, es la cara anversa de lo aceptable tejido desde el doble juego de la racialización cromática43 y la excremencialidad; por otro lado la deformación performativa del dualismo colonizador. Hablar de ‘racialización cromática’ es hablar de las prácticas ideológicas mediante los cuales se determina una manera de vivenciar las características fenotípicas que son, a la vez, atribuidas a un sujeto, desde una configuración histórica que adviene como marca corporal vinculada a la categoría ‘raza’ en un sentido más bien étnico según lo entenderíamos en la actualidad. De allí que ‘cromático’ remite a la persistencia de esa fuerza perceptiva a partir de la cual se inyecta a esos cuerpos, una tradición en el orden de la sensibilidad social, que se reproduce en relación a la pobreza. 43

114

Negro de Mierda, geometrías corporales y situación colonial

Así se establece una lógica donde la vivencialidad de esa ‘marca’ corporal encuentra puntos de fuga desde la percepción (también en clave ‘cromática’) que el ‘portador’ de dicho marcador reencuadra para soportar ese mundo mal conocido. Se transfiere hacia un juego del ser/ parecer (podes vestirte como negra y no serlo) que legitima el encuadre de interpretación sobre el sí mismo que se actualizan. El NM como operador corporal define el ser/ parecer/(comprender(se) desde dicho cromatismo. Ello en el marco de concebir el régimen visual como locus en el que se tejen y destejen las formas de ser y sentirse en un mundo en el cual, cada día nos conocemos más por las imágenes que tenemos de esos otros y nosotros. En este sentido, ‘basta sólo con mirar’ para percibir al NM. Por ello, la economía política de la moral se apoya en la rostrificación segregacionista para sintetizar en y por el cuerpo el campo de sensibilidades aceptadas-aceptables y valoradas-valorables. Incluso para el NM que se somete al mismo régimen de valoración social, tendiendo a explotar la distancia del ser y parecer, para despegarse de esa aceptabilidad en torno al horror que implica ser identificado como un NM. La racialización cromática opera metonímicamente sobre el régimen de los mundos posibles adosados a la re-invención permanente de los cuerpos pasibles de expropiación: si se es NM en tanto particularidad indiferenciada se pertenece a esa clase de individuos en los cuales desprecio y desposesión coinciden de tal manera que se “merecen” la desafiliación cromática del mundo. Lo fausto, sombrío, terrorífico de un “cuerpo-en-las-sombras” es la predicación actuante de un sujeto del mundo del No. Pero también de su anverso: en su subjetivación esa sombra deviene el propio fantasma de clase que se activa por la fantasía de la inclusión. De allí que la excrementalidad subsume en una explicación odorífica el horror de ver(se) con ese desecho amenazante que emerge desde lo obscuro. Pero refiere también a la parte de lo social en tanto un no querido que hay que evacuar más allá que sea el producto “natural” del régimen de producción de los cuerpos en situación colonial. Ser una mierda en tanto predicado de una obscuridad lombrosiana inscripta en el propio cuerpo, es el destino de aquellos personajes a los cuales se los busca, pero no se les da la bienvenida en la pintura del mundo colonial: 115

Adrián Scribano e María Belén Espoz

“acérquense…pero no entren”; “deseen…pero no toquen”, “consuman… pero no aquí”, parecen ser las máximas inscritas en el cuerpo del NM que estructuran las coordenadas de circulación y desplazamiento en la ciudad colonial. Y cuando se ‘sientan’ como NM, no sólo es porque lo son (así lo llevan tatuado en el cuerpo –en su disposición corporal, en las maneras de vestirse, de peinarse, de comportarse) sino porque deben serlo. La excrementalidad en este sentido, es el procedimiento por medio del cual se (re)asegura un orden pulcro de la ciudad.

4.- Paisajes daltonificados

y catalizador de lo prohibido

Imagen 3: El NM daltonifica los paisajes de los rostros segregados Walter – Eso es lo que pasa. En Buenos Aires, esa gente puede protestar tranquila y que se yo… emmm Débora – No va la policía. Walter – emmm, ¿el barbudo como se llama? Que salía a… Andrés – Castel José – Biolcatti Walter – Castel! Salia a protestar con su gente pobre y eran apaleados. Porque son gente de la villa, son gente negra. (Grupo de Discusión con diversos ‘actores colectivos’ de Córdoba). C: Raúl, que por ahí, qué imagen, qué recuerdos te… hace recordar esa época, el 2001, la protesta R: bue, la protesta del 2001, ¿qué te puedo decir? Yo tengo 53 años, 40 años junté cartón en la calle junto con mi madre y te digo, los gobiernos que han estado acá en Villa María, ninguno, ninguno nos dio nada. Los que están ahora lamentablemente, cuando formamos, fundamos la cooperativa La Unión quisieron vivir a costilla nuestra. Los que están presentes, nos daban el trabajo pero como nosotros, supimos, somos más inteligentes porque también éramos negros pobres, pero sabíamos trabajar, sabíamos lo que era el negocio, dijimos no… Entonces ¿qué es lo que hicieron? En 24 horas formaron una cooperativa y se la dejaron a los que quisieron ellos(…) 116

Negro de Mierda, geometrías corporales y situación colonial

C: Usted ve cierta continuidad digamos, como que no hubo una ruptura en esto, digamos entre… R: Ahí en esa, te digo, me dio alegría porque por lo menos era triunfar... (Grupo de discusión con diversos “actores colectivos” de Villa MaríaCba.). Debora: No, no lo vemos. Nos vemos que nos fuimos, que tenemos una casa mejor que en la villa, tal vez vos en la villa vos ibas a General paz, Junior, a pedir un trabajo y te lo daban por limpiar… Sandra: o te hacian limpiar la vereda, pero no… Debora: a la ruta 9 me ha tocado ir y … bueno, si sos morocho menos. Totalmente tenes cara de chorro, así que no te toma. Por mas que tengas el estudio completo no? Y que vengás… hay chicos que vienen del Presidente Roca, del otro de ahí del parque….y vienen con una base y no, no los tomaron. Sandra: a esos chicos los marca el barrio nomas no? Debora: no, porque tenes que pagar cospeles, que se yo..el colectivo ese no viene nunca vas, no vas a faltar… (Grupos de Discusión con diversos ‘actores colectivos’ de Córdoba).

El NM daltonifica el paisaje de los rostros segregados, impulsa una operación corporal sobre la multitud de tonos del negro y se metamorfosea con los volúmenes de energía expropiables. 1) Todos los rostros parecen de mierda en los horizontes, bordes y espacios de contacto del mundo del no que recorta la segregación. 2) Las gamas de negro establecen un efecto clasificatorio y disposicional que hace de la diferencia una totalidad desigual y expulsógena; 3) Las densidades, espesores y pesos de las energías expropiables de los cuerpos determina la obscuridad de la negritud posible. De allí que una vez ubicados en la zona de ‘oscuridad’, todos los ‘negros’ sean más o menos iguales. La tonalidad así se despliega en una línea de discromatopsia que regula las sensaciones de los sujetos hacia el interior: la villa se convierte así en el borde que difumina esos rostros como sombras del paisaje. 117

Adrián Scribano e María Belén Espoz

Pero también en este marco, e instituido el NM como operador corporal, se despliegan nuevos mecanismos para hacer soportable el compartir la situación de pobreza y exclusión: aquí entran en funcionamiento toda la serie de operaciones que intervienen moralizando la pobreza distinguiendo a ‘pobres buenos’/’pobres malos’, donde el NM como marca corporal ‘inevitable’ reencuadra la escala de ‘negritud’ entre los que la comparten. El ‘negro trabajador’, ‘el negro inteligente’, ‘el negro choro’, etc. no es más que la materialización de un orden clasificatorio que encuentra en una nueva adjetivación puntos de fuga al daltonismo. A la ‘moralización de la pobreza” se le pliega un “solidarismo transclasista” (BOITO, 2008) que opera como dispositivo de regulación de las sensaciones hacia adentro/hacia fuera de las zonas de oscuridad, estableciendo las brechas corporales que confirman la situación de colonización: por un lado, el reconocerse cerca de un NM implica a la vez reconocer que hay excepciones que demarcan la regla, y por el otro, reconocer a un NM como excepción remarca la necesariedad de que éstos existan para que el colono se identifique44 como tal. Pequeños haces de luz artificial, que desde fuera, inundan de oscuridad la situación de colonialidad que experiencian los cuerpos de un mundo negado. El mundo del No troquela la ciudad en ese efecto de quiebre en suspenso que implican las zonas donde habita lo abyecto. El efecto troquel desdibuja las tonalidades y hace aparecer el mundo desde una negritud masiva e indolente, pues se aplica a todos más allá de sus colores específicos y es aceptada desapercibidamente con la impunidad del quien no distingue. En una torción moebiana las múltiples tonalidades de negro “justifican” la aplicación nomotética de clasificaciones y en-clasamiento que dejan claro que no todo negro huele igual. Amabas practicas, la de troquelar y la de Así por ejemplo, vemos en la televisión continuos relatos que a manera de historias de vida dignas de ser ‘rescatadas’ nos cuentan de ‘gente pobre que tiene un comedor para pobres’, ‘del cartonero que encontró un maletín con diez mil pesos y los devolvió’, ‘de la alumna excelente que logro recibirse más allá de los condicionamientos de su existencia’, etc. Pero también los relatos tejidos en el marco de la ‘vida privada’ donde no se teme a aceptar en el espacio público (de los medios de comunicación) que ‘tiene peruanas trabajando, o al cuidado de sus hijos, porque son buena gente, trabajadora”, o ‘que ayuda/colabora con el comedor de una villa; en una campaña de solidaridad’, etc. ni que decir de los famosos que ‘bailan, cantan o patinan’, por el sueño de esos otros. 44

118

Negro de Mierda, geometrías corporales y situación colonial

clasificar, se anudan en un eje que vincula las tonalidades de negro a las energías expropiadas y expropiables a través de la daltonificación. Imagen 4: El NM se conecta con lo prohibido Ahora sí. Ventajas de ser un negro de mierda: - Podes fumar, escupir, comer como un cerdo, tirar y romper lo que quieras, escuchar cumbia a los palos encima con un celular mucho mejor que el mío, colarte, y más desacatadeces (?) en el colectivo sin sentir siquiera un deje de culpa cuando yo una vez tire el boleto al suelo y hasta el día de hoy me da culpa. Vos no te quedas con el más mínimo cargo de conciencia porque para vos todo eso es normal. - Cuando a muchos nos da vergüenza decir que somos, por ejemplo, diseñadores gráficos, por más que ejerzamos aunque aún no nos recibamos, vos no tenés problema en llamarle “ir a trabajar” el entrar a una casa ajena y llevarte el televisor, el DVD y el Home Títere. - No te hacés tanto problema por la vida y el futuro, vivís el momento y listo. Mientras hoy tengas droga, cigarrillos, sexo descuidado y unos fideos de ayer, vos sos feliz. No como el resto de nosotros. Seres torturados por nuestra propia mente al pensar que va a pasar dentro de unos años: voy a estar en la empresa que tanto deseo, voy a poder cambiar el auto, llegare con la plata para las vacaciones. Todo nuestro dilema pasa por el dinero, por como obtenerlo mejor dicho. El tuyo también, pero no te cuesta toda una vida conseguirlo, con un fierro y un viejo confiado que se cree que todavía esta en el pueblo hacés más en 2 minutos que yo con todo un mes de trabajo. Y te vuelvo a repetir, no te quedas con el más mínimo cargo de conciencia porque para vos es absolutamente normal. No te culpo, es una cadena, tus viejos son así, vos sos así y tus hijos también lo van a ser. Y si no lo sos, pero vivís en un barrio humilde, cuidalos e imponeles buenos valores mientras puedas, porque cuando empiece a hacer amistades con otros, conozca la droga, el alcohol y el dinero fácil, no hay vuelta a atrás. Y cuando sepa lo fácil y rápido que es salir de la cárcel en nuestro país, menos. En serio, evita todo tipo de maltrato, tanto físico como verbal. Cuida tu lenguaje e incentivalo a que estudie. No digo que le impongas otra cultura, pero se puede ser humilde sin rebajarse a ser un ladrón. No te tires bajo la sombra a fumar mientras que con 2 años lo dejas en medio de una avenida a mendigar. Eso es de hijo de puta, no hay otra palabra. A veces llego a creer que en esos casos sos capaz de pensar “¿y si lo pisan qué?, total siempre hay otro en camino…” Más me molesta saber que con lo que el nene junte, primero viene el vino, segundo los puchos y con lo que sobra algo de comer. (Fragmento extraído del blog ‘quétupé’45). 45

http://www.quetupe.com.ar/ventajas-de-ser-un-negro-de-mierda/

119

Adrián Scribano e María Belén Espoz

El NM siempre es asociado con lo prohibido, con in-deseable y con lo in-confesable. El NM hace lo que no se puede hacer, le gustan las cosas que no se pueden querer, dice las cosas que no pueden ser verbalizadas. El NM es una corporalización de lo reprimido creada por una economía política de la moral que desvía hacia él los lados obscuros del buen colono. Es la encarnación de aquello que el colonizador re-viste de mascaras, ropajes y caras construyendo una rostricidad clasificante sobre la cual solo queda alejarse temblando en actitud deseante. En realidad el NM es un objeto que refleja los múltiples objetos de deseo(s) del buen colono en su estado de usurpador que reprime todo acto público que no responda a la pornografía de la desposesión. El buen colono se significa en esa oposición constituyente tramada y emergida desde sus propias condiciones materiales de existencia llamada NM. Qué significa ser un buen colono sino alguien que privatizó las pasiones en orden al tranquilo transcurrir del dulce comercio (sensu Montesquieu), qué significa ser un buen colono sino aquel que interiorizó, en el contexto de mercantilización de la vida, al otro como objeto de su propio goce (sensu Marx), qué significa ser un buen colono sino aquel que navega entre el ahorro ascético y el consumo conspicuo. Es decir el anverso racional y confirmatorio del NM como lo inaceptable y objeto de castigo. Ahora bien, es claro que este juego escópico entre colono y NM no implica la aceptación desapercibida de un mundo binario donde el “mal” se oculta y la verdad yace en las profundidades. La necesariedad del NM como emergente de lo prohibido no es más que otra mostración del régimen pornográfico de una economía política de la moral donde el colono insiste sobre el carácter oculto de ese sol inmenso e imposible de ocultar que es la negritud mal oliente como cristalización de enfermedades a erradicar pero que les son dialécticamente “con-figurantes”. El régimen de lo privado ahora es el estatuto de lo público en tanto impunidad e impudicia: el NM tiene lo último que se puede tener (su cuerpo) y vamos por él, afirma el buen colono. La prostitución infantil, la trata de blanca, el tráfico de órganos, la venta de paco y los trabajos de cama caliente son sólo algunos de los ejemplos donde deseo y mercantilización del buen colono se cruzan en el NM. 120

Negro de Mierda, geometrías corporales y situación colonial

El estatuto paradojal, contradictorio y pornográfico del régimen de los dispositivos de regulación de las sensaciones del colono encuentra los hilos que hilvanan las mediaciones perdidas de su propia configuración en eso tan “odiado” pero “envidiado” que es el NM como construcción de un personaje “prohibido” pero “buscado” en la estructuración social.

Algunas consideraciones finales Estamos ante la naturalización del ‘pobre’ constituido en variable cuantitativa y cualitativa que da ‘origen’ a un espacio en disputa, también para las ciencias sociales: ontologizado por las diversas teorías, representado en el marco de una ‘imagen de mundo’ de la pobreza susceptible de ser intervenida y corregida, se naturaliza a la misma como ‘parte del paisaje’ de la ciudad colonial. El ‘pobre’ o la ‘pobre gente pobre’ se ven sumergidos, en su explicitación y caracterización como habitantes del mundo del No, en una especie de ‘predestinación’ –en el sentido weberiano-: como los únicos responsables de su propio transcurrir y devenir. Pero a la vez “se los necesita”: de su ‘inclusión’ (aunque sea una especie de inclusión por antropofagia) depende la misma perdurabilidad del colono. Este segundo procedimiento es el se regula por un cromatismo de clase donde la sensibilidad social se teje, en la trama de las ciudades coloniales, a partir de las características que describimos del NM, como personaje que encastra a la perfección con la actual lógica de dominación. Toda ciudad, como experiencia moderna, implicó una serie de transformaciones del sensorium social producidas por el impacto que las sucesivas experiencias de “shock”46 que vivenciaban sus pobladores. Experiencia que funda la inversión de nuestro sistema sensorial, hasta la modernidad definido por su carácter sinestésico en sistema anestésico (BACKMORSS: 2005): la ‘fantasmagoría’ como esa manipulación técnica que sirve para engañar los sentidos y ‘dar apariencia de realidad’ instaurada por el fetiche mercantil, debía obturar los sentidos no deseados en este marco experiencial. La conformación de esta ‘tecnoestética’ tiene entonces una El ‘shock’ ata la percepción a la experiencia en tanto se conecta con recuerdos sensoriales del pasado. 46

121

Adrián Scribano e María Belén Espoz

función compensatoria en términos sociales ya que su impacto sobre los sentidos y los nervios es todavía ‘natural’ (desde lo neurofísico). Esta se produce por medio de dispositivos de regulación de las sensaciones que van inyectando dosis de ‘drogas anestesiantes’ ofrecidas como ‘datos objetivos’, que permiten ‘soportar’ el bombardeo de estímulos con los que el hombre moderno se encuentra en su ciudad. ¿Cómo sino ver todos los rostros del dolor, cotidianos, demasiado humanos –el mendigo, el homeless, pero también el ‘delincuente’, el ‘enfermo’-, con los que nos topamos cada día? Así surgen diversos estereotipos, estigmas que tienden cada vez más a una desrostrificación de lo otro47 para soportar el horror que provoca la posibilidad de compartir ese espacio con ‘el/lo peligroso’ que, siendo simple máscara puede ser objeto (porque efectivamente, es objeto, no sujeto, es animalizado, no humanizado) de las más duras reprimendas o de la más peligrosa indiferencia. El NM como espacio vacio, se convierte así en operador corporal que designa los lugares, las disposiciones, las interacciones, de los cuerpos enclasados en la ciudad colonial. Pensar entonces problemáticas como el estereotipo, el estigma y fenómenos cómo la ‘discriminación’ o la ‘portación de cara’ –en un sentido laxo-, significa interpretarlas en torno a relaciones sociales específicas, vehiculizadas en torno a significantes (reales o imaginarios) que se producen en una sociedad y un tiempo determinado. Carácter relacional que demarca el sentido siempre conflictivo de todo intento analítico de aprehensión de tales fenómenos. La arena de los signos sigue siendo – bajtinianamente- un claro campo de batalla. De allí que escogimos trabajar con un significante particular: el ‘negro’. Figura que condensa de una manera muy compleja, tanto la idea de conflicto que la atraviesa (¿es el color, la piel, es decir, consideraciones A nivel ontológico -en la experiencia contemporánea- el Rostro del otro no es algo dado sino que adquiere esta consideración a partir del reconocimiento que recibe. Es así que en la escena mediática las vidas y las muertes de algunos grupos o sujetos aparecerían desrealizadas porque han sido objeto de procedimientos ideológicos de visibilidad/invisibilidad que produjeron la ‘Pérdida del Rostro’ de esos otros. ‘Pérdida del Rostro’ algunas veces por no aparecer en el régimen de lo visible; otras, por el tratamiento estadístico de esas vidas/muertes y en otros casos por la puesta en escena, en primer plano, de caras que no adquieren el carácter significante y la significación de Rostro según Levinás (BOITO, 2008: 120). 47

122

Negro de Mierda, geometrías corporales y situación colonial

perceptúales sobre el otro instituidas desde una potestad eugenésica la que posibilita el argumento de su exclusión?) como en tanto evidencia el efectivo silenciamiento de la violencia mimética que caracteriza a las sociedades modernas en su necesidad de ‘un’ chivo expiatorio. Pero la figura del ‘negro’ también se transforma de estigma a emblema. Pero allí no radica su potencial, sino en la posibilidad de intervenir con (y desde) el silencio allí donde todo se ha dicho y dejar espacio a la acción. Ejercicio de generar espacios de oscuridad, de invisibilidad que reinstale, subrepticiamente, el potencial transformador que aún portan las clases subalternas entendidas en su carácter de representación del conflicto social. El puesto del NM en la pintura del mundo colonial del siglo XXI en nuestro país posibilita pensar en los “olvidos” y “desplazamientos” que viene sufriendo la re-discusión de lo popular y lo subalterno en tanto fenómeno de clase.

Bibliografía BOITO, E. (2008). “Alterida(es) de clase(s) en el espacio social contemporáneo. El orden solidario como mandato transclasista y la emergencia de heterogéneas figuras de la crueldad de clase. Descripción y análisis de algunas escenas televisivas (2006-2007)”Tesis doctoral de la Facultad de Ciencias Sociales/UBA. BOITO, M.; CERVIO, A. y ESPOZ M (2009). “La gestión habitacional de la pobreza en Córdoba: el antes y despuésde las Ciudades-Barrios”. Boletín Onteaiken. Nº 7. Disponible en http://www.accioncolectiva.com.ar/sitio/ boletines/ver/boletin7.htm. BUCK-MORSS, S. (2005). “Estética y anestésica: una reconsideración del ensayo sobre la obra de arte”. En: Walter Benjamin, escritor revolucionario”. Buenos Aires, Interzona. 123

Adrián Scribano e María Belén Espoz

ESPOZ, M (2009). “La Ciudad y las ciudades-barrio: tensión y conflicto a partir de una lectura de la producción mediática de miedos en el marco de espacios urbanos socio-segregados”. Relaces. Nº 1. Disponible en http:// www.relaces.com.ar/index.php/relaces/article/view/espoz1/3. ESPOZ, M.; MICHELAZZO, C. y SORRIBAS, P. (2010). “Narrativas en conflicto sobre una ciudad socio-segregada. Una descripción de las mediaciones que las visibilizan”. En: Boito-Scribano (comps.), El purgatorio que no fue. Acciones profanas entre la esperanza y la soportabilidad. Buenos Aires, CICCUS. GROSSO, J. (2008a). Indios Muertos, Negros Invisibles: Hegemonía, Identidad y Añoranza. Córdoba Encuentro, Grupo Editor. --------------- (2008b). “Semiopraxis en contextos interculturales poscoloniales. Cuerpos, fuerzas y sentidos en pugna”. Revista Espacio Abierto. Vol 17, Nº: 231-245. --------------- (2009a). “Desbarrancamiento. Ecos de la fenomenología en la heteroglosia poscolonial de espacio-tiempos otros”. Revista Convergencias. Nº 51: 157-179. --------------- (2009b). “Cuerpos del discurso y Discurso de los Cuerpos. Nietzsche y Bajtín en nuestras relaciones interculturales”. Relaces. Nº 1: 44-77. GRÜNER, E. (2002). El fin de las pequeñas historias. De los Estudios Culturales al retorno (imposible) de lo trágico. Buenos Aires, Paidós. LEVSTEIN, A. y BOITO, E (Comps.) (2009). De insomnios y vigilias en el espacio urbano cordobés. Lecturas sobre Ciudad de mis sueños. Córdoba, Jorge Sarmiento Editor. SCRIBANO, A. (2007a). “La Sociedad hecha callo: conflictividad, dolor social y regulación de las sensaciones”. En: Scribano, A. (Comp.), Mapeando interiores. Cuerpo, Conflicto y Sensaciones’. Córdoba, Jorge Sarmiento Editor.

124

Negro de Mierda, geometrías corporales y situación colonial

--------------- (2007b). “Salud, Dinero y Amor…! Narraciones de estudiantes universitarios sobre el cuerpo y la salud”. En: Scribano, A. (Comp.), Policromía Corporal. Cuerpos, Grafías y Sociedad. Córdoba, J. Sarmiento Editor. --------------- (2009a). “Introducción. Ciudad de mis Sueños: hacia una hipótesis sobre el lugar de los sueños en las politicas de las emociones”. En: Levstein, A. y Boito, E. (Comps.), De insomnios y vigilias en el espacio urbano cordobés. Lecturas sobre Ciudad de mis sueños. Córdoba Jorge Sarmiento Editor. --------------- (2009b). “Capitalismo, cuerpos, sensaciones y conocimiento: desafíos de una Latinoamérica interrogada”. En: Mejía Navarrete (Comp.) Sociedad, Cultura y Cambio en América Latina, Perú, Universidad Ricardo Palma. --------------- (2010c). “Estados represivos. Políticas de los cuerpos y prácticas del sentir”. Revista Brasileira de Sociologia da Emoção. Vol. 9, No 25: 98-140. --------------- (2010d). “Un bosquejo conceptual del estado actual de la sujeción colonial”. Boletín Onteaiken. Nº 9. Disponible en http://www. accioncolectiva.com.ar/sitio/boletines/ver/boletin9.htm. SCRIBANO, A. y BOITO, E. (2010a). “La ciudad sitiada: una reflexión sobre imágenes que expresan el carácter neocolonial de la ciudad”. En: Actuel Marx Intervenciones:, Cuerpos contemporáneos: nuevas prácticas, antiguos retos, otras pasiones. Santiago de Chile, Ediciones y Universidad Bolivariana. SCRIBANO, A. y CERVIO, A. (2010b). “La ciudad neo-colonial: Ausencias, Síntomas y Mensajes del poder en la Argentina del siglo XXI”. Sociológica, Revista del Colegio de Sociólogos del Perú. N° 2. Disponible en http:// www.colegiodesociologosperu.org/revista_sociologica.html. SOLOMIANSKI, A. (2003). Identidades Secretas: la negritud argentina. Rosario, Beatriz Viterbo Editora.

125

Adrián Scribano e María Belén Espoz

Otras fuentes consultadas Plan Nacional contra la Discriminación, aprobado por Decreto 1086/2005. Página del INADI: http://www.inadi.gov.ar/inadiweb/index.php (15/07/08). Pagina www.proyectomapear.com.ar/ Página del blog quétupé: www.quetupe.com.ar/ventajas-de-ser-un-negro-demierda/

126

Corpos en Concierto: diferencias, desigualdades y disconformidades

EL CUERPO SUFRIENTE DEL MERCADO: “sweat the fat” Juan Pablo Aranguren Romero

El capitalismo en su versión neoliberal ha implicado profundas transformaciones en las formas en las que opera la política. A las prácticas policiales y vigilantes se sumarán las prácticas de gobierno sobre la vida y la muerte, posibilitadas en gran medida por las formas disciplinares que estimularon la incorporación de normas sociales. A partir de los análisis de Michel Foucault se entrevé que tras la articulación entre una biopolítica de la población y una anatomopolítica del cuerpo: […] la vida ingresará en la historia de un modo doble: por un lado, ella será una fuerza que subyace en cada cuerpo individual, haciéndolo posible pero también aniquilándolo como particularidad. Por otro lado, la vida será una fuerza que proporcionará a la población su carácter y su capacidad productiva más allá de las variaciones individuales que, no obstante, son la instancia necesaria a partir de la cual la vida misma puede ser caracterizada y controlada (SÁNCHEZ, 2007: 32).

Una de las particularidades que tiene el capitalismo, sobre todo en su versión contemporánea, es la apelación a formas de seducción renovadas surgidas a partir de los flujos de imagen y de la necesidad de exacerbar las prácticas de consumo. La renovación viene dada sobre todo porque aquello que se visualizaba como antítesis o incluso resistencia al mercado y al consumo, retorna como parte de él. Tal tendencia a la mutación, sin embargo, es justamente lo que lo sostiene. En América Latina, estas “mutaciones” estuvieron acompañadas de profundas reestructuraciones en el orden político, pero también en el orden del cuerpo y el deseo (a nivel micropolítico). En el escenario latinoamericano este proceso de transformación del mercado vino de la mano con prácticas genocidas y autoritarias tanto en gobiernos de 127

Juan Pablo Aranguren Romero

facto como gobiernos democráticos. La contracara del neoliberalismo latinoamericano (ARANGUREN, 2010) fue la de la tortura, la desaparición y la militarización de las relaciones sociales hechos todos que terminaron por llevar las subjetividades al límite, deshumanizando el trabajo, descolectivizando las organizaciones sociales, pero también desapareciendo lo que consideraban anómalo o indiscreto. Inscrito en el cuerpo, este orden político y económico apuntará a desmembrar los procesos de organización política y movilización social, a la vez que buscará acallar las voces y las memorias de estas experiencias límite. Las subjetividades llevadas al límite en el marco de estas violencias suponen que la vida quede más que nunca anclada a un orden social que convoca al sufrimiento, al terror y al miedo y que desdibuja los rasgos de humanidad sobre las que se ancla esta vida. Es al mismo tiempo un miedo y un sufrimiento generalizados. Y es justamente este desdibujamiento de la vida el que se correlaciona funcionalmente con el mercado autorregulado, con el hecho de que la actividad humana, la naturaleza y el intercambio, siguiendo a Polanyi (2007), queden constituidas como mercancía. Un buen ejemplo de ello se puede entender a partir de lo que significa el trabajo humano que hace que la potencia de vida que lo moviliza retorne como mercancía destructora, como fuerza de muerte. El trabajo deshumanizado pierde todo rasgo vital, además la descolectivización se generaliza: se trata también de las subjetividades llevadas al límite por vía de la desregulación. El trabajo poco a poco iría dejando de ser fuente de vida para empezar a ser fuente de sufrimiento, pena y aflicción (CIFUENTES, 2007). Una realidad tan desoladora para la vida misma pues supuso que el cuerpo humano, llevado al límite en la explotación, convertido en cuerpo-sufrimiento siguiera, no obstante, rodeado y convocado a su explotación por vía del espectáculo atractivo, reluciente y brillante del mercado. Se trata de las relaciones abstractas e imaginarias que el mismo Marx señalaba a propósito de la formamercancía, es decir aquella relación cuasi fantasmal o fantasmagórica que posibilita que la mercancía desdibuje sus condiciones de producción y se presente a sí misma como en un mudo ilusorio (MARX, 1999).

128

El cuerpo sufriente del mercado: “sweat the fat”

Como se sabe, los flujos de imagen constituyen una parte esencial del éxito expansivo del mercado. Es justamente lo que indica Walter Benjamin (1973, 1978) al subrayar cómo el mundo de ilusión creado por el capitalismo ejerce tal grado de fascinación sobre los seres humanos que termina dirigiéndose específicamente hacia sus deseos ocultos. Los estereotipos de belleza, salud y superación personal instalaron ideales corporales y estéticos que a su vez trazaron los rasgos de la vida posible de ser soñada; dietéticas y estéticas movilizaron también los cuerpos a la necesidad y urgencia de la modificación, la tonificación, el ensanchamiento o la reducción. Las necesidades de transformación corporal que acompañan las búsquedas de vínculos identitarios, serán parte esencial del sostenimiento del mercado. Lo que dinamiza esta movilidad de la búsqueda identitaria son también otras identidades esporádicas cuyo brillo dura un parpadeo; imágenes – modelos de vida en permanente cambio: cuerpos recubiertos por una piel sin cicatrices, sin humores, sin enfermedad; cuerpos que reemplazan a otros cuerpos para mantener vigente la infinitud de su imagen: cuerpos caducos que paradójicamente sostienen la eterna vigencia de la imagen. Se trata de lo que Bauman (2007) refiere cuando compara el lugar del cuerpo en la sociedad de productores y en la sociedad de consumidores. En la primera: […] era el cuerpo del futuro obrero o soldado lo que contaba, mientras que sus espíritus debían ser silenciados y por lo tanto “desactivados”, dejados de lado, soslayados y obviados a la hora de evaluar políticas y tácticas. La sociedad de productores y soldados se dedicaba al manejo del cuerpo de sus integrantes para adaptarlos a las condiciones imperantes en el entorno en que tendrían que vivir y actuar: la fábrica y el campo de batalla (BAUMAN, 2007: 79–80).

Mientras que en la segunda: […] concentra sus fuerzas de coerción y entrenamiento, ejercidas sobre sus integrantes desde la más tierna infancia y a lo largo de todas sus vidas, en el manejo del espíritu, y deja el manejo del cuerpo en manos de los individuos y sus tareas de bricolaje, supervisados y coordinados personalmente por individuos entrenados y coercionados espiritualmente (BAUMAN, 2007: 80). 129

Juan Pablo Aranguren Romero

Por eso a la metáfora del panóptico benthamiano se le superpone la del sinóptico: muchos se dedican a observar a unos pocos: “los espectáculos ocupan el lugar de la vigilancia sin perder nada del poder disciplinario de su antecesora” (BAUMAN, 2002: 92). La seducción y la persuasión emergen vigentes en el proceso de construcción de subjetividades: “Hoy, la obediencia al estándar […] tiende a lograrse por medio de la seducción, no de la coerción […] y aparece bajo el disfraz de la libre voluntad, en vez de revelarse como una fuerza externa” (BAUMAN, 2002: 92). Expuestos ante sí mismos, los sujetos – individuos se enfrentan ante un inagotable proceso de búsqueda tanto de sentido (BERGER y LUCKMAN, 1997), como de recubrimientos y encubrimientos; revestir el cuerpo con los ropajes del éxito, la moda y la pasarela o enfrentar ante el espejo la desnudez del abandono, del riesgo, la incertidumbre y la inutilidad. Esta última confrontación es la cotidianidad de «los excluidos», según Castel (2004) de «los perdedores» descritos por Dahrendorf (2005) o de la infraclase retomada por Bauman (2007). Al transferir la responsabilidad y preocupación de la “aptitud social” a los individuos, según Bauman, los mecanismos de exclusión de la sociedad de consumidores serán más fuertes, inflexibles e inquebrantables que en la sociedad de productores. Los anormales o inaptos de la sociedad no serán más, como en la sociedad de productores, los que al no poder ser integrados al orden social requieren de terapia o de ordenamientos correccionales, sino los que no son capaces de entrar en el orden del consumo: “A causa de esa presunción, en la sociedad de consumidores toda “invalidez social” seguida de exclusión sólo puede ser el resultado de falencias personales” (BAUMAN 2007: 82). Ahora bien, ¿qué sucede si los discursos sobre los que se instalaban las prácticas de seducción y persuasión del mercado contemporáneo de repente incorporan lo que en otrora se les criticaba; de repente aluden a prácticas comerciales justas, al cuidado del medio ambiente, e incluso al cuidado de sí? ¿Qué significa esta transformación?

130

El cuerpo sufriente del mercado: “sweat the fat”

Suda el Jamón: (“sweat the fat”) En 2008 Nike emprendió una nueva campaña publicitaria, en el marco de su slogan base “Body by” que ha venido sosteniendo en los últimos años con distintas versiones (Body by Run; Body by Dance, etc.). La apelación al cuerpo como punto esencial de su campaña no fue para nada una novedad, ya que las marcas deportivas han recurrido siempre a la imagen del cuerpo atlético y en vez de usar modelos de pasarela emplean a deportistas famosos. La campaña de 2008 tuvo como énfasis el “body by dance” y estuvo dirigida fundamentalmente al público hispano teniendo sendas discusiones en internet (foros de discusión, blogs, etc.) por polémicas de distinto orden. La campaña publicitaria se llamó “Suda el Jamón” y muestra a una mujer delgada de aproximadamente 30 años que llega a un hospital a realizarse una cirugía estética. En el hospital se muestran algunas imágenes que revelan su preparación para la cirugía (su cuerpo es rayado en diferentes zonas, usa una bata verde de hospital, etc.). Finalmente es llevada a una sala de operaciones donde se le ve nerviosa y angustiada. Entre estas imágenes se muestra a manera de flashes una máquina que corta trozos de jamón en fetas. Justo cuando la mujer se encuentra acostada en el quirófano a punto de ser anestesiada, se levanta y sale corriendo de la sala de cirugía y empieza a bailar al son de una canción de reggaetón48. Otras mujeres se suman al baile y todas se van quitando la bata verde de hospital y se colocan ropa deportiva. La canción y las mujeres bailarinas se muestran como impugnantes ante el orden estético del cuerpo femenino intervenido quirúrgicamente. La campaña al final, apunta a subrayar la importancia de hacer sudar el cuerpo (a través del baile y el ejercicio) en oposición a las cirugías estéticas. La idea de cuerpo que circula en esta campaña publicitaria propone una resistencia contra el cuerpo sufriente de la cirugía: mientras las mujeres bailan con total cadencia y libertad por los pasillos del hospital, otra mujer llena de vendas en todo el rostro y en silla de ruedas las mira con cierto grado de desazón, envidia e impotencia. 48

Ver la letra en el anexo.

131

Juan Pablo Aranguren Romero

Un análisis de la letra de la canción que acompaña este baile, revela que la impugnación que traza frente a la cirugía: “ahora que yo te lo digo, un cuchillo, lejos de mi ombligo, ahora que yo te lo digo, ya verás que no puedes conmigo […] Yo te lo digo, mi cirujano, estas carnes no pasan por tus manos.” no se da contra el patrón estético del cuerpo femenino, ya que lo que estaría aparentemente cuestionado es el sufrimiento que encarna la cirugía estética: “Lo que prometieron, fue por mejores de liposucciones y también otros peores, de tanto jamones, con bisturís, cicatrices, moretones y dolores”. Una vez emergida la impugnación: “No quiero el culo de otra, quiero el mío tal cual” aparece, sin embargo, la forma desterritorializada, liberada, si se quiere del mercado, aquella que constituye el ejercicio físico: “si querés tener dos peras, pero de veras, mejor es que te pongas la sudadera” […] “soy la que te mueve, antes que lo pruebes soy la que te enseña y te quita las vendas, soy la que te importa y te tira la bomba, es estar en forma mi única norma”. El grupo de mujeres bailarinas, una vez se han quitado el constreñimiento que “encubre” su cuerpo, materializado en la bata verde del hospital, se revisten con la línea deportiva de Nike. Su cuerpo, después de tremendos movimientos coreográficos, transpira y diluye la tinta con la que ha sido marcado previo a la cirugía. El cuerpo sufriente se diluye con el sudor del cuerpo ejercitado: “esta transpiración es cosa sexy jugosa […] a quemar las grasas, para moldear la masa y no verse como pasa”. Los axiomas reconfiguran identidades y prácticas sociales y así el cuerpo del mercado sigue ligado a la necesidad de transformación pero sobre la base de una impugnación y de una resistencia que son complacientes con los reclamos a la intervención quirúrgica. Una cierta “naturalidad” enmarca esta nueva práctica pues al hacer visible la artificialidad de la cirugía “no me quiero emplasticar”, reivindica un cuerpo natural, fisiológicamente dispuesto para traspirar: “quiero mi cuerpo tal cual”. Lo que se pone en evidencia en la campaña de Nike, es una forma particular de transgresión de los patrones de imagen del mercado, como estrategia de seducción y persuasión. Se trata de una suerte de descodificación que de repente pasa de ser problemática a útil y necesaria. Aquello que aparecía como desorganizado, descodificado, como puro flujo, entra ahora en el orden del capital, es funcional y útil a él: 132

El cuerpo sufriente del mercado: “sweat the fat”

Y es que el capitalismo dispone de una especie de axiomática, dispone entonces de algo nuevo que no se conocía. Y esta es, como sucede con todas las axiomáticas, una axiomática, al límite, no saturable; lista para añadir siempre un axioma de más que hace que todo vuelva a funcionar (DELEUZE, 1997).

Las estéticas del cuerpo que habían sido acalladas, las posturas y composturas que habían sido condenadas a la corrección, las experiencias sensoriales que fueron relegadas a charlatanerías y los goces que habían sido objeto de todos los controles, son ahora parte de la máquina: a mayor descodificación mayor extensión de la máquina. Más flujo, más desorden, más cuerpos al límite, más capital: Hay una paradoja fundamental del capitalismo como formación social: si los flujos descodificados han sido el terror de todas las otras formaciones sociales, el capitalismo se ha constituido históricamente sobre algo increíble, a saber, lo que era el terror de las otras sociedades, la existencia y la realidad de flujos descodificados y que de hecho son asunto suyo (DELEUZE, 1997).

Pero ¿significa esto que siempre se estaría al borde de que las impugnaciones al orden social y las resistencias sean reabsorbidas por la cadena de significantes que se agrupan en el mundo de la publicidad y el mercado? ¿Qué implica que el cuerpo llevado al límite de sus tramas capitalísticas sea el movilizador de “consumos solidarios”, “moda étnica”, “responsabilidad social empresarial”, o “modelos reales” como las mujeres de la campaña de Dove? Si esta movilización, si este efecto descodificador y expansivo se da será acaso porque ¿las tramas del capitalismo siguen allí, pero ahora bajo la ilusión de una desubjetivación cautivante y persuasiva?. La dignidad y libertad promulgadas como punta de lanza del proyecto neoliberal se sostienen en el marco del capitalismo contemporáneo gracias a este juego de persuasiones, gracias a estos giros retóricos que posibilitan la emergencia de un cuerpo que deja de operar como objeto de los encierros, disciplinamientos y sufrimientos sino que se promulga como

133

Juan Pablo Aranguren Romero

el cuerpo digno que resiste a la cirugía estética y el cuerpo que se libera en el ejercicio físico y el baile49. El gran problema de estas formas de resistencia política es que supone contar con el hecho de que si el poder produce subjetividad termina al mismo tiempo por definir las reglas de despliegue de la vida, de modo que no habría impugnación que no tenga como correlato la desaparición de ese sí-mismo moderno-capitalista: El orden capitalístico es proyectado en la realidad del mundo y en la realidad psíquica. Incide en los esquemas de conducta, de acción, de gestualidad, de pensamiento, de sentido, de sentimiento, de afecto, etc. Incide en los montajes de la percepción, de la memorización y en la modelización de las instancias intrasubjetivas (GUATTARI y ROLNIK, 2005: 60).

Por otra parte, si el Estado moderno latinoamericano se funda sobre la base de una serie de clasificaciones sociales coloniales (QUIJANO, 2007) y si dicho Estado encubre bajo las tramas de la ciudadanía el racismo, la marginalización y la exclusión que lo hicieron posible (ARANGUREN, 2009), la impugnación y la rebelión tendrán que buscar no sólo poner en evidencia esta ocultación sino que tendrá que buscar otras formas de construir ese lazo social y de situar los lugares de enunciación. En otras palabras implicaría descolonizar el cuerpo y llevarlo más allá o más acá de lo molar: “Es muy fácil hablar de una «decolonialidad» a nivel molar sin ver la colonialidad alojada en las propias estructuras del deseo que uno mismo cultiva y alimenta” (CASTRO-GÓMEZ, 2007: 171). Ello, siguiendo con la idea de Castro-Gómez y otros autores de lo que se ha dado a llamar el grupo modernidad/colonialidad supone la descolonización En el mismo sentido se puede emprender la reflexión sobre terapias alternativas. En ese sentido considero que la vigencia de las terapias alternativas y de formas ‘novedosas’ de acceder al conocimiento personal debe ser leída a la luz de los giros contemporáneos que ha tomado las formas sólidas de verdad hacia marcos fluidos de verosimilitud. Con todo, esta fluidez, no se expresa, ni se entiende, como una mera reabsorción del capitalismo de estilos de vida, ni mucho menos como sólo un escenario para un nuevo paradigma estético-político (tal como plantea Pedraza (2007). Creo que puede moverse en uno y otro lugar: reabsorbido por el capital o como una autoconciencia liberadora. 49

134

El cuerpo sufriente del mercado: “sweat the fat”

del ser (MIGNOLO, 1995; MALDONADO, 2007). ¿Es posible entonces, descolonizar el cuerpo? ¿Es posible liberarlo de las tramas del mercado? ¿Cuál es la responsabilidad que le atañe a las ciencias sociales que han hecho eco del «giro corporal» al mismo tiempo que la publicidad y el mercado?

Anexo LETRA DE “SUDA EL JAMÓN” Lo que prometieron, fue por mejores de liposucciones y también otros peores De tanto jamones, con bisturís, cicatrices, moretones y dolores Yo no me quiero emplasticar No quiero el culo de otra, quiero el mío tal cual Acá estamos las mujeres para moverlo todo pone ritmo, abdominal Mira como sube, que adrenalina Estoy rociada como con aceite de oliva Soy tu perra la que no te esquiva la que te transpira, la que te aniquila ahora que yo te lo digo un cuchillo, lejos de mi ombligo ahora que yo te lo digo ya verás que no puedes conmigo Suda el jamón Suda el jamón que así te pones bombón (repite) Mueve el jamón Acá está la perra la más sucia del planeta Tierra y me voy para que no me digas mentirosa 135

Juan Pablo Aranguren Romero

esta transpiración es cosa sexy jugosa Yo te lo digo, mi cirujano estas carnes no pasan por tus manos A quemar las grasas para moldear la masa y no verse como pasa Si soy grosera que me desespera, sobre manera de lo que te espera si querés tener dos peras pero de veras mejor es que te ponga la sudadera soy la que te mueve ante que lo pruebes soy la que te enseña y te quita las vendas soy la que te importa y te tira la bomba es estar en forma mi única norma Suda el jamón, suda el jamón para que te pongas bombón Artista: Debi Nova Música: Gustavo Santaolalla y Adrián Sosa Para ver el video: http://www.youtube.com/watch?v=4913hf9RprU

Bibliografía ARANGUREN, Juan Pablo (2009). “Subjetividades al límite. Los bordes de una psicología social crítica”. Universitas Psychologica. Vol. 8, No 3: 601– 613. ARANGUREN, Juan Pablo (2010). “Del barroco colonial al biopoder neocolonial: giros retóricos y persuasiones del cuerpo”. En: Biopolítica, reflexiones sobre la gobernabilidad del individuo. Madrid, S&S Editores. 136

El cuerpo sufriente del mercado: “sweat the fat”

BAUMAN, Zigmunt (2002). Modernidad líquida. Buenos Aires, Fondo de Cultura Económica. BAUMAN, Zigmunt (2007). Vida de consumo. Buenos Aires, Fondo de Cultura Económica. BENJAMÍN, Walter (1973). “La obra de arte en la época de su reproductibilidad técnica”. En: Discursos Interrumpidos I. Madrid, Taurus Ediciones. BENJAMÍN, Walter (1978). “Surrealism. The Last Snapshot of the European Intelligentsia”. En Peter Demetz (Comp.), Reflections. New York, Schocken Book. BERGER, P. y THOMAS LUCKMANN (1997). Modernidad, pluralismo y crisis de sentido. Barcelona, Paidós. CASTEL, Robert (2004). La inseguridad social ¿Qué es estar protegido? Buenos Aires, Manantial. CASTRO-GÓMEZ, Santiago (2007). “Michel Foucault y la colonialidad del poder”, Tabula Rasa. No 6: 153–172. CIFUENTES, Luis (2007). “El suplicio de la carne y la potencia del trabajo”. Bogotá, Editorial Pontificia Universidad Javeriana. DAHRENDORF, Ralf (2005). En busca de un nuevo orden. Una política de la libertad para el siglo XXI. Barcelona, Paidós. DELEUZE, Gilles (1997). Curso del 16 de noviembre de 1971. (Traducción de Ernesto Hernández B. Santiago de Cali). Disponible en: http://www. con-versiones.com/nota0383.htm. GUATTARI, Félix y Rolnik Suely (2005). Cartografías del deseo. Buenos Aires, Tinta Limón. MALDONADO-TORRES, Nelson (2007). “Sobre la Colonialidad del Ser. Aportes para el desarrollo de un concepto”. En: S. Castro-Gómez y R.

137

Juan Pablo Aranguren Romero

Grosfoguel (Comps.), El giro decolonial: reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá, Siglo del Hombre Editores. MARX, Karl (1999). El Capital, vol. 1. México, Fondo de Cultura Económica. MIGNOLO, Walter (1995). “Decires fuera de lugar: sujetos dicentes, roles sociales y formas de inscripción”. Revista de crítica literaria latinoamericana. Vol. 11: 9-32. NEGRI, Antonio y Guattari, Félix (1999). Las verdades nómadas & General Intellect, poder constituyente, comunismo. Madrid, Akal. PEDRAZA, Zandra (2007). “Saber emocional y estética de sí mismo: la perspectiva de la medicina floral”, Anthropologica. No 25: 5-30. POLANYI, Karl (2007). La Gran Transformación. Buenos Aires, Fondo de Cultura Económica. QUIJANO, Aníbal (2007). “Colonialidad del poder y clasificación social”. En: S. Castro Gómez y R. Grosfoguel (Comps.), El giro decolonial: reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá, Siglo del Hombre Editores. SÁNCHEZ, Rubén (2007). “Alcances y límites de los conceptos Biopolítica y Biopoder en Michel Foucault”. En: Sánchez, Rubén (Comp.), Biopolíticas y formas de vida. Bogotá, Editorial Universidad Javeriana.

138

Corpos em Concerto: diferenças, desigualdades e desconformidades

ASCETISMO E CULTURA CORPORAL Maria Ester Lima Oliveira

É possível analisar o discurso da produção corporal contemporânea a partir da lógica do esforço disciplinado e laborioso para conquista do corpo desejado? A resposta a essa questão seria positiva, caso nos reportássemos aos resultados obtidos na dissertação A produção corporal em academias de musculação50, de 2009, e que constituirá o eixo de argumentação do presente ensaio. Ali encontramos um discurso comum: a necessidade de se trabalhar arduamente para obtenção do corpo almejado, que atuaria como recompensa pelo sacrifício, privações e esforço empreendidos. De um modo semelhante, poderíamos afirmar, o céu na terra era o horizonte do calvinista que acreditava numa redenção mediante o trabalho, como relatou Weber na Ética Protestante e o espírito do Capitalismo. Nos dois casos, num labor que visa ao corpo e num labor que orienta a ascese intramundana, a transcendência subjetiva se coloca não para além das penas, do sofrimento pressuposto na disciplina, mas a partir destas penas e sofrimento. Ou seja, temos, nos dois casos, o desenvolvimento de um ethos cuja ascese, cujo esforço e disciplina constituiriam o caminho para graça; porém, a promessa constantemente postergada de gozo é terrena. Alguns autores - e aqui a ênfase em Francisco Ortega, com quem esse trabalho pretende dialogar - preferem enfatizar a ausência de sentido moral, o hedonismo, o gozo imediato, que orientam a cultura corporal. Porém, os praticantes das atividades físicas em questão, ao enfatizarem a necessidade do trabalho corporal, do exercício físico extenuante, a renúncia de diversos prazeres mundanos para obtenção de determinado modelo de aparência corporal, indicam a existência de um sentido moralizante nessas práticas.

Oliveira, Maria Ester L. (2009). A produção corporal em academias de musculação. Programa de Pósgraduação em Sociologia/UFPE. Inédita. 50

139

Maria Ester Lima Oliveira

Asceses clássicas e bioascese No contexto da cultura corporal contemporânea, entre outras coisas, fitness é um ideal apresentado como remédio que garante a proteção contra todos os males da sociedade moderna. Às drogas, ao consumo excessivo, às depressões e distúrbios alimentares, a tudo o exercício físico responderia como “receita de felicidade e possibilidade de construção de uma biografia íntegra em tempos de desordem e desintegração social” (GLASSNER apud ORTEGA, 2005: 164). Assim, encontramos certo sentido moral no cuidado com o corpo, ou uma moral ancorada no corpo e não mais relacionada às virtudes de personalidade como outrora51; sendo o cuidado corporal, com a saúde e com a aparência o espaço onde se situa a moral na contemporaneidade. Se existe um espaço moral para o indivíduo na contemporaneidade, esse seria o cuidado com a própria saúde, com a própria imagem corporal. É a partir disso que podemos compreender o seguinte depoimento retirado de nossa dissertação. Eu lembro que eu li num livro que você ser uma pessoa muito relaxada com o corpo e com o jeito de se vestir transmite que você é ou pode ser assim no trabalho. Eu também acho que a pessoa... Não acho que é assim: o cara é gordo ele vai ser um funcionário mau. Para mim, não. Eu já tenho até uma certa experiência e sei que não é assim. [...] Mas eu acho que o corpo reflete um pouco não totalmente o que a pessoa é. Se eu cuido do meu corpo eu também cuido de outras coisas. Se eu sou uma pessoa relaxada, não é uma regra, mas pode transmitir isso, não é regra. [...] O corpo de uma pessoa transmite um pouco do que ela é, a menor parcela, a maior é você conhecer ela.[...] mas transmite um pouco [...] mas em excesso, relaxado gordão demais não se preocupa com outras coisas mais. Não é o cara que tem um ‘buchinho’ aqui um ‘buchinho’ ali não Há aqui um fato curioso. De acordo com Sfez, há ou houve uma distinção – de longa tradição remontando à Grécia antiga – entre a aparência e o ser: a aparência seria tudo que nos é exterior e o eu seria algo bem distinto do conjunto de traços ou qualidades secundárias – forma, peso e tamanho. O que significa que a essência do ser estaria resguardada, enfurnada no espaço mais profundo do sujeito, invisível, secreta e indecifrável, senão ao criador. Já o exterior seria a aparência, a contingência, o não necessário, fadado à mudança, à corrupção e à morte (1995:48-49). 51

140

Ascetismo e cultura corporal

transmite, porque aí é só um pequeno descuido ou uma falta de tempo, porque às vezes ele é tão dedicado ao trabalho que não tem tempo de cuidar do corpo, vive viajando... Mas, quando é demais não tem pra onde... Alguma coisa ele está relaxado demais! (S. 31 anos, engenheiro).

Jean-Jacques Courtine, em seu texto sobre a origem da cultura corporal nos EUA e mais especificamente do body-building, encontra traços muito fortes da inconfundível influência do puritanismo ascético nessas práticas. A essa influência já havíamos aludido acima, ao comparar o ethos calvinista aos princípios morais que norteiam as práticas corporais em academias de ginástica. É necessário marcar, entretanto, que na sociedade brasileira o puritanismo não tem sido historicamente um traço tão marcante quanto o é na norte-americana. Nossa tradição religiosa é católica – marcada por forte sincretismo - cujo ascetismo predominante é extramundano, o que significa que os compromissos com a racionalização do mundo, traço do puritanismo, não orientariam fortemente as práticas que este ethos determina. Não obstante, podemos afirmar que uma sensibilidade muito mais puritana vem se desenvolvendo na cultura brasileira nas últimas décadas. Basta que observemos a expansão recente de formas neoprotestantes e/ou neopentecostais de culto – o que depõe acerca da importância que vem adquirindo formas intramundanas de ascetismo e também da expansão da cultura religiosa norte-americana no Brasil. Neste contexto, o sucesso nos negócios, o cuidado com a própria imagem, têm um sentido que a cultura religiosa brasileira pouco conhecia. Dito isso, retomemos Courtine e sua análise da cultura corporal estadunidense. De acordo com ele, no presente momento histórico, o puritanismo voltou-se para o corpo, de modo que cuidar do corpo tornase o novo método adotado para assegurar a salvação, o que significa que “vosso corpo testemunha vossas qualidades morais” (WILLIAN BLAIKIE52 apud COURTINE 2005: 89 e 94). Assim, Willian Blaikie foi um dos autores pioneiros sobre corpo e atividade física; na verdade, ele foi autor e disseminador de um modo de vida, nos últimos anos do século XIX. Suas obras obtiveram grande sucesso nos EUA, estas, de acordo com Courtine, eram espécies de fisiognomonias para a glória do músculo e propunham como exemplo para todos esses rapazes ‘metade construídos’ um Panteão de corpos dos grandes homens (ibidem: 94). 52

141

Maria Ester Lima Oliveira

O fracasso em atingir e manter os ideais de saúde e perfeição corporal são vistos como expressão da acrasia, de uma vontade fraca, cujo ‘único tirano é sua própria inércia e ausência de vontade - a crença de que você está demasiado ocupado para se responsabilizar por seu próprio bemestar e que a procura de sua saúde por meio de um estilo de vida que promova o bem-estar é demasiado duro, complicado ou inconveniente’. A ideologia da saúde e da perfeição corporal nos faz acreditar que uma saúde pobre deriva exclusivamente de uma falha de caráter, um defeito de personalidade, uma fraqueza individual, uma falta de vontade (ARDEL, apud ORTEGA, 2005: 172).

Tais afirmações remetem diretamente às questões problematizadas por Weber na Ética Protestante, especificamente ao elemento da “prova” – comportamento observado em alguns dos grupos de protestantes por ele estudados –, que decorre do fato de os escolhidos para o paraíso já nascerem definidos, o que significa que a salvação não seria conquistada nem pelas boas obras nem pela fé, tampouco poderia ser obtida por elementos mágicos. Tal ideologia poderia levar facilmente a um niilismo não fosse a ideia da prova, que afirmava que os eleitos, os portadores da graça, eram passíveis de reconhecimento por sua diligência nas suas tarefas, por sua dedicação à sua vocação e por seu sucesso (WEBER, 1989: 68-83). Supomos aqui que alguns traços da cultura puritana foram globalizados pela própria influência da cultura americana no mundo – e isso independentemente de essa influência se operar no terreno religioso. Retomando o que já foi dito, pois, a diligência para com o corpo passou a ser um elemento cultural, o espaço onde “a graça é percebida”. O corpo definido, malhado pela ginástica, testemunha algo sobre o individuo, algo que ele quer transmitir a partir deste corpo: Que eu me cuido, que sou saudável, quero... saúde. No dia que eu tiver um filho eu não quero que ele fume, que ele se drogue que ele beba em excesso, que ele cuide da saúde se inspirando, me tendo como exemplo [...] (S. 31 anos, engenheiro). A idéia seria de uma pessoa que gosta, se dedica, que malha e... [...] Muitas vezes eu passo isso que tomo anabolizante [...] ai o pessoal vê e 142

Ascetismo e cultura corporal

diz ‘ah, não toma bomba!’. Não, eu queria passar que me dedico, sempre me dediquei com meu corpo e estou bem com isso. Então a mensagem é essa: quero mostrar que malho, que tenho dentro da minha rotina um esporte que eu gosto de fazer um esporte, trabalhar [...] (V. 23 anos, estudante). A mensagem que eu tento passar é essa de disciplina, de não desistir fácil das coisas, de correr atrás, passar que não é tão fácil tem que ter paciência, tem gente que entra na academia e acha que em um mês vai estar com um copo maravilhoso que sempre sonhou (J. 28 anos, administrador).

E se o trabalho árduo é um meio fundamental para atingir esse objetivo, é preciso que nos detenhamos em seu sentido não apenas instrumental, mas moral. A valorização do esforço, do trabalho disciplinado para obtenção de um corpo atlético, é usada também como justificativa para a não realização de cirurgias estéticas, a exemplo da lipoaspiração, como modo rápido, fácil demais de obter os resultados corporais visados. É possível perceber essas posturas a partir da fala de alguns entrevistados: Não, não tenho vontade, prefiro pelo meu próprio esforço [sobre cirurgia plástica] (S. 31 anos, engenheiro). [..] mas assim é justamente isso eu vou trabalhar pra isso, trabalhar o corpo para deixar ele nivelado, deixar ele todo proporcional (V. 23 anos, estudante).

O esforço atua como meio, modo pelo qual se obtém esse corpo, e tudo se passa como se o obter tal corpo com seu próprio esforço, fruto do seu trabalho, fosse um plus, uma vantagem, como se esse esforço tivesse conotação e força simbólica próprias. Em grande medida, isso corresponde à eficácia ritual que Sabino (2004: 325) percebeu entre os fisiculturistas, em decorrência do consumo de anabolizantes. Para estes últimos, no entanto, o risco de consumir uma substância perigosa constitui um elo. Em sentido distinto, mas compatível com a ideia de que ritos são elementos importantes na produção de culturas corporais, conseguir determinada aparência corporal por meio do trabalho árduo, do esforço e da disciplina, parece assumir uma conotação também simbólica, embora 143

Maria Ester Lima Oliveira

não se possa afirmar que essa busca por aparência promova elos entre os praticantes de musculação. Essa lógica do esforço e do trabalho remete às posturas ascéticas que, segundo Foucault, são “um conjunto ordenado de exercícios disponíveis, recomendados e até obrigatórios, utilizáveis pelos indivíduos num sistema moral, filosófico e religioso para atingir um objetivo espiritual específico” (apud ORTEGA, 2005: 145). De acordo com Ortega, o ascetismo é um fenômeno universal, pois todas as culturas apresentam disponibilidade para ele, embora esse ascetismo se manifeste sob diversas formas, variando conforme a cultura. Assim, “o asceta pode desafiar a cultura, integrar-se nela, transcendê-la, viver em tensão com ela ou transformá-la” (2005: 140), o que faz com que definições muito fixas de ascetismo, tomadas a partir de algum modelo relativo a dado momento histórico e cultura específica, percam “o alcance geral do fenômeno como operador de formação e transformação cultural” (ibidem). Segundo o autor, houve, no decorrer do processo histórico, diversos tipos de ascese, desde a clássica greco-romana até as cristãs, com características e objetivos distintos, e por vezes opostos, que vão do alheamento do mundo até aquela que tem por fim melhor servir a sua cidade. Nesta, a: Dimensão político–social [era] fundamental, visando sempre o outro e a cidade, eram expressão do amor pelo mundo. A presença do outro e do mundo garantiam a realização do cuidado de si. Os ascetas representavam a solidariedade do grupo e canalizavam valores, necessidades, medos e esperanças da comunidade (ORTEGA, 2003: 71).

No entanto, mesmo com distinções, elas guardam entre si elementos similares, como o fato de o corpo ser submetido a uma dietética (sexual e alimentar, entre outras) com objetivo de superação e transcendência – ascese corporal associada a ascese espiritual - como prova de capacitação para a vida pública, de contato com a divindade ou da superação da condição humana e da adoção da perspectiva da natureza universal (ORTEGA, 2003).

144

Ascetismo e cultura corporal

Nos processos clássicos de subjetivação ascética53, o corpo possuía valor simbólico, base da constituição de um self dono de si. Mediante a ascese corporal e espiritual, o self se preparava e se legitimava para a vida política, atingindo um conhecimento de si ou se anulando na procura de Deus (ORTEGA: 2005). Ou seja, nessas “[...] asceses da Antiguidade, o self almejado pelas práticas de si representava frequentemente um desafio aos modos de existência prescritos, uma forma de resistência cultural, uma vontade de demarcação, de singularização, de alteridade [...]” (ORTEGA, 2003: 63). As asceses, de maneira geral, possuem quatro aspectos que podem ser listados como presentes em toda postura ascética: • Primeiro, “a ascese implica em um processo de subjetivação. Ela constitui um deslocamento de um tipo de subjetividade para outro tipo, a ser atingido mediante a prática ascética. O asceta oscila entre uma identidade a ser recusada e outra a ser alcançada” (2003: 141). • Segundo, “a ascese implica na delimitação e reestruturação das relações sociais, desenvolvendo um conjunto alternativo de vínculos sociais e construindo um universo simbólico alternativo” (2003: 142). • Também, “A ascese é um fenômeno social e político. O ascetismo é uma prática social. [...] os ascetas ressaltavam a solidariedade do grupo tornando-se acessíveis aos valores e necessidades da comunidade” (CLARK,BROWN, ROUSSEAU e RAPP, apud ORTEGA, 2003: 143). • E, finalmente, “está ligada à vontade. [...] Ascese é ascese da vontade, exercício da vontade. [...] Através do exercício ascético, o asceta recupera o conhecimento e o uso da vontade, a unidade da vontade, isto é, consegue retornar à situação paradisíaca do homem antes da queda: a ascese é a imitatio Christi corporal e espiritual (DRIJVERS, HORN, BROWN e FOUCAULT, apud ORTEGA, 2003: 143-144). Nesse sentido, a ascese se constitui como elemento de mudança, de construção de universos simbólicos alternativos, assim como configuração de novas subjetividades e novas relações sociais (VALANTASIS, apud ORTEGA, 2003: 145). Porém, a partir da modernidade e no momento atual, Porque nestes casos o corpo possuía valor simbólico, base da constituição de um self dono de si, que mediante a ascese corporal e espiritual legitimava-se para a vida política, atingia um conhecimento de si ou se autoanulava na procura de Deus (ORTEGA: 2005). 53

145

Maria Ester Lima Oliveira

marcadamente no contexto das práticas corporais, não há esse impulso para a mudança. Os aspectos ascéticos que encontramos ou o emprego de certas práticas que remetem à ascese não são utilizados com intuito de promoção de mudanças, nem em nível individual nem em nível social mais amplo. Pelo contrário, as buscas se dão no sentido de conformação, de enquadramento, e isto devido ao fato de que aparência corporal tornouse sinônimo do self. Encontramo-nos expostos ao olhar e julgamento do outro, não há possibilidade de refúgio nem de se esconder já que tudo que existe está exposto, visível, não há possibilidade de dissimulação, e essa impossibilidade nos deixa vulneráveis ao olhar do outro. Esse eu marcado pelo risco de ser continuamente julgado – é importante lembrar que o olho tornou-se um elemento central dessa sociedade, olhar que promove distanciamento, que nos possibilita perceber o mundo sem nos contaminarmos com suas impurezas – suscita a necessidade de erguer defesas que, nesse caso, efetivar-se-á pela autoprodução corporal, pela adequação do corpo aos moldes do socialmente desejável. Tal comportamento leva à compreensão da diferença em si como ameaça passível de ser punida pelo olhar de censura do outro. No entanto, é preciso ressaltar que essa delimitação cultural ampla é traduzida de modo diferenciado entre os diversos segmentos da população, ou seja, nem todo mundo, por mais que esteja exposto aos estímulos midiáticos e da indústria da moda, vai fazer do corpo musculoso sua ambição ou realidade, por várias razões, inclusive ideológicas54 e econômicas. Nos espaços em que se dá a produção corporal, ela ocorre como elemento de distinção, uma distinção que se manifesta e é sentida de diversas formas, como pode ser percebido nas falas a seguir: Fica bem mais bonito, mais apresentável... Diferente da pessoa com outra forma física. É diferente de chegar na praia uma pessoa que está em forma tudo... E outra pessoa que está... Que tem a barriga...[...] Quando se está fora de forma fica-se mais inibido para usar sunga na praia (A. 28 anos, estudante). Ideologia aqui enquanto conjunto de convicções filosóficas, sociais, políticas etc. de um indivíduo ou grupo de indivíduos. Fonte: dicionário Houaiss, CD-ROM, versão 2.0/ 20001-2007. Rio de Janeiro: Objetiva. 54

146

Ascetismo e cultura corporal

[...] o corpo bonito pode botar o que quiser em cima dele que sempre fica bonito. Feito aquela mulher no carnaval dançando, se ela for feiosa fica vulgar, se tiver o corpo da globeleza fica bonito. [...] Às vezes você nem está mais forte, mas bota uma roupa fica parecendo que você está mais forte. Tem uma camisa minha que toda vez que eu coloco dizem: está mais forte, né ? Eu digo: estou nada [...] já foi o tempo de eu botar aquelas camisas folgadonas... […] Tudo isso eu acho que tudo no mundo, as relações sociais foram organizadas em torno das atrações sexuais e eu acho que isso mais do que tudo é um reflexo da busca pelo sexo (J. 24 anos, contador). Eu acho que esse status assim de forte, [...] assim, para os fortões é superior a qualquer um. Que quem vai ficar fortão é superior a todo mundo. É tipo o magro não vai encarar o fortão para brigar, tipo... É de status, de superioridade ao outro, entendeu? O magro demais não vai... É, tipo assim, na festa passa uma menina... pronto se eu estou com minha namorada aí vai passa uma menina, o fortão vai e mexe com ela, eu vou fazer o que? Eu só vou puxar ela. Vou enfrentar um cara desses? Eu sei que vou apanhar do cara, vou brigar, vou perder, vou terminar apanhando dele. E o magro não, se o cara for reclamar ele pode ser tipo o cara quis ser mais grosso, mais rude com ele... O fortão eu só peço para ele sair de perto: [...] mas o magro eu acho que dá para impor mais... É mais a superioridade mesmo. [...] Nem sempre, só tipo assim para festas... Aquelas coisas assim de briga que se bobear tem gente brigando do seu lado... É mais, aquilo ali para ninguém mexer com você... [...] aí, para não brincarem comigo assim... [...] para ninguém se meter a brincar comigo com besteira, zonar da minha cara e tal... É mas uma questão de superioridade é para os outros não brincarem, não chegarem perto (P. 19 anos, estudante).

É importante ressaltar que ostentar um corpo forte não possui uma interpretação unívoca, essa aparência não é sempre e em todos os contextos vista como algo positivo, não suscita apenas a aprovação social sob a forma de elogios e vantagens na disputa por parceiras e/ou parceiros. Há também o sentido pejorativo que essa aparência carrega, o que se reflete nas falas de alguns praticantes e que pode ser percebido no relato abaixo: 147

Maria Ester Lima Oliveira

[...] do mesmo jeito que favorece às vezes também desfavorece, depende da cultura da pessoa, minha mãe é do interior lá não existia academia, naquela época, [...] para ela forte é sinônimo de quem não tem o que fazer, porque vive na academia. Ela não leva a estética [em consideração] porque o que é forte, se não usa anabolizante, geralmente tem uma saúde melhor, porque é considerada atleta, tem um batimento cardíaco menor, uma freqüência menor, isso é bom para saúde...Ela não pensa nisso, ela pensa está ali dispendendo um bocado de tempo na academia, porque não tem o que fazer. Então junta isso, pessoa forte, com hoje em dia também negócio de pitboy, quem é forte é pitboy. Aquele conceito que tinha, eu vi até isso um dia desses, ‘quem é forte não tem nada na cabeça’, é difícil você ver uma pessoa forte e tenha um conceito intelectual maior, mas eu acho que isso hoje em dia não em nada a ver... Mas tem gente que ainda pensa isso, por isso que eu digo às vezes favorece e às vezes desfavorece. Porquê? Se você for parar para pensar as pessoas mais inteligentes não são pessoas fortes, e algumas das pessoas que não tem nível de QI muito alto são pessoas fortes, mas isso é muito pouca gente, porque hoje em dia ninguém está vendo isso. Tem muita gente que olha para você e faz: ‘pow, o cara é forte, passa o tempo todo na academia não estuda não faz nada! [...] [...] A aula de direito constitucional, aí eu... Antigamente todo mundo na faculdade tinha o hábito de ir para aula de [camiseta] regata... Chega no 5º período os professores começam a cobrar mais [...] Até um dia desses eu usava corrente de prata bem grossa e [camiseta] regata e cheguei dentro da sala. Aí o professor ‘tirou onda’ comigo, porque eu estava de regata... Tirando essa a onda, porque eu era forte e estava de camisa regata e corrente de prata, parecendo um pitboy na aula de direito. O pessoal vê isso: que é uma pessoa irresponsável se vestir desse jeito, ser forte andar de camisa regata, tiver corrente no pescoço, tiver um pit bull... [...] Eu já fui vítima disso, está entendendo? Aí sabe essa: ‘É um pitboy!’; ‘o cara vive para malhar!’; ‘ Ah, o cara não estuda...’ Mas não tem nada a ver. Eu sei separar muito bem meu tempo, às vezes existe um pré-conceito em relação por causa disso, eu acho que não é nem a questão de ser forte ou não, tem mais a questão da vestimenta que ele reclamou [o professor] até por isso eu não vou mais desse jeito. Mas eu sei que isso colaborou, se fosse um magrinho de camisa regata, como já foi e não se falou nada. 148

Ascetismo e cultura corporal

Porque eu estava de boné, de camisa regata de corrente e era forte, ele falou isso. Ele falou mais por causa da vestimenta, mas eu sei que o meu corpo contribuiu para aquilo. Então em alguns pontos, é como eu falei [...] justamente do que isso é característico? É característico do cara que não quer nada com a vida, é ser forte, com camisa regata, usar boné... [...] é acho que para direito, medicina são profissões que a gente sabe que são mais formais... No curso é assim hoje em dia ninguém mais vai assim, no começo todo mundo vai de camisa regata, é ruim por causa disso. É por isso que eu estou dizendo, o fato de eu ser forte contribuiu, aumentou o preconceito que ele [professor] tinha. Se eu fosse magrinho ele podia falar ou não falar... [...] foi uma brincadeira, ele falou rindo, me ofendeu porque foi na frente de todo mundo, ele falou brincando... (E. 20 anos, escrivão da polícia civil e estudante).

Francisco Ortega (2003 e 2005), analisando as modernas formas de subjetivação e práticas de si que a garantem, afirma que, em oposição ao que as asceses promovem, as formas modernas de subjetivação e práticas de si fomentam o conformismo, o totalitarismo e a universalização. A partir disso propõe um conceito específico para compreensão das práticas corporais contemporâneas aqui analisadas, o de bioascese, este conceito responde à demanda de atualização do conceito de biopoder de Foucault e diz respeito a: Uma forma de sociabilidade apolítica constituída por grupos de interesses privados, não mais reunidos segundo critérios de agrupamentos tradicionais como raça, classe, estamento, orientação política, como acontecia na biopolítica clássica, mas seguindo critérios de saúde, performances corporais, doenças específicas, longevidade, etc. (ORTEGA, 2005: 153-154).

A bioascese deriva das asceses clássicas55, mas, enquanto na contemporaneidade assistiríamos a práticas de assujeitamento e disciplinamento, as asceses da antiguidade se entendiam como práticas De acordo com Ortega, a disciplina trabalhada por Foucault teria aproximações e semelhanças com o ascetismo intramundano dos protestantes trabalhado por Weber, ou seja, uma dietética que se processa mediante a vivência do mundo, mas que se apresenta através do modo como se vive. 55

149

Maria Ester Lima Oliveira

de liberdade. Em ambas encontramos as mesmas atividades, porém, almejando objetivos opostos, o que leva à promoção de processos de subjetivação divergentes (ORTEGA, 2005). Para Ortega, as modernas bioasceses teriam efeito despolitizador, já que não possuem como objetivo a transformação do status quo, nem dos arranjos estabelecidos, mas impulsionam o narcisismo conformista e a “vontade de uniformidade, de adaptação à norma e de constituição de modos de existência conformistas e egoístas, visando à procura da saúde e do corpo perfeito” (SFEZ, apud ORTEGA, 2005: 142). Mais adequadamente poderíamos opor uma ascese cujo sentido último não consegue se descolar do niilismo cultural que se propaga na sociedade contemporânea e outra em cujo contexto cultural a busca por um valor fundamental ainda é concebível – e, com essa busca, a constatação da necessidade de mudar o que está instituído. Em nossa sociedade, a ascese perde seu caráter transgressivo, preservando, todavia, na cultura corporal, seu elemento disciplinador, sua moral do autocontrole e um certo prazer espiritualizado, moralizante de transcender, de ser maior do que as urgências da carne56. Esses aspectos podem ser apreendidos a partir do depoimento que se segue: É porque eu sou muito... Sem falsa modéstia, determinado quando eu decidi fazer musculação, por exemplo, quando eu comecei a malhar aos 21/22 anos que foi quando eu engordei pela primeira vez, eu perdi 8kg em um mês e meio e agora quando eu voltei eu perdi 5kg em um mês e depois mais 2kg, eu perdi 7kg nos últimos 3 meses, quando é para perder peso eu fecho a boca, não falto um dia, eu só não venho dia de sexta, de segunda a quinta eu venho todos os dias não falto um faço todos os exercícios, enquanto eu estou malhando eu não converso [...]. Não gosto nem de malhar com outra pessoa que conversa, eu vou com alguém que eu sei que não conversa, [...] Tanto é que eu brinco com amigos meus que têm personal e digo: eu não preciso, porque eu já faço tudo certinho, do jeito que eu estou fazendo, não precisa ninguém estar me incentivando não (S. 31 anos, engenheiro). Para Ortega, no entanto, as bioasceses se distinguem das asceses tradicionais justamente pela inexistência de objetivos morais, filosóficos, religiosos e espirituais, focando apenas na vontade de uniformidade e de adaptação à norma, ou seja, práticas de assujeitamento e disciplinamento puro e simples, visando à procura da saúde e do corpo perfeito. 56

150

Ascetismo e cultura corporal

Um exemplo do disciplinamento existente nessas práticas pode ser apreendido a partir das fichas elaboradas para cada frequentador nas academias. Tais fichas contêm os exercícios e número de séries que cada indivíduo deve fazer a cada dia – como receituário ou guia de atividades. Elas são elaboradas a partir da avaliação física e também de acordo com desejo/objetivo de aparência física a ser atingido. Um aspecto curioso que pode se constituir como “coincidência” é o fato de, nas academias que digitalizaram seus dados, as fichas possuírem formato de extrato bancário emitido em caixas eletrônicos, o que pode nos remeter a uma sensação de relação econômica com nossos corpos. Tal procedimento pode ser facilmente remetido ao caderno de contabilidade que alguns grupos de puritanos elaboravam para controlar sua busca “da graça”. Parece que temos uma dívida a pagar conosco, que a cada dia devemos saldar uma parte, e cujo prêmio é o corpo desejado. Como forma de ilustrar e explicar melhor a ideia lançarei mão de um fato ocorrido durante a pesquisa de campo. Certa vez, minha própria ficha não imprimiu as atividades que deveriam ser realizadas naquele dia, mas indicava que procurasse um professor/instrutor, a este foi necessário informar os motivos para as faltas (entre três opções pré-definidas) que culminou no não cumprimento das atividades no prazo pré-definido - e isto ocorreu mesmo havendo frequência maior do que a pré-definida –, depois de notificada a razão das faltas, foram estabelecidos novos prazos, o que pode levar a concluir, até com certo humor, ser necessário a realização de horas extras para satisfazer o sistema que controla as fichas!

Conclusão Diante de tudo que foi colocado podemos dizer, tal como Sabino (2000: 63), que a forma física tem se constituído como item fundamental de interação social, que se mostra mais forte em espaços de produção dessa aparência, como é o caso das academias de musculação e ginástica, existindo rigorosas normas estéticas nas quais os indivíduos tentam continuamente enquadrar seus corpos. É importante percebermos que não há um modelo fixo, assim como não há um corpo fixo que se almeja 151

Maria Ester Lima Oliveira

atingir; também é necessário destacar que essas questões não se colocam da mesma forma para todos os indivíduos, mesmo reconhecendo que os estímulos à estetização se dão de modo amplo na sociedade, por via, sobretudo, dos veículos midiáticos. Por intermédio tanto das falas coletadas como da observação participante do campo empreendida, constatamos que a lógica sob a qual operam os indivíduos que se propõem a realizar essa produção corporal – os “ascetas contemporâneos ou bioascetas” – é a lógica da mudança contínua, fortemente marcada nas falas pelo “sempre se melhorar”. Não há um modelo fixo, assim como não há um corpo fixo que se almeja atingir, o que pode ser ilustrado a partir do exemplo dos veteranos – indivíduos que transitam de uma forma a outra sempre em busca de uma satisfação que parece nunca chegar, apesar de, muitas vezes, ostentarem formatações corporais equivalentes às suas descrições de “corpo ideal”. É necessária uma reflexão maior no que concerne ao esvaziamento do sentido das práticas ascéticas no tocante às motivações. Diante do que vimos nesse sentido, torna-se indispensável considerar que no momento contemporâneo, ou seja, no que corresponde ao que Ortega denominou bioascese, há um esvaziamento desses outros sentidos, finalidades, que a ascese corporal atua como um fim em si mesma, uma técnica para produzir corpos vistos como perfeitos, e que esta produção tem objetivos vários: aceitação social, proteger-se do julgamento do outro ou fruir essa aprovação. Talvez seja excessivo falar em inexistência de objetivos morais e filosóficos quando mapeamos esses objetivos; uma vez que as falas estão fortemente marcadas pela ética do trabalho, do esforço, do disciplinamento e da autossatisfação, não devem ser desconsideradas, e esse apreço pelo esforço e trabalho constituem um aspecto moral bem marcado na atividade analisada. É possível que o que ocorra no momento contemporâneo seja uma mudança de valores morais, que sai do coletivo para situar-se mais no âmbito do particular, do individual, das motivações, finalidades e satisfação de cada indivíduo. E pode parecer contraditório relacionar aprovação social e um modelo corporal definido exteriormente a satisfação e moral individual. Entretanto, é para esse movimento que a pesquisa de campo e entrevistas apontaram: o exterior define com suas demandas e explicações e os indivíduos que as tomam para si o 152

Ascetismo e cultura corporal

fazem também com suas motivações e demandas, em parte relacionadas às questões externas e, por outro lado, relacionadas às suas próprias necessidades.

Bibliografia COURTINE, Jean-Jacques (2005). “Os Stakhanovistas do Narciso: Bodybuilding e puritanismo ostentatório na cultura Americana do corpo”. In: Santa’anna, Denise (Org.), Políticas do corpo. São Paulo, Estação Liberdade. HOUAISS. Dicionário. CD-ROM, versão 2.0/ 20001-2007. Rio de Janeiro, Objetiva. OLIVEIRA, Maria Ester Lima (2009). A produção corporal em academias de musculação. Dissertação de mestrado. Programa de Pós graduação em Sociologia da UFPE. ORTEGA, Francisco (2003). “Práticas de ascese corporal e constituição de bioidentidades”. Cadernos Saúde Coletiva. Vol. 11 No 1: 59-77. _______________ (2005). “Da ascese à bio-ascese ou do corpo submetido a submissão do corpo”.In: Rago, Margareth. Orlandi Luiz B. Lacerda. Veiga-Neto, Alfredo(Org.), Imagens de Foucault e Deleuze: ressonâncias nietzschianas. Rio de Janeiro, DP&A Editora. SABINO, César (2000). “Musculação, manutenção e expansão da masculinidade”. In: Goldemberg, Mirian (Org.), Os novos desejos: das academias de musculação às agências de encontros. Rio de Janeiro, Record. _______________ (2004). O peso da forma: cotidiano e uso de drogas entre fisiculturistas. Tese de Doutoramento defendida no PPGSA/IFCS da UFRJ. SFEZ, Lucien (1995). A Saúde Perfeita. Crítica de uma Nova Utopia. São Paulo, Edições Loyola. 153

Maria Ester Lima Oliveira

WEBER, Max (1989). A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. São Paulo, Pioneira.

154

Corpos en Concierto: diferencias, desigualdades y disconformidades

LAS REPRESENTACIONES ACERCA DEL CUERPO Graciela Magallanes

Introducción El presente escrito se inscribe en el marco del informe final de la investigación realizada en la Universidad Nacional de Villa María bajo la dirección del Dr. Alfredo Furlán y la Co-directora Dra. Alejandra Ciuffolini57. El aporte de la indagación, orientada a describir las representaciones acerca del cuerpo, toma relevancia a partir de importantes vacíos teóricos y empíricos que existen acerca del objeto de estudio. Con lo anterior se quiere hacer referencia a la relevancia de levantar actas acerca de los modos de manifestación como se expresan las formas de representación del cuerpo por parte de los estudiantes universitarios. Sobre este tema, y con significativas distancias en relación a la especificidad de temática objeto de estudio de este trabajo; se reconoce el valioso aporte de los estudios realizados por: David Le Breton (1990, 2002); Naddaff Ramona y Nadia Tazi (1989); Norbert Elías (1992); Peter McLaren (1994, 1995,1998); Diana Milstein (1999); Denise Jodelet en Moscovici, Serge (1988); Larrosa, Jorge (1995); Alfredo Furlán (1995, 1996, 2000) y Adrián Scribano (1999, 2008a,2008b, 2009a, 2009b), entre otros no menos importantes. Si hubiera una línea que atraviesa el campo de la presente indagación en relación a los autores antes mencionados, es por la necesidad de identificar el modo como se estructura la representación social del cuerpo por parte de los estudiantes. En esta dirección los aportes de la sociología contemporánea ofrece algunas pistas relevantes a considerar. La referencia Se trata de un trabajo de investigación realizado por la autora del presente escrito para el acceso al título de Magister en Educación Superior Universitaria efectuado en la Universidad Nacional del Comahue. 57

155

Graciela Magallanes

particularmente en el presente trabajo es a los aportes de Bourdieu (1986, 1990, 1991, 1997, 2000), Giddens (1993, 1995, 1998) y Marín (1996). Louis Marín ofrece la posibilidad de indagar un campo enigmático de las representaciones, atento a la irreductibilidad de las diferencias entre la imagen visible y la lógica de producción de sentido que engendran los discursos. Fundamentalmente, lo que está en cuestión son las posibilidades y eficacia de la lectura de las representaciones. La posibilidad de ver y dar a conocer el objeto ausente y al mismo tiempo la mostración de una presencia, permite poner en tensión en el presente escrito, el tipo de funcionamiento del dispositivo representativo. El funcionamiento antes mencionado colabora en “leer un cuerpo con historia”, meta que explica la necesidad de describir no sólo los modos y modalidades de representación de los estudiantes, sino también los medios utilizados que hacen posible dicha construcción. En síntesis podría decirse que al analizar la representación –desde la perspectiva de Marín- no sólo se presta atención a los signos, sino a las características que tienen esos signos, su naturaleza (cuanto de natural o construido tiene la representación, y allí encontraremos algunos vínculos con lo planteado por Pierre Bourdieu) y con ello su institución. La referencia es a la importancia de analizar en las representaciones de los estudiantes las relaciones que los sujetos mantienen con el mundo social; esto es la fuerza, potencia y legitimidad desde donde se justifica y opera el dispositivo representativo. En claves de la obra de Pierre Bourdieu interesa fundamentalmente la producción y reproducción de las representaciones sociales, los mecanismos de reproducción de los hábitus y su concepción acerca de lo simbólico. Esto es la relación entre las estructuras mentales y las prácticas sociales según posiciones y condiciones que se juegan en las interacciones. Pensados este planteo a la luz de las representaciones acerca del cuerpo, podríamos encontrar dos modos de existencia de lo social desde donde comprender el objeto de investigación; esto es: las estructuras sociales externas, lo social hecho cosas que se plasma en las condiciones objetivas (campo de posiciones sociales históricamente constituidas) y las estructuras sociales internalizadas, lo social hecho cuerpo, incorporado al agente (hábitus). 156

Las representaciones acerca del cuerpo

Los intereses objetivos hacen que se liguen determinados hábitus, a campos de posiciones sociales. Puede entonces decirse que al analizar los modos de práctica y modos de acción del cuerpo estamos analizando determinadas prácticas sociales. Estas se entienden como estrategias implementadas por el sujeto en defensa de sus intereses, los que permiten conservar o aumentar determinado capital58 que está en juego. El campo cultural y el campo de poder le permiten a Bourdieu comprender que, en la comunicación se juegan otro conjunto de aspectos más allá de la comunicación misma. Las relaciones objetivas según tipo de capital poseído expresan las relaciones de fuerza que se juegan en los procesos de legitimación, los que distribuyen visiones y divisiones del mundo social. Plantear el problema de las representaciones sociales en estos términos supone entonces desmontar un conjunto de mecanismos muchas veces disimulados, que permitan poner en marcha la historia. En lo que se refiere a este trabajo, la referencia es a la historia del propio cuerpo, evitando “naturalizar-neutralizar” la representación social en lo que tiene de arbitrario su constitución. Es en este punto, donde podemos detectar que el planteo de Bourdieu, como también lo es el de Giddens, encuentra puntos de convergencia respecto a lo que es el contenido crítico de la teoría social que se aleja de la mirada positivista de la ciencia social. Podríamos decir que el aporte de dichos autores para esta investigación, tiene que ver fundamentalmente, con el reconocimiento de que la representación “está cargada teóricamente” y el lenguaje juega un papel central en la estructuración. Los intercambios lingüísticos en las relaciones sociales simbólicamente estructuradas son evaluadas en el caso de Bourdieu desde los hábitus, y en Giddens desde el conocimiento convencional que los agentes poseen en común a fin de otorgarle sentido a lo que ellos y los otros hacen en la vida cotidiana. En el caso del cuerpo se trataría del conjunto de propiedades y disposiciones corporales, leídas en términos de bienes acumulados del sujeto que se produce, se distribuyen, se consumen, se invierten, se pierden. 58

157

Graciela Magallanes

Estos tópicos que dan cuenta de un sujeto que participa en forma reflexiva sobre su propia acción, son los que explican la necesidad de retornar a la teoría social para el tratamiento de la representación acerca del cuerpo. En Bourdieu, como decíamos a partir de lo que son los hábitus, el cuerpo, la topología de lo social, el sentido práctico y las naturalizaciones; en Giddens en lo que respecta a la confianza básica, riesgo y seguridad ontológica en el espacio-tiempo. Quizás, uno de los aspectos más relevantes en el marco del presente trabajo, es el modo como en la teoría de Giddens se encuentran argumentos para comprender la estructuración de las representaciones acerca de la experiencia del cuerpo. La referencia es a la importancia a la acción humana en la estructura en la sociedad contemporánea y su reflexividad social. Las consecuencias y los desafíos de esta sociedad, con sus desanclajes suponen redefiniciones a partir de la transformación de la intimidad y la trayectoria de los sujetos. Se trata de un proceso, en donde el cuerpo ocupa un papel activo a partir de la reflexividad del “Yo” respecto a las prácticas cotidianas desde donde el agente le da sentido coherente y continuidad a su identidad. Esto es así, en términos de Giddens (1997) porque el “Yo” esta corporeizado; el cuerpo no es una entidad sino que se experimenta como un modo práctico de solucionar las situaciones y sucesos a los fines de ser un agente competente. Son estos sentidos los que, en el presente escrito, colaboran en comprender las representaciones que tienen los estudiantes acerca del cuerpo como una zona problemática. Fundamentalmente porque esa zona requiere estar en condiciones de ejercer un control continuo sobre el cuerpo en las situaciones de interacción en la vida cotidiana cuando se ve amenazada la seguridad ontológica. Es la configuración de las representaciones y sus zonas problemáticas las que ofrecen oportunidad de dilucidar, a lo largo del presente escrito, las manifestaciones corporales en lo que hace a la apariencia, el porte, la sensualidad y régimen corporal. La permanencia o modificación de los controles y cuidados respecto a esas dimensiones nombradas, se explica no sólo porque el cuerpo es un medio de acción localizado, sino que también es un organismo físico que es cuidado, sexuado y fuente de placer 158

Las representaciones acerca del cuerpo

y dolor. Sin embargo es importante decir que los cuidados se constituyen también a partir de las convenciones de la vida sociales, es decir que tienen una organización social y cultural. La reflexividad social acerca de la apariencia corporal, la sensualidad del cuerpo, el porte corporal y los regímenes corporales; como zonas donde se manifiestan las representaciones de los estudiantes, permiten distinguir formas de actuar cuyas intereses y consecuencias muchas veces no son intencionales y deseadas. La referencia es precisamente, a las representaciones del cuerpo en la institución universitaria (tema que es abordado como cierre del presente trabajo); en tanto tienen implicancias sociales al “poner al descubierto” el conocimiento del estudiante de sí mismo y de los mundos sociales y materiales bajo condiciones de reproducción y producción de la vida social en la vida cotidiana en la que se encuentran involucrados.

Las representaciones sociales y sus zonas problemáticas En la descripción de las representaciones interesa particularmente como es percibido el cuerpo y las formas que asumen sus prácticas en las relaciones sociales, ya que compartimos con Marín que: […] las modalidades de presentación de sí mismo, es cierto, están gobernadas por las características sociales del grupo o los recursos propios de un poder. Peso a ello, no son una expresión inmediata, automática, objetiva del status de uno o la potencia del otro. Su eficacia depende de la percepción y el juicio de sus destinatarios, de la adhesión o la distancia con respecto a los mecanismo de presentación y persuasión puestos en acción (1994: 95).

En este sentido el trabajo de descripción de las representaciones en esta investigación, supone un proceso de presentación de las diversas relaciones que el cuerpo mantiene en el mundo social. Estas instancias colaboran en identificar las percepciones que tienen los estudiantes acerca de su cuerpo, esto es, el recorte y el criterio de clasificación de las propiedades y disposiciones corporales. 159

Graciela Magallanes

La identificación de los modos de representación de su porte, sensualidad, regímenes y apariencia desde donde se percibe, construye y representa; permiten distinguir algunas cualificaciones del cuerpo en donde se reconoce su identidad social. Dichas cualidades, tales como pueden ser “alto, bajo, duro, blando, pesado, liviano” van a constituirse para los alumnos en signos de mayor o menos extensión que permiten explorar algunas modalidades de representación que – sin alterar la esencia de sus modos – exhiben simbólicamente la condición, la potencia que tiene/le otorga al cuerpo. El desciframiento de las formas como describen al cuerpo los estudiantes, y que permiten leer la representación, ha implicado – necesariamente – aproximarse a los medios que viabilizan las representaciones. Se trata de convenciones sociales desde donde los alumnos interpretan su propia realidad corporal, la que de algún modo marca la coherencia de una comunidad o la fuerza de una identidad. La lectura de la representación se comprende, entonces, al aproximarnos a un conjunto de soportes que – entre otros aspectostiene que ver con el proceso de constitución de sí mismo en la sociedad contemporánea (SCRIBANO: 2008a, 2009b). Estos proceso supone un análisis de las características transformativas de los modos de ser, de actuar, de relacionarse que tiene el cuerpo según las situaciones y circunstancias de interacción en la vida diaria. La construcción de la representación, aunque arbitraria si es que se la mira aisladamente, encuentra necesidades objetivas y subjetivas de inserción en unas disposiciones corporales – entre otros aspectos- que hacen a las diferencias de representación entre los estudiantes. De algún modo, esta investigación hace permeable estos sentidos, al interesarse por identificar las formas que asume las representaciones en los estudiantes de distintas carreras de grado de la Universidad Nacional de Villa María. Los lugares no neutros donde se inscriben cada una de las representaciones que tienen del cuerpo los estudiantes se comprenden en los mecanismos profundos que ligan las estructuras cognitivas y las estructuras sociales. El mundo social construye la representación, la que se comprende en este estudio al momento de prestar atención a la división 160

Las representaciones acerca del cuerpo

sexual, división social, división del trabajo – en definitiva al orden socialsegún los campos disciplinares que optaron para su formación académica. Las causas que explican investigar esta delimitada y distintiva inscripción, son a cuenta de encontrar algunos argumentos que permitan describir el tipo de representación construida por los estudiantes atentos a su tiempo de vida en donde es posible localizar espacios-tiempos y sujetos determinados. Cada uno de éstas inscripciones que van a otorgar identidad al cuerpo, importan como mecanismos de anclaje o desanclaje en relación con lo que es posibles ofrezca la universidad en sus diferencias con los niveles precedentes. La posibilidad de que estas inscripciones penetren y no vacíen la representación en este nivel educativo, es a cuenta de intentar describir el dominio específico de estas circunstancias sociales y relaciones que colaboran en forjar la representación del cuerpo. La advertencia sobre dichos aspectos parte de la sospecha que se tiene sobre el escaso lugar que tiene la universidad en la gama de representaciones de los alumnos. La mirada a otros discursos y prácticas que vierten determinación en la representación acerca del cuerpo, tiene como misión conocer cuál es ese saber y cuáles son los lugares desde donde se constituye. Las respuestas a estos interrogantes pueden advertir al mundo académico de la necesidad de pensar sobre los vacíos existentes en estos campos, que pueden ser relevantes desde el punto de vista sociológico y a la vez significativo desde lo educativo. Esto es, indagar sobre la especificidad del cuerpo en el contexto de un currículum común o determinado por áreas profesionales, en el que se tenga conciencia – entre otros aspectos no menos importantes- de la historia del saber del cuerpo. Desde esta mirada, las diferentes modos y modalidades que asumen las representaciones del cuerpo tienen un carácter complementario, constituyendo una cultura de lo corporal como resultado de una hibridación. El acento está puesto en los contornos, lo que hace difícil discernir donde acaba el poder familiar, de clase, de edad, de género y el estrictamente relacionado con la formación profesional. Esta perspectiva dará consistencia a la utilización de diferentes medios que viabilizan la representación del cuerpo, donde diferentes saberes 161

Graciela Magallanes

corporales colaboran en el anclaje de los atributos sociales: limpio / sucio, lindo / feo, fuerte / débil, alto / bajo, atractivo / no atractivo, grande / pequeño, recto / curvo, sano / enfermo, grueso/ delgado, hábil / no hábil. Estos atributos colaboran en la forma en la que el sujeto nomina al cuerpo. El término cuerpo es pensado aquí en términos de lo expresado por Bourdieu: El cuerpo, el físico de la gente, es la manifestación más estable de la persona como ser social, menos fácilmente modificable y la que socialmente se considera que refleja al ser profundo, la naturaleza de cada cual. (...) El cuerpo es un lenguaje o símbolo de identificación y confrontación social, a la vez que un producto social (en VAZQUEZ GOMEZ, 1989: 34).

En este sentido, el reconocimiento al cuerpo como un producto social importa en tanto la Universidad, por ejemplo, puede marcar distancias y diferencias en las representaciones, las que pueden permitir ver el antes y después de la configuración construida por los estudiantes y los cambios que de allí se derivan. El abordaje de las representaciones del cuerpo en el discurso, implica trabajar sobre el modo en que el estudiante se forma los conceptos, de acuerdo al momento y circunstancias en las que se encuentra. Esto es reconocer un saber posible para el sujeto desde donde se observa, analiza y descifra a sí mismo59. En este sentido el interés reside en conocer las formas que asumen los discursos de los alumnos en lo que se refiere a los modos60 de Desde este enfoque cobra sentido prestar atención a las formas que asumen los distintos dispositivos. Dice Larrosa (1995: 292): “En primer lugar una dimensión óptica, aquella según la cual se determina y se constituye lo que es visible del sujeto para sí mismo. A continuación, una dimensión discursiva en la que se establece y se constituye qué es lo que el sujeto puede y debe decir acerca de sí mismo. En tercer lugar, una dimensión jurídica, básicamente moral, en la que se dan las formas en que el sujeto debe juzgarse a sí mismo según una rejilla de normas y valores. Cuarto, (...) mostraré cómo la modalidad discursiva esencial para la construcción temporal de la experiencia de sí y, por tanto, de la autoidentidad, es la narrativa. (...) Por último, una dimensión práctica que establece lo que el sujeto puede y debe hacer consigo mismo”. 60 Los modos de ser, de actuar y de relacionarse son como una manera de ir; nunca son terminales 59

162

Las representaciones acerca del cuerpo

representación del cuerpo. Uno de los puntos de partida para el análisis del carácter que asumen estas marcas, es las formas de relación del sujeto consigo mismo, con los demás y con el mundo material y el conjunto de rasgos que las explican. Los modos de representación se expresan en las categorías de percepción de su cuerpo y en los criterios de clasificación, como productos de distintos tipos de discursos y prácticas que tienen un sentido y valor en tanto reenvían a las condiciones de un grupo social determinado. La identidad social de las representaciones del cuerpo muchas veces se naturalizan-neutralizan en los discursos religiosos y laborales, las prácticas médicas, de higiene, de alimentación, de indumentaria, de ejercitación corporal, entre otros no menos importantes. Cada uno de estos discursos y prácticas definen determinadas formas de aprehensión de la realidad, determinados bienes que se consumen y agentes especializados que surgen de acuerdo a los campos desde donde se generan. Lo interesante de estas construcciones es que colaboran en el proceso de definición del cuerpo y de sus prácticas regulando sus modos de atención, de manifestarse, de ser, de enfrentarse, de actuar (SCRIBANO: 2008b, 2009a). La multiplicidad de modos de representación y los márgenes poco claros, hacen pensar en la presencia de modalidades de representación del cuerpo que se ligan a distintos estados estatutarios de poder -entre otros aspectos-. Estos márgenes que no alteran la esencia del modo establecen la posición del sujeto (MARÍN, 1994). Las modalidades de representación son desciframientos impuestos por la forma que dan a leer los modos y que hacen reconocer una identidad social, una manera propia de ser en el mundo y que significan simbólicamente una condición, un rango, una potencia. De algún modo, podría decirse que la mirada a los márgenes permite configurar representaciones diferenciadas. La atención a la descripción de las formas en que se configura estas representaciones, pone en evidencia las múltiples operaciones de control que se ejercen. cambian según los intereses; son estilos de vida que se van configurando según los territorios y las disposiciones del cuerpo que se producen. Estos modos hacen a la naturaleza de la acción del cuerpo y de los intercambios sociales con el mundo social y material.

163

Graciela Magallanes

La necesidad de atender a la forma como se expresan esas operaciones es relevante ya que, al desmontar los medios que se utilizan en la representación, se encuentran argumentos respecto a la utilización. Al desmontar los medios que se utiliza en la representación se pueden recuperar configuraciones históricas que constituyen al sujeto. Así pensados los medios son formas institucionalizadas utilizadas por el hablante; “formas por las cuales representantes (individuos singulares o instancias colectivas) encarnan de manera visible, “presentifica” la coherencia de una comunidad, la fuerza de una identidad o la permanencia de un poder (MARÍN, 1994: 84). Lo importante que tienen los medios que viabilizan la representación es que permiten comprender las operaciones de recorte y clasificación mediante las cuales se percibe, construye y representa el cuerpo. La cognoscibilidad61 de este saber de la vida cotidiana, se vincula a la noción de reflexividad, en cuanto atributo constitutivo de la acción que permite comprender la relación que el sujeto tiene con su cuerpo. En este sentido, la propia identidad de la relación del sujeto con su cuerpo se juega en el proceso reflexivo del sí mismo62, en sentido de lo idéntico o lo semejante en la propia designación. Un tema que ocupa un lugar central en la constitución de la representación es la trayectoria internamente referencial para el sujeto, y el conjunto de cambios que comprometen su historia de vida. Ello hace distintiva, delimitada y muchas veces problemática la representación que el alumno tiene de su cuerpo63. La diferenciación entraña la conciencia de determinadas garantías que no son homogéneas para distintos sujetos respecto a distintos ámbitos según la condición social. Este proceso parte del registro reflexivo, lo que implica un proceso de racionalización más que un estado, y que forma parte de las competencias en la utilización de reglas y recursos portados en el cuerpo como huellas mnémicas de cada agente en el espacio-tiempo constitutivo de su historia (GIDDENS, 1995). 62 “Proyecto del cual el individuo se hace responsable reflexivamente. Proyecto reflexivo que pone en juego las características transformativas del agente y de su capacidad de dar identidad a la conexión entre pasado y futuro (SCRIBANO, 1997: 15). 63 Así la construcción de la identidad de la representación se constituye con el dominio de relaciones y circunstancias que recombina el sujeto en forma indefinida pero que intervienen y son coherentes para la propia utilización del sujeto -lo que implica renuncias al deseo por la conciencia moral de los ordenamientos que son referenciales para sí-. 61

164

Las representaciones acerca del cuerpo

La experiencia inscripta y significativa para el sujeto es producto de un ordenamiento propio, que delimita la experiencia de los “otros”. La referencia para sí de otras experiencias tiene que ver con las posibilidades de percatarse de las expectativas y evaluaciones de los “otros” que son significativas para el estudiante, respecto a su actuación en la vida privada y pública. Estas apreciaciones pueden coincidir o entrar en contradicción en su conjunto favoreciendo la presencia de zonas problemáticas de la representación. Las consecuencias de esas referencias contradictorias, muchas veces, implican crisis/conflicto de identidad para superar las transiciones. La posibilidad de crisis/conflicto se genera con identidades que se cruzan y se superponen. Se destaca fundamentalmente el sentido de las relaciones y sobredeterminaciones que se producen, por ejemplo, en las identidades de género64. En este sentido es posible pensar que la forma como el alumno/a construye su representación acerca del cuerpo, en tanto espacio probablemente inestable, conflictivo y en proceso de transformación, es producto de contradicciones y resistencias. Son las concepciones tradicionales que entran en contradicción cuando se está en la búsqueda de nuevas posibilidades para construir la identidad de ser mujer u hombre. La identidad de la representación del cuerpo se crea y mantiene como producto de la actividad reflexiva del sujeto respecto a sus actividades y en función de su propia trayectoria de vida, implicando un proceso de identificación, entre otros aspectos, en lo que hace a la selección de distintos atributos sociales. Estos atributos (grande/pequeño, alto/bajo, etcétera) con los que se identifica el sujeto no tienen propiedades ni estructura propia, se definen en la interacción. Cada sujeto es portador de atributos específicos y dependen de la situación social, entre otros aspectos. Para tener un conocimiento profundo de los atributos sociales en la institución del cuerpo del sujeto, es necesario adentrarse en la exploración “Cuando hablamos entonces de identidades genéricas, masculinas o femeninas, no nos referimos a una definición esencial y fija de los conceptos de mujer y varón, sino a un conjunto de operaciones discursivas, variables y móviles, que distribuyen jerárquicamente prácticas, valores y atributos, estableciendo exclusiones y configurando una situación estratégica de distribución de poder entre grupos genéricamente definidos, en interacción con otras determinaciones” (UZÍN, 1999: 34). 64

165

Graciela Magallanes

reflexiva de la intimidad – próxima y lejana en el espacio-tiemp –, donde fundamentalmente se hace expresa la adhesión a determinados atributos en función, por ejemplo, de aspectos sexuales, donde las relaciones con el género65 son constitutivas para el sujeto. Los atributos sociales tienen profundas raíces solidificadas históricamente en determinados saberes: médicos, educativos, religiosos, estéticos, publicitarios, éticos, etcétera. Ellos han ido muchas veces en contra de una auténtica relación del sujeto consigo mismo y con los demás, debido a una serie de poderes que generan prohibiciones y censuras en los discursos acerca del cuerpo. Es preciso ahondar sobre estos saberes en la representación, conocer qué se dice, quiénes lo dicen, detectar desde dónde se constituyen esos puntos de vista que el sujeto referencia en su estrategia discursiva y que, de algún modo, filtra y controla el deber decir, hacer, saber, juzgar del sujeto. La definición entre elecciones puras de estos atributos sociales (fuerte/débil, recto/curvo liviano/ pesado, etcétera) tiene una importancia central para las relaciones puras66 que mantienen los sujeto con su cuerpo. La presencia o ausencia de relaciones puras con determinados atributos del cuerpo, es una construcción puramente social que el sujeto tiene de sí y colabora en la representación subjetiva. Desde estos lugares se comprende que la constitución de la representación, en lo que hace a las propiedades y modos de acción del cuerpo, exige evitar la neutralización de los atributos sociales a los fines de construir un operador que evite todo tipo de equivalencias en las diferentes divisiones (de edad, de sexo, de profesión, etcétera) en el mundo social. El reconocimiento de sentidos diferenciados en sujetos Según Langlan y Gove: “El género es un hecho social por entero que adquiere su significación y funcionamiento a partir del sistema cultural más amplio del que forma parte. El significado del término «género», según lo entiendo, no es diferente del significado que tiene para la gramática: designa un conjunto de categorías a las cuales se le puede asignar la misma función en todas las lenguas o en todas las culturas, ya que tienen relación con las diferencias sexuales. No obstante estas categorías son convencionales o arbitrarias en tanto no sean reductibles a/o directamente derivadas de realidades biológicas o naturales; varían de una lengua a otra, de una cultura a otra, en la manera de organizar la acción y la experiencia” (1986: 147). 66 Entorno fundamental para la construcción del proyecto reflejo del yo, pues permite y, al mismo tiempo, exige la comprensión organizada continua de uno mismo, como medio para asegurar un nexo duradero con el otro (GIDDENS, 1997: 237). 65

166

Las representaciones acerca del cuerpo

que ocupan posiciones no equivalentes de acuerdo a su situación social67, hace suponer que las determinaciones sociales adscriptas a dicha situación tienden a formar la relación con el propio cuerpo, a lograr disposiciones constitutivas de la representación en lo que hace a la apariencia corporal, el porte, regímenes y sensualidad.

El abordaje de las representaciones acerca del cuerpo Tal como se ha planteado en el apartado anterior, lo que interese en las representaciones acerca del cuerpo es su vinculación al conjunto de prácticas más o menos integrado que un sujeto adopta para dar forma a su crónica. La referencia es a la posibilidad de pensar en estilos de representación del cuerpo, es requisito central para comprender el conjunto de prácticas en las que se encuentra implicado el cuerpo en sus rutinas. Se trata, de elecciones que importan en tanto ofrecen la oportunidad de indagar los criterios que influyen decisiones que se orientan no sólo a cómo actuar con el cuerpo sino también a quién ser. Las rutinas presentes en los modos de ser, de actuar, de atención y de relacionarse, suponen un control continuo del cuerpo. Son hábitos y orientaciones que se conectan con determinados aspectos del cuerpo y que, a los fines de analizar la representación del cuerpo se hace necesario identificar la forma que asumen. Entre ellos se encuentran: • Los regímenes corporales: entendidos como los modos de comportamientos regularizados pertinentes para la continuidad y el cultivo de características corporales. Estos regímenes corporales, que afectan los modos de sensualidad, son medios fundamentales por los que la reflexividad institucional de la vida moderna se centra en el cultivo -casi podría decirse en la creación- del cuerpo. • La sensualidad del cuerpo: se refiere a la manipulación dispositiva del placer y el dolor. La situación social, en términos de Bourdieu, referencia a la condición de clase -condiciones materiales de existencia y de práctica profesional- y la posición de clase -lugar ocupado en la estructura de las clases en relación con las demás clases-. El campo de las posiciones es inseparable del campo de las tomas de posición, entendido como el sistema estructurado de las prácticas y expresiones de los agentes (BOURDIEU, 1995). 67

167

Graciela Magallanes

• La apariencia corporal: concierne a todas aquellas características del cuerpo, incluidas las formas de vestirse, arreglarse, que son visibles a la propia persona y a otros agentes y sirven habitualmente para interpretar acciones. • El porte corporal: determina cómo utilizan su apariencia los individuos en ámbitos comunes de sus actividades diarias; se trata de la manera de actuar con el cuerpo en relación con las convenciones constitutivas de la vida diaria. Cada uno de estos aspectos que hacen al cuerpo (GIDDENS, 1997) se configuran a partir de la elección por parte de los sujetos de un cierto tipo de rutinas que definen determinados modos de ser, de atención, de actuar, de relacionarse del cuerpo consigo mismo, con los demás y el mundo material. Son características transformativas de los sujetos que dan cuenta de la identidad construida en la trayectoria de vida del sujeto. La presencia de diferencias y semejanzas en los modos que se hace mención y, con ello, la posibilidad de que se hagan presentes modalidades de representación del cuerpo como parte de la elección del plan de vida del sujeto es internamente referencial en función de unas posiciones sociales dadas, y varía según las restricciones de cada lugar. Esto significa que la identidad del cuerpo es un proceso que se reconstituye a partir de la acción intersubjetiva; es decir, “otros” que pueden hacer posible o no la presencia o ausencia de relaciones puras con el cuerpo. Las relaciones puras interesan frente a la oportunidad de desarrollar la confianza, la que se basa en un compromiso voluntario y una intimidad intensificada. Sin embargo, es preciso decir que la identidad del cuerpo al crearse y reordenarse más o menos de continuo sobre el trasfondo de las experiencias cambiantes de la vida cotidiana y la tendencia a su fragmentación, contribuyen a que las relaciones puras se tornen ideales (ante la imposibilidad de mantener estable la crónica por parte del sujeto) lo que afecta directamente la representación que se tiene del cuerpo. La estabilidad, inestabilidad y cambios en la crónica desde la que es posible identificar las rutinas vinculadas al cuerpo, interesan en tanto la idea de que la identidad de la representación del cuerpo supone una crónica que intenta otorgar coherencia a los modos de ser, de actuar, de 168

Las representaciones acerca del cuerpo

atención y de relación. Cada uno de estos comportamientos contenidos en los límites y recluidos en la imagen representada respecto al escenario de su actividad, no se encuentra totalmente integrados en la modernidad, ya que es imposible situar en un lugar la identidad del cuerpo. Es, más bien, en el tránsito de un conjunto de modos de acción y atención en contextos situados de interacción donde se ancla la espacialidad del cuerpo y se va a definir la orientación hacia otros y hacia el propio ser. Lo aquí expresado impide reducir la representación a uno de estos lugares, en tanto ella se constituye a partir del flujo ininterrumpido en distintas regiones de la vida cotidiana en la interacción social. En estos procesos se producen re-localizaciones y re-territorializaciones continuas del cuerpo que se expresan en forma continua/discontinua en la representación de los regímenes corporales, la sensualidad, el porte y la apariencia corporal. Estos desplazamientos dislocan los vínculos que el sujeto tiene con su cuerpo y fijan modos y modalidades de representación del cuerpo en relaciones híbridas y quizá no afines pero que, como dice Giddens (1997), tienen que integrarse en la crónica personal para ser capaz de guardar una apariencia normal como para sentirse convencido de la continuidad personal en el tiempo y el espacio. Un buen número de las formas de relación con el cuerpo produce tensiones, las que se hacen expresas en las representaciones del cuerpo. Son “afirmaciones” y/o “negaciones” del pasado y/o del presente, que se manifiestan en los discursos y tienen que ver con las expectativas de colonizar el futuro. Puede verse lo aquí expresado, por ejemplo, en la importancia del vestido en la apariencia corporal: El vestido, en suma es un ejemplo del interfaz animado/inanimado o humano/inhumano, de la precipitación en lo otro, el pasaje de ese `otro querer ser´ del cuerpo humano por el cual a su vez pasa la radical aparición del otro tan necesaria a la constitución de subjetividades... (DUCHESNE, 1994: 31). Lo señalado permite pensar que las estrategias utilizadas ponen al descubierto un cuerpo que desafía al sujeto, y lo remite a sus posiciones en los contextos de interacción. Dichas estrategias se expresan en rutinas 169

Graciela Magallanes

de la vida cotidiana por las que el cuerpo pasa y que el estudiante produce y reproduce muchas veces a partir de una conciencia práctica68. En este sentido, las características propias de la profesión o la condición de estudiante, son algunas de las ocasiones sociales donde el sujeto pauta el porte, la apariencia corporal, los regímenes y la sensualidad del cuerpo. Se trata de modos de ser y de actuar, entre otros, que se reconocen como los más apropiados para una determinada extensión de tiempo-espacio de la vida diaria69. Los escenarios de interacción otorgan sentidos y cuidados al cuerpo, configurando una forma de atención constante que constituye la base de los cuidados corporales a los fines de beneficiarse (manteniendo, mejorando o transformando la apariencia, la sensualidad y el porte corporal). Es interesante señalar que, las restricciones que se imponen al sujeto son campos que habilitan determinados modos de acción y de ser del cuerpo que operan como principios de diferenciación susceptibles de ser modificados, entre otros, por las condiciones materiales y culturales de existencia. Bourdieu afirma que estas prácticas: […] arraigan una manera de mantener y llevar el cuerpo (una hexis), una manera de ser duradera del cuerpo duraderamente modificado que se engendra y se perpetua, sin dejar de transformarse, continuamente (dentro de ciertos límites), en una relación doble, estructurada y estructuradora, con el entorno (1999: 190).

Estas razones permiten comprender las rutinas en las que se encuentra implicado el cuerpo, y estructuran sus conductas en el espaciotiempo70. La imposibilidad de mantener en la extensión del espacio-tiempo las garantías hacen que las relaciones puras se encuentren acotadas a partir de toma de posiciones, tanto en la vida personal como en la vida laboral. Lo que no impide la posibilidad de determinada conciencia discursiva, respecto a las condiciones sociales y las condiciones de su propia acción. 69 La referencia es a los rasgos que hacen a la identidad del cuerpo que asume formas diferenciadas en el ciclo vital del sujeto a partir de su propia biografía y la relación con la pluralidad de entornos en donde interactúa con otros. 70 Sin embargo, como decíamos el sujeto no tiene una entrega plena en cada uno de esos contextos de co-presencia en función de la multiplicidad de compromisos que los sujetos mantienen. 68

170

Las representaciones acerca del cuerpo

Los procesos de decisión involucran siempre la manipulación del placer y el dolor corporal frente a la falta de soportes para mantener la confianza. La confianza, como entrega plena en la relación pura que el cuerpo mantiene en contextos de co-presencia, está íntimamente ligada a la intimidad71 en la que el sujeto se fía y le da la posibilidad de realización frente a los otros. La fiabilidad no siempre es fácil de mantener en relaciones sociales más amplias: las diferencias en las relaciones con el mundo social implican formas distintivas de vinculación con el propio cuerpo en el espacio social. Estas relaciones son muchas veces poco tolerantes respecto a las diferencias identitarias del cuerpo. Las fuertes amenazas que imponen las nuevas definiciones del cuerpo y de sus usos, suponen el deterioro de los procesos de identificación y reconocimiento del propio cuerpo. Lo relevante de estos procesos es que se encuentran construidos a partir de determinadas categorías sociales de percepción y de valoración de la identidad del cuerpo – las que se reconocen como legítimas y distintivas de un grupo en el que el sujeto es portador-. Los sentimientos de seguridad que otorgan estos aspectos se ligan a una conciencia fundamentalmente práctica, como uno de los elementos constitutivos de la identidad del cuerpo y que siempre encubren situaciones de distribución desigual de oportunidades entre los sujetos. La preocupación por las fisuras en la seguridad del propio cuerpo (en lo que hace a las posibilidades de exclusión) afianza la adhesión a determinadas características y propiedades del cuerpo. Se trata de la evaluación de las oportunidades de ajuste ante el “otro” -sea uno u el otro el “extranjero”-. Estas construcciones llevan a interrogarse sobre si es posible la adscripción a lo extranjero sin perder la identidad del propio cuerpo. Las relaciones, muchas veces conflictivas, son posibles de integrar en la representación cuando se hacen expresas las sensaciones de comodidad que referencia a la propia biografía para la realización del sujeto en un proceso de conquista del espacio-tiempo en situaciones de co-presencia. “La intimidad implica una absoluta democratización del dominio interpersonal, en una forma homologable con la democracia en la esfera pública (GIDDENS, 1998: 13). 71

171

Graciela Magallanes

En síntesis, abogar por el sentido de la identidad de las representaciones del cuerpo ante procesos de auto y heterorreconocimiento interesa como acción reflexiva por parte del sujeto, en tanto permite ver cómo el sujeto construye su cuerpo.

Las representaciones del cuerpo en la institución universitaria

Finalmente, y como corolario de los apartados anteriores, interesa hacer referencia a los modos de representación del cuerpo en su relación con la institución universitaria: la construcción y/o reconstrucción de la representación que la Casa de Altos Estudios promueve por medio de diversas maneras, lo que atraviesa las formas como configuran los estudiantes su apariencia corporal, sensualidad corporal, porte corporal y regímenes corporales. La identidad de estas representaciones puede o no ser parte de las formas de control de la institución, y tiene resultados probablemente impredecibles. La posibilidad de que la apariencia corporal, el porte, la sensualidad y el régimen corporal puedan configurar lugares de restricciones o posibilidades para los estudiantes, admiten pensar que las mediaciones de las instituciones educativas también colaboran en la constitución del sujeto. Fundamentalmente la referencia es a la condición de estudiante universitario en general y, en particular, en lo que respecta a lo identitario de la formación específica según la carrera de grado optada. Las formas por las que los estudiantes se realizan desde estos lugares pueden ser de algún modo una respuesta que, fomentada por la institución, tienda a significar una retirada hacia razones propias del “campo académico”. Reestructuraciones en los modos de ser, de atención, de actuar, de relacionarse con el cuerpo producto de la constitución de circunstancias y mediaciones en la universidad. Es decir que, el cultivo del cuerpo y de las rutinas se constituye a partir de cualidades distintivas de los estilos de vida propios del nivel de educación superior por el que transitan. Los argumentos aquí planteados, permiten reflexionar cuáles son esos rasgos y hasta dónde puede pensarse en la posibilidad de constituir 172

Las representaciones acerca del cuerpo

modos y modalidades específicas de representación del cuerpo. La línea de pensamiento, que en parte se sostiene en lo desarrollo en los apartados anteriores, permite pensar que las formas de relacionarse del cuerpo consigo mismo, con los demás y con el mundo material en la institución universitaria, no se constituirían en un lugar de aceptación que referencia sólo a lo que ha sido la trayectoria anterior vivida por el estudiante. La representación que se tiene aquí del cuerpo, remite a un lugar que es una parte fundamental del proceso por el que la identidad se constituye por medio del ordenamiento reflejo de la crónica del estudiante. Esto hace que la planificación de su cuerpo es en parte la construcción que se ha elaborado también en este entorno. Los compromisos que los ligan van a expresarse en la racionalización de la acción respecto a estos dominios, los riesgos y consecuencias. Lo aquí planteado importa particularmente cuando se piensa en la configuración de la representación al interior de un campo de conocimientos y de prácticas específicas vinculadas a la titulación académica. El proceso supone un recorrido que transita tanto por la historia específica de constitución de ese campo – la forma que asume la carrera en la institución – como así también la propia biografía del sujeto. Esto se comprende por la fuerte relación que une las prácticas culturales heredadas de la familia y el capital escolar, conjuntamente con el origen social del sujeto. A medida que aumenta su formación, se delinea la tendencia de la representación que se tiene del cuerpo, en un proceso de legitimación que se inscribe en la pertenencia a un campo que genera derechos y deberes. Esto es la razón por la que se hace necesario fijar la atención en el efecto -quizás encubierto- de la institución educativa, de las composiciones de las titulaciones y de la asignación de determinadas valoraciones respecto al cuerpo. Los procesos son ejercidos a lo largo de la formación profesional, mediante la manipulación de la imagen de sí mismo que opera en la institución al orientar a los alumnos hacia definiciones que prestigian o devalúan su propio cuerpo. La asignación a un campo disciplinar, en un determinado tipo de institución, se ejerce prioritariamente por la mediación de la imagen social de la posición considerada respecto al cuerpo, que se encuentra para el sujeto objetivamente inscripta. 173

Graciela Magallanes

De este modo, la institución contribuye en el efecto de asignación de determinado lugar otorgado al cuerpo, imponiendo unos modos de hacer, ver, juzgar y de decir, que ella no inculca y que ni siquiera exige expresamente, pero que forman parte de los atributos estatutariamente ligados a las posiciones que asigna, a las titulaciones que otorga y a las posiciones sociales a que estas titulaciones dan acceso. Como mejor lo dice Bourdieu (1988: 26): Mediante la titulación académica lo que se designa son ciertas condiciones de existencia, aquellas que constituyen la condición de la adquisición del título y también de la disposición estética, siendo el título el más rigurosamente exigido de entre todos los derechos de entrada que impone, siempre de manera tácita, el universo de la cultura legítima...

En este sentido problematizar el entendimiento sobre estos saberes, a los fines de identificar la representación del cuerpo que instituyen, implica poner en tensión el tipo de continuidad o discontinuidad con el pasado y con ello el horizonte de lo que son nuevas opciones. Esto abre un conjunto de interrogantes: ¿el nuevo saber se diferencia en sí mismo?, ¿pierde referencia con los niveles educativos anteriores?, ¿se diferencia del pasado?, ¿cuáles son las marcas identitarias que impiden homologar estos saberes en campos académicos que difieren en su naturaleza?, ¿cuál es la lógica que los constituye?, ¿qué alcances y restricciones tienen sus dominios?. Interesa lo antes expuesto en tanto la posibilidad de nuevos dominios y expansión del saber tiene que ver con la asignación de nuevas posiciones que se derivan de las nuevas situaciones, lo cual es probable redefina el saber acerca del cuerpo en la institución universitaria. Formas institucionales que hacen posible preguntarse si ¿altera radicalmente el tipo de apropiación / dominio de un saber?, ¿alteran las dimensiones más íntimas de la experiencia corporal del estudiante?. La extensión e intencionalidad que define el dominio preocupan, cuando de lo que se trata es de identificar los aportes de la educación universitaria en la reflexividad sobre sí mismo. Los procesos de reapropiación del cuerpo se encuentran influenciados por cuestiones institucionales que se desarrollan conforme 174

Las representaciones acerca del cuerpo

a la referencia interna y los sistemas abstractos. Indagar la reflexividad que guía esa construcción, exige analizar el saber que se tiene acerca del desarrollo corporal y los estilos de vida. Esto se manifiesta en el surgimiento de regímenes y apariencia corporal, formas de porte corporal y sensualidad del cuerpo; en tanto son marcos de posibilidades y opciones que delinean la representación del cuerpo, en que la universidad puede jugar un papel central en la constitución de la experiencia de vida. En esta dirección, si hubiera un lugar incisivo para las representaciones del cuerpo en la institución universitaria es porque los lugares, las condiciones y consecuencias de los modos, modalidades y medios como es posible que se manifiesten esas formas se relacionan con el tipo de posición que ocupa el conocimiento acerca del cuerpo en la escolarización universitaria; esto es, un capital que obtura la posibilidad de cualquier tipo de homologación. La naturaleza de ese saber, las condiciones y consecuencias es posible que exprese una multiplicidad de extrañamientos respecto a la reflexividad en el contexto universitario y el constreñimiento de las apropiaciones por parte de los estudiantes.

Bibliografía BOURDIEU, Pierre (1986). “Notas provisionales sobre la percepción social del cuerpo”. En Mills W. y et. al., Materiales de sociología crítica. Genealogía del Poder No 13. Madrid, La Piqueta. --------------- (1988). La distinción. Criterios y bases sociales del gusto. Madrid, Taurus Ediciones. --------------- (1999). Sociología y cultura. México, Grijalbo. --------------- (1991). El sentido práctico. Madrid, Taurus Ediciones. --------------- (1997). Razones prácticas. Sobre la teoría de la acción. Barcelona, Anagrama. 175

Graciela Magallanes

--------------- (1999). Meditaciones Pascalianas. Barcelona, Anagrama. --------------- (2000). La dominación masculina. Barcelona, Anagrama. DUCHESNE, Juan (1994). “Para un cuerpo inhumano”. Revista Posdata. Humanismo Cultura. Nº 9: 25-33. ELÍAS, Norbert y DUNNING, Eric (1992). Deporte y ocio en el proceso de la civilización. Madrid, Fondo de la Cultura Económica. FEHER, Michel, NADDAFF, Ramona y TAZI, Nadia (1989). Fragmentos para una historia de cuerpo humano. Parte I, II, III. Madrid, Taurus Editores. FURLÁN, Alfredo (1995). “¿Un cuerpo políglota?”. Conferencia. Congreso Argentino de Educación Física y ciencias. Mimeo. La Plata --------------- (1996). “El lugar del cuerpo en una educación de calidad”. Conferencia del III Congreso Nacional de Instituciones de Formación en Educación Física. Mimeo. Córdoba. --------------- (2000). “La cuestión de la disciplina. Los recovecos de la experiencia escolar”. En: Gvirtz, Silvina (Comp.), Textos para pensar el día a día escolar. Sobre cuerpos, vestuarios, espacios, lenguajes, ritos y modos de convivencia en nuestra escuela. Buenos Aires, Santillana. GIDDENS, Anthony (1993). La consecuencia de la modernidad. Madrid, Alianza. --------------- (1995). La constitución de la sociedad. Bases para la teoría de la estructuración. Buenos Aires, Amorrortu. --------------- (1997). Modernidad e identidad del yo. El yo y la sociedad en la época contemporánea. Barcelona, Península. --------------- (1998). La transformación de la identidad. Sexualidad, amor, erotismo en las sociedades modernas. Colección Teorema, Serie Mayor. Madrid, Segunda Edición.

176

Las representaciones acerca del cuerpo

JODELET, Dennise. (1988). “La representación social: fenómeno, concepto y teoría”. En: Moscovici, Serge, Psicología social II. Pensamiento y vida social. Psicología social y problemas sociales. Buenos Aires, Paidós. LARROSA, Jorge (1995). “Tecnología del yo y educación. Notas sobre la construcción y la mediación pedagógica de la experiencia de sí”. En: Larrosa, J. (Comp.) Escuela, poder y subjetivación. Madrid, La Piqueta. Le BRETON, David (1990). Antropología del cuerpo y modernidad. Buenos Aires, Nueva Visión. --------------- (2002). La sociología del cuerpo. Buenos Aires, Ediciones Nueva Visión. MARÍN, Louis (1996). “Poderes y límites de la representación. Marín, el discurso y la imagen”. En: Escribir las prácticas Foucault , de Certeau, Marín. Roger Chartier. Buenos Aires, Manantial. MCLAREN, Peter (1994). Pedagogía crítica, resistencia cultural y, la producción del deseo. Buenos Aires, Aique. --------------- (1998). Pedagogía, Identidad y Poder. Los educadores frente al multiculturalismo. Rosario, Homo Sapiens. --------------- (1995). La escuela como un performance ritual. Hacia una economía política de los símbolos y gestos educativos. México, Siglo XXI. MILSTEIN, Diana y MENDES, Hector (1999). La escuela en el cuerpo. Estudios sobre el orden escolar y la construcción social de los alumnos en escuelas primarias. Madrid, Miñó y Dávila Editores. MOSCOVICI, Serge (1988). Psicología social II. Pensamiento y vida social. Psicología social y problemas sociales. Buenos Aires, Ediciones Paidós. SCRIBANO, Adrián (1997). “Sociedades complejas y teoría social”. Mimeo. Córdoba. --------------- (1999a). “La diferencia: su importancia en los procesos de construcción de la Identidad personal”. Ponencia presentada en el Quinto 177

Graciela Magallanes

Encuentro de la Red de Filosofía y Teoría Social. Universidad Nacional de Catamarca. Mimeo. --------------- (1999b). Epistemología y Teoría: Un estudio sobre Bourdieu, Giddens y Habermas. Dirección General del Centro Editor. Catamarca, Secretaría de Ciencia y Tecnología. Universidad Nacional de Catamarca. -------------------- (2000). Introducción al proceso de investigación en ciencias sociales. Córdoba, Editorial Copiar. --------------- (2008a). “Re-tomando las sensaciones: Algunas notas sobre los caminos expresivos como estrategia para la investigación cualitativa”. En: Ayala Rubio Silvia (Coord.), Experiencias y reflexiones desde la investigación social. México, CUCEA Universidad de Guadalajara. --------------- (2008b). “Cuerpo, conflicto y emociones: en Argentina después del 2001”. En Revista Espacio Abierto. Dossier Cuerpo y Emociones en América Latina. No17: 205-230. --------------- (2009a). “Reciprocidad, Emociones y Prácticas Intersticiales”. En: Paulo Herique Martins y Rógerio de Souza Medeiros (Comp.), América Latina e Brasil em Perspectiva. Recife, Editora Universitária da UFPE. --------------- (2009b). “¿Por qué una mirada sociológica de los cuerpos y las emociones?” A Modo de Epílogo. En: Scribano, A, y Figari, C. (Comp.), Cuerpo(s), Subjetividad(es) y Conflicto(s) Hacia una sociología de los cuerpos y las emociones desde Latinoamérica. CLACSO-CICCUS. UZÍN, María Magdalena. (1999). “La construcción del género en las revistas femeninas”. En: Dalmasso, M. T. y Boria, A, (Comp.), El discurso social argentino. Colección el Hilo del Discurso. Córdoba, Topografía Proyecto Editorial.

178

Corpos em Concerto: diferenças, desigualdades e desconformidades

O SECOND LIFE E A VIVÊNCIA DO “SEGUNDO CORPO” Micheline Dayse Gomes Batista

O corpo é uma construção social, cultural e histórica. Como algo que não se encerra em seu invólucro, ele aceita extensões que afetam a performance física e mental do ser humano. Desde sempre, diversos tipos de próteses (óculos, bengala, marca-passos etc.) vêm sendo usados para melhorar ou ampliar funções orgânicas. Os meios de comunicação (telégrafo, imprensa, rádio, TV, cinema) também são considerados extensões que projetam nossa consciência e nossos sentidos, conforme definiu Marshall McLuhan (1990) nos anos 1960. Com a evolução desses meios, o computador conectado à internet radicaliza o conceito de aldeia global de McLuhan ao aproximar e interligar pessoas, empresas e países em tempo real, especialmente a partir da última década do século XX. Teclado, mouse e monitor são, portanto, as próteses dos sujeitos que hoje vivem plugados nas redes eletrônicas. Quando falamos especificamente dos mundos virtuais, que são as simulações de diversos aspectos da vida em 3D, essas próteses ganham uma nova função: conectar o internauta ao seu duplo – o seu avatar72. Nesse “segundo corpo”, bytes e pixels substituem a configuração tradicional de carne e osso. A virtualização do corpo talvez seja a face mais evidente da imbricação do humano com a tecnologia. Nosso objetivo aqui é provocar uma reflexão acerca da experiência de criar e editar um avatar e de poder viver através dele, tendo o jogo Second Life (SL)73 como objeto empírico. Assim A palavra avatar tem origem hindu (sânscrito) e significa a “encarnação de uma divindade sob a forma de um homem ou de um animal”. O dicionário também define avatar como “transformação, metamorfose” Ver Dicionário Michaelis. Disponível em: . Acesso em: 05 fev. 2010. 73 Jogo criado em 1999 por Philip Rosedale, fundador da empresa de tecnologia Linden Lab, baseada na Califórnia, Estados Unidos. O sistema, contudo, só foi desenvolvido e lançado em seu formato comercial em 2003. Desde então, o número de residentes, como são chamados os usuários desse 72

179

Micheline Dayse Gomes Batista

como o corpo analógico, digamos assim, o corpo digital também precisa ser esculpido e vestido. Em ambos os espaços, observamos o impulso cultural de tornar o corpo um objeto de consumo, trabalhá-lo de modo a atingir uma forma perfeita, ideal. Entretanto, a atividade lúdica proporcionada pelo Second Life vai além da mera reprodução de padrões dominantes no mundo off-line, ao estimular a imaginação e a liberdade criativa. A vivência do “segundo corpo” nos revela que tipos de representações imagéticas os internautas estão criando para si no ciberespaço. Antes de tudo, vamos falar um pouco sobre o que são os mundos virtuais e quais as particularidades do SL. De acordo com Castronova (2001), a expressão “mundo virtual” foi usada pioneiramente pelos criadores do jogo Ultima Online74; esse jogo reproduz um universo com narrativa medieval onde o jogador pode vivenciar aventuras, colecionar objetos, comprar casas etc., além de se relacionar com outros jogadores ali também conectados. Anos depois, a expressão se tornaria universal para designar tanto os jogos de RPG on-line75 (Ragnarök, Everquest, World of Warcraft – WoW) quanto os simuladores (Habbo Hotel, The Sims, SimCity, IMVU, Active Worlds, Moove Online, Second Life). Como jogos eletrônicos, eles fazem parte de uma indústria bilionária que faturou US$ 22 bilhões em 200876, sendo R$ 87,5 milhões no Brasil77. Em comum, há a possibilidade de o jogador escolher um papel para representar em um dado universo e interagir com outros usuários por meio de mensagens de texto, voz e/ou linguagem corporal. O veículo dessa interação é justamente o avatar. mundo virtual, tem crescido de forma exponencial, chegando a 13,8 milhões em maio de 2008. 74 Jogo lançado em 1997 pela Origin Systems. 75 RPG é a sigla para Role Playing Game, jogo de representação de papéis, geralmente com narrativa mitológica. Antes jogados apenas em tabuleiros, ganharam interface gráfica e passaram a ser jogados também em consoles e no PC. Com o advento da internet, na década de 1990, surgiu a versão on-line desses jogos, possibilitando a interação em tempo real entre os jogadores. 76 Ver ENTERTAINMENT SOFTWARE ASSOCIATION. “Computer and video game industry tops $22 billion in 2008”. Disponível em: . Acesso em: 18 abr. 2009. 77 Ver ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DAS DESENVOLVEDORAS DE JOGOS ELETRÔNICOS. “A indústria brasileira de jogos eletrônicos – Um mapeamento do crescimento do setor nos últimos 4 anos”. Disponível em: . Acesso em: 18 mai. 2009.

180

O Second Life e a vivência do “segundo corpo”

A partir de sua experiência com o Norrath, a terra imaginária do jogo Everquest, Castronova (2001) classifica um mundo virtual como um programa de computador com três características definitivas. Em primeiro lugar, interatividade – existe em um computador, mas pode ser acessado remota e simultaneamente por um grande número de usuários, com comandos em primeira pessoa que afetam o desempenho de outros jogadores. Em segundo lugar, o autor diz que todo mundo virtual é físico – os jogadores acessam o programa através de uma interface que simula um ambiente físico em primeira pessoa na tela do computador, ambiente este governado por leis naturais da Terra. Ou seja, existe alguma materialidade neste processo. A terceira e última característica, e bastante importante, é a persistência – o programa continua rodando mesmo quando ninguém está usando e consegue lembrar a localização de pessoas e coisas, bem como a posse de objetos, quando os jogadores voltam a se conectar. Significa dizer que o programa tem uma memória que permite ao usuário continuar a jogar exatamente do mesmo ponto em que parou. Como mundo virtual, o SL abriga uma particularidade: trata-se de um jogo diferente, sem objetivos pré-definidos nem missões, o que não é comum na maioria dos jogos eletrônicos, em que o jogador precisa matar inimigos ou conquistar territórios para “subir de nível”. Seu “desafio” consiste em criar uma “segunda vida” e vivê-la na internet, brincando de ser outra pessoa, ter outro corpo, outra identidade. Isso tem levado alguns autores, como Pimenta e Varges (2007), a não considerá-lo um jogo, e sim uma rede social. Normalmente, tanto os RPGs quanto os simuladores envolvem o cumprimento de determinados desafios, seja derrotar inimigos, conquistar territórios ou mesmo cuidar para que o personagem seja bem sucedido (alimentá-lo, colocá-lo para trabalhar, constituir família etc.). No SL, como em outros mundos virtuais, interagimos com outros jogadores, mas também podemos trabalhar, estudar, fazer compras, namorar, fazer sexo virtual, criar e vender produtos. Seria, então, um jogo com uma rede social dentro, principalmente se entendemos jogo em seu sentido mais amplo – aquele que remete à expressão ludus (do latim), utilizada para designar tanto os jogos infantis quanto a recreação, as competições, as representações litúrgicas e teatrais e os jogos de azar (Cf. HUIZINGA, 2007: 41). Quando brincamos de Playmobil ou de boneca, por exemplo, 181

Micheline Dayse Gomes Batista

também estamos jogando. Mas nesses casos não há objetivos pré-definidos ou metas a alcançar. Não há competição ou disputa, entretanto, podemos dizer que há muita coisa em jogo. É esse conceito mais amplo de jogo que adotamos aqui. Outro diferencial do SL é a possibilidade de customização infinita dos avatares. “Customização infinita” não é apenas força de expressão, uma vez que os controles de edição são deslizantes, permitindo inúmeras combinações na aparência (modelagem, tons de pele), roupas, acessórios, gestos corporais (modo de andar, dançar etc.). Em jogos similares (e mesmo em outros mundos virtuais) é permitido apenas mudar o vestuário e a cor do cabelo, mas não editar. Inicialmente, podemos escolher entre seis avatares masculinos e seis femininos, que depois podem ser customizados de acordo com o papel que desejamos representar no mundo virtual. Também é bastante interessante o uso de técnicas reais de transformação corporal, como próteses, piercings e tatuagens. Diferentemente do corpo “real”, feito de carne, as intervenções estéticas no corpo “virtual” são absolutamente indolores e, o mais importante, absolutamente reversíveis. No espaço lúdico do jogo, o usuário do SL pode fazer sucessivos upgrades e ter uma aparência diferente a cada dia, ou a cada minuto, incorporando diferentes “máscaras”. “Quando o internauta incorpora um avatar, produz-se uma duplicação na sua identidade, uma hesitação entre presença e ausência, estar e não estar, ser e não ser, certeza e fingimento, aqui e lá”, diz Santaella (2003: 203). As imagens gráficas cada vez mais reais e a sonoplastia ajudam o jogador a imergir no personagem, como observam Ferreira et al. (2009): “As imagens gráficas muito bem detalhadas, sons potentes, cenários e personagens cada vez mais críveis ajudam a manter o clima de envolvimento”. O tema ganha importância na medida em que a internet está cada vez mais presente na vida das pessoas. Já é 1,73 bilhão de internautas no mundo, um quarto da população mundial – 67,5 milhões no Brasil78. E esse uso só tende a crescer, especialmente com a disseminação da tecnologia de banda larga, que permite o acesso à rede mundial de computadores em alta velocidade, inclusive pelo celular, estimulando a hiperconectividade. Ver INTERNET WORLD STATS. Disponível em: http://www.internetworldstats.com/stats15. htm. Acesso em: 30 jan. 2010. 78

182

O Second Life e a vivência do “segundo corpo”

Projeções indicam que, em 2016, pelo menos 50% dos internautas na faixa dos 13 aos 30 anos vão usar um avatar 3D interativo, seja para entretenimento, socialização, comunicação, criatividade, educação, comércio etc.79 Estamos, portanto, antecipando algumas questões que devem ganhar maior vulto mais à frente. Vamos, então, procurar entender qual a importância do corpo na atualidade, que configurações ele pode assumir no mundo virtual e como sua vivência nesse ambiente já se constitui um aspecto cultural importante para a sociedade contemporânea.

A onipresença do corpo Baudrillard afirma que, enquanto ao longo dos séculos o homem possuía um corpo que precisava ser salvo (ou seja, queriam nos convencer de que não tínhamos corpo, apenas alma), hoje temos “muitos corpos”. O corpo é um fato cultural e a forma com que nos relacionamos com ele reflete os múltiplos papéis sociais que desempenhamos. Em nossos envolvimentos tecnológicos virtuais, o corpo deixa de ser simplesmente a carne degradada da concepção religiosa, ou a força de trabalho a ser racionalmente empregada, para se tornar objeto de culto narcisista. “As estruturas atuais de produção/consumo induzem o sujeito a uma dupla prática, ligada a uma representação de seu próprio corpo: a representação do corpo como capital e como fetiche (ou objeto de consumo)” (BAUDRILLARD, 2005: 277). Para Baudrillard, a “onipresença” do corpo teria sido evidenciada com a evolução dos meios de comunicação de massa, sobretudo a partir dos anos 1960, através da propaganda e da moda – os modelos sempre são jovens, elegantes e perfeitos. “A obsessão pela juventude, elegância, virilidade/feminilidade, tratamentos e regimes, e as práticas sacrificantes, revelam que o corpo virou um objeto de salvação” (BAUDRILLARD, 2005: 277). É o corpo como “o mais fino objeto de consumo”, ícone de uma nova ética que valoriza cada vez mais o tempo presente, com um olho no futuro. Ver SMART, J. M; CASCIO, J.; PAFFENDORF, J. (2007). Metaverse Roadmap Overview. Pathways to the 3D Web. Disponível em: . Acesso em: 16 set. 2008. 79

183

Micheline Dayse Gomes Batista

No final dos anos 1980 e início dos anos 90, o culto ao corpo fica ainda mais evidente, chegando ao século XXI como “uma verdadeira obsessão, transformando-se em um estilo de vida” (GOLDENBERG, 2007: 12). A TV e o cinema escancaram que padrão corporal deve ser seguido não apenas por mulheres, como destaca Goldenberg, mas também pelos homens – esse padrão seria inspirado em atores, cantores e apresentadores de TV bem sucedidos, “cujo principal capital é o próprio corpo” – magro, sarado, esculpido em academias e por cirurgias estéticas. Foi a mídia que primeiro nos trouxe essa ideia de um corpo idealizado. De algum modo, é esse modelo corporal exitoso que vemos refletido no SL e é nesse sentido que podemos dizer que o corpo virtual é extremamente analógico. No jogo também existe uma moda, e um corpo que “entra” ou “sai” de moda, mas que permanece sempre perfeito, sem rugas, estrias, gordura ou flacidez. A descartabilidade característica das sociedades contemporâneas torna-se ainda mais evidente no contexto cibernético. É possível, por exemplo, “trocar” de corpo, bastando para isso comprar um shape novo – e lá existem muitas marcas famosas de shapes, como Moon, Redgrave, Lombra e Angel’s à disposição de internautas dispostos a pagar por elas. A imagem do avatar nunca fica pronta, acabada. É sempre construída e reconstruída, cotidianamente editada como se o ser humano vivesse em constante atualização – seja em prol da saúde, da juventude, da beleza ou do sexo. Pode-se dizer que o corpo virtual não apenas representa – ele espelha o culto narcisista em um ambiente tridimensional. Esse “segundo corpo” é, ao mesmo tempo, sujeito e objeto. E carrega consigo a noção própria da sociedade de hiperconsumo de que tudo é descartável, de que tudo pode ser integrado e desintegrado80. Ele é virtual, mas nos remete a um tipo de vivência que é, em si mesma, análoga àquela que temos no nosso dia-a-dia; mais ainda quando lembramos que a técnica faz parte da história da humanidade desde os primórdios, através do fogo, de armas e instrumentos de pedra.

80

Sobre sociedade de hiperconsumo ver LIPOVETSKY, 2007.

184

O Second Life e a vivência do “segundo corpo”

Corpo virtual, vivência analógica Revisitando Hermínio Martins, Paula Sibilia (2002) resgata dois personagens mitológicos – Prometeu e Fausto – para definir a relação do homem com a tecnologia ao longo dos séculos. O prometeísmo haveria guiado a criação de ferramentas, da máquina a vapor, da eletricidade e dos motores movidos a combustíveis fósseis, a partir do século XVII, abrindo as vias para a industrialização e a modernização global do Ocidente. Enquanto os prometeístas enfatizariam a ciência como “conhecimento puro”, carregando uma visão meramente instrumental – e limitada – da técnica, na perspectiva fáustica o conhecimento científico é essencialmente tecnológico. Ou seja, existiria uma relação de dependência conceitual e ontológica entre ciência e técnica. Segundo Sibilia, o prometeísmo é uma linha em decadência; e essa perspectiva fáustica, associada à tecnociência contemporânea, está em ascensão. A sociedade industrial (modernidade) vem sendo substituída pela sociedade pós-industrial ou era da informação (pós-modernidade), focada nas fontes eletrônica e digital. O momento atual, para essa autora, evidenciaria a obsolescência do corpo humano e justificaria a hibridização do humano com a máquina, dando origem ao ser pós-orgânico. Esse corpo novo seria o protagonista das trocas comunicacionais, “capaz de extrapolar seus antigos confinamentos espaciais”. É nesse contexto que surge uma possibilidade inusitada: o corpo humano, em sua antiga configuração biológica, estaria se tornando ‘obsoleto’. Intimidados pelas pressões de um meio ambiente amalgamado com o artifício, os corpos contemporâneos não conseguem fugir das tiranias (e das delícias) do upgrade. Um novo imperativo é internalizado, num jogo espiralado que mistura prazeres, saberes e poderes: o desejo de atingir a compatibilidade total com o tecnocosmos digitalizado (SIBILIA, 2002: 13).

Já Lucia Santaella (2003) põe em discussão sete tipos de corpos biocibernéticos e suas subdivisões, chegando a um total de 12 formas de hibridização do ser humano com as máquinas: desde “o corpo remodelado” pelas manipulações estéticas em sua superfície (o corpo como mercadoria 185

Micheline Dayse Gomes Batista

consumindo mercadorias), passando pelo “corpo protético” (o ciborgue com suas construções artificiais substituindo ou amplificando funções orgânicas) e chegando ao que a autora chama de “corpo plugado”, entre outros. Esse último tipo é o que mais nos interessa por se aproximar da experiência de corporificação que o SL propicia. O “corpo plugado” seria o corpo dos usuários que se movem no ciberespaço enquanto seus corpos ficam conectados ao computador, permitindo a entrada e a saída de fluxos de informação. Segundo Santaella, o grau de imersão vai depender da capacidade do sistema técnico de cativar os sentidos do usuário e bloquear os estímulos externos. Vai desde um nível mais superficial, como a experiência de escrever um texto na tela do computador, à realidade virtual (RV). “A mais esplêndida metáfora do corpo imersivo pode ser encontrada em Matrix, o filme”, situa a autora (2003: 202)81. Uma das subdivisões desse tipo de “corpo plugado” é a imersão mediante avatares, descritos por Santaella como “figuras gráficas, habitantes dos mundos virtuais” como o SL. “Neste nível, a imersão avança um passo, pois, quando o internauta incorpora um avatar, produz-se uma duplicação na sua identidade, uma hesitação entre presença e ausência, estar e não estar, ser e não ser, certeza e fingimento, aqui e lá” (2003: 203). A experiência de possuir um corpo virtual e com ele poder se expressar em um jogo eletrônico on-line é descrita das mais diferentes formas pelos jogadores. Alguns falam dessa experiência como uma “reencarnação”, outros, como um “sonho” ou um “encantamento”. É como se fosse uma oportunidade de ser outra pessoa e de viver novas experiências, sem que a bagagem do jogador seja necessariamente deixada para trás. É como se eles abrissem em suas vidas uma nova janela de espaço e de tempo, e ali pudessem viver de maneira hiper-real, misturando realidade e fantasia. O sentimento de corporeidade, ou seja, a simulação do corpo desejado, é a realização do próprio jogo, é o que transforma o jogo em realidade para essas pessoas. Alguns jogadores não encaram objetivamente o corpo virtual como sendo um segundo corpo, e sim uma parte de si mesmos, como se fosse um Na trilogia cinematográfica Matrix (EUA, 1999 e 2003), dirigida pelos irmãos Andy e Larry Wachowski, o protagonista Neo vive imerso num programa de realidade virtual (a Matrix, metáfora para o ciberespaço) criado pelas máquinas que controlam o mundo por volta do ano de 2200. Ele é resgatado dessa “ilusão” por habitantes da última cidade de seres humanos livres que lutam para derrotar as máquinas. 81

186

O Second Life e a vivência do “segundo corpo”

prolongamento de suas existências. Mesmo que esse corpo seja diferente dos seus corpos físicos, existe algo que é projetado simbolicamente, e esse algo faz com que as pessoas se identifiquem de alguma maneira com as representações que criaram e digam coisas surpreendentes, do tipo “sou eu através desse avatar”. Outros relatos revelam um desejo de “entrar dentro do avatar” para poder usufruir das mesmas sensações. Não somente poder ver através do boneco na tela, mas poder “tocar”, experienciar algo tátil, mais palpável, o que obviamente (ainda) não é possível. Os jogadores do SL estão conscientes de que vivem em uma realidade paralela, imaterial. Em momento algum perdem a noção do que é “real” e do que é “virtual”. Mas a simulação é tão real que é como se o avatar ganhasse vida própria. Uma autonomia que permite que ele “sinta” coisas, a liberdade de ser um pássaro ou uma borboleta, por exemplo – vai depender, apenas, da abertura e do grau de imersão no personagem. A grande questão é saber como utilizar essas experiências na prática, como um espelho para a vida “real”. Como ter um avatar magro e se inspirar nele para emagrecer. A imersão através de avatares nos propõe um olhar transcendente sobre nós mesmos, sob o escudo mágico da fantasia. Alguns autores, começando talvez por Le Breton (2003: 150), têm teorizado acerca da dissolução do corpo na internet – “o corpo da realidade virtual é incorpóreo”. Featherstone e Burrows (1991: 11-12), por sua vez, argumentam que a tecnologia propiciou a existência de “subjetividades descorporificadas”. Partindo de uma constatação simples, fazemos uma releitura dessa tese: por trás de toda tela de computador existe uma pessoa real, de carne e osso, disposta a estabelecer uma “presença virtual”. E esse corpo – o avatar – também é real e gera sensações físicas, análogas às que sentimos quando atuamos no mundo material. O próprio Le Breton (2003: 150) reconhece que, “ainda que seja uma simulação do mundo, o espaço cibernético não proporciona menos o sentimento da realidade física de seu universo. As percepções são realmente sentidas, mas se baseiam em uma simulação”. Visto dessa forma, o corpo real nos propicia uma vivência essencialmente analógica. No caso do SL, os avatares podem dançar, abraçar, beijar, fazer sexo. Como performance, carregam toda uma 187

Micheline Dayse Gomes Batista

materialidade simbólica que retorna para os jogadores na forma de sensações, experiências. A imersão é induzida pelos sentidos da visão e da audição. São os cenários e as trilhas sonoras que nos envolvem e cativam. E há ainda o movimento dos “bonecos” em cena. O sexo feito na tela do computador, por dois “bonequinhos” simulando beijos, abraços e diversas poses, não tem outro objetivo que não o prazer do corpo real. Nas festas e boates do SL, pessoas passam noites inteiras dançando, bebendo e fumando – inclusive pessoas que não utilizam álcool nem tabaco em suas vidas reais. Que tipo de satisfação essa prática pode trazer? Que sentido os usuários do mundo virtual atribuem a esse tipo de vivência? Podemos seguir algumas pistas. Para dançar no SL, não é necessário gastar dinheiro em boates “de verdade”. O ato de fumar não implica em riscos “reais” como o câncer de pulmão – “fumei, mas não traguei”. Ingerir bebida alcoólica no mundo virtual não dá ressaca. A simulação, portanto, justificase por ela mesma e pela janela de oportunidade que abre para a realização de coisas que, de outro modo, não seriam possíveis. Como nadar sem se molhar, fumar sem tragar, voar ou se teletransportar do Brasil ao Japão em questão de segundos, a um clique do mouse. Ou para a realização de fantasias que na realidade os jogadores não se permitem por uma questão cultural. Se aqui eu não quero encher o corpo de tatuagens ou usar piercings, lá eu posso fazê-lo sem precisar marcar meu corpo de forma definitiva. Posso usar um cabelo azul, roupas curtas e decotadas sem precisar “dar satisfações” a outros sobre minha conduta.

Reprodução de modelos No caso do SL, o ciberespaço simula um ambiente urbano, conectado à realidade das ruas, de forma que o cibercorpo reproduz as formas corporais e a moda que vemos nas cidades. Se a moda é ser “bombado”, isto é, musculoso, os avatares masculinos serão “bombados”. Se na vida real o que impera é a imagem do corpo feminino como capital – ou seja, mulheres magras, esculpidas em academias e por cirurgias plásticas –, então tudo isso estará espelhado no mundo virtual. Em geral, podemos 188

O Second Life e a vivência do “segundo corpo”

dizer que avatares feios, gordos ou velhos praticamente não existem no SL. Para se ter uma ideia, a idade que geralmente é declarada pelos residentes é de 28 anos, embora o jogador tenha 30, 40 ou 50 anos. A “moda” de buscar a forma perfeita, ideal, que acaba deixando as pessoas iguais, quando de algum modo tentam se diferenciar, vem sendo transposta para o mundo do SL. O investimento real também ocorre no ambiente hiper-real do jogo, embora a precariedade opere nos dois lados. O corpo do avatar é perfeitamente flexível, customizável, mas lá também há limites, aqueles estabelecidos pela interface técnica e pelos constrangimentos do mundo real. O ambiente é lúdico e potencialmente democrático, porém os modelos tendem a se aglutinar em torno de determinados ideais de beleza. A necessidade de pertencimento que leva os jogadores do SL a reproduzir no mundo virtual padrões estéticos da vida real ocorre porque o avatar é também uma construção social, no sentido empregado por Balsamo (1995: 217-218). Para essa autora, assim como o corpo natural, o corpo cibernético “é uma produção social, cultural e histórica”. “Como um produto é a corporificação material de identidades étnicas, raciais e de gênero, assim como uma performance encenada de identidade pessoal, de beleza, de saúde”. Balsamo procura imaginar que formas de corporeidade as pessoas iriam escolher se pudessem remodelar seus corpos sem dor e sem os custos da reestruturação física, seja através de cirurgias cosméticas ou body building. Os corpos do SL carregam também uma proveniência, que vem da história e experiência de vida dos jogadores, inclusive da experiência possibilitada pelo uso da técnica. Marcas que acabam aparecendo explícita ou implicitamente não apenas na imagem, mas também na conduta dos avatares. De acordo com Foucault (1979: 20), o corpo está relacionado à proveniência – o pertencimento a um grupo, raça ou tipo social. É o que faz, por exemplo, um jogador de origem judaica ser judeu também no SL e ser reconhecido como tal pelo uso do traidicional kipa no alto da cabeça. É o corpo marcado com a história de seus ancestrais, herança que se inscreve, por exemplo, no sistema nervoso, no aparelho digestivo, no humor – bagagem que acaba sendo levada para o corpo virtual. Mas o corpo é também lugar de adestramento e regulação: “a ginástica, os 189

Micheline Dayse Gomes Batista

exercícios, o desenvolvimento muscular, a nudez, a exaltação do belo corpo... tudo isto conduz ao desejo de seu próprio corpo através de um trabalho insistente, obstinado, meticuloso” (1979: 146). O processo de edição e customização do avatar são atividades que demandam bastante tempo e dedicação do jogador. Para a maioria dos jogadores, essa é a melhor parte da “brincadeira” – a liberdade de poder mudar a forma do corpo, as características da pele, trocar de roupa, pôr e tirar acessórios, seja para ir a algum “evento” inworld ou simplesmente para acompanhar seu estado de espírito. Os itens mais modificados são roupas, acessórios e cabelos, e sempre há uma interconexão entre eles – no jogo e entre o jogo e as aspirações dos usuários em relação à sua real aparência. Como simulacros, os corpos do SL são mais perfeitos e mais controláveis que o corpo real, como afirma Baudrillard (2007). Ou mais perfeitos porque mais controláveis. De alguma maneira, o prazer do jogo é o controle. Apenas no game podemos ter uma visão de 360 graus sobre nós mesmos, enxergar detalhes e ângulos inéditos que só outras pessoas conseguem enxergar no mundo off-line. O círculo se fecha na medida em que controlamos 100% do corpo e da conduta do avatar. Decidimos ter esse ou aquele corpo, escolhemos nossos próprios caminhos. Neste sentido, o virtual coincide com a noção de hiper-realidade. A realidade virtual, a que seria perfeitamente homogeneizada, colocada em números, ‘operacionalizada’, substitui a outra porque ela é perfeita, controlável e não-contraditória. Por conseguinte, como ela é mais ‘acabada’, ela é mais real do que o que construímos como simulacro (BAUDRILLARD, 2007: 41-42).

Segundo Baudrillard, a hiper-realidade, intimamente relacionada à “realidade eletrônica”, não só dissolve a realidade objetiva como também o sujeito individual e autônomo. Há uma perda de referências. Os referenciais se perderam porque a simulação transformou o simulacro em realidade. Os simulacros são mais perfeitos, acabados, controláveis. O referente – neste caso, o corpo “real” – não é mais necessário para efeito de verdade. “A simulação já não é a simulação de um território, de um ser referencial, de uma substância. É a geração pelos modelos de um real 190

O Second Life e a vivência do “segundo corpo”

sem origem nem realidade: hiper-real” (BAUDRILLARD, 1991: 8). É tão hiper-real que o próprio referencial de beleza deixa de ser uma condição para estar ali. A criatividade dos jogadores mostra que o jogo também abre espaço para formas inusitadas, como veremos a seguir.

Dando asas à imaginação Apesar de valorizar ideais como juventude e beleza, o SL também admite o tom de brincadeira e/ou fantasia, que transgride(m) ou questiona(m) esses ideais. Exemplo disso são as jogadoras que usam cabelos crespos ou desalinhados, em contraposição às famosas chapinhas (pranchas alisadoras de cabelo) que se tornaram “febre” entre as mulheres brasileiras na primeira década deste século. Encontramos, ainda, casos de jogadoras que exageram na colocação de próteses, resultando em seios e/ou nádegas superdimensionadas; ou barriga salientes, já que no jogo é possível simular uma gravidez que dure cerca de um mês ou o tempo que a “gestante” desejar – e há quem enxergue no corpo grávido alguma sensualidade. No caso dos homens, alguns poucos exibem um corpo magro, sem tantos músculos, ou um visual mais andrógino. Também é possível fugir do convencional criando um avatar de criança82 ou mudando de sexo – mulheres podem aparecer com um avatar masculino e vice-versa. No campo da fantasia, registramos no SL a existência de algumas “tribos” em ascensão com características físicas bem particulares e inusitadas, entre elas os nekos e os anjos. O visual dos nekos, baseado nos animes (desenhos animados) japoneses, é composto por orelhas, rabo e patas de gato. Eles também usam animações que simulam miados e o andar em quatro patas. Traçando um paralelo com o mundo “real”, observa-se que alguns nekos circulam em “bandos”, assim como adolescentes andam em grupos por se identificar ideológica e visualmente com os demais membros de seus grupos. Já os anjos usam asas brancas ou pretas como adereço corporal. No SL não é permitida a participação de menores de 18 anos. A verificação de idade faz parte dos termos de prestação do serviço divulgados na página oficial do jogo (www.secondlife.com). O uso de avatares-crianças indica, portanto, a realização de algum tipo de fantasia, possivelmente uma forma de reviver a infância. 82

191

Micheline Dayse Gomes Batista

Alguns avatares que encontramos vestidos de neko ou de anjo pertencem a jogadores de RPGs que rodam dentro do próprio SL. Nesse caso, o processo de criação e edição do corpo virtual passa a ser orientado mais pela funcionalidade do que pela beleza, de acordo com o perfil do personagem e dos desafios que encontrará pela frente. A escolha da vestimenta e dos acessórios (armas, poções mágicas) também obedece a esses critérios. Numa busca por lugares realizada em dezembro de 2009 foram listados cerca de 100 lands com o tema RPG. A ambientação e as narrativas são importadas dos jogos de RPG desenvolvidos para consoles e PCs. Também aqui, os jogadores encarnam um personagem e passam a vivenciálo, pensando e agindo como se fosse ele. São nekos, anjos, vampiros, lobisomens, caçadores, dragões, magos. Como nos RPGs tradicionais, os jogadores seguem uma narrativa, cumprem tarefas, participam de lutas, acumulam pontos de experiência e vão subindo de nível. A maioria das batalhas ocorre de acordo com crônicas que criam a ação, garantindo a continuidade do RPG – disputa de território, invasão de QG, roubo e/ou recuperação de algum artefato ou até mesmo uma guerra. No Brasil, o sistema mais antigo de RPG dentro do SL – e certamente o maior – é o Lendas Urbanas (LU), “uma cidade escondida do mundo por forças misteriosas divididas em facções”, conforme indica um notecard distribuído na entrada. Os grupos são Dragões, Elfos, Anjos, Garou, Nekos, Infernais, Samurais, Humanos, Vampiros, Caçadores e Magos. A segunda maior ilha brasileira de RPG no SL é a Cidade do Medo. Esta, criada em meados de 2008, movimenta mais de mil visitantes diários. Os jogadores vivem em uma realidade baseada em contos, que simulam a vida destruída pelo caos. De acordo com a narrativa desse jogo, o rei foi deposto e as raças iniciaram uma guerra para conquistar a cidade de Casa Nova, também chamada de Cidade do Medo. As raças são os Celestiais (Anjos), Infernais (Demônios), Hunters (Caçadores Humanos), Mutantes, Dragões, Filhos de Bastet, Predadores, Garous (Lobisomens), Vampiros, Elfos Negros e Magos. No mundo, um dos sistemas de RPG mais populares que rodam dentro do SL é o Bloodlines (www.slbloodlines.com), dedicado a vampiros e lobisomens. Foi lançado em maio de 2008 pela Liquid Designs. Para 192

O Second Life e a vivência do “segundo corpo”

jogar, o usuário precisa adquirir o The Thirst (vampiros) ou o The Rage (lycans), pacotes que vêm com uma HUD83 que nada mais é que um painel de controle ativado na tela com botões para acionar diversos recursos no jogo – dentes, no caso dos vampiros; garras, no caso dos lobisomens, entre outros. Para morder alguém, por exemplo, é preciso antes “vestir” os dentes e depois clicar na figura correspondente no painel para acioná-los. Os personagens de RPG são incorporados por muitos usuários do SL como uma outra “identidade”, utilizando suas vestimentas e agindo como tal durante todo o tempo em que estão conectados. Outros mantêm sua aparência “humana” e se “transformam” – ou seja, vestem a fantasia – apenas na hora em que vão jogar RPG. A multiplicação de raças e de sistemas que rodam dentro da plataforma sugere que algumas pessoas estão cada vez mais dispostas a experimentar ser alguém diferente, a jogar com novas sensações dentro de uma pluralidade que, no fundo, fervilha em suas internalidades físicas. Os jogadores têm ali uma oportunidade de experimentar novas configurações corporais – como seria se eu tivesse um rabo de gato ou asas de anjo ou demônio? Ou: como eu iria me comportar sendo um vampiro, podendo seduzir e morder pessoas? É o tipo de experiência que retorna para o jogador na forma de aprendizado e autoconhecimento.

Experimentações identitárias Assim como acontece na vida real, o corpo virtual é parte da afirmação identitária dos indivíduos. Uma identidade que é construída a partir de elementos fornecidos pela história, geografia, biologia, pela memória coletiva e por fantasias pessoais. Como bem assinalou Castells, muitos estudos têm distorcido a imagem que se tem da prática social da internet. Para este autor, a sociabilidade on-line é uma extensão da vida real, mesmo que envolva a representação de papéis, embora não se saiba ainda quais as consequências culturais dessa nova forma de sociabilidade. Vejamos: HUD é a sigla para Heads-Up Display. São ferramentas que dão acesso a determinados recursos. Uma HUD de neko, por exemplo, permite que o usuário emita miados, ande em quatro patas etc. Uma HUD de vampiro permite que o usuário ofereça a mordida e assim por diante. As HUDs são anexadas ao avatar e ficam visíveis na tela do jogador. 83

193

Micheline Dayse Gomes Batista

[...] a proliferação de estudos sobre esse assunto distorceu a percepção pública da prática social da Internet, mostrando-a como terreno privilegiado para as fantasias pessoais. O mais das vezes, ela não é isso. É uma extensão da vida como ela é, em todas as suas dimensões e sob todas as suas modalidades. Ademais, mesmo na representação de papéis e nas salas informais de chat, vidas reais (inclusive vidas reais on-line) parecem moldar a interação on-line (CASTELLS, 2003: 99-100).

Jonatas Dornelles comunga da mesma opinião de Castells. “A vida no mundo virtual é uma seqüência da vida real cotidiana. Nas minhas pesquisas sempre ficou clara uma tendência de estreitamento das dimensões on e off-line, ou melhor, do virtual com o real”84. Existiria, portanto, uma conjugação entre os dois mundos. E o tal “jogo de escondeesconde”, longe de ser um aspecto negativo da sociabilidade on-line, é um dos caminhos para compreendermos que a identidade pós-moderna, assim como o corpo, é performativamente construída. Vivenciar um “segundo corpo” na internet, na maioria dos casos, significa fazer experimentações, “jogar” com as fantasias pessoais. Equivocadamente, a rede mundial de computadores vem sendo considerada um terreno fértil para o jogo de identidades e para a disseminação de perfis falsos. Se o sujeito pós-moderno foi descentrado, assumindo um caráter instável e plural, a internet – com suas redes sociais, salas de bate-papo e jogos eletrônicos – certamente é um dos lugares onde esse descentramento se realiza. Lemos (2004) afirma que o “anonimato” protege o usuário e estimula o uso de “máscaras”. “A sociabilidade on-line caracteriza-se como uma espécie de ‘esconde-esconde’, onde o usuário pode assumir e experimentar identificações sucessivas às diversas comunidades virtuais” (2004: 175). Lemos diz que não existem certezas no ciberespaço, seja de sexo, classe ou raça – a identidade é ambígua. Tudo pode não passar de simples simulação e isso muitas vezes é encarado de forma negativa. Entretanto, para autores como Sherry Turkle, a distinção que hoje é feita entre a vida real e a vida virtual estaria mais na cabeça dos especialistas do que dos Entrevista concedida à revista Sociologia Ciência & Vida. Ver FIGUEIRA, Mara (2007). Second Life: febre na rede. Sociologia Ciência & Vida. São Paulo: Editora Escala, Ano I Nº 9, pp. 16-25. 84

194

O Second Life e a vivência do “segundo corpo”

usuários, que desejam ter acesso e viver os dois aspectos simultaneamente. Essas fronteiras são permeáveis. Falar em vida real e em vida virtual como se uma fosse real e a outra meramente fantasiosa seria um erro grave. Na medida em que as pessoas passam tempo em lugares virtuais, acontece uma pressão, uma espécie de expressão do desejo humano de tornar mais permeável as fronteiras do real e do virtual. Em outros termos, creio que enquanto os especialistas continuam a falar do real e do virtual, as pessoas constroem uma vida na qual as fronteiras são cada vez mais permeáveis (TURKLE, 1999: 118).

Hall (2006), ao discorrer sobre o sujeito pós-moderno, diz que “a identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente, é uma fantasia”, porque: O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um ‘eu’ coerente. Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas. Se sentimos que temos uma identidade unificada desde o nascimento até a morte é porque construímos uma cômoda estória sobre nós mesmos ou uma confortadora ‘narrativa do eu’ (HALL, 2006: 13).

Ao compreendermos que o indivíduo passa a assumir diferentes posições de sujeito, podemos inferir que a identidade é um processo em andamento, um devir; e que se desenvolve a partir do olhar do Outro. A compreensão desse processo nos ajuda a pensar, por exemplo, sobre a necessidade que os jogadores do SL têm de encarnar diferentes personagens, de modificar seus avatares continuamente – desde alterações radicais, como a adoção de novos shapes e skins, até a simples e cotidiana troca de roupas e acessórios. Eles se “editam” virtualmente buscando uma identificação com o personagem sem ter de encarar um bisturi, ou seja, sem ter de passar por técnicas reais de transformação corporal. Maffesoli (1996: 18), assim como Hall, propõe uma “lógica da identificação” em substituição à lógica da identidade que teria prevalecido durante toda a modernidade. “Enquanto esta última repousava sobre a 195

Micheline Dayse Gomes Batista

existência de indivíduos autônomos e senhores de suas ações, a lógica da identificação põe em cena ‘pessoas’ de máscaras variáveis”, máscaras essas que prestam tributo ao(s) sistema(s) emblemático(s) com que as pessoas se identificam. E os jogos, diz Maffesoli (1996: 125), são coestruturais nesse processo – jogos de simulação, eletrônicos, jogos de bolsas, jogos políticos, jogos da moda, jogos de aparências.

Considerações finais O corpo virtual, assim como o analógico, é performatizado, construído simbolicamente – e dizemos “corpo” referindo-nos à superfície de inscrição de desejos numa sociedade que valoriza a busca pelo prazer através do consumo. No SL, é possível ter um corpo magro sem que seja necessário fazer sacrifícios ou dietas, eliminar as espinhas típicas da adolescência e ao mesmo tempo “turbinar” um pouco mais os seios, numa exacerbação das dietas milagrosas que prometem emagrecer sem esforço, aumentar o peitoral etc. A maioria decide fazer um avatar “diferente”, alguns tentam aproximar, outros criam formas inusitadas, distantes da concepção que temos de corpo humano. São todas representações imagéticas válidas, criadas para representar o jogador no mundo virtual. Não podemos esquecer que o SL é um mundo de possibilidades. Na segunda vida, “és o que queres ser”. Os jogadores sabem que o SL é um jogo e por isso podem ter avatares perfeitos lá, mas que isso é algo distante de suas realidades – “não sou perfeita, sou humana”, afirma uma jogadora. Mas, o que ocorre quando o PC é desligado? O sentimento de frustração parece inevitável. Quando “cai a ficha” e o sujeito se olha no espelho, percebe então que para haver uma mudança de fato é necessário ir muito além de um simples clique no mouse. O avatar é um veículo fundamental para a realização desse desejo de mudança corporal tão inerente à sociedade contemporânea, sem que as pessoas precisem passar pelos conhecidos ônus reais do upgrade (dor, possíveis deformações, irreversibilidade em alguns casos, investimento financeiro alto). Mas, ainda podemos nos perguntar: qual o sentido disso tudo? Adultos brincando de boneca? O que torna essa prática tão relevante 196

O Second Life e a vivência do “segundo corpo”

para essas pessoas? Seria o divertimento puro e simples, a realização de fantasias? Ou é relevante porque mobiliza a imaginação e ao mesmo tempo dá a chance de nos enxergarmos através de um grande espelho retrovisor em 360 graus? Sem dúvida, o SL propicia todas essas experiências. A imaginação e o espelho parecem ser a tônica desse jogo que se propõe criar uma segunda vida, uma nova experiência de estar no mundo. O virtual abre espaço para o jogo de identidades, o uso de máscaras, o oculta/revela. Mas também escancara desejos, mostra o que é possível fazer num mundo de potência e fantasia. O avatar é construído sob o olhar do outro e dos próprios jogadores, que ali podem se enxergar num ângulo de 360 graus. E é daí que surge o constrangimento que faz todos parecerem iguais – magreza para as mulheres, músculos para os homens. Os corpos que encontramos no SL são mais do que reais, são hiper-reais, uma vez que mais perfeitos, acabados, supostamente mais controláveis. O controle não é pleno – é o controle possível num ambiente mediado pela tecnologia. Se algo der errado, faço de contas que não é mesmo comigo – o problema é do avatar. Afinal, é apenas um jogo. A própria dinâmica da internet e dos jogos eletrônicos on-line não nos permitem muitas certezas ou “conclusões”. Há muitas suspeitas e desconfianças. Entretanto, pode-se dizer que as experiências que o SL propicia são relevantes para o cotidiano dos jogadores, que investem cada vez mais tempo e dinheiro nessa atividade. Há sempre aquela possibilidade de poder “se inspirar” no avatar, seu duplo no jogo, para emagrecer, por exemplo. Vivemos entre a realidade e a ficção, transitando entre os dois mundos. Vivemos entre a transparência e a opacidade, entre a fluidez e a rigidez. Nessa brincadeira, produzimos significados sem que seja necessário distinguir uma dimensão da outra.

197

Micheline Dayse Gomes Batista

REFERÊNCIAS ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DAS DESENVOLVEDORAS DE JOGOS ELETRÔNICOS. “A indústria brasileira de jogos eletrônicos – Um mapeamento do crescimento do setor nos últimos 4 anos”. Disponível em: . Acesso em: 18 mai. 2009. BALSAMO, Anne (1995). “Forms of technological embodiment: reading the body in contemporary culture”. In: Featherstone, Mike; Burrows, Roger (Orgs), Cyberspace/cyberbodies/cyberpunk: cultures of technological embodiment. London and Thousand Oaks, Sage Publications. BAUDRILLARD, Jean (1991). Simulacros e simulação. Lisboa, Relógio D’Água. _______________ (2001). A ilusão vital. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira. _______________ (2005). “The finest consumer object: the body”. In: Fraser, Mariam; Greco, Monica (Orgs.), The body: a reader. Londres e Nova York, Routledge. _______________ (2007). Senhas. Rio de Janeiro, DIFEL. CASTELLS, Manuel (2003). A galáxia da internet: reflexões sobre a Internet, os negócios e a sociedade. Rio de Janeiro, Jorge Zahar. CASTRONOVA, Edward (2001). Virtual Worlds: a first hand account of market and society on the cyberian frontier. CESifo Working Paper Series Nº 618. Disponível em: . Acesso em 20 jan. 2010. ENTERTAINMENT SOFTWARE ASSOCIATION. “Computer and video game industry tops $22 billion in 2008”. Disponível em: . Acesso em 18 abr. 2009. 198

O Second Life e a vivência do “segundo corpo”

FEATHERSTONE, Mike; BURROWS, Roger (1995). “Cultures of technological embodiment: an introduction”. In: Cyberspace/cyberbodies/ cyberpunk: cultures of technological embodiment. London and Thousand Oaks, Sage Publications. FERREIRA, Jonatas; MICHELINE D. G. Batista; DE MORAIS, Jorge Ventura; DA SILVA, Adriana Tenório (2009). “Jogos eletrônicos (JEs) online: por uma hermenêutica da vivência de criatividade no ciberespaço”. Trabalho apresentado no XIV Congresso Brasileiro de Sociologia, Rio de Janeiro. FOUCAULT, Michel (1979). Microfísica do poder. Rio de Janeiro, Edições Graal. GOLDENBERG, Mirian (Org.) (2007). O corpo como capital: Estudos sobre gênero, sexualidade e moda na cultura brasileira. Barueri, Estação das Letras e Cores. HALL, Stuart (2006). A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro, DP&A. HUIZINGA, Johan (2007). Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo, Perspectiva. LE BRETON, David (2003). Adeus ao corpo: Antropologia e sociedade. Campinas, Papirus. LEMOS, André (2004). Cibercultura: tecnologia e vida social na cultura contemporânea. Porto Alegre, Sulina. LINDEN LAB. Second Life Virtual Economy – Key Metrics Through November 2008. Disponível em: . Acesso em 15 jan. 2009. LIPOVETSKY, Gilles (2007). A felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo. São Paulo, Companhia das Letras. MAFFESOLI, Michel (1996). No fundo das aparências. Petrópolis, Vozes. 199

Micheline Dayse Gomes Batista

MCLUHAN, Marshall (1990). Os meios de comunicação como extensões do homem (understanding media). São Paulo, Cultrix. MICHAELIS. Dicionário on-line. Editora Melhoramentos. Disponível em: . Último acesso em 05 fev. 2010. PIMENTA, Francisco José Paoliello; VARGES, Júlia Pessoa (2007). “Second Life: vida e cidadania além da realidade virtual?” Comunicação & Sociedade. Vol. 47, Nº 1: 13-27. SANTAELLA, Lucia (2003). Culturas e artes do pós-humano: Da cultura das mídias à cibercultura. São Paulo, Paulus. SIBILIA, Paula (2002). O homem pós-orgânico: Corpo, subjetividade e tecnologias digitais. Rio de Janeiro,: Relume-Dumará. SMART, J. M; CASCIO, J.; PAFFENDORF, J. (2007). Metaverse Roadmap Overview. Pathways to the 3D Web. Disponível em: . Acesso em 16 set. 2008. TURKLE, Sherry (1999). “Sherry Turkle: fronteiras do real e do virtual”, entrevista concedida a Federico Casalegno. Revista Famecos. Nº 11: 117-123.

200

Corpos em Concerto: diferenças, desigualdades e desconformidades

TREINAMENTO DE TÁTICAS COLETIVAS E DISCIPLINAMENTO DOS CORPOS NAS CATEGORIAS DE BASE DO FUTEBOL: uma Análise das Práticas Sociais de Aquisição de Técnicas Futebolísticas85 Jorge Ventura de Morais Túlio Velho Barreto Glauber Lemos

1. Introdução Há uma crença popular bastante comum acerca do jogador de futebol: tem-se ou não se tem o dom para jogar bola. Os grandes craques deste esporte são saudados como deuses que receberam um dom divino (Cf. DAMO, 2008). Neste sentido, a capacidade de controlar a bola, dar um passe, cabecear, posicionar-se em campo, é vista de forma naturalizada, como um conjunto de disposições herdadas de algo sobrenatural, ou que “já se nasce com elas”,86 e, portanto, não passíveis da análise sociológica. Neste artigo, pretendemos desafiar tal crença. É nosso objetivo defender o seguinte argumento: o conjunto de capacidades elencadas acima é resultado de práticas sociais que visam ao disciplinamento e à disposição dos corpos dos jovens atletas, aspirantes a jogadores de futebol. Para tanto, iremos descrever, ilustrar e analisar um repertório de técnicas e táticas utilizadas por treinadores de futebol para conformar os corpos dos atletas aos ditames do jogo coletivo. Na base do “jogo bonito”, como o definiu Pelé, isto é, do artístico, do dom concedido por Deus, estão o treinamento e disciplinamento de corpos através de práticas sociais coletivas amplamente conhecidas e utilizadas por profissionais deste esporte. 85 86

Este artigo é baseado em pesquisa financiada pelo CNPq (Processo No. 400132/2008-7). Wacquant (1995: 509) alude à mesma crença entre os boxeadores.

201

Jorge Ventura de Morais, Túlio Velho Barreto e Glauber Lemos

Ao contrário da literatura sociológica sobre esportistas – mas, sobretudo, aquela produzida pelos pesquisadores da área da Educação Física, que tende a enfatizar o disciplinamento dos corpos por meio de exercícios físicos voltados para o desenvolvimento atlético, com vistas ao enfrentamento dos requerimentos de força pelos esportes –, analisamos, aqui, o processo de disciplinamento corporal através de táticas coletivas para a aquisição de fundamentos técnicos e noções de posicionamento espacial essenciais à prática do futebol profissional. E, de forma complementar, analisamos como os garotos ou “aprendizes” de futebol, possuidores de determinado estoque de conhecimentos, adquiridos em práticas futebolísticas de bricolagem, reagem ou lidam perante as contingências a que são submetidos quando se deparam com situações até então desconhecidas, ou pouco conhecidas, em que são obrigados a gerir situações de incongruência (Cf. GARFINKEL, 1963; KEW, 1986 e 1987).

2. Mapa Teórico As práticas sociais sempre estiveram presentes na análise sociológica, mas subsumidas sob uma abordagem que privilegia a razão e a cognição dos atores sociais, nas correntes acionalistas; ou subsumidas sob as estruturas sociais, em abordagens que privilegiam o papel das estruturas sociais, como o estruturalismo e o pós-estruturalismo. Porém, mais recentemente, tem havido uma mudança no sentido de privilegiar as práticas sociais como o locus de análise sociológica. Embora haja muita discordância acerca de o que realmente focalizar na análise das práticas sociais, em geral, entende-se que elas são conjuntos de atividades humanas (Cf. SCHATZKI, 2001a: 2; 2001b: 48). Como afirma este autor: As abordagens das práticas (sociais) estão unidas pela crença de que fenômenos como conhecimento, significados, atividade humana, ciência, poder, língua, instituições sociais e transformações históricas ocorrem dentro e são aspectos ou componentes do campo de práticas. O campo de práticas é o nexo total das práticas humanas interligadas (SCHATZKI, 2001, p. 2. [Traduzimos. Itálico no original]).

202

Treinamento de táticas coletivas e disciplinamento dos corpos [...] de Técnicas Futebolística

Neste sentido, um ponto central das diversas abordagens é que as “práticas sociais são concebidas como incorporadas (embodied), como conjuntos materialmente mediados e centralmente organizados em torno de entendimentos práticos comungados” (SCHATZKI, 2001: 2), e é dentro das quais que são formadas as propriedades corporais fundamentais para a vida social: não somente técnicas e atividades, mas também experiências em geral (Cf. SCHATZKI, 2001: 2). Assim sendo, afastamo-nos das correntes da teoria social que privilegiam crenças, desejos e emoções. Ao contrário, iremos privilegiar o know-how, as técnicas, o entendimento tácito e as disposições (Cf. SCHATZKI, 2001: 7) para entendermos o disciplinamento tático dos corpos dos jovens jogadores. No entanto, ao contrário de Bourdieu (2009a e 2009b), que expressamente se recusava a levar em conta as razões dos atores como meros epifenômenos,87 seguiremos a pista de Barnes (2001) de que, ao lado das técnicas, é preciso considerar as razões e metas dos atores sociais. Com isto, concordamos que: Desde que a proeminência do entendimento prático está ligada às posições mediadoras do corpo entre a mente e a atividade e entre a atividade individual e a diversidade social, o entendimento acontece entre dois polos: o corpo, de um lado, e o mundo social, de outro... O entendimento prático é, assim, uma bateria de habilidades corporais que resulta de, e também torna possível, a participação nas práticas (SCHATZKI, 2001: 9).

3. O contexto inicial da pesquisa e o “peneirão” do Clube Náutico Capibaribe Após diversos contatos com atuais e ex-dirigentes das categorias de base do Clube Náutico Capibaribe, realizados em sua sede social, localizada no Recife, iniciamos nossas observações de campo em setembro de 2008, Porém, há de se notar que Wacquant (1995), escrevendo dentro dos parâmetros de uma sociologia baseada na obra de Bourdieu, apresenta argumentos muito próximos da abordagem que se defende neste trabalho. 87

203

Jorge Ventura de Morais, Túlio Velho Barreto e Glauber Lemos

no município de Camaragibe, na Região Metropolitana do Recife (RMR), no pequeno e modesto Estádio Vera Cruz, com piso bastante precário, de barro e com pouca grama. Na ocasião, numa manhã de sábado de muito sol e calor, acompanhamos e registramos em vídeo as partidas entre Náutico e Colégio Anglo-Líder daquele município, pelo Campeonato Aberto Infantil e Juvenil, organizado pela Federação Pernambucana de Futebol (FPF). Na partida preliminar, que começou às 8h30, houve empate entre os times infantis; a principal, iniciada às 10h30, terminou com a vitória do Náutico. Tais resultados levaram o Náutico à terceira fase de ambas as competições. Durante as partidas, fizemos contato pessoal e bastante profícuo com o supervisor das categorias de base do Náutico, José Roberto Neves, e o treinador do Infantil, Alderico Rigaud Neto. As partidas observadas e registradas em seguida foram contra o Internacional, da localidade de Campina do Barreto, e ocorreram no final de outubro, também em uma manhã de sábado, mas, desta vez no campo principal de treinamento do Centro de Treinamento da Guabiraba. Diferentemente do Estádio Vera Cruz, este apresenta muito boas condições de uso, sendo, inclusive, todo gramado. E, por mais paradoxal que possa parecer, segundo Alderico Neto, os garotos do Náutico sentiriam alguma dificuldade de adaptação às condições do gramado, já que estão mais acostumados a treinar e jogar em campos de barro, sempre duros. Realizados um mês depois das partidas observadas anteriormente, os jogos entre Náutico e Internacional fizeram parte da terceira e última rodada da terceira fase do Campeonato Aberto Infantil e Juvenil. O Náutico venceu as duas partidas e, assim, passou para a quarta fase das referidas competições. Fomos, então, informados pelo supervisor José Roberto da realização de um “peneirão”88 por parte do Náutico para selecionar garotos para suas categorias de base. O processo seria ali mesmo, no CT da Guabiraba, nos dias, 5, 6 e 7 de novembro. É este processo, que, como se verá, teve desdobramentos até o início de dezembro, que vai ser relatado e analisado em seguida. “Peneira” ou “peneirão” são expressões bastante usadas no Brasil para designar um processo de seleção de aspirantes a jogador de futebol, realizado pelos clubes, geralmente envolvendo grande quantidade de garotos com idade inferior a 17 anos. 88

204

Treinamento de táticas coletivas e disciplinamento dos corpos [...] de Técnicas Futebolística

4. O “peneirão” No dia 5, chegamos ao CT da Guabiraba em torno das 8h. Logo fomos informados que o “vestibular” para os garotos que pretendem seguir a carreira de jogador de futebol ocorreria no campo de terra batida, sem grama, cercado por morros e localizado nos fundos do CT, bastante distante de sua entrada. Para que se tenha uma ideia do local, um exjogador do Náutico, formado em sua divisão de base, onde jogou desde o infantil até o profissional, informou-nos, em conversa informal, que o campo era conhecido como “Afeganistão”. Então, aos poucos, os aspirantes a craques vão chegando. Alguns garotos vêm acompanhados de parentes ou mesmo de amigos; outros estão ali sozinhos. Cada um pagou R$ 10,00 pela oportunidade de mostrar seu talento para os selecionadores. Como indica Levi Gomes, então treinador dos juniores do Náutico e um dos selecionadores, “muitos desses garotos chegam a faltar às aulas para poder estar aqui”. Alguns vêm de outros municípios da RMR, como um garoto vindo de Escada, cidade distante cerca de 51 quilômetros do Recife, fato que rendeu a este garoto apelido homônimo a sua cidade. Pelas informações que obtivemos, inscreveramse no “peneirão” garotos nascidos entre 1991 e 1993. E a maioria deles declarou que prefere atuar como meia ou atacante, embora lhes seja passada a informação de que as posições em que jogarão naqueles três dias de seleção não serão decisivas na observação feita pelos “professores” - que, como no jargão futebolísitico, mas, sobretudo, entre os garotos das divisões de base - são chamados de “treinadores”. A equipe de selecionadores é formada por Levi, Gena89, José Roberto e Márcio Gallupo, assistente de Levi nos Juniores. Inicialmente, José Roberto cuida do cadastro dos garotos, verificando o pagamento da taxa de inscrição e colocando-os em uma tabela organizada por posição em que deseja jogar, nome e idade. Em seguida, os aspirantes são levados para uma conversa com Levi e Gena, ali mesmo no campo, quando estes procuram deixar claro que os pontos observados durante o “peneirão” não Gena é o apelido com o qual ficou consagrado o jogador Genival de Barros Lima, ex-lateral direito do Náutico, revelado em sua divisão de base, e do Santa Cruz nos anos de 1960 e 1970. Atualmente, Gena é treinador da escolinha do Náutico, que funciona no CT da Guabiraba. 89

205

Jorge Ventura de Morais, Túlio Velho Barreto e Glauber Lemos

estão relacionados com a posição em que o atleta joga, mas, sim, com seu desempenho técnico, sua capacidade de mostrar qualidades individuais, como o domínio e o passe de bola, chute, cabeceio, velocidade e habilidade no drible, entre outros aspectos, isto é, técnicas coletivas existentes na rede social em que se insere o futebol. São feitas, também, muitas observações sobre a conduta de jogo dos garotos, alertando para a necessidade de um jogo limpo, sem faltas graves. O sentimento de amizade e de coletividade entre os jovens é incentivado antes das atividades de campo e durante seu transcorrer, como apontaremos mais adiante; em momentos de jogadas e/ ou faltas mais graves, os garotos são insistentemente orientados por José Roberto para jogar “na bola”, tendo em vista a observância e o exercício do fair-play. Logo são distribuídos coletes vermelhos e azuis entre os jogadores que formam os dois times iniciais. Nas duas primeiras partidas, todos são colocados em suas posições de preferência, o que não ocorrerá, no entanto, nas últimas partidas da manhã. Por iniciativa própria, os garotos iniciam um aquecimento individual, com alguns alongamentos. Assim como nos jogos observados anteriormente, é visível a preocupação de alguns em atuar de acordo com os padrões adotados no futebol profissional, procurando demonstrar uma postura de atleta antes mesmo de a bola rolar. Quando a partida começa, os garotos tentam entre si uma organização tática em campo. A falta de entrosamento parece dificultar até mesmo a comunicação entre eles. “’Bora, zagueiro!”, “Lateral, inverte, inverte!”, “Boa, goleiro!”, por exemplo, são expressões comuns entre eles durante o jogo. Como poucos ali se conhecem, comumente as posições são utilizadas na tentativa de uma comunicação que, em alguns momentos, também tem por objetivo ajustar taticamente os times ao explicitar onde cada um deve atuar em campo. A ausência de árbitros assistentes – mais conhecidos como “bandeirinhas” – provoca dúvida entre alguns garotos que, em dado momento da primeira partida, passam a se perguntar se a regra do impedimento está valendo ou não. Logo fica evidente que não há preocupação com o impedimento. Alguns lançamentos são feitos para jogadores em clara situação de impedimento, mas nada é apontado. A despreocupação com a aplicação da regra do impedimento demonstra, na prática, que, no processo de seleção, a conduta do jogador em campo 206

Treinamento de táticas coletivas e disciplinamento dos corpos [...] de Técnicas Futebolística

realmente é mais considerada do que a sua disciplina tática e a observância de todas as 17 regras oficiais do futebol. “Devagar, garoto!”, José Roberto reclama mais de uma vez. Levi também pede mais disciplina aos garotos. “Eles tentam o melhor possível, mas a gente não deixa que eles usem a violência pra intimidar”, nos diz este último selecionador. Em duas situações também são notadas algumas críticas com relação à cobrança de lateral de alguns jogadores. Primeiro, Gena observa um garoto que bate um lateral ao lado dele retirando um dos pés do chão ao lançar a bola, e reclama: “Eita! Que lateral é esse?!”. Pouco depois, Márcio, que está dentro de campo atuando como árbitro, marca uma reversão de um jogador que cobra um lateral sem que a bola esteja acima da cabeça, realizando um movimento bizarro mais parecido com um levantamento de vôlei. Momentos depois, Levi comenta, talvez com certa ironia, que “todos são craques quando chegam aqui”. Como pudemos observar, os garotos submetidos a este processo seletivo trazem no elenco de suas práticas corporais as características e disposições corporais originadas e desenvolvidas no futebol de bricolagem, nas brincadeiras das ruas. E, provavelmente, as mantém, mesmo durante o “peneirão”, em função do entendimento de que ali serão avaliados como explicitam os selecionadores - por critérios relacionados a técnicas corporais de controle e distribuição da bola, entre outras, atributos que fazem parte das práticas incorporadas nas brincadeiras de rua. Já o mesmo não se pode afirmar quanto à correta cobrança de um lateral, por exemplo. A primeira partida da manhã termina sem gols. Os jogadores são reunidos à beira do campo por José Roberto e lhes é recomendado que cheguem mais cedo no próximo dia. Gena e Levi, que permaneceram por toda a atividade sentados à beira do campo, fazem poucas observações sobre o desempenho dos atletas. Quando interpelados a respeito da possibilidade de se notar um talento desde o primeiro dia, eles alertam que o primeiro dia é de muito nervosismo para os garotos, e por isso é difícil observarem-se talentos já no primeiro dia, embora não seja impossível. É um resignado Levi que afirma: “Até agora, nada”. Levi e Gena constatam a dificuldade de selecionarem-se garotos que atuem como volantes, zagueiros, laterais e goleiros. Para Gena, por exemplo, “Meia e atacante tem demais!”. Já Levi comenta com José 207

Jorge Ventura de Morais, Túlio Velho Barreto e Glauber Lemos

Roberto: “Vem com duzentos atacantes, vai jogar como? Como é que um time só pode ter atacante e meia?”. As reclamações sobre o excesso de jogadores para certas posições - notadamente as de ataque - e a falta deles para as de defesa vão além da dificuldade de organizar um time para fazer a “peneira”. E, neste caso, é interessante destacar que, como dissemos, enquanto a maioria dos garotos prefere ser meia-armador ou atacante, dois dos selecionadores foram bem sucedidos defensores em Pernambuco, mais precisamente, laterais direitos: o eficiente Levi foi bicampeão pelo Náutico nos anos 1980, enquanto o habilidoso Gena foi pentacampeão pelo Náutico e Santa Cruz nos anos 1960 e 1970, perfazendo a incrível marca de dez títulos seguidos. Nos dias seguintes do “peneirão” e de observações de campo, buscamos interagir com alguns dos garotos. Embora inicialmente reticentes e desconfiados, alguns concordaram em conversar e responder a algumas perguntas. As respostas, no entanto, foram quase sempre evasivas. Para além das dificuldades de aproximação, foram importantes os relatos de um grupo que já treinava na escolinha do Náutico e participava pela primeira vez de um “peneirão”. Por seus relatos descobrimos que muitos dos garotos que estavam ali já treinavam, ou haviam treinado, na escolinha do Náutico; e que lá recebiam lições práticas sobre regras do futebol, conhecendo as limitações que em especial algumas regras, como as referentes a faltas e a impedimentos, impunham à forma de jogar. Nesse grupo de garotos estavam três atacantes e um volante, e nenhum deles havia sido, até aquele momento, obrigado a jogar em posição diferente; quando lhes perguntamos se isso seria um problema para eles, caso viesse a ocorrer, a resposta foi que “não”, pois estavam ali para fazer o melhor e jogariam em qualquer posição. No entanto, quando José Roberto solicita a dois dos atacantes que escolham posições diferentes, eles mostramse relutantes, trocam olhares e demoram a aceitar a possibilidade de jogar como volantes ou laterais, por exemplo. Mais uma vez fica claro que as experiências corporais que eles carregam – e que lhes permitem movimentos fluidos em campo – parecem entrar em choque com as novas exigências de prática corporal em que se exige certa polivalência na disposição espacial no campo de jogo. E o mesmo podemos dizer a partir das observações que se seguem. 208

Treinamento de táticas coletivas e disciplinamento dos corpos [...] de Técnicas Futebolística

Ao longo de nosso trabalho de campo descobrimos também que, para estes garotos, nascidos entre 1991 e 1993, a dificuldade está no aspecto coletivo. Isto é, segundo eles, é difícil jogar com desconhecidos, pois isso atrapalha o elemento coletivo (Cf. GIGLIO et al., 2008: 76). Quando indagados sobre o que vão tentar fazer para impressionar o “professor”, a resposta de todos é categórica: “o melhor”. Resposta padrão entre os aspirantes, o “melhor” pode estar associado a demonstrações de técnica individual, disciplina tática no tocante ao posicionamento em campo, ou mesmo esforço físico, não existindo, portanto, uma caracterização precisa do que os jogadores pensam ser importante para a aprovação deles por parte dos selecionadores. Ainda perguntamos aos atacantes sobre a possibilidade de eles se posicionarem “na banheira”, ou seja, em posição de impedimento, uma vez não haver ali árbitros assistentes que apontassem posições irregulares durante o “peneirão”, ao que responderam parecendo não se preocupar muito com tal possibilidade, ou mesmo parecendo ignorar a pergunta: responderam apenas que tentam escapar da linha de impedimento. O mais atento de nossos informantes respondeu: “Eu tento ficar entre os zagueiros”. Certo garoto, originalmente volante do Flamengo de São José do Belmonte, cidade localizada no Sertão pernambucano, distante 479 km do Recife, que havia se destacado no dia anterior pela qualidade do passe, participava pela primeira vez de um “peneirão”. Um de seus irmãos já jogara nas divisões de base do Santa Cruz e reside agora no Recife. Morando na casa do irmão, ele pretendia participar de outros “peneirões” até o início do ano de 2009. Seu time de São José do Belmonte já havia sido desclassificado do Campeonato Pernambucano e ele pretendia destacar-se em um clube que pudesse lançá-lo como jogador profissional. O garoto mostrou-se solícito e estabeleceu bom diálogo até o momento em que entrou em campo. Muito concentrado, aparentava boa formação, falava bem e demonstrava-se bastante consciente da dificuldade que enfrentaria para passar pela “peneira”. Também indagado sobre o que pretendia fazer para agradar aos selecionadores do Náutico, ele respondeu: “tomar cuidado pra não errar na frente do ‘professor’”. Procurando fazer com que aprofundasse sua explicação, perguntamos-lhe sobre que tipo de erro deveria ser evitado, ao que ele respondeu que era “preciso acertar 209

Jorge Ventura de Morais, Túlio Velho Barreto e Glauber Lemos

o passe e desarmar bem”. Sobre jogar com desconhecidos e, por vezes, em outra posição, afirmou ser complicado, mas que tentava ajustar-se aos parceiros dentro de campo; segundo suas próprias palavras: “Ontem mesmo, joguei como volante e combinei em campo com outro ‘cara’ quem é que sobe e quem fica, essas coisas”. Percebe-se, aqui, a preocupação do garoto também com o posicionamento tático em campo. Embora haja se destacado diante dos selecionadores no primeiro dia e demonstrado, durante nossas conversas, bom conhecimento das regras e disposições táticas do futebol, contudo, nosso informante e aspirante a jogador de futebol não conseguiu a vaga que almejava. Outro garoto, este um meia-armador, mostrava-se ansioso pelo último dia e pela oportunidade de jogar em um grande time. Ele nos falou sobre as facilidades encontradas em campo em função da arbitragem parcial: “Não tem ‘bandeirinha’, o juiz fica lá no centro, longe de tudo, às vezes não vê uma falta, um escanteio. Fica mais fácil, ‘né’, ele não vê tudo de lá”. Quando perguntado sobre o que pensa que os “professores” vão observar a seu respeito, diz igualmente que vai fazer “o melhor”, deixando a entender que nós, pesquisadores do futebol, devemos entender o que “melhor” significa. Mesmo assim, procura explicitar o sentido do termo ao dizer apenas que vai correr muito, mostrar o melhor possível, enfim, “fazer o que tem pra fazer”. Ele comenta, ainda, a dificuldade de jogar em um campo com piso ruim, de barro duro como aquele, principalmente quando é usada uma chuteira de cravos altos, como a sua. Para nosso informante, este seria, também, um aspecto que poderia prejudicar sua atuação, além do desentrosamento e do calor no campo. Seja lá o que quis dizer com “o melhor”, o fato é que ele se destacou, chamando a atenção de Levi e Gena: foi selecionado entre os atletas que logo iniciariam um treinamento posterior com José Roberto. Depois da seleção, perguntamoslhe novamente sobre o que houvera feito para obter aquele resultado positivo, ao que respondeu: “Fiz aquilo que te disse, dei o melhor possível, corri muito, toquei bola, joguei”, especificou o garoto. Nosso próximo informante tem 16 anos. Atuante também como meia-armador, ele destacou-se e foi selecionado no primeiro grupo de garotos participantes do “peneirão”. No primeiro dia, jogou como zagueiro; segundo ele: “Não foi difícil, não sei marcar, mas foi tranqüilo”, relatou210

Treinamento de táticas coletivas e disciplinamento dos corpos [...] de Técnicas Futebolística

nos sobre as dificuldades de jogar em outra posição. Questionado quanto à possibilidade de isto haver influenciado a decisão dos selecionadores, responde simplesmente que não sabe, mas que acha que sim; e não explicita motivos. Sobre o jogo sem árbitro e assistente, ele diz que isso pode ajudar ou facilitar: “Até o ‘bandeira’ erra, a gente vê isso direto nos jogos”, diz ele. Finalmente, ressaltou as dificuldades do campo, o chão de terra batida em que pouco se pode fazer a bola rolar, correr. Nestas três falas é possível apreendermos situações relatadas pelos atores sociais, no caso, aspirantes a jogadores de futebol, acerca de processos de adaptação a situações de incongruência em que se tem de enfrentar momentos de contingência (GARFINKEL, 1963; KEW, 1986 e 1987). Como já apontado, a maioria dos garotos apresenta-se como jogadores em posições de atacante, meia-atacante e volante; poucos são os que demonstram preferência pelas posições de zagueiro, lateral ou ala. Parecem preferir posições que aos seus olhos granjeiem mais prestígio (e talvez mais sucesso financeiro) no mundo futebolístico; ou posições nas quais estejam mais habituados a jogar. Pois bem: com a grande quantidade de candidatos desejando jogar nas posições de atacante, meia-atacante e volante, muitos deles tiveram de apresentar seus dotes futebolísticos atuando de forma improvisada, ou seja, em outras posições diferentes e com novos e desconhecidos concorrentes. Como, então, gerir tal incongruência, na medida em que enfrentar tais situações significa posicionar-se, postar-se, inclusive fisicamente, de forma a que não se está condicionado, ou mesmo acostumado, a fazê-lo? Como os relatos revelam, a solução encontrada pelos garotos é a de combinar na hora, no “calor da partida”, na prática, com os demais, estratégias do tipo “quando um subir, o outro fica”, e vice-versa; ou, aquilo que parece estar mesmo embutido na resposta sintética de “fazer o melhor”, que parece significar, qualquer que seja a posição, original ou adaptada, correr, dominar a bola, desarmar o adversário, dar toques e bons passes, enfim, postar-se de acordo com o lugar a ser ocupado em campo. Observamos também que, durante esta primeira etapa de seleção, o conhecimento das regras do futebol pelos jovens aspirantes é critério de menor peso nas escolhas efetuadas pelos treinadores-selecionadores. Tal fato pode dá margem à interpretação de que, na avaliação dos garotos, 211

Jorge Ventura de Morais, Túlio Velho Barreto e Glauber Lemos

sejam levados em consideração aspectos mais ligados à técnica individual e à disposição física em detrimento a aspectos táticos - como, aliás, tanto insistiram, inicialmente, José Roberto, Levi e Gena. Porém, como ressaltaremos a seguir, as ditas técnicas individuais logo serão submergidas no processo coletivo de disposições corporais que ancoram o futebol moderno (Cf. SWINDLER, 2001). Por fim, registramos a recorrente e manifesta preocupação dos “professores” com o uso excessivo da força física. Em outras palavras, com o controle e a disciplina dos corpos como fator importante para a prática do esporte. Daí a necessidade das correções impostas aos atos mais violentos em campo durante todo processo de seleção dos aspirantes a jogadores de futebol. Antes de passarmos à próxima seção, é importante sintetizar o que procuramos mostrar até agora, a saber: submetidos a processos seletivos para as categorias de base de times profissionais, os “aprendizes” de futebol trazem, incorporadas, práticas de bricolagem dos jogos disputados nas ruas ou em espaços informais. Tais práticas parecem ter de ser moldadas de forma a permitir que as práticas corporais e os disciplinamentos táticos e espaciais requeridos pelo futebol profissional apareçam. É disso que trataremos a seguir.

5. Disciplinamento de Corpos e Aquisição de Técnicas a Partir de “Novas” Práticas Futebolísticas A imagem mais comum que encontramos sobre o futebol brasileiro é a de um esporte em que o sucesso mundial alcançado se deve à qualidade dos nossos craques, isto é, os ágeis dribladores que possuem um dom natural, quase uma graça divina, algo recebido de Deus ou entidade superior. No entanto, como mostramos na seção anterior e procuraremos aprofundar nesta seção, tal imagem é estranha aos processos coletivos de imposição de disciplinamento tático, espacial e corporal, através de práticas comungadas pelos atores, que são parte da rede social em que o futebol está enredado, mesmo em uma fase inicial de suas pretendidas carreiras profissionais. 212

Treinamento de táticas coletivas e disciplinamento dos corpos [...] de Técnicas Futebolística

De fato, como será possível notar nos processos descritos e analisados nesta seção, alguns fundamentos, aspectos técnicos e táticos do futebol, passaram a ser treinados e corrigidos por José Roberto. Tais processos correspondem exatamente à segunda fase da seleção promovida pelo Náutico - por nós acompanhada e observada in loco - e contou com os garotos pré-selecionados nos três dias iniciais do “peneirão”. Todos os selecionados passaram, a seguir, a integrar um grupo que ficou sob a orientação de José Roberto, responsável por integrá-los em definitivo às categorias de base do Náutico. Assim, o “peneirão” de três dias ganhou contornos de treinamentos sistemáticos e se estendeu até o início de dezembro. Logo no primeiro dia, em 14 de novembro, após breves partidas entre os garotos pré-selecionados, José Roberto escolheu alguns que, segundo ele, “são especiais”. Então, passou a treinar com eles aspectos técnicos e táticos e a prepará-los para o que virá mais adiante: a seleção definitiva por parte dos técnicos das equipes infantil, juvenil e júnior do Náutico. Para compreender o sentido do conjunto de exercícios descritos a seguir, tomados pelos próprios atores sociais como fundamentos necessários ao jogador profissional de futebol, podemos nos apoiar em Ann Swindler (2001), em especial quando ela argumenta que nem todas as práticas têm o mesmo valor: ou seja, em fenômenos sociais concretos há certas práticas sociais que ancoram outras práticas sociais. Swindler chama tais práticas de âncoras, aquelas que servem de fundação para que outras possam se desenvolver. Observemos a sequencia de treinamentos ministrados por José Roberto. O treinamento tem início com José Roberto explicitando para atentos e ansiosos garotos o que eles farão: “A gente precisa treinar posicionamento, cabeceio, chute”. Logo fica evidente que serão treinos mais incisivos, que simulem situações de jogo e permitam aos garotos conhecer e enfrentar situações semelhantes às que ocorrem durante uma partida de futebol. O primeiro exercício, demonstrado na Figura 1, simula uma situação de ataque contra defesa, em que há dois defensores contra três atacantes. José Roberto traça os objetivos: para os zagueiros (A e B), roubar a bola e impedir o gol; para os atacantes (1, 2 e 3), fazer o gol. “É 213

Jorge Ventura de Morais, Túlio Velho Barreto e Glauber Lemos

pra fazer o gol, mas é na bola, viu?!”, destaca, ressaltando mais uma vez aos atletas que não façam faltas.

Figura 1

Figura 2

Há ainda um segundo movimento executado pelos atletas, semelhante ao primeiro, mas com trocas de posições entre os atacantes, de forma a confundir os jogadores de defesa, como se vê nas setas indicadas na Figura 2.

Figura 3

Figura 4

Envolvendo mais garotos, o exercício seguinte é de suma importância para familiarizar os “aprendizes” com uma tática empregada pelos times de futebol. José Roberto demonstra, então, como se posta um time na clássica formação 4-4-2 (Figura 3). Em seguida, com a mesma formação, os atletas realizam um exercício em que, após cobrança de um tiro de meta pelo goleiro, os jogadores de meio de campo disputam, entre defesa e ataque, a bola 214

Treinamento de táticas coletivas e disciplinamento dos corpos [...] de Técnicas Futebolística

ainda no ar. O treino, além de aperfeiçoar o cabeceio, permite aos garotos praticar o posicionamento tático proposto e uma forma de disputa de bola aérea já bastante comum entre os jogadores profissionais (Figura 4). Exercícios de chutes ao gol, tanto com bola em movimento (Figura 5) como com a bola parada (Figura 6) também são realizados. Quanto aos chutes de bola parada, José Roberto pede aos jogadores que os façam com ambos os pés; para tal, inverte os lados da cobrança de falta, assim facilitando o uso dos dois pés.

Figura 5

Figura 6

Já a Figura 7 demonstra um exercício de cobrança de falta com barreira. Trata-se de exercício para desenvolvimento de uma habilidade bastante presente em situações reais de jogo. Como desafio e incentivo, José Roberto propõe aos “aprendizes” que se esforcem para acertar o gol. Aqueles que acertam a barreira ou Figura 7 chutam para fora perdem o direito de bater a falta e vão para a barreira, cumprindo uma espécie de punição pelo erro cometido. A barreira é composta sempre de quatro jogadores que ganham, progressivamente, o espaço dos atletas que erram a cobrança. 215

Jorge Ventura de Morais, Túlio Velho Barreto e Glauber Lemos

Por fim, são realizados exercícios de cruzamento de bola sobre a área. Mais complexos, estes exercícios (Figuras 8 e 9) são dotados de dois movimentos. Ao mesmo tempo em que há um exercício de toque de bola nas laterais – o chamado 1-2, em que dois ou mais jogadores trocam passes curtos e rápidos – os garotos se dirigem ao ataque para o cabeceio após o cruzamento. Os exercícios são realizados tanto do lado esquerdo quanto do direito do campo.

Figura 8

Figura 9

Apesar de os movimentos acima descritos serem aparentemente simples, para a maioria desses garotos é a primeira vez que eles precisam lidar com esquemas táticos de jogo. O treinamento, isto é, a prática social, além de ensinar jogadas, fornece aos aspirantes a jogador de futebol, sobretudo, o conhecimento e as experiências futebolísticas mais próximas do profissionalismo, permitindo o disciplinamento dos corpos ao fazer coletivo do futebol. Barnes (2001: 19), por exemplo, afirma que é necessário “notar que dominar a prática de combate montado em uma companhia de cavalaria é participar de algo feito por um grupo”. Neste sentido, se trocarmos a expressão “combate montado” por “futebol” – ou qualquer outra prática corporal esportiva – a frase de Barnes continua a fazer sentido. A partir da disposição corporal adquirida, os garotos podem, agora, orientar seu raciocínio prático em situações reais de jogo. Como dito na introdução a este trabalho, considerando o alto grau de contingências a que estão expostos os jogadores de futebol, as situações múltiplas de 216

Treinamento de táticas coletivas e disciplinamento dos corpos [...] de Técnicas Futebolística

incongruência e o exercício de certos fundamentos do futebol neste estágio inicial se amalgamam em um conjunto de conhecimentos práticos e disposições corporais que permitem aos “aprendizes” de futebol enfrentar as quase sempre novas situações práticas na hora mesma de uma partida (Cf. GARFINKEL, 1963; e Kew, 1986 e 1987). Com relação às regras formais do futebol, o treino ocorrido no dia 28 de novembro, por exemplo, nos revela alguns aspectos interessantes. As disputas de bola nesse treino são mais acirradas. Nota-se certa deficiência na anotação de laterais, escanteios e falta, o que leva os garotos a negociarem a posse da bola literalmente na base do grito, isto é, recorrendo à prática discursiva a que alude Schatzki (2001a: 3). A situação, às vezes, é tão caótica que chega a confundir José Roberto. O número de faltas é grande e, em um lance, um dos atacantes do time sem camisas se machuca. Pela primeira vez, não há nenhum atacante para substituí-lo. Após várias chamadas de José Roberto, ninguém responde e ele decide improvisar um jogador no ataque. Em um dos lances de falta é marcado o tiro livre direto. A falta é próxima da área e o goleiro grita: “Eu quero quatro, quero quatro!”, pedindo que quatro jogadores formem a barreira. A confusão é tão grande que os garotos não sabem nem o local da falta nem a que distância a barreira deve se posicionar. Quando pedem ajuda de José Roberto, ele não demonstra dar muita importância ao fato. Os jogadores, então, cobram a falta de qualquer maneira; e o lance, que poderia levar perigo ao time sem camisas, termina sem grandes consequências. Devido à forma acirrada como a partida é disputada, José Roberto é solicitado diversas vezes para arbitrar sobre cobranças de faltas, laterais e escanteios. Como os jogadores estão a meio termo entre o futebol profissional e as formas “bricoladas” de futebol, existe uma evidente necessidade de controle das situações de ruptura por meio da gestão da incongruência. Esse papel cabe, quase que invariavelmente, a José Roberto. No entanto, quando ele não corresponde ao que lhe é solicitado, os garotos procuram formas de resolver os impasses. Quase sempre essas formas são dadas por quem grita mais e mais alto. A partida desenvolve-se com pouca qualidade. Além do grande número de faltas, boa parte dos garotos, no afã de demonstrar suas habilidades, insiste em correr com a bola, prendendo o jogo no meio 217

Jorge Ventura de Morais, Túlio Velho Barreto e Glauber Lemos

de campo e criando poucas oportunidades de gol. Em outras ocasiões, dinâmica semelhante foi observada, mas, neste dia, especificamente, a dificuldade parece haver sido mais acentuada, o que levou José Roberto a adotar atitude mais dura. Com efeito, ele introduz uma espécie de “nova regra” em que os garotos são obrigados a dar apenas dois toques na bola: um para o domínio, outro para o passe. O não cumprimento da “nova regra” resulta na perda da posse da bola e na marcação de tiro livre indireto para o time adversário. Inicialmente, grande parte dos garotos demonstra surpresa com a introdução da “nova regra”, mas, na medida do possível, eles tentam cumpri-la. Alguns, com mais dificuldades, irritam-se com sua aplicação. “‘Professor’, não foram três, foram dois, foram dois [toques]!”, tenta negociar um dos jogadores que fora penalizado. Outro, que estava de fora da partida, “ensina” que, com a nova regra, os jogadores têm de “dominar e meter um bicudo pra frente”. Após realizar várias substituições para dar oportunidade a garotos que ainda não haviam jogado, José Roberto, mediante pedido dos garotos, decide abolir a “regra” dos dois toques, ressaltando, no entanto, que “é livre agora, mas se prender muito a bola, eu boto os dois toques de novo rapidinho”. Os garotos parecem haver aprendido a lição dos dois toques. O jogo passa a correr mais facilmente e com mais objetividade. Mais uma vez fica claro o ponto a que já fizemos alusão acima, quer dizer, o choque entre as práticas do futebol de bricolagem e a prática coletiva e mais organizada imposta pelo futebol profissional; isto é o mesmo que dizer: um choque entre as disposições corporais trazidas do futebol mais flexível ou informal das peladas e as novas disposições corporais exigidas pela até então desconhecida coletividade em que procuram se inserir. Ainda são necessárias algumas observações acerca das condições em que as partidas são realizadas, da negociação e da aplicação das regras. Para tanto, lembramos a seguinte afirmação de Schatzki (1996: 60-61): Como qualquer leitor de Wittgenstein sabe, este processo [de desenvolvimento de uma criança] envolve a afirmação extensa, correção, definição ostensiva, a referência aos paradigmas, as tentativas de sinais de desaprovação, a citação de regras, observação, participação, e assim por diante. 218

Treinamento de táticas coletivas e disciplinamento dos corpos [...] de Técnicas Futebolística

De fato, a informalidade do campo e da arbitragem, em treinamentos como os descritos acima, parece confundir os atletas quanto à necessidade de cumprir algumas delas; e, em pelo menos mais três lances observados, isso ficou evidente. Inicialmente, ao ver o centro ser batido para trás, contrariando o que determina a regra, José Roberto reclama com os jogadores e determina que a jogada seja refeita corretamente. Em um segundo momento, uma bola é recuada para o goleiro, que a segura com as mãos, o que também contraria uma regra do futebol, assim procede o garoto talvez imaginando que tal regra não seria ali aplicada. José Roberto, então, paralisa o jogo e repara a ruptura da regra, o que gera reclamações dos garotos que tentam manter a decisão do goleiro e contrariar a regra. Por fim, em um terceiro momento, um dos garotos do time com camisas mete a mão na bola e se desespera com a marcação de José Roberto: “Eeeei, ‘professor’! Foi bola na mão, ‘professor’!”. José Roberto ignora a reclamação e mantém a decisão da falta. Enquanto isso, um dos goleiros que está à beira do gramado comenta às gargalhadas: “Bola na mão com o braço levantado, é?!”. Neste momento, em particular, várias interrupções são feitas por José Roberto. Atuando como treinador e intervindo na partida de forma mais próxima à arbitragem oficial, ele passa a organizar as barreiras e interrompe várias jogadas para corrigir o posicionamento dos jogadores. Em uma cobrança de escanteio para o time com camisas, por exemplo, José Roberto distribui o ataque do time sem camisas colocando os jogadores livres “na sobra” em que se recebe a bola para puxar um rápido contra-ataque. Depois mostra como a defesa do time com camisas está mal posicionada, uma vez que não há ninguém marcando os atacantes do outro time nem ninguém colocado para ficar “na sobra”. José Roberto, então, orienta o posicionamento dos zagueiros e manda o lance seguir. Trata-se, como dissemos no início, do treinamento dos corpos para o desenvolvimento de noções práticas de espaço (Cf. SCHATZKI, 2007, capítulo 4). Em síntese, pelo que observamos no conjunto de treinamentos descritos, os garotos foram obrigados a lidar, em boa parte do tempo, com situações de choque entre suas disposições corporais trazidas do futebol das ruas e as novas disposições corporais e disciplinamento tático 219

Jorge Ventura de Morais, Túlio Velho Barreto e Glauber Lemos

impostos pelo fazer coletivo do futebol profissional. Da organização da barreira à “nova regra” dos dois toques, passando pela marcação de laterais e faltas, muitos elementos pareciam fora de ordem. Dessa maneira, a resolução prática da incongruência tornou-se constante entre os atletas. Quando estes não foram capazes de restaurar a ordem e recomeçar o jogo, as intervenções de José Roberto fizeram este papel. Isso não significa, no entanto, que ele detivesse todas as qualidades ou exercesse todos os atributos de um árbitro de futebol que o credenciariam a arbitrar a partida. Pelo contrário, em diversos momentos estava evidente que a preocupação maior de José Roberto não era a restauração da ordem por meio das regras, mas a implementação e o ensino das regras e o disciplinamento tático e corporal aos jovens “aprendizes”. O uso da autoridade ali exercido não correspondia necessariamente ao de um árbitro de futebol. José Roberto cumpria sobretudo a função de professor mesmo, de um treinador preocupado com a cobrança de centro irregular, com a organização do ataque e da defesa dos times em situações reais de jogo. Como Barnes (2001: 19-20) procurou explicitar, uma teoria das práticas sociais não pode prescindir do pensamento e do estabelecimento de metas por parte dos atores sociais: “A prática deve ser tratada como envolvendo o pensamento e a ação em conjunto, e na medida em que este for o caso, uma teoria encarnada (embodied), por assim dizer, é uma parte da própria prática”. Ou como afirma Loïc Wacquant, escrevendo sobre a aprendizagem e prática dos boxeadores: Através da repetição interminável dos mesmos exercícios (simulação, socar uma variedade de sacos, saltar corda, sparring e ginástica), ele aprende a dialogar com, e a monitorar, diferentes partes do corpo, esforçando-se para expandir seus poderes sensoriais e motores, a estender sua tolerância à tensão e à dor, e a coordená-las cada vez mais de perto à medida em que o seu organismo absorve lentamente os esquemas acionais e perceptivos constitutivos do ofício do pugilista (1995: 511 [Traduzimos]).

De fato, no processo descrito, os garotos também gozavam de certa liberdade, demonstrada nas diversas negociações entre estes e o “professor”. Nota-se, portanto, a existência de um processo de aprendizado 220

Treinamento de táticas coletivas e disciplinamento dos corpos [...] de Técnicas Futebolística

de mão dupla. A experiência de futebol de José Roberto, como técnico, ou “professor”, é mesclada às experiências práticas de jovens “aprendizes” de jogador, sejam estas apreendidas nas escolinhas, nas peladas, no futebol de várzea ou nas observações de partidas acompanhadas através da televisão. As trocas de experiências ocorridas durante o “peneirão” e as “novas” práticas introduzidas logo nos primeiros treinamentos contribuem para a formação do conhecimento prático futebolístico dos jovens atletas nelas envolvidos. Conhecimento este que os capacitará para possíveis e reais situações de jogo no futuro, seja em relação aos fundamentos e às táticas empregadas no futebol moderno, seja em relação às regras do jogo.

6. Considerações Finais Neste artigo procuramos analisar as experiências de um grupo de garotos que se submeteu ao “vestibular” para as categorias de base de um time de futebol profissional. Procuramos mostrar, com base em uma sociologia das práticas sociais, como é possível entender o processo de formação de um jogador de futebol através do disciplinamento dos corpos pelo uso de técnicas coletivas de disposições táticas. A nossa análise revela que a série de exercícios de disciplinamento tático e corporal a que são submetidos os “aprendizes” de futebol nas categorias de base de um clube de futebol profissional permite-lhes gerir as incongruências, isto é, enfrentar as situações de imprevisibilidade inerentes ao futebol. As práticas sociais coletivas a que são submetidos os garotos nas categorias de base lhes fornecem a base a partir da qual podem lidar com o alto grau de contingência existente mesmo em um esporte tão popular e praticado como o futebol, e mesmo desde os primeiros anos de uma criança. Mostramos também que há um choque entre práticas incorporadas no futebol mais flexível ou informal, das ruas, e as práticas coletivas impostas na organização do futebol moderno profissional. Porém, longe de ser resolvido de antemão por meio de regras abstratas, este choque é solucionado na prática coletiva dos atores enredados na rede social do futebol. E são estas práticas comungadas pelo grupo que permitirão aos 221

Jorge Ventura de Morais, Túlio Velho Barreto e Glauber Lemos

“aprendizes” de futebol aquilo que Bourdieu (2009a e 2009b) chamou de “senso prático do jogo”.

Bibliografia BARNES, Barry (2001). “Practice as collective action”. In: T. Schatzki, K. Knorr Cetina e E. von Savigny (Orgs.), The practice turn in contemporary theory. Londres e Nova York, Routledge. BOHMAN, James (1999). “Practical reason and cultural constraint: agency in Bourdieu’s theory of practice”. In: R. Shusterman (Org.), Bourdieu: a critical reader. Oxford, Blackwell. BOURDIEU, Pierre (2009a). Outline of a theory of practice, 24a impressão. Cambridge. Cambridge University Press. __________ (2009b). The logic of practice. Cambridge, Polity Press. __________ Bouveresse, Jacques (1999). “Rules, dispositions, and the habitus”. In: R. Shusterman (org.), Bourdieu: a critical reader. Oxford, Blackwell. BLOOR, David (1983). Wittgenstein: a social theory of knowledge. Nova York, Columbia University Press. _________ (2001). “Wittgenstein and the priority of practice”. In: T. Schatzki, K. Knorr Cetina e E. von Savigny (Orgs.), The practice turn in contemporary theory. Londres e Nova York, Routledge. _________ (2002). Wittgenstein, rules and institutions. Londres e Nova York, Routledge. BROMBERGER, Christian (2008). “As práticas e os espetáculos esportivos na perspectiva da etnologia”. Horizontes Antropológicos. No 30: 237-253. 222

Treinamento de táticas coletivas e disciplinamento dos corpos [...] de Técnicas Futebolística

COULTER, Jeff (2001). “Human practices and the observability of the ‘macro-social’”. In: T. Schatzki, K. Knorr Cetina e E. von Savigny (orgs.), The practice turn in contemporary theory, Londres e Nova York, Routledge. CUNHA, Sergio A., BINOTTO, Mônica R. & BARROS, Ricardo M. L. de (2001). “Análise da variabilidade na medição de posicionamento tático no futebol”. Revista Paulista de Educação Física. Vol. 15, No 2: 111-116. DAMO, Arlei Sander (2008). “Dom, amor e dinheiro no futebol de espetáculo”. Revista Brasileira de Ciências Sociais. No 66: 139-150. DREYFUS, Hubert & Paul Rabinow (1999). “Can there be a science of existential structure and social meaning?”. In: R. Shusterman (Org.), Bourdieu: a critical reader. Oxford, Blackwell. DUNNING, Eric & Graham Curry (2006). “Public school, status rivalry and the development of football”. In: E. Dunning, D. Malcolm and I. Waddington (Orgs.), Sport histories: figurational studies of the development of modern sports. Londres, Routledge. ELIAS, Norbert & DUNNING, Eric (1966). “Dynamics of group sports with special reference to football”. British Journal of Sociology. vol. 17, No 4: 388-402. FERRAZ, Osvaldo L. (1997). “O desenvolvimento da noção de regras do jogo de futebol”. Revista Paulista de Educação Física. Vol. 11, No 1: 27-39. GARFINKEL, Harold (1963). “A conception of, and experiments with, “trust” as a condition of stable concerted events”. In: O. J. Harvey (Org.), Motivation and social interaction: cognitive determinants. New York, The Ronald Press Company. __________ (1984). Studies in ethnomethodology. Cambridge, Polity. GIGLIO, Sérgio S. et al. (2008). “O dom de jogar bola”. Horizontes Antropológicos. No 30: 67-84. HALL, Harrison (1993). “Intentionality and world: division I of Being and Time”. In: C. Guignon (Org.), The Cambridge companion to Heidegger. Cambridge, Cambridge University Press. 223

Jorge Ventura de Morais, Túlio Velho Barreto e Glauber Lemos

HOY, David C. (1993). “Heidegger and the hermeneutic turn”. In: C. Guignon (Org.), The Cambridge companion to Heidegger. Cambridge, Cambridge University Press. KENNY, Anthony (1975). Wittgenstein. Harmondsworth, Pelican. KEW, Francis (1986). “Playing the game: an ethnomethodological perspective”. International Review for the Sociology of Sport. Vol. 21, No 4: 305322. __________ (1987). “Contested rules: an explanation of how games change”. International Review for the Sociology of Sport. Vol. 22, No 2: 125-135. __________ (1990). “The development of games: an endogenous explanation”. International Review for the Sociology of Sport. Vol. 25, No 2: 251267. __________ (1992). “Game-rules and social theory”. International Review for the Sociology of Sport. Vol. 27, No 4: 293-307. KING, Anthony (2004). The structure of social theory. Londres e Nova York, Routledge. LAMAS, Leonardo & SEABRA, Fernando (2006). “Estratégia, tática e técnica nas modalidades esportivas coletivas: conceitos e aplicações”. In: D. de Rose Jr. (Org.), Modalidades esportivas coletivas. Rio de Janeiro, Guanabara Koogan. LYNCH, Michael (2001). “Ethnomethodology and the logic of practice”. In: T. Schatzki, K. Knorr Cetina e E. von Savigny (Orgs.), The practice turn in contemporary theory. Londres e Nova York, Routledge. MARGOLIS, Joseph (1999). “Pierre Bourdieu: habitus and the logic of practice”. In: R. Shusterman (org.), Bourdieu: a critical reader. Oxford, Blackwell. MORAIS, Jorge Ventura de & BARRETO, Túlio Velho (2009). “La regla del fuera de juego y la dinámica del fútbol: un análisis a partir de la sociología figuracional”. In: C.V. Kaplan & V. Orce. (Orgs.), Poder, prácticas 224

Treinamento de táticas coletivas e disciplinamento dos corpos [...] de Técnicas Futebolística

sociales y proceso civilizador: los usos de Norbert Elias. Buenos Aires e México (DF), Editora Noveduc. __________ (2011). “The flexibility of football rules and the dynamics of the game: a figurational analysis of the offside law”. Soccer and Society. Vol. 12, No 2: 212-217. RODRIGUES, Francisco Xavier Freire (2003). A formação do jogador de futebol no Sport Club Internacional. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Sociologia/IFCH/UFRS. RORTY, Richard (1993). “Wittgenstein, Heidegger, and the reification of language”. In: C. Guignon (Org.), The Cambridge companion to Heidegger. Cambridge, Cambridge University Press. SCHATZKI, Theodore R. (2001a). “Introduction: practice theory”. In: T. Schatzki, K. Knorr Cetina e E. von Savigny (Orgs.), The practice turn in contemporary theory. Londres e Nova York, Routledge. _________ (2001b). “Practice mind-ed orders”. In: T. Schatzki, K. Knorr Cetina e E. von Savigny (Orgs.), The practice turn in contemporary theory. Londres e Nova York, Routledge. _________ (2002). The site of the social: a philosophical account of the constitution of social life and change. Pensilvânia, Pennsylvania State University Press. _________ (2007). Martin Heidegger: theorist of space. Stuttgart, Franz Steiner Verlag. _________ (2008). Social practices: a Wittgensteinian approach to human activity and the social. Cambridge, Cambridge University Press. SILVA, Carlos A. F. da (1998). “As regras do jogo e o jogo das regras”. In: S. J. Votre (Org.), Representação social do esporte e da atividade física: ensaios introdutórios. Brasília, Ministério da Educação e do Desporto/INDESP. SWIDLER, Ann (2001). “What anchors cultural practices”. In: T. Schatzki, K. Knorr Cetina e E. von Savigny (orgs.), The practice turn in contemporary theory. Londres e Nova York, Routledge. 225

Jorge Ventura de Morais, Túlio Velho Barreto e Glauber Lemos

TAYLOR, Charles (1993). “Engaged agency and background in Heidegger”. In: C. Guignon (org.), The Cambridge companion to Heidegger. Cambridge, Cambridge University Press. __________ (1999). “To follow a rule…”. In: R. Shusterman (org.), Bourdieu: a critical reader. Oxford, Blackwell. THÉVENOT, Laurent (2001). “Pragmatic regimes governing the engagement with the world”. In: T. Schatzki, K. Knorr Cetina e E. von Savigny (Orgs.), The practice turn in contemporary theory. Londres e Nova York, Routledge. TOLEDO, Luiz Henrique de (2002). Lógicas do futebol. São Paulo, Hucitec. TURNER, Stephen (2001). “Throwing out the tacit rule book: learning and practices”. In: T. Schatzki, K. Knorr Cetina e E. von Savigny (orgs.), The practice turn in contemporary theory. Londres e Nova York, Routledge. VENDITE, Caroline C. & DE MORAES, Antonio Carlos (s/d), Sistema, estratégia e tática de jogo no futebol: análise do conhecimento dos profissionais que atuam no futebol. Trabalho apresentado ao NP 18 – Comunicação e Esporte, do IV Encontro dos Núcleos de Pesquisa da Intercom. WACQUANT, Loïc (1995). “The pugilistic point of view: how boxers think and feel about their trade”. Theory and Society. Vol. 24, No 4: 489-535. WILSON, Jonathan (2009). Inverting the pyramid: the history of football tactics. Londres, Orion. WINCH, Peter (2008). The idea of a social science and its relation to philosophy. Londres e Nova York, Routledge. WRIGHT MILLS, C. (1940). “Situated actions and vocabularies of motives”. American Sociological Review. Vol. 5, No 6: 904-913.

226

Corpos em Concerto: diferenças, desigualdades e desconformidades

CONSUMO DE PSICOFÁRMACOS: entre o cuidado consigo e a sintetização da catarse Jonatas Ferreira Erliane Miranda

Introdução Em um sentido amplo, a psicofarmacologia é quase tão antiga quanto a humanidade. Três mil anos antes de Cristo, os sumérios já plantavam papoulas das quais extraiam um suco apropriadamente chamado de “sortudo” ou “feliz”, “uma indicação de que eles conheciam bem a ação do ópio, sua capacidade de despertar um humor luminoso, eufórico” (SPIEGEL, 2003, p. 28). dois mil anos antes de Cristo, os chineses usavam o ópio como sedativo, a mandrágora como afrodisíaco e o haxixe como anestésico90. No primeiro século da era cristã, Galeno analisou, em seu Corpus Hippocraticum, as propriedades analgésicas e soporíferas do ópio, recomendando moderação no seu uso. Todos já lemos acerca das experiências psíquicas que no século XIX artistas como Baudelaire, Nerval, Thomas de Quincey, entre tantos outros, tiveram com essa mesma substância, ou com sua versão atenuada, isto é, com o láudano. Do mesmo modo, o consumo do haxixe, ayahuasca e outras substâncias psicoativas pode ser identificado em várias culturas e períodos históricos. A associação entre farmacologia e psiquiatria, no entanto, é algo bem mais recente, o que parece óbvio, posto que a moderna psiquiatria não chega a ter dois séculos de existência. Ainda em seus primórdios, a psiquiatria dispunha de sua lista de medicamentos a serem administrados em pacientes mentais: ópio, beladona e mandrágora eram as principais drogas administradas (SPIEGEL, 2003). O desenvolvimento de uma farmacologia – ou seja, do estudo químico90

Fonte: ; acesso: 10 jun de 2010.

227

Jonatas Ferreira e Erliane Miranda

farmacêutico sistemático – preocupada em vincular o uso do medicamento às grandes transformações da medicina do século XIX ocorreu com a instituição de práticas médicas que corresponderam ao surgimento de uma medicina hospitalar e ao desenvolvimento da anatomoclínica. Este desenvolvimento foi seguido pelo estabelecimento da medicina laboratorial através do “desenvolvimento dos programas ligados à patologia celular, fisiopatologia e etiologia, que procuravam apoiar a medicina nas ciências físico-químicas e biológicas modernas” (DIAS, 2003, pp. 41-46). Em grande medida, a farmacologia que acompanhou o desenvolvimento da psiquiatria no século XIX e boa parte do século XX mantinha como foco a sedação dos pacientes, a redução de sua ansiedade, e era completamente compatível com as preocupações biopolíticas do século XX: adestrar, disciplinar, regular, promover a docilidade dos corpos. Outro impulso biopolítico é de se esperar num capitalismo cujo centro dinâmico passa da produção para o consumo, do controle do desejo para a sua mobilização incessante. Quanto à psicofarmacologia contemporânea, que se fundamenta na “história da neurotransmissão química” (STAHL, 2000, p. 1) e se destina ao conhecimento das reações farmacológicas, bioquímicas e moleculares de drogas que têm a capacidade de agir sobre processos cerebrais, ela tem pouco mais de meio século (GUIMARÃES apud GUIMARÃES; GRAEFF, 1999) e mantém forte diálogo com a psiquiatria e tudo que ela significou nas últimas décadas. De forma mais ou menos encadeada, é possível pontilhar esta ligação mediante a constatação do que se convencionou classificar como patologia mental, ou seja, aquilo que se elege como patológico, como alvo de normalização. Considerando isto, permitam-nos uma breve periodização do modo como a psiquiatria vem reconhecendo, ao longo dos anos, seu objeto de atuação. • Em 1785 foi publicado o primeiro ensaio para uma classificação sistemática das doenças, o Synopsis nosologiae methodicae (Sinopse de métodos nosológicos), que constituiu um auxílio para os estudos estatísticos de morbidade que se realizavam no século XVIII. A Sinopse de Métodos Nosológicos serviu de base para a composição da International Classification of Disease (Classificação Internacional de Doenças), que foi publicada em 1898 para servir de parâmetro internacional com fins de gestão, uso 228

Consumo de psicofármacos: entre o cuidado consigo e a sintetização da catarse

clínico e controle epidemiológico, com apoio da OMS (SILVA; LEITE, 2010); • Em 1918 foi publicado o primeiro manual exclusivo para classificação de doenças mentais nos Estados Unidos – o Statistical Manual for the Use of Hospitals for Menthal Diseases (Manual de Estatística para a utilização dos Hospitais de Doenças Mentais). De acordo com Horwitz e Wakefield (2010), este manual “dividia os transtornos mentais em 22 grupos principais” (2010, p. 102) e, embora ainda carregasse influência da perspectiva kraepeliniana – que considerava “causas físicas latentes” (2010, pp. 104-108) em sua abordagem – já contemplava a perspectiva da psiquiatria biopsicossocial mayeriana – do transtorno psiquiátrico como uma “disfunção” da capacidade humana de reagir a “problemas cotidianos” (2010, p. 102). À época, ainda era comum que clínicos gerais, padres, familiares e amigos auxiliassem sujeitos acometidos por problemas de ordem psíquica considerados menores, ou seja, que não implicassem em nenhum tipo de desarranjo maior ao próprio sujeito em questão nem ao seu meio, e, por isso, o uso deste manual era restrito aos limites hospitalares (HORWITZ; WAKEFIELD, 2010); • Em 1940, sob a alegação de que a Classificação Internacional de Doenças (CID) não atendia às expectativas de problemas mentais emergentes dos combatentes de guerra dos Estados Unidos, a Administração de Veteranos e a Marinha dos EUA desenvolveram seus próprios sistemas classificatórios de doenças a fim de contemplar “os distúrbios agudos, psicossomáticos e transtornos de personalidade” (AGUIAR, 2004, p. 27) que afligiam estes sujeitos; • Em 1948, já em sua sexta edição, a CID incluiu uma seção para os transtornos mentais, mas ainda desconsiderava “síndromes cerebrais crônicas, bem como vários transtornos mentais e situações reativas de interesse dos clínicos americanos” (AGUIAR, 2004, p. 27) – deixando de responder às necessidades colocadas, por exemplo, pela Administração de Veteranos e a Marinha dos EUA, no início desta mesma década; • Na década de 1950 descobriu-se que o Ácido Lisérgico (LSD) associado à mescalina auxiliava na prática da oniro-análise (PSICMED)91 e que 91

Fonte: ; acesso: 24 mar de 2007.

229

Jonatas Ferreira e Erliane Miranda

a clorpromazina atuava na melhora de “pacientes esquizofrênicos” (GRAEFF; GUIMARÃES, 1999 [Prefácio]); • Em 1952 a Associação Médico-Psicológica Americana (posteriormente reconhecida como Associação Psiquiátrica Americana) publicou outra classificação de doenças – para uso dos EUA – que considerava as “situações reativas”. Tratava-se da primeira versão do Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM) – Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais. O DSM legitimou a “doença mental como uma reação a problemas da vida e situações difíceis encontradas pelos indivíduos”. Essa definição passou a cobrir um espectro amplo de sofrimentos mentais e foi um passo decisivo na patologização desse sofrimento (AGUIAR, 2004, p. 27); • Em 1968 foi lançado o DSM-II. Esta segunda versão do DSM representou uma tentativa de compatibilizar o discurso psicanalítico e psiquiátrico: abandonou a perspectiva da biopsicossociabilidade e acatou uma influência ainda maior da psicanálise. O DSM-II considerava que “as diferentes formas de perturbações mentais” correspondiam “a diferentes níveis de desorganização psicológica do indivíduo” (AGUIAR, 2004, pp. 27-28); • Na década de 1970, o programa norte-americano federal que reembolsava integralmente as seguradoras filiadas responsáveis pelos tratamentos psiquiátricos alegou que não havia clareza suficiente nas “terminologias” psicanalíticas que justificavam orientação, diagnóstico, cuidado e pesquisa dispensados às doenças mentais e considerou os investimentos neste segmento da saúde um “poço sem fundo” (AGUIAR, 2004, pp. 40-41); • Em 1987 foi lançado o Prozac®, primeira droga a base de Fluoxetina lançada nos Estados Unidos capaz de interceder na produção de serotonina do cérebro e, portanto, auxiliar no tratamento de sintomas depressivos. Promovido em escala mundial, simultaneamente, entre a comunidade médica e os pacientes diagnosticados com sintomas depressivos, o Prozac® tornou-se a fonte de mais de 30% do faturamento92 do laboratório Eli Lilly e inaugurou a era da “psicofarmacologia cosmética” (AGUIAR, 2004, p. 108); Fonte:; acesso: 12 dez de 2008. 92

230

Consumo de psicofármacos: entre o cuidado consigo e a sintetização da catarse

• Em 1980 foi a vez do DSM-III. A terceira versão do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais afastou-se da perspectiva psicanalítica de condicionar o diagnóstico à biografia do sujeito doente e passou a priorizar a identificação de “critérios diagnósticos explícitos e objetivos para cada categoria” de transtorno mental através da depuração de “eixos” que abrangiam desde a classificação patológica da própria personalidade até “escalas de avaliação para a gravidade dos estressores sociais e avaliação global do funcionamento” (AGUIAR, 2004, p. 31). O DSM-III promoveu a possibilidade da “criação de questionários diagnósticos estruturados para a aplicação de estudos epidemiológicos”, e com isso, também a possibilidade da aplicação destes questionários por “leigos” (AGUIAR, 2004, p. 89). E esse é um segundo e importante momento de patologização do sofrimento; • Em 1994 foi lançado o DSM-IV. Esta quarta versão do DSM rompeu definitivamente com as descrições psicanalíticas e se configurou numa “classificação dos transtornos mentais desenvolvida para uso em contextos clínicos, educacionais e de pesquisa” (AGUIAR, 2004, p. 83). A relevância de tais mudanças para a comunidade médico-científica pode ser ilustrada pelo resgate dos investimentos no segmento da saúde mental: no mesmo ano da publicação do DSM-IV, o National Institute of Menthal Health (NIMH) dispensou US$ 600 milhões para pesquisas neste segmento (AGUIAR, 2004). A relação da legitimação do objeto da psiquiatria com questões eminentemente políticas é inegável e tem efeitos diversos. Pesquisadores que militam em favor do uso racional de todo e qualquer medicamento alopático, incluindo os psicofarmacológicos, reconhecem que o processo da adequação da psiquiatria às metodologias médica e científica concorreu para a implantação do controle tanto da qualidade como da segurança do uso terapêutico de medicamentos em todo o mundo (BARROS, 2008; AGUIAR, 2004). Neste sentido, o Estado passou a cuidar da legalização de órgãos competentes para acompanhar o processo de disponibilização deste tipo de medicamento, da sintetização à venda, passando pela propaganda. No Brasil, este papel é desempenhado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) desde 1999. Um efeito emergente deste mesmo processo, entretanto, é a partilha do “quinhão” do objeto da 231

Jonatas Ferreira e Erliane Miranda

psiquiatria com outras especialidades médicas, que se deu na medida em que esta especialidade recalibrou o foco de suas preocupações para algo menos específico que a doença mental, ou seja, para o sofrimento. Se, por um lado, a psiquiatria passou a ter um espectro de atuação mais amplo, por outro, ela abriu o monopólio da prescrição de alguns psicofármacos para outras especialidades médicas que lidam de alguma forma com o sofrimento psíquico. Do ponto de vista do diagnóstico, a reificação do sofrimento significa que qualquer especialista médico - cardiologista, ginecologista, clínico geral etc. - pode lançar mão de um manual vigente e orientar-se sobre uma série de sintomas que só era “autenticada” pelo especialista psiquiatra. Do ponto de vista dos interesses da indústria de psicofármacos, essa tendência é indubitavelmente bem-vinda. É isto que está implícito, por exemplo, na análise que Horwitz e Wakefield (2010, pp. 18-19) fazem da explosão da depressão nos EUA. Argumentamos que, na verdade, a suposta explosão recente de casos de transtorno depressivo não deriva primordialmente de um aumento real no número de pessoas com doença. Ao contrário, é, em grande medida, consequência da confusão entre essas duas categorias conceitualmente distintas – tristeza normal e transtorno depressivo – e, portanto, da classificação de muitos casos de tristeza normal como transtornos mentais. A atual “epidemia”, embora seja resultado de muitos fatores sociais, tornou-se possível por uma modificação na definição psiquiátrica de transtorno depressivo, a qual frequentemente permite a classificação de tristeza como doença, mesmo quando não é.

É possível afirmar que os psicofármacos passaram a ser compreendidos como medicamentos capazes de atuar diretamente sobre a estrutura biológica do sofrimento humano e que esta perspectiva inaugurou uma forma de produção “técnica” da subjetividade que corresponde, em certa medida, àquilo que tem se chamado “biossociabilidade” (RABINOW apud MARTINS, A.L.B., 2005). Estamos diante de uma terapêutica que é, em grande medida, pensada à revelia dos processos de tratamento simbólicos, como a psicanálise. Enquanto, para alguns pensadores, uma das maiores preocupações com a adoção da terapêutica psicofarmacológica é o uso irracional destes medicamentos (BARROS, 2008), na medida em que 232

Consumo de psicofármacos: entre o cuidado consigo e a sintetização da catarse

esse uso negligencia “uma ecologia do corpo, que merece ser preservada e poupada da poluição e intervenções farmacológicas desnecessárias” (AQUINO, 2008), para outros, como Fukuyama (2003) e Habermas (2000), a descoberta de medicamentos que permitiriam “aliviar o sofrimento humano” podem culminar na busca pela solução química de problemas existenciais, no ato de delegar a uma droga de última geração a responsabilidade de lidar com frustrações intransferíveis e dores cotidianas (EHRENBERG, 1995, pp. 125-127). Um maior poder da indústria farmacêutica frente aos médicos e instituições de regulação e controle sobre a circulação de medicamentos, sua própria capacidade de definir o que é objeto de intervenção medicamentosa em função daquilo que pode ofertar, a transformação do paciente psiquiátrico em um consumidor, dá força às preocupações de Ehrenberg, Barros e Aquino. Esta mudança, em uma medida significativa, estava implícita no momento em que o psicofármaco passou a constituir parte da terapêutica de pacientes tradicionalmente tratados por meio da psicanálise, ou seja, pacientes em estado de sofrimento psíquico, mas em quem não se podia identificar uma patologia psiquiátrica. Contudo, ainda que alguns entendam que uma maior autonomia dos pacientes não signifique necessariamente um mal (NIKOLAS ROSE, 2006) e até possa indicar ampliação dos espaços de cidadania, é patente o lugar da constatação de que uma modificação radical está ocorrendo no que diz respeito ao que se convencionou pensar como terapêutica psicológica. Hoje é mais difícil operar a partir de uma separação clara entre as dimensões simbólicas e químicas do sofrimento psíquico, entre as necessidades de libertação pela rememoração de um neurótico, digamos, e as necessidades fisiológicas de um paciente psicótico. Uma crise de ansiedade pode e comumente é rapidamente medicada. Acreditamos que tudo isso não é consequência exclusiva da transição da atuação da medicina de uma perspectiva integrada para uma disposição fenomenista, ou seja, que passou a tratar o mal-estar subjetivo como coisa-em-si, mas antes algo que corresponde também às demandas do sujeito moderno, responsável por si (GIDDENS, 2002), que precisa se compor em tempo real e é “meio” de uma sociedade que converteu os níveis satisfatórios de bem-estar e cuidado em possibilidades de consumo (BARROS, 2004). 233

Jonatas Ferreira e Erliane Miranda

Quais as consequências disto? De um lado a reflexividade passou a figurar uma espécie de bússola que orienta a monitoração dos indivíduos com relação à perspectiva de sofrimento psíquico ou à deficiência em obter um prazer adequado no consumo disponível. Aqui percebemos a ideia de reflexividade não circunscrita à atuação de um dispositivo inerentemente humano e, especialmente, individualista, que garanta uma forma de o sujeito se colocar adequadamente no mundo, isto é, como atividade cotidiana necessária à segurança ontológica que provê o sujeito moderno da crença e confiança na autoidentidade, no meio em que vive (GIDDENS, 1991), e que, por outro lado, possibilite sua adaptação, ação e resposta constante ao imprevisível, ao inédito, ao inusitado. Notamos que a reflexividade converteu-se na própria condição “funcional” para esta continuidade a partir de dispositivos como o da informação e da comunicação, que implicam em uma nova maneira de se relacionar com “modos de vida culturais específicos” (LASH, 1997, p. 138). Disto, o elemento de adaptabilidade da noção de reflexividade passa a nos interessar bem mais que o pressuposto giddensiano de um exercício subjetivo que busca diuturnamente a reconstituição de um eixo interno de coerência. De uma perspectiva da relação entre o consumo de psicofármacos e o cuidado consigo, suspeitamos que o problema se coloca quando a dimensão simbólica do sofrimento não consegue encontrar espaços adequados de realização diante de entraves culturais amplos que colocam a “medicalização da vida” como saída prioritária para nossos problemas existenciais. Dedicaremos o próximo tópico a isso que chamamos de crise da psicanálise, mas que, evidentemente, diz respeito, como veremos, a uma crise cultural bem mais ampla. Em seguida, buscaremos confrontar essas primeiras suposições com uma pesquisa empírica realizada entre os anos de 2008 e 2009 junto a consumidores de psicofármacos.

234

Consumo de psicofármacos: entre o cuidado consigo e a sintetização da catarse

A crise da psicanálise como crise cultural ampla: a impossibilidade da verdade trágica

Contemporaneamente, muito se tem falado de uma crise da psicanálise e da psiquiatria como formas de lidar com o sofrimento psíquico e, de modo mais amplo, como formas estabelecidas de conhecimento das sociedades modernas e nelas exercer algum tipo de cuidado civilizador. Fala-se na morte do pai, na triste constatação de que o consumo, o prazer imediato, é hoje forma privilegiada para mitigar a precariedade de nossos engajamentos, nosso niilismo, nosso “tédio profundo”, como diria Heidegger, ou a pobreza de nossas experiências, como afirmava Benjamin nas primeiras décadas do século passado. Benjamin, em seu famoso texto, fala de uma miséria que resulta da proliferação de vivências rasas, consumidas com a mesma inconsequência com a qual nos movimentaríamos numa loja de departamentos: astrologia, ioga, vegetarianismo, quiromancia etc. etc., tudo está à disposição dos olhos e do estômago civilizados. Tudo está fadado à mesma aniquilação vertiginosa. A crise da psicanálise, ao nosso ver, diz, não apenas da perda de prestígio de uma forma de conhecimento consagrada, confrontada a todo momento com a perspectiva de alívio imediato, com a disponibilidade de antidepressivos, ansiolíticos, mas uma crise mais profunda que diz respeito à importância da verdade trágica em nossa cultura. E é nessa direção, isto é, refletindo acerca do peso do trágico na cultura ocidental, que deveremos olhar caso desejemos compreender o significado de práticas contemporâneas de lidar com o sofrimento. Porém, se essa reflexão mais teórica é o nosso ponto de partida, nossa bússola, ela não é o seu propósito último. Trata-se, afinal, de analisar o consumo de psicofármacos como forma de cuidado consigo próprio. Entender aquela transformação mais ampla e radical não significa saber de antemão o que o campo nos trará, mas estabelecer grandes linhas sobre as quais a verdade da investigação empírica pode ser revelada em sua especificidade. Mas, o que é a verdade trágica e de que modo ela estrutura o projeto psicanalítico? Podemos inicialmente dizer que a tragédia é a verdade da filosofia ocidental e, portanto, da forma como ela vem influenciando diversos 235

Jonatas Ferreira e Erliane Miranda

campos de conhecimento, entre eles, a psicanálise. A tragédia é o lugar de um pensar que incomoda, lugar em que o mito que organiza a polis é posto sob uma luz na qual fica exposta sua ambiguidade fundamental. Sob essa luz, percebemos que o mito é um nó que amarra verdades tensas e contraditórias. Perceber isso, todavia, é agir de modo a afrouxar seu poder organizador, é colocá-lo em perspectiva. A tragédia, que surge na Grécia democrática, traz em si a possibilidade de perturbação dos valores fundamentais que estruturam a cidade, a ordem pública, exatamente por colocá-los numa certa epoché. Sua forma dramática e sua retórica testemunham, segundo Vernant e Vidal-Naquet (2005), um emaranhado de problemas jurídicos e políticos em meio aos quais o herói trágico revolve, dando-nos a perceber, de vários modos, os princípios arcônticos que organizam a vida civilizada. Talvez por isso mesmo Sólon haja reagido com indignação ao assistir a esse tipo de espetáculo pela primeira vez. Que Agamenon, Édipo, Orestes, Antígona possam ser vistos numa perspectiva ambígua que opõe, por exemplo, a verdade humana e a verdade divina, ethos e daimon, deveres cívicos e deveres de sangue, pareceu insuportável ao célebre legislador. E aqui temos uma primeira constatação acerca da verdade trágica: ela perturba por tornar visíveis as tensões, as violências sobre as quais a pólis se organiza jurídica e politicamente. Para usarmos Derrida, diríamos que a tragédia deixa ver os “princípios arcônticos” sobre os quais a vida civilizada se estrutura. Em segundo lugar, deveríamos dizer que a ação trágica, a ação do herói trágico, não é propriamente algo da esfera da vontade. Vernant e Vidal-Naquet (2005) observam que o grego clássico sequer dispunha de um verbo específico para dizer o que corresponderia ao nosso verbo “querer”. O herói, no entanto, possibilita-nos “uma interrogação ansiosa da relação do agente com seus atos: Em que medida o homem é realmente a fonte de suas ações?” (p. 23). Os planos divinos e humanos se contrapõem, essa é a conclusão a que chegamos ao ver em cena Édipo, por exemplo. Mas se o querer, a vontade, não define a ação do herói trágico, podemos dizer que ele é aquele que decide (ou em que algo é decidido) quando essa decisão é impossível. O herói trágico decide o indecidível. Antígona é presa a suas obrigações de sangue e, ao mesmo tempo, a seus deveres para com a cidade de Tebas, a suas obrigações para com divindades ctônicas e, ao mesmo tempo, para com divindades olímpicas. Ali, na impossibilidade da 236

Consumo de psicofármacos: entre o cuidado consigo e a sintetização da catarse

decisão, algo é decidido. E essa decisão não resolve a tensão sobre a qual saltou: a ambiguidade, a tensão trágicas continuam pulsando mesmo quando tudo já foi decidido. Deste ponto de vista, não há verdadeira catarse na tragédia, pois o rastro da violência continua operando no espectador mesmo findada a ação dramática. Schelling constata alguma coisa muito parecida com isso em Cartas sobre o dogmatismo e o criticismo. Porém, aqui a catarse é uma possibilidade ligada à liberdade do herói diante de forças fatais que o subjugam. A tragédia grega honrava a liberdade humana ao fazer seu herói lutar contra o poder superior do destino: para não ultrapassar os limites da arte, tinha de fazê-lo sucumbir, mas, também para reparar essa humilhação da liberdade humana imposta pela arte, tinha de fazê-lo expiar – mesmo que através do crime perpetrado pelo destino... Foi grande pensamento suportar voluntariamente mesmo a punição por um crime inevitável, a fim de, pela perda da própria liberdade, provar justamente essa liberdade e perecer com uma declaração de vontade livre (SCHELLING apud SZONDI, 2004, p. 29).

A verdade trágica nos fala de algo há muito esquecido, sepultado, e que retorna. O trágico, nesse sentido, é sempre o retorno de Dionisos, a sua ressurreição. Édipo constata a verdade do Oráculo de Delfos; Agamenon redescobre a hybris, a desmedida incompatível com sua condição de mortal, que o acompanha desde que sacrificou a lebre prenha de Diana, redescobre a própria ambição e vaidade desmedidas através da armadilha que lhe propõe Clitemnestra. Assim, Heidegger propõe que precisamos redescobrir uma dimensão da verdade obscurecida pela metafísica, e particularmente pela modernidade. Uma verdade que é um desesquecimento, uma aletheia. Ora, essa dimensão trágica da verdade também não é fundamental na psicanálise? Sua própria técnica não se estrutura sempre sobre o retorno de Dionisos? Isso é bastante evidente no próprio fato de a exegese psicanalítica investir sobre algo como uma memória do esquecimento, sobre o reprimido que deve vir à consciência. E esse retorno teria a possibilidade de libertar. O estranho, o estrangeiro retorna na psicanálise como aquilo que há de mais íntimo. A verdade trágica se estrutura como rememoração de algo que nos é fundamental mas que, por ser perturbador, esquecemos. 237

Jonatas Ferreira e Erliane Miranda

Finalmente, podemos dizer que a verdade trágica é um aprendizado pela dor. Posto que o saber humano está separado do saber divino, todo aprendizado implica necessariamente um padecer em que se afirmam valores fundamentais de convívio: a sabedoria, a moderação, a justiça. Tal é o sentido das linhas de Agamben (2008, p. 27): É esta a diferença que o coro da Oréstia de Ésquilo sublinha, caracterizando – contra a hýbris de Agamenon – o saber humano como páthei máthos, um aprender somente através de e após um sofrimento, que exclui toda possibilidade de prever, ou seja, de conhecer com certeza alguma coisa.

Por isso também, a verdade trágica nos conduz a um sentimento de desamparo, de derrelição. Em Agamenon, Ésquilo expõe, de forma belíssima, o que caracterizaria para o homem grego a relação entre prudência e experiência. Aos mortais, Zeus abre um só caminho para a experiência, para a prudência, para o saber: a dor: Él, que abrió a los mortales la senda del saber; Él, que en ley convertiera “Por el dolor a la sabiduría”. En vez de sueño rezuma dentro del pecho un dolor que recuerda el mal antiguo. Así, aun sin querer, le llega al hombre la prudencia. Favor violento de los dioses que en su augusto trono se sientan, junto al timón!

Por último, diríamos que a verdade trágica se impõe como discussão semântica, uma discussão acerca do sentido conveniente das palavras. Essa verdade nos é proposta como acontecimento que ocorre em meio à constatação de ambiguidades léxicas no discurso dos personagens, uma homonymia, que se torna “possível pelas imprecisões e ambiguidades da língua” (VERNANT e VIDAL-NAQUET, 2005, p. 73). A tragédia é, portanto, o lugar de uma batalha discursiva que se decide de modo violento, ocasionando a oportunidade de surgimento de uma verdade marcada de cicatrizes, uma verdade finita. Eis que: 238

Consumo de psicofármacos: entre o cuidado consigo e a sintetização da catarse

Na boca de diversas personagens, as mesmas palavras tomam sentidos diferentes ou opostos, porque seu valor semântico não é o mesmo na língua religiosa, jurídica, política, comum. Assim, para Antígona, nómos designa o contrário daquilo que Creonte, nas circunstâncias em que está colocado, chama também nómos (VERNANT e VIDAL-NAQUET, 2005, p. 74).

Quando a psicanálise ou o pós-estruturalismo elege o discurso como campo em que a cultura ocidental será colocada em questão, é um compromisso com essa verdade antiga que se busca estabelecer. A verdade trágica constituiu no ocidente um espaço crítico para colocar em perspectiva o poder, para colocar em epoché nossos compromissos irrefletidos da vida cotidiana, nosso automatismo, nossa compulsão, nossa hýbris. Ela se estrutura, como vimos, sobre algumas ideias-chaves. Primeiro, o trágico é a possibilidade de pensar o mito, perceber as tensões que o estruturam, afrouxá-las, apropriá-las da perspectiva de nossa humanidade. Segundo, no trágico algo se decide mesmo na impossibilidade de decisão. O que diferencia Orestes e Hamlet não é o problema básico sobre o qual se debruçam: honrar a memória de um pai assassinado, vingar-se de seu assassino e da própria mãe sobre quem a cumplicidade paira como uma dúvida ou como uma certeza. Tampouco a incerteza de quais os compromissos que devem guiá-los. No Coéforos, de Ésquilo, Orestes chega a vacilar diante dos apelos da mãe, diante da possibilidade de cometer um crime que o tornará para sempre impuro. “Oh Pílades, que hacer? Ella es mi madre!” Oscila entre seus compromissos com seu pai, com Apolo, por um lado, e com sua mãe, por outro. Hamlet também vacila no que toca aos seus compromissos. Será o fantasma de seu pai na verdade um demônio? Mas Orestes age quando há tudo ainda por perder; Hamlet age quando já nenhuma ação faz sentido. Na Origem do Drama Barroco Alemão (1984), Benjamin fala do traço deste último tipo de personagem, a acedia, a incapacidade de decidir, o discurso interminável onde a ação é requerida. Diante do indecidível, o herói do drama barroco acumula dúvidas e palavras e recusa o gesto trágico. Para Benjamin, essa é uma marca moderna, a incapacidade da violência da decisão trágica. Mas, como tal violência pode ser sequer concebida quando 239

Jonatas Ferreira e Erliane Miranda

não há valores em tensão, quando o niilismo da cultura ocidental parece nossa realidade inquestionável? A terceira ideia-chave, nós a colocamos assim: “A verdade trágica se estrutura como rememoração de algo que nos é fundamental mas que esquecemos”. E diante disso perguntaríamos: o que é mesmo fundamental diante da pobreza de nossa vida cotidiana, diante da impossibilidade de experiência? E aqui recorremos mais uma vez a Benjamin. Diante de um mundo que se apresenta como desprovido de significados últimos, diante do “tédio profundo” da aceleração tecnológica de que nos fala Heidegger, do niilismo da contemporaneidade, a vivência do estranho, do não familiar, já não nos retorna algo fundamental. Dionisos ficou retido em alguma operação de combate ao terror num país oriental. Mas há ainda um motivo para essa impossibilidade. Para falar sobre ela, deveremos avançar para nossa quarta ideia-chave. A verdade trágica implica em um aprendizado pela dor, onde reconhecemos nossa mortalidade, nossa finitude. E a partir desse reconhecimento poderemos constituir a experiência de significados fundamentais. Mas, como nos ensinam Horkheimer e Adorno no Segundo Excurso da Dialética do Esclarecimento, a cultura moderna se estrutura a partir de uma distância emocional, uma apatia, de uma analgesia intelectual que inviabiliza tal tipo de aprendizado. No “Excurso II” da Dialética do Esclarecimento, dedicada a Sade, Adorno e Horkheimer constatam a esse respeito: ‘A apatia (considerada como fortaleza) é um pressuposto indispensável da virtude’, diz Kant, distinguindo essa ‘apatia moral’ (um pouco à maneira de Sade) da insensibilidade no sentido da indiferença a estímulos sensíveis. O entusiasmo é mau. A calma e a determinação constituem a força da virtude (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 93).

E, citando diretamente Sade, eles consideram: “Minha alma é dura, e estou longe de achar a sensibilidade preferível à feliz apatia de que desfruto” (p. 94). E para que sofrer se temos analgésico? Para que entristecer se os antidepressivos estão disponíveis? Se aqui não estamos fazendo uma defesa explícita de verdade trágica, acreditamos que ela vem orientando a possibilidade de crítica na cultura ocidental. Nossa pergunta então é: o que acontece quando os 240

Consumo de psicofármacos: entre o cuidado consigo e a sintetização da catarse

pressupostos dessa cultura são radicalmente transformados? Uma cultura da medicalização da vida parece-nos apenas uma evidência da escala dessas transformações: nossa impossibilidade de decidir, nossa acedia, nossa incapacidade de encontrar um sentido fundamental para nossas ações, nossa recusa de enfrentar o sofrimento quando esses valores, esses sentidos, não estão disponíveis. Esse tipo de constatação, no entanto, peca ao propor um tipo de orientação teórica por atacado, no que pese ela ajudar a entender dados bastante concretos do trabalho empírico que orientou a elaboração desse texto.

O Consumo de psicofármacos O tópico que se segue sintetiza a análise do material empírico coletado entre os anos de 2008 e 2009. Nesse período, foram realizadas dezoito entrevistas semiestruturadas com uma rede de informantes usuários de ansiolíticos e antidepressivos. Esta rede foi formada numa estratégia de bola de neve e, embora não pretenda ser representativa da população de consumidores desses tipos de medicamentos na Região Metropolitana do Recife, onde o estudo se realizou, acreditamos que nos forneça subsídios importantes acerca da forma como os indivíduos os consomem e do tipo de reflexividade implícita neste consumo. As informações adquiridas no campo investigado contribuíram para a percepção de como o psicofármaco intervém na construção e manutenção de uma espécie de “muleta química” para a segurança básica contemporânea dos sujeitos acometidos de mal-estares psicoafetivos. Nesse sentido, as entrevistas confirmaram a hipótese mais ampla que orientou o presente trabalho e que formulamos no tópico anterior; porém, mais que isso, elas mostraram reflexividades de curto alcance que viabilizam essa terapêutica. Comecemos afirmando que os indivíduos desta rede não se reconheceram como doentes, mas antes como pessoas desestabilizadas emocionalmente. Mesmo assim, em suas falas foi constante a definição dos males pelos quais eles próprios se dizem afligidos, como “depressão”, “transtorno”, “ansiedade”. A perspectiva de que esses sintomas possam ser encarados como parte de uma patologia é algo que os entrevistados 241

Jonatas Ferreira e Erliane Miranda

recusam terminantemente – o que eventualmente pode indicar uma ansiedade quanto a essa possibilidade. A análise do sofrimento deu lugar ao uso de metáforas singelas. Uma deficiência na produção de endorfina foi formulada como se o medicamento viesse a preencher um “baldinho” que não se encontra cheio, como esperado, e precisa ser “preenchido”. Chama a atenção nesse tipo de imagem que a solução de um problema psicoafetivo implique algo muito semelhante à compra de produtos no mercado para abastecer, digamos, uma dispensa. Contudo, e não raro, os mesmos sujeitos consideraram a necessidade de se trabalhar também num âmbito simbólico, dando a entender que o medicamento era assimilado como “parte” de uma terapêutica mais ampla. Ficou claro, entretanto, que o consumo de psicofármaco mantinha algumas funções fundamentais para os entrevistados: evitar o sofrimento psíquico proveniente da ansiedade e da depressão relativos a rotinas de trabalho percebidas como extenuantes93, relativos à insegurança de viver numa grande cidade, à tristeza sem foco definido que só pode ser compreendida como dificuldade de encontrar sentido na existência. Verificamos que o que lhes interessava, de fato, era cessar seu mal-estar subjetivo - muitas vezes traduzido fisicamente por sudorese, palpitação, sono descontrolado, apatia – de maneira rápida. Rapidez é o primeiro elemento da reflexividade subjacente a tais processos terapêuticos que gostaríamos de destacar: “A minha psiquiatra queria que eu fizesse terapia com ela, mas eu a acho meio doida. Eu fiz terapia um tempo e enjoei. Acho que os remédios são mais rápidos” (Caio). Dentre as justificativas para a eleição pragmática do psicofármaco como dispositivo do cuidado consigo, encontramos argumentos como a comparação entre os preços de uma sessão de análise e uma caixa de um psicofármaco. Na Região Metropolitana de Recife, verificamos que atualmente o preço de uma sessão de análise está na média de R$ 80,00 a R$ 350,00. Quanto ao custo de uma caixa de ansiolíticos ou antidrepressivos, há uma variação de preços: há antidepressivos, por exemplo, cujo preço “Eu trabalho, faço faculdade, trabalho em casa, enfim, tenho que corresponder à demanda de ser mãe, ser esposa, cuidar das coisas da casa, orientar a babá, cuidar do dinheiro... Tudo é comigo. Eu vou dormir todo dia a uma e trinta da manhã. Acordo às sete e trinta à pulso. Aí a gente fica com olheira. Você tem que usar maquiagem para ninguém no trabalho dizer que você está com olheiras... É aí que entra o remédio” (Rosa). 93

242

Consumo de psicofármacos: entre o cuidado consigo e a sintetização da catarse

varia de R$ 3,47 – caixa de Rivotril® de 0,5 mg com 20 comprimidos – a R$ 162,00 – caixa de Paxil® de 20mg com 28 comprimidos. A partir da ilustração aqui proposta, mesmo que um antidepressivo seja prescrito em combinação com um ansiolítico, o custo financeiro do bem-estar proporcionado pela terapia medicamentosa é percebido como melhor negócio que o investimento lento, pressuposto, por exemplo, na terapia pela fala. Claro que aqui estaríamos diante de um falso problema. Ora, a psicofarmacologia não prescinde da terapêutica convencional, psicanalítica ou psiquiátrica. Mas é exatamente a ponderação com relação aos custos aqui envolvidos e o “falso” problema colocado que nos permitem perceber o quanto é sedutora a perspectiva de automedicação ou da medicação prescrita por um não especialista. Claramente, um investimento terapêutico que vá além do consumo de medicamentos é oneroso sob outra perspectiva: ele significa suportar um sofrimento do qual o psicofármaco aparentemente nos poupa. E sob esses dois aspectos percebemos o custo como um segundo elemento de reflexividade. Em contrapartida a este argumento, não é possível descartar outros dois aspectos: i) a avaliação do custo-benefício entre uma caixa de medicamentos (R$3,47) e uma consulta (R$80,00) não poder ser relativizada, por exemplo, entre dois informantes que recebam, um e outro, respectivamente, um e dez salários mínimos (hoje, R$510,00)94; ii) seja na rede pública ou privada, no Brasil é tanto desigual como instável o acesso ao profissional médico que realiza terapia pela fala, embora seja perceptível que novas políticas de saúde mental estejam tentando mudar este quadro95: “Minha assistência só dá direito ao psicólogo uma vez por mês, eu preciso do remédio, se não, eu não aguento” (Verônica). Medida Provisória nº 474/2009, de 24.12.2009. No Sistema Único de Saúde (SUS), responsável pelo atendimento público, em 2006 havia aproximadamente vinte mil psicólogos para atender mais de 100 milhões de usuários. Neste mesmo ano, o Conselho Regional de Psicologia da 6ª Região (CRP SP) denunciou uma discrepância entre os aportes quantitativos e qualitativos destes profissionais, alegando que grande parte deles precisava de grupos de trabalho para viabilizar atualização de seus conhecimentos e práticas na saúde pública; até janeiro de 2010, as assistências médicas privadas, em sua grande maioria, restringiam o acesso ao profissional psicólogo a doze sessões por ano, ou seja, uma sessão por mês, até que em resolução normativa - RN Nº 211, de 11 de janeiro de 2010 - foi promulgado que os associados das redes privadas de assistência médica brasileira têm direito a cobertura de 40 acessos a psicólogos por ano. 94 95

243

Jonatas Ferreira e Erliane Miranda

Eis uma “condição ‘funcional’” que pode ser caracterizada como um terceiro elemento de reflexividade. Para a maioria dos sujeitos-consumidores da rede investigada, tanto o comportamento de sofreguidão decorrente do estado ansioso como a apatia característica do estado depressivo, apesar de íntimos e impartilháveis, são perceptíveis e facilmente identificados. Por isso, para os informantes, esses estados precisam ser suprimidos em tempo real a fim de que não lhes sejam imputados estigmas como o da loucura e o da improdutividade. Neste sentido, é relevante ressaltar que a dor, o sofrimento subjetivo, muitas vezes foi relatada como vivência que se dá em meio a um conjunto de sensações confusas e, portanto, difícil de ser verbalizada. Essa experiência é acompanhada de sentimentos de culpa, impotência e, sobretudo, vergonha e insegurança. Notou-se, ainda e claramente, que a vergonha de estar acometido com tais sensações concorre com a própria solução encontrada, que é a de tomar a medicação psicofarmacológica para remediá-las. Os entrevistados manifestaram receio de assumir publicamente o tratamento com psicofármacos no âmbito público, como o do trabalho, bem como em círculos mais fechados, como o de amigos, embora, na relação com a família, este receio torne-se menos forte. O medicamento, nesse caso, é uma forma de manter controle sobre sua imagem diante do grupo, além de poder indicar a impermeabilidade para lidar com o sofrimento subjetivo. A elaboração de performances para lidar com efeitos colaterais indesejados dos psicofármacos - como a perda da libido no que concerne às relações de maior intimidade como a prática sexual - constitui parte de um arsenal de estratégias importantes no trato com a questão da imagem. Mais de uma entrevistada revelou disfarçar a queda no interesse sexual decorrente da baixa da libido, por temer que isto pudesse ser confundido com diminuição de interesse ou de afeto pelo parceiro. Quanto aos homens, alguns revelaram planejar o ato sexual de modo a parar de tomar o medicamento dois dias antes da data pretendida para tal. Ambos, homens e mulheres, afirmaram que se programam para consumir bebida alcoólica. Aliás, neste aspecto, uma das constatações mais emblemáticas do campo foi a de que estes sujeitos-consumidores operam uma espécie de economia subjetiva na qual atribuem, de forma individual, “pesos” a diferentes elementos da vida. O que pode ser classificado como essencial para uns, 244

Consumo de psicofármacos: entre o cuidado consigo e a sintetização da catarse

é dispensável para outros. Esta economia surge, ganha importância e é operada no campo exclusivo da subjetividade e tem uma finalidade pragmática: equalizar a tensão entre usufruir o bem estar e a segurança tanto física como psicoafetiva proporcionados pelo consumo do psicofármaco e, ao mesmo tempo, manter a certo grau, ainda que baixo, de autonomia sobre seu corpo. É também nesta perspectiva, a partir da experiência de um “reconhecimento de si”, através do exercício de uma consciência prática, ou seja, de um monitoramento reflexivo que estes sujeitos realizam sobre si mesmos, que eles calculam riscos, como a possível dependência química e/ou psicológica de um determinado medicamento, de modo a garantir certo grau de autonomia sobre o medicamento que consomem. Um exemplo disto foi citado acima: os indivíduos elaboram uma espécie de cronograma onde jogam com suas necessidades e desejos cotidianos, como as de ter relação sexual ou consumir bebida alcoólica, e testam a adaptação das dosagens recomendadas ou prescritas do medicamento até encontrar o “timing” que corresponda ao equacionamento de suas demandas. Assim, o psicofármaco também surgiu nas falas dos informantes como um auxiliar na lida contra a impotência, a insegurança e o medo que se experiencia na vida pública. Foi mesmo identificada a expectativa de o psicofármaco poder atuar também como um dispositivo profilático, por exemplo, frente a eventuais situações de violência urbana nas quais uma vida possa ser posta em risco pela mera falta de um “controle” emocional. Uma de nossas informantes revelou que se prepara para sair de casa: ela sai “abastecida” por seu ansiolítico. Ora, isso não parece ser um caso isolado diante das informações que obtemos na grande mídia, reportando o uso de psicofármacos para melhorar a performance no trabalho. Esse é, por exemplo, o segredo da popularidade da Ritalina, nos EUA. Da leitura deste campo, contudo, nada nos autoriza a deixar de reconhecer que a prática de uma reflexividade na adesão à terapia medicamentosa está de um todo ausente. Embora o consumo de psicofármacos apresente elementos que remetam a um cuidado do ser humano consigo mesmo, especialmente no que diz respeito à inquietação que produz a reflexividade, constatamos que algo se perdeu no processo de modernização. O cuidado consigo circunscrito à terapia medicamentosa que dispensa a aprendizagem pelo erro e pela dor para a construção de uma subjetividade calcada na reflexão e na possibilidade da transformação 245

Jonatas Ferreira e Erliane Miranda

de si ilustra uma reflexividade contingente e localizada que impõe limites à reflexão e, portanto, ao autogoverno dos sujeitos da rede investigada.

Bibliografia ADORNO, Theodor W., HORKHEIMER, Max (1985). Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro, Jorge Zahar. AGAMBEN, Giorgio (2008). Infância e História. Belo Horizonte, UFMG. AGUIAR, Adriano Amaral de (2004). A psiquiatria no divã: entre as ciências da vida e a medicalização da existência. Rio de Janeiro, Relume Dumará. AQUINO, Daniela Silva de (2010). “Por que o uso racional de medicamentos deve ser uma prioridade?” Ciência da saúde coletiva. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S141381232008000700023&lng=en&nrm=iso. Accessado em  30  July  2010. BECK, Ulrich; GIDDENS, Anthony; LASH, Scott (1997). Modernidade reflexiva: trabalho e estética na ordem social moderna. São Paulo, UNESP. BARROS, José Augusto C. (2004). Políticas Farmacêuticas: à Serviço dos Interesses da Saúde? Brasília, UNESCO. ______ (2008). Os fármacos na atualidade: antigos e novos desafios. Brasília, ANVISA. BENJAMIN, Walter (1984). Origem do drama barroco alemão. São Paulo, Brasiliense. ______ (1996). “Experiência e Pobreza”. In Obras Escolhidas, Vol II. Magia e Técnica, Arte e Política, São Paulo, Editora Brasiliense. DERRIDA, Jacques (2001). Mal de Arquivo. Uma experiência freudiana. Rio de Janeiro, Relume Dumará. 246

Consumo de psicofármacos: entre o cuidado consigo e a sintetização da catarse

DIAS, José Pedro Sousa (2003). A Farmácia e a História. Uma introdução à História da Farmácia, da Farmacologia e da Terapêutica, Notas para Disciplina de História e Sociologia da Farmácia. Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa. EHRENBERG, Alain (1995). Le culte de la performance (Calmann-Lévy). Paris, Hachette. FOUCAULT, Michel (2004). A Hermenêutica do Sujeito. São Paulo, Martins Fontes. FUKUYAMA, Francis (2003). Nosso Futuro Pós-Humano. Rio de Janeiro, Rocco. GIDDENS, Anthony (1991). As conseqüências da modernidade. São Paulo, UNESP. ______ (2002). Modernidade e identidade. Rio de Janeiro, Jorge Zahar. GUIMARÃES, Francisco Silveira Guimarães; GRAEFF, Frederico Guilherme (1999). Fundamentos de psicofarmacologia. São Paulo, Editora Atheneu. HABERMAS, Jürgen (2000). O Futuro da Natureza Humana. São Paulo, Martins Fontes. HORWITZ, Allan V., WAKEFIELD, Jerome C. (2010). A tristeza perdida: como a psiquiatria transformou a depressão em moda. São Paulo, Summus. ILLICH, Ivan (1975). A expropriação da saúde: nêmesis da medicina. Rio de Janeiro, Nova Fronteira. LUZ, Madel Therezinha (1988). Natural, racional, social: razão médica e racionalidade científica moderna. Rio de Janeiro, Campus. MARTINS, Anderson Luiz Barbosa (2005). Biopsiquiatria e Bioidentidade: política da Subjetividade Contemporânea. Dissertação apresentada à Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz.

247

Jonatas Ferreira e Erliane Miranda

ROSE, Nikolas (2006). Politics of Life itself. Biomedicine, power and subjetctivity in the twenty-first century. New Jersey, Princeton University Press. SPIEGEL, René (2003). Psychopharmacology: an introduction. Sussex, John Weley and Sons. SILVA, Marcos Paulo Novais, LEITE, Francine (2010). Terminologia em saúde: conceito, necessidades e experiências. Instituto de estudos de saúde suplementar (IESS). STAHL, S. M. (2000). Essential Psychopharmacology. New York, NY, Cambridge University Press. SZONDI, Peter (2004). Ensaio sobre o trágico; Tradução de Pedro Süssekind. Rio de Janeiro, Jorge Zahar. VERNANT, Jean-Pierre, VIDAL-NAQUET, Pierre (2005). Mito e tragédia na Grécia antiga. São Paulo, Perspectiva.

248

Corpos en Concierto: diferencias, desigualdades y disconformidades

BASURALES Y DISCRIMINACIÓN. Cuerpos y Justicia Ambiental Victoria D’hers

Introducción Leyendo el matutino Página/12 confirmamos una vez más la necesidad de ahondar en los estudios de los cuerpos y las emociones en América Latina. Dice el antropólogo Philippe Bourgois: No deja de impactarme el hecho de que los dominados sigan tolerando ese grado de desigualdad. Peor aún: ¿por qué la dominación se internaliza y se concreta en violencias entre pobres, en vez de apuntar a los poderosos de una sociedad que no los integra? No hay respuestas automáticas …. cada detalle de su comportamiento tiene huellas de la opresión (Diario, p. 12, 13 de agosto de 2010).

Así, creemos de vital importancia encarar estudios de esos procesos de internalización en cuanto condicionan posibilidades futuras de emancipación. Dada la apropiación desigual de las energías tanto ambientales como corporales que creemos son ejes del capitalismo actual, se conforman prácticas dirigidas a evitar el conflicto, sostenidas por los mecanismos de soportabilidad, que a su vez descansan en los dispositivos de regulación de las sensaciones. Paralelamente, los mecanismos de soportabilidad configuran el dolor social (SCRIBANO, 2009), que permite trazar una frontera a la conflictividad, resultando en una división cada vez más profunda del tejido social. Consecuentemente, en el presente escrito nos proponemos a partir de este marco teórico, revisar los conceptos de justicia y discriminación ambiental desde dos ópticas. 249

Victoria D’hers

Por un lado, realizamos un recorrido por la problemática de la basura desde una mirada regional, tomando en cuenta la presencia de Sitios de Disposición de Residuos (de aquí en más, SDR), la relación que se establece entre el centro metropolitano de la ciudad de Buenos Aires y la provincia; y las políticas implementadas para su gestión en las diversas jurisdicciones que configuran esta relación de transferencia de contaminación. Por otro, proponemos repensar esta dinámica que entendemos como de discriminación ambiental desde la consideración de los procesos de construcción de la corporalidad. Ambos planos están profundamente ligados en lo que definimos como mecanismos de soportabilidad. Entonces, una mirada ambiental y urbana se ve nutrida desde la perspectiva de la teoría social de los cuerpos. Enfatizamos la importancia de analizar estas problemáticas desde un ángulo que se ocupa de los cuerpos y las emociones, que definirán en última instancia los significados de las experiencias particulares, más allá de su caracterización externa (académica, estatal) como discriminatorias. Estas páginas fueron inspiradas en los fenómenos observados en trabajo de campo, tanto en asentamientos de la Ciudad de Buenos Aires, como de la Provincia (específicamente, municipio de Lomas de Zamora).96 Considerando que gran parte de los textos dedicados a la discriminación y justicia ambiental comienzan refiriendo a la exportación de los residuos a “países menos desarrollados” (cfr. HARVEY, 2009: 366; ACSELRAD, 2009: 7), planteamos entonces la pregunta por la discriminación al interior de la discriminación global, más amplia: cómo se dan las dinámicas de distribución de la contaminación y las potenciales enfermedades en el marco de las diversas jurisdicciones en la zona de la Ciudad de Buenos Aires y el conurbano, específicamente los partidos limítrofes con la ciudad.97 Y finalmente, cómo esta distribución incide directamente en la percepción y propia experiencia de los que allí residen. El trabajo comenzó en el marco del Proyecto UBACyT A 804 (subsidio de la Universidad de Buenos Aires), dirigido por la Arq. María Adela Igarzábal de Nistal y Co-dirigido por el Dr. Alejandro Cittadino. 97 Esta vinculación es fundamental dado que la cercanía a la ciudad determina tanto la conveniencia y menor costo de traslado de los residuos de la ciudad a la periferia, como el acceso facilitado de los trabajadores de la basura que residen en los asentamientos a la ciudad, centro de los materiales a recuperar. 96

250

Basurales y discriminación. Cuerpos y Justicia Ambiental

Contextualización.

Gestión de Basurales en la ciudad y el conurbano El contexto histórico de Argentina, y particularmente del Área Metropolitana de Buenos Aires (AMBA98), muestra una falta de adecuación de la planificación urbana a las necesidades sociales. Particularmente, en la segunda mitad del siglo XX se ha producido una urbanización de crecimiento exponencial con superposiciones de usos del suelo (industrial, residencial, urbano y rural), que no ha encontrado correspondencia con el aumento de infraestructura. En la década del noventa, la preeminencia del criterio de la renta urbana junto con la desregulación de los mercados internos, la privatización de servicios públicos y la quita de subsidios estatales de fácil acceso a la vivienda produjo por un lado, la ampliación de las zonas suburbanas en la forma de “Barrios Privados”99 para quienes pudieran costearlo (en consonancia con la configuración de la ciudad pensada para el automóvil -en detrimento del transporte público mediante la construcción de autopistas en el último gobierno de facto); y por otro lado, una falta de planificación de los servicios urbanos para el crecimiento poblacional en la ciudad ligado a la desarticulación de economías regionales. En este tenor, Francesc Muñoz expresa: Buenos Aires, la ciudad y el espacio metropolitano, aparece hoy día como ciudad “cuarteada”; un espacio urbano en el que las fisuras físicas en la trama urbana y las fracturas sociales entre sus habitantes configuran una inalcanzable secuencia de espacios separados. Un espacio urbano rasgado y discontinuo, donde las líneas que dibujan esas brechas físicas y humanas, representan una nueva cartografía de lo urbano, común por otra parte al conjunto del país (2008: 131).

Referimos al AMBA dado que, como especificamos más adelante, la gestión de los residuos en Relleno Sanitario abarca dicha zona geográfica, a saber, la ciudad de Buenos Aires y 34 municipios del Conurbano. Ver www.ceamse.gov.ar 99 Nótese la contradicción en los términos. Hay una amplia bibliografía referente a ese tipo de urbanizaciones. 98

251

Victoria D’hers

Esta realidad es parte de la dinámica propia de un sistema de relaciones (entre otras, sociales) constituido por las formas y posibilidades de vivir la ciudad. Hablar de sistema implica un conjunto de relaciones complejas y entramadas, que se condicionan mutuamente. El sistema más amplio caracterizado como “la ciudad” contiene numerosos sistemas otros, subsistemas con lógicas diversas y contradictorias, particulares, indispensables para su funcionamiento. Así, el caso de los basurales a cielo abierto se ha constituido en problemática tanto para las consideraciones de la gestión de la basura como para la continua expansión de asentamientos humanos sobre esos suelos. Antes de continuar, definimos los sitios de disposición de residuos –SDR- junto con la Organización Mundial de la Salud, que considera SDR todo espacio donde se hayan almacenado residuos. El rasgo definitorio es la presencia de basura, que expresa dicha relación vital entre la Ciudad de Buenos Aires y la Provincia. Esto es de vital importancia, dado que abre dos nuevas consideraciones: en primer lugar, refiere a sitios “controlados” (Rellenos Sanitarios, por ejemplo), y no controlados. Además, a nivel temporal, esto implica considerar todo sitio que haya sido depositario de residuos, más allá de que luego hayan sido cubiertos con tierra, pasto, viviendas, etc. A menos que un sitio sea saneado, sometido a remediación en sentido biológico, se debe considerar como SDR. En los SDR no controlados, la contaminación puede ser múltiple dado que no se sabe qué se dispone o ha dispuesto allí. Esto se ve agravado en la zona sur de la ciudad, caracterizada por el funcionamiento actividades productivas, desde saladeros y curtiembres desde fines de siglo XIX hasta industrias en la actualidad. Es decir, sus consecuencias son inimaginables puesto que la concurrencia de diversos materiales y sus reacciones en el tiempo (como la combinación de diversos metales pesados -sinergia) puede llevar a consecuencias no conocidas para la salud, o la exposición prolongada puede producir efectos que no serán vistos en el mediano plazo. Por la forma de acumulación de dicha basura, la contaminación ambiental es “eminentemente incierta” (AUYERO, 2008). Así, su caracterización contextual, a nivel regional e histórico, reviste importancia. 252

Basurales y discriminación. Cuerpos y Justicia Ambiental

Entonces, a la hora de hablar de basura y su destino, el sistema pasa de ser “la ciudad” a la región, dado que muchos de los SDR generados en el AMBA se deben a la dinámica de disposición de residuos de la Ciudad de Buenos Aires en el conurbano como parte de una política de la gestión de residuos. En este sentido, actualmente ha tomado relevancia la consideración de centros metropolitanos a nivel de gestión de cuencas hídricas, pero esta intención aún es muy nueva para poder ver en funcionamiento políticas de largo plazo en este nivel geográfico. Lo esbozado aquí es parte de un temática compleja, en permanente cambio, y excedería los objetivos de esas páginas saldar su discusión, pero presentamos la importancia de comprender que en la constitución misma de los SDR se manifiesta quién merece los espacios (veáse Infra), y quién merece una ambiente sin la basura que genera, resultando en otros que deben soportar su presencia (tanto de la propia basura como de la del centro principal de consumo), e incluso se benefician de ella, redefiniéndola. Veamos en principio cómo se ha conformado la basura como problema, y específicamente el problema de los “basurales a cielo abierto”, dado que durante los últimos años la temática de la basura ha sido una de las principales preocupaciones de la gestión pública, hecho puesto en evidencia en la multiplicidad de discusiones y nuevas legislaciones, no siempre correspondidas con políticas concretas. Entre las cuestiones más destacadas de esta notoriedad podemos nombrar: • el aumento de asentamientos sobre terrenos que fueran depositarios de basura, como dijéramos; • la licitación para el servicio de recolección en la Ciudad de Buenos Aires que debía definirse el pasado febrero pero aún sigue sin solución. Este contrato es el más alto de la ciudad; • el incremento de trabajadores informales que viven de la recuperación y reventa de los desechos;100 Hay numerosos trabajos dedicados a esta temática. Interesa específicamente referir al grupo de Investigadores del CEA-UNC que trabajan en la línea de análisis de la Conflictividad y sus vinculaciones con estudios de cuerpos y emociones: “tanto la recuperación de residuos como de empresas, implican la reinserción al sistema capitalista de diferentes “des-hechos” –ya sean cuerpos, bienes o empresas– que emergen como problemáticos a partir de la crisis de 2001.” (AIMAR, et al.: 2008). 100

253

Victoria D’hers

• la sanción en noviembre de 2005, y reglamentación parcial en mayo de 2007, de la Ley 1854 de Gestión Integral de Residuos Sólidos Urbanos -conocida como Basura Cero-; la misma ley que en provincia de Buenos Aires fue sancionada en diciembre de 2006 como Ley 13.592, GIRSU: ambas apuntan a la reducción de los residuos desde su generación a su disposición final; • la saturación de algunos de los rellenos sanitarios que reciben la basura de la ciudad y de algunos municipios, y la negativa de los vecinos de diversos partidos frente a la posible utilización de terrenos cercanos para la apertura de nuevos rellenos (conocido como Efecto NIMBY, “Not in my backyard”, no en mi patio trasero); • la re-edición de la discusión de cambiar el pago a las empresas recolectoras que actualmente cobran por cuadra limpia, para volver al pago por tonelada recogida (contra la idea de reducción de la generación de RSU que dispone la citada ley). Al día de hoy, esto parecería ya superado…; y finalmente, • como referimos más arriba, la instancia con intenciones interjurisdiccionales de la Autoridad de la Cuenca Matanza-Riachuelo, ACUMAR, encargada del saneamiento de dicha cuenca a partir de un fallo de la Corte Suprema que establece plazos para realizar el diagnóstico y tomar medidas de remediación tanto referentes a los residuos generados como a los sitios ya contaminados, los “basurales”. Se creó además el Observatorio Nacional para la Gestión de Residuos Sólidos Urbanos, dependiente del gobierno nacional, con miras a articular acciones entre diferentes localidades apuntando a una gestión integral. En este marco, y a pesar de su aparente contrasentido dado que son el circuito informal, ilegal de los residuos, se ha dado una dinámica de gestión y puesta en agenda de los basurales como parte de las políticas aplicadas a gestionar la basura en general. Así, se deben tener en cuenta las relaciones entre la presencia de basurales y la gestión de los residuos a través de su disposición en rellenos sanitarios vigente en la actualidad, el rol dado a los recuperadores y cooperativas de trabajadores de reciclado –rol creciente en las definiciones de la gestión pero aún sin los recursos correspondientes a lo que recuperan en términos económicos. 254

Basurales y discriminación. Cuerpos y Justicia Ambiental

Pero antes de profundizar en el estado de la cuestión hoy, revisamos brevemente el desarrollo histórico de la problemática, para trazar líneas comunes en cuanto a la jerarquización de espacios y así, de los cuerpos que en ellos habitan, construyen, sueñan...

Discriminación e Injusticia ambiental. Historia de un destino Hablar de Justicia Ambiental refiere tanto a un movimiento social, como a un conjunto de estudios interdisciplinarios que se ocupan de estudiar los impactos ambientales diferenciales de la contaminación en las minorías -de clase, etnia, género. Como movimiento social nació en Estados Unidos en 1987 al sur de Chicago, en una comunidad afro-americana de bajos recursos donde resistieron al funcionamiento de un incinerador de residuos peligrosos encadenándose a vehículos en la ruta de los camiones que debían ingresar a la planta incineradora. Allí fue fundada la organización People for Community Recovery (Gente para la Recuperación Comunitaria) por Hazel Johnson. Según explica David Pellow: “Conocido indistintamente como racismo ambiental, desigualdad ambiental o injusticia ambiental, este fenómeno ha capturado gran atención por parte de académicos en años recientes.” (PELLOW, 2006: 17 [Traducción propia]). En esa línea el académico Robert Bullard pasó a ser su referente desde el establecimiento de los Principios de Justicia Ambiental en octubre de 1991 en Washington DC (ver http://www.ejrc.cau.edu/princej.html). En América Latina, Brasil es el país donde ha tenido importancia y desarrollo creciente: la Red de Justicia Ambiental fue fundada en 2001. En palabras de Henri Acselrad: Para designar este fenómeno de imposición desproporcionada de riesgos ambientales a las poblaciones dotadas de menos recursos financieros, políticos e informacionales, ha sido consagrado el término injusticia ambiental. Como contrapunto, se acuñó la noción de justicia ambiental para denominar una imagen futura de vida en la cual esta dimensión ambiental de injusticia social sea superada. Esa noción es utilizada, sobretodo, para 255

Victoria D’hers

constituir una nueva perspectiva de integrar las luchas ambientales y sociales (ACSELRAD, 2009: 9 [Traducción propia]).

Actualmente, la Justicia Ambiental es una categoría utilizada por la Agencia de Protección Ambiental de Estados Unidos (EPA, Environmental Protection Agency), que la define como: El tratamiento justo y la consideración significativa de toda persona sin importar raza, color, origen, nacionalidad, o ingresos con respecto al desarrollo, implementación y puesta en vigencia de leyes, regulaciones y políticas ambientales. Tratamiento Justo significa que ningún grupo de personas debería soportar una carga desproporcionada de daños y riesgos ambientales, incluyendo aquellos resultando de consecuencias ambientales negativas de operaciones comerciales, industriales, y gubernamentales o programas y políticas. Consideración Significativa implica que: 1) miembros de una comunidad potencialmente afectada tienen una oportunidad apropiada de participar en las decisiones sobre una actividad propuesta que va a afectar su ambiente y/o salud; 2) la contribución pública puede influenciar las decisiones regulatorias de la Agencia; 3) las preocupaciones de todos los participantes involucrados serán consideradas en los procesos de toma de decisiones; y 4) los decisores buscan y facilitan la incorporación de aquellos potencialmente afectados (EPA, noviembre de 2010 [Traducción propia]).

La EPA ha incluido en sus consideraciones que tanto las cargas como los beneficios sean distribuidos uniformemente. En Brasil, es definido como: […] el mecanismo por el cual sociedades desiguales, del punto de vista económico y social, destinan la mayor carga de los daños ambientales del desarrollo a las poblaciones de baja renta, a los grupos sociales discriminados, a los pueblos étnicos tradicionales, a los barrios obreros, a las poblaciones marginalizadas y vulnerables (www.justiciaambiental. org.br). 256

Basurales y discriminación. Cuerpos y Justicia Ambiental

Proponemos entonces en esa clave, realizar una breve revisión de la “problemática de la basura” en su desarrollo histórico para poder comprender más cabalmente los asentamientos pasivos de discriminación, y lentamente acercarnos a sus implicancias más profundas en cuanto a dinámicas de acostumbramiento, como parte de los mecanismos de soportabilidad social. Siguiendo los trabajos de Francisco Suárez, se puede ver cómo el problema ha sido tratado marginalmente a nivel del gobierno municipal de Buenos Aires. En un primer momento se la definió solo en un sentido estético para la ciudad (a pesar de la presencia de intelectuales que referían a la posibilidad de reutilizar materiales, cfr. SUÁREZ, 2004), a la vez que estaba siendo definida la idea misma de lo higiénico y la salubridad a nivel del gobierno nacional. Buenos Aires paradójicamente se identificó desde fines del siglo XIX como propicia a la enfermedad, frente a la incapacidad de detección del agente externo que generaba la “peste histórica” (SALESSI, 1995: 49). Ya en 1871 el Riachuelo, corriente por la que el Río Matanzas desemboca en el Río de la Plata fue utilizada para delimitar el sur de la ciudad a la vez que se la definía como una herida al sur. Así, comenzaría la estigmatización e identificación del sur con lo insalubre, lo caótico, lo otro.101 En ese espacio es donde se localizó oficialmente el primer basural municipal donde los residuos se quemaban al aire libre y se concentraban para la recuperación de materiales. En una etapa intermedia se depositaban en “huecos”, espacios intersticiales de la ciudad. Dados el creciente volumen de residuos y la consecuente –y notoria- contaminación del aire, se aplicaría la incineración, es decir quemas centralizadas y la utilización de lo resultante para la: […] habilitación de áreas anegadizas mediante el relleno con escombros y cenizas, y tuvo en algún momento una orientación social a través del empleo oficial de cirujas.102 Finalmente, con una decidida intención de habilitar nuevas áreas de suelo para usos urbanos, de suprimir el cirujeo, de aplicar un manejo regional de los residuos y de eliminar el hollín y los gases  101 102

La conceptualización de la basura como lo abyecto es tratada en un trabajo en prensa. En sentido de los cirujanos de los residuos.

257

Victoria D’hers

emanados de la incineración; surge el último método, conocido como relleno sanitario (SUÁREZ, 2004 [destacado propio]).

Esta técnica de ingeniería implica la compactación de los residuos, el enterramiento en espacios destinados a tal fin preparados para impedir el filtrado de lixiviados que podrían contaminar las napas subterráneas de agua y el suelo. Tienen cierta “vida útil”, un número determinado de años en el que pueden ser utilizados, pasados los cuales deben ser cerrados. Luego, se deben recubrir, y uno de los destinos posibles es el de espacios verdes. En términos generales, con la aplicación de esta tecnología en la Ciudad y Provincia de Buenos Aires a través de la creación de la CEAMSE (Coordinación Ecológica Área Metropolitana Sociedad del Estado, durante el gobierno de facto en 1978) y a pesar de sus intenciones de “manejo regional”, sin embargo: el número de basurales a cielo abierto no disminuyó sino al contrario (eliminando así el hollín de la incineración pero no los gases tóxicos de la quema en los basurales, altamente contaminante y más por el tipo de residuos de hoy en día); pocas áreas fueron “habilitadas para usos urbanos” como se suponía dado que no se realizaron nuevos rellenos cuando correspondía sino que se utilizaron los mismos hasta luego de su colapso. Además, tras las políticas de ajuste estructural, la desindustrialización y la precarización del trabajo a nivel regional, el referido cirujeo fue en aumento y formalización dada la creciente desocupación. Junto con el desempleo urbano se dio la “descampesinización” del ámbito rural (también a nivel regional, cfr. PALAU, 2009; TEUBAL, 2005), expulsando mano de obra, lo cual colaboró a la crisis habitacional actual y a la creciente ocupación de los citados espacios intersticiales, en numerosos casos ocupados ya por basura o rellenados al ritmo del asentamiento, cerca de las grandes urbes como Buenos Aires. El “caso del Riachuelo” resulta paradigmático en este sentido, y ha sido objeto de innumerables estudios tanto sociales como ambientales. Pero en este marco, resulta significativo por la velocidad de generación y crecimiento de los asentamientos en su ribera, característicamente contaminada. 258

Basurales y discriminación. Cuerpos y Justicia Ambiental

Así, se ve cómo frente al discurso oficial actual, el Estado abordó la problemática básicamente desde soluciones paliativas, y cuando aplicó políticas más abarcativas (más allá del acuerdo que se puede tener o no con ellas), no fueron aplicadas cabalmente ni sostenidas en el tiempo. Entonces, en este sentido se puede ver cómo la transferencia de costos ha operado en varios niveles. Por una parte, el manejo regional referido, cuando funcionó fue en el sentido de trasladar, sacar de la ciudad los efectos del consumo. Trazar la línea de aceptabilidad de la presencia de los residuos más allá del límite de la urbanidad. La ciudad, interesante e importante por la disponibilidad centralizada de una siempre creciente oferta de recursos, no puede ser a su vez su destino final. En el metabolismo social del capitalismo, lo generado en una urbe no puede ser parte de su paisaje, dado que esta evidencia pondría en cuestión (al menos mínimamente) la misma lógica de consumo y deshecho necesarias para el capital (al menos en la forma en que lo conocemos, que ya está mutando hacia una reconversión rentablemente “verde”). Lejos están estas dinámicas de los planteos expuestos anteriormente en los manuales de la EPA de consideraciones de la población local de la provincia. Consecuentemente, al estudiar la problemática de la basura, podemos marcar el recorrido que nos hay llevado a analizar asentamientos y villas, y a ver plasmadas las situaciones de injusticia ambiental, confirmando que la relación entre basurales y asentamientos no es casual. Abarcando los 17 partidos del sur de Buenos Aires se han detectado según el listado provisto por el mismo CEAMSE (2004) 91 basurales -65, 5% del total (ATLAS DE LA BASURA, 2008 [Ver Anexo]). Además, en la zona sur se encuentran 2 rellenos sanitarios (Villa Domínico –hoy cerrado para la disposición- y Ensenada), frente a 48 SDR de zona norte y oeste.103 La selección de SDR ocupados por población conllevó a estudiar “villas” y “asentamientos informales”, también referidos como “nuevos asentamientos urbanos o NAU”, dado que son territorios desplazados, Sin embargo, en este momento, en la zona norte está presente el relleno sanitario Norte II y III, actualmente el más grande del AMBA, ya que recibe el 80,8% de los residuos totales que generan 34 partidos por día, adheridos al CEAMSE. El análisis de este sitio ameritaría otro trabajo, sobretodo teniendo en cuenta las diversas condiciones socio-demográficas de la población lindante, y cómo este factor incide o no en la configuración de su relación con el Relleno. 103

259

Victoria D’hers

zonas no consideradas (aún) por la renta urbana formal, aunque sí por el mercado informal que se establece en su interior. En muchos casos son considerados como renta política, teniendo así una particular renta urbana. Este es el caso de terrenos privados, por ejemplo, en los que el dueño original no daba valor a la tierra por sus características (inundables, sin servicios públicos, etcétera), y al producirse la ocupación, dicho dueño se reapropia del terreno con mira a la negociación con los poderes del gobierno local que deben dar solución a la demanda de las familias. Entonces dicha negociación produce un nuevo valor de cambio dada la situación irregular en primer término. Vemos un solapamiento de pobreza y condiciones “irregulares” a nivel urbano, en el sentido expresado por el ya clásico texto de Oscar Oszlak Merecer la ciudad, que destaca la dinámica expulsiva de la Ciudad de Buenos Aires, con políticas de delimitación y expulsión de las llamadas villas de emergencia. Así, la población con menos recursos ve obturado su acceso a servicios públicos que definen al espacio urbano (ver Anexo). A esto se suma que su destino en la configuración espacial es aquél de las áreas inundables, desvalorizadas, desocupadas, los intersticios de la ciudad y sus alrededores. Este “destino” traza los posibles caminos a nivel de la configuración de oportunidades en cuanto a qué biografía será posible escribir, encarnar…

Ambiente y Teoría de los cuerpos. Movimientos y soportabilidad social Finalmente, abordamos de manera ilustrativa las dinámicas de dos SDR en estudio actualmente, en el municipio de Lomas de Zamora, y al sur de la ciudad de Buenos Aires. Estos casos nos permiten plantear el eje de todo lo hasta aquí expuesto: el acostumbramiento como una de las dinámicas de regulación de las sensaciones, parte de los mecanismos de soportabilidad social. ¿Cómo desnaturalizar estas experiencias y enmarcarlas en nociones como la de discriminación ambiental, cuando han sido profundamente internalizadas, ya no visibles? Así, brevemente definimos: 260

Basurales y discriminación. Cuerpos y Justicia Ambiental

Los dispositivos de regulación de las sensaciones consisten en procesos de selección, clasificación y elaboración de las percepciones socialmente determinadas y distribuidas. La regulación implica la tensión entre sentidos, percepción y sentimientos que organizan las especiales maneras de “apreciarse-en-el-mundo” que las clases y los sujetos poseen... Los mecanismos de soportabilidad social del sistema no actúan ni directa ni explícitamente como “intento de control”, ni “profundamente” como procesos de persuasión focal y puntual. Dichos mecanismos operan “casidesapercibidamente” en la porosidad de la costumbre, en los entramados del común sentido, en las construcciones de las sensaciones que parecen lo más “íntimo” y “único” que todo individuo posee en tanto agente social (SCRIBANO, 2009: 93-4). Entonces, teniendo en cuenta lo desplegado hasta aquí, vemos cómo en nuestro caso se dan dos fenómenos paralelos. Por una parte una creciente relevancia de movimientos ligados a demandas ambientales; y por otro, una profundización y eficacia en cuanto al funcionamiento del “siempre-así”, a la reproducción de esquemas de percepción que establecen prioridades según las posibilidades de su consecución. En primer lugar, podemos citar cómo en los últimos años se ha ido afirmando a nivel local la actividad de diversas organizaciones que toman las reivindicaciones ambientales como bandera para sus luchas y organización. Reunidos alrededor de problemáticas específicas y urgentes como las inundaciones crónicas y las subidas de las aguas servidas, han ido articulando su entendimiento con una mirada regional, planteando que las soluciones deben ser elaboradas desde una óptica integral. Un caso relevante aquí es el del Foro Hídrico de Lomas de Zamora,104 que lucha y realiza el seguimiento de la gestión de obras de saneamiento desde hace años. Cabe destacar que su actividad data de años, pero que actualmente se ve una repercusión mayor y una posibilidad de hacerse oír dadas las políticas referentes a la Cuenca Matanza Riachuelo que citáramos al comienzo. Nacidos en 1985 en torno a las inundaciones como La Interbarrial, se constituyen en el Foro Hídrico en el año 2000: “El problema reconocido como ambiental, deviene en algo importante ya que el medio ambiente es un problema relacionado con las condiciones de vida, y el mejoramiento o cambio de estas va a incorporar y reconocer el cambio del medio circundante.” (FERNÁNDEZ BOUZO et al., 2007). 104

261

Victoria D’hers

En este sentido, son muchas las organizaciones sociales, fundaciones, y ONGs que estructuran sus demandas en torno a dicho espacio (tanto geográfico como a nivel del imaginario social). Otro caso es el de la Asociación Vecinos de La Boca, oficialmente parte del Cuerpo Colegiado que debe monitorear las acciones de la ACUMAR.105 En sus palabras se ve la clara noción de las diferencias entre la ciudad de Buenos Aires y la Provincia, y la inacción estatal: En opinión de Alberti, el estudio epidemiológico es “otro de los grandes puntos flojos”. Un estudio independiente al que accedió la agrupación señala que la mortalidad infantil en las localidades adyacentes a la Cuenca Matanza-Riachuelo es el doble que en la Ciudad de Buenos Aires… “Del reordenamiento urbanístico tampoco se hizo nada, tampoco con los basurales. Hoy hay medio millón de personas que tiene que ser relocalizada de las villas. Es que la total ausencia del Estado dejó crecer anárquicamente las barriadas más pobres”. Según datos que manejan los vecinos, el 50% de la población que vive alrededor de la cuenca no tiene cloacas y el 30% no tiene agua potable (INFOBAE, 2010).

Se instala la noción de que hay que relocalizar, que hay un problema ambiental a enfrentar y que es el Estado el responsable de la falta de planificación. En esta línea, los integrantes del Foro Hídrico plantean: Los funcionarios se comprometieron frente a los vecinos a hacer obras en el Arroyo Canadá, pero pasaron siete meses y no empezaron. Pedimos una política seria sobre los residuos sólidos urbanos que también son contaminantes. Pareciera que los basurales clandestinos y la no recolección de residuos en los barrios carenciados son una política de Estado. A la empresa Covelia le pagan varias veces por el mismo trabajo. No recogen los desechos sólidos urbanos que llegan a los arroyos y luego al Riachuelo… En todo esto hay una complicidad del gobierno nacional, “El 8 de julio de 2008, la Corte Suprema condenó al Estado Nacional, a la Provincia de Buenos Aires y a la Ciudad a sanear el Riachuelo. Ayer se cumplieron dos años de este fallo histórico, pero según las ONG del cuerpo colegiado que supervisa su cumplimiento, los trabajos de recuperación de la cuenca avanzaron poco.” Diario Clarín, 9-7-10. 105

262

Basurales y discriminación. Cuerpos y Justicia Ambiental

provincial y municipal. Desde el Foro Hídrico estamos luchando para acceder a todos los bienes que deberíamos tener. La vida digna es un derecho humano. Siempre nos prometen que lo van a arreglar pero no pasa nada. Mis tres hijos tienen problemas respiratorios y yo tengo problemas en la piel, me salen manchas blancas en el cuerpo (VOCES EN EL FÉNIX, 2010).

Hasta aquí vemos una posible línea de esperanza en cuanto a las demandas y su articulación respecto de lo ambiental, claridad en las ineficacias políticas, e incluso sus estrechas vinculaciones con los cuerpos de quienes luchan cotidianamente por su lugar. Ahora bien, resulta significativa la diferencia entre lo expresado hasta aquí, en el marco de organizaciones sociales de cierta antigüedad, con nociones de derechos y obligaciones estatales, y lo que ocurre en asentamientos de más reciente formación como los analizados. En la provincia, vemos cómo la experiencia de vida en el basural toma otro carácter, a la luz de las luchas que se pasaron para poder establecerse allí. En los asentamientos más nuevos, podemos referir a lugares construidos de forma reticular. En los asentamientos y villas la ocupación está ligada a relaciones de parentesco, de personas que se acercan por tener familiares o conocidos y comparten un espacio, para luego (específicamente en los asentamientos, donde hay espacios aún disponibles) acceder a un terreno percibido como propio. La tenencia suele ser irregular, pero son terrenos por los que se abonan diversas sumas de dinero. Esto contrasta fuertemente con la dinámica del mercado formal en la que se suele llegar a una vivienda por condiciones buscadas y costos, antes que relaciones sociales previas. En este marco, cobran importancia las nacionalidades, y vemos cómo se da una fuerte presencia de poblaciones de países limítrofes, como Paraguay y Bolivia. Esto genera fuertes grietas al interior de los asentamientos, en los que se produce una fuerte discriminación según el lugar de nacimiento. La posibilidad de vivir allí está muy ligada a tener conocidos que hayan estado previamente, y luego a poner el cuerpo, al hecho mismo de estar físicamente en el terreno, apuntalar para delimitar el lote, y “aguantar el desalojo” en palabras de una entrevistada. Se construye fuertemente la 263

Victoria D’hers

pertenencia por haber aguantado, por haber resistido los desalojos luego de la toma del lugar. Frente a esto, hablar de contaminación genera muchas veces incluso, risas. “Nosotros estamos contaminados”, dirán al hablar del terreno. Esta posibilidad se desdibuja frente a la sensación de haber estado desde el inicio, haber “agarrado” el terreno cuando estaba la posibilidad y a partir de allí haber aguantado los miedos, los palos y la fuerza de policía operando no siempre a la luz del día. Por otro lado, incluso en la ciudad de Buenos Aires vemos cómo opera el desplazamiento de la problemática, frente a otros temas instalados públicamente, como la inseguridad y las drogas. A pesar de que el Riachuelo está en la agenda pública, mediática, y en los planes desplegados por el gobierno de la ciudad (como Guardianes del Riachuelo, que empleó a gente del lugar para realizar recolección y limpieza, cuando está en discusión la licitación de la recolección en las Villas, y así, su lenta inclusión –o no- en la trama urbana). Una entrevistada de una villa de la ciudad expresaba que sus mayores preocupaciones eran las del consumo de paco (pasta base de cocaína), y de mantener a sus hijos lejos de eso. La preocupación de vivir a la orilla del Riachuelo aparecía a la hora de referir a la posibilidad de que la quisiera sacar de su casa, donde vive desde que llegó del interior del país hace casi dos décadas. Aquí vemos más claridad en cuanto a los peligros de habitar allí, en la que los médicos claramente aducen que las enfermedades de los hijos se deben a causas ambientales. Esto configura una noción de peligrosidad del ambiente circundante, y a la vez opera el desplazamiento citado por las posibilidades de irse de allí. Contrariamente, en los asentamientos de la provincia, no hay siquiera salita (centro de salud) cercano al que recurrir.

Reflexiones finales. Creemos de vital importancia referir a la urgencia de la problemática ambiental, que genera nuevos asentamientos crónicamente expuestos a contaminación, y además, la apropiación del espacio por parte de la población que se niega a dejar sus hogares: historias, esfuerzos, proyectos… En este marco, es relevante la noción de discriminación ambiental, 264

Basurales y discriminación. Cuerpos y Justicia Ambiental

a nivel de quiénes son los que sufren dicha exposición. Claramente, la contaminación está lejos de ser democrática, como plantea Acselrad. A su vez, al interior de los asentamientos se replica la dinámica discriminatoria sobre las minorías, sumado a la discriminación ambiental propia de habitar allí. Se ve una injusticia ambiental no solo a nivel de políticas y localización industrial y de los desechos, la falta de consultas con quienes se verán afectados por dichas localizaciones, sino de qué espacios, qué suelos, qué oportunidades quedan… Antes que “residuos espaciales”, extraños a la dinámica urbana esperable, estos espacios constituyen la marca de la ciudad actual. Pero estos fenómenos de discriminación e injusticia ambiental, deben ser puestos en consideración junto con las dinámicas que, silenciada pero constantemente auspician el desplazamiento de “lo ambiental” como problema, gracias a la propia experiencia y percepción de las luchas por construir el propio lugar. Así, se configuran las sensibilidades y se corporifica el recuerdo y la huella del desalojo, por ejemplo, resultando en reafirmar el logro de haber aguantado. Si fue el hecho de poner el cuerpo el que inauguró el movimiento de Justicia Ambiental, debemos ahora reconsiderarlo junto con las dinámicas de soportabilidad social que configuran los umbrales de lo “digno” y lo justo. Este espacio visto como rasgado y discontinuo, tiene sin embargo profundas continuidades con la dinámica global de distribución desigual de la contaminación, con dinámicas de discriminación que son replicadas al interior de nuestros países. Hablando de injusticia ambiental, debemos pensar tanto en la transferencia de costos a nivel internacional e interprovincial, como en la configuración de espacios intersticiales que son reapropiados por la población local. Esto es encarnado en otra discriminación e injusticia profunda: la convivencia con la contaminación no vivida como urgente problemática.

265

Victoria D’hers

Bibliografía citada AIMAR, L. P. Lisdero, G. Vergara, G. Magallanes (2008). “Transformaciones de las sensaciones en la estructuración social”. En: Boletín Onteaikén N° 6, CEA-UNC, Córdoba. ACSELRAD, Henri (2009). O que é a Justiça Ambiental. Río de Janeiro, Garamond. AUYERO, J.; SWISTUN, D. (2008). Inflamable. Buenos, Aires Paidós. CRAVINO, María Cristina (2008). “Magnitud y crecimiento de las villas y asentamientos en el Área Metropolitana de Buenos Aires en los últimos 25 años.” Disponible en http://www.redulacav.net/material2008.php (acceso 26 de febrero de 2010). Environmental Protection Agency, EEUU (2010). “Guidance on Considering Environmental Justice During the Development of an Action.” Disponible en http://www.epa.g ov/environmentaljustice/resources/policy/ considering-ej-in-rulemaking-guide-07-2010.pdf , acceso 12 de agosto de 2010. FERNÁNDEZ BOUZO, M. S.; AIZCORBE, M.; GIL. A.; RICCO R. (2007). “Las organizaciones territoriales en el sur del Área Metropolitana de Buenos Aires: construcción social y política del conflicto ambiental.” Ponencia presentada en Jornadas de Jóvenes Investigadores IIGG, FSOC, UBA, 19-21 Septiembre. FORO HÍDRICO DE LOMAS DE ZAMORA. “Vecinos organizados en defensa de la vida digna. Agua maldita”. Entrevista realizada por Tomás Eliaschev a Alejandro Ríos Fernández, Alejandro Almeyda y Teodoro “Cacho” Mondragón. En Voces en el Fénix. Disponible on-line en http:// www.vocesenelfenix.com/forohidrico.html, acceso 12 de agosto de 2010.

266

Basurales y discriminación. Cuerpos y Justicia Ambiental

HARVEY, David (2009). Justice, Nature & the Geography of Difference. London, Blackwell Publishing. MUÑOZ, Francesc (2008). Urbanalización. Paisajes comunes, lugares globales. Barcelona, Editorial GG. PELLOW, David (2006). “Social inequalities and environmental conflicto”. Horizontes Antropológicos. N° 25: 15-29. OSZLAK, Oscar (1991). Merecer la ciudad. Humanitas. Buenos Aires, Cedes. SALESSI, Jorge (1995). Médicos, maleantes y maricas. Higiene, criminología y homosexualidad en la construcción de la nación Argentina (Buenos Aires: 18711914). Buenos Aires, Ed. Beatriz Viterbo. SCRIBANO, Adrián (2009). “Capitalismo, cuerpo, sensaciones y conocimiento: desafíos de una Latinoamérica interrogada.” En: Sociedad, cultura y cambio en América Latina. Lima, Universidad Ricardo Palma. SUÁREZ, Francisco (2004). “Historia de la gestión de los residuos sólidos en la Región Metropolitana de Buenos Aires.” Buenos Aires, Fundación Metropolitana. --------------- (1998). Que las recojan y arrojen fuera de la ciudad. Historia de la gestión de los residuos sólidos (las basuras) en Buenos Aires. Documento de trabajo Nº 8, UNGS, San Miguel. TEUBAL, Miguel, Diego Domínguez, Pablo Sabatino. “Transformaciones agrarias en la Argentina: agricultura industrial y sistema agroalimentario.” En: Giarraca y Teubal -comp.- (2005). El campo argentino en la encrucijada. Estrategias y resistencias sociales, ecos en la ciudad. Buenos Aires, Alianza Ed.. ZAMORANO, Julieta; OCELLO, Natalia (2008). Atlas de la Basura. Área Metropolitana de Buenos Aires (AMBA). Centro de Información Metropolitana, Facultad de Arquitectura, Diseño y Urbanismo. Buenos Aires, UBA.

267

Victoria D’hers

Notas periodísticas - “Los que llevan las de perder padecen violencias constantes.” Entrevista al antropólogo Phillipe Bourgois por Facundo García, Diario Página/12, 13 de agosto de 2010. http://www.pagina12.com.ar/diario/suplementos/ espectaculos/17-18928-2010-08-13.html#formu_mail - “Críticas al poco avance del saneamiento del Riachuelo.” Por Nora Sánchez, Diario Clarín, 9 de julio de 2010. http://www.clarin.com/ciudades/ capital_federal/Criticas-avance-saneamiento-Riachuelo_0_295170611. html - “Vecinos de La Boca denunciaron una “falta total de voluntad política” para sanear la cuenca del Riachuelo”. Por Diego Gueler, Diario Infobae. com, 7 de abril de 2010. Reproducido en Página web de Asociación Vecinos de la Boca: http://www.avelaboca.org.ar/sitio/index.php?id=288

268

Basurales y discriminación. Cuerpos y Justicia Ambiental

ANEXO A continuación incluimos algunas imágenes publicadas en el marco del Proyecto UBACyT A804 que pueden ilustrar las relaciones entre la presencia de SDR y la población en condiciones definidas como vulnerables: altos índices de NBI, falta de acceso a red de agua segura, falta de terminación en las construcciones, número de niños menores de tres años, entre otros. En primer lugar, en el siguiente gráfico y mapa se ve el solapamiento de las villas de emergencia el AMBA y los basurales a cielo abierto. Esto aumenta la vulnerabilidad a la presencia de contaminantes en los basurales, dada la precariedad de las construcciones, y las condiciones socioeconómicas de la población.

Figura I. Presencia de Villas y SDR en el AMBA. Fuente: Atlas de la Basura, CIM-FADU, 2008. 269

Victoria D’hers

Claramente se ve la distribución espacial tanto de los SDR como de las villas hacia fuera de la ciudad, y con alta concentración en el sur. A continuación, ilustramos el grado de cobertura con agua de red, y la presencia de SDR, donde el 81% está en zona sin red de agua potable.

Figura II. Zona con acceso a agua de red y presencia de SDR, AMBA. Fuente: Atlas de la Basura, CIM-FADU, 2008.

Finalmente, se ve un solapamiento entre las zonas sin agua de red, y sin red cloacal. A nivel saneamiento, entonces, se ve que las mismas zonas sin agua, es decir que los vecinos sacarán agua de pozo, son las que no tienen cloacas, por lo que la contaminación del agua de consumo es más probable. Además, se suma la presencia probabilidad de contaminación de suelos por los SDR, por lo que la situación es de alta gravedad.

270

Basurales y discriminación. Cuerpos y Justicia Ambiental

Figura III. Zona con red cloacal y presencia de SDR, AMBA. Fuente: Atlas de la Basura, CIM-FADU, 2008.

Cabe destacar que la información aquí presentada ha sido elaborada con la base de datos del último CENSO poblacional del año 2001. Presumiblemente, hoy en día los datos sean más alarmantes en cuanto a villas, asentamientos precarios y población con NBI. Al día de hoy el Atlas de la Basura está siendo completado con nuevos SDR detectados por imágenes satelitales, pero no se cuenta aún con información censal confiable.-

271

Corpos en Concierto: diferencias, desigualdades y disconformidades

TRAMAS CORPORALES, PERCEPCIONES Y EMOCIONES EN LAS MUJERES RECUPERADORAS DE RESIDUOS DE CÓRDOBA (Argentina) Gabriela del Valle Vergara

Introducción106 La ciudad del colono es una ciudad dura, toda de piedra y hierro. Es una ciudad iluminada, asfaltada, donde los cubos de basura están siempre llenos de restos desconocidos, nunca vistos, ni siquiera soñados (Fanon, Los condenados de la tierra)

La ‘ciudad del colono’ en palabras de Frantz Fanon es una descripción de muchas ciudades latinoamericanas107 que desde hace décadas ofrecen desde sus ‘cubos de basura’ la oportunidad para que cartoneros, carreros, cirujas, botelleros, clasificadores, catadores, pepenadores, entre otros, encuentren restos de comida, ropa usada o materiales desechados para introducirlos en el circuito del reciclado. Parte de los desarrollos que se presentan en este artículo forman parte de la Tesis de Maestría en Ciencias Sociales de la Universidad Nacional de Córdoba, titulada “Percepciones del trabajo doméstico y extra-doméstico de las mujeres recuperadoras de residuos de las ciudades de Córdoba y San Francisco”. Año 2010. 107 En Sao Paulo, la primera cooperativa de catadores “Coopamare” se creó en 1989, y al año siguiente surgió una primera asociación que ocho años después se denominaría “Coorpel”. Véase De Lucca Reis, Costa, Daniel (2007). En Bogotá, si bien el fenómeno se observa desde hace varias décadas, algunos estudios daban cuenta de la presencia de unos 6.700 a 8.000 recuperadores en 1993 en la ciudad, cifra que habría ascendido a 13.000 en 1999. Véase Parra, Federico (2007). En Montevideo, se ha estimado el crecimiento de clasificadores de 3.500 en 1990, a 7.200 para 2003, tendencia que seguiría en aumento. Véase Fernández, Lucía (2007). 106

273

Gabriela del Valle Vergara

Argentina no ha sido una excepción al respecto, pero sobretodo desde la crisis de 2001108, la actividad se instaló como una de las formas de obtener medios de subsistencia para muchos hogares. Esta reciente notoriedad no debería solapar las condiciones estructurales que el capitalismo ha generado desde finales de la década del ‘70, en una sociedad disciplinada primero por la dictadura militar y luego por la hiperinflación de 1989 (GAMBINA, 2001) que facilitó la aplicación de un modelo postsustitutivo (ASPIAZU et al., 2001) junto con el denominado ‘Ajuste Estructural’ (CALCAGNO, 2001; NEFFA, 2003). Este capitalismo periférico, que según Scribano (2007b) se caracteriza por extraer energías (de los recursos naturales y de las personas), disponer de mecanismos para regular las sensaciones, la soportabilidad social y, operar como un aparato militar represivo constituye el telón de fondo que ha hecho tras el deterioro del mercado laboral y el incremento de relaciones cada vez más informales, inestables y precarias, que ‘la calle’ se convierta en el nuevo ámbito que brinda oportunidades a los viejos y nuevos expulsados (GORBÁN, 2004; VERGARA, 2006). Esto es claro si se repara en el hecho de que a partir de las consecuencias inadvertidas de la desindustrialización en los barrios que otrora albergaban fábricas de todo tipo en Buenos Aires, hoy se hallan zonas empobrecidas, cuya principal actividad para la subsistencia es la recuperación de residuos (GORBÁN, 2006). Las calles se convierten así en la nueva esperanza en donde se busca irremediablemente alguna ocupación, algún ‘rebusque’109. La recuperación de residuos no ha sido ajena tampoco a otro proceso del mercado laboral: la feminización o la incorporación creciente de las mujeres110. La modificación en el valor de la moneda tras la salida de la Convertibilidad cambiaria que equiparaba un dólar con un peso argentino, condujo a algunos sectores de la industria a dejar de importar ciertos productos y comenzar a buscar en el mercado interno –o bien aumentar la provisión de- materiales reciclables. 109 Esta expresión coloquial fue utilizada por algunas entrevistadas, como una forma de indicar modos alternativos aunque precarios de generar ingresos para el hogar. 110 Al respecto, algunos estudios han dado cuenta de una creciente participación femenina a medida que las economías crecen desde las etapas agrícolas, pasando por la expansión industrial y finalmente, la diversificación de los servicios. El recorrido de una curva en forma de “U”, indicaba en series estadísticas que en economías tradicionales o de autoabastecimiento la mujer tenía una elevada participación en la producción de bienes y servicios, pues era la familia la unidad donde se 108

274

Tramas corporales, percepciones y emociones en las mujeres recuperadoras [...] Córdoba (Argentina)

El último cuarto del siglo XX implicó un cambio estructural en las relaciones laborales que explica –junto con transformaciones culturales en los estereotipos y costumbres- el incremento en la participación femenina. En Argentina, en la década del ‘80 se observó una presencia importante de las mujeres que comienzan a aportar con ingresos remunerados a un hogar cuyo proveedor se hallaba desempleado o subocupado; en otros casos llegan a convertirse en el principal sostén del hogar (GELDSTEIN, 1994). En los ‘90, esta tendencia continuó sostenida por el creciente desempleo de los jefes de hogar o la merma en sus salarios (HALPERIN WEISBORD et al., 2009), en el marco de la apertura comercial, la paridad cambiaria, las crecientes importaciones y el consecuente cierre de fábricas pequeñas y medianas. En este escenario las mujeres siguieron ofreciendo realizaban concomitantemente las actividades domésticas y económicas. En un segundo momento, el aumento de la productividad en las industrias y las migraciones rurales a las ciudades, resultó en un espacio acotado para el trabajo artesanal de las mujeres, por lo que su presencia se reduce. Siguiendo una línea ascendente del crecimiento económico de las sociedades, en una tercera etapa en que aumenta aún más la productividad industrial y agrícola, se diversifica y complejiza el sector servicios, que se torna un demandante de mano de obra femenina (SINHA, 1965, citado en RECHINI DE LATTES; WAINERMAN, 1977). Si esta tendencia general se desagrega por ramas o sectores se encuentra que el empleo femenino en actividades modernas no agrícolas se incrementa a medida que se produce el crecimiento económico. Por el contrario, el empleo en actividades menos calificadas no agrícolas puede disminuir en las etapas tempranas y aumentar en las últimas del crecimiento económico. A su vez, dentro de las actividades modernas que congregan a las mujeres, hay que destacar los grupos de profesionales, administrativas, empleadas de oficina, y asalariadas en comercio, pues es menor la participación en las ramas industriales debido a la persistencia de prejuicios y actitudes que limitarían su reclutamiento (BOSERUP, 1975 citado en RECHINI DE LATTES; WAINERMAN, 1977). En Argentina la curva en forma de “U” se identifica con un descenso –parte izquierda de la curva- desde fines de siglo XIX hasta mediados del XX –entre 1947 y 1960- para luego comenzar crecer a partir de 1970 –parte derechay seguir esta tendencia de aumento. Véase Rechini de Lattes y Wainerman (1977). En contra de estas evidencias estadísticas, la historiografía del trabajo da cuenta de la temprana inserción de las mujeres en la industria textil, alimenticia, de cigarros, como así también en sectores de servicios como la telefonía, la administración, la docencia y la enfermería, desde finales del siglo XIX, hasta 1950, asumiendo en muchos casos que la gran industria capitalista requería mano de obra barata para poder consolidar su expansión y que esto era posible empleando a mujeres y niños (PASCUCCI, 2007), tal como Marx lo describe en el tomo 1 de “El Capital”. Estas investigaciones discuten la vigencia del modelo varón proveedor, pues muestran que tempranamente las mujeres se incorporaron –no sin dificultades- a trabajar fuera de sus hogares a cambio de salarios en diferentes ámbitos laborales. Véase Lobato (2004, 2007).

275

Gabriela del Valle Vergara

su fuerza de trabajo aunque ésta no logró ser totalmente absorbida, lo cual se observa en el hecho de que en años de crecimiento económico como 1993-1995, la tasa de desocupación femenina llegó a los dos dígitos, superando a la masculina (CORTÉS, 2003). Esta variable indica una masiva disposición de las mujeres para el trabajo extradoméstico. La feminización del trabajo se inscribió también en relaciones precarias, en el marco de circuitos espiralados de empleos informales, escasos ingresos, desempleo111 y, finalmente períodos sin ingresos. En estos contextos, las trayectorias laborales trazan unas gramáticas que se vuelven ‘espirales de precariedad’ (PAUGMAN, 1995 citado en BAYÓN; SARAVÍ, 2007: 80), que permiten la emergencia de una feminización de la pobreza (JELIN, 2006), puesto que las mujeres encuentran un mayor número de obstáculos que los hombres para mejorar sus condiciones de vida. Esto deriva del hecho de que las relaciones de género poseen un aspecto dual, es decir que tienen implicancias –en términos de injusticias- tanto al nivel de la distribución socioeconómica, como de aquellos mecanismos simbólicos y culturales (FRASER, 1996) que generan segregaciones horizontales y verticales en el mercado de trabajo (ARRIAGADA, 2007). La feminización del trabajo junto con la feminización de la pobreza nos permite comprender que en muchos casos, la incorporación de las mujeres se dio principalmente por factores de privación en lugar de elección (EGUÍA; PIOVANI; SALVIA, 2007), en el marco de ‘estrategias familiares’ para mantener los ingresos del hogar, cuando el mercado laboral sólo ofrecía contracción, precarización de las relaciones de trabajo y caída de los salarios (HALPERIN WEISBORD et al., 2009). Es posible establecer cuatro tipologías de inserción laboral femenina que van desde el servicio doméstico (con bajos niveles educativos, baja protección laboral, e inestabilidad), el empleo en servicios públicos (principalmente en los ámbitos de docencia, salud, seguridad social que se caracterizan por un nivel educativo terciario o universitario, protección laboral, estabilidad), en tercer lugar se identifica el empleo en el sector privado de baja calificación (como en comercios, o servicios personales, con secundario completo, inestabilidad y desprotección), y finalmente, “un Nos referimos al “low-pay-no pay cicle” (STEWART, 1999 citado en BAYÓN; SARAVÍ, 2007: 66). 111

276

Tramas corporales, percepciones y emociones en las mujeres recuperadoras [...] Córdoba (Argentina)

sector de asalariadas de servicios privados en puestos de alta calificación (educación universitaria completa, inserción protegida y regular, empleo procíclico)” (CORTÉS, 2003: 100). Considerando estas distinciones puede advertirse que desde 1990 el aumento en la tasa de actividad femenina no se tradujo en un crecimiento proporcional en sus niveles de ocupación, ni en puestos calificados, generando de este modo un incremento en el desempleo y la subocupación de las mujeres, en lugar una efectiva inserción (HALPERIN WEISBORD et al., 2009)112. En el escenario posterior a la crisis 2001-2002, cuando se multiplicó la cantidad de personas dedicadas a la recuperación de residuos, este fenómeno se mantuvo, dado que el mercado de trabajo ofreció mayores oportunidades a los varones, cuyas tasas de empleo crecieron el doble que las de las mujeres (HALPERIN WEISBORD et al., 2009). Por ello si se consideran las diferencias intragénero según ingresos o clases sociales se comprende que hay obstáculos mayores para las mujeres pobres. Uno de ellos lo constituye el conflicto de la doble jornada, pues en el caso de las mujeres que pertenecen a hogares pobres “predomina entre ellas edades y etapas del ciclo de vida donde con mayor intensidad se presenta el núcleo familiar como demandante de trabajo doméstico” (MONTOYA, 1993: 215), principalmente por la cantidad de hijos menores de edad. Esta situación se ve agravada por los bajos niveles educativos que poseen en general, lo cual dificulta una inserción laboral redituable, estable y con beneficios sociales, por lo que el trabajo por horas constituye para este grupo una solución a medias, pues no se logran generar los ingresos suficientes (MONTOYA, 1993). En cambio, en los hogares no-pobres se encuentra una mayor cantidad de jefas sin hijos, o con pocos, pero que pueden acceder al pago de guarderías, niñeras, servicio doméstico, entre otros (JELIN, 2006). Las mujeres recuperadoras de residuos constituyen un fragmento del universo articulado por el trabajo, la pobreza y el género y lo expuesto hasta aquí nos permite contextualizar su emergencia y permanencia -solas, con sus hijos, con sus parejas- en la actividad. En las páginas que siguen Los autores, en el cuadro Nº7 indican que en 2007 en el país, la tasa de feminidad en puestos de calificación profesional fue del 41,56%, en técnicos del 47,33%, en operativos del 32,22% y, en no calificados del 57,41%. Véase Halperin Weisbord et al. (2009: 72). 112

277

Gabriela del Valle Vergara

presentamos un análisis de sus experiencias de trabajo extradomésticas, basado en una perspectiva de la Sociología de los cuerpos y las emociones. Para ello, recurrimos en primer lugar a la noción de tramas corporales (VERGARA, 2010) que pueden entenderse como el conjunto de relaciones entre las diferentes dimensiones de la corporeidad, tal como veremos seguidamente a través de un breve recorrido teórico y de fragmentos de entrevistas en profundidad113. En el segundo apartado postulamos el concepto de percepciones en tanto esquemas de clasificación, apreciación y anticipación (VERGARA, 2010), basados en los desarrollos de Pierre Bourdieu y Anthony Giddens; percepciones que se ponen de manifiesto en las relaciones cotidianas y en el trabajo de las mujeres recuperadoras. En un tercer momento, discutimos el lugar de las emociones –la bronca, el miedo y la vergüenza- dentro de las vinculaciones entre tramas corporales y percepciones, mostrando cómo se hacen presentes en la ocupación de recuperar residuos. Finalmente se propone que el enfoque desarrollado permite realizar estudios de género114 en términos sociológicos recuperando la condición corporal como premisa y supuesto de la existencia y la acción social. De este modo se toma distancia de algunas perspectivas feministas que soslayan o rechazan al cuerpo por considerarlo solamente desde una perspectiva biologicista.

1. Tramas corporales: una propuesta para complejizar la visión del cuerpo

El cuerpo es un componente central de los actores que participan en cualquier relación social. Sin cuerpos no hay acciones sociales. Sin cuerpos no hay sociedad. Este constituye un supuesto ontológico y epistemológico de partida. La corporeidad de este modo, se asume como propiedad constitutiva de los sujetos, de tal modo que “[L]la existencia Las entrevistas en profundidad fueron realizadas a mujeres recuperadoras de residuos de las ciudades de Córdoba –Villa Urquiza- y San Francisco, ciudad del interior de la provincia de Córdoba, durante 2008. 114 Utilizamos esta expresión con cierto grado de amplitud, pues correspondería decir que son estudios con, de o sobre las mujeres. 113

278

Tramas corporales, percepciones y emociones en las mujeres recuperadoras [...] Córdoba (Argentina)

es, en primer término, corporal” (LE BRETON, 2002: 7). Definir a los actores sociales no desde su identidad, ni sus representaciones sino en cambio, desde su condición corporal implica otorgar materialidad a las prácticas, una ubicación espacio-temporal en el marco de la sociedad capitalista, junto a la certeza de que no es sino mediante el cuerpo, que se vive el mundo. Ahora bien ¿qué entendemos por condición corporal? ¿cómo definimos al cuerpo? En lo que sigue presentamos un breve repaso de los aportes realizados por Karl Marx, Norbert Elías, Pierre Bourdieu y Anthony Giddens que nos conducirán, junto con las dimensiones propuestas por Scribano (2007a, 2007b) a formular la noción de tramas corporales. Karl Marx en los Manuscritos Económicos y Filosóficos de 1844 expresa que la corporeidad es la que permite apropiarse del mundo a través del trabajo –que supone gasto de fuerza física humana- y por la cual el hombre puede gozar. La condición humana entonces puede ser entendida como “… un ser corpóreo, dotado de fuerzas naturales, vital, real, sensorial, objetivo significa que tiene objetos reales, sensoriales como objeto de su ser, de su expresión vital o que solo puede expresar su vida en objetos reales, sensoriales” (MARX, 2004: 198). Sin embargo en el capitalismo, a partir de las formas que adquieren las relaciones sociales de producción que lo caracterizan, tanto los cuerpos como los objetos se equiparan y vuelven equivalentes con el dinero, en tanto mercancías, dado que los primeros –aquellos que no poseen los medios de producción- deben vender lo único que tienen: su fuerza de trabajo. Si en cuanto ser corporal posee las capacidades necesarias para trabajar, sólo en función de esto último, es que se puede reproducir como sujeto físico (MARX, 2004). A partir de los informes que Marx cita en el tomo 1 de “El Capital” sobre las condiciones laborales en Inglaterra, el trabajo infantil, el sistema de relevos durante 24 horas, los lugares encerrados, la imposibilidad de descanso y alimentación mínimas, las enfermedades, muertes, como así también el deterioro intelectual en los niños, se advierte que el capitalismo se reproduce a partir de la apropiación desigual de energías corporales. 279

Gabriela del Valle Vergara

En estas circunstancias el dinero adquiere un carácter relevante entre el cuerpo, el trabajo y las necesidades del hombre, dado que en cuanto se torna el equivalente de todas las mercancías –incluida la fuerza de trabajo, esto es, la condición corporal humana-, cualquier relación con un objeto que se desee adquirir, debe estar mediada por el dinero. La diversidad y multiplicidad para el disfrute son opacadas por el dinero, que se coloca como el objeto por sobre el resto, que puede reemplazar a todos los demás y que posee la capacidad de “apropiarse de todos los objetos” (MARX, 2004: 179). Esto implica que en el capitalismo el cuerpo se vuelve el lugar de la conflictividad (SCRIBANO, 2007a), de la apropiación diferencial del mundo, de la desigualdad estructural, pues los cuerpos en este sistema de estructuración social se inscriben en una dinámica de extracción de energías ‘naturales’ y ‘sociales’ (SCRIBANO, 2005; 2007b), es decir, de energías tanto de sujetos dispuestos en el trabajo, como de objetos –como los residuos- que se re-incluyen en los circuitos de la producción a través del reciclaje. Esto nos permite afirmar que en el marco de la sociedad capitalista, el estudio de la corporeidad se vincula con los procesos de mercantilización y cosificación de lo humano, lo cual en nuestro caso implica que las mujeres recuperadoras de residuos se convierten en objetos desechados por la sociedad, que deben re-hacerse como sea posible para estar dispuestas a recolectar residuos, en un circuito marcadamente desigual, donde los últimos ingresan finalmente al proceso de producción de la economía formal, pero las primeras siguen quedando en los márgenes de las calles, en la periferia de la expulsión. Norbert Elías, al analizar el desenvolvimiento del proceso de la civilización, identifica los cambios que se dan tanto en los gestos y comportamientos cotidianos -es decir una dimensión exterior o visible del cuerpo-, como en la interioridad donde van creciendo paulatinamente las autocoacciones. ‘De civilitate morum puerilium’115, la obra de Erasmo de Rótterdam, cuyo tema central es el decoro externo del cuerpo, se establece como libro 115

“De la urbanidad en las maneras de los niños”.

280

Tramas corporales, percepciones y emociones en las mujeres recuperadoras [...] Córdoba (Argentina)

de escuela para niños y adquiere una amplia y rápida difusión, hecho que lo constituye en un texto representativo de principios del siglo XVI, vuelto objeto de estudio para Elías, quien comenta: Erasmo habla, por ejemplo, de la apariencia de las personas y da consejos para que otros aprendan (…) los ojos muy abiertos son un signo de estupidez; la mirada fija es un símbolo de indolencia; la mirada muy penetrante indica propensión a la ira; los desvergonzados tienen una mirada muy viva y muy elocuente (…). La actitud corporal, los ademanes, la vestimenta, la expresión del gesto, todo ello es el comportamiento «externo» del que habla el escrito, expresión de la interioridad o de la totalidad del ser humano (ELÍAS, 1993: 101).

Sobre la base del cuerpo biológico, la sociedad va incorporando nuevas posturas y gestos, de tal modo que llegan a la interioridad del ser humano, y se expresan a través de la mirada, pues los modos de observar al mundo también se constituyen socialmente. Pero esto no fue solo una característica de la modernidad, sino que la vida urbana contemporánea, se sigue estructurando a partir de este sentido: “[L]la mirada, sentido de la distancia, de la representación, incluso de la vigilancia, es el vector esencial de la apropiación que el hombre realiza de su medio ambiente” (LE BRETON, 2008: 105). Para Elías, las transformaciones ‘interiores’ son la expresión de los cambios estructurales a nivel social, pues al intensificarse la división de funciones sociales, acentuándose la dependencia entre los sujetos, éstos debieron ajustar sus modos de acción en términos de mayor regularidad y estabilidad, conjugando autocoacciones conscientes, junto con otras que, inculcadas desde la infancia se tornan inconscientes y automáticas, con el fin de lograr un comportamiento considerado socialmente correcto. Es decir, que surge “también un aparato de autocontrol automático y ciego que, por medio de una barrera de miedos, trata de evitar las infracciones del comportamiento socialmente aceptado” (ELÍAS, 1993: 452). Esto se complementa con el desarrollo del monopolio de la violencia física en manos del Estado, por ello, un proceso a nivel subjetivo no es sino el reverso de los cambios que va generando el proceso de la civilización: 281

Gabriela del Valle Vergara

[E]el dominio de las emociones espontáneas, la contención de los afectos, la ampliación de la reflexión, son aspectos distintos del mismo tipo de comportamiento que se produce necesariamente al mismo tiempo que la monopolización de la violencia física y la ampliación de las secuencias de acción (ELÍAS, 1993: 454).

Las coacciones pacíficas –aquellas que no suponen el uso de la violencia física como la guerra-, toman distancia de las autocoacciones que se definen como “funciones de una previsión y reflexión permanentes” (ELÍAS, 1993: 460). Estas son parte de la educación de los niños en su etapa de socialización y, adquieren tanto la forma de un control consciente, como el aspecto de costumbres y un funcionamiento casi automático, inconsciente, que regula y controla, pero que también puede generar tensiones y desajustes. O los sujetos entran en sintonía con el entramado social traduciendo sus tensiones y deseos en costumbres aceptables, o los impulsos imposibles de contener devienen en un desajuste en la acción (ELÍAS, 1993). Es decir, que Elías nos permite considerar a la corporeidad desde una dimensión social que se hace gestos, miradas, composturas, pero también desde un nivel interno donde los sentimientos, emociones y pensamientos se van modelando al compás de la sociedad. Más adelante retomaremos los desarrollos de este pensador en relación a la vergüenza y el desagrado, como emociones sociales. Pierre Bourdieu considera que todo actor es capaz de comprender el mundo en tanto es abarcado, comprendido por ese mundo, en un modo material, a partir de su corporeidad (BOURDIEU, 1999). Mundo que es un espacio físico con posiciones objetivamente identificables, posiciones que, traducidas al espacio social, constituyen lugares distintivos, mutuamente excluyentes. En este espacio social, los agentes se ubican y posicionan junto con sus propiedades –cosas apropiadas- en función de ciertos lugares relativos y distancias, lo cual se expresa casi regularmente en el espacio físico: por el lugar donde está –clase social-, por la posición relativa –temporal o permanente, del rico respecto al más rico o respecto a un pobre- y por la extensión que ocupa el agente y sus propiedades -como la superficie de las viviendas, el tamaño de sus vehículos-. De allí que la 282

Tramas corporales, percepciones y emociones en las mujeres recuperadoras [...] Córdoba (Argentina)

correspondencia entre cuerpo y mundo en el espacio social sea completa y mutua, pues, “[L]lo que está comprendido en el mundo es un cuerpo para el cual hay un mundo” (BOURDIEU, 1999: 179). La posibilidad de comprender el mundo, se debe a que el cuerpo es afectado y transformado desde la infancia, y durante mucho tiempo, por sus particularidades. Así se adquieren disposiciones que permiten estar a tono con las regularidades del mundo, pre-verlas y saber desempeñarse. Es decir, el mundo se aprende, se comprende y se conoce por el cuerpo, mientras aquel se va inscribiendo, va dejando sus marcas, sus huellas. Aquí el disciplinamiento no se aplica sólo por las vías formales e institucionales, sino que también se deja escurrir casi desapercibidamente en la cotidianeidad de los hechos a través de la porosidad de los cuerpos (BOURDIEU, 1999: 187). Por ello también se aprehenden los actos corporales que dan sentido a las equivalencias entre el espacio físico y el espacio social: lo recto y lo curvo, lo alto y lo bajo, constituyen formas dentro de la división del trabajo sexual, que dan cuenta de los modos cotidianos en que se plasma la dominación. El cuerpo aprehende y clasifica desde estos principios, que no son puramente biológicos, sino en cambio, divisiones sociales que constituyen divisiones sexuales que también son divisiones sexuales del trabajo (BOURDIEU, 1991)116. Dicho aprendizaje se logra casi desaprensivamente, a partir de las advertencias y exhortaciones que conducen a marcar en los cuerpos las diferencias entre lo masculino y lo femenino en las formas de caminar, sentarse, hablar, entre otras, pero también en los ritos de institución, donde se establecen los límites y clasificaciones sociales que se naturalizan en los cuerpos, de maneras tan duraderas como los tatuajes (BOURDIEU, 1999). La división sexual del trabajo es considerada por el feminismo poscolonial como “la asignación diferencial de tareas en función del sexo; sin embargo esto es muy distinto del significado o valor que el contenido de esta división sexual del trabajo asume en contextos distintos” (MOHANTY, 2008: 147). Es decir, para esta autora es un concepto descriptivo que se utiliza con un valor a priori adicional donde los varones siempre y en todo lugar, buscarían explotar a las mujeres. De lo que se trata en cambio, es de realizar investigaciones empíricas que analicen en qué casos, condiciones, culturas, grupos sociales, religiones, entre otros factores, la división del trabajo implica a la vez, dominación. 116

283

Gabriela del Valle Vergara

La hexis delata el paso y la permanencia de la sociedad en el cuerpo del agente, de modo constante, es decir, como una “manera duradera de mantenerse, de hablar, de caminar, y, por ello, de sentir y de pensar. La oposición entre lo masculino y lo femenino se realiza en la manera de mantenerse, de llevar el cuerpo, de comportarse” (BOURDIEU, 1991: 119), donde las geométricas formas que adquieren los cuerpos, marcan las diferencias entre sexos, virtudes, estados de ánimo: lo recto, firme, franco y masculino, por oposición a lo curvo, flexible, reservado, femenino. En este sentido, el género no es solamente una construcción cultural, sino el resultante de la compleja combinación entre lugares, posiciones y extensiones sociales, como así también trayectorias biográficas117. Estos aprendizajes no siempre institucionalizados, hablan directamente a la motricidad “en tanto que esquema postural que es a la vez singular y sistemático, porque es solidario con todo un sistema de objetos y está cargado por un cúmulo de significaciones y de valores sociales” (BOURDIEU, 1991: 126). Las posiciones y disposiciones sociales, las limitaciones surgidas a partir de ciertas condiciones objetivas que se in-corporan a través, en y por medio del cuerpo, constituyen habitus, es decir, “sistemas de disposiciones duraderas y transferibles, estructuras estructuradas predispuestas para funcionar como estructuras estructurantes, es decir, como principios generadores y organizadores de prácticas y representaciones” (BOURDIEU, 1991: 92). Dado que no hay cuerpos sin mundos ni mundos sin cuerpos, éstos se modelan a la talla de un mundo cuya espacialidad es tanto física como social. En este mundo, el cuerpo adquiere la hexis de su historia, de sus esfuerzos, de su género. El cuerpo habla y se expresa. Bourdieu es capaz de dar cuenta a través de la hexis y el habitus de los vínculos estrechos entre cuerpos y sociedad, desde su capa más superficial hasta la más profunda. Para Anthony Giddens, el agente o actor, es el “sujeto humano global localizado en el espacio-tiempo corpóreo del organismo vivo” (GIDDENS, 1995: 86). La corporeidad del agente, no es un factor adicionado, sino Aquí no deberíamos olvidar las particularidades anatómicas, cuya existencia no es meramente social, aunque sí lo sean sus denominaciones y sus valoraciones. 117

284

Tramas corporales, percepciones y emociones en las mujeres recuperadoras [...] Córdoba (Argentina)

constitutivo del self que le permite llevar adelante los primeros y más elementales aprendizajes de los niños y sus exploraciones con los objetos y personas cercanas (GIDDENS, 1991). Es decir, [E]el cuerpo es un objeto en el que todos tenemos el privilegio, o la fatalidad de habitar, la fuente de sensaciones de bienestar y placer, pero también la sede de enfermedad y tensiones (…) el cuerpo no es solo una entidad física que «poseemos»: es un sistema de acción, un modo de práctica, y su especial implicación en las interacciones de la vida cotidiana es parte esencial del mantenimiento de un sentido coherente de la identidad del yo (GIDDENS, 1991: 28).

De los vínculos entre yo, identidad, cuerpo y presentación social, pueden mencionarse cuatro modalidades: • la apariencia corporal, o lo que se expresa a través de la superficie del cuerpo (peinado, uñas, bigotes, etc.) que dan cuenta de una identidad social, de la pertenencia a un determinado grupo, • el porte o el modo de actuar según las convenciones sociales, se conecta con la identidad del yo pues “mantiene un nexo entre la «sensación de estar como en casa en el propio cuerpo» y la crónica personal” (GIDDENS, 1991: 129), • la sensualidad, o “manipulación dispositiva del placer y el dolor” (GIDDENS, 1991: 128), la cual se vincula con • los regímenes corporales, en tanto que son los canales a través de los cuales las instituciones modernas crean el cuerpo. Mientras las rutinas suponen aquel control corporal que resuelve competentemente las situaciones cotidianas, los regímenes “implican un control riguroso de las necesidades orgánicas” (GIDDENS, 1991: 84), los cuales se ponen de manifiesto en los hábitos o patrones de comportamiento estables, que tienen que ver con la alimentación, la ropa y la sexualidad. La unidad del yo-cuerpo a lo largo de una biografía permite que el agente sea capaz de elaborar una crónica, un relato de su propia vida, donde “[L]la reflexividad del yo se extiende al cuerpo, entendido (…) como parte de un sistema de acción más que como un mero objeto pasivo” (GIDDENS, 1991: 101).

285

Gabriela del Valle Vergara

La capacidad de vivenciar reflexivamente el cuerpo del yo, otorga importancia a los procesos corporales en cuanto son parte del actuar en el mundo, pero también, la conciencia del cuerpo permite controlar el entorno que se capta por los sentidos, y al cuerpo mismo, en sus regímenes corporales: dietas, gimnasias, ayunos, entre otros, acentúa una conciencia de sí cuerpo que cohesiona el cuerpo y el yo. Para Giddens, el yo es corpóreo y es capaz de ser reflexivo de esta condición a lo largo de su propia biografía o trayectoria vital. La sociedad se hace presente a través de sus instituciones en los modos habituales y concretos de disciplinar los cuerpos, ya sea a través de la alimentación, del porte, de la estética o de los modos de afectividad. El breve repaso por estos autores nos permite pensar que la corporeidad comprende muchas más dimensiones que la estrictamente biológica. Adrián Scribano distingue analíticamente entre: [U]un cuerpo individuo que hace referencia a la lógica filogenética, a la articulación entre lo orgánico y el medio ambiente; un cuerpo subjetivo que se configura por la autorreflexión, en el sentido del ‘yo’ como un centro de gravedad por el que se tejen y pasan múltiples subjetividades y, finalmente, un cuerpo social que es (en principio) lo social hecho cuerpo (sensu Bourdieu) (SCRIBANO, 2007a: 125).

Pero además […] el cuerpo imagen es un indicador del proceso de cómo ‘veo que me ven’. Por su parte, el cuerpo piel señala el proceso de cómo ‘siento-naturalmente’ el mundo, y el cuerpo movimiento es la inscripción corporal de las posibilidades de acción. Estas tres maneras de reconstruir las vivencias corporales se plantean como vías de análisis e interpretación acerca del modo en que aparecen socialmente las formas corporales (SCRIBANO, 2007c: 100).

Desde Marx hasta Giddens, pasando por Elías y Bourdieu, estos niveles de la corporeidad se hacen presentes con mayor o menor énfasis en cada uno. Por ello, estos desarrollos nos permiten postular la noción de tramas corporales, que pueden definirse como el conjunto de relaciones de 286

Tramas corporales, percepciones y emociones en las mujeres recuperadoras [...] Córdoba (Argentina)

correspondencia, tensión o contradicción entre los cuerpos piel, imagen, movimiento, individuo, social y subjetivo. Tramas corporales que dan cuenta de un posicionamiento socio-espacial de los agentes en sociedades como las capitalistas, estructuradas a partir de la desigual apropiación de los bienes. Tramas corporales que muestran una trayectoria biográfica sociotemporal. En el caso de las mujeres recuperadoras, las tramas corporales aparecen atravesadas por tres procesos del mercado laboral: la división del trabajo por género y el conflicto de la doble jornada (MONTOYA, 1993; CARRASCO, 2003) la feminización del trabajo (GELDSTEIN, 1994; CORTÉS, 2003); la feminización de la pobreza (JELIN, 2006) y, sus interrelaciones, que son expresiones del capitalismo –tal como lo definimos en la Introducción-, junto a la lógica de la mercantilización, que actúa homologando los sujetos al mundo de los objetos. A continuación presentamos a través de las entrevistas, una serie de modalidades en que operan las tramas corporales en las mujeres recuperadoras de residuos, durante las relaciones que entablan en las calles, durante el trabajo que implica un intensivo consumo de energías corporales como así también una práctica sacrificial: “[…] como ser el hombre del Bazar está contento [chocho] conmigo viste, en la forma que le dejo el patio .. dicen las chicas, las empleadas ‘ni nosotros somos así como ella´” (Carmen A., 38 años, San Francisco). La presencia de estas mujeres en las calles dispara una multiplicidad de vínculos y respuestas. En este fragmento se advierte la alegría del comerciante que entrega los vidrios de un bazar para el desecho, cuando la mujer que va a buscarlos ordena y acomoda el patio del local comercial. Esta práctica de la limpieza que realiza el cuerpo movimiento, redunda en satisfacción para el cuerpo imagen, y permite al cuerpo social ser aceptado y reconocido para poder continuar con la actividad. En otros casos, las tramas corporales son objeto de inquietud por parte de los proveedores118: […] claro, porque muchos me dicen ´doña -dice- ¿no es pesado para llevar eso?´, ´¡no! -le digo- ya estoy acostumbrada´ o sea que hay gente que dialoga con uno y hay otros que no (…) pero ya me conocen ya, o sea que nosotros nos ponemos a conversar con Denominamos ‘proveedores’ a aquellos particulares, comerciantes o propietarios de industrias que entregan de manera pautada y previamente acordada a los y las recuperadores de residuos, los desechos que pueden ser reciclados, u objetos que pueden ser usados/consumidos. 118

287

Gabriela del Valle Vergara

la gente ahí .. dice ´¿señora no se ofende si le traigo unas cosas?´, ´no - le digo- mijo´ .. a veces me da apuro, a veces ¿no? de recibir así (Isabel, 60 años, San Francisco).

La preocupación por el peso de los mismos dada la edad de Isabel son muestras concretas de un grado de aceptabilidad necesario para un cuerpo social desechado, cuyo cuerpo imagen, se ve reconfortado. La costumbre de cargar con el peso de los desechos indica una articulación entre el cuerpo individuo y el movimiento, que le permiten al primero garantizar su reproducción mínima a partir de la recepción de comida, ropa o calzado que suelen obtener junto con los materiales reciclables. En estas instancias, la recuperación de residuos se traduce en la recuperación misma de sus tramas corporales, pues mientras son reconocidas como cuerpos sociales ‘limpios’, ‘laboriosos’ ‘abnegados’, se reconfortan sus cuerpos subjetivos a partir de lo que sus cuerpos movimiento son capaces de hacer –clasificar, ordenar, reciclar-, asegurando así la reproducción de los cuerpos individuo propios y del resto de los integrantes de la familia. Las calles también deparan otras respuestas menos agradables a las mujeres recuperadoras: […] te da bronca ¿viste? de que te digan ‘¡no, no, no!’ .. o muchas veces me ha pasado que toco el timbre, estoy viendo que me ven por la ventana y no me contestan ni me hablan, ni me abren la puerta, ni me ni levantan la cortina, ni te dicen ‘no’, nada. Muchas veces, por ahí, me da bronca y le digo ‘bueno gracias, si no le vengo a robar nada’ (Rosa, 40 años, Córdoba).

Los gestos corporales de rechazo, de des-atención des-cortés se captan en medio de un juego de miradas desencontradas en la distancia de cuerpos sociales que viven en diferentes y desiguales barrios. La desconfianza que capta el cuerpo piel a través del sentido de la vista, se conecta de inmediato con el cuerpo imagen que, ‘al ver que la ven’, genera un sentimiento de bronca en el cuerpo subjetivo119, que activa al cuerpo movimiento a reivindicar al cuerpo social como trabajadora y no como 119

La relación entre tramas corporales y emociones la abordaremos en el tercer apartado.

288

Tramas corporales, percepciones y emociones en las mujeres recuperadoras [...] Córdoba (Argentina)

delincuente. También encontramos que las empleadas de estos hogares descorteses construyen otras modalidades de distanciamiento: […] también la misma empleada, las mismas empleadas se hacen las dueñas de casa y (…) ‘no hay nada’, ‘no hay nada’ y vos la ves son de acá, las conocés y todo (…) la otra vez una dice, le digo ´buenas, de Reciclar Valores´120, ‘no, no está mi patrona’ (¿?), le digo ´vos vivís allá abajo´, le digo, pero yo le dije, yo no me quedé callada y qué tanto ´¡no hay nada!´ así, después, ´no está mi patrona´, pero te contestan, así como (Malvina, 26 años, Córdoba).

El diálogo entre mujeres de igual procedencia social, de quienes viven ‘allá abajo’ equipara los cuerpos sociales que sin embargo se desconocen cuando la empleada doméstica trastoca su cuerpo subjetivo para sentirse ‘la dueña de casa’121. El cuerpo imagen de Malvina se ve afectado por un rechazo que desconcierta en términos de género y clase social, y se convierte en la acción del cuerpo movimiento que no se calla, que no se silencia sino que trata de poner al descubierto la falacia de la empleada. Los encuentros o des-encuentros que las mujeres recuperadoras mantienen en las calles nos han permitido dar cuenta de cómo funcionan las tramas corporales. Otra instancia es el trabajo en sí mismo con los residuos, que se caracteriza por la fuerza física realizada durante varias horas de caminar, circular en bicicletas con carritos, o levantar bolsones con materiales reciclables:

Marx, en los Manuscritos de 1844, anteriormente mencionado, se refiere a cómo el dinero trastoca la fealdad de una persona en belleza y le permite así conseguir el afecto deseado, comprándolo. En este caso, el dinero opera indirectamente –a través del valor social de la viviendauna transfiguración en el cuerpo subjetivo de la empleada doméstica, quien se siente ‘como si’ fuese la dueña, ‘como si’ estuviese en su propia casa. Véase Marx (2004). 121 Aquí podemos recordar el enfoque psicológico de Carl Jung, quien distingue analíticamente como modos de conocer el mundo exterior, el juicio -o la razón- de la percepción. Esta última puede conformarse por las sensaciones o los sentidos, o la intuición que deriva de procesos inconscientes. Lejos de este dualismo, muchas corrientes psicológicas reconocen la influencia de la cultura en los modos de percibir los objetos. Las constancias perceptuales de color y forma dan cuenta de la influencia del aprendizaje y la experiencia en las formas de organizar los patrones de la percepción. Véase Morris y Maisto (2005). 120

289

Gabriela del Valle Vergara

[Carmen]: Pero .. ya no me siento con las fuerzas que tenía antes, porque es un trabajo muy (remarca) pesado, si bien tenía los chicos que me ayudaban pero yo el trabajo pesado lo hacía yo, no ellos, me entendés. Andar con el carrito, los cartones pesados … Entrevistadora: ¿cuántos kilos más o menos podías llegar a traer en el carro? C.: y en el carro .. sí, lo podía cargar pero me tenía que ir caminando .. me entendés a veces llevaba doscientos, trescientos .. en el carro” (Carmen H., 50 años, San Francisco).

El tiempo inscribe sus huellas en las hexis, en las posturas de los cuerpos individuo, que se van desgastando al compás del cuerpo movimiento y del cuerpo social. La pesadez del trabajo no es otra cosa que el peso físico acumulado a lo largo de los años, de todos los objetos que han sido y siguen siendo transportados. Objetos llevados como paseantes en las ciudades sobre las energías que consumen piernas y brazos de mujeres que los buscan y re-buscan-en-busca de ingresos para sus hogares. Esta pesadez de los objetos se hace carne en el cansancio de un cuerpo individuo muchas veces mal alimentado, mal curado de las enfermedades. El cansancio podría definirse como el límite mínimo de energías físicas consumidas en el trabajo: cansa pedalear con el carro lleno, caminar muchas horas, clasificar y enfardar los materiales –actividades éstas que muchas veces se superponen con las tareas domésticas-: […] no es fácil, porque cansa ¿no?, o sea, cansa para andar en la calle, uno está acostumbrado pero igual, pero más cansa para enfardar, que no ir a la calle, cansa más enfardar y acomodar que no andar en la calle” (Isabel, 60 años, San Francisco).

El cansancio que Isabel compara entre ‘andar en la calle’ o ‘enfardar’ en los hogares significa que en este último caso se siente más el esfuerzo que hay que realizar, porque es una actividad posterior a la recuperación en sí. Clasificar los materiales y acomodarlos, acondicionarlos hasta su venta es una tarea que se suma a los largos recorridos. La relación entre la fuerza física que se consume hasta el cansancio resulta en una práctica sacrificial:

290

Tramas corporales, percepciones y emociones en las mujeres recuperadoras [...] Córdoba (Argentina)

[…] y según, sí, yo como ser cuando traigo los folletos .. y por lo menos traigo cien kilos y cuando traigo lo de las motos que ahora no voy más viste, y traía por lo menos ciento cincuenta kilos, doscientos, a veces .. hay días que me tenía que venir a pie (…) en la bici, a veces no podés ni pedalear de pesado que está entonces ése es el sacrificio viste (Carmen A., 38 años, San Francisco).

El sacrificio es una ofrenda de los cuerpos individuo de estas mujeres, dispuestas en las calles a partir de sus cuerpos movimiento, que como cuerpos sociales desechados tratan de rearmarse para volver desde los márgenes a ser útiles al circuito de la producción industrial. El sacrificio es para estas mujeres el significado que le dan al esfuerzo y al cansancio, al consumo de energías físicas. El concepto de tramas corporales nos permitió adentrarnos en el universo de las mujeres recuperadoras. En el siguiente apartado desarrollaremos la noción de percepciones.

2. Percepciones como un modo corporal de aprehender el mundo

Las tramas corporales y las relaciones entre sus diferentes dimensiones, nos permiten dar un primer paso para comprender el mundo de las mujeres recuperadoras de residuos desde un enfoque de la Sociología de los cuerpos y las emociones. En el apartado anterior analizamos las relaciones en las calles, las características del trabajo y las prácticas sacrificiales desde su condición corporal. En las páginas que siguen, sostendremos que las tramas corporales constituyen la plataforma desde donde se constituyen las percepciones que las definiremos como esquemas de clasificación, apreciación y anticipación. En general, podemos decir que las percepciones son una noción que abarca un nivel sensorial o físico, una actividad cerebral de procesamiento de información pero fundamentalmente patrones socioculturales de

291

Gabriela del Valle Vergara

interpretación y tipificación122 que se generan de acuerdo con los lugares sociales que ocupan los cuerpos; lugares diferentes y diferenciales sobretodo en una sociedad capitalista123. A continuación proponemos revisar los desarrollos elaborados por Pierre Bourdieu y Anthony Giddens en relación a este concepto para poder responder cómo es posible la aprehensión del mundo a través de la corporeidad. Como planteamos páginas arriba, existen vínculos estrechos entre cuerpos, espacios sociales, habitus y esquemas de percepción. Para el sociólogo francés, como cuerpo y mundo se comprenden mutuamente y el habitus se modela según la talla del mundo, éste no se percibe como algo exterior o ajeno. Esto conlleva a que desaparezca la idea de un observador ante el mundo como una cosa puesta frente a él, como “espectáculo o representación susceptible de ser aprehendido de un vistazo” (BOURDIEU, 1999: 188). Inmerso y sumergido en este mundo, el habitus que hace posible la generación y permanencia de los esquemas de clasificación y apreciación impide la existencia de un acto cognitivo de un individuo aislado, externo y consciente. De allí que: La percepción del mundo social es el producto de una doble estructuración social: por la parte ‘objetiva´ esta percepción está socialmente estructurada porque las Aquí podemos recordar el enfoque psicológico de Carl Jung, quien distingue analíticamente como modos de conocer el mundo exterior, el juicio -o la razón- de la percepción. Esta última puede conformarse por las sensaciones o los sentidos, o la intuición que deriva de procesos inconscientes. Lejos de este dualismo, muchas corrientes psicológicas reconocen la influencia de la cultura en los modos de percibir los objetos. Las constancias perceptuales de color y forma dan cuenta de la influencia del aprendizaje y la experiencia en las formas de organizar los patrones de la percepción. Véase Morris y Maisto (2005). 123 Para la Epistemología, las teorías de la percepción se dividen entre realistas y fenomenalistas. Las primeras afirman que los objetos permanecen independientemente de la existencia del perceptor. En el segundo grupo se ubican las perspectivas que afirman que no hay otra realidad que no sea aquella dada por la experiencia, es decir, que no hay mundo más allá de lo percibido. Las realistas se dividen a su vez en directas, cuando no hay intermediarios u objetos a través de los cuales percibimos a otros, cuando la aprehensión es total, o indirectas, cuando la aprehensión de los objetos siempre es mediada por ideas o datos sensoriales. Ambas posturas tienen vigencia, puesto que los realistas directos no se reconocen como infalibles ni omniscientes en el conocimiento del mundo. A su vez, dentro de este grupo pueden distinguirse los realistas directos ingenuos de los científicos. Véase Dancy (1993). Los desarrollos que se realizan en este apartado nos acercarán a la postura del realismo indirecto. 122

292

Tramas corporales, percepciones y emociones en las mujeres recuperadoras [...] Córdoba (Argentina)

propiedades relacionadas con los agentes o las instituciones no se ofrecen a la percepción de manera independiente, sino en combinaciones de muy desigual probabilidad (…); por la parte ´subjetiva´, está estructurada porque los esquemas de percepción y de apreciación susceptibles de funcionar en un momento dado … son el producto de luchas simbólicas anteriores y expresan, de manera más o menos transformada, el estado de las relaciones de fuerza simbólicas (BOURDIEU, 1990: 288).

Las percepciones se estructuran de manera compleja y dual tanto por los condicionamientos objetivos como por una dimensión simbólica subjetiva. Por su parte el habitus, constituye una “disposición generadora de prácticas sensatas y de percepciones capaces de dar sentido a las prácticas así engendradas” (BOURDIEU, 1998: 170). Los esquemas de percepciones otorgan sentido a las prácticas, en la medida en que se corresponden con las formas de visión y división del mundo, dados determinados espacios sociales. Así, el habitus tiene la capacidad de organizar “las prácticas y las percepciones de las prácticas” (BOURDIEU, 1998: 170), a la vez “que organiza la percepción del mundo social” (BOURDIEU, 1998: 170). Bourdieu nos acerca a la idea de los esquemas de clasificación y apreciación que conforman una parte de las percepciones sociales. La otra, tiene que ver con el lugar físico y socio-simbólico en el que el cuerpo ha aprehendido el mundo. Estos esquemas forman parte de la noción de habitus sobre la que no profundizaremos, pues daremos lugar a las consideraciones sobre la percepción que propone Anthony Giddens. Una de las contribuciones que realiza el sociólogo contemporáneo inglés, es considerar la presencia del yo corpóreo, dotado de una capacidad reflexiva respecto de sí, de su historia, de su biografía (GIDDENS, 1991) y de una capacidad expresiva por la cual puede convertir en palabras, en lenguaje, sus vivencias, de modo tal que todo agente puede dar cuenta, si se lo piden de aquellas acciones que ha realizado. Esto se denomina registro reflexivo de la acción, el cual consiste en “… un rasgo permanente de una acción cotidiana, que toma en cuenta la conducta del individuo, pero también la de otros” (GIDDENS, 1991: 43); es un continuo reconocimiento de las actividades del agente, de los contextos físicos y sociales, que le permite desenvolverse. Es un registro que se constituye como un conjunto de acervos de saberes prácticos que tienen que ver con 293

Gabriela del Valle Vergara

“la capacidad de «ser con» en las rutinas de la vida social” (GIDDENS, 1991: 42). Ahora bien, ¿cómo es posible ese registro del mundo, la aprehensión de los entornos y de uno mismo, en tanto que yo corporizado? Para Giddens, las teorías acerca de la percepción pueden distinguirse en subjetivistas –atravesadas por el paradigma de la conciencia kantiano, donde el sujeto observador conoce el mundo en forma externau objetivistas –donde el mundo de los objetos organiza previamente lo percibido-. Sin embargo, en vistas de superar estas dicotomías, las percepciones deben comprenderse en el fluir del tiempo, la memoria y los espacios, a partir de esquemas que anticipan y actualizan el pasado en el presente: La percepción, en consecuencia, nace de una continuidad espacial y temporal, organizada como tal de una manera activa por el que percibe. El principal punto de referencia no puede ser ni el sentido aislado ni el percipiente contemplativo, sino el cuerpo en sus empeños activos con los mundos material y social. Esquemas perceptuales son formatos con base neurológica por cuyo intermedio se elabora de continuo la temporalidad de una experiencia. A su vez se puede entender esta elaboración como una parte intrínseca del registro reflexivo de una acción en general (GIDDENS, 1991: 82).

Las percepciones contienen una estructura biológica que los agentes poseen desde su nacimiento y durante sus primeros años de vida, sobre la cual luego se van agregando los primeros aprendizajes, de modo tal que percibir no es simplemente captar objetos exteriores, como tampoco es la aprehensión pragmática que se da a partir de los usos de los objetos, que varía en diferentes sociedades y culturas. Es decir, no percibimos todo aquello que captan nuestros sentidos, sino aquello que nos resulta familiar, tipificable, acorde a nuestros intereses124. Por otra parte, la percepción implica un proceso complejo donde los sentidos nunca operan en forma aislada o independiente, como por ejemplo podría suceder frente a una flor: los colores y sus formas, son aprehendidas simultáneamente al tocar la suavidad de los pétalos y oler su fragancia. La fluidez de la cotidianeidad En este punto, Bourdieu y Giddens se acercan, pues la selectividad de la percepción tiene que ver con los modos en que el cuerpo se corresponde paulatinamente con el mundo. 124

294

Tramas corporales, percepciones y emociones en las mujeres recuperadoras [...] Córdoba (Argentina)

se inscribe de manera simultánea, por lo cual la percepción aparece como “un conjunto de dispositivos de ordenación temporal configurados por los movimientos y orientaciones del cuerpo en los contextos de su conducta –pero que también los configuran-” (GIDDENS, 1991: 83). El cuerpo inscripto y activo en el mundo conjuga dinámicamente las percepciones que son selectivas, y que se constituyen a partir de la combinación de las temporalidades individuales-biológicas (en tanto tiempo biológico irreversible), en las individuales-sociales (en tanto rutinas cotidianas recursivas), y en las sociales (propia de las instituciones que producen y se reproducen por las acciones de los agentes). En resumen, podemos decir que para Bourdieu cuerpo y mundo/ espacio social son inescindibles, a partir de la vinculación que establece entre ambos el habitus, estructura estructurada por condiciones objetivas o de producción del mundo social al que está expuesto el cuerpo y, estructurante de infinitas posibilidades de pensar, percibir y actuar dentro de aquellos condicionamientos. Las percepciones, como un componente del habitus –que genera y organiza percepciones que dan sentido a prácticas ‘sensatas’- se definen como esquemas de clasificación y apreciación, o también como parámetros de tipificación, categorías dicotómicas que identifican y valoran al mismo tiempo y recíprocamente el mundo social: lo valoro porque lo percibo, pero también lo percibo porque lo valoro. En Giddens, cuerpo e identidad están comprometidos a lo largo de una biografía que se construye a lo largo de las temporalidades y el espacio. De este modo, el cuerpo está inmerso en el fluir de la actividad cotidiana, desde la cual, las percepciones se van constituyendo a partir de esquemas de anticipación, donde el pasado siempre se hace presente en virtud del futuro cercano. Los cuerpos en el mundo, o las tramas corporales implicadas temporalmente perciben el mundo social a partir de esquemas de clasificación y apreciación para Bourdieu, de anticipación para Giddens. Consideramos que ambas conceptualizaciones resultan complementarias, pues si el primero otorga un mayor énfasis en la espacialidad que ocupan los cuerpos en el mundo, el segundo remarca la temporalidad que atraviesa la corporeidad de los agentes. Si en Bourdieu, la noción del yo corpóreo se ve solapada por las estructuras del habitus, en Giddens se encuentra 295

Gabriela del Valle Vergara

un desarrollo más explícito, pues el yo o cuerpo subjetivo -tal como lo definimos párrafos arriba- es capaz de hablar de sus propios actos125. A partir lo expuesto, nos permitimos reconstruir la noción de percepciones a partir de tres dimensiones. En primer lugar, como esquemas de clasificación o tipificación de objetos, que implican una distinción en formas, ubicaciones, tamaños; luego como esquemas de apreciación que si bien se corresponden a partir de homologías con las formas o los colores, en términos analíticos es necesario distinguirlos. Un esquema de clasificación-apreciación opera asociando blancura con bondad o belleza, en oposición a la negrura y la fealdad. Finalmente, las percepciones se componen también de esquemas de anticipación resultantes de experiencias previas, de aprendizajes incorporados que permiten resolver situaciones imprevistas, inesperadas o bien, contribuir con un esquema de clasificación para definir un objeto desconocido, lo cual implica la puesta en evidencia de una presencia temporal del agente, que puede actualizar un esquema de clasificación o apreciación, o de ambos a la vez. A continuación identificaremos estos niveles a partir de las expresiones de las mujeres recuperadoras en sus primeros aprendizajes, en las destrezas adquiridas en la selección de los negocios y las bolsas de residuos y, finalmente en la relación con los proveedores de materiales reciclables. Los tres niveles de esquemas que conforman las percepciones se van refinando con el paso del tiempo y pueden advertirse en las primeras experiencias en la ocupación: […] ellas me van enseñando, voy aprendiendo día a día qué lo que es, ¿ves esas botellas? yo no las conozco, yo las rompo porque no sé y bueno, y ellas me van enseñando las cosas que .. qué es para reciclar, cuál el precio de una, el valor de otra. Lo más difícil de todo esto es esto, aprender a clasificar porque tardás mucho (Mónica, 42 años, Córdoba).

El trabajo en la cooperativa permite que los saberes prácticos del oficio de reciclar se vayan incorporando día a día con la ayuda de Este aspecto lo consideramos importante pues en términos metodológicos el registro reflexivo de la acción que se vincula con las percepciones nos permite sustentar la validez de utilizar técnicas como las entrevistas o los relatos de vida. 125

296

Tramas corporales, percepciones y emociones en las mujeres recuperadoras [...] Córdoba (Argentina)

las compañeras. Saberes que implican la conformación de esquemas de clasificación y apreciación típicos de la actividad, donde algunas botellas tienen un valor mayor como tales, y otras solo cuentan como vidrio. Conocer o no conocer lo que hay que romper o descartar implica la posibilidad de ganar o perder dinero en la comercialización, por lo cual, estos dos esquemas van conformando con el paso del tiempo, esquemas de anticipación, clasificación y apreciación por los cuales se perciben selectivamente los tipos de papeles, de cartones, de plásticos, de vidrios, de botellas, entre otros materiales para reciclar. De igual modo con que otras mujeres recuperadoras tipifican los negocios o las bolsas en las calles más convenientes, en la fase de separación lo que para otros fue simplemente desechado por carecer de valor de uso o de cambio, adquiere en estas circunstancias el despliegue de las capacidades que desde el cuerpo piel y sus sentidos permiten percibir práctica y selectivamente unos objetos y no otros. La temporalidad de estos aprendizajes también aparece en aquellas recuperadoras que aprendieron los secretos del oficio de la mano de los acopiadores o compradores de materiales reciclables: Sí, a los veintidós años, veintitrés yo ya juntaba cartones. Estuve un tiempo juntando cartones cuando el acopiador [XX] recién empezaba que era el hombre a quien le vendía. En esa época cuando lo llevaba de [XX], bueno, en sí a veces ni los ataba porque lo vendía así nomás, él lo recibía así viste todo ... porque él también o sea, él recién empezaba y trabajaban él y la mujer nomás en el negocio. Yo antes, el papel de computadora yo lo ponía así nomás, ése era el que yo no sabía que si lo sacabas te pagaban más, y lo tenías que enfardar. Entonces digo ‘¡uh pero es un trabajo!’, porque es un trabajo tener que elegir una bolsa, ponéle del banco, como la podés elegir enseguida como no, pero encontrar todos estos papeles, así las hojas en blanco, algunos están todo hechos bollitos, las tenés que abrir, poner una arriba de la otra, y hacer el fardito, que es un trabajo, un trabajo bárbaro para hacer, pero es lo que más te rendía, pero bueno el acopiador [XX] me enseñó eso, igual que el diario, tenía que enfardarlo, atarlo todo para que ellos te lo paguen, sino te lo pagaban menos. Por supuesto vos lo podés llevar así nomás pero como yo digo bueno, tenía los chicos todo, lo podía hacer entonces lo hacía (Carmen H. 50 años, San Francisco).

El fragmento de la entrevista describe no sólo los procesos de aprendizaje de esta mujer recuperadora que comenzó desde joven hace 297

Gabriela del Valle Vergara

más de 20 años a juntar cartones en San Francisco, sino también los del acopiador que por la misma época comienza con la actividad, y de los hijos que colaboran con la clasificación. Por otra parte es posible entender cómo las percepciones en relación a los objetos, sus características de textura, color, que se traducen en precios mayores o menores conforman destrezas sensoriales del cuerpo piel, que se conectan con los esquemas de anticipación frente a nuevas situaciones de trabajo, a fin de que aumenten las ganancias. Recuperar residuos abarca un proceso selectivo de discriminación de objetos que depende de las capacidades de movilidad y carga, de las necesidades de los hogares, de los hijos que pueden ayudar en la búsqueda y clasificación como en las tareas domésticas. Proceso selectivo donde sujetos desechados del mundo social, en nuestro caso, particularmente mujeres, se encuentran en una situación homologable a los desechos que re-buscan y transportan: cuerpos desechados dispuestos para los desechos. En las dos citas que siguen se puede apreciar cómo las percepciones operan en las mujeres recuperadoras como modos diferentes de aprehender la ciudad, sus calles, sus negocios: […] o sea yo me agarraba nada más que las bolsas de los bancos y ahí puedo sacar el papel blanco y los otros papeles que los separaba, si yo los hubiese querido vender así nomás como estaban, bueno me pagaban mucho menos, perdía porque al fin y al cabo perdía plata. Era de los negocios de los bancos nomás lo que levantaba y de los negocios ponéle así un negocio de seguros viste, que sé que hay papeles blancos pero sino de otro lado no juntaba la bolsa. Y los cartones bueno, sí, los cartones, las cajas que veía que tenían papeles, eso sí los levantaba y sino no, porque para qué voy a levantar basura si ya la basura que tenían que juntar también viste de los bancos, como tiran papeles tiran basura también (María, 38 años, San Francisco).

En otro lugar (VERGARA, 2008) hemos identificado algunas características de lo que podríamos denominar una ‘división de la recuperación de residuos por género’, que en muchos casos se plasma -aunque no de manera absoluta- en el hecho de que las mujeres se dedican a buscar y clasificar en las calles126 cartones, papel, vidrio, y los varones en 126

Estas distinciones no se dan por ejemplo en el caso de quienes clasifican en una cooperativa o

298

Tramas corporales, percepciones y emociones en las mujeres recuperadoras [...] Córdoba (Argentina)

cambio, metales, dadas las asociaciones naturalizadas que se dan respecto de la contextura física, y de la capacidad de fuerza. La diferencia de los materiales se traduce en una diferencia en el valor de los mismos, pues el cobre, el aluminio y el hierro tienen un valor de comercialización mayor que el cartón o el papel. En este contexto, María recurre a esquemas de clasificación-apreciación para identificar aquellos comercios en el centro de la ciudad que principalmente desechan papeles blancos127, tales como bancos u oficinas de seguros. Estos esquemas se complementan con esquemas de anticipación que vinculan calidad de los materiales con precio de venta, además de la optimización de los tiempos y energías, de modo tal que ‘en otros lados no juntaba las bolsas’, pues éstas muchas veces traen otro tipo de desechos. La clasificación-apreciación de lo blanco-limpio que se paga mejor, permite evitar –de modo anticipado- las pérdidas monetarias al momento de la venta. En el caso de las mujeres la referencia a la limpieza se inscribe en las tramas corporales y en sus biografías, donde sus cuerpos sociales – como hijas y hermanas- y sus cuerpos movimiento aprehendieron desde temprano las labores de la limpieza doméstica, que en muchas ocasiones les ha dado la oportunidad para salir a trabajar fuera de sus hogares. Desde esta configuración biográfico-social, las recuperadoras perciben las bondades de lo limpio y blanco, que –propio de una sociedad capitalistase expresa en un mayor valor monetario. En otros casos, la limpieza de las bolsas delata la posibilidad de obtener objetos para el uso y no para la comercialización, como en el caso de prendas de vestir: [Isabel]: a veces la gente tira .. vienen las bolsas, vio que yo abro así en la calle, abro la bolsa, saco todo lo que preciso y lo vuelvo a embolsar de vuelta y queda la bolsa atada, en cambio hay otro que no, que abre la bolsa y deja todo así nomás tirado, todo tirado, pero ahí ¡vienen cosas buenas! Entrevistadora: y usted ¿cómo se va dando cuenta donde puede haber algo que ..? I: yo me doy cuenta la bolsa, por el bulto. están directamente en un basural o relleno sanitario. 127 El papel blanco de las oficinas, que no tiene manchas ni está mojado se paga por kilo hasta cinco veces más que el cartón.

299

Gabriela del Valle Vergara

Entrev.: ¿ah sí? I: claro, tenía dieciseis años cuando empecé a cirujear, tengo cincuenta .. y nueve, para los 60 o sea que para enero voy a cumplir los 60, ¿son años no? (risas) Entrev.: ¿así que usted cómo es? a ver, va por la calle, ve una bolsa y dice seguro esa bolsa que debe tener I: sí, tiene algo, así que yo voy la abro y .. E: ¿y es lo que usted pensaba que había? I: sí, ayer iba para allá y había unas bolsas limpias, digo acá hay algo o ropa o diario. E: ah, si la bolsa está mas o menos limpia. I: hay gente que la ropa se la tiran bien limpia, bien dobladita, ¿vio cuando usted la dobla para guardarla así en cajonera? .. remera, pantaloncito, para interior o sea para varón, o sea para nena, eso ya está todo limpio .. y sino está limpio yo lo agarro lo voy embolsando y después vengo para casa y lo pongo en remojo, le doy una lavada, después lo dejo en agua limpia, después la vuelvo a lavar, le doy una enjuagada y a la soga (risas) (Isabel, 60 años, San Francisco).

Los esquemas de clasificación y apreciación no solo funcionan con la selección de los comercios como vimos párrafos arriba, sino también en las bolsas que por su disposición o forma anuncian que no es basura lo que contienen, sino otro tipo de objetos que se recuperan para volver a ser usados aunque no como materiales reciclables que se integran al circuito de la producción industrial. Isabel que lleva muchos años clasificando residuos en basurales y en las calles, dispone de un cuerpo piel y un cuerpo movimiento que como parte de su trama corporal le facilitan identificar perceptualmente las bolsas que conviene abrir. La limpieza o el orden externo de la bolsa que se ‘tira’ indica que en el interior hay ‘buenos objetos’ que pueden ser usados por los nietos, por los vecinos. Los esquemas de anticipación la predisponen por otra parte a realizar si fuera necesario las tareas de lavado y acondicionamiento de la ropa, prácticas o rutinas que ha desempeñado desde niña colaborando con su madre en las tareas domésticas. De este modo, la limpieza de la ropa que adviene de experiencias previas se transforma en un esquema de clasificación de lo 300

Tramas corporales, percepciones y emociones en las mujeres recuperadoras [...] Córdoba (Argentina)

‘limpio’ que se imputa a las bolsas de desechos que se encuentran en las calles. Las percepciones también se ponen de manifiesto en la conformación de las rutinas y los acuerdos con quienes proveen desde los comercios, desechos reciclabes: […] si tenés que salir por ejemplo, porque vos ya tenés un negocio que sí o sí a tal hora te da la basura y el negocio no puede tenerla afuera, porque el patrón … por ejemplo el empleado es el que te da, y el patrón le dice que esa basura no tiene que estar ahí porque le estorba, le incomoda entonces el que sale en el carro tiene que ir, sabe que ya por más que llueva tiene que ir a buscarla porque sino pierde (remarca) ese negocio, porque sino el patrón viene al otro día, la basura está ahí, lo reta al empleado, el empleado tiene problemas con el patrón y encima ya no te dan a vos, entonces se hace ya como un vínculo que sí o sí tenés que ir a tal hora, sacarle la basura al hombre para que el hombre no tenga problema, porque encima que él te la guarda (remarca), te la da porque sino se la da a otro, no la saca para que Cliba128 se la lleve ¿me entendés? Te la tiene guardada para que vos pasés, la retirés (Lorena, 32 años, Córdoba).

La ocupación de recuperar residuos implica diversos aprendizajes que se incorporan a medida que transcurren los días, los recorridos y las relaciones con los proveedores de residuos, con los compradores, con otros y otras recuperadores. En el fragmento se describe una situación que denota cómo opera un esquema de anticipación: buscar los residuos según lo pautado porque de lo contrario se perjudican el empleado del negocio y el propio recuperador. La puesta en presente, de manera diaria de estas experiencias previas que Lorena es capaz de poner en palabras a partir de su registro reflexivo de la acción, da cuenta de que el trabajo de recuperar residuos se da en el marco de un conjunto de relaciones laborales, de dependencia entre el dueño y el empleado del negocio, entre el recuperador y el empleado, entre el recuperador y (¿versus?) la empresa recolectora. Cumplir con el horario pautado no es una norma, sino un saber práctico vuelto percepción que le permite a esta mujer anticiparse a Cliba (Compañía Latinoamericana de Ingeniería Básica Ambiental) es la denominación de la empresa privada que desde 1986 hasta comienzos de 2009 obtuvo la concesión del servicio de recolección de residuos domiciliarios en la ciudad de Córdoba. Desde esa fecha hasta la actualidad, este servicio lo realiza CRESE (Córdoba Recicla Sociedad del Estado). 128

301

Gabriela del Valle Vergara

la posibilidad de perder un proveedor. Pero este esquema de anticipación se completa con los de clasificación-apreciación: hay que ir a buscar los residuos aunque llueva, para no ‘perder ese negocio’. Aquí la situación de pérdida como falta, como carencia, como ausencia se vincula claramente con un perjuicio, con una situación mala, desfavorable, que al estar identificada previamente por los esquemas de anticipación se evita. En este caso entonces, podemos decir que el trabajo se percibe como una actividad en la cual se deben cumplir determinadas rutinas o circuitos para garantizar su continuidad. En el siguiente apartado nos centraremos en las emociones y su relación con las tramas corporales y las percepciones.

3. Sensibilidad social y emociones Norbert Elías (1993) identificó tempranamente el lugar de las emociones en las transformaciones de la civilización dado que los cambios en las estructuras afectivas se correspondían con cambios en la racionalización de la conciencia. En este proceso, el autor destaca la presencia de la vergüenza y el desagrado. La primera puede entenderse como un miedo que surge ante relaciones de inferioridad con otros, especialmente “cuando el individuo que teme a la supeditación no puede defenderse de este peligro mediante un ataque físico directo u otra forma de agresión” (ELÍAS, 1993: 499). Es decir, que es una emoción que se produce en el marco de entramados de interdependencia (ELÍAS, 1995) donde hay vínculos de subordinación y poder, pero además, donde la agresión física está socialmente desaprobada. Por lo tanto, la vergüenza se liga estrechamente con otras emociones como el miedo a una sanción posterior y la impotencia de no poder concretar el ataque. Estas tensiones se producen en el interior del sujeto y es por ello que resulta poco observable. A medida que avanzan los límites de la vergüenza, las agresiones físicas y los miedos a recibirlas se reducen -favorecidas por el creciente monopolio de la violencia que logran los Estados a través de sus leyes, sus ejércitos, sus controles-, crecen los temores internos que acompañan a la 302

Tramas corporales, percepciones y emociones en las mujeres recuperadoras [...] Córdoba (Argentina)

primera. El paralelismo entre las grandes transformaciones estructurales y los cambios en la subjetividad que Elías sostiene a lo largo de sus investigaciones socio-históricas le permite explicar que las distinciones de las instancias de la personalidad propuestas por Freud son resultantes de procesos sociales y no característicos de una inmutable naturaleza humana, de allí que: […] el fortalecimiento de los sentimientos de vergüenza y el aumento en la racionalización sólo son aspectos diferentes de la creciente división en la economía espiritual de los individuos que aparecen con el aumento en la división de funciones, esto es, aspectos distintos de la diferenciación creciente entre funciones instintivas y funciones de vigilancia de los instintos, entre «ello» y «yo» o «super-yo» (ELÍAS, 1993: 501).

Este complejo entramado subjetivo de emociones, se complementa con otra, que es el desagrado. Elías lo define como un “disgusto o miedo que surge cuando otra persona quiebra o amenaza con quebrar la escala de prohibiciones de la sociedad representada por el super-yo” (ELÍAS, 1993: 503), y lo identifica por ejemplo, en la etapa donde los guerreros se van convirtiendo en miembros de las cortes. Esto implica un proceso de refinamiento de los modales, aprendizajes de gestos y posturas menos violentas y agresivas. Como vemos en ambos casos, las emociones sufren modificaciones en función de un proceso de racionalización general, pero también en virtud de nuevas pautas de convivencia que no sólo afectan la parte más externa de las tramas corporales de los sujetos en sus relaciones de interdependencia, sino también el nivel más íntimo de las emociones. Por lo tanto, la vergüenza y el desagrado en los análisis de Elías, son causados por y refuerzan los comportamientos socialmente aceptados, por lo cual regulan las relaciones sociales y las tornan previsibles sin la necesidad de apelar al castigo físico o la sanción. Por otra parte, los cambios en el largo plazo muestran la manera en que ambas emociones se constituyen social e históricamente, variando según lugares y períodos. La vergüenza no es la misma en una sociedad estamental, que en la burguesa.

303

Gabriela del Valle Vergara

Algunas de estas consideraciones están presentes en el enfoque de Arlie Russell Hochschild, quien marca un descuido en el planteo de la acción dramatúrgica. Para ella “Goffman nos muestra que calculamos mucho más de lo que pensamos, pero pasa por alto el hecho de que también sentimos de maneras socialmente establecidas mucho más de lo que creemos hacerlo” (HOCHSCHILD, 2008: 113). La preocupación por un abordaje sociológico de las emociones la lleva a encontrar una imagen del yo que no es totalmente cognitiva ni completamente inconsciente. Entre el yo calculador de Goffman y el yo inconsciente de Freud, la autora delimita un “yo sensible, un yo que tiene la capacidad de sentir y conciencia de tal característica” (HOCHSCHILD, 2008: 114), es decir que reconoce y puede expresar –tal como lo plantea Giddens por la capacidad reflexiva del agente- sus sentimientos y emociones, cuyos significados han variado a lo largo de la historia, de los grupos sociales, de las diferentes culturas, por lo cual el disgusto, la apatía, la vergüenza o la decepción no son fenómenos inalterables de la humanidad. De allí que resulte relevante para un abordaje sociológico considerar lo que el propio actor expresa de sí, el modo en que es capaz de codificarlo, o definirlo. Max Weber129 diferenciaba en su tipología de la acción social, lo racional en oposición a la irracionalidad de los afectos y sentimientos, e identificaba la presencia de emociones en situaciones extraordinarias, como el pánico ante una crisis bursátil. Sin embargo había perdido de vista que “la emoción y los sentimientos también son ingredientes activos de la conducta racional” (HOCHSCHILD, 2008: 116), es decir las emociones nunca están ausentes en las relaciones sociales. Una mirada sociológica de las emociones requiere un componente más: asumir y reconocer las vinculaciones con el entorno social, más cercano a las interacciones, más lejano y general. Es por ello que la autora asegura que las emociones y sentimientos tienen causas y consecuencias en un contexto compuesto por reglas de sentimientos, reglas de expresividad Desde otra perspectiva, Eduardo Bericat Alastuey (2001) indica que una de las claves de “La ética protestante y el espíritu del capitalismo” es el lugar que desde la doctrina protestante se le dio a la humillación que actuó con mayor intensidad en el nivel vivencial en los creyentes, por sobre la dimensión cognitiva de los dogmas. 129

304

Tramas corporales, percepciones y emociones en las mujeres recuperadoras [...] Córdoba (Argentina)

o comunicación, y sanciones. Cada uno de estos tres niveles implica que toda sociedad establece qué es lo debemos o deberíamos sentir en determinadas circunstancias, cómo podemos transmitir con claridad un sentimiento sin que quienes están a nuestro alrededor interpreten otro contenido, y finalmente hacia qué clase de objetos se dirigen esos sentimientos considerando que la sociedad ubica a los actores en posiciones superiores, equivalentes o inferiores (HOCHSCHILD, 2008). Tanto Elías como Hochschild proponen un estudio sociológico de las emociones y establecen los vínculos entre éstas y las estructuras sociales, considerando además su variabilidad socio-histórica. Sin embargo, el primero identifica con mayor claridad el lugar del cuerpo en los entramados de interdependencias como una instancia de mediación que posibilita que las emociones del ‘yo sensible’ encuentren un anclaje en un ‘yo corpóreo’. Es decir, retomando lo desarrollado párrafos arriba, las emociones se constituyen desde las tramas corporales y desde los modos de aprehender el mundo que son las percepciones en tanto esquemas de clasificación, apreciación y anticipación. Por otra parte, Hochschild afirma que los sujetos pueden expresar y definir por sí mismos las emociones que sienten, lo cual nos brinda la posibilidad de un abordaje metodológico que se vincula con el registro reflexivo de la acción, tal como lo planteamos en el apartado anterior. En las entrevistas a las mujeres recuperadoras de Córdoba y San Francisco aparecieron la bronca, el miedo y la vergüenza como emociones inscriptas en su ocupación. A continuación analizaremos brevemente cada una de ellas: […] es otro descuido del carrero, que anda con los vasitos pobrecito en el asfalto sangrando, que se pone medio rengo, que no camina bien, y ellos le pegan, le pegan, digamos eso mirándolo hasta a mí me da odio porque o sea, a mí me da bronca, yo que he sido carrero, que he vivido siempre arriba del carro (Teresita, 60 años, Córdoba).

Ser carrero o carrera implica algo más que buscar desechos, juntar escombros o alimentos. El carro tirado con la fuerza del caballo permite desplazarse, sobretodo en las grandes ciudades donde los recorridos son largos. Pero también el carro con caballo contribuye a establecer una relación con este último quien en muchos casos se convierte en un cuasi305

Gabriela del Valle Vergara

integrante más del hogar, al que hay que alimentar, cuidar, curar, pues no solo sirve como medio de carga sino también como medio de transporte para diversos fines130. La bronca expresada en la cita, remite a los malos tratos que algunos carreros le dan a los animales en la calle, y podría ser traducida en los términos de Elías como una emoción de desagrado, de disgusto ante el comportamiento de un tercero que se percibe desde determinados esquemas de clasificación-apreciación como incorrecto. Pero el acto mismo del carrero que golpea al animal puede ser interpretado siguiendo a Hochschild: […] el enojo se desvía de su objeto ‘legítimo’, por ejemplo, suele desviarse hacia ‘abajo’ y caer en relativos vacíos de poder. Así es más probable que el enojo se dirija a personas cuyo poder es menor, y menos probable que recaiga en personas más poderosas: el enojo corre por los canales que ofrecen la resistencia más débil (HOCHSCHILD, 2008: 125).

El enojo sería la emoción que atraviesa a los carreros que golpean a sus caballos como una forma de desplazar la impotencia o la bronca que generan determinadas condiciones de vida, de trabajo para cuerpos expulsados, desechados. El desagrado aparece en los ojos de una mujer carrera, que desde joven está en la actividad. Podemos entender estas diferencias a partir de las tramas corporales y los esquemas que conforman a las percepciones. En algunas entrevistas han emergido temáticas vinculadas a la violencia doméstica contra las mujeres, los niños, por lo cual, los golpes, las agresiones físicas –que Elías veía retroceder en una sociedad que se iba civilizando pero que evidentemente no desaparecieron- son tipificadas y apreciadas por las mujeres131 de modo diferente a los varones. Las mujeres, los niños, o en el caso de la cita los animales, advienen como estos objetos débiles por los cuales corre el enojo, sensu Hochschild. Vemos pues, que las emociones no pueden ser cabalmente comprendidas sino es considerando las percepciones y las tramas corporales en las cuales se constituyen. En la entrevista con Lorena nos comentó un episodio en el que su hijo se vio involucrado en un robo de un vehículo al que habían desarmado y cargado algunas partes en un carro tirado a caballo. 131 En la misma cooperativa en la que participa Teresita se había conformado en 2008 un grupo de ayuda a mujeres golpeadas. 130

306

Tramas corporales, percepciones y emociones en las mujeres recuperadoras [...] Córdoba (Argentina)

Otra manifestación de la bronca, puede encontrarse en las disputas que se dan entre los mismos recuperadores de residuos: nosotros sabíamos juntar ahí [señala la casa de sus padres] hace un par de años, atrás sabíamos juntar, traíamos dos, tres, cuatro bolsones, pero una vuelta los prendieron fuego, porque hasta eso son mal llevados acá. Le prendieron fuego y te morís de la bronca y de la impotencia porque no podés hacer nada ¡no!, ves que te matás laburando para que te hagan maldad, viste así que ahora tratamos de juntar lo que se hace en el día o hasta el otro día nomás, hacemos un bolsón y lo vendemos (Rosa, 40 años, Córdoba).

La bronca no deviene en enojo en este caso pues se atrofia en la impotencia de lo irremediable. Perder por el efecto del fuego bolsones de materiales reciclables que ya no se podrán vender, actualiza las derrotas acumuladas de estos cuerpos cuyas tramas a lo largo de sus biografías han recibido muchos otros golpes, han perdido muchas otras oportunidades. Si la impotencia puede definirse como “la permanencia de un estado de minusvalía frente a las condiciones materiales de existencia” (SCRIBANO, 2007b: 27), dicha minusvalía aquí se convierte a partir del cuerpo movimiento en una solución regresiva como la de vender diariamente, lo cual trae aparejado el hecho de que los precios –considerando la cantidadsean menores. Este estado de incapacidad, de algo que inevitablemente se termina aceptando, se torna esquemas de anticipación para evitar mayores pérdidas. En otras circunstancias, la emoción que articula los encuentros con los otros intra-clase es el miedo: [Isabel]: sí, tengo miedo, sí, me da así escalofrío pero .. Entrevistadora: y ¿miedo a qué le tiene? por ejemplo .. I: de la gente, de la gente hay mucha .. ya me salvé como dos o tres veces que me golpearan, sí es peligroso, o sea, cirujas que son .. son viejos borrachos. Sí, es jodida la calle ahora, los cirujas, porque hay mujeres o varón que son peligrosos, después ‘buenas tardes’, ‘buenos días’, y chau .. (Isabel, 60 años, San Francisco).

Las disputas por los bienes a recuperar instalan el miedo hacia aquellos que buscan y re-buscan afanosamente cartones, botellas, o simplemente comida para subsistir. Las relaciones intra-clase se fragmentan 307

Gabriela del Valle Vergara

en estos espacios en los que la expulsión los torna desconocidos, cuasienemigos, contrincantes en virtud de los residuos-objetos, que son los que en definitiva, terminan articulando las relaciones sociales en estos espacios. La cortesía del saludo es una marcación de la distancia que estos cuerpos sociales requieren para no recibir los golpes, que para las mujeres adquieren otros sentidos y emociones, como vimos antes. El escalofrío que tiene el cuerpo piel, expresa el miedo ante los otros, un miedo que se conecta con esquemas de anticipación de experiencias previas, donde el peligro toma prestado el rostro de otros y otras recuperadores, que pasan a ser indeseables. También en las recuperadoras de residuos aparece el miedo provocado por una minusvalía en el cuerpo subjetivo, en instancias de presentación social inter-clase: […] salía con miedo porque al no .. porque no tenía carácter para hablar con la gente, tenía miedo, vergüenza, no sé … y claro, sí, era la primera vez, digo yo no sé cómo, qué decirle a la gente y menos mal que me dieron un carrito con gorrito acá porque nunca así yo hice este trabajo, digo yo no sabía hablar, yo o tocaba timbre y me aparecían la gente y me quedaba callada y de a poco fui, bueno, fui criando coraje (risas) (Mónica, 42 años, Córdoba).

Cuando los cuerpos sociales desechados deben rearmarse para estar a disposición de los objetos que deben ser recolectados casa por casa, las emociones que atraviesan sus tramas oscilan entre el temor y la vergüenza, junto con un cuerpo movimiento que se siente incapaz de hablar, un cuerpo subjetivo inseguro, un cuerpo imagen deteriorado. No sólo los esquemas de clasificación, apreciación y anticipación deben adiestrar al cuerpo piel para distinguir los objetos –como vimos párrafos arriba- sino que además el cuerpo social y el movimiento también deben entrenarse para enfrentar el encuentro con un alter que pertenece a otra clase social, para estar cara a cara con el ‘colono’ sensu Fanon. Irving Goffman ha desmenuzado este tipo de interacciones en términos del manejo de impresiones, pero no en cómo actúan y se transforman las emociones que como en el caso de la cita van desde el miedo inicial hasta la práctica subjetiva de ‘criar coraje’. Junto con la bronca y el miedo, la vergüenza es otra emoción presente: 308

Tramas corporales, percepciones y emociones en las mujeres recuperadoras [...] Córdoba (Argentina)

[María]: uno la primera vez le da medio temor Entrevistadora: ¿temor? M: sí, vergüenza, pero después no, después ya seguís, seguís hasta que .. digo .. hasta acá llegué, hasta acá, voy a salir Ent.: y vergüenza de .. ¿de qué te da? M: y que por ahí uno está juntando y te miiira la gente, te miiira, te miiira y no te saca los ojos de encima (María, 40 años, San Francisco).

Disponer los cuerpos en las calles para las mujeres por razones de privación, cuando se siente que se toca fondo, y que ‘salir’ a buscar residuos es la única alternativa posible implica romper con determinados esquemas de clasificación-apreciación que ubican los cuerpos femeninos en los hogares con los hijos, los masculinos en las calles, con el trabajo. El miedo y la vergüenza ante las miradas de la gente impactan en el cuerpo imagen y en el cuerpo subjetivo, que sienten el peso de aquellos ojos ‘encima’ de una. Las mujeres recuperadoras, que en muchos casos han tenido experiencias laborales en el servicio doméstico, en el cuidado de niños o ancianos, disponen de tramas corporales que las habilita para estas ocupaciones de lo doméstico mercantilizado sensu Jelin, pero que aún no se encuentran diestras para revolver las bolsas, separar lo útil. Esto no implica solamente un aprendizaje cognitivo, estrictamente racional, sino sentidos prácticos y sensatos, saberes que se van haciendo cuerpo y sensorialidad y que están atravesados por emociones. Como lo sugiere Elías, la vergüenza se da en el marco de relaciones diferenciales entre un subordinado y un superior. En el caso de las mujeres recuperadoras, estas distancias sociales se marcan en las calles céntricas, en los barrios del ‘colono’ que se ven irrumpidos por estos cuerpos expulsados: [Carmen]: todos hombres eran, claro después cuando me vieron a mí se ve que las otras se animaron a juntar, las que necesitaban juntar y no se animaban a lo mejor (risas). Es decir sí me daba un poco de qué sé yo .. vergüenza de juntar cartones, me daba, pero digo yo (hace un chasquido con la boca) total es un trabajo como cualquier otro, peor es salir a robar y bueno entré en coraje y salí y bueno, todo tenía que hacerlo 309

Gabriela del Valle Vergara

por los chicos porque .. no tenía trabajo y los chicos hay que darle de comer todos los días, mandarlos a la escuela, todo eso entonces bueno decidí hacer eso Entrevistadora: Carmen y ¿qué es lo que da vergüenza? C: las miradas, ‘mirá la ciruja aquella’ o qué sé yo (Carmen H. 50 años, San Francisco).

En la cita la vergüenza tiene dos causas. La primera se vincula con el hecho de ser la única o una de las pocas mujeres que comienza a recuperar residuos en la ciudad, cuya presencia anima a otras, posteriormente a ‘salir’. Compartir o bien, disputar con los varones el espacio público pero precarizado de las calles en busca-de-rebusques es una situación conflictiva que desata la vergüenza. La segunda, se activa por el cuerpo imagen, a través de las miradas por las cuales se siente observada, catalogada. Tanto en las relaciones intra-clase como inter-clase, para las mujeres permanecer en las calles en una ocupación no típicamente femenina desarticula esquemas de clasificación, apreciación y anticipación en las propias tramas corporales de las recuperadoras, como en la de quienes las observan. El freno para la vergüenza es el coraje –que hay que criarlo o al que hay que entrar- que se sustenta en la urgente y apremiante necesidad de la supervivencia propia y de los hijos. En este apartado hemos analizado las emociones desde una perspectiva sociológica, contando con los enfoques de Norbert Elías y Arlie Hochschild quienes nos permitieron bucear a través de las entrevistas, particularmente los lugares de la bronca, el miedo y la vergüenza. En el siguiente apartado recapitulamos lo desarrollado hasta aquí para mostrar cómo una sociología de los cuerpos y las emociones constituye una herramienta válida para los estudios de las mujeres.

Consideraciones finales Paul Auster, en su novela “El país de las últimas cosas”132 describe la relación de una joven con una mujer mayor dedicada a juntar desechos 132

Agradezco a Ana Cervio por sugerirme la lectura de esta novela.

310

Tramas corporales, percepciones y emociones en las mujeres recuperadoras [...] Córdoba (Argentina)

para venderlos. Anna Blumer intrigada por el ‘talento extraordinario’ que demostraba esta mujer que por momentos parecía “una bruja consumada que encontraba las cosas por arte de magia” no logra obtener respuestas concretas, del cómo lo hacía. Si Anna leyera este artículo seguramente comprendería que no es por arte de magia como se encuentran los desechos en las calles de una ciudad, sino a partir de una compleja combinación entre lo que hemos dado en denominar tramas corporales, percepciones y emociones. Tres vectores que se interconectan para delimitar el mundo de las mujeres recuperadoras de residuos que se inscriben dentro de las principales transformaciones del mercado de trabajo y las relaciones sociales de las últimas décadas en nuestros países latinoamericanos en general, y en Argentina particularmente. Tres vectores que asumen la necesidad de vincular la Sociología de los cuerpos y las emociones y los estudios de las mujeres. Es por ello que, en primer lugar definimos las tramas corporales como el conjunto de relaciones de correspondencia, tensión o contradicción entre los cuerpos piel, imagen, movimiento, individuo, social y subjetivo, las cuales nos muestran el lugar socio-espacial de estas mujeres expulsadas y desechadas, junto con una trayectoria biográfica hecha cuerpo. Las tramas corporales de las mujeres recuperadoras –en particular el cuerpo social- están atravesadas por una división del trabajo por género, por el conflicto de la doble jornada, por la feminización del trabajo y de la pobreza y las pudimos identificar en aquellas situaciones de encuentro con otros en las calles como durante el trabajo que implica un consumo de energías corporales que se traduce en una práctica sacrificial. A continuación postulamos el concepto de percepciones conjugando los aportes de Pierre Bourdieu y Anthony Giddens y establecimos sus tres dimensiones. En primer lugar, son esquemas de clasificación o distinción de objetos; en segundo término son esquemas de apreciación o valoración de aquello tipificado. Los esquemas de clasificación-apreciación se complementan con los esquemas de anticipación resultantes de experiencias previas, de aprendizajes incorporados que permiten resolver situaciones imprevistas o, permitir al esquema de clasificación definir un objeto desconocido. Esta conceptualización nos permitió identificar 311

Gabriela del Valle Vergara

percepciones en los primeros aprendizajes, en las destrezas adquiridas en la selección de los negocios y las bolsas de residuos y, finalmente en la relación con los proveedores de materiales reciclables. El tercer vector fueron las emociones que se constituyen desde las tramas corporales y las percepciones. Emociones que se crean y recrean socialmente y que pueden expresadas y definidas por los actores sociales. Por ello, nos detuvimos en la bronca, el miedo y la vergüenza, que atraviesan las relaciones de la ocupación de recuperar residuos. Este recorrido nos permite mostrar el modo en que la condición corporal y sus mecanismos de aprehender y sentir el mundo, se tornan relevantes a la hora de realizar estudios de las mujeres, pues a partir de esta estructura analítica se puede comprender un fragmento de cómo se viven la precariedad, las relaciones desiguales del género y el trabajo, las sombras de la pobreza que se vuelve monocromática cuando la suciedad de la basura contagia la epidermis de estas mujeres. El cuerpo ha sido para el feminismo una categoría discutida, rechazada, o también resignificada, pues en principio quedó ligado a la noción de sexo, y ésta a la de naturaleza, opuesta por su parte a la cultura. Por ello, la frase de Simone de Beauvoir de que no se nace mujer sino que se llega a serlo, pretendió resaltar el peso de la sociedad en la construcción del género –algo que también está presente en la obra de Pierre Bourdieu que desarrollamos páginas arriba-. En otro sentido, el cuerpo fue asociado a una categoría del discurso biológico y médico que sirvió para legitimar el modelo de varón-proveedor, mujer ama de casa, pues la maternidad equivalía a amor, cuidado, crianza y primera socialización. Esta idea reguladora de la relación con los hijos, construida en el siglo XVIII restringió la vida social de las mujeres al ámbito privado del hogar (GIVERTI, 1996). En un tercer sentido, el cuerpo femenino dotado de la capacidad de reproducción, fue considerado causa y objeto de control en dos niveles. Por un lado, en la exigencia de la monogamia –de las mujeres-, para garantizar que el hijo ‘sea propio’, es decir del padre y poder hacerse acreedor de la herencia y el patrimonio133. Por otro, el Estado a partir de programas Esta es una lectura que pasa por alto, que aquellos hogares en los cuales los hijos no tienen nada por heredar pues sus padres no tienen patrimonio alguno, este control es más lábil. 133

312

Tramas corporales, percepciones y emociones en las mujeres recuperadoras [...] Córdoba (Argentina)

públicos de control de natalidad también intervino pretendiendo controlar el cuerpo femenino, favorecido por un mayor desarrollo de técnicas para prevenir embarazos, y una mayor oferta para aumentar la virilidad masculina (JELIN, 2006). En las páginas precedentes hemos mostrado que para la Sociología, la corporeidad como condición de la acción social no puede concebirse solamente como anatomía, pero tampoco sin ella. La sociedad imprime sus marcas; la subjetividad se constituye en y por un determinado cuerpo; la imagen que construimos a partir de nuestras interacciones cotidianas con otros está mediada por el cuerpo; la sensorialidad combina los aprendizajes sociales con los mecanismos físicos; las capacidades sociales de acción se dan a partir las posiciones que ocupamos. Por ello, recuperar la condición corporal desde una perspectiva sociológica para el análisis e interpretación de las experiencias de las mujeres en contextos de expulsión, constituye un desafío para poder mostrar la avidez con la que el capitalismo sigue actuando, la precariedad en las condiciones de vida que tienen cada vez más sectores de la sociedad que rozan los límites de la reproducción mínima, y la complejidad de las experiencias y las relaciones sociales que desbordan las identidades, las representaciones y los significados.

313

Gabriela del Valle Vergara

Bibliografía ARRIAGADA, Irma (2007). “Abriendo la caja negra del sector servicios en Chile y Uruguay”. En: Gutiérrez, M.A. (Comp.), Género, familias y trabajo: rupturas y continuidades. Desafíos para la investigación política. Buenos Aires, Clacso. ASPIAZU, D.; BASUALDO, E. y SCHORR, M. (2001). La industria argentina durante los años noventa: profundización y consolidación de los rasgos centrales de la dinámica sectorial post-sustitutiva. Buenos Aires, FLACSO. BAYÓN, María Cristina y SARAVÍ, Gonzalo (2007). “De la acumulación de desventajas a la fractura social”. En: Saraví, G. (Comp.), De la pobreza a la exclusión. Buenos Aires y CIESAS, México, Prometeo. BERICAT ALASTUEY, Eduardo (2001). “Max Weber o el enigma emocional del origen del capitalismo”. REIS. Vol. 95, Nº 1: 9-36. BOURDIEU, Pierre (1990). Sociología y cultura. México, Grijalbo. (1991). El sentido práctico. Madrid Taurus, Ediciones. 1998). La distinción. Madrid Taurus, Ediciones. (1999). Meditaciones pascalianas. Barcelona, Anagrama. CALCAGNO, Alfredo (2001). “Ajuste estructural, costo social y modalidades de desarrollo en América Latina”. En: Sader, E. (Comp.), El ajuste estructural en América Latina. Costos sociales y alternativas. Buenos Aires, Clacso. CARRASCO, Cristina (2003). “La sostenibilidad de la vida humana: ¿un asunto de mujeres?”. En: León, Magdalena (Comp.) Mujeres y trabajo: cambios impostergables. Brasil, Veraz Comunicação. CORTÉS, Rosalía (2003). “Mercado de trabajo y género. El caso argentino, 1994-2002”. En: Valenzuela, M. (ed.) Mujeres, pobreza y mercado de trabajo. Argentina y Paraguay. Santiago de Chile, OIT. 314

Tramas corporales, percepciones y emociones en las mujeres recuperadoras [...] Córdoba (Argentina)

DANCY, Jonathan (1993). Introducción a la Epistemología Contemporánea. Madrid, Tecnos. DE LUCCA REIS COSTA, Daniel (2007). “Márgenes en el centro. Calle, catación y basura en el centro de Sao Paulo”. En: Schamber y Suárez (Comp.) Recicloscopio. Miradas sobre recuperadores urbanos de residuos de América Latina. Buenos Aires, Prometeo Libros, UNLA y UNGS. EGUÍA, A., Piovani, J., SALVIA, A. (2007). “Introducción”. En: Eguía, A., Piovani, J., Salvia, (comps.) Género y Trabajo. Asimetrías intergéneros e intragéneros. Buenos Aires, EDUNTREF. ELÍAS, Norbert (1993) [1977-1979]. El proceso de la civilización. Buenos Aires, Fondo de Cultura Económica. (1995) [1970]. Sociología fundamental. España, Gedisa. FERNÁNDEZ, Lucía (2007). “De hurgadores a clasificadores organizados. Análisis político institucional del trabajo con la basura en Montevideo”. En: Schamber y Suárez (Comp.) Recicloscopio. Miradas sobre recuperadores urbanos de residuos de América Latina. Buenos Aires, Prometeo Libros, UNLA y UNGS. FRASER, Nancy (1996). “Redistribución y reconocimiento: hacia una visón integrada de justicia de género”. Conferencia impartida en el Congreso Internacional realizado en Santiago de Compostela, Junio. GAMBINA, Julio (2001). “Estabilización y reforma estructural en la Argentina (1989/99)”. En: Sader, E. (Comp.) El ajuste estructural en América Latina. Costos sociales y alternativas. Buenos Aires, Clacso. GELDSTEIN, Rosa (1994). Los roles de género en la crisis. Mujeres como principal sostén económico del hogar. Buenos Aires, CENEP. GIDDENS, Anthony (1991). Modernidad e identidad del yo. Barcelona, Península. (1995). La constitución de la sociedad. Buenos Aires, Amorrortu. 315

Gabriela del Valle Vergara

GIVERTI, E. (1996) [1994]. “‘Lo familia’ y los modelos empíricos”. En: Wainerman, C. (Comp.) Vivir en familia. Buenos Aires, Unicef – Losada. GORBÁN, Débora (2004). “Reflexiones alrededor de los procesos de cambio social en Argentina. El caso de los cartoneros”. En: e-l@tina. Revista electrónica de estudios latinoamericanos. Vol. 2, Nº 8: 3-15, Buenos Aires. (2006). “Trabajo y cotidianeidad. El barrio como espacio de trabajo de los cartoneros del Tren Blanco”. En: Trabajo y Sociedad. Nº 8, Vol. VII. Disponible en: http://www.unse.edu.ar/trabajoysociedad/Gorban.pdf, acceso octubre 2007. HALPERIN WEISBURD, Leopoldo et.al. (2009). Documentos de trabajo Nº 13. Cuestiones de género, mercado laboral y políticas sociales en América Latina: caso Argentina. Buenos Aires, Universidad de Buenos Aires. HOCHSCHILD, Arlie R. (2008). La mercantilización de la vida íntima. Buenos Aires, Katz. JELIN, Elizabeth (2006) [1998]. Pan y afectos. La transformación de las familias. Buenos Aires, FCE. LE BRETON, David (2002). La sociología del cuerpo. Buenos Aires, Ediciones Nueva Visión. (2008). Antropología del cuerpo y modernidad. Buenos Aires, Nueva Visión. LOBATO, Mirta Z. (2004). La vida en las fábricas. Trabajo, protesta y política en una comunidad obrera, Berisso (1904-1970. Buenos Aires, Prometeo. (2007). Historia de las trabajadoras en la Argentina: 1869-1960. Buenos Aires, Edhasa. MARX, Karl (2004) [1932]. Manuscritos Económico-Filosóficos de 1844. Buenos Aires, Colihue. MOHANTY, Chandra (2008). “Bajo los ojos de Occidente: academia feminista y discursos coloniales”. En: Descolonizando el feminismo. Teorías y prácticas desde los márgenes. Madrid, Ediciones Cátedra. 316

Tramas corporales, percepciones y emociones en las mujeres recuperadoras [...] Córdoba (Argentina)

MONTOYA, Silvia (1993). “Mujer y pobreza, Córdoba en los ochenta”. En: Feijó, M. (Comp.) Tiempo y espacio: las luchas sociales de las mujeres latinoamericanas. Buenos Aires, Clacso. MORRIS, Charles y MAISTO, Albert (2005). Psicología. México, Pearson Educación. NEFFA, Julio (2003). El trabajo humano: contribuciones al estudio de un valor que permanece. Buenos Aires, Lumen. PASCUCCI, Silvina (2007). Costureras, monjas y anarquistas. Trabajo femenino, Iglesia y lucha de clases en la industria del vestido (Bs. As. 1890-1940. Buenos Aires, Ediciones RyR. PARRA, Federico (2007). “Reciclaje popular y políticas públicas sobre manejo de residuos en Bogotá (Colombia)”. En: Schamber y Suárez (Comp.) Recicloscopio. Miradas sobre recuperadores urbanos de residuos de América Latina. Buenos Aires, Prometeo Libros, UNLA y UNGS. RECCHINI DE LATTES, Zulma y WAINERMAN, Catalina (1977). “Empleo femenino y desarrollo económico: algunas evidencias”. Desarrollo Económico. Vol. 17, Nº 66. Disponible en: http://www.jstor.org/ pss/3466400. SCRIBANO, Adrián (2005). “El fantasma cordobés: ni docta, ni isla, ni progre”. En: Scribano A.(Comp.), Geometría del conflicto: Estudios sobre acción colectiva y conflicto social. Córdoba, Universitas. (2007a). “La sociedad hecha callo: conflictividad, dolor social y regulación de las sensaciones”. En: Scribano, A. (Comp.), Mapeando interiores. Córdoba, Universitas. (2007b). “¡Vete tristeza …viene con pereza y no me deja pensar! … hacia una sociología del sentimiento de impotencia”, en Luna Zamora, R. y Scribano, A. (Comps), Contigo aprendí. Estudios sociales sobre las emociones. Córdoba, Copiar.

317

Gabriela del Valle Vergara

(2007c). “Salud, dinero y amor…! Narraciones de estudiantes universitarios sobre el cuerpo y la salud”. En: Scribano, A. (Comp), Policromía corporal. Cuerpos, grafías y sociedad. Córdoba, Universitas. VERGARA, Gabriela (2006). Valoraciones frente a la desindustrialización. Tesis de la Licenciatura en Sociología, UNVM, Mimeo. 2008). “Género y pobreza: una aproximación a las recuperadoras de residuos de San Francisco (Córdoba - Argentina)”. Nómadas. Revista Crítica de Ciencias Sociales y Jurídicas. Disponible en: http://www.ucm.es/info/nomadas/. (2010). Percepciones del trabajo doméstico y extradoméstico de las mujeres recuperadoras de residuos de las ciudades de Córdoba y San Francisco. Tesis de Maestría en Ciencias Sociales, UNC, Mimeo.

318

Corpos em Concerto: diferenças, desigualdades e desconformidades

CORPOS-TEXTO: a Colonização do Sexo pelo Gênero na obra de Judith Butler134 Cynthia Lins Hamlin

Introdução “Não se nasce mulher: torna-se mulher”. Com esta afirmação, Simone de Beauvoir (1989) inaugura uma nova fase nos estudos acerca da desigualdade entre homens e mulheres, uma espécie de paradigma ou de programa de pesquisa cujo foco versa sobre a análise dos fatores sociais e culturais que subjazem àquela desigualdade. As décadas de 1960 e, em especial, de 1970, servem de palco para a desnaturalização da feminilidade e da sexualidade em geral, sendo que uma das principais ferramentas analíticas deste processo, especialmente na tradição de pesquisa anglosaxã, é a distinção entre sexo e gênero. De um ponto de vista puramente conceitual, no entanto, Beauvoir tem pouco ou nada a ver com esta distinção. Utilizado como sinônimo de sexo na literatura desde o século XV, é apenas na década de 1950 que o termo gênero perde sua conotação meramente gramatical (HAIG, 2004) e adquire um contorno que o torna especialmente útil para a agenda de pesquisa dos estudos feministas e de mulheres disseminada a partir de Beauvoir. Inspirado pelos conceitos de status e de papel sexual desenvolvidos por Talcott Parsons, John Money introduz o termo “papel de gênero” em um artigo de 1955 para dar conta de “todas aquelas coisas que uma pessoa diz ou faz para se revelar como tendo o status de menino ou de homem, menina ou mulher, Artigo desenvolvido a partir de texto intitulado “Sexo, Gênero e Políticas Emancipatórias”, escrito por mim e por Betânia Ávila (SOS Corpo), apresentado no GT “Sexualidades” do XIII Congresso Brasileiro de Sociologia, Recife, 2007. Agradeço a Betânia a leitura atenta desta versão que, embora distante da original, é produto de um trabalho a quatro-mãos. Possíveis erros e omissões são, entretanto, de minha inteira responsabilidade. 134

319

Cynthia Lins Hamlin

respectivamente” (MONEY apud HAIG, 2004: 90). Em 1966, refletindo acerca deste conceito, Money afirma haver importado o termo para a sexologia a fim de: [...] tornar possível escrever sobre pessoas que chegavam ao consultório como homem ou como mulher, mas das quais não se podia afirmar que seu papel sexual, no sentido especificamente genital, era masculino ou feminino, na medida em que tinham tido uma história de defeito congênito dos órgãos sexuais (MONEY apud HAIG, 2004: 91).

Inicialmente desenvolvido para lidar com situações de intersexualidade, o conceito de gênero mostrou-se frutífero para o programa de pesquisa feminista das décadas de 1960 e 1970 ao sugerir uma distinção entre o sexo biológico, caracterizado por critérios anatômicos, hormonais ou cromossômicos, e o gênero, relativo a características socialmente construídas, relativas a homens e mulheres, como papéis sociais, divisão do trabalho, características psicológicas, comportamentais etc. (OUDSHOORN, 2000). Estavam lançadas as novas bases sobre as quais as relações entre o biológico e o social, o natural e o cultural, influenciavam-se mutuamente. Em uma concepção típica do período, Gayle Rubin (1975: 159) define o que denomina de “sistema sexo/gênero” como “o conjunto de arranjos por meio dos quais a sociedade transforma a sexualidade biológica em produtos da atividade humana e nos quais essas necessidades sexuais transformadas são satisfeitas”. Apesar de concepções como esta apontarem para certo borramento de fronteiras entre o natural e o social/cultural, está pressuposta uma autonomia relativa das duas ordens em questão e, neste sentido, independentemente do peso causal atribuído pelos diferentes autores aos elementos biológicos ou sociais, a realidade objetiva de fatores destas duas ordens era tida como um dado. Embora a diferença sexual fosse considerada real, ela era também tida como relativamente trivial, já que não podia dar conta dos traços de “feminilidade” e “masculinidade”, nem da opressão feminina (NEW, 2005). Nancy Chodorow (1997), por exemplo, argumenta que, ao contrario do que afirmava Freud, as diferenças anatômicas percebidas por meninos e meninas não são automaticamente interpretadas como diferenças de 320

Corpos-Texto: a Colonização do Sexo pelo Gênero na obra de Judith Butler

gênero, mas dependem de arranjos socioculturais calcados na centralidade conferida às mulheres como cuidadoras primárias, por um lado, e à desvalorização cultural da feminilidade, por outro. Longe de apostar em um essencialismo biológico do tipo “anatomia é destino”, Chodorow defende que as diferenças de gênero são parte de um “sistema de relações sociais assimétricas enraizadas em desigualdades de poder, nas quais nos desenvolvemos como selves e como mulheres e homens” (1997: 17). Embora se opondo (com graus distintos de sucesso) ao essencialismo biológico, as feministas de segunda onda frequentemente associavam a ideia de feminilidade (gênero) ao “ser mulher” (sexo), na medida em que “mulher” era considerada uma base real para a solidariedade, dado que fundamentada em interesses comuns e/ou em uma natureza comum. Diferenças entre mulheres – baseadas em classe, raça, preferência sexual, etnicidade, maternidade etc. – embora pudessem ser consideradas significativas (como era o caso para Chodorow), não eram tratadas como particularmente relevantes. A partir da década de 1980, algumas feministas começaram a questionar essa unidade sob o argumento de que ela obscurecia as diferenças entre as mulheres, tornando o feminismo uma teoria de mulheres brancas e de classe média. Assim, também o universalismo passou a ser contestado, gerando uma fragmentação e uma tensão sem precedentes na teoria feminista: se “mulher” era uma identidade fragmentada, então a categoria não mais poderia ser utilizada como base para a solidariedade política. A política do reconhecimento daquelas identidades subordinadas (não brancas, não classe média) tornouse cada vez mais importante e, com ela, abriu-se espaço para a ideia de luta como situada de forma privilegiada na esfera discursiva (NEW, 2005), gerando novo deslocamento entre o natural e o cultural, numa espécie de colonização do sexo pelo gênero. Uma análise das principais bases de dados de citações de artigos científicos do mundo (o Science Citation Index, o Social Science Citation Index e o Arts & Humanities Citation Index) entre o período de 1945-2001 mostra que, não por acaso, a partir daquela década de 1980, o número de títulos de artigos contendo a palavra sexo declinou consideravelmente, enquanto que os títulos contendo a palavra gênero superaram em muito os primeiros, mesmo fora das ciências sociais (HAIG, 2004). Este 321

Cynthia Lins Hamlin

deslocamento refere-se, em parte, à crítica feminista da ciência operada por autoras como Ruth Bleier e Anne-Fausto Sterling, que demonstram como o uso inadequado da categoria sexo pela biologia possibilita que determinadas construções de gênero (por exemplo, a distinção entre homem ativo e mulher passiva com base na presença do Fator Determinante dos Testículos – FDT - no cromossomo Y) passem por fatos biológicos e não por efeitos de gênero, ou distinções culturais calcadas em linhas de poder (KRAUS, 2000; 2005). Mais uma vez, as situações de intersexualidade tornaram-se o ponto de partida para o estabelecimento de um continuum sexual entre macho e fêmea e a partir do qual se questiona a existência do dimorfismo na natureza. Entre homem e mulher, macho e fêmea, uma variedade de “sexos” que abala a matriz binária dominante, sugerindo que o sexo é uma categoria tão instável e heterogênea quanto o gênero.

Judith Butler: sexo como gênero De um ponto de vista mais geral, no entanto, o que estamos chamando aqui de colonização do sexo pelo gênero tem relação íntima e direta com o pós-estruturalismo, uma abordagem que tem privilegiado o discurso como forma social por excelência ao focar as condições de possibilidade da emergência de determinados objetos, conceitos, estratégias e sujeitos. Uma das principais representantes desse movimento, Judith Butler propõe demonstrar que categorias de identidade como sexo e gênero são efeitos de instituições, práticas e discursos, e não a origem ou a causa destes últimos; mais especificamente, tenta demonstrar que a relação que se estabeleceu entre sexo e gênero foi um efeito de duas instituições principais: o falocentrismo e a heterossexualidade compulsória, instituições que devem ser desestabilizadas caso se pretenda estabelecer uma política de gênero emancipatória (BUTLER, 2003). Neste sentido, Butler opera um deslocamento radical entre sexo e gênero (no sentido de que o gênero é concebido como absolutamente independente do sexo), em busca de outra concepção daquilo que Rubin Gayle denominou “sistema sexo/ gênero”. Para ela, contrariamente a Gayle, a relação entre sexo e gênero é absolutamente contingente: o gênero pode se tornar uma espécie de 322

Corpos-Texto: a Colonização do Sexo pelo Gênero na obra de Judith Butler

“artifício flutuante”, com a consequência de que “homem” e “masculino” podem facilmente significar um corpo masculino ou feminino, e “mulher” e “feminino”, um corpo masculino ou feminino. Assim, enquanto Gayle, de alguma forma, “amarra” o gênero ao sexo ao pressupor a existência de “necessidades sexuais biológicas” (ainda que estas sejam socialmente transformadas), Butler implode todo e qualquer fundamento biológico e concentra-se nas formas como os atributos flutuantes de gênero são regulados, gerando padrões identitários relativamente estáveis ou identidades de gênero inteligíveis. Partindo de uma perspectiva genealógica, Butler vai em busca das “condições de possibilidade” de determinados discursos ou formulações de sexo/gênero; dito de outra forma, daqueles elementos sociais/culturais que garantem a inteligibilidade de certas formulações do que seja “masculino” ou “feminino”, ao passo que impede outras por torná-las inconcebíveis ou impossibilidades lógicas (como a existência de outros sexos ou identidades de gênero) (BUTLER, 1993). Ao focar o discurso, Butler não pretende negar a materialidade dos corpos, mas sugere que ela seja concebida como efeito de poder dissimulado, como efeito de normas reguladoras heterossexistas ou da instituição da heterossexualidade compulsória. A divisão dos corpos entre masculinos e femininos é uma interpretação política desses corpos (não existem corpos sem marcadores sexuais), e o sexo é compreendido como uma categoria normativa e não simplesmente descritiva, que produz, circunscreve e regula os corpos ao possibilitar ou impossibilitar determinadas identificações que, por seu turno, “produzem” corpos sexuados culturalmente inteligíveis (BUTLER, 1993). A relação entre sexo e gênero, ou mais especificamente a construção do sexo como efeito de gênero, dá-se pela noção de performance, ou um conjunto de gestos desempenhados sob a superfície do corpo, mas que instituem as fronteiras desse corpo a partir dos limites do socialmente hegemônico. Em outras palavras, o sexo é materializado por meio da performatividade dos agentes sociais, inclusive por meio de práticas sexuais que “abrem ou fecham superfícies ou orifícios à significação erótica”, reinscrevendo as fronteiras do corpo (BUTLER, 2003: 190). De uma perspectiva política, a performance adquire o papel central no processo de transformação. Partindo da definição usual de 323

Cynthia Lins Hamlin

atos performativos de J. L. Austin (sentenças que, ao serem proferidas, desempenham certa ação e exercem um poder coercitivo, como sentenças legais, declarações de propriedade etc.), Butler (1993: 225) conclui que o “performativo é um domínio no qual o poder age como discurso”. Mas, como mencionado acima, o poder do discurso é circunscrito: para que materialize seus efeitos ele deve estar em consonância com seu poder de circunscrever o domínio da inteligibilidade. Isto nem sempre ocorre. A força normativa da performatividade, ou o seu poder de estabelecer o que conta no domínio ontológico (corpos masculinos ou femininos, por exemplo), opera por meio da reiteração das normas e também por meio da exclusão (não há nada fora do dimorfismo, por exemplo). Assim, as identidades de sexo e gênero são concebidas como práticas e, os sujeitos, como “efeitos de um discurso amarrado por regras” (BUTLER, 2003: 208). A capacidade de mudança reside no fato de que, embora as performances sejam consideradas como constitutivas do sujeito, este sujeito não é determinado pelas regras (assim como os corpos não são gerados pelos discursos). De fato, as repetições das regras via performance nunca são simples repetições, mas sempre geram uma espécie de excedente, pequenas variações que abalam os significados instituídos dessas normas, o que abre espaço para sua desestabilização e, em última instância, para o fim do binarismo que regula a heterossexualidade compulsória. A agência crítica está, portanto, intimamente ligada à possibilidade da desestabilização das normas a fim de que se possam rearticular os termos da inteligibilidade e da legitimidade simbólica via discursos políticos que mobilizem categorias de identidade. Isto é feito por meio de identificações e desidentificações que possam servir a objetivos políticos definidos, embora os marcadores de identidade não sejam considerados um prérequisito para a participação política (BUTLER, 2004). Talvez fosse mesmo mais adequado afirmar que, no caso de Butler, é a desidentificação que possibilita uma transformação hegemônica dos horizontes que garantem a inteligibilidade. Isso porque as categorias politicamente disponíveis para a identificação restringem de antemão o jogo da hegemonia. No entanto, dado que a desidentificação não pode ser considerada um mero processo psíquico - o que “transformaria a psicanálise no ponto final da 324

Corpos-Texto: a Colonização do Sexo pelo Gênero na obra de Judith Butler

política” (BUTLER, 2000: 156), a importância da identidade é mantida na medida em que se faz necessário conhecer como determinadas formas de instabilidade se abrem dentro do campo político em virtude dos próprios processos de identificação. É por esta razão que a autora considera possível uma política feminista sem a existência de um sujeito “mulher” (mesmo no plural), uma concepção que - segundo ela - deve ser combatida, dado que se apoia na heterossexualidade compulsória e em seus mecanismos de exclusão. O que não fica claro, no entanto, é como as trajetórias de identificação que possibilitam a viabilidade dos sujeitos políticos podem se converter naquilo que ela chama de “resistências desidentificatórias” (BUTLER, 2000), gerando a suspeita de que o processo ocorre, de fato, num nível individual. Colocando a questão de outra forma, o que, afinal de contas, possibilita a relativa resistência ou plasticidade das estruturas sociais e biológicas, tornando-as passíveis de serem transformadas pela agência humana? O que parece faltar aqui é uma concepção mais robusta dessas estruturas do que uma simples referência à instituição da heterossexualidade compulsória. Algumas dessas estruturas são efetivamente extradiscursivas, no sentido de que estão localizadas em nível ontológico distinto do cultural. Ainda que se possa aceitar que as fronteiras do corpo são, em algum sentido, discursivamente formadas, isso não dá conta daqueles elementos que estão, por assim dizer, fora do domínio discursivo. Parte do problema é que Butler, assim como a maioria dos pós-estruturalistas, não considera como real aquilo que esteja fora do domínio do discurso135: o sexo, concebido como categoria natural, seria nada mais do que uma ficção “talvez uma fantasia, retroativamente instalada em um lugar pré-lingüístico ao qual não se tem acesso direto” (BUTLER, 2004: 5). É interessante, neste sentido, que frequentemente a categoria sexo seja utilizada por ela de forma intercambiável com a de sexualidade, que é geralmente entendida como uma prática. O constrangimento que se impõe sobre estas práticas são, por seu turno, também da esfera discursiva, não havendo nada em nossos corpos que possa, em princípio, escapar a esta regra, ou pelo menos nada acerca do que se possa afirmar alguma coisa. Embora Butler Para uma exceção importante, ver a noção lacaniana de “Real” e sua apropriação por Slavoy Zizek (2000). 135

325

Cynthia Lins Hamlin

reconheça a existência de um “excedente” da realidade em relação ao discurso (daí o subtítulo altamente ambíguo de um de seus livros, “sobre os limites discursivos do sexo” - o que deve ser compreendido não apenas no sentido dos limites do corpo impostos pelo discurso, mas também dos limites do discurso em relação ao sexo como referente), ela se nega a fazer quaisquer afirmações a respeito deste excedente: assim como o Real lacaniano, ele é não tematizável. Nenhuma possibilidade, portanto, de justificar a existência extradiscursiva de algo por meio de observações (geralmente indiretas) dos efeitos deste objeto, ainda que não se saiba exatamente o que ele é. Assim, pouco importa que nossos corpos “funcionem” independentemente do tipo de conhecimento que temos acerca deles, ou que diversas de nossas performances de gênero sejam restringidas (e também capacitadas) por esses limites não discursivos. Não se trata, de acordo com a nossa perspectiva, de defender posições como a de Lacan, para quem “a inteligibilidade cultural requer a diferença sexual” (LACAN apud BUTLER, 2000: 150), mas de reconhecer que a diferença sexual assume um status (quase) transcendental, no sentido específico de que ela não apenas coloca limites em relação à plasticidade dos corpos, mas também que o tipo de constrangimento social e cultural relativo ao que ela chama performance (relativa ao gênero) é diferente daquele exercido pela anatomia, fisiologia etc., relativos ao sexo. Por exemplo, a identificação do corpo de um transexual pós-operado como feminino ou masculino é culturalmente contingente, mas qualquer política social relativa ao acesso a técnicas de modificação sexual deve levar em consideração as diferenças sexuais (cromossômicas, anatômicas, hormonais, corporais, enfim) para que seja eficaz. Existem determinados clusters de características manifestas associados ao sexo (timbre de voz, distribuição e quantidade de pelos corporais, presença de genitália com características especificas, massa muscular, distribuição de gordura etc.) que, embora isoladamente não sejam distintivos dos sexos, tendem a aparecer juntos (HULL, 2006); e isso se deve à presença de determinados mecanismos causais que, embora possam não se manifestar devido a sua interação com outros mecanismos contravenientes (podendo inclusive gerar situações de intersexualidade), devem ser levados em consideração como algo distinto das interpretações 326

Corpos-Texto: a Colonização do Sexo pelo Gênero na obra de Judith Butler

acerca das propriedades desses mecanismos. Assim, por exemplo, embora a presença ou ausência do hormônio FDT (Fator Determinante dos Testículos) não possa ser considerada uma causa de comportamentos ativos ou passivos, ou seja, a descrição dos “poderes causais” deste hormônio, efetuada até o momento, seja inadequada, sua presença ou ausência, assim como sua interação com outros elementos causais da esfera biológica, terá consequências distintas. O problema real que se coloca não diz respeito apenas à adequação de nossas descrições ou à relação de adequação empírica entre o signo e seu referente, mas, de maneira muito mais profunda, à consideração de um domínio ontológico distinto de um domínio epistemológico (discursivo ou representacional). A critica pós-estruturalista ao dualismo sexo/gênero baseia-se numa elisão entre realidade e representação. O problema com esta elisão é que, do fato de que a natureza só pode ser conhecida sob certas descrições, não se segue que nossas descrições constituem a natureza. Como afirma Vandenberghe (2003: 465): “Colidida em ‘natureza’, a natureza tornase cultura [...]. O significante “natureza” performativamente constrói a natureza e, no fim das contas, o significado é deferido e o referente é ‘exterminado’ pelo discurso”. Em outras palavras, a prioridade conferida ao cultural impede que o sexo seja concebido como algo mais do que aquilo “que a sociedade designa ou o que a sociedade faz dele” (WEEKS, citado em LAQUEUR, 2000, p. 13). Assim, embora autoras como Butler e Fausto-Sterling esforcem-se por admitir a dimensão material dos corpos, a ênfase em sua dimensão ideológica ou simbólica não apenas erode a distinção entre o corpo físico e o corpo cultural, mas prioriza o segundo, transformando o primeiro em mero epifenômeno: “... nós literalmente, não apenas ‘discursivamente’ (isto é, por meio da linguagem e de práticas culturais), construímos nossos corpos, incorporando a experiência em nossa própria carne”, diz FaustoSterling, complementando, mais adiante: “Eu proponho modificar o bon mot de Halperin de que a ‘sexualidade não é um fato somático, é um efeito cultural’, argumentando, em vez disso, que a sexualidade é um fato somático criado por um efeito cultural” (FAUSTO-STERLING, 2000: 2021 [ênfases no original]). 327

Cynthia Lins Hamlin

A despeito de suas afirmações do sexo biológico como ficção, a posição de Butler parece, à primeira vista, mais sutil que a de FaustoSterling, e ela se esforça por estabelecer que os discursos não constituem os objetos naturais em um sentido forte. Em entrevista originalmente publicada em 1998, Butler (apud PRINS; MEIJER, 2002: 157) afirma que se enfurece com “as reivindicações ontológicas de que códigos de legitimidade constroem nossos corpos no mundo”, mas não parece muito preocupada em tentar determinar quais são os limites (materiais) para a construção desses discursos136. Isso não seria um problema em si mesmo se ela não estivesse preocupada em gerar mais do que um projeto epistemológico (ou, mais apropriadamente, desconstrutivista). Existe, na verdade, um projeto ontológico em sua obra, mas ele é marcado, como a própria Butler reconhece (apud PRINS; MEIJER, 2002: 160), por uma série de contradições performativas: ao mesmo tempo em que ela afirma que existem determinados tipos de corpos, defende que eles não têm “reivindicação ontológica”. Tal contradição performativa é entendida como projeto essencialmente político: uma forma de instituir novas ontologias (por exemplo, determinados tipos de corpos considerados abjetos e, por esta razão, não inteligíveis de acordo com as normas culturais vigentes). Mas, para que a “existência” de determinados corpos considerados abjetos possa ser defendida num projeto político, não basta apenas postulá-la: é preciso justificar as bases segundo as quais essa crença ontológica pode ser sustentada e considerada, de alguma forma, mais adequada do que outras concepções acerca do que esses corpos são. E isso Butler recusase a justificar: a fim de evitar o assujeitamento que deriva dos processos de nomeação, seus pressupostos, ao contrário daqueles cuja ontologia desconstrói, são mantidos implícitos, impedindo qualquer movimento de reconstrução que forneça as bases para a ação política, especialmente no que diz respeito a intervenções materiais. A este respeito, remetemos à irônica nota de Vandenberghe (2003: 472): “Judith Butler é a teórica da transexualidade. Mas na medida em que dificilmente se encontrará em seus textos referências a injeções de silicone, operações estéticas ou a outras práticas materiais que subvertem a naturalidade da distinção entre os sexos, pode-se muito bem afirmar que sua teoria da transexualidade é, na verdade, uma teoria da transtextualidade. Sempre encapsulado na linguagem, o corpo é tão intangível quanto a coisa-em-si kantiana”. 136

328

Corpos-Texto: a Colonização do Sexo pelo Gênero na obra de Judith Butler

Conclusão Embora não se trate de negar a importância da desconstrução para a produção do conhecimento e para a ação política via construção de discursos contra-hegemônicos, este último, em particular, implica não apenas num movimento de desconstrução a fim de desestabilizar os significados instituídos, mas no compromisso explícito com uma ontologia que possibilite também um movimento reconstrutivo. Este movimento de reconstrução deve, de acordo com a perspectiva defendida aqui, basearse no estabelecimento de uma ontologia que possibilite a defesa de critérios de existência de determinados mecanismos, irredutíveis, relativos aos diferentes níveis da realidade - como o biológico, o psicológico, o cultural, social etc. Só assim se pode pensar nos limites e possibilidades efetivamente colocados pela realidade às nossas práticas culturais. Embora a descrição desta ontologia fuja ao escopo deste trabalho (a este respeito, ver HAMLIN, 2000, 2008; NEW, 2005; HULL, 2006), reproduzimos, a seguir, uma explicação típica da relação sexo/gênero concebida em termos da interação dos mecanismos de diversos níveis da realidade, conforme efetuada por Caroline New para dar conta da bandagem de pés das mulheres chinesas entre o século X e meados do século XX. Pode-se começar fazendo referência a alguns elementos discursivos, como o fato de o imperador Li Yu haver ordenado a suas concubinas amarrassem seus pés em um determinado ponto da história e, em outro momento, Mao Tse Tung haver proibido a prática. Mas, para que as demandas de um homem (se é que elas de fato existiram) tenham se tornado uma moda que findou por se transformar em uma instituição social durável, diversos fatores certamente se fizeram presentes para que isto se fosse possível. Assim: No nível dos mecanismos biológicos, o dimorfismo sexual deve se manifestar de tal forma que as mulheres tendem a ser menores do que os homens (ou teria que haver outra origem contingente para a significância simbólica desta prática). Os pés humanos devem apresentar determinados poderes e possibilidades, de forma que se a maioria dos artelhos fossem quebrados e envolvidos em bandagens quando a criança tivesse cerca de 329

Cynthia Lins Hamlin

três anos de idade, o pé permaneceria pequeno. [...] No nível psicológico, a sexualidade humana deve apresentar tal maleabilidade cultural que um andar com passos diminutos possa ser imbuído de significado erótico. Em particular, as diferenças que expressam ou simbolizam as diferenças sexuais e de gênero (tais como o exagero do tamanho relativamente pequeno dos pés femininos) teriam que ter a tendência a causar excitação. No nível cultural, crenças acerca da diferença sexual teriam que legitimar tal prática, e associações simbólicas teriam que torná-la inteligível e capaz de ser sexualmente carregada. No nível social, a estrutura de classes, incluindo a autoridade, poder papel simbólico do imperador, deveriam capacitá-lo a lançar modas. As relações de poder entre homens e mulheres, adultos e crianças, teriam que ser tais que as mulheres da família desempenhariam o ato inicial (“caso contrário, nenhum homem bom vai querê-las”) e a criança e as diversas testemunhas permiti-lo-iam. A economia deveria possibilitar a incapacitação da maioria das mulheres de classe média e alta. Estes e muitos outros mecanismos em diversos níveis teriam que exercer seus poderes emergentes de formas particulares e com base em relações particulares entre si para que esta instituição possa ter se desenvolvido e perdurado. (NEW, 2005: 9-10)

O exemplo possibilita perceber que a diferença sexual não causa, por si só, nem as diferenças nem as desigualdades de gênero que a teoria feminista se propõe a explicar e transcender. No entanto, deixa claro que qualquer projeto emancipatório que se pretenda eficaz deve levar em consideração os limites e possibilidades impostos por mecanismos relativos aos diversos níveis da realidade, sendo um deles o biológico.

330

Corpos-Texto: a Colonização do Sexo pelo Gênero na obra de Judith Butler

Bibliografia BEAUVOIR, Simone (1989). The Second Sex. Nova York, Vintage Books. BUTLER, Judith (1993). Bodies that Matter: On the Discursive Limits of Sex. Nova York e Londres, Routledge. ________ (2000). “Universalidades en Competência”. In: Judith Butler, Ernesto Laclau e Slavoj Zizek, Contingencia, Hegemonia, Universalidad: Diálogos Contemporáneos en la Izquierda. Buenos Aires, Fondo de Cultura Económica. ________ (2003). Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira. ________ (2004). Undoing Gender. Nova York e Londres, Routledge. CHODOROW, Nancy (1997). “Gender, Relation, and Difference in Pscychoanalytic Perspective”. In: Diana Tietjens Meyers (ed.), Feminist Social Thought: a reader. Londres e Nova York, Routledge. FAUSTO-STERLING, Anne (2000). Sexing the Body: gender politics and the construction of sexuality. Nova York, Basic Books. HAIG, David (2004). “The Inexorable Rise of Gender and the Decline of Sex: Social Change in Academic Titles, 1945–2001”. Archives of Sexual Behavior. Vol. 33, No 2: 87–96. HAMLIN, Cynthia (2000). “Realismo Critico: um programa de pesquisa para as ciências sociais”. Dados. Vol. 43, No 2: 373-398. ________ (2008). “Ontologia e Gênero: realismo crítico e o método das explicações contrastivas”. Revista Brasileira de Ciências Sociais. Vol. 23:. 7181. KRAUS, Cynthia (2000). “La Bicatégorisation par Sexe a l’‘epreuve de la science’: Les cas des Recherces en Biologie sur la Détermination du Sexe chez les Humains”. In: Delphine Gardey e Ilna Löwy (Orgs.), L’Invention du

331

Cynthia Lins Hamlin

Naturel: Les Sciences et la Fabrication du Féminin et du Masculin. Paris, Éditions des Archives Contemporaines. ________ (2005). “‘Avarice Épistemique’et Économie de la Connaissance: Le Pas Rien du Constructionisme Social”. In: Hélène Rouch, Elsa Dorlin e Dominique Fougeyrollas-Schwebel (Orgs.), Le Corps, entre Sexe e Genre. Paris, L´Harmattan. NEW, Caroline. (2005). “Sex and Gender: A Critical Realist Approach”. New Formations. No. 56: 54-70. OUDSHOORN, Nelly (2000). “Au Sujet des Corps, des Techniques et des Féminismes”. In: Delphine Gardey e Ilna Löwy (Orgs.), L’Invention du Naturel: Les Sciences et la Fabrication du Féminin et du Masculin. Paris, Éditions des Archives Contemporaines. RUBIN, Gayle (1975). “The Traffic in Women: Notes on the ‘Political Economy’ of Sex”. In: Rayana Reiter (Org.), Toward and Anthropology of Women. Nova York e Londres, Monthly Review Press. VANDENBERGHE, Frédéric (2003). “The Nature of Culture. Towards a Realist Phenomenology of Material, Animal and Human Nature”. Journal for the Theory of Social Behaviour. Vol. 33, No 4: 461-75. ZIZEK, Slavoy (2000). “Mantener el Lugar”. In : Judith Butler, Ernesto Laclau e Slavoj Zizek, Contingencia, Hegemonia, Universalidad: Diálogos Contemporáneos en la Izquierda. Buenos Aires, Fondo de Cultura Económica.

332

Corpos en Concierto: diferencias, desigualdades y disconformidades

LA TAUTOLOGÍA DEL SOLIDARISMO EN EL BICENTENARIO: “Argentina abraza a Argentina” María Eugenia Boito

Dicen que la vida te hace olvidar las ilusiones que tenés de chico. Yo estoy convencido de que se puede cambiar el mundo... los burgueses como yo, a las revoluciones las leemos en los diarios, pero no nos enganchamos en ninguna. Todas las revoluciones parecieran tener sangre y horror; llevan a la venganza de vencedores y perdedores. La revolución solidaria es constructiva, sin mucho debate. Juan Carr. Responsable de Red Solidaria, O.N.G. creada en 1996. (L)a caridad es, hoy, parte del juego, en tanto máscara humanitaria que oculta la explotación económica subyacente”. Slavoj Žižek Analía Hounie (Compiladora) “Violencia en acto. Conferencias en Buenos Aires” 2004.

El presente trabajo retoma reflexiones previas sobre el solidarismo137 y pretende debatir sobre “la revolución solidaria”. La estrategia interpretativa se inscribe fuera del discurso autorreferencial, tautológico de la solidaridad, instancia a partir de la cual es posible cuestionar la doxa que remite a la apoliticidad de lo solidario, en tanto fantasía social que genera prácticas que se instituyen repudiando el antagonismo de clase constituyente de la formación social contemporánea. Para alcanzar dicho objetivo se ha seleccionado la siguiente estrategia argumentativa: en primer lugar, se realizan consideraciones teóricas sobre la operatoria del solidarismo en la regulación de la Ver Eugenia Boito. “El retorno de lo reprimido como exclusión social y sus formas de borramiento: Identificación, descripción y análisis de algunas ‘escenas’ de lo construido hegemónicamente como ‘prácticas solidarias’. (2002-2004)”, Tesis de Comunicación y Cultura Contemporánea, CEA, UNC, mimeo, Diciembre de 2005. 137

333

María Eugenia Boito

soportabilidad/deseabilidad social retomando la perspectiva de S. Žižek sobre la ideología; en segundo lugar, se aborda la convocatoria Argentina abraza Argentina en el marco de la conmemoración del Bicentenario, por parte de Red Solidaria, Margarita Barrientos (por el comedor “Los Piletones”) y el actor Ricardo Darín; en tercer lugar, y a modo de cierre se retoma el recorrido propuesto, en vistas a exponer algunos rasgos de la “religión del desamparo neo-colonial” en los términos de A. Scribano, que expresa en las prácticas del solidarismo analizadas una máscara humanitaria, la contratara del capitalismo como religión-profana de la que nadie reniega ser practicante.

I. Antes de iniciar una exploración sobre la dinámica del solidarismo, se parte de reconocer tres creencias ideológicas materializadas que centralmente organizan el quehacer antes expresiones sintomales de carencia. En la Argentina contemporánea: 1- La estructuración en clases está naturalizada y la pobreza aparece como paisajística. 2- La oclusión de derechos sociales se concreta mediante la subsunción en la forma equivalencial hegemónica ‘cumplir un sueño’ para la simbolización de las más heterogéneas demandas. 3- El orden solidario138 actúa como mandato transclasista para actuar Todo aparece subsumido en esta nominación, lo más diverso, heterogéneo, extraño y disímil puede disponerse como objeto de acciones solidarias: ‘Solidaridad’ ante el crecimiento de la pobreza, la necesidad de donar sangre por un accidente reclama del ‘compromiso solidario’, la crisis energética hace que el ahorro de la misma se constituya en un ‘gesto solidario’, la muerte de un joven a manos de la policía suma a los ciudadanos en marchas de reclamo en ‘solidaridad’ con las víctimas del ‘gatillo fácil’, la muerte de otro joven víctima de un secuestro ‘extorsivo’ genera expresiones de acción colectiva de alta participación ciudadana. ‘Solidaridad’ con víctimas anónimas o mediáticas, individuales o colectivas, por un tornado, el desborde de un río, un accidente, la ‘desidia estatal’, la acción un grupo extremista o fundamentalista. Como mecanismo ideológico, la fantasía solidaria no sólo interviene desarraigando significantes de ciertos contextos de sentido y ejerciendo desplazamientos hacia la definición de otro tipo de interacciones, sino capturando heterogéneos y múltiples modos de afectación a las sensibilidades y subsumiéndolos en la unicidad del sentir solidario. 138

334

La tautología del solidarismo en el Bicentenario: “Argentina abraza a Argentina”

sobre expresiones sintomales que refieren a la desigualdad estructural, instanciando un modo de interacción que produce figuras de expresa crueldad o insensibilidad de clase. Estas tres creencias (no como fenómeno mental, sino como dimensiones ensambladas en una matriz socio-perceptiva que organiza prácticas) se traman entre si en los siguientes términos: La construcción (ideológica) hegemónica que organiza la visibilidad y la discursividad sobre las expresiones de pobreza -síntomas de la estructuración clasista y de sus dinámicas regresivasopera mediante el borramiento de los colectivos de identificación, fundamentalmente los clasistas.139 Sin embargo, no sólo es pertinente precisar que es lo que se borra -las formas de ocultación y de invisibilidad- sino la dimensión productiva de estas prácticas; es decir, que es lo que aparece y en que términos es construido. Ya desde un primer acercamiento al campo de estudio en cuestión, se ha podido reconocer la recurrencia de un significante que aparece como privilegiado en relación a la definición de las interacciones que se generan entre sujetos que ocupan posiciones de clase diferenciadas. Éste refiere a la solidaridad. Se trata de un significante que no sólo aparece de manera compulsiva para configurar y actuar en las objetivaciones de las relaciones de desigualdad, sino que se manifiesta como reconocido, valorado y disputado por diversos actores que tienen la intención de subsumir las prácticas bajo esa noción. Así la noción de ‘solidaridad’ actúa como un significante fundamental que por un lado, oculta las contradicciones de clase que caracterizan a esta formación social, y por otro legitima el accionar “ciudadano” y del “mercado” en el abordaje de expresiones Dice Juan Carr, representante de ‘Red Solidaria’: “son imágenes de un país que vemos todo el tiempo. Un país con dos caras muy evidentes. Por un lado, la tragedia de todos los días, la situación institucional más que complicada, los chicos que se mueren de hambre, los abuelos sin medicación. Por otro lado estamos tapados de solidaridad. Es una catarata solidaria, en todos los ámbitos, sea con un caso de cáncer, un trasplante, un discapacitado...” “Un país con dos caras. Juan Carr se sorprende todos los días con el agudo contraste entre la crisis y la avalancha solidaria” (Revista Nueva, anuario 2002, pág. 10). 139 En relación a la realidad Argentina, Adrián Scribano expresa la tendencia antes descripta: ‘en nuestra sociedad estamos asistiendo a dos procesos diversos y convergentes que la visión social legítima oculta. Por un lado, la fragmentación y, por el otro, la exclusión. Desde un punto de vista identitario asistimos a la disolución de los apelativos organizacionales de pertenencia’ (SCRIBANO, 2002: 123).

335

María Eugenia Boito

de la ‘cuestión social,’140 nombradas como demandas de los pobres.141 A partir de este designante, se configura un campo unificado de significado donde se concretan diversas operaciones ideológicas: la pretensión de unificación mediante simbolizaciones sucesivas de unidad que borren la contradicción estructural, el mecanismo de disimulación mediante operaciones de desplazamiento y / o eufemización, la desjerarquización de la reflexión sobre la desigualdad en pos de la exposición y / o narración de acciones de ‘ciudadanos comprometidos’, constituyen algunos ejemplos de las estrategias típicas de construcción ideológica.142 El significante ‘solidaridad’ opera en dos sentidos: construye un espacio proyectivo donde a través de colectivos de identificación vinculados a la idea de ‘nación’143, ‘los argentinos’ responden a estrategias de interpelación y ponen en acto prácticas orientadas a la satisfacción de necesidades de otros; y a la vez ocluye la visibilidad de procesos de fractura social contemporáneos, desplazando antiguos significantes en tanto maneras de configurar/ocluir las contradicciones. Por ejemplo, el Fitoussi y Rosanvallon afirman que las modalidades de constitución y abordaje de las ‘nuevas cuestiones sociales’, revelan la constitución de un consenso alrededor de una ‘ideología humanitaria’: “En primer lugar, el retorno de lo social se acompaña hoy por una confusión perversa de la política y de los buenos sentimientos. A la palabra ‘exclusión’, un moderno diccionario de ideas admitidas le añadiría imperativamente un ‘indignarse por ello’. El problema ya no es juzgar acciones ni evaluar prácticas, sino escapar a lo que se manifestaría como la suprema infamia: la indiferencia” (1996: 24). Continúan los autores: “En la política de los buenos sentimientos, no se habla ni de impuestos ni de costo de la solidaridad; no se discuten los efectos eventualmente perversos de ciertas políticas sociales, así como tampoco se procuran determinar verdaderos derechos. Uno se contenta con dar testimonio de una forma de solicitud. Es una manera piadosa de erigir la impotencia en valor moral” (1996: 25). 141 En este sentido, como afirma Therborn “La lucha ideológica ... es también la lucha por la afirmación de una determinada subjetividad – como creyente, ciudadano o miembro de una clase p.e – por la definición de determinados sujetos ... como ‘clases productivas’, el ‘pueblo’ o ‘los explotados’ – y por el tipo de subjetividad que debería aplicarse. (...) En la batalla ideológica lo que está en juego es la reconstitución, desometimiento o resometimiento y cualificación ya constituidos o su reproducción ante este desafío” (1998: 64–65). 142 J. B. Thompson, en ‘Ideology and modern culture’ identifica modos generales de la ideología (legitimación, disimulación, unificación, fragmentación y reificación). Cada uno de estos modos, se objetiva en estrategias: por ejemplo el modo de fragmentación se expresa en estrategias tales como la diferenciación y la expurgación del otro (Citado en ARIÑO, 1997: 128). 143 En contraposición a la lectura de Žižek: “La nación es una ‘comunidad imaginada’... en el sentido más radical de ser un ‘suplemento imaginario’ a la realidad social de la desintegración y los antagonismos irresolubles” (2003d: 121–122). 140

336

La tautología del solidarismo en el Bicentenario: “Argentina abraza a Argentina”

significante ‘justicia social’ no aparece o lo hace como ‘arcaico’144, en el sentido de Raymond Williams. A través de este acto de construcción/oclusión, las prácticas solidarias se sostienen en el borramiento de preguntas fundamentales: ¿por qué es necesario dar? ¿Por qué los sujetos, más allá de la posición que ocupen en la estructura social, son interpelados y se reconocen en la interpelación que los constituye como donantes y con esta acción suturan el hecho de que otro sujeto carezca de algo? ¿Por qué aparece como transparente e incuestionable la modalidad de lazo social que se instituye? El solidarismo como fantasía obtura la emergencia de estos interrogantes. Dice Scribano: La fantasía no deja ver lo que hay de antagónico en las prácticas que estructuran lo social. La fantasía obtura la visión de una visión y la transforma en un velo que permite ver solo los contornos de lo concreto. La fantasía ocluye el conflicto que subyace en la natural explicación de la vida cotidiana y consagra el conflicto como vacío (2002: 19).

Ante el retorno de lo real como horror (imágenes del hambre) el campo de la fantasía social ‘solidaria’ lee estos síntomas sociales a través de un mecanismo que genera una lectura invertida y que opera por transformación en lo contrario: el acento y la intensidad se concentra no en la pobreza, sino en la multiplicación de ‘microrevoluciones’ solidarias (imagen de una torre de alimentos, como se analiza a continuación). Una complacencia colectiva centrada en el síntoma; una reunificación imaginaria en episódicos goces de una sociedad fragmentaria y disgregada. El solidarismo como fantasía social en sentido amplio aparece entonces como una formación reactiva en relación a ese núcleo traumático, en la que operan mecanismos como la represión. Hay un tipo de represión característica de las formaciones sociales capitalistas: la que Arcaico es lo que sobrevive del pasado, pero como pasado, como referente de una formación cultural ya concluida. En relación al significante justicia social, para ser mas precisos, habría que analizar su funcionamiento en diversas construcciones discursivas, ya que quizás puede actuar no como arcaico’ sino como ‘residual’, en tanto elemento de otra formación cultural que sin embargo encuentra lugar en el presente del proceso cultural que se analiza. 144

337

María Eugenia Boito

remite a la continuidad y perduración de las relaciones de explotación.145 Pero en el tercer tiempo de este proceso,146 los representantes retornan y el ‘inconsciente social’ se expresa. Es así que “la realidad social no es entonces más que una telaraña simbólica que la intrusión de lo real puede desgarrar en cualquier momento” (ŽIŽEK, 2000: 36). A partir de lo expuesto, se puede ensayar la siguiente interpretación: la fantasía solidaria protege del horror de lo real-social, (en tanto instancia donde se proyectan posibilidades de acción) espanta los fantasmas de reclamos ancestrales por parte de las clases subalternas (por la generación de modalidades de interacción para operar sobre los síntomas sociales que retornan) y las prácticas solidarias operan mediante la fetichización de las situaciones de donación que se concretan. Esto último requiere precisar el significado del concepto de fetiche y su relación con los síntomas sociales. Dice Žižek: El fetiche es, efectivamente, una suerte de envés del síntoma. Es decir que el síntoma es la excepción que agita la superficie de la falsa apariencia, Creo que este es un lugar significativo para sostener una disputa con el proyecto político de ‘radicalización de la democracia’ que distingue a la propuesta de Laclau - Mouffe: para los autores el socialismo es una más de las dimensiones de su proyecto de ‘radicalización’ (y obviamente se resignifica en el marco de una construcción teórica y política cuyo significante fundamental es ‘democracia’). 146 La definición psicoanalítica de represión tiene diversos sentidos. En un sentido amplio refiere a “una operación defensiva por medio de la cual un sujeto intenta rechazar o mantener en el inconsciente representaciones (pensamientos, imágenes, recuerdos) ligados a una pulsión, cuya satisfacción ofrecería el peligro de provocar displacer en virtud de otras exigencias”. A través de este mecanismo se constituye en el conflicto psíquico estructurador del sujeto, donde se instaura una ley que prohíbe la satisfacción del deseo. Pero Freud no sólo conformó una modalidad de abordaje de la psique individual, sino que desarrolló lo que algunos denominan ‘ensayos’ y otros ‘extensión legítima’ del modelo teórico construido hacia a la explicación del origen y desarrollo de la civilización y de la cultura. Como se sabe en “El Malestar de la Cultura” (1930) afirma que la vida cultural se originó a partir de la represión de los impulsos, instalando un conflicto permanente entre los deseos del individuo y lo requerido para la vida en sociedad. Para el autor esta limitación de la gratificación se fue intensificando con el desarrollo de las sociedades. En las vinculaciones marxismo/psicoanálisis es Herbert Marcuse quien reflexiona sobre el plus de represión/represión sobrante o excedente, que conforma a las formaciones sociales capitalistas y se distingue de la represión básica, en tanto modificación ‘necesaria’ de los impulsos para la instauración y perpetuación de la vida social. (“Eros y Civilización”) Žižek - a diferencia de Marcuse - en lugar de centrar la atención en el plus de represión que caracteriza a los procesos de dominación social capitalistas va a analizar el plus de goce. 145

338

La tautología del solidarismo en el Bicentenario: “Argentina abraza a Argentina”

el punto en el que emerge la Otra Escena reprimida, mientras que el fetiche es la personificación de la mentira que nos permite mantener la verdad insoportable... un fetiche puede desempeñar un papel muy constructivo, permitiéndonos sobrellevar la cruda realidad: los fetichistas no son soñadores perdidos en sus mundos privados, son enteramente ‘realistas’, capaces de aceptar el modo en que las cosas son realmente - ya que tienen su fetiche, al que pueden aferrarse para cancelar el impacto total de la realidad (2001: 22).

Lo desarrollado permite abordar otra característica de la fantasía: la oclusión narrativa del antagonismo mediante la fetichización de la interacción solidaria. Señala Žižek que el hecho mismo de narrar testimonia la intención de establecer un orden, un tipo de registro y de secuencia (por lo menos temporal, sino lógica) a un antagonismo fundamental. Así, “sentirse” solidario o “ser” solidario es una fantasía que sostiene al sujeto en su adaptación a la realidad, fantasía que acepta como “natural” y que lo lleva a rechazar cualquier irrupción que amenace con su desintegración. Si puede hablar sobre ‘eso’, si puede hacer algo, evita el roce con lo traumático. La ideología solidaria en tanto creencia se sostiene en lo que se puede llamar ‘apariencia esencial’: los sujetos que participan en estas prácticas no se interrogan sobre el impacto y la capacidad de resolución de las cuestiones sociales problematizadas y planteadas, sin embargo actúan como si creyeran. Continúan con los rituales, con la carnavalización de la necesidad, se reconocen en los señuelos ‘para poder permanecer sensatos’ (ŽIŽEK, 2003d: 146). La energía social invertida en estas acciones se invierte (en el sentido de cambiar la dirección) y vuelve a ellos, para que ‘el sujeto conserve su ‘cordura’, su funcionamiento ‘normal’. (ŽIŽEK, 2003d: 146) Es así que el destinatario privilegiado de estas prácticas es quien ocupa la posición de ‘donante’, ya que a través de su participación puede ubicarse en la posición del ‘alma bella’ en el sentido hegeliano. Por esto Žižek cuestiona estas supernumerarias voluntades que manifiestan que ‘realmente quieren hacer algo para ayudar a la gente’. Las cantidades de energía social que parecieran traducirse en una serie de actividades, en realidad proporcionan:

339

María Eugenia Boito

[…] el ejemplo perfecto de interpasividad, de hacer cosas no para lograr algo, sino para evitar que algo pase realmente, que algo realmente cambie. Toda la actividad del filántropo frenético, políticamente correcto, encaja en la fórmula de ‘sigamos todo el tiempo cambiando algo, para que globalmente las cosas permanezcan igual’ (2003d: 23).

Un primer cierre (o apertura interpretativa) permite afirmar que la construcción de esta fantasía social supone la implementación de diversos mecanismos: inversión de lo real, oclusión el antagonismo, constitución de un orden: lo que es regla aparece como excepción, el carácter clasista se ocluye y las diversas formas de ‘compromiso solidario’ emergentes son materializaciones de resolución ‘imaginaria’ de un antagonismo estructural. De este modo, la fantasía crea una gran cantidad de ‘posiciones de sujeto’, entre las cuales el sujeto está en libertad de flotar, de pasar de una identificación a otra. Aquí se justifica hablar de ‘posiciones de sujeto múltiples y dispersas’, en el entendimiento de que estas posiciones de sujeto deben distinguirse del vacío que es el sujeto (ŽIŽEK, 1999: 16).

No hay un fuera de lugar, no hay un lugar más allá de lo solidario, porque se apela a colectivos de identificación que imposibilitan este desplazamiento: ‘los argentinos somos solidarios’ es el continente de la interacción a analizar. En este sentido la emergencia de múltiples interacciones solidarias, como intentos por representar una idea de “comunidad” nacional, aparece como un tipo particular de construcción ideológica que reprime la visualización de las dinámicas regresivas de reorganización de las relaciones entre las clases. Así, las canciones de cuna ‘solidarias’ interpelan a una sensibilidad para la cual existe un lugar para todos, orientan prácticas para dar un espacio a las más diversas demandas. En este sentido, la referencia a ‘los argentinos’ permite enfatizar la intencionalidad de contener y la disposición de ‘continente’ de estas acciones. Parafraseando irónicamente algunos aspectos de la propuesta de inteligibilidad de Ernesto Laclau y Chantal Mouffe, se puede sostener que el “molde” solidario establece equivalencias entre diversas relaciones de desigualdad. Pero las diversas ‘relaciones de subordinación’ no culminan redefiniéndose como ‘relaciones de opresión’ a partir del reconocimiento 340

La tautología del solidarismo en el Bicentenario: “Argentina abraza a Argentina”

de ciertos ‘antagonismos’, sino que el antagonismo desaparece mediante acciones que operan en la superficie de manifestación de los efectos de los mismos, suturando el sentido de la práctica en este plano.147 La falta de criterios de ponderación de las desigualdades junto a la concreción de reacciones epidérmicas, expresan las consecuencias políticas del régimen de verdad (como discursividad – visibilidad) de esta matriz.148 En la sociedad contemporánea, atravesada por procesos de creciente mercantilización y mediatización de la vida social, el solidarismo genera una sensación de desplazamiento del lugar hegemónico que tiene “el otro” (el extraño) en las grandes ciudades; temporariamente, permite expresar el sentirse afectado por su situación, desestructurando las habituales relaciones de indiferencia. Así las prácticas del solidarismo reconfiguran modalidades de experiencia integrando -imaginaria y fugazmente- a los sujetos en un horizonte compartido de acciones. En la constitución de este orden sociosimbólico, los medios masivos de difusión contribuyen en la simulación de la posibilidad de integración, de clausura del imaginario a través de narraciones o informaciones que ocluyan los antagonismos. Con relación a este tema, se recordará que en ‘Poesía y Capitalismo’ Walter Benjamin149 conecta la emergencia de un género literario (la literatura panorámica, el folletín) con procesos de transformación social. Así dice que las caracterizaciones del ‘otro’ que el género presenta al lector son bonachonas (un parecer sobre el La polémica Žižek - Laclau generada por diversas lecturas sobre la actualidad del pensamiento de Marx se hace cada vez más evidente. Precisa Žižek: “(l)a apuesta del marxismo es que existe un antagonismo (‘lucha de clases’) que sobredetermina a todos los demás y que como tal es el ‘universal concreto’ de todo el terreno” (2005: 72). 148 Adrián Scribano en el CD ‘Combatiendo Fantasmas’, Chile, 2004, aborda una indagación sobre las formas comunes existentes entre el pensamiento neoliberal y la propuesta posmarxista de Laclau, en función de las visiones de la política que están inscriptas respectivamente: la política como catalaxia y como catacresis La lectura de estas reflexiones permite identificar como, en determinado sentido, la batalla ideológica ejerce su acción considerando ‘gestaltd’ existentes, en tanto encuadres de las percepciones, ‘Catalaxias y catacresis: lo que está pero no se ve, lo que no se puede nombrar pero es performativo’ (2004: 122). “Crítica a la razón narrativa: un homenaje a la crítica adorniana en el marco de una discusión de la teoría social en Argentina” (122–126) 149 Debo este señalamiento a Silvina Mercadal, a partir de la lectura de ‘Le Flaneur’ de W. Benjamin. 147

341

María Eugenia Boito

prójimo alejado de la experiencia cotidiana, del encuentro cara a cara), en un espacio que se vuelve cada día más inquietante (la ciudad). Esta construcción de fantasía operante en ese momento histórico, que finge integrar lazos sociales que se disgregan, encuentra analogías con ciertas construcciones mediáticas sobre ‘lo solidario’ en la actualidad. Continúa Benjamin: “La prensa organiza el mercado de los valores espirituales, que es donde surge la especulación alcista” (en Baudelaire o las calles de París). Parafraseando: La página web “por los chicos”, la presencia de Juan Carr y Ricardo Darín en distintos programas difundiendo Argentina abraza Argentina organiza el mercado de los valores solidarios, que es donde surge la especulación alcista, expuesta en la imagen de “ladrillos” que van formando la Torre del Hambre Cero. 150 De esta forma este sensorium colectivo instituye momentos de encuentro con el otro en tanto ‘semblant’ en un universo social en mutación, donde lo real-social refiere a procesos de fragmentación y a la emergencia de nuevas tipologías de desigualdad. En términos de Scribano: En la actualidad esto se puede observar en el surgimiento de una /nueva/ religión del desamparo (en países) neocoloniales… compuesta por el consumo mimético, el solidarismo y la resignación. Religión cuya liturgia es la construcción de las fantasías sociales, donde los sueños cumplen una función central en tanto reino de los cielos en la tierra, y la sociodicea de la frustración el papel de narrar y hacer presentes-aceptables los fantasmáticos infiernos del pasado vuelto presente continuo. Mandatos sociales se instalan como las “nuevas tablas” de la Ley. ´Consuma que será feliz,… “Sea bueno alguna vez en el día”,… “Resígnese! porque eso El ser solidario al alcance de un ‘click’ (un mensaje por celular, un doble click del mouse en la computadora, etc.) expresan el carácter predominantemente indicial del régimen que organiza las pasiones. En contextos de mediatización de la experiencia, se requiere del esfuerzo de un ‘click’ para producir un instante de fantasía donde se activa una especie de función fática, de contacto, sin desplazamiento del lugar que se ocupa. Sin embargo y en términos de plus-valía ideológica producida en el “vínculo”, el clickleo ofrece descargas de valoraciones sociales que modifican la percepción que el si mismo tiene sobre el propio self (el ser solidario, por ende, valorizado en tanto tal) y la mirada de los otros (materializada en la narración del acto que se comparte luego por fuera del dispositivo tecnológico). La fuerza del solidarismo invierte su dirección y como plus retorna al sujeto, mediante el proceso de fetichización asociado al quehacer a distancia, mediado tecnológicamente. Debo la posibilidad de estas consideraciones a Belén Espoz. 150

342

La tautología del solidarismo en el Bicentenario: “Argentina abraza a Argentina”

es lo único que Ud. puede hacer”…son algunos de esos mandatos. Desde -y para- esta trinidad moesiana entre el consumo, que nos hace ser alguien, entre la solidaridad, que al único que beneficia es al que da, y entre la resignación que lo único que hace es procurar la aceptación de la limitación de la capacidad de acción, existen consecuencias sociales de multiplicación colectiva que se ritualizan y entrelazan. (SCRIBANO, en SCRIBANO; FÍGARI, 2009: 146, 147).151

En el año del Bicentenario, Argentina conmemora los doscientos años de la revolución enmarcando las acciones deseables y posibles desde el orden solidario152. En el próximo apartado se analiza una escena particular de este “orden”: Argentina abraza Argentina. Sin embargo, son numerosas las recurrencias de esta modalidad de interacción. Por ejemplo en el programa “Showmatch”, que desde hace algunos años ha instalado el compromiso solidario en las competencias de canto y baile “por un sueño” (sueños que remiten a demandas de comedores comunitarios, aportes de tecnología a hospitales, compra o pago de servicios médicos, etc.) el Bicentenario se conmemora con características solidarias y federales: diversas ciudades del país, en el marco del segmento “Canta Argentina” compiten por necesidades de sus localidades. El equipo de producción del programa se desplaza a las ciudades y durante una semana organiza una coreografía con sus habitantes, que va a ser votada por los televidentes153. Todos son uniformados con camisetas del programa y algunos pobladores agradecen haber sido elegidos como ciudad por el equipo de producción. Es esta la “oportunidad” de resolver demandas que no han sido tratadas como “cuestiones sociales” por los poderes políticos en sus territorios. Adrián Scribano ‘¿Por qué una mirada sociológica de los cuerpos y las emociones? A Modo de Epílogo’, en “Cuerpo(s), Subjetividad(es) y Conflicto(s). Hacia una sociología de los cuerpos y las emociones desde Latinoamérica”. Carlos Fígari y Adrián Scribano (compiladores), CLACSO/ Ciccus, 2009. 152 ‘Orden’ en el sentido de ‘organización’, pero también en términos de mandato social. ‘Orden’ que se va instituyendo y que aparece como posible y como deseable en el marco de la perspectiva hegemónica sobre el mundo social expuesta. 153 El viernes 14 de mayo e 2010 competían las ciudades de Comodoro Rivadavia y Cafayate. El lugar donde se hizo la coreografía en la primera ciudad, es un cementerio de los pobladores originarios, que en la actualidad es un descampado. 151

343

María Eugenia Boito

Si hace 200 años, en la configuración de los estados nacionales, los procesos de penetración ideológica encontraban en la organización escolar un dispositivo para la realización de la unificación /donde el guardapolvo aparece como imposición corporal orientada a la homogeneización/, la escena anteriormente referida señala al mercado -en lugar de la institución escolar- como instancia de creación de posibilidades y a las remeras de la Fundación y del programa como el ropaje que les permite a los pobladores aspirar a “cumplir sueños” en otro tiempo denominados “derechos”. La revolución solidaria a la que remite J Carr, sin mucho debate, aparece como una dogmática que es parasitada por el despliegue del capitalismo como religión en el sentido que identificaba W. Benjamin en un texto inconcluso de la década del 20. Precisa Benjamin: Hay que ver en el capitalismo una religión. Es decir, el capitalismo sirve esencialmente a la satisfacción de las mismas preocupaciones, penas e inquietudes a las que daban antiguamente respuesta las denominadas religiones. La comprobación de esta estructura religiosa del capitalismo, no sólo como forma condicionada religiosamente (como pensaba Weber), sino como fenómeno esencialmente religioso, nos conduciría hoy ante el abismo de una polémica universal que carece de medida. [Y es que] no nos es posible describir la red en la que nos encontramos. Sin embargo, será algo apreciable en el futuro (BENJAMIN, 2008: 1).

¿Qué implica afirmar ‘el capitalismo sirve esencialmente a la satisfacción de las mismas preocupaciones, penas e inquietudes a las que daban antiguamente respuesta las denominadas religiones’? El carácter religioso de las prácticas generadas a partir de la dominancia de la mercancía, evidencia no sólo el desplazamiento de “lo religioso” como fenómeno hacia nuevos espacios, sino también su emplazamiento en el “laico” mundo de la vida cotidiana; en el profano espacio/tiempo de la producción y el consumo. Como fenómeno esencialmente religioso instanciado en la cotidianeidad, se encuentra en condiciones primarias, matriciales y persistentes de ejercer formas de regulación política sobre la sensibilidad social, mediante la capacidad performativa sobre el “humus” socio-perceptivo que organiza la experiencia. 344

La tautología del solidarismo en el Bicentenario: “Argentina abraza a Argentina”

Lo anterior permite desplegar un significado que tiene centralidad en la afirmación benjaminiana sobre el empobrecimiento de la experiencia: para Benjamin la experiencia que se reconfigura tiene como clave el rasgo de la pobreza de una sensibilidad en reconstitución, pregnada por la fetichización de la mercancía. Distancia y mediación por un lado (aprender a verlo todo sin tocar, relación con un mundo /de objetos/ que se disponen como espectáculo para la mirada), apropiación mercantil por el otro (materialización del sueño en un producto) expresan una particular manera de jerarquizar y tramar los sentidos de la vista y el tacto, en contextos que configuran tipos subjetivos interpelados desde el consumoEn el Bicentenario la religiosidad del capitalismo se muestra pornográficamente como ideología materializada que atraviesa y alimenta al solidarismo. El capitalismo como religión funciona como un opiáceo, que condena a la replicabilidad de prácticas orientadas a la celebración cultual, in-interrumpida de la mercantilización equivalencial de las más heterogéneas demandas nominadas como “sueños”. Se trabaja en el próximo apartado las imágenes, los actores y la nominación que conforma Argentina abraza Argentina.

II. El domingo 16 de mayo de 2010 en Figueroa Alcorta y La Pampa -Palermo, ciudad autónoma de Buenos Aires- Red Solidaria (con apoyo del grupo mediático Clarín), Asociación Civil “Por los Chicos” y el actor Ricardo Darín dieron inicio al festival solidario llamado Argentina abraza a Argentina,154 con el objetivo de construir la “Torre del Hambre Cero” para que todos los argentinos tengan, por un día, su alimento asegurado. Participaron los siguientes grupos musicales: Vicentico, Los Auténticos Decadentes, Arbol, Fidel, Estelares, D-Mente, entre otros (Al mismo tiempo hubo actos en 52 ciudades del país). La construcción de la “Torre” se inscribe en una serie de actos organizados en vistas a la conmemoración del Bicentenario de la Argentina Un megaconcierto gemelo del que hace unos meses se organizó para colaborar con los damnificados por el terremoto en Chile, llamado Argentina abraza a Chile. 154

345

María Eugenia Boito

(se celebró el 25 de mayo) y supone la participación de la ciudadanía de tres formas: asistiendo al recital y llevando para donar paquetes de arroz, fideos o polenta destinados a levantar la torre; de manera virtual, escribiendo un mensaje en la dirección www.porloschicos.com, (un saludo, palabras de aliento, una poesía, un abrazo) que se transforma en un ladrillo a través de la donación de la empresa transnacional Unilever o reuniendo las donaciones en colegios, universidades, lugares de trabajo y luego hacer el envío a Red Solidaria. La meta es construir una “torre” conformada por 875.000 “ladrillos” (cada uno es un paquete de polenta, arroz o fideos). Esta es la cantidad de comida necesaria, para que todos los argentinos tengan su alimento asegurado por un día.

346

La tautología del solidarismo en el Bicentenario: “Argentina abraza a Argentina”

Las imágenes

Sábado, 15 de mayo. La primera torre es la de los aportes virtuales; la segunda es la que reúne lo donado en las escuelas y en el concierto al que asistieron 50.000 personas.

347

María Eugenia Boito

Martes, 18 de mayo, pos-concierto. Sólo queda una torre, han sido unificadas a nivel gráfico.

En la primera imagen aparecen dos torres, cada una para los aportes de los cibernautas por un lado y los ciudadanos que o bien asistían al festival, o bien juntaban las donaciones en las escuelas o los lugares de trabajo por el otro. En el primer caso, mandar un mensaje realiza la magia 348

La tautología del solidarismo en el Bicentenario: “Argentina abraza a Argentina”

de transformar un buen deseo en un alimento. Apretar una tecla aparece como una acción fetichizada; 155 la mirada queda estupefacta ante la imagen Esta fetichización en las interacciones solidarias es un rasgo que prevalece en distintos contextos. Por ejemplo en un segmento del programa televisivo ‘CQC’ (‘Caiga quien Caiga’, canal 13, 2004) se expone la objetividad de la creencia solidaria en el sentido Žižekeano: las acciones de numerosas manos pueden resolver la tensión entre demandas de bienes y necesidades sociales, ya que instituyen formas de nexos sociales que muestran su impacto resolutivo. El segmento empieza con los itinerarios de un botón. O más precisamente, todo empieza con la salida del cronista del programa C.Q.C. a un pueblo del interior de la Argentina y la visita a una escuela o un hospital (siempre organizaciones públicas), para constatar cuales son las necesidades insatisfechas que portan. Después los niños o los enfermos deben entregar algo –un botón– que mágicamente volverá transformado en los satisfactores que requieren. El botón opera como fetiche, pero se trata de un fetiche extraño ya que no permanece idéntico a si mismo sino que muta en diversos objetos por los que va a ser trocado: un botón por un paquete de praliné, que a su vez se transforma en un periódico, en un video del actor Pablo Echarri con un ‘Feliz Cumpleaños’ que es ofrecido por un tío a su sobrina (como el regalo de quince años más anhelado), que luego se transforma en un monopatín, en una foto de la modelo Dolores Barreiro como publicidad de un café-bar, hasta finalizar en un cuadro de la galería de arte Malbrán que se transforma en una camioneta para la escuela rural. Un fetiche ‘tradicional’, como objeto cultual, permanece. Pero las formas de culto tradicionales ‘se desvanecen en el aire’ en el marco de relaciones sociales de producción donde la liquidez, y consecuentemente la mutación, se constituyen en rasgos definitorios. Nueva transubstancialización: las múltiples identidades de un botón se suceden y complejizan, generando situaciones de intercambio entre no equivalentes en términos de valor de cambio, que sin embargo aparecen como tales en función del valor de uso que le otorgan los respectivos sujetos La mirada queda estupefacta ante estas fuerzas extrañas que mágicamente, en las sucesivas mediaciones, van incrementado el valor de cambio de mercancías que, en su comportamiento aparentan un olvido de las reglas que las constituyen. La no referencia al valor de cambio es ficticia, ya que en cada transacción, el antiguo botón incrementa potencialmente su cotización. Todo sucede en el momento del intercambio, en escenarios de mercado improvisados, puntuales, contingentes. La instancia de la producción está ausente y así el precio de las mercancías aparece fijado por los valores de uso que los sujetos le otorgan. De esta forma, los deseos y las preferencias individuales que sostienen intercambios, cuando están orientadas a un fin solidario, realizan la multiplicación de los panes y los peces. Se trata de un milagro, pero de un tipo de milagro postmoderno. No se trata de que los sujetos no conocen las explicaciones de la ocurrencia de un fenómeno (que entonces aparece como ‘maravilloso’, ‘mágico’) sino que, parafraseando a Žižek, ‘los sujetos saben y sin embargo lo hacen’. Todos los participantes de las escenas solidarias saben que en formaciones sociales capitalistas, la existencia de sujetos con carencias nada tiene que ver con las oportunidades de satisfacción de sus necesidades. La mercancía interpela a consumidores solventes, no a sujetos necesitados. Así, una camioneta o tecnología e instrumental médico son mercancías que requieren de dinero para cambiar de manos propietarias. En la participación en las escenas, los sujetos actúan ‘como si’ el valor de uso rigiera los intercambios, pero finalmente el dinero tiene que aparecer y finaliza el juego con la compra del instrumental médico. Emergencia del patrón de medida que efectivamente fijó el valor de las transacciones, exposición del carácter de relación social que porta el dinero. 155

349

María Eugenia Boito

de incorporar otro ladrillo (un paquete de alimento) en la torre. En cada acto, las sensibilidades comprometidas parecen realizar un acto de ‘magia social’: la sumatoria de cada ‘granito de arena’ retorna simbólicamente al lado dador como imagen y número (un ladrillo, un cambio en el monto de los ladrillos que ya existen) que registra el impacto de la solitaria acción de teclear. Richard Sennett, siguiendo los estudios de Marcel Mauss sobre el don y trasladando sus enseñanzas para el estudio de sociedades occidentales, afirma: En un intercambio capitalista ordinario: yo te vendo caviar y tú me pagas en dinero, guantes o espinos de erizo de valor equivalente. Si ambos lados se equilibran, el mercado cuadra. Pero este intercambio, dice Mauss, no crea vínculo emocional. Nuestras relaciones solo arraigarán cuando dejemos de reconocer equivalencias (...) (2003: 222).

En la interacción analizada, el mercado de la solidaridad ‘cuadra’ y crea formas particulares de vínculo emocional, aunque en un sentido distinto al que pensaba Mauss: ese plus que se conforma en cada instancia de interacción microsocial de intercambio, naturaliza las posiciones que los actores ocupan a nivel estructural. Mauss se preguntaba si las cosas tienen alma. Así pudo identificar fuerzas que operan en los objetos constituyendo relaciones entre los grupos, basadas en el ciclo de actos de dar, recibir, devolver. En la práctica solidaria estudiada, los objetos que se dan -doblemente transformados, vueltos imagen y ladrillo- sellan las posiciones sociales de quienes participan en la interacción. Si como indicaba Mauss, las cosas que se dan están animadas por un querer volver a su lugar de origen, en los vínculos contingentes y esporádicos que se conforman en esta interacción solidaria, el alma de los objetos retorna suturando el sentido de la participación en esas prácticas; los objetos donados fetichizan la capacidad de impacto resolutivo de cada acción, vuelven a los cibernautas -también mediados como donatarios, ya que su función se centra en escribir un mensaje y dar el enter- como ‘aliento’ que fundamenta el quehacer y ‘conspirando’ (junto con el objeto, en el sentido de respirar juntos) con ‘animosidad’ contra cualquier indicio 350

La tautología del solidarismo en el Bicentenario: “Argentina abraza a Argentina”

o rasgo que remita a la continuidad del fantasma de la desigualdad. Este retorno cierra el círculo de la “economía o “ley de la casa”; lo que se da vuelve tanto a la empresa Unilever como la plusvalía de la publicidad y la “responsabilidad social” como a cada cibernauta en términos de “fraternidad cristiana”, “buena conciencia ciudadana”, etc. La articulación de acciones individuales donde siempre existe algún interés (publicidad e incremento de las ventas para Unilever, sentirse solidario para los cibernautas, asistir a un recital que además es “solidario” y requiere llevar un alimento, para los fans de los grupos de música que participan del evento), muestra que las acciones ‘solidarias’ no son lo otro de la lógica del interés individual, sino que esta ecuación ‘irresoluble’ se resuelve transformando (¿invirtiendo?) la lógica del don: Y todos (¿todos?) ganan. La metáfora del “ladrillito” o la de “el granito de arena” son recurrentes en una temporalidad mas vasta;156 en el Bicentenario la ONG “Un techo para mi país”157 se propone contribuir en la fecha patria con la Esto queda claramente graficado en la siguiente ‘forma de acción individual - colectiva’ que publicó del diario local ‘La Voz del Interior’ el 24 de julio de 2005. Una bufanda de más de tres kilómetros y medio, conformada por cuadraditos de lana, fue tejida por habitantes de la ciudad cordobesa de Carlos Paz y después se transformó en frazadas para indigentes. Esta acción solidaria y la intención de figurar en el Récord Guinness por la producción de la bufanda más larga del mundo no son incompatibles; de igual manera que en las empresas con responsabilidad social, en las que ser solidario y productivo puede suturarse. Cada cuadradito tejido no es cosido directamente para hacer una frazada, sino que los sujetos invierten tiempo y recursos para darle la forma de una amplia bufanda. Así, cada cuadradito donado vuelve externalizado y objetivado como un extenso abrazo de lana que protege. Carlos Paz quiere mostrar que se puede hacer turismo también con la solidaridad, presentándose como ciudad/comunidad activa, participativa, ganadora y solidaria. Esta escena retoma la etimología de la palabra ‘favor’ vinculada a ‘favorecer’, ‘aplaudir’, ‘demostrar simpatía’. Como en la película ‘Cadena de favores’, todo termina con un aplauso. 157 Según la información institucional de la ONG el jesuita chileno Felipe Berríos (¿una versión religiosa del compatriota Juan Carr?)es el responsable máximo de “Un techo para mi país”. En el 2001 (tras los terremotos de Perú y El Salvador) crea “Un Techo para mi país”, extendiendo la experiencia de trabajo en Chile al resto del continente. El proyecto se expande por toda Latinoamérica a partir del año 2001. Hoy está presente en 15 países. Argentina, Bolivia, Brasil, Chile, Colombia, Costa Rica, Ecuador, El Salvador, Guatemala,[ ]México, Nicaragua, Paraguay, Perú, República Dominicana y Uruguay, a través del trabajo de miles de jóvenes voluntarios. Además, actualmente es columnista de la revista Sábado de “El Mercurio” y sus artículos han sido reunidos en tres libros: “Para Amar y Servir”, “Lo mínimo Indispensable” y “Puntadas con Hilo”. En marzo del 2006 publica “Todo comenzó en Curanilahue…”. En 2007 publica “Ojos que no ven” y en 2008 “En todo amar y servir”. En Córdoba, también después de la crisis institucional de 2001, el 156

351

María Eugenia Boito

construcción de 200 viviendas en Argentina, cuyo déficit habitacional al 24/05/2010 es de 2 millones de viviendas, que se incrementa anualmente en alrededor de 120.000 según datos de la Subsecretaría de Desarrollo Urbano y Vivienda.158 Lo anterior evidencia que la telaraña solidaria aparece como aurática y se sostiene en la fascinación escópica: en las puestas en acto de lo solidario la mirada es objeto de una praxis política y de la captura a partir del señuelo que configura cada micro-acción /”ladrillito”/. El compromiso solidario supone un régimen de visibilidad que centra la mirada en cada escena (en la que se reune el valor cultual y exhibitivo) y a la vez la desvía del horror cotidiano de las mayorías. Si como señala Žižek, en el retrato de Dios se identifican todas las miradas en una imagen que cumple una función cultual, cada escena solidaria como fotografía también pretende ser vicaria, en el doble sentido de la palabra: la fetichización de la interacción solidaria pretende constituirse en representante (apoderado, sustituto) y sacerdote (superior) mediando lo imposible y religando a los sujetos en un tipo de lazo inasible. Es así como se realiza ‘el milagro de dar’, exorcizando los espíritus que se apoderan de los objetos, negando las deudas ancestrales que portan. El compromiso solidario, expresado en números, en la inteligibilidad de ecuaciones que miden el impacto de las reparaciones y de los beneficios obtenidos, expulsa los demonios de reclamos que tienen más de 200, hasta 500 años. De esta forma la resultante de la sumatoria de favores no es sólo la ‘denegación sistemática de los conflictos sociales’ (SCRIBANO, 2005a) sino la potenciación del solidarismo como un tipo de religiosidad sin conflictos con los procesos de mediatización y mercantilización de la vida social.

diario local “La Voz del Interior” creó una sección similar: “Oasis. Para saciar la sed de esperanza”. Los medios y la centralidad de simulación de integración de imaginarios en sociedades cada vez más fragmentadas y socio-segregadas, tal como se señalaba en el apartado anterior. 158 /www.reporteinmobiliario.com/

352

La tautología del solidarismo en el Bicentenario: “Argentina abraza a Argentina”

Las lógicas y los actores: Unilever Miralles afirma que en la historia del ‘marketing con causa”, una de las primeras manifestaciones tuvo como protagonista a la entidad financiera ‘American Express’, en 1983. En función del crecimiento de empresas que competían en el mismo mercado, ‘American Express’ dio a conocer su compromiso de financiar - con un centavo de cada transacción realizada con la tarjeta de crédito y un dólar por cada nueva tarjeta contratada - la restauración de la Estatua de la Libertad de Nueva York. “Los resultados fueron incontestables: la compañía pudo distanciarse de sus competidoras, incrementando su cuenta de resultados en cerca de un 30%.” (MIRALLES, 2001: 128)159. En la Argentina del Bicentenario no se trata de restaurar ninguna estatua, sino de construir un monumento: “La Torre del Hambre Cero”, mediante los ladrillos de fideos, polenta y arroz que va a “donar” Unilever, si los mensajes dejados en la web llegan a 875.000. ¿Qué es Unilever en la vida cotidiana de los argentinos? Los productos de limpieza CIF, los jabones Dove, los calditos Knorr, la pasta dental Mentadent, los desodorantes Impulse y Axe entre otros productos. Como firma, Unilever se estableció oficialmente en 1930.160 Sin embargo la historia se inicia a finales del siglo XIX, en Holanda, donde Jurgens y Van den Bergh -dos empresas familiares- iniciaron el comercio de exportación al Reino Unido y a posteriori hacia las colonias inglesas de ultramar. Una empresa de mantequilla junto a una empresa productora de jabones -Lever Brothers- van a formar Unilever, la primera compañía multinacional moderna, el 1 de enero de 1930. En ese tiempo empleaba a un cuarto de millón de personas y en términos de valor de mercado fue la compañía más grande en Gran Bretaña. “Un fenómeno nuevo de marketing solidario, todavía en proceso de consolidación, se desarrolla ahora en Internet. La mayoría de las ONG disponen de páginas webs desde donde se difunden sus objetivos y campañas. (cibermarketing solidario). Hay una página que se llama lugar del hambre (www.thehungersite.com), una página a través de la cual los internautas sólo por pinchar en una ventana asignan al proyecto y sin costes para ellos una determinada suman de dinero. La original fórmula hace que el anunciante asuma el abono de un importe económico para cada persona que visite la web” (MIRALLES, 2001: 133). 160 Se utiliza información de la página institucional. 159

353

María Eugenia Boito

Ya en 1926 la empresa Lever Brothers aparece resolviendo la ecuación entre solidarismo-productividad: como buena vendedora de sus propios productos lanza la Campaña “Manos Limpias”. Inicia acciones dirigidas a crear hábitos de higiene-salud apelando a los niños de las clases trabajadoras, interpelándolos y animándolos a lavarse las manos antes del desayuno, antes de la cena y después de clases. Los contextos de guerra y destrucción no sólo permitieron la operatoria solidaria, sino que la potenciaron hasta la concreción de figuras extrañas: En 1941, en el marco de la segunda guerra mundial y durante los bombardeos, jabón Lifebuoy proporcionó un servicio de lavado de emergencia gratuito a los londinenses: furgonetas equipadas con duchas de agua caliente, jabón y toallas. Al comienzo de la década de 1980, Unilever es el negocio más grande del mundo. Sus intereses incluyen plásticos, embalajes, las plantaciones tropicales y una línea de transporte marítimo, así como una amplia gama de alimentos, el hogar y productos de cuidado personal. A principios de la década decide volver a centrarse en las áreas de productos básicos con un mercado fuerte y potencial de crecimiento. La racionalización necesaria condujo a grandes adquisiciones y desinversiones: Unilever redujo de más de 50 productos a sólo 13 a finales de la década. Esto incluyó la decisión de vender o retirar muchas marcas y concentrarse en aquellos que tengan mayor potencial. La reestructuración creó cuatro áreas clave de negocio: Cuidado del Hogar, Cuidado Personal, Alimentos y Productos Químicos. 161 El siglo 21 comenzó con el lanzamiento del Camino al Crecimiento - una estrategia para transformar el negocio, lo que llevó a más adquisiciones y la racionalización de la fabricación y centros de producción. Esto fue seguido por el programa Uno Unilever, en vistas a alinear la organización detrás de una estrategia única, la simplificación del negocio y encontrar la escala más eficaz. En la escena solidaria contemporánea denominada Argentina abraza Argentina Unilever podría directamente haber donado los También durante esta década Unilever establece un programa de agricultura sostenible en vista de las crecientes presiones ambientales y preocupaciones de los consumidores acerca de la cadena alimentaria. Otras iniciativas para preservar los recursos hídricos y la fuente de pescado procedente de poblaciones sostenibles que pronto le sigan. 161

354

La tautología del solidarismo en el Bicentenario: “Argentina abraza a Argentina”

alimentos; alimentos que la misma transnacional produce. Pero el montaje y la construcción de la interacción requiere interpelar e involucrar el tecleo solidario de los ciudadanos, para materializar la experiencia de la posibilidad del aporte como “granito de arena” /o “ladrillo”/. Este ejercicio de variación imaginaria sobre otras formas de construir la escena, también evidencia como la mediación de la ciudadanía-cybernauta logra desplazar la atención sobre la centralidad del interés y la vinculación de Unilever con la construcción de la “Torre de alimentos”: el intercambio de alimentos por publicidad. Así la escenificación está armada para la inclusión ‘solidaria’ de la misma empresa que en realidad no dona nada; la “publicidad filantrópica” aparece auratizada al punto de obscurecer cuales son efectivamente los equivalentes que se intercambian.

La nominación: Torre del Hambre Cero La manera de nominar este evento refiere al conocido programa “Hambre Cero” propuesto por el presidente de Brasil Lula da Silva. Con relación al programa afirma Frei Betto162 que cuando Lula propuso “Hambre cero mundial”, “un presidente de Europa Occidental dijo: “sí, mi país va a enviar a África mucha comida”, y Lula respondió: “no, de ninguna manera, nunca comida”. Porque hay cuatro errores en esta supuesta generosidad: primero, es la mejor manera de justificar los subsidios agrícolas en Europa (y en Estados Unidos también); segundo, destruye las culturas locales; tercero, crea dependencia; y cuarto, es un regalo para los políticos corruptos, que van a administrar esos subsidios”. No se trata en este escrito de abordar la propuesta del presidente Lula, pero si de indicar como la nominación invierte y opera de manera especular con relación a algunas propuestas centrales de programa. Hambre cero camina sobre tres piernas; primero está la política de transferencia de renta a cada una de las familias. Pero aquí hay un detalle, el dinero no pasa por las manos del alcalde… Cada familia tiene una tarjeta ciudadana y cada mes va al banco federal y saca su dinero. Esta tarjeta se entrega de preferencia a las mujeres, por razones que, si los 162

www.congreso.gob.gt

355

María Eugenia Boito

hombres quieren saber, que pregunten a las mujeres, ellas van a saber contestarles (…) Ahora bien, la familia tiene que cumplir tres condiciones, que son deberes básicos: primero, no puede tener analfabetos; si tiene analfabetos tiene que ir a un curso de alfabetización y tenemos dentro de Hambre cero, una campaña nacional de alfabetización; la segunda condición es, que todos los hijos tienen que estar en la escuela, hasta los quince años de edad; la tercera, seguir un programa de salud. Son políticas efectivas de transferencia a la gente; esa es la primera pierna. Pero no basta; con esto no se va a sacar a la gente de la miseria; entonces hay un segundo aspecto, una segunda pierna: son las políticas estructurales. Hambre cero es una política pública, un abanico que comprende sesenta programas públicos, con la participación de la sociedad civil. Va desde la reforma agraria, la capacitación laboral, el cooperativismo, la agricultura familiar, hasta un complejo de programas distintos que crean las condiciones para que la gente pueda salir de la miseria. La tercera pierna de Hambre cero es la educación popular…

La “Torre del Hambre Cero” débil y lentamente se va erigiendo porque sus límites son estructurales: ninguna referencia al antagonismo estructural clasista, ausencia del estado o su ubicación en un mismo plano de acción junto a las empresas con responsabilidad social, la “ciudadanía” con voluntad de “hacer algo” y los “famosos” con compromiso social. Por esto si la atención hace foco en la interacción solidaria, en la estructura del vínculo que persiste, se puede identificar al destinatario fundamental: la escena parece ser montada para quienes ocupan el lado ‘dador’ de la relación: los voluntarios y los ciudadanos, son designados y pretenden ser reconocidos como ‘protagonistas’ en la semantización discursiva que se hace de esta práctica. Dice Žižek: Cuando Lacan define el impulso freudiano como reflexivo, como la instancia de ‘se faire’... ¿no está apuntando de este modo a la teatralidad más elemental de la condición humana? Nuestro mayor esfuerzo no está dedicado a observar, sino a formar parte de una escena armada, 356

La tautología del solidarismo en el Bicentenario: “Argentina abraza a Argentina”

a exponerse a una mirada -no la mirada determinada de una persona existente - sino de la pura mirada inexistente del Gran Otro (2005: 147).

Es por esto que la pregunta Žižekeana ¿Para qué mirada se escenifica la puesta en acto de esta construcción? permite identificar en un mismo acto reflexivo los rasgos de las posiciones de los “protagonistas” y del “Gran Otro” inexistente. Se trata de posiciones en la que se ubican sujetos con expectativas empobrecidas y miserables a 200 años de la revolución. En términos de A. Scribano: El desplazamiento, elusión y evitación sistemática de los conflictos sociales se ha logrado a costa de elaborar un conjunto de sensibilidades sociales que encuentran en las nuevas reglas de la economía política de la moral una morada tranquilizadora. Como lo venimos señalando en diversos lugares, se ha elaborado en consecuencia una religión neocolonial donde consumo mimético, solidarismo y resignación ocupan los lugares de una trinidad que estructura la soportabilidad de la vida (En SCRIBANO; BOITO, 2010: 253).

A modo de cierre El recorrido realizado pretendió mostrar que en la experiencia social contemporánea: 1 - La estructuración en clases está naturalizada y la pobreza aparece como paisajística. 2 - La oclusión de derechos sociales se concreta mediante la subsunción en la forma equivalencial hegemónica ‘cumplir un sueño’ para la simbolización de las más heterogéneas demandas. 3 - El orden solidario actúa como mandato transclasista para actuar sobre expresiones sintomales que refieren a la desigualdad estructural, instanciando un modo de interacción que produce figuras de expresa crueldad o insensibilidad de clase. De allí las distancias entre la revolución de hace 200 años y los gestos que la conmemoran. En el Bicentenario la revolución solidaria, 357

María Eugenia Boito

sin ningún debate, -tal como lo proponía Juan Carr al inicio de estas reflexiones- tautológicamente sigue sellando a los sujetos en las desiguales posiciones que ocupan a nivel estructural. La construcción de monumentos en este presente refiere a la estetización y celebración de haceres mínimos, donde el horizonte de lo posible y deseable es un día, sólo un día para reunir alimentos que -por sus características- bien podrían ser destinados a los perros: arroz, polenta, fideos. La fantasía solidaria, operando desde la lógica policial de los cuerpos, imposibilitó e imposibilita la emergencia de partes no contadas, en el sentido de J. Ranciére. Ante el horror social, la solidaridad actúa como casco que en lugar de proteger en la lucha con lo horroroso (casi el 30% de los niños argentinos se encuentra en lo que hoy se denomina eufemísticamente “riesgo alimentario”) incrementa el grado y la forma de soportabilidad social /insensibilidad de clase/ ante la agudización de la fractura que nos constituye: nos/otros, los argentinos. Pero para Juan Carr de lo que se trata es de “Globalizar la solidaridad. Y todo será alegría”. (Aleluya). En el Bicentenario, Argentina no reconoce su desgarro clasista y la máscara humanitaria no alcanza a revelarse nutrida por la religiosidad del capitalismo. Ante “La Torre del Hambre Cero” los argentinos llegan a rendir culto, celebrar y emocionarse de sus posibilidades castradas de justicia. Argentina abraza Argentina es un asfixiante pleonasmo cacofónico que ahoga la emancipación.

Bibliografía ARIÑO, Antonio (1997). “Sociología de la Cultura. La constitución simbólica de la sociedad”. Edit. Ariel, Barcelona. BENJAMIN, Walter (1973). “Experiencia y Pobreza”. En: Discursos Interrumpidos 1 España, Edit. Taurus. 358

La tautología del solidarismo en el Bicentenario: “Argentina abraza a Argentina”

--------------- “El capitalismo como religión” capitalismo_religion.pdf. Created Apr 24, 2008 by economia UNAM. Disponible en: economiaradio. blogspot.com --------------- (2005). “Libro de los Pasajes”. Toledo, AKAL. --------------- (1999). “Poesía y Capitalismo. Iluminaciones II”. España, Taurus. BOITO, Eugenia (2005). “El retorno de lo reprimido como exclusión social y sus formas de borramiento: Identificación, descripción y análisis de algunas ‘escenas’ de lo construido hegemónicamente como ‘prácticas solidarias’. (2002-2004)”. Tesis de Comunicación y Cultura Contemporánea, CEA, UNC. Mimeo. EAGLETON, Terry (1997). “Ideología. Una introducción”. Buenos Aires, Paidós. --------------- (2006). “La Estética como Ideología”. Madrid, Editorial Trotta. FITOUSSI, Jean-Paul; ROSANVALLON, Pierre (1996). “La nueva era de las desigualdades”. Buenos Aires, Manantial. MAUSS, Marcel (1971). “Ensayo sobre los dones. Motivo y forma del cambio en las sociedades primitivas”. En: Sociología y Antropología. Madrid, Edit. Tecnos. MARX, Carlos (1994). ‘El fetichismo de la mercancía, y su secreto’. En: El capital. Crítica de la economía política, Tomo 1. México, Fondo de Cultura Económica. MIRALLES, Rafael (2001). La solidaridad y las ONG en la publicidad: una moda arriesgada. Artículo que resume la ponencia presentada en Valencia el 7 de abril de 2001 en las Primeras Jornadas sobre Comunicació, Educació i Solidaridat, organizada por Entrelinies, Xarxa d’ Educació i Comunicació y la Coordinadora Valenciana de ONGD.

359

María Eugenia Boito

RENAUD, Alain (1989). ‘Comprender la imagen hoy. Nuevas imágenes, nuevo régimen de lo visible, nuevo imaginario’. En: Videoculturas de fin de siglo. Madrid, Cátedra. SCRIBANO, Adrián (2002). De gurúes, profetas e ingenieros. Córdoba, Edit. Copiar. -------------(2004a).”Combatiendo Fantasmas. Teoría Social Latinoamericana. Una visión desde la historia, la sociología y la filosofía de la ciencia”. En formato CD, Argentina. --------------- (2004b). “La insoportable levedad del hacer. De situaciones, fantasmas y acciones”. Ponencia presentada en el marco del seminario ‘Desarrollo con inclusión y equidad’. Córdoba, SEHAS. --------------- (Comp.) (2005a). Geometría del conflicto. Estudios sobre acción colectiva y conflicto social. Madrid, Universitas. ----------------- (Compilador) (2007a). Mapeando interiores. Cuerpo, Conflicto y Sensaciones. Buenos Aires, UNC-CEA/CONICET/ Jorge Sarmiento Editor. --------------- (2009). “¿Por qué una mirada sociológica de los cuerpos y las emociones? A Modo de Epílogo”. En: Carlos Fígari y Adrián Scribano (Comp.), Cuerpo(s), Subjetividad(es) y Conflicto(s). Hacia una sociología de los cuerpos y las emociones desde Latinoamérica. Buenos Aires, CLACSO/Ciccus. SCRIBANO, Adrián; BOITO, Ma. Eugenia (Compilador) (2010). El purgatorio que no fue. Acciones profanas entre la esperanza y la soportabilidad. Buenos Aires, Ciccus. SENNETT, Richard (2003). El respeto. Sobre la dignidad del hombre en un mundo de desigualdad. Barcelona, Anagrama. THERBORN, Goran (1998). La ideología del poder y el poder de la ideología. Madrid, Siglo XXI. ŽIŽEK, Slavoj (1992). El sublime objeto de la ideología. Madrid, Siglo XXI Editores. 360

La tautología del solidarismo en el Bicentenario: “Argentina abraza a Argentina”

--------------- (1994). ¡Goza tu síntoma! Jacques Lacan dentro y fuera de Hollywood. Madrid, Nueva Visión. --------------- (1999). El acoso de las fantasías. Madrid, Siglo XXI. --------------- (2000). Mirando el sesgo. Una introducción a Jacques Lacan a través de la cultura popular. Buenos Aires, Paidós. --------------- (2001). El espinoso sujeto. El centro ausente de la ontología política. Buenos Aires, Paidós. --------------- (2002). ¿Quién dijo Totalitarismo? Cinco intervenciones sobre el mal uso de una noción. Valencia, Pre-Textos. --------------- (2003a.). Las metástasis del goce. Seis ensayos sobre la mujer y la causalidad. Buenos Aires, Paidós. --------------- (Comp.) (2003b). Ideología. Un mapa de la cuestión. México, Fondo de Cultura Económica. --------------- (2003c). A propósito de Lenin. Política y subjetividad en el capitalismo tardío. Buenos Aires, Atuel / Parusía. ŽIŽEK, Slavoj, Analía HOUNIE (Compil.) (2004). Violencia en acto. Conferencias en Buenos Aires. Buenos Aires, Paidós. --------------- (2005). La suspensión política de la ética. México, Fondo de Cultura Económica,. --------------- (2006). Visión de paralaje. México, Fondo de Cultura Económica. ŽIŽEK, Slavoj, Ernesto LACLAU y Judith BUTLER (2003b). Contingencia, hegemonía, universalidad. Diálogos contemporáneos en la izquierda. México, Fondo de Cultura Económica.

361

María Eugenia Boito

Diccionarios consultados J. Lapanche y J.B. Pontalis. «Diccionario de Psicoanálisis». Labor. S/D. Diccionario de sinónimos y antónimos de la lengua española. Verón Editores, 1994. Breve diccionario etimológico de la lengua castellana, de Joan Corominas, Edit. Gredos, 1994. Otras fuentes Revista Nueva, anuario 2002. www.congreso.gob.gt www.lavoz.com.ar www.reporteinmobiliario.com www.unilever.com.ar www.untechoparamipais.org .

362

Corpos em Concerto: diferenças, desigualdades, desconformidades Cuerpos en Conciertos: diferencias, desigualdades y disconformidades Formato 15,5 x 22 cm Tipografia Garamond Papel Capa em Triplex 250g/m2 Miolo em Offset 75g/m2

Montado e impresso na oficina gráfica da Editora Universitária

UFPE

Rua Acadêmico Hélio Ramos, 20 | Várzea Recife - PE CEP: 50.740-530 Fones: (0xx81) 2126.8397 | 2126.8930 | Fax: (0xx81) 2126.8395 www.ufpe.br/edufpe | [email protected] | [email protected]

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.