Corpos Transgêneros no Esporte: algumas questões

May 23, 2017 | Autor: W. Camargo | Categoria: Sex and Gender, Gender and Sexuality, Gender and Sport
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CONTEMPORÂNEA | Edição iç Nº 6 – DEZEMBRO DE 2016

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POLÍTICA E SOCIEDADE

Corpos Transgêneros no Esporte: algumas questões por Wagner Xavier de Camargo

Durante os Gay Games de Chicago-2006 presenciei o desempenho atlético de um homem transgênero, numa prova de atletismo em que eu mesmo participava. Eram os 400 metros com barreiras para a categoria masculina. Mesclando elementos considerados socialmente “masculinos” e “femininos”, tal atleta trazia, ao mesmo tempo, masculinidade e feminilidade num só corpo, pois se materializava ali vestindo um macaquinho vermelho-vivo, com sapatilhas douradas, cabelo alisado, unhas postiças, peitos e tez feminina (sobrancelhas feitas, olhos delineados). Competíamos na categoria “masculina”, apesar de ser visível o desconforto dele em relação ao lugar em que se encontrava – e, diga-se de passagem, certo desconforto também era mostrado pelas faces de nossos adversários, visto que aquele corpo tensionava o enquadramento categorial do esporte. Esses jogos funcionam como as Olimpíadas para atletas que se designam gays, lésbicas, bissexuais, transgêneros, queers, assexuais, e toda sorte de estéticas sexuais possíveis e, muitas vezes, ininteligíveis e invisíveis para o mundo (heterossexual) do esporte. São competições esportivas globais que acontecem quadrienalmente. Mas, em que pese isso tudo ser possível, todas as modalidades individuais e coletivas ainda são divididas em categorias “masculina” e “feminina”, e a competição funciona como um lugar de reprodução de valores e performances do esporte convencional, mantendo a máxima da “igualdade de chances”. O exemplo do atleta transgênero vem de encontro a algo que atualmente aparece no esporte midiatizado e sublinha que algumas questões relativas a corpos, gêneros e sexualidades não normativos precisam ser problematizadas. Corpos transgêneros no esporte ainda são invisibilizados e considerálos não apenas problematiza o binarismo de gênero, como abre uma discussão sobre a gestão política e técnica do corpo e da sexualidade. Os últimos Jogos Olímpicos, Rio-2016, deixaram isso claro quando a mídia visibilizou o que seria “anacrônico” naquelas arenas esportivas de alto nível, no que se refere à essa questão: corpos obesos (como o da goleira angolana Teresa Almeida, do nadador etíope Robel Habte e da ginasta mexicana Alexa

Moreno), corpos velhos (como o da ginasta uzbeque de 40 anos, Oksana Chusovitina), corpos deficientes (como o da mesatenista polonesa Natalia Partyka ou da arqueira iraniana Zahra Nemati, dentre outros), e também corpos de gays e lésbicas – surpreendentemente a quantidade desses foi aumentando conforme a competição seguia seu curso. Se para um/uma atleta gay ou lésbica a “saída do armário”, por assim dizer, resolve parte dos problemas cotidianos com técnicos, colegas de equipe e familiares, no caso de uma pessoa trans a questão não é resolvida de modo tão prático. A olhos externos, a condição assumida em relação à sua sexualidade sempre traz muitas incertezas e instabilidades. Uma problemática relativa a tais expectativas é em relação ao corpo. Quando se considera o corpo de uma pessoa trans, em geral, se toma como padrões os corpos biológicos normativos, desconsiderando quase completamente as mudanças em curso postadas pelo corpo em transição.* Para ativistas de direitos humanos e mesmo para muitos/as militantes transfeministas, essas distinções relativas à presença de corpos trans no esporte competitivo nada mais são do que dimensões de uma “transfobia institucional” e de outros preconceitos que se desferem em direção a tais corpos, que deveriam ter suas existências reconhecidas e não serem tomados como modelos “desviantes” do corpo biológico cisgênero. Em fins de 2015, o Comitê Olímpico Internacional (COI) surpreendeu o mundo com o anúncio de critérios para “melhor adequar atletas trans” no programa dos Jogos Olímpicos. Tais critérios originam-se do “Encontro de Consenso do COI sobre Redesignação Sexual e Hiperandrogenia”, ocorrido em novembro daquele ano, em Lausanne, Suíça. Apesar de citarem que há uma preocupação com a não exclusão de atletas trans no esporte de competição e que garantir tal participação é uma questão de direitos humanos, o documento supracitado é bastante cruel, de meu ponto de vista, quando postula exigências para indivíduos que transicionam do masculino para o feminino, pois fica explícito que, para competirem na categoria feminina, devem: a) ter declarado há

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quatro anos ou mais sua identidade de gênero como feminina; b) demonstrar clinicamente seu nível de testosterona no soro abaixo de 10 nmol/l (nanomol por litro) nos últimos doze meses antes da competição e manter abaixo disso durante a contenda; c) passar por completo monitoramento de testes antes e durante os eventos esportivos em que participar. Dessa forma, com pouco esforço se percebe uma tentativa muito rígida de controle instituído sobre tais corpos, que se contrapõe ao argumento de transfeministas. São preconceitos institucionalizados sobre corpos, gêneros e sexualidades, muitas vezes invisibilizados via discursos tornados oficiais, e que são usados como argumentos para garantir a “igualdade de chances” intra-categorias no esporte e seu próprio establishment; porém, funcionam como opressões estilizadas que, em nome da renovação dos “valores olímpicos”, emergem de dentro de uma estrutura de controle altamente sofisticada, que visa regular os corpos. Contudo, como já disse Preciado (2008, p. 275), “hoje os corpos dos anormais, longe de serem dóceis, como Foucault indicava em Vigiar e Punir, tornam-se potencias políticas [...] e, portanto, possibilidades de criar novas formas de subjetivação”. Portanto, há que despasteurizar as normativas instituídas pelo COI sobre corpos, que impõem uma nova dinâmica ao sistema e outra lógica de tratamento a partir de suas especificidades, dando vazão ao potencial político desses corpos Há que se levar em conta as transformações sofridas em cada corpo, não no sentido de observar “como” e “de que forma” ele está transicionando para um corpo biológico cisgênero masculino ou feminino, mas que permanecerá em processo e, muito provavelmente, se alocará em fronteiras categoriais – o que também é uma forma de “se definir”. Além disso, há que se ter em conta – algo já apontado em alguns fóruns de debates e entre ativistas/esportistas trans – que a terapia hormonal (quando se ingere hormônios para hipertrofia muscular ou ganho de performance atlética) não é o mesmo do que reposição hormonal. Esta última responde a uma necessidade de pessoas trans de adequarem seus desejos subjetivos a uma nova condição física/psíquica que lhes contemple, conforme nos explica o transfeminista Leonardo Peçanha, em seu blog (2016). Dito em outras palavras, a reposição hormonal é mais funcional do que estética e está no plano da “necessidade”. É aí que se aloja o incômodo quando se comparam corpos cis e trans no meio esportivo: para esportistas cisgêneros do sexo masculino, o consumo de testosterona, por exemplo, é perfeitamente aceitável na aquisição de músculos e rendimento, desde que seja controlado. De outra parte, tanto para homens quanto para mulheres trans atletas, a reposição e controle hormonal (testosterona ou estrógeno) causa indignação, visto que seriam motivo de discórdia milimetragens a mais ou a menos de um ou outro em um corpo posto para competir. A “indignação” se dá exatamente porque corpos trans são considerados desvios de corpos biológicos legítimos (cisgêneros, no caso).

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Os Jogos Olímpicos Rio-2016 foram midiatizados como “a Olimpíada mais gay da história”, tendo-se em vista o número de atletas que se autodeclararam não heteronormativos (gays, lésbicas, bissexuais, principalmente) e que se fizeram presentes no evento. Apesar disso, oficialmente não participaram transexuais. Cogitou-se considerar Caster Semenya (corredora sul-africana de 800 metros rasos) e Dutee Chand (velocista e recordista indiana dos 100 metros rasos) como transexuais, mas logo a própria mídia foi requisitada a deixar de lado essa suposta categorização – não sabemos os motivos ou a pedido de quem isso aconteceu. Semenya, inclusive, assumiu um relacionamento lésbico com outra mulher para fugir da pecha. Se o “armário da sexualidade” é algo pesado e que oprime gays e lésbicas nas arenas esportivas, em contraposição, atletas trans sofrem com a invisibilidade. Para a estrutura organizativa, lamentavelmente, é melhor que fiquem escondidos ou não apareçam, pois assim não se coloca em xeque as lógicas sob as quais o esporte-competição se assenta. Para a mídia inescrupulosa, os corpos trans funcionam como os corpos de pessoas deficientes: são mote para histórias melodramáticas sobre rejeição/superação ou exemplos de transformação pessoal após procedimentos “cirúrgicos” e readequação a uma nova condição, já necessariamente finalizada e definida. Exemplos pontuais como o de Fallon Fox, mulher trans e lutadora de MMA no circuito UFC, ou ainda o de Chris Mosier, homem trans atleta de duatlo (ciclismo e corrida) que faz parte da equipe norte-americana desse esporte, ou o agora técnico alemão de atletismo Bailan Buschbaum (homem trans), são ainda escassos, vistos como exceções a uma regra “universal” de corpos esportivos normativos, que são hábeis/capazes (não deficientes), funcionando segundo as leis biológicas “naturalizadas” (homem-pênis e mulher-vagina) e devendo seguir lógicas instituídas por uma estética dominante da heteronorma. De um lado vale reconhecer que a postura e o documento do COI denotam que há algo distinto em pauta nas arenas esportistas, relativo a corpos em transição. De outro é preciso que a sociedade civil, as instituições diretivas, a comunidade esportiva, entendam que o processo de adequação de gênero de pessoas trans não é simples, muito menos estanque. E que sem guardar devidamente suas especificidades, incorre-se na manutenção e reprodução de preconceitos instituídos. * O que chamo de “corpo normativo” no tocante à sexualidade também pode ser denominado de “corpo cisgênero”, isto é, um corpo de alguém que concorda com o que lhe foi assignado no nascimento. Para alguns/algumas feministas o mundo pode ser dividido socialmente entre pessoas “cis” e “trans” (que seriam, no polo oposto, aqueles/as que não concordam com a assignação do sexo biológico). Em termos teóricos, o transfeminista espanhol Paul B. Preciado (2008) divide os corpos similarmente em “bio” e “trans”, que são “estatutos de gênero tecnicamente produzidos”, não sendo classificações melhores ou piores umas em relação às outras, mas que apenas dão conta do abismo que separa as pessoas “bio” das pessoas “trans” ou ”tecno”. Para ele, tal distinção já está em processo de se tornar obsoleta.

CONTEMPORÂNEA | Edição Nº 6 – DEZEMBRO DE 2016 Referências PEÇANHA, Leonardo. “Atletas trans e Olimpíadas: pela inclusão do corpo trans no esporte”. Disponível em , acesso em 24 ago 2016. PRECIADO, Beatriz. Testo yonqui. Madrid: Espasa, 2008.

SOBRE O AUTOR Wagner Xavier de Camargo é cientista social, com mestrado em Educação Física. Atualmente bolsista FAPESP, desenvolve pós-doutoramento em Antropologia das práticas esportivas pela UFSCar (Universidade Federal de São Carlos). É doutor em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e foi bolsista da Deutscher Akademischer AustauschDienst (DAAD) em estágio internacional na Freie Universität Berlin (FU Berlin), Alemanha. Insere-se no campo dos estudos antropológicos das práticas esportivas e dedica-se, com especial destaque, à investigação das relações de gênero, corporalidades e sexualidades na arena esportiva.

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