CORRÊA, RODRIGO PARDINI. SCARBO, UMA BREVE ANÁLISE MUSICAL E POÉTICA. 2014

July 17, 2017 | Autor: Rodrigo Corrêa | Categoria: Piano, History of music, Musical Analisys
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SCARBO: UMA BREVE ANÁLISE MUSICAL E POÉTICA Rodrigo Pardini Corrêa História da Música Ocidental IV, 2014/02 Professor Edilson Rocha

A peça a ser analisada é o terceiro movimento, Scarbo, da obra Gaspard de La Nuit, para piano solo, de 1908, do compositor francês Maurice Ravel. Este baseou-se nos poemas da obra póstuma, Gaspard de La Nuit, publicada em 1842, de Aloysius Bertrand, poeta, dramaturgo e jornalista francês. O poema Scarbo, sob o qual a música foi criada, apresentam-se características típicas do movimento simbolista, na qual Bertrand fazia parte. Há no poema, trechos característicos do misticismo e do espiritualismo, ao referir-se, por exemplo, à catedral, vela e ao sino, muito presentes nos poemas do período simbolista. Encontra-se também uma rápida aliteração presente no poema, bem como nas demais obras simbolistas, as palavras bleussait, blémissait, s’teignait1, cujas terminações são foneticamente iguais. É presente na obra, uma referência à transparência, no trecho: “diáfano como a cera de uma vela”2, muito presente em poemas simbolistas, ao mesmo tempo em que há também um leve toque de obscuridade, sugestão e imprecisão, bem como um ar noturno, possivelmente herdado, já que o ano em que o texto do poema foi escrito se encontra historicamente no início do período simbolista, do romantismo. De certa forma é comum à proposta do poema, as ideias musicais modernistas, principalmente no que se refere à obra de Ravel, Gaspard de La Nuit. “A década de 1880 assiste à liquidação do Naturalismo como movimento literário, a qual acompanha a crise do Materialismo e Positivismo. Em verdade a concepção materialista da vida e da Arte já cansava os espíritos. Uma onda de religiosidade e [“]reespiritualização[”], subjetivismo e idealismo, procurava afastar a Arte e o pensamento do mundo da realidade estrita, da crua pintura da Natureza, repelindo a teoria de que Arte e Natureza se confundem. A reação exprimia um sentimento de desgosto, tédio e revolta, contra a hipertrofia da matéria, em nome do subjetivismo e misticismo. O Materialismo era identificado com a concepção burguesa da vida, daí a

reação concretiza-se na atitude de rebeldia da boêmia, decadentismo ou exotismo, mundos diferentes para os quais se pudesse escapar.” COUTINHO (1962)

Gaspard de La Nuit, mesmo não sendo composta ao final da década de 1880, já contemplava a nova perspectiva do fazer musical, impressionista, que começava a ganhar características próprias, cujo algumas se encontram presentes na obra de Ravel. Borges (2003) afirma que Ravel “valia-se de recursos composicionais mais rebuscados, tal como o contraponto. Suas obras são amplamente marcadas por influências externas, tais como danças rítmicas, a música Espanhola, exotismos orientais e o jazz americano”. No trecho abaixo, podemos observar uma textura polifônica, também muito presente nas obras do compositor, apresentada em Scarbo.

Há um cruzamento de vozes, na qual cada se repete a célula melódica já apresentada anteriormente, porém com a melodia em outro centro tonal:

Candè (2001) afirma também que no começo do século XX, os questionamentos das antigas imposições formais, da tonalidade, da libertação do ritmo, contribuíram para um novo espírito de pesquisa. O compositor fica, então, tentado pela exploração do desconhecido, e a música torna-se novamente experimental, como ocorria antes da invenção da imprensa. Na peça, pode-se observar tal exploração, por exemplo, na ausência de tonalidade, e nas intensas modulações que são executadas. De fato, no movimento Scarbo, encontram-se elementos que podem nos remeter à um ambiente fantástico, muito presente nas composições impressionistas. Segundo Eccles (2004), o resultado da obra é uma viagem intensa que está em algum lugar entre um técnico estudo, graças a seu virtuosismo e um episódio psicótico. Ainda de acordo com o autor, Scarbo é constituído de vários motivos, dos quais cada um representa um tema ou uma cena do poema. Ravel também integra e intercâmbios entre os motivos. Para exemplo, existe uma secção calma no meio da peça, mas a sua melodia é, na verdade, apenas uma versão mais lenta (Eccles, 2004), mesmo assim há uma certa tensão que se aglutina no trecho. Pode-se dizer que, Scarbo nos remete a uma sensação de que as melodias dos motivos em relação ao acompanhamento estão flutuando sobre a sonoridade grave executada em alguns trechos. Tal sensação é recorrente nas obras impressionistas, causando um ar de leveza, que muitas vezes compensa as dissonâncias presentes na peça, ou de uma falsa estabilidade. De acordo com Ditrich (2013), “apesar da harmonia feita com arpejos de tonalidades maiores contra as segundas, há um efeito de terror subliminar”. Este, por sua vez, pode relacionar-se ao período conhecido como Belle Époque (1870-1914), contemporâneo ao compositor, na qual se criou, socialmente, um ar de estabilidade e relativa paz, como se as guerras entre as nações europeias havia ficado para trás. De acordo com Souza (2014), o otimismo deste período escondia um sério conjunto de tensões, como por exemplo, a corrida armamentista, na qual se aumentava o arsenal e o número de tropas em cada nação. Valia-se também do sentimento nacionalista para aumentar a rivalidade entre os povos e do sentimento de superioridade para abalar a frágil relação formada entre os mesmos. “Ainda assim, não se apostava na eclosão de um conflito duradouro e de grandes proporções. Aos olhos de hoje, pode parecer inacreditável, mas a expectativa mais corriqueira era por uma guerra breve e, até mesmo, entusiasmante! Sob tal perspectiva,

a imagem que se divulgava era a de bravos e cavalheirescos soldados, que, em curto período, retornariam cobertos de glória e seriam recebidos como heróis!” STANCIK (2009)

Brunh ao analisar a obra de Ravel, afima que “a peça começa com três notas ascendentes, proferidas em voz baixa e profunda nos registros mais graves do piano. Esta é como uma "prévia", como o trailer para um filme de terror”. (Bruhn, 1997, apud Eccles, 2004)2. De fato pode-se dizer que tal efeito causa uma impressão de tensão, uma suspensão no início da peça com repetições das notas graves, que contrastam com as agudas. “Outro motivo consiste de oitavas quebradas e é mais misterioso; isto representa suspense, como Scarbo pendurado no teto, sem ser visto. Finalmente, há uma muito intensa progressão rítmica dos acordes que interrompe as oitavas quebradas e duas vezes se acumula a um clímax, como um grito de espanto e terror.” ECCLES (2004)2

Eccles (2004) lembra também que Scarbo termina da mesma forma que começa Ondine, primeiro movimento de Gaspard de La Nuit, apresentando notas rápidas na região grave do piano, enquanto há no registro agudo, sons que parecem brilhar, causando uma coesão e uma aparência cíclica entre os movimentos. Com base nas análises musicais, poéticas e nas relações feitas, pode-se concluir que o movimento poético simbolista foi intrinsicamente relacionado ao impressionista da música, pelo menos ao que diz respeito à Scarbo, tanto de Maurice Ravel, quanto de Aloysius Bertrand. Também se puderam encontrar laços entre obra do compositor e a realidade em que ele vivia.

Notas: 1. Palavras retiradas do poema presente na partitura utilizada 2. Tradução feita pelo autor

Referências:

BORGES, Cândida. Três compositores do séc. XX e sua escrita pianística: Debussy, Ravel, Mignone. Rio de Janeiro. 18 Jan. 2003. Disponível em: acesso em 17 Out. 2014

COUTINHO, Afrânio. Discurso de posse: o impressionismo na literatura. Academia Brasileira de Letras. 20 Jul. 1962. Disponível em: Acesso em 14 Out. 2014.

DITTRICH FILHO, Wilson. Jeaux d’eau:“O belo, a poética e a mímesis no simbolismo pianístico de Ravel” - Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2013.

ECCLES, Alexander. Gaspard de la nuit: horror and ellegance. Stanford. Primavera/2004. Disponível em: Acesso em 16 Out. 2014. Tradução do autor.

CANDÈ, Roland de. História Universal da Música. Editora Martins Fontes. 2001. vol.2. 471p.

SOUZA, Rainer. Primeira Guerra Mundial. Disponível Acesso em 18 Out. 2014.

em:

STANCIK, Marco Antônio. Entre flores e canhões na Grande Guerra (1914-1918): o final da Belle Époque e o começo do "breve século XX" em um álbum de retratos fotográficos. Rev. Bras. Hist. São Paulo, v.29, n.58, Dez. 2009. Disponível em acesso em 18 Out. 2014.

Partituras: RAVEL, Maurice. Gaspard de La Nuit 3 poèmes pour piano d’après Aloysius Bertrand. Place de la Madeleine, France. Editora Durand & Cte. Disponível em: Acesso em 07 Out. 2014.

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