CORRUPÇÃO: UM DIÁLOGO ENTRE ESTADO, SOCIEDADE E ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA – UDESC CENTRO DE CIÊNCIAS DA ADMINISTRAÇÃO E SÓCIO-ECONÔMICAS – ESAG CURSO DE ADMINISTRAÇÃO EMPRESARIAL

JHONATA ASSMANN

CORRUPÇÃO: UM DIÁLOGO ENTRE ESTADO, SOCIEDADE E ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

FLORIANÓPOLIS – SC 2013

JHONATA ASSMANN

CORRUPÇÃO: UM DIÁLOGO ENTRE ESTADO, SOCIEDADE E ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

Relatório Final de Estágio Supervisionado apresentado como requisito para obtenção do grau de bacharel em Administração Empresarial pela Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC, Centro de Ciências da Administração e Sócio- Econômicas – ESAG. Orientador: Prof. Dr. Nério Amboni.

FLORIANÓPOLIS – SC 2013

ASSMANN, Jhonata. Corrupção: um diálogo entre Estado, Sociedade e Administração Pública. Florianópolis. Centro de Ciências da Administração e Socioeconômicas – ESAG – Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC, 2013, 64 fls. Tipo de Trabalho: Relatório Final de Estágio Supervisionado para graduação em Administração Empresarial

História do Brasil. Teoria do Estado. Formalismo. Modelos de Administração Pública. Teorias da Corrupção.

JHONATA ASSMANN

CORRUPÇÃO: UM DIÁLOGO ENTRE ESTADO, SOCIEDADE E ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA.

Relatório Final de Estágio Supervisionado apresentado como requisito para obtenção do grau de bacharel em Administração Empresarial pela Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC, Centro de Ciências da Administração e Sócio- Econômicas – ESAG.

Banca Examinadora

Orientador: ________________________________________________________ Prof. Dr. Nério Amboni Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC

Membro: __________________________________________________________ Prof. Dr. Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC

Membro: __________________________________________________________ Prof. Dr. Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC

Florianópolis – SC 2013

AGRADECIMENTOS

Inicial e principalmente ao Prof. Dr. Nério Amboni, pelo suporte não apenas acadêmico, mas também por incentivar a abordagem de um tema tão desafiador e que merece maior atenção por parte da Academia. Também sou grato à minha irmã Cristina Assmann, pessoa de extraordinária personalidade e que, nos momentos de dificuldade, esteve a prestar ajuda de bom coração. Merece aplauso igualmente Paula Martins, acadêmica da Administração Empresarial da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), pelo suporte desprendido e qualificado ao trabalho. Lucio Alberto Gomes Junior é um amigo motivador das boas conversas que mudam os rumos de trabalho acadêmicos como esse.

RESUMO

ASSMANN, Jhonata. Corrupção: um diálogo entre Estado, Sociedade e Administração Pública. Florianópolis. Relatório Final de Estágio Supervisionado. Centro de Ciências da Administração e Socioeconômicas – ESAG – Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC, 2013.

A corrupção é fenômeno complexo e multidisciplinar. Se por um lado só com o advento de organizações políticas modernas como o Estado pode-se falar de coisa pública em seu sentido estrito, por outro uma sociedade como a brasileira importou tecnologias políticas para as quais não tinha base consuetudinária que as fizesse aplicáveis sem que fossem objetos estranhos à realidade política nacional (Ramos). Essa discrepância culminou em estruturas típicas de sociedades prismáticas (Riggs), onde se verifica uma distensão entre as normas postas às condutas que visavam a regular. O formalismo surge, nesse contexto, como solução possível (Ramos) para situações de adequação realidade-norma. O contexto histórico conduz, dessa maneira, a um arranjo institucional cuja ineficiência culmina, entre outros, em um ambiente propício ao desvio da coisa pública em prol de um particular (corrupção). Modelos de Administração surgem como resposta à crise do modelo burocrático, propõem modernização do aparato estatal, contudo, apesar de trazerem novos meios de controle, aumentam a discricionariedade do agente público, elevando o risco de corrupção. Analisar medidas de combate à corrupção sem tratar desse conjunto de variáveis complexas é simplismo, mas enfocar demasiadamente no aspecto histórico e sociológico fortalece apenas o cunho retórico amplamente aceito de que corrupção é prejudicial ao desenvolvimento nacional (Theobald). Tal conclusão é correta, mas insuficiente para propor instrumentos capazes de inibir atos de corrupção, os quais devem ser melhor entendidos como atos racionais de busca por maior benefício em função de determinados custos (Pritzl). Custos, como probabilidade de punição, inibem atos corruptivos. Alguns paralelos com a gestão privada podem confirmar o acerto de medidas de combate à corrupção, como instrumentos de accountability.

Palavras-chave: Organizações políticas; Estado moderno; formalismo; administração pública; corrupção.

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 8 2 EVOLUÇÃO DAS COMUNIDADES POLÍTICAS ........................................................ 11 2.2 TRIBOS COM GOVERNANTES ...................................................................................................... 12 2.3 CIDADES-ESTADO ........................................................................................................................ 13 2.4 IMPÉRIOS ..................................................................................................................................... 14 2.5 O ESTADO MODERNO ................................................................................................................. 15

3 BRASIL: DESENVOLVIMENTO POLITICO-CONSITUCIONAL ............................ 18 3.1 PERÍODO COLONIAL .................................................................................................................... 18 3.2 PERÍODO MONÁRQUICO ............................................................................................................. 21 3.3 PERÍODO REPUBLICANO .............................................................................................................. 22 3.3.2 Revolução de 30 ................................................................................................................... 23 3.3.3 Estado Novo ......................................................................................................................... 24 3.3.4 A Redemocratização ............................................................................................................. 24 3.3.5 A Ditadura Militar ................................................................................................................. 25 3.3.6 A Nova República e a Constituição de 1988 ......................................................................... 26

3 FORMALISMO ................................................................................................................... 28 3.2 O SENTIDO ESTRATÉGICO DO FORMALISMO SEGUNDO RAMOS ............................................... 30 3.3 FORMALISMO E CONSTRUÇÃO NACIONAL ................................................................................. 31

4 ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA: MODELOS ORGANIZACIONAIS .......................... 34 4.1 MODELO BUROCRÁTICO ............................................................................................................. 34 4.2 GERENCIALISMO.......................................................................................................................... 36 4.3 GOVERNANÇA PÚBLICA............................................................................................................... 38

5 CORRUPÇÃO ..................................................................................................................... 40 5.1 A CONTRIBUIÇAO DE PRITZL ....................................................................................................... 40 5.1.1 Enfoque da nova teoria institucional ................................................................................... 41 5.1.2 Possíveis metodologias para combater a corrupção e o rent-seeking................................. 42 5.1.3 Modificações estruturais para combater a corrupção ......................................................... 45 5.2 A CONTRIBUIÇÃO DE THEOBALD ................................................................................................ 48 5.2.2 Campanhas de expulsão ....................................................................................................... 50

5.2.3 Procedimentos jurídico-administrativos (Legal administrative measures) ......................... 51 5.2.4 Despolitização ...................................................................................................................... 52 5.2.5 Rearmamento moral (moral re-armament) ......................................................................... 52 5.2.6 Accountability....................................................................................................................... 54 5.3 A CONTRIBUIÇÃO DE GONÇALVES DA SILVA............................................................................... 55 6.4 DIÁLOGO...................................................................................................................................... 58

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................. 61 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................. 62

1 INTRODUÇÃO

Pritzl (2000) orienta para o estudo multidisciplinar do tema corrupção, não podendo-se restringir sua análise apenas a aspectos políticos, ou econômicos: o sucesso de sua compreensão depende de um olhar multifacetado, capaz fugir de abordagens consensuais e retóricas, como a de que somos corruptos, todo político é corrupto. Um administrador deve estar atendo ao ambiente externo que o cerca. Faz parte da análise de viabilidade de um negócio, do desenvolvimento de um plano de negócios ou planejamento estratégico uma atida observação do ambiente (Umwelt).

Todas as organizações operam em um macroambiente modelado por influências que emanam da economia como um todo, da demografia populacional, dos valores da sociedade e dos estilos de vida, da legislação e da regulação oficiais, dos fatores tecnológicos e, mais perto de sua atuação, do setor e da arena competitiva em que opera. Em termos estritos, o macroambiente inclui todos os fatores e influencias relevantes externos aos limites da empresa (THOMPSON, 2011, ps. 49-50).

Para Concconello e Ajzental (2008), compõem o ambiente geral as variáveis demográfica, sociocultural, econômica, tecnológica, político-legal, e natural. A) Os conjuntos de crenças e percepções que as pessoas têm de si mesmas, das outras pessoas e organizações, da sociedade, dentre outros aspectos socioculturais afetam e moldam o ambiente no qual a organização esta inserida. B) O ambiente demográfico é entendido pelo perfil das pessoas que constituem determinada população como taxa de crescimento da população, distribuição de faixas etárias, expectativa de vida, renda, entre outras. C) Ambiente econômico é o apanhado de informações relativas ao poder de compra, componentes de renda, preços dos produtos e serviços, nível de poupança e de endividamento, além de diversos outros aspectos que integram a análise do ambiente econômico. D) A tecnologia é uma das principais alavancas do aumento de produtividade, afetando a taxa de crescimento da economia de forma direta. Ela também é uma das maiores promotoras de inovações e alterações no mercado. E) O ambiente político-legal é formado por leis, órgãos governamentais e grupos de pressão. As leis influenciam e restringem a ação das organizações e dos indivíduos. Sobre as maneiras como estes fatores podem afetar as empresas, tem-se que:

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O componente de ação indireta do ambiente externo afeta a organização de duas maneiras. Primeiro: algumas forças podem ditar a formação de um grupo que eventualmente se torne um stakeholder. Segundo: os elementos de ação indireta criam um clima – uma tecnologia que muda rapidamente, crescimento ou declínio econômico, mudanças nas atitudes com relação ao trabalho – no qual a organização existe e ao qual precisa, em última instância, reagir. (STONER E FREEMAN, 1995, p. 55).

Em países impregnados por amplos espaços de corrupção, como o Brasil, normas jurídicas e o funcionamento de determinadas instituições não devem ser, sob pena de ignorância da realidade, tomados de maneira literal. Exemplo: um empreiteiro entrante no mercado da construção civil em Florianópolis terá as mesmas oportunidades que outras empresas “bem relacionadas” com o poder público, ou cujas famílias fazem parte do aparato estatal? Duas empresas, aparentemente com a mesma penetração de marcado, mesma eficiência e competitividade (Wettbewerblichkeit), estão realmente pari pasu à luz de um estudo do ambiente externo que pretere variáveis reais como a corrupção e o rent-seeking? A resposta é, evidentemente, negativa. Talvez seja merecedor de estudo posterior o otimismo de planos de negócio que preterem variáveis reais como corrupção e cujo resultado seja um (aparentemente) inexplicável fracasso. Dito isso, procura-se defender a necessidade de estudo do fenômeno da corrupção por um acadêmico de Administração Empresarial: seja sob o ponto de vista da multidisciplinariedade que permeia o tema, seja porque administradores devem tomar esse variável no estudo do ambiente externo em seu planejamento. O objetivo central desse trabalho é, a partir de uma análise do Estado, sociedade e Administração Pública, forjar um arcabouço para discutir novas correntes de estudo do fenômeno corruptivo e buscar, a partir desse diálogo teórico, enunciados cuja validade permita orientar um aperfeiçoamento institucional. A hipótese básica é de que é possível, a partir desse diálogo, formular assertivas cuja validade possa contribuir para o arranjo de instituições públicas menos suscetíveis a atos de corrupção. Busca-se, secundariamente, questionar a eficácia de algumas praxis ou ferramentas de combate à corrupção. A metodologia utilizada foi a revisão bibliográfica e a pesquisa documental. A pesquisa bibliográfica teve por objetivo levantar junto a livros e periódicos os argumentos dos estudiosos da área em relação a Estado, corrupção, formalismo e Administração Pública. Também foram pesquisados documentos com dados e informações sobre os assuntos avaliados. Trata-se de um estudo bibliográfico acompanhado de comentários do estagiário referendados por argumentos de autores reconhecidos no âmbito nacional e internacional.

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O presente trabalho não se pretende exaustivo em sua abordagem acerca do tema corrupção, Estado, sociedade ou Gestão Pública, até porque descrever a evolução das formas de organização política, assim como o desenrolar histórico-constitucional brasileiro em vinte páginas traz como resultado limitações de abordagem, simplificações e omissões de determinados contextos. Contudo, e por esse motivo pretende-se ver perdoadas essas restrições, acredita-se necessária para um melhor entendimento do fenômeno da corrupção um retrato, ainda que um tanto cru, da formação institucional brasileira. Sumariamente, no primeiro capítulo traça-se o desenvolvimento das comunidades políticas. Um segundo capítulo é dedicado à evolução político-constitucional brasileira desde as capitanias hereditárias até o Estado Democrático de Direito regido pela atual Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. No terceiro capítulo, descreve-se a abordagem de formalismo no contexto brasileiro de acordo com Ramos, que dialoga com Riggs e seu modelo de sociedade prismática. O quarto capítulo trata dos modelos de Administração Pública: o burocrático, o gerencial de governança segundo Secchi. O quinto e último capítulo trata especificamente do tema corrupção em um diálogo com os capítulos precedentes e autores como Theobald, Pritzl e Gonçalves da Silva na busca de obterem-se conclusões e revisitar assertivas comumente tangentes à temática da corrupção.

2 EVOLUÇÃO DAS COMUNIDADES POLÍTICAS

Embora se tome no presente trabalho a ideia de Estado moderno, composto de um governo soberano ao qual se submete determinado povo em um dado território - modelo político hegemonicamente predominante na ampla maioria dos países do mundo atual – faz-se necessária uma abordagem histórica que contextualize esse modelo de Estado. “Estado é uma entidade abstrata que não se pode ver, ouvir ou tocar. Essa entidade não é idêntica aos governantes nem aos governados; [...] nem mesmo todo o conjunto de cidadãos pode declarar o que é o Estado” (VAN CREVELD, 2004, p. 1). Para Van Creveld (2004), o Estado poder-se-ia comparar a uma corporação. Tal como um sindicato ou igreja, e à sua semelhança, teria diretores, funcionários e acionistas. Contudo, o Estado enquanto corporação divergiria das demais, uma vez que

ele autoriza todas, mas só é autorizado (reconhecido) por outros de mesma espécie; em segundo lugar, o fato de certas atribuições (conhecidas coletivamente como atributos de soberania) estão reservadas somente a ele; e, em terceiro lugar, de que exerce essas funções sobre determinado território, dentro do qual sua jurisdição é tanto exclusiva quanto abrangente (VAN CREVELD, 2004, p. 1).

Houve, entretanto, em outros períodos históricos, predomínio de diferentes comunidades políticas que não Estado dentre as quais se destacam: a) as tribos com ou b) sem governantes, c) cidades-Estado e d) impérios.

2.1 TRIBOS SEM GOVERNANTES

Van Creveld (2004, p. 2) aponta como ponto de identidade entre as diversas tribos espalhadas pelo mundo, desde os esquimós do Alasca até os aborígenes australianos, o fato de que, “dentre elas, o ‘governo’ começava e terminava dentro da família estendida, linhagem ou clã.”. Toda a fonte de autoridade emanava dos laços de parentesco. A posição social é determinada pelo gênero e idade. Ademais, “todo homem adulto era considerado, e se considerava, igual a todos os outros; ninguém tinha o direito a dar ordens a ninguém” e as tarefas públicas, aquelas que estivessem acima das capacidades do grupo familiar, essas seriam realizadas “por um líder e seus seguidores” (VAN CREVELD, 2004, p. 2) Tampouco havia lei em seu sentido formal: emanada de um corpo legislativo, submetida a determinados ritos. Havia, sim, costumes, regras religiosas e mágicas.

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A ausência de Estado significava também menos guerras. Em algumas sociedades mais isoladas e menos complexas raramente havia guerra; em vez disso, as disputas se resolviam em combates ritualizados (VAN CREVELD, 2004, p. 9).

2.2 TRIBOS COM GOVERNANTES

Nessas comunidades políticas havia a figura dos chefes, membros que avocavam o direito de governar os demais, direito esse fundado, na ampla maioria das vezes, em uma alegada ascendência divina.

[...] a sociedade era geralmente dividida em duas camadas ou classes. Primeiro vinha o grupo privilegiado, pequeno em relação à população total e composto por membros da família estendida, da linhagem ou clã do chefe. Gozavam de direitos especiais, tais como acesso ao chefe, compensação muito mais alta em caso de ferimento ou morte e imunes a certos tipos de punição consideradas degradantes. Quase sempre se distinguiam pela permissão de usar insígnias ou trajes especiais, ou, em regiões onde o clima era favorável e o traje não tinha importância, tatuagens. [...] Abaixo da linhagem, do clã ou da tribo real, havia uma classe muito mais numerosa de plebeus - como os trabalhadores ou thétes da Grécia antiga [...]. Estavam sujeitos a diversos tipos de discriminação, entre elas, não ter permissão para possuir gado [...]. Se fossem feridos ou mortos por membros da sociedade alta, podia ser que eles ou sua família recebesse uma pequena indenização, mas às vezes não recebia nenhuma [...]. Em especial na África, com sua longa história de migrações, assentamentos e conquistas tribais, era comum que governantes e governados pertencessem a grupos étnicos diferentes (VAN CREVELD, 2004, p. 19).

Se vasto o território, o chefe delegava parte do seu poder de comando para subchefes regionais, cuja lealdade procurava reforçar pela formação de laços familiares e pela distribuição de riqueza pessoal ou decorrente de espólio de guerra. Sua riqueza advinha da tribo. “Assim, as chefias se tornaram as primeiras entidades políticas a instituírem aluguel, tributos ou impostos [...], em outras palavras, pagamentos compulsórios e unilaterais que tiravam os bens das mãos dos muitos governados e os concentravam nas mãos dos poucos governantes” (VAN CREVELD, 2004, p. 23). Embora parte dessa riqueza fosse utilizada pelo chefe, ou depositada em sua propriedade, “a riqueza era utilizada, sobretudo, para conquistar e manter adeptos; constituiu, portanto, a base para instituição, o exercício e o aumento de todos os tipos de poder”. (VAN CREVELD, 2004, p. 27) Uma organização mais estruturada e com capacidade de ação coordenada eram vantagens que as tribos com chefia possuíam em relação às sem governantes, o que, contudo, não lhas rendeu, no mais das vezes, perdurar mais do que algumas gerações. Isso porque

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havia um problema inerente, que as destruía: poligâmicas por excelência, essas tribos abriam margem a uma disputa sem limites pelo poder quando da sucessão do chefe.

2.3 CIDADES-ESTADO Diferentemente das tribos com ou sem chefes – predominantemente rurais ou nômades – aqui se fala já em cidades, “assentamento permanente cujas casas são construídas de material durável, como pedra e tijolo. Contém um templo, um mercado – como a ágora grega e o fórum romano -, um ou mais prédios exclusivos do governo” (VAN CREVELD. 2004, p. 29). Dominava-se a escrita, manufatura e comércio, o que permitia um afastamento de parcela considerável da população das atividades rurais de plantio e colheita. Sua evolução deu-se, segundo, van Creveld, por haver, diferentemente dos impérios e idades feudais, um limite bem nítido entre as esferas privada e pública. Dentro do lar as relações fundavam-se na propriedade exercida pelo pater-familia. Fora do lar, ao seu turno, havia governo, ou autoridade política (ps. 32 e ss.). Exemplo outro da separação entre governo e propriedade deu-se na polis grega de Dreros, onde, em XVII a. C., o magistrado kósmos não poderia exercer o cargo uma segunda vez antes de decorridos dez anos: o cargo é temporário, e a pessoa prosseguirá sua vida privada após exercê-lo. O órgão de governo mais importante era a assembleia popular, cujas funções precípuas eram a) aprovar leis, b) dar palavra final em questões de guerra e paz e c) eleger magistrados. Os magistrados, por sua vez, eram responsáveis pelos assuntos cotidianos da cidade, tais como convocar a assembleia, assumir o comando de guerra, exercer justiça e manter a ordem interna. Terceiro órgão que compunha o governo da cidade-Estado era a câmara. Suas funções eram preparar projetos de lei para apresentação na assembleia, bem como atuar como corregedores dos magistrados. Não havia um sistema jurídico unificado: havia tribunais dispersos e independentes. Reuniam-se funcionários diariamente e, à guisa dos jurados do atual sistema jurídico brasileiro, sem formação específica, tomavam suas decisões. A despeito de um sistema jurídico difuso, havia uma separação entre o poder executivo e o judiciário, o que não se verificava nas comunidades tribais com ou sem chefia, ou mesmo nos impérios (apenas nos Estados modernos).

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Dada a rotatividade nos cargos públicos, e o elevado grau de envolvimento dos cidadãos com a coisa pública, as cidades-Estado não dispunham de grandes máquinas administrativas; tampouco havia recebimento de salário para o exercício e função pública. O mesmo aplicava-se às forças armadas: ao fim da guerra soldados e oficiais dispersavam-se, não havendo espaço, na ampla maioria dos casos, para o desenvolvimento de um espírito armamentista. Consequentemente à ausência de uma burocracia ou força militar regulares, salvo exceções como guerra, não havia uma tributação direta dos cidadãos e as despesas do governo eram mantidas por tributos de mercado, multas e taxas do sistema judiciário e nas liturgias, “contribuições feitas pelos ricos para fins específicos”. Podia ser a construção de edifício público, construção de um ginásio ou mesmo a manutenção de um navio de guerra (VAN CREVELD, p. 46). Com uma vida política muito mais organizada, se comparadas às tribos, as cidadesEstado apresentavam um ponto sensível que as tornaria presa fácil a impérios expansionistas: elas eram pequenas – apenas um determinado povo, com identidade cultural e religiosa, assim como ascendência comum, compunha basicamente tais comunidades políticas. Exemplo é Atenas, a maior delas: em seu apogeu, contava com uma população de não mais que 250 mil habitantes, dos quais apenas 40 mil cidadãos.

2.4 IMPÉRIOS

Impérios são grandiosos por excelência: alguns são milenares, como o chinês, outros eram imensamente vastos, como o inca. Houve, como o Império Romano, aqueles que surgissem de cidades-Estados; os como o inca e asteca, ao seu turno, cresceram dada a capacidade bélica de seus líderes. “Ideologicamente falando, a maioria dos impérios elaborou doutrinas cuja finalidade era conformar os súditos em sua obediência ao poder constituído” (VAN CRAVELD, 2004, p. 55). O imperador era absolutista: comandava em bloco unitário, centralizando as funções legislativa, executiva e judiciária e podia, para van Creveld (2004, p. 57), tudo: “podia fazer qualquer coisa com seus súditos, ao passo que qualquer crueldade que ele escolhesse não lhes infligir contava como indulgentia da parte dele”. Lastreavam o governo imperial eram o exército e a burocracia. O exército incumbia, além de sua função precípua, a guarda da capital e força policial responsável pelo trato com os levantes internos, de acordo com van Creveld (2004).

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Embora se buscasse evitar a formação, nas funções burocráticas, de uma aristocracia hereditária - com vistas a impedir centros descentralizados de poder – as tais eram precipuamente ocupadas por pessoas de elevada classe elevada social, e a eles cabia, sobretudo, a coleta de impostos, atividade estratégica para o Império. Note-se que, na ausência de Estado abstrato, as riquezas eram propriedade do imperador.

O poder absoluto do imperador e a ausência de qualquer distinção entre o público e o privado significavam que a única instituição mais ou menos protegida contra a interferência arbitrária era a religião ou Igreja estabelecida. Esta geralmente tinha um sistema de tributação paralelo ao do próprio imperador (VAN CREVELD, 2004, p. 65)

Toda essa concentração de poder teve, contudo, seu preço. Com o avanço territorial dos impérios, as regiões mais distantes se distanciariam cada vez mais do poder central. Tomava-se conhecimento de levantes dias, semanas ou mesmo meses depois de ocorrerem. Muitos burocratas locais, aliados a líderes regionais e membros do exército não mais se sentiam vinculados, e estabeleciam feudos militarizados, onde viveriam com uma população vassala.

Quando todos os senhores se puseram a lutar para emancipar seus domínios, o sistema centralizado de coleta de informações, de transportes e de defesa se deteriorou e se desintegrou. Desapareceram as burocracias - e, em grande parte, a cultura letrada necessária entre as classes não-religiosas -, os serviços postais, os recenseamentos e até mesmo os mais elementares meios de transporte [...] As forças armadas regulares também se dissolveram [...] os direitos que antes pertenciam ao imperador, tais como o usufruto dos recursos econômicos (minas, florestas, etc.), a tributação e a cunhagem de moedas, se dissiparam e passaram às mãos de inúmeros lordes e barões (VAN CREVELD, 2004, ps. 73-74).

Surgia assim o feudalismo, em cuja resposta e avanço culminou o Estado moderno, ao qual se dedicará a análise a seguir.

2.5 O ESTADO MODERNO “Estado” enquanto conceito que exprime ordem pública distinta tanto do governado quanto do governante, com instituições altamente centralizadas e cujo exercício de poder sobre os habitantes dá-se um território definido aparece século XVI. (MORRIS, 2005). Anteriormente

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A organização “política” na Europa medieval era complexa, e o poder “político” era altamente fragmentado e descentralizado. Os deveres de obediência eram muitos, amplamente pessoais, e nenhuma hierarquia clara na autoridade política era discernível. O governo não era territorial; era largamente exercido sobre pessoas, na qualidade de indivíduos ou de cristãos. A complexidade das relações de autoridade indica que o controle não era, em sua maioria, “direto”, e as instituições não “penetravam” a sociedade da maneira característica de nossos Estados. Não havia organizações políticas “auto-suficientes”, e, consequentemente, não havia “relações internacionais”. O Estado moderno não existia. (MORRIS, 2005, p. 63)

Para Morris (2005), a territorialidade do governo não é compatível com a natureza pessoa das relações políticas, como a servidão entre indivíduos tampouco com o poder compreendido como posse individual dos governantes. Se nos impérios o governo é tipicamente indireto e considerável parcela de poder é delegado às autoridades e administradores locais, no mundo moderno o governo torna-se direto; cada cidadão e todos os cidadãos são governados pelo soberano ou o Estado, sem mediação, o que traduz sua extensiva autoridade (MORRIS, 2005, p. 67) [grifo nosso].

Os Estados não somente reivindicam o poder final dentro de seus domínios, como também proclamam independência um dos outros (“soberania externa”). Ao rejeitar a autoridade de papas e imperadores, os soberanos firmaram a autonomia de outros Estados. Não apenas o Estado é o autor de suas próprias leis – o significado etimológico de auto-nomos – como as leis dos outros não tem direito algum sobre isso. (MORRIS, 2005, p. 70)

Morris (2005, p. 74) traz a definição de Weber: “um Estado é uma comunidade humana que (com sucesso) reivindica o monopólio do uso legítimo da força física dentro de um dado território”, o que tornaria O Estado distinto de gangues ou das agências de proteção, na medida em que reivindica para si o monopólio da força e o direito exclusivo de determinar quem pode legitimamente usá-la. O Estado moderno, em seus diversos aspectos inter-relacionados, aparece, no período medieval e no início da história moderna, na forma de uma nova e complexa forma de organização política, caracterizada em função de variáveis como:

Continuidade no tempo e no espaço. O Estado moderno é uma forma de organização política cujas instituições resistem ao tempo; especialmente, sobrevivem a mudanças de liderança e de governo. É a forma de organização política de um território definido e distinto. Transcendência. O Estado moderno é uma forma particular de organização política que constitui uma ordem pública unitária, distinta de e superior a governados e governantes e passível de representação. As instituições associadas com os Estados modernos – em particular, o governo, o judiciário, a burocracia e as forças armadas – não constituem em si mesmas o Estado; são seus agentes. Organização política. As instituições por meio das quais o Estado atua – especialmente o governo, o judiciário, a burocracia e a política – são diferenciadas

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de outras organizações políticas e associações. Elas são formalmente coordenadas entre si e relativamente centralizadas. As relações de autoridade são hierárquicas. O controle é direto e territorial, relativamente difundido e penetra na sociedade legal e administrativamente. Autoridade. O Estado é soberano, isto é, a derradeira fonte de autoridade política em seu território, e reivindica o monopólio sobre o uso da força legítima dentro deste território. A jurisdição de suas instituições se estende diretamente a todos os residentes ou membros desse território. Em suas relações com outras ordens públicas, o Estado é autônomo. Compromisso de fidelidade. O Estado espera e recebe lealdade de seus membros e dos habitantes permanentes de seu território. A lealdade que ele tipicamente espera e recebe assume precedência sobre aquela lealdade anteriormente devida a família, clã, comuna, nobreza, clero, papa ou imperador. Os membros de um Estado estão sujeitos às suas leis e têm obrigação geral de obedecê-las, em virtude de sua qualidade de membro (MORRIS, 2006, ps. 76-77) [grifo nosso].

Portanto, para Morris (2006), Estados modernos são um modus organização política que reivindicam soberania sobre os seus domínios e independência de outros Estados. Como organização política predominante no mundo contemporâneo, bem como resultado, em parte, do fracasso de outras formas de coordenação da vida social, o Estado apresenta desafios. Entidades supraestatais, como a União Europeia, implicam em cessão de parte da soberania nacional, e parece haver um jogo de forças entre aqueles Estados mais ou menos favorecidos – e representados - nas instancias internacionais que se apropriam das soberanias nacionais. Outro ponto merecedor de atenção é a capacidade de reação dos Estados a problemáticas tranfronteiriças como terrorismo e poluição. A corrupção, enquanto apropriação da coisa pública para fins privados, é igualmente problema de caráter transnacional, mas afeta o Estado em seu propósito de eficiência e justiça, dois de seus elementos legitimadores de existência. Se a alocação de recursos se dá em detrimento das necessidades reais da população em favor de interesses escusos, não há redistributividade e o Estado escapa ao seu fim. É por motivos que tais não ser possível discutir corrupção sem discutir o Estado. Em países certos países, o inverso é igualmente verdadeiro.

3 BRASIL: DESENVOLVIMENTO POLITICO-CONSITUCIONAL

Em nove de março de 1500, no contexto da Revolução Comercial e sua política expansionista em busca de regiões para o além-mar europeu que fornecessem matéria-prima e fossem consumidores dos produtos das metrópoles, descobriu-se o que hoje Brasil. As três décadas posteriores ao descobrimento foram, afora os franceses e seu interesse pelo pau-brasil, de nada muito diferentes do período antecedente à descoberta: diversas comunidades indígenas povoavam o vasto território, cada qual com suas tradições procedimentos. Por isso, toma-se neste trabalho, como ponto de partida para o estudo da evolução político-constitucional brasileiro o advento das capitanias hereditárias.

3.1 PERÍODO COLONIAL

Pode-se dizer, então, que a colonização do Brasil começou efetivamente pela organização das capitanias hereditárias, sistema consistente na divisão do território colonial em doze porções confrontantes com o oceano e com os limites do Tratado de Tordesilhas. Ã falta de recursos públicos para a povoação, doou-se a particulares as capitanias vitalícias àqueles decididos a morar no Brasil e capazes de colonizá-lo e defendê-lo. Embora poucas dessas capitanias tivessem obtido êxito, foram relevantes na medida em que criaram núcleos de povoamento e formação de centros de interesse econômico e social, ainda que de forma esparsa, o que efetivamente influiu na estrutura do futuro Estado brasileiro. Os donatários de tais capitanias exerciam tanto poder de legislação, quanto de julgamento e execução, ou seja, dispunham de poder quase absoluto e tinham interesses meramente exploratórios. Pouca integração havia entre as capitanias. Por isso, para Silva (2008, p. 70), instituíase de maneira difusa a jurisdição cível e criminal e “a dispersão do poder político e administrativo era assim, completa, sem elo que permitisse qualquer interpenetração, salvo apenas a fonte comum que era a metrópole”. Apenas com a chegada Tomé de Souza, o primeiro Governador-Geral, em 1559, houve a introdução de um elemento unificador à colônia brasileira, Funda-se a primeira capital do país, Salvador, além da chegada dos únicos educadores do tempo colonial: os jesuítas. No plano político, surgem os Regimentos do GovernadorGeral, os quais

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têm, de fato, a maior importância para a história administrativa do país: antecipavam-se às cartas políticas, pelo menos na delimitação das funções e no respeito exigido das leis, foros e privilégios, atenuando o arbítrio, fixando a ordem jurídica (CALMON apud SILVA, 2008, p. 70)

Foram legítimas cartas organizatórias do regime colonial, que conferiram ao governador-geral poderes atinentes ao governo político e militar. Permanecia, entretanto, uma dispersão no poder político da colônia. Em 1596, dividiuse o país em Estado do Brasil e Estado do Maranhão, divisão essa que durou cinco anos. Determinados interesses, em especial de ordem econômica, resultaram em uma dispersão ainda maior dentro desses Estados, cada vez mais vinculados a administrações regionais e locais. Passada essa cisão de Brasis, permaneciam governos de autoridades locais, subordinados, em tese, ao governo-geral da capitania, mas que acabaram por tornar-se praticamente autônomos, perfeitamente independentes do poder central. Nessa estrutura de distribuição de poder, eram os capitães-mores aqueles a exercer as competências estatais típicas e a promover a manutenção do status quo: assemelhavam-se assim, à figura do senhor feudal. Novais descreve o que Frei Vicente experimentava na Salvador colonial: e a ausência de Estado e de uma sociedade organizada. Notava as cosias e via que pedia para comprar um frangão, quatro ovos e peixe para comer, e nada lhe traziam, porque não havia praça, nem açougue, e se mandava pedir as ditas coisas e se mandava pedir as ditas coisas e outras mais às casas particulares, lhas mandava. Então disse o bispo: verdadeiramente que nesta terra andam as coisas trocadas, porque toda ela não é república, sendo-o cada casa (1997, p. 130).

Novais aponta ser a organização municipal, que se desenrolava no cenário de descentralização política da época, autêntico elemento de transposição do poder econômico para o poder político (especialmente em regiões agrárias), isso porque apenas os “homens bons de terra” poderiam ter vida política ativa no âmbito da administração pública, seja no Senado da Câmara seja na Câmara Municipal (2008, p. 72). Para além da sociedade agroaçucareira, latifundiária e escravagista, houve o desenvolvimento, em torno das cidades participantes do ciclo da mineração, de uma sociedade urbana, com comerciantes, artesãos e intelectuais. Nessas regiões, sobretudo em Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás, surgem inquietações sociais em torno do arroxo promovido por Portugal para aliviar suas finanças.

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A derrama, por exemplo, era meio instituído para ser usado sempre que a arrecadação não atingisse o mínimo estabelecido por Portugal e toda a população pagava a diferença, inclusive com o uso de força militar.

No início do século XIX o Brasil tem pouco mais de três milhões de habitantes (um milhão só de escravos). Sua situação econômica é lamentável: as minas exauridas, o comércio autorizado a negociar apenas com Portugal e a instalação de indústrias proibida desde 1785 por um decreto real (NOVAIS, 1997, p. 131).

A esse cenário de instabilidade política, social e econômica soma-se a chegada da Coroa Portuguesa ao Brasil (ou sua fuga ante a iminente invasão do solo português): se é bem verdade que até 1815 o Brasil possui status de colônia ante a metrópole portuguesa, a mudança à categoria de Reino Unido a Portugal oportunizou-se com a chegada de D. João VI ao Brasil em 1808. O século XIX começou, no Brasil, em 1808, com a vinda da Coroa Portuguesa de Lisboa para o Rio de Janeiro. Embora se passassem quatorze anos até que fosse proclamada a independência do país – e pelo menos duas décadas até que fosse consolidada -, a presença da corte em terras americanas é daqueles acontecimentos históricos que, como poucos, marcam uma ruptura indiscutível: dali em diante, tudo seria diferente. E foi (GRINBERG; SALES, 2009, p. 11). Transferida a Família Reinante para o Rio de Janeiro, era preciso instalar as repartições, os tribunais e as comodidades necessárias a organização do governo; cumpria estabelecer a ordem, com a polícia, a justiça superior, os órgãos administrativos, que tinham até aí faltado à colônia. Assim se fez a partir de 1. de abril. Foram instituídos e criados o Conselho de Estado, a Intendência Geral de Polícia, a Mesa da Consciência e Ordens, (...) O Banco do Brasil, para auxiliar o Erário, Casa da Moeda, a Impressão Régia, etc. Abriram-se antes os portos, decretara-se a liberdade de indústria, possibilitara-se a expansão comercial (SILVA, 2008, p. 72).

A despeito dessa “onda modernizante” trazida pela Coroa Portuguesa ao agora Reino Unido a Portugal, seus efeitos mostrara-se um tanto tacanhos fora das cercanias do Rio de Janeiro, agora nova capital: três séculos de fragmentação político-administrativa, em um território vasto com o brasileiro, faziam do projeto português algo distante da realidade cotidiana da agora ex-colônia – faziam-se predominar os centros de poder locais sobre os interesses do “centro”. Além disso, já com a saída dos franceses de Portugal, inicia na cidade do Porto movimento em prol da volta da família real à península ibérica, fato que se confirma em 1821, com o retorno de d. João. Fica d. Pedro de Alcântara, o qual vê seus poderes de príncipe regente minguados por uma série de decretos do Parlamento de Lisboa. Não os acata d. Pedro e no dia 7 de setembro de 1822 declara a independência do Brasil. Mantém a monarquia e a escravidão.

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As elites brasileiras que tomaram o poder em 1822 (apoiando D. Pedro) compunham-se de fazendeiros, comerciantes e membros de sua clientela, ligados à economia de importação e exportação e interessados na manutenção das estruturas tradicionais de produção cujas bases eram o trabalho escravo e a grande propriedade (VIOTTI DA COSTA, 2007, p. 11) [grifo nosso]

Os filhos dessa elite estudavam nas melhores universidades europeias e tomaram para si ideais teóricos que emergiam no Velho Continente como o Liberalismo, Federalismo, Democracia e mesmo Constitucionalismo. Tal era um arcabouço da teoria política necessário para fazer cumprir, enquanto justificação ao interesse de verem-se livres dos julgos da Coroa e assumirem de vez o comando do país.

3.2 PERÍODO MONÁRQUICO

Desafiante era, então, desenvolver um modelo de Estado não absolutista, o que viria de encontro às novas ideias basilares do próprio processo de independência (ao menos em teoria, como visto), mas ao mesmo tempo atingir o objetivo de controlar os centros de poder locais. Proclamada a independência, o problema da unidade nacional impõe-se como primeiro ponto a ser resolvido pelos organizadores das novas instituições. A consecução desse objetivo dependia da estruturação do poder centralizador e uma organização nacional que freasse e até demolissem os poderes locais e regionais, que efetivamente dominavam o país, sem deixar de adotar os princípios políticos que estavam em moda na época (SILVA, 2008, p. 74).

A solução é dada pela Constituição Imperial outorgada em 1824: surge, ademais dos três poderes típicos, um quarto, o Poder Moderador, sob a batuta do próprio Imperador, o qual tinha poder de revisão sobre os demais. Com o Poder Moderador poderia o Imperador suspender Magistrados ou mesmo dissolver a Câmara. Além do mais, era o Imperador o intérprete constitucional em última instância. As oligarquias regionais sedimentadas desde os tempos de colonização viam-se dessa forma pressionadas, o que representaria risco de perda de poder político. Diversas revoltas como a Sabinada, Balaiada, e a República Piratini fazem sentir o descontentamento dos liberais contra os mecanismos centralizadores. Para enfrentar os movimentos e revoltas populares, segundo Novaes (1997, p. 164), o governo cria a Guarda Nacional, uma tropa formada por proprietários rurais e seus seguidores, que recebem patentes militares. Serão os futuros “coronéis”.

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Não é suficiente. A pressão internacional, sobretudo da Inglaterra, para que o Brasil abolisse a escravidão, assim como a propaganda republicana, idealizada pelos liberais descontentes com a centralização política, aliada aos novos barões do café – cuja mão de obra era de imigrantes europeus, conscientes de possíveis melhores condições de trabalho – e à diversificação da economia nacional enfraquecem um Império já combalido em dívidas decorrentes da Guerra do Paraguai e de inúmeras revoltas regionais: sessenta e cinco anos depois da Constituição de 1824 proclama-se a República.

3.3 PERÍODO REPUBLICANO

3.3.1 A velha República

O Estado brasileiro adquire nova roupagem (mas os oligarcas, atores centrais, ainda são mesmos): em 1889 o pelo Marechal Deodoro da Fonseca declara proclamada a República, cujo princípio constitucional de estruturação do Estado é o federalismo, agora iluminado por um regime político pretensamente democrático. Estabeleceu-se, em 1891, a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil. Adotou-se, então, a República Federativa como forma de governo. As outrora províncias agora passavam a constituir Estados Unidos do Brasil. Vigia também, de acordo com a Constituição desse novo Estado brasileiro, o modelo presidencialista. Outra importante mudança foi a extirpação do quarto Poder, o Moderador, tomando-se como base o modelo montesquiano de tripartição dos poderes. Adota a Constituição, ainda, segundo Novaes (1997, p. 196),“ eleição direta para o executivo, mas o voto permanece ainda restrito ao círculo de cidadãos do sexo masculino, alfabetizados, maiores de 21 anos”. Problemática, contudo, a dissonância existente entre a constituição formal, aquela promulgada, e a constituição material, resultante do entrelace das forças econômicas e políticas da jovem República.

Apesar das profundas mudanças constitucionais, a estrutura sócio-econômica permanece a mesma; a vida dos trabalhadores; a dependência do capital estrangeiro não muda; o sistema de produção não muda e a distância da população para o processo político não muda. Apenas uma coisa muda: os militares chegam ao poder (NOVAES, 1997, p. 196)

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A grave crise econômica, a perda de apoio das forças armadas e criticas da imprensa levam o “pai da República”, Marechal Deodoro, a renunciar. Assume o vice-presidente, Floriano Peixoto, outro militar, considerado o “consolidador da República”, em deferência à mão firma que utilizara para estabilizar o estado de guerra civil então reinante no país. O terceiro presidente da República foi Prudente de Morais, pertencente às oligarquias que tramaram o processo de proclamação da República. Para Silva (2008, p. 80), “o sistema constitucional implantado enfraquecera o poder central e reacendera os poderes regionais e locais, adormecidos sob o guante do mecanismo centralizador e unitário do Império”. Campos Sales, em sucessão a Prudente de Morais, com vistas a neutralizar esse problema, terminou por adotar a “política dos governadores”, consistente em um sistema de minorias deliberativas, cujo domínio pertencia aos governadores, os quais, ao seu turno, eram sustentados por “coronéis”. Para Silva (2008, p. 80), “o coronelismo fora o poder central e efetivo, a despeito das normas constitucionais traçarem normas formais da organização nacional com teoria de divisão de poderes e tudo”. Havia, portanto, uma constituição formal, escrita, e outra, material, ditada por uma política “café com leite”: São Paulo e Minas Gerais, principais polos econômicos do país, ditam as regras do jogo. Exemplo é a “Política de Valorização do Café”: ante a queda de preço no mercado internacional dessa commodity, o governo passa a comprar suas “sobras”, intervindo no mercado para garantir margens razoáveis aos cafeicultores. “São tempos em que a jovem oficialidade (e só a jovem) mostra sua insatisfação com as manobras do poder” (NOVAES; LOBO, 1997, p. 216) e, após a quebra da Bolsa de Nova York, o país enfrenta grave crise econômica. Washington Luís é deposto em 24 de outubro de 1930. A Velha República termina como começou: por um golpe Militar.

3.3.2 Revolução de 30

Getúlio Vargas iniciou a revolução, cuja plataforma de governo voltada para questões sociais, além de intervir nos Estados, afastando a influência dos coronéis, os quais desarma. Promulgada em 19.7.1934, a segunda Constituição da República Federativa do Brasil. Nessa nova carta constitucional, a qual manteve os elementos principais da primeira – a república, federação, regime representativo, presidencialismo e divisão dos poderes -, ampliam-se os poderes da União.

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3.3.3 Estado Novo

Com o golpe de Getúlio, rompe-se com os elementos fundamentais do Estado anterior – uma ditatura fora instalada, e aqui já não se fala mais em democracia, por exemplo. Rompidos tais valores, há um novo Estado, e com ele, nova constituição. Em 10.11.1937 outorga-se a Constituição dos Estados Unidos do Brasil, que atribui amplos poderes ao Executivo, inclusive em sua atípica função legislativa – como consequência enfraquecendo o parlamento -, além de forte tendência de nacionalização e controle pelo Estado da economia. Contudo, para Silva (2008, p. 83),

a carta de 1937 não teve aplicação regular. Muitos de seus dispositivos permaneceram letra morta. Houve ditadura pura e simples, com todo o Poder Executivo e Legislativo concentrado nas mãos do Presidente da República, que legislava por via de decretos-leis que ele mesmo aplicava, como órgão do Executivo.

3.3.4 A Redemocratização

Terminada a II Guerra Mundial, na qual o Brasil adotou posição contrária a regimes totalitários e ditatoriais como o da Alemanha de Hitler e da Itália de Mussolini, afigurou-se indelével um processo de redemocratização. Esse foi um dos motivos que culminou na deposição do então presidente Getúlio Vargas. Instalou-se uma Assembleia Constituinte, cuja inspiração foram as Constituições de 1891 e 1934 e que resultou na Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil. A nova carta política do Estado brasileiro reanimava princípios como o da harmonia dos poderes e representativade, além de maior autonomia ao Poder Legislativo em detrimento do Poder Executivo. Sob sua égide, diversos presidentes governaram o país. Marca maior desse período regido foi, entretanto, grande instabilidade política, resultado da disputa entre as forças políticas. Silva (2008, p. 85) atribui a ineficácia constitucional e o fracasso do processo redemocratizante ao fato de ela ter-se voltado “às fontes formais do passado, que nem sempre estiveram conformes com a história real, o que constitui o maior erro daquela Carta Magna (a de 1946), que nasceu de costas para o futuro”.

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3.3.5 A Ditadura Militar

Uma Junta constituída por três ministros do então presidente Jango assume o país em nove de abril de 1964. Promulga-se o Ato Institucional, que atribui poderes de exceção ao Governo e suspende por seis meses direitos e garantias constitucionais (LOBO; NOVAES, 1997). A intervenção militar rompe com a ordem constitucional vigente. Seu ápice deu-se com o ato institucional n. 5 (13/12/1968). Explicitamente violam-se direitos fundamentais tais como direitos políticos e direito de manifestação. Leia-se o art. 5 do AI-5, ipsis literis:

A suspensão dos direitos políticos, com base neste Ato, importa, simultaneamente, em: I - cessação de privilégio de foro por prerrogativa de função; II - suspensão do direito de votar e de ser votado nas eleições sindicais; III - proibição de atividades ou manifestação sobre assunto de natureza política; IV - aplicação, quando necessária, das seguintes medidas de segurança: a) liberdade vigiada; b) proibição de freqüentar determinados lugares; c) domicílio determinado, § 1º - O ato que decretar a suspensão dos direitos políticos poderá fixar restrições ou proibições relativamente ao exercício de quaisquer outros direitos públicos ou privados. (...)

Buscava-se legitimação desse Estado repressor por meio de campanhas ufanísticonacionalistas (“Brasil: ame-o ou deixe-o”) e também por um suposto “desenvolvimento nacional”. O crescimento do país, que irá até 1973, faz-se em cima das exportações, do arrocho salarial e do capital internacional, mas deve-se sobretudo à ação do Estado, que planeja a economia e tudo controla: poupança, créditos, impostos, etc. Por esses tempos as tempos as Bolsas de Valores do Rio de Janeiro e de São Paulo registram os maiores volumes de negócios de sias história. O mercado vai se definindo e fica claro que uma das razoes do golpe militar é o fortalecimento do sistema capitalista (para desestimular, inclusive, aventuras esquerdistas). A sociedade de consumo se faz com 20% da população nacional (LOBO; NOVAES, 1997, p. 275).

Contudo, o rompimento com os valores democráticos e republicanos causou reação popular, reprimida com violência e tortura. Dependente do capital e inteligência internacionais, o país endivida-se especialmente após a crise do petróleo de 78. Endividado e sem o apoio da classe média, o grupo militar viu-se impelido a ceder às pressões populares e, a partir de Figueiredo, revogar os Atos Institucionais e iniciar um processo de transição política.

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3.3.6 A Nova República e a Constituição de 1988

Depois de vinte anos de ditadura (1964-1984), a pressão popular pela retomada de valores democráticos ganha força. Marcante é o pleito popular por eleições diretas a Presidente, movimento conhecido por “Diretas Já”. Anota Silva (2008, p. 88, cf “Um sistema de equilíbrio”, Jornal da Tarde, de 8.12.84, p.6),

A Nova República pressupõe uma fase de transição, com início a 15 de março de 1985, não qual serão feitas ‘com prid6encia e moderação, as mudanças necessárias: na legislação opressiva, nas formas falsas de representação e na estrutura federal, fase que ‘se definirá pela eliminação de resíduos autoritários’, e o que é mais importante, ‘pelo início, decidido e corajoso, das transformações de cunho social, administrativo, econômico e político que requer a sociedade brasileira.

Tancredo Neves, eleito em 1501.1985, encabeçaria o novo momento político do Estado brasileiro. Faleceu, contudo, antes de assumir o cargo. Tomou posse, assim, seu vice, José Sarney, anteriormente ligado às forças políticas conservadoras que comandaram o país nos tempos de ditadura. A convocação da Assembleia Nacional Constituinte (tecnicamente houve um Congresso Constituinte, uma vez que convocados os membros da Câmara dos Deputados e Senado Federal) em 1.2.1987, culminou na elaboração da Constituição Federal de 1988, cuja base é bastante progressista: procura, especialmente em seus primeiros títulos, estabelecer garantias e direitos fundamentais dos cidadãos em face do Estado. Estatui em seu primeiro artigo:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político. Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição [grifo nosso]

Celebra-se neste ano o aniversário de vinte e cinco anos da promulgação da Constituição, ou seja, um quarto de século de democracia estável, a maior já vivida pelos brasileiros nestes quinhentos e tantos anos passados da “descoberta”. Grandes passos foram dados no sentido de instrumentalizar e garantir os direitos expressos da carta constitucional.

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Permanece, contudo, imensa a disparidade entre a deontologia dos diplomas legais, que expressam, em última instância, o que se espera para país (aquilo que deve ser). Superado o período colonial, o Império, uma “República Velha” oligárquica e uma ditadura militar, enfrenta-se hoje o desafio de aperfeiçoar o funcionamento do Estado brasileiro para que ele concretize seus desideratos de justiça social, democracia e pluralismo. Aqui aparece relevante aventar o tema corrupção, a qual obstrui os canais de desenvolvimento dos Estados no mundo inteiro e, em especial, no Brasil. É por esse motivo que essa revisão do desenvolvimento político-constitucional canarinho faz-se necessário quando se pretende debater a problemática da corrupção: dissociá-la do discorrer histórico brasileiro – e de todas suas nuances – seria reducionismo leviano. Deve-se frisar que o caminhar histórico patrimonialista e oligárquico e pouco democrático não é justificativa única, mas certamente indispensável quando da discussão sobre corrupção no nosso país.

3 FORMALISMO

Conforme analisado no capítulo anterior, verifica-se na história política do Estado brasileiro uma discrepância entre o que é e o que deveria ser, entre as normas declaratórias de direitos e sua garantia, entre o funcionamento esperado da máquina pública e sua parca legitimidade enquanto resposta às demandas sociais. Esse desarranjo institucional foi estudado por Guerreiro Ramos no livro “Administração e contexto brasileiro: esboço de uma teoria geral da administração” sob o prisma do formalismo e é basilar desde capítulo.

3.1 FORMALISMO E SOCIEDADE PRISMÁTICA Para estudar o fenômeno do formalismo, Ramos (1983) traz a classificação ecológica de Riggs, que propõe uma escala de três modelos: o concentrado, o prismático e o difratado

à semelhança do que acontece quando a luz branca é decomposta nos diferentes matizes ou cores do espectro, teoricamente, a cada estrutura (social) corresponderia uma função distinta (funcionalmente específica). O modelo prismático se refere ao ponto médio entre dois extremos (RAMOS, 1983, p. 250).

A sociedade prismática apresenta-se altamente heterogeneidade, “por nela coexistirem o antigo e o moderno, o atrasado e o avançado, o velho e o novo. Essa heterogeneidade se exprime materialmente, entre outras, sob a forma de mistura de elementos tecnológicos, modernos e antigos, urbanos e rurais” (RAMOS, 1983, p. 250).

Na sociedade prismática, ainda que as funções sejam formalmente atribuídas a distintas unidades sociais, na prática, critérios familísticos interferem na administração, a economia é condicionada por fatores não econômicos, a política ultrapassa o que se presumiria ser o seu domínio próprio. O nepotismo, por exemplo, é um fenômeno de superposição muito corrente nas sociedades prismáticas. O nepotismo, apreciado quanto à incongruência entre norma e fato, é formalismo (RAMOS, 1983, p. 252) [grifo nosso].

Em sociedades com alto grau de formalismo, assevera Riggs apud Ramos (1983) há uma superposição de instituições e grande heterogeneidade social, o que acarreta aguda incongruência entre as instituições formalmente prescritas e o comportamento informal e efetivo, motivo porque o conhecimento dessas sociedades não possa dar-se a partir de suas estruturas normativas e legais. “O observador que assim proceder encontrar-se-ia em face da efetiva realidade social, como aquele que utiliza um mapa precário, a fim de procurar uma rua ou residência” (1983, p. 252).

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Formalismo segundo Riggs: “É a discrepância entre a conduta correta e a norma prescritiva que se supõe regulá-la. Registra-se ali onde o comportamento efetivo das pessoas não observa as normas estabelecidas que lhe correspondem, sem que disso advenham sanções para os infratores [...] Textualmente, diz Riggs: “O formalismo (grifado no original – G.R.) corresponde ao grau de discrepância entre o prescritivo e o descritivo, entre o poder formal e o poder efetivo, entre a impressão que nos é dada pela constituição, pelas leis e regulamentos, organogramas e estatísticas, e os fatos e práticas reais do governo e da sociedade. Quanto maior a discrepância entre o formal e o efetivo, mais formalístico o sistema (RAMOS, 1983, p. 252).

Ramos pondera serem as elites de toda sorte (religiosa, literária, política, econômica) céticas quanto às regras e normas observadas em massa. Isso se deve ao fato de a elite ter, “mais do que a massa, consciência do caráter convencional das regras e normas, dada a sua participação privilegiada no processo social” (1983, p. 225). O seu papel ativo na confecção das e normas as tornariam mais emancipadas do que as camadas sociais mais baixas. Por isso,

enquanto houver estratificação social, o tipo de formalismo em apreço é inevitável. Nas condições histórico-sociais vigentes no mundo, as organizações não podem eliminar o formalismo nas relações entre os que dela participam. Etzioni conclui de sua análise dos tipos de consentimento, que os infraparticipantes de toda organização (lower participants) estão “mais por fora” (less in the know) do que os participantes de alto nível (higher ranks). É dizer que estes últimos estão mais “por dentro”. Portanto, só mediante o formalismo do seu comportamento em suas relações com os infraparticipantes, dissimulam sua “experiência interna” dos assuntos da organização (RAMOS, 1983, p. 257).

Na sociologia brasileira, a contribuição do Visconde de Uruguai, para Ramos (1983), foi relevante ao destacar a importância de um máximo de realismo em sua ação no meio social, quer dizer, fugir da importação arbitrária de instituições como solução ao problema do formalismo. Ao contrário da maioria de seus contemporâneos, condenou (Visconde de Uruguai) a transplantação literal e mecânica das instituições políticas e administrativas, nas quais se negou sempre reconhecer virtudes intrínsecas. Para ele não havia instituições intrinsecamente excelentes. Por isso a criação das instituições no Brasil deveria ter em vista as condições efetivas e as particularidades histórico-sociais do meio nacional. (RAMOS, 1983, p. 260)

Para Ramos (1983), o formalismo podia assumir feição estratégica em sociedades prismáticas. Para ele,

[...] o formalismo não é característica bizarra, traço de patologia social nas sociedades prismáticas, mas um fato normal e regular, que reflete a estratégia global dessas sociedades no sentido de superar a fase em que se encontra. Outro enunciado complementar da nossa tese é ainda o seguinte: o formalismo nas

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sociedades prismáticas é uma estratégia de mudança social imposta pelo caráter dual de sua formação histórica e do modo particular como se articula com o resto do mundo (RAMOS, 1983, p. 260) [grifo nosso].

3.2 O SENTIDO ESTRATÉGICO DO FORMALISMO SEGUNDO RAMOS

O formalismo, assim, poderia ser estratégia para: dirimir conflitos sociais; gerar mobilidade social vertical ascendente; construção nacional e como meio de articulação com o mundo. Pontua Ramos (1983) ter a burocracia na Brasil como função latente minimizar a rigidez da estrutura social e evitar a emergência da polarização entre os grupos. Isso explica a hipertrofia do nosso setor público, o qual se afigura modo de cooptação, “pela estrutura social, daquela parte do excedente populacional que, por ser mais diligente, provavelmente se deixada a esmo, procuraria dedicar-se a temerárias atividades, prejudiciais à estabilidade social” (1983, p. 273). [...] “nossa riquíssima classe média”, legião de pessoas “diplomadas e vestidas de casaca”, ou seja, o mundo dos médicos sem clínica, dos advogados sem clientela, dos padres sem vigarias, dos engenheiros sem empresas e sem obras, dos professores sem discípulos, dos escritores, dos jornalistas, dos literatos sem leitores, dos artistas sem público, dos magistrados sem juizados ou até com eles, dos funcionários mal remunerados [...] essas pessoas diplomadas, para as quais há escassez ou nula demanda efetiva no setor privado, pressionam os poderes públicos, em busca de ocupação ou de meios de subsistência, e esses poderes são compelidos a munir as repartições de pessoal além das necessidades reais, comprometendo a eficiência destas, mas evitando que aquelas pressões atinjam um ponto crítico (RAMOS, 1983, p. 273).

Assim, não é de se estranhar o inchaço dos setores públicos e sua ineficiência. Ocupantes dos cargos públicos, ou mesmo sua existência, não estavam necessariamente atrelados a uma demanda por um determinado serviço público. À descrição dos cargos e normas estatutárias, por consequência, não haveria de dar-se grande importância, afinal o emprego público, nesse diapasão, não é o que deveria ser: instrumento para consecução de uma finalidade pública. Para Ramos, o jeito é categoria cardinal da sociedade brasileira e possui como raiz estrutural o formalismo. É “o genuíno processo brasileiro de resolver dificuldades, a despeito do conteúdo das normas, códigos e leis” (1983, p. 287). Ramos (1983) aproxima o “jeito” à estratégia adaptadora de Schumpeter O jeito é, no Brasil, processo nativo, criollo, de contornar uma dificuldade a despeito da lei e até mesmo contra ela. É, Como observa o economista Roberto

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Campos, “condição de sobrevivência do indivíduo e de preservação do corpo social”, “dentro do formalismo”', em sociedades onde as leis são “textos fora do contexto”, “construções teóricas que não nasceram do costume”, “formas transplantadas e importadas de além-mar se relevância para as possibilidades econômicas de nosso ambiente” (RAMOS, 1983, p. 288).

O emaranhado de textos legais, normativos, disciplinadores, de contextos sociais ferramenta útil para o agente público interpretá-los ao seu capricho: “funcionários, pequenos ou poderosos, criam sua própria jurisprudência” (RAMOS, 1983, p. 291).

A eficácia do jeito reflete a vigência de uma estrutura de poder altamente oligarquizada. A industrialização acarretando o surgimento de classes sociais diferenciadas e a exigência de serem adotadas normas universalísticas na elaboração de decisões governamentais, pois que a indústria não subsiste sem o predomínio da racionalidade nas relações sociais – a industrialização restringe e tende a anular a eficácia do 'jeito'. Por isso, o 'jeito' é tanto mais eficaz quanto mais o exercício do poder público se acha submetido a interesses de famílias ou de clãs, no sentido lato do termo. Onde domina a política de clã, pode-se sempre dar um 'jeito', a despeito da lei ou contra ela. Obviamente, a prática do 'jeito', foi, no Brasil, mais usual ontem do que hoje (RAMOS, 1983, p. 289) [grifo nosso].

Essa disputa de famílias pelo poder gera um clima de instabilidade em que a lealdade, a absoluta confianza é essencial na escolha de políticos e gestores públicos. Para manter-se nos cargos, toda autoridade de alto nível precisa estar vigilante contra a conspiração e traição dos adversários, e, por isso, malgrado procure cercarse de auxiliares de confianza, centralizam em suas mãos tomadas de decisões, ainda as mais aparentemente inócuas. O centralismo facilmente medra onde a instabilidade política e social é aguda. Na América Latina, por exemplo, submete-se à apreciação dos presidentes de República variada gama de atos e providências que, em países estáveis, são regularmente de alçada intermediária da Administração. Mais importante do que capacidade, eficiência e honestidade, é, para os governantes latino-americanos, frequentemente – a lealdade (RAMOS, 1983, ps. 289-290).

3.3 FORMALISMO E CONSTRUÇÃO NACIONAL Base do problema de construção nacional jaz na sua falta de bases consuetudinárias, originais o que determinou a prevalência da teoria sobre a realidade, do formal e abstrato sobre o concreto (RAMOS, 1983). O Brasil, quando da sua declaração de independência, não tinha povo tampouco cultura política. Por isso, para Ramos (1983), não haveria outra solução senão busca-las no exterior. Instituições parlamentares, por exemplo, eram prática distante da realidade política local, motivo porque, entre outros, recorreu-se a situações formalísticas para dirimir os problemas institucionais.

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Na data de 7 de setembro de 1822, declarou-se a Independência de um território que, na véspera era colônia de Portugal. A primeira geração de políticos do Brasil-Nação, é obvio, viveu mais intensamente do que as gerações que lhe sucederam, o imperativo de criar as instituições adequadas ao novo estatuto que, por força da declaração de Independência, adquiriram perante o mundo, a ex-colônia e as populações que nela habitavam. O problema nacional do Brasil teve, para aquela primeira geração, um sentido radical, que as gerações subsequentes não conheceram. Os três poderes, nas velhas nações, foram primeiramente uma realidade, costumes coletivamente consagrados, e, depois, uma teoria formal e sistemática, elaborada e discutida por autores. No Brasil, por força da particularidade da sua formação histórica, observa-se o inverso desse processo. Não caminhamos do costume para a teoria; do vivido, concreta e materialmente, para o esquema formal. É o inverso que se dá; caminhamos, até agora, no tocante à construção nacional (nation building), do teórico para o consuetudinário, do formal para o concretamente vivido. O formalismo é, nas circunstâncias típicas e regulares que caracterizam a história do Brasil, uma estratégia de construção nacional (nation building) (RAMOS, 1983, p. 292) [grifos nossos].

Assim, para Ramos (1983), não haveria outra solução que não o formalismo, pois países em desenvolvimento precisam construir artificialmente a nacionalidade. Quando do modelo constitucional adotado após a proclamação da República, também era inevitável o formalismo: “durante largo tempo, a instituição parlamentar no Brasil foi praticada assim como um teatro de roça, por atores toscos e rudes, que sabiam muito mal os seus papéis.” (1983, p.295). Contudo, anota Ramos (1983, p. 296), “o formalismo não é intrinsecamente mau. Pode realizar função positiva num desempenho estratégico que colime a construção nacional, como se tem verificado, frequentemente, na evolução política do Brasil.”. Se, por um lado, o formalismo teve por causa primacial a introdução de padrões de governo e administração estrangeiros numa ordem social que com eles não afinava, podemos dizer, também, por outro lado, que essa situação se perpetuou por culpa da intelligentsia que, com sua elevada cultura, mostrou-se incapaz de ver o mundo desde suas próprias tradições, tendo-o visto pelo prisma relativamente difratado das sociedades industriais do Ocidente (RAMOS, 1983, p. 296).

“Ao surgirem, seja como colônia, seja, mais tardiamente, como nação, as áreas periféricas são compelidas a adotarem modelos institucionais estranhos à sua realidade, a fim de, simplesmente, tornar possíveis as suas relações com o mundo exterior” (RAMOS, 1983, p. 298). Nesse sentido, países objeto de colonização precisaram submeter-se, enquadrar-se ao modelo político vigente à época, muitas vezes em benefício dos seus colonizadores. O formalismo corresponderia, assim, a uma inevitável estratégia de articulação colônia-mundo. Mal fomos descobertos, em 1500, e algumas dezenas de anos após, já tínhamos instauradas aqui as instituições mais avançadas do mundo, na época. Um território habitado por populações tribais, repentinamente, passou a ser teatro de relações sociais cujos critérios estavam muito acima da rusticidade da sua condição objetiva.

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Aqui, já se tem observado muitas vezes, o Estado precedeu a sociedade (RAMOS, 1983, p. 298) [grifo nosso].

Tanto é verdade que não há muitos casos de agrupamentos que se converteram em vilas, impelidos pela força dos acontecimentos. E, quando ocorrido, foi visto com desconfiança pelas autoridades, que, instalavam nelas o aparato governamental com a pressa e o sobressalto de quem reprime a insubordinação. O município, unidade urbana elementar, até ele era formalisticamente constituído. Ramos (1983) percebeu ser irrealístico presumir que, sem certa dose de formalismo e a transplantação das instituições estrangeiras o Brasil atingisse “a distância que o separava do mundo”, no curto período e que o procedeu. Consequentemente, ainda que aos trancos e barrancos, o formalismo foi necessário para o Brasil ser uma das maiores nações do mundo em menos de dois séculos após sua independência da colônia. [...] quem quer que se abalance a estudar a evolução do organismo governamental no Brasil, não ficará surpreso ao ver que a metrópole, com o intuito de acelerar a articulação da colônia com o mundo de então, e segundo suas conveniências, instaurou, em nosso território, nos princípios de nossas feitorias agrícolas, um aparelhamento político digno de uma sociedade organizada e altamente evoluída (RAMOS, 1983, p. 300)

Há de afirmar-se o caráter transacional que, estruturalmente, marca a sociedade prismática. Admite-se em tais sociedades o formalismo como discrepância entre o ser e o dever ser, e seus mecanismos, ainda que impróprios, mas por vezes necessários, inclusive, como se viu, à construção nacional. Contudo, reconhece-se que o desenvolvimento social o nation bulding conduzirão a sociedade a um nível não mais prismático, mas sim concentrado, onde soluções que tais não se encaixam ao arranjo institucional. Explica-se: o modelo republicano constitucional foi tecnologia de política importada quando da proclamação da República. Naquele momento, nada mais é de esperar-se que soluções formalísticas até que o processo de aprendizagem e adaptação a esse modelo se complete. Passado esse período, tendencialmente a caminho é a adoção de medidas não-formalísticas, de medidas apropriadas, conformes à lei. Toda sociedade é mais ou menos formalística. Nas sociedades prismáticas, contudo, critérios “clânicos” interferem na administração pública. Isso conduz, necessariamente, à corrupção. Critérios alheios aos necessários para atingir os desideratos públicos não deveriam fazer parte da tomada de decisão do agente público. É preciso, para combater práticas como essas, criar um arranjo institucional que torne despicienda a opção formalística, o “jeito”.

4 ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA: MODELOS ORGANIZACIONAIS

O presente capítulo descreverá os seguintes modelos de administração pública: o burocrático, a administração pública gerencial, o governo empreendedor e a governança pública. Objetiva-se, assim como nos capítulos anteriores, por meio de revisão bibliográfica, fundar referencial teórico para discutir-se a problemática da corrupção. O modelo burocrático tornou-se o alvo de críticas por ser considerado inadequado para o contexto institucional contemporâneo por sua presumida ineficiência, morosidade, estilo autorreferencial, e deslocamento das necessidades dos cidadãos (SECCHI, 2009, p. 349). Surgiram, nesse diapasão, devido a ondas modernizantes oriundas da Administração Empresarial novas formas de contrato Estado-sociedade, cujos ativadores são a crise fiscal do Estado (Aucoin, 1990; Hood, 1995; Pollit e Bouckaert 2002), a crescente competição territorial pelos investimentos privados e mão de obra qualificada (Subirats e Quintana, 2005), a disponibilidade de novos conhecimentos organizacionais e tecnologia, a ascenção de valores pluralistas e neoliberais (Kooiman, 1993; Rhodes, 1997), e a crescente complexidade, dinâmica e diversidade das nossas sociedades (Kooiman, 1993). No velho continente, o processo de europeanização também tem desempenhado um papel crucial (SECCHI, 2009, p. 349) [grifo nosso].

Tais modelos, assevera Secchi (2009), tenderão a trazer mudanças no relacionamento das instituições públicas. Em outros tantos casos, adverte, podem der tais modelos meras ferramentas retóricas, sem o real propósito de alterar a realidade da gestão pública.

4.1 MODELO BUROCRÁTICO

O modelo também é conhecido na literatura inglesa como progressive public administration – PPA (HOOD, 1995), referindo-se ao modelo que inspirou as reformas introduzidas nas administrações públicas aos Estados Unidos entre os séculos XIX e XX, durante a chamada progressive era (SECCHI, 2009, p. 350). Na sua descrição sobre os modelos ideais típicos de dominação, coloca Secchi (2009), Weber identificou o exercício da autoridade racional-legal como fonte do poder dentro das organizações burocráticas. Em oposição a um líder carismático, por exemplo, aqui o poder emana de fontes formais como a lei. A partir dessa premissa é possível compreender as principais características desse modelo, quais sejam, a formalidade, a impessoalidade e o profissionalismo.

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A formalidade impõe deveres e responsabilidade aos membros da organização, a configuração e a legitimidade de uma hierarquia administrativa, as documentações escritas dos procedimentos administrativos, a formalização dos processos decisórios e a formalização das comunicações internas e externas. As tarefas dos empregados são formalmente estabelecidas de maneira a garantir a continuidade do trabalho e a estandardização dos serviços prestados, para evitar ao máximo a discricionariedade individual na execução das rotinas. A impessoalidade prescreve que a relação entre os membros da organização e entre a organização e o ambiente externo está baseada em funções e linhas de autoridade claras. Isso ajuda a evitar a apropriação individual do poder, prestígio, e outros tipos de benefícios, a partir do momento que o indivíduo deixa sua função ou a organização. O profissionalismo está intimamente ligado ao valor atribuído ao mérito como critério de justiça e diferenciação. As funções são atribuídas a pessoas que chegam a um cargo por meio de competição justa na qual os postulantes devem mostrar suas melhores capacidades técnicas e conhecimento. O profissionalismo é um princípio que ataca os efeitos negativos do nepotismo que dominava o modelo pré-burocrático patrimonialista (March, 1961; Bresse-Pereira, 1996) (SECCHI, 2009, p. 351) [grifo nosso].

Um dos aspectos centrais parece ser a separação entre as tarefas executivas e as meramente operativas, entre as atividades intelectuais e as manuais, entre planejamento e execução. A preocupação com a eficiência organizacional é central no modelo burocrático. Por um lado, os valores de eficiência econômica impõe a alocação racional dos recursos, que na teoria weberiana é traduzida em uma preocupação especial com a alocação racional das pessoas dentro da estrutura organizacional. Outro valor implícito na ideia de burocracia é a equidade, pois ela é desenhada para dar tratamento igualitário aos empregados que desempenham tarefas iguais (tratamento, salários etc.). A burocracia também é desenhada para prover produtos e serviços standard aos destinatários de suas atividades. (SECCHI, 2009, p. 352) Robert Merton (1949) elaborou, aponta o supramencionado autor, crítica mais incisiva e direta ao modelo burocrático, analisando os seus efeitos negativos sobre as organizações e outras esferas da vida. Esses efeitos negativos foram chamados de disfunções burocráticas: o impacto da prescrição estrita de tarefas (red tape) sobre a motivação dos empregados, resistência às mudanças, e o desvirtuamento de objetivos provocados pela obediência acrítica às normas. Aponta-se também como possíveis pontos fracos do modelo burocrático o abuso de senioridade como critério para promoção funcional, que poderia reduzir a competição entre os funcionários e criar uma noção de corporativismo entre os funcionários, que poderia culminar, aduz Secchi (2009), em um destacamento dos interesses dos destinatários/clientes dos serviços da organização. A impessoalidade em excesso tende a ignorar nuances e individualidades. Baseado nos estudos de Merton, Secchi (2009) aponta uma possível arrogância funcional em relação do

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público “consumidor” dos serviços públicos, dado o monopólio de prestação por parte do Estado.

4.2 GERENCIALISMO

Dois modelos organizacionais têm pintado o quadro global de reformas da administração pública nas últimas décadas: a administração pública gerencial (APG) e o governo empreendedor (GE). Os dois modelos compartilham os valores da produtividade, orientação ao serviço, descentralização, eficiência na prestação de serviços, marketization e accountability (KETTL apud SECCHI, 2009). Nesses sistemas há mecanismos tipicamente de mercado que provêm liberdade de escolha do provedor por parte do usuário (do serviço público), bem como, dispõe Secchi (2009, p. 354), “a introdução da competição entre órgãos públicos e entre órgãos públicos e agentes privados”. “Hood e Jackson (1991) defendem que a APG é um argumento administrativo ou uma filosofia de administração, na qual a eficiência e desempenho são valores que prevalecem” (SECCHI, 2009, p. 354), o que complementa a ideia de Barzelay (2000) e Parsons (2006), para quem “a APG é um modelo normativo para a gestão pública, fundando em argumentos, doutrinas e justificativas derivados da interpretação positiva ao grupo sigma de valores.” (SECCHI, 2009, p. 355). Assim, vê-se que tais modelos aparecem como verdadeiros mandados de otimização à burocracia estatal e implicam, indiretamente, em críticas ao modelo weberiano, estático e formalista. HOOD apud SECCHI (2009, p. 355) elenca prescrições operativas para a Administração Pública Gerencial: 

Desagregação do serviço público em unidades especializadas e centros de



Competição entre organizações públicas e entre organizações públicas e

custos;

privadas; 

Uso de práticas de gestão provenientes da administração privada;



Atenção à disciplina e parcimônia;



Administradores empreendedores com autonomia para decidir;



Avaliação de desempenho;



Avaliação centrada em outputs.

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Por sua vez, Osbourne e Gaebler apud Secchi (2009, ps. 356-7) apontam os mandamentos do Governo Empreendedor: 

Governo catalisador – os governos não devem assumir o papel de

implementador de políticas públicas sozinhos, mas sim harmonizar a ação de diferentes agentes sociais na solução de problemas coletivos; 

Governo que pertence à comunidade – os governos devem abrir-se à

participação dos cidadãos no momento de tomada de decisão; 

Governo competitivo – os governos devem criar mecanismos de competição

dentro das organizações públicas e entre organizações públicas e privadas, buscando fomentar a melhoria da qualidade dos serviços prestados. Essa prescrição vai contra os monopólios governamentais na prestação de certos serviços públicos; 

Governo orientado por missões – os governos devem substituir o foco no

controle de inputs para o controle de outputs e impactos de suas ações, e para isso adotar a administração por objetivos; 

Governo

orientado

ao

cliente

-

os

governos

devem

substituir

a

autorreferencialidade pela lógica de atenção às necessidades dos clientes/cidadãos; 

Governo empreendedor – os governos devem esforçar-se a aumentar seus

ganhos por meio de aplicações financeiras e ampliação da prestação de serviços; 

Governo preventivo – os governos devem abandonar comportamentos reativos

na solução de problemas pela ação proativa, elaborando planejamento estratégico de modo a antever problemas potencias; 

Governo descentralizado – os governos devem envolver os funcionários nos

processos deliberativos, aproveitando o seu conhecimento e capacidade inovadora. Além de melhorar a capacidade de inovação e resolução de problemas, a descentralização também é apresentada como forma de aumentar a motivação e autoestima dos funcionários públicos; 

Governo orientado para o mercado – os governos devem promover e adentrar

na lógica competitiva de mercado, investindo dinheiro em aplicações de risco, agindo como intermediário na prestação de certos serviços, criando agências regulatórias e institutos para prestação de informação relevante e, assim, abatendo recursos transacionais. As ideias de Osborno e Gaebler, observa Secchi (2009), exaltam valores ligados ao filão filosófico do comunitarismo ao evocarem a importância do envolvimento cívico no processo de mudança, comunicação e parceria entre esferas públicas e privadas.

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4.3 GOVERNANÇA PÚBLICA

Governança Pública (GP) pode ser conceituada como um modelo horizontal de relação entre autores públicos e privados no processo de elaboração de políticas públicas, para Kooiman apud Secchi (2209, p. 359). Nesse aspecto, difere no sentido da linguagem empresarial ou contábil, para as quais governança é um conjunto de princípios que aumenta efetividade de controle para sobre organizações privadas. A GP também significa um resgate da política dentro da administração pública, diminuindo a importância de critérios nos processos de decisão e um reforço de mecanismos participativos de deliberação na esfera pública. (SECCHI, 2009, p. 359) Os impulsionadores do movimento da GP são múltiplos. O primeiro é que a crescente complexidade, dinâmica e diversidade de nossas sociedades coloca os sistemas de governo sob novos desafios e que as novas concepções de governança são necessárias A segunda força por trás da GP é a ascensão de valores neoliberais e o chamado esvaziamento do Estado (hollowing out of the state), em que a incapacidade do Estado em lidar com problemas coletivos é anunciada (SECCHI, 2009, p. 359).

Pierre e Peters apud Secchi (2009, p. 359) delineiam os elementos inexoráveis da GP: estruturas e interações. As estruturas podem funcionar por meio de mecanismos de hierarquia (governo), mecanismos autorregulados (mercado) e mecanismos horizontais de cooperação (comunidade, sociedade, redes). As interações dos três tipos de estrutura são fluidas, com pouca ou nenhuma distinção clara entre elas. Tratando de questões mais práticas, a GP disponibiliza plataformas organizacionais para facilitar o alcance de objetivos públicos tais como o envolvimento de cidadãos na construção de políticas, fazendo uso de mecanismos de democracia deliberativa e redes de políticas públicas (SECCHI, 2009, p. 360). Os mecanismos de democracia deliberativa já foram experimentados em diferentes lugares e áreas de políticas públicas. Exemplos desses mecanismos são o fortalecimento da comunidade na gestão do patrimônio público (community empowerment), os planejamentos e orçamentos participativos, os conselhos deliberativos nas diversas áreas de políticas públicas (SECCHI, 2009, p. 361). As redes de políticas públicas (policy networks) representam outra forma específica de interação entre atores públicos e privados (Borzel, 1998). A participação nas redes de políticas públicas é aberta a qualquer interessado e tal tipo de arena produz baixa externalidade negativa ao ambiente externo (Regonini, 2005). Um exemplo de rede desse gênero seria o grupo de jovens que se organiza para resolver o problema de cachorros abandonados nos grandes centros urbanos, ou ainda o grupo de

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empresários e organizações do terceiro setor que se organizam para encontrar soluções locais para combater a criminalidade. (SECCHI, 2009, p. 361)

A GP também denota a coordenação de atores estatais e não estatais nas operações de governo, e as parcerias público-privadas (PPPs), aponta Secchi (2009), cujos exemplos são os setores de infraestrutura e proteção ambiental, e os contratos preveem mecanismos de controle para mensurar resultados e impactos no ambiente econômico e social. O principal elemento comum desses modelos é a preocupação com a função controle. No caso do modelo burocrático, as características de formalidade e impessoalidade servem para controlar os agentes públicos, as comunicações, as relações intraorganizacionais e da organização com o ambiente. A função controle é uma consequência de um implícito julgamento de que os funcionários públicos se comportam de acordo com a teoria X de McGregor (1960). A função controle na AGP está presente tanto no aspecto da capacidade de controle dos políticos sobre a máquina administrativa quanto no controle dos resultados das políticas públicas. O modelo racional da GP dá valor positivo ao envolvimento de atores não estatais no processo de elaboração de políticas públicas como estratégia de devolver o controle aos destinatários das ações públicas (controle social). Usando a terminologia derivada da teoria sistêmica (Bertalanffy, 1969), esses modelos usam a função controle para manter a homeostase do sistema organizacional. Eles não são, portanto, modelos de ruptura (SECCHI, 2009, p. 362) [grifo nosso].

A discussão sobre as características básicas dos modelos organizacionais passa necessariamente pelo estudo de sua conformidade jurídico-constitucional. A Constituição Federal de 1988 regula de maneira extensiva a administração pública e, como carta hierarquicamente superior às demais, qualquer modificação nas estruturas fundamentais da gestão pública deve passar pelo crivo do controle de constitucionalidade. Impera no Direito Público brasileiro o princípio da legalidade, segundo o qual à administração só cabe o que a lei autoriza, em contraste com a ampla liberdade do Direito Privado. Disciplina o artigo 37 da CRFB: “A administração pública direta e indireta de qualquer dos poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência”. Os novos modelos organizacionais conferem maior discricionariedade administrativa em comparação ao modelo burocrático, o que poderia prover ao gestor público maior ferramental propiciador da melhor utilização dos recursos públicos. Contudo, ao abrir o espaço discricionário sem um arranjo institucional adequadamente preparado para combater os desvios da coisa pública para fins privados, corre-se o risco de expor ainda mais o erário a atos de corrupção. Nesse contexto, a corrupção é variável indispensável no debate sobre as novas formas de organização e reformas da coisa pública.

5 CORRUPÇÃO

5.1 A CONTRIBUIÇAO DE PRITZL A denominação corrupção remete-se ao termo latino corrumpere, que significa destruir, subornar. Desde o século XVII, corrupção e um conceito com o qual se alude à decadência de costumes e ao suborno. Desde a perspectiva clássica, corrupção é aquela atitude que priorizava o interesse pessoal no exercício da função pública e era considerada, por exemplo, para Aristóteles como uma degeneração de uma das três formas de Estado e governo ideias: Monarquia, Aristocracia e República (PRTZL, 2000, p. 12, tradução nossa).

A partir de uma perspectiva moralista, a corrupção se interpretava como desvio individual das normas sociais, o que evidenciaria uma debilidade moral de certos indivíduos. Os culturalistas explicavam e fundamentavam a corrupção por meio de fatores sociais e culturais existentes em países de terceiro mundo e aludiam às difundidas normas de outorga e recebimento de dádivas. Os funcionalistas, ao seu turno, a partir da década de 60, passaram a investigar eventuais efeitos positivos que a corrupção pudesse ter sobre a sociedade e sobre a economia, rechaçando uma condenação moral antecipada da corrupção (PRTZL, 2000, tradução nossa). Ramos (1983), ao tomar o jeito como estratégia de desenvolvimento nacional, parece repulsar também a ideia de condenação apriorística. Surge, nesse ponto, uma evolução no campo de análise da corrupção: de uma perspectiva moral ou histórica, passa-se a analisar de maneira mais ampla o fenômeno da corrupção, mais desprendida de ideários que pudessem prejudicar um estudo objetivo e científico desse fenômeno. Os funcionalistas viam eventuais vantagens como: melhor integração dos grupos sociais no processo politico; uma melhora no funcionamento dos mercados econômicos; um funcionamento da máquina pública mais ágil, entre outras. Em outras palavras, em uma perspectiva de curto prazo, a corrupção poderia promover inclusive o desenvolvimento. Contudo, essa perspectiva assevera que esse deve ser um fenômeno temporário, que há de ser eliminado na medida em que avance o desenvolvimento social (PRTZL, 2000, p. 14), ideia com a qual, novamente, Ramos (1983) parece concordar ao abordar o fenômeno do formalismo brasileiro. Uma análise mais científica da corrupção surge após a falência do regime comunista na década de noventa. Passa-se a estudar sua relevância e efeitos, considerando o tipo de sistema político vigente nos diferentes países, pois se se considera a corrupção como uma forma específica de imposição de interesses no processo político, será necessário ter em conta

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o tipo de sistema político dentro do qual se abarca o problema. (PRTZL, 2000, tradução nossa). A Nova Economia Institucional passa a estudar o cálculo teórico de decisão individual com cuja ajuda se pode analisar os custos e benefícios de um ato de corrupção, assim como determinar os motivos que levam ao cometimento desse ato (grifo nosso). Esse enfoque, tomado a partir do funcionamento das instituições, a análise da conduta individual e coletiva privilegiará os fatores institucionais, para considerar não apenas fatores econômicos, mas também políticos, socioculturais, sociológicos e jurídicos, daí o caráter multidisciplinar dessa abordagem (PRTZL, 2000, tradução nossa) [grifo nosso]. Dado que todas as ações e processos sociais podem ser remitidos a ações de indivíduos, a análise de uma ação corrupta e também pode ser interpretada como um problema de escolha individual. Portanto, dessa ótica analítica, a decisão de efetuar um ato corrupto em seu aspecto qualitativo não se planejaria de outro modo que uma decisão acerca de um ato legal – necessita considerar apenas elementos de custos e vantagens (PRTZL, 2000, tradução nossa). Do ponto de vista da economia institucional, pode-se afirmar que a corrupção depende fundamentalmente do seu entorno institucional. Se considerarmos esses aspectos como elementos que incentivam condutas corruptas e que não contribuem para obstá-las, então pode-se atribuir a existência desse mal , ao menos em grande parte, a razões econômicas. Um ato corrupto se executa quando as partes intervenientes esperam que ele redunde em benefício (PRTZL, 2000, ps. 24-25, tradução nossa) [grifo nosso].

5.1.1 Enfoque da nova teoria institucional

Na terminologia da Nova Economia Institucional o conceito de instituição é mais amplo que o coloquial. Não se trata de uma organização hierárquica ou uma administração pública (um organismo público ou um ministério, por exemplo). Nesse caso equivale o termo instituição a todas as estruturas e regras de conduta que contribuem para criar e estabilizar as expectativas dos indivíduos a respeito da conduta de outros. Seu aspecto essencial é seu caráter condutor e estabilizador de atitudes e expectativas. O enfoque da Nova Economia Institucional permite, destarte, analisar os aspectos políticos e econômicos da evolução social em um debate interdisciplinar. Seus principais elementos são os direitos de propriedade, os custos de transação, o modelo do principal-agente, a teoria do rent-seeking e a teoria dos grupos de interesse (PRITZL, 2000, tradução nossa).

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Parte da premissa de que os indivíduos comparam diferentes alternativas em função de critérios de custo-benefício para eleger aquela mais vantajosa (conduta econômica racional). Também assume que todo homem busca sempre melhorar sua situação, material ou imaterialmente (maximização individual dos benefícios). Por fim, vale-se do individualismo metodológico, segundo o qual se permite reduzir fenômenos sociais a condutas econômicas individuais (PRITZL, 2000, tradução nossa). A busca por benefícios não necessariamente deve dar-se dentro de um marco legal estabelecido, é possível, como nos casos de condutas corruptas e oportunistas, que haja uma conduta à margem da lei, especialmente por haver assimetrias de informação e dificuldades de controle.

5.1.2 Possíveis metodologias para combater a corrupção e o rent-seeking A conduta humana é fortemente influenciada por estruturas institucionais de incentivos. No curto prazo, há um benefício àqueles não comprem regras gerais de conduta. Desde um enfoque individual, é racional atuar em outro sentido eu não o social e transgredir as normas objetivas para obtenção de vantagem pessoal. É por esse motivo que a corrupção deve ser considerada como um comportamento racional do ponto de vista individual, mas prejudicial sob o ponto de vista social (PRITZL, 2000, tradução nossa), motivo porque a questão central do tema corrupção é o desenho de um marco social de modo a responder as interesses dos cidadãos tomados individualmente, assim como do corpo social como um todo. Desde la época de la conolización espanola y portuguesa, en América Latina se ha cristalizado un accionar que se caracteriza más por evadir y soslayarlas reglas de conducta social que por observarlas y respetarlas. La corona espanola, por ejemplo, dictaba leyes muy detalladas para los colonizadores ultramar (…) pero las actividades sociales estuvieron destinadas a eludir de manera más elegante las pontillosas disposiciones dictadas por la corona (PRITZL, 2000, p. 327).

Dado que todos praticavam essa conduta irregular, cristalizou-se um entorno institucional que recompensava justamente aqueles que não atentavam às regras estipuladas. A desobediencia legal acabou por tornar-se conduta institucionalizada. Muchas de las conductas consideradas típicas (...) y adjudicas a la ‘típica mentalidad latinoamericana de ‘viveza criolla’ se comprenden mejor teniendo en cuenta eses antecedentes y la adaptación racional del hombre a su entorno institucional En consecuencia, no deben ser interpretadas como resultado de una debilidad moral específica (PRITZL, 2000, p. 328).

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A mudança de marco institucional a aperfeiçoar esse cenário não pode ser pautada pela procura de um determinado ótimo entre uma multiplicidade de alternativas, não pode ser de maneira repentina, brusca, pontual ou imposta. A realidade social exige uma construção. Trata-se sim de aperfeiçoar o entorno institucional existente em pequenos passos sucessivos, que somente podem concretizar-se por meio de um aprendizado social (PRITZL, 2000, tradução nossa). Esse processo é necessário para elevar a capacidade social para resolver problemas: se em algum momento histórico a resposta frente a um determinado ambiente institucional era o “jeito”, com aprendizagem social é possível encontrar uma melhor medida para solucionar questões da vida pública. Pritzl (2000) aponta, sob o aspecto formal das regras sociais a serem desenvolvidas pelo processo de aprendizagem social, a observância de certos critérios fundamentais: “deben ser de largo plazo y estar disenadas para una determinada duración; deben estar formuladas em términos generales y apuntar a ls reglas abstractas de procesos sociales, no a los resultados específicos de los mismos” (2000, tradução nossa). Para Geofffrey Brennan e James Buchanan apud Pritzl (2000, tradução nossa), o atendimento a requisitos como esses contribuiriam para estabelecer um nexo entre o interesse pessoal de curto prazo (claramente perceptível) e o interesse pessoal de longo prazo (mais difícil de identificar). Dessa maneira se resolveria o conflito entre racionalidade individual e coletiva. Isso porque, se se pudesse tangibilizar mais os custos gerados pela corrupção, provavelmente elevar-se-ia a vontade pessoal de tomar parte do processo de aprendizagem que busca superar a problemática do bem público. North e Olson apud Pritzl (2000, tradução nossa) apontam, ao seu turno, elementos básicos a serem comtemplados pelas regras sociais: como o princípio da não violência, respeito aos direitos fundamentais civis e humanos e, por fim, a vigência de um Estado democrático de direito. Apenas dessa maneira é possível que constitua uma cultura política – o principal capital que pode gerar uma sociedade. As mudanças, cujos requisitos apontaram-se acima, decorrentes, como frisado, de um processo social de aprendizagem, dão-se por meio de um consenso social básico, a partir do qual se desenvolvem e se implantam reformas. Isso reforça mais uma vez um caráter construtivista e não-imediatista, que poderia expressar-se, para Pritzl (2000, tradução nossa), em propostas para introdução de modificações sociais, tendo em conta que as constituições são a codificação de regras de conduta social mais gerais. Igualmente é necessário modificar a prática habitual de governar mediante decretoslei, prescindir de um formalismo exacerbado e abolir normas supérfluas e de duvidosa

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aplicabilidade. Todos esses caminhos contribuiriam para atenuar a tradicional ajuridicidade e a reduzir a antinomia entre lei escrita e lei real. A figura do ombudsman, típica do modelo escandinavo, cuja missão é defender os direitos e garantias do cidadão ante atos comissivos ou omissivos da Administração Pública (no Brasil exercida pelo Ministério Público) é uma alternativa para o combate a abusos (PRTZL, 2000, tradução nossa). Outra missão, para Pritzl (2000, tradução nossa), é lograr um adequado acordo institucional que permita superar as práticas que levam à instrumentalização do sistema jurídico, evitando-se privilégios para determinadas camadas ou setores ao reestabelecer efetiva igualdade perante a lei - inerente ao Estado de Direito – requisito para que se recupere a confiança institucional, facilitando o efetivo cumprimento da lei. Também para que reformas necessárias não se deem de modo autoritário e antidemocrático, importante encararse uma transformação das relações tradicionalmente confrontativas entre o Poder Executivo e o Poder Legislativo: o uso indiscriminado de decretos presidenciais atesta a falta de consenso entre os poderes acerca de temas de reforma, os quais, como visto, necessitam de amplo debate para resultarem em aprendizado social.

Uma possibilidade seria o autocontrole por parte do ser humano que procede em um todo de acordo com as regras ou eu atua de boa-fé em função de ideias éticas ou convicções morais. Com frequência se fazem chamamentos morais que convocam as pessoas a atuarem de maneira solidária e tomar em conta o bem comum, a evitar a corrupção e renunciar a negócios túrbidos que necessariamente prejudicam a outros. Entretanto, a experiência mostra que, geralmente, não basta lamentar-se pela conduta interesseira do ser humano e que chamamentos morais não são suficientes para uma efetiva transformação. Tampouco parecem realistas tais apelos - por mais desejáveis que o sejam – realmente contribuam para o efetivo combate à corrupção [...]Portanto, é essencial controlar a conduta e limitar seu poder. A Economia política clássica fala da domesticação do Leviatã, ou mais exatamente dos mandatários políticos. Ademais de restringir a margem de ação de políticos e burocratas, parece apropriado um contole da gestão por parte de uma sociedade civil ativa (PRITZL, 2000, p. 334-5, tradução nossa) [grifo nosso].

Há a presença de uma sociedade civil forte, contudo, apenas quando essa controla e se necessário sanciona a conduta de funcionários públicos. Trata-se de uma sociedade que controla a observância de regras por partes dos indivíduos e, em particular, dos representantes da função pública. Para que tal sociedade possa desenvolver-se é necessário um sistema democrático, além de uma mídia livre e com capacidade crítica. Se a sociedade continua a viver à margem da lei e vastos setores da população encontram-se totalmente deslocados, então não cabe esperar que exista efetivo controle sobre os representantes do Estado. Resulta essencial compreender que um estado forte não é aquele em que um líder político autocrático regula e faz cumprir as normas em todas as instâncias – ainda que contra resistência popular -,

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senão aquele que cumpre escrupulosamente com suas funções e que conta com uma sociedade ativa que atua em contrapeso frente a esse Estado e seus representantes (PRITZL, 2000, tradução nossa). De todo modo, parece utópico crer que processos de aprendizagem social desenvolvam-se sem obstáculos e que rapidamente chegar-se-á a um consenso social básico. Esse aprendizado demanda tempo considerável e além do mais é provável que se observem problemas significativos. 

Por um lado, a experiência ensina que se não melhora na gestão do governo, não é possível encarar a democratização do sistema político, a privatização de certas funções públicas e a desregulamentação da economia.



Também, tomando-se como exemplo os Estados surgidos da ex União Soviética, é importante que se evite um vazio institucional durante o processo de transformação econômica e social.



Finalmente, deve-se considerar que qualquer modificação do status quo pode gerar novas possibilidades de corrupção e rent-seeking pelo menos no curto prazo. Essa medida é válida para medidas de democratização, privatização, liberalização e desregulação. (PRITZL, 2000, tradução nossa).

5.1.3 Modificações estruturais para combater a corrupção

Se o marco institucional e seus esquemas de incentivos estão estreitamente ligados aos esquemas de corrupção, o objetivo consiste em tomar medidas que façam eventuais infratores descarta-la como alternativa valida de uma perspectiva racional. Uma questão relevante e afastar a perspectiva unidimensional que não se ajusta a complexidade da problemática. Não se trata de adotar soluções pontuais, mas de medidas coerentes e coordenadas, de modo a poder instrumentar um amplo programa de reformas (PRITZL, 2000, tradução nossa). No plano politico, requer-se, para Pritzl (2000, tradução nossa): a) democratização do sistema politico, com maior participação popular nas decisões e, ao mesmo tempo, um maior controle da gestão publica; b) implementação de um Estado de Direito, para que haja uma justiça independente e equilibro nas relações entre os Poderes Executivo e Legislativo; c) descentralização de estruturas e decisões públicas: maior dose de subsidiariedade e federalismo contribuiriam para uma divisão vertical de poderes e geraria uma aproximação do cidadão; d) lei de financiamento dos partidos, pois reduziria o uso indevido da função publica

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para fins partidários (para compensar um insuficiente financiamento); e) controle reciproco dos poderes, porque essa separação constitui elemento fundamental de todo Estado moderno e democrático. Na seara econômica são prioritárias: a) introdução de estruturas de mercado, reduzindo o intervencionismo estatal e liberalizando as estruturas econômicas, atentando-se para o fato de que o exagero nas medidas de descentralização e privatização não fazem mais do que converter a corrupção publica em privada, sem conseguir que se diminua a corrupção em seu conjunto, uma vez que as condições de privatização podem permitir que políticos e burocratas corruptos privilegiem seus próprios interesses (PRITZL, 2000, tradução nossa). Em um nível mais técnico,

a) um controle mais efetivo da gestão administrativa, pois margens discricionárias de decisão constituem as porta por onde penetra a corrupção. Uma melhora no sistema de auditorias contribuiria para um controle externo mais eficaz. Indispensável que as instancias controladoras, como o Tribunal de Contas, seja independente e imparcial; b) licitação pública recomendável pela dificuldade de controle que se tem sobre a administração direta, e por, embora não seja infalível, contribuir para tornar mais transparentes as decisões da administração publica; c) aumento salarial no setor público, incrementando a motivação e qualidade dos empregados (PRITZL 2000, 345-7, tradução nossa).

Tais medidas visam a reduzir os custos de controle para terceiro, de modo a outorgar mais transparência para o Estado. Na esfera judicial, sugere-se, ademais do fortalecimento dos princípios da legalidade e oralidade,

a) um melhor controle sobre as falhas de fundamentação dos juízes, com o registro sistemático e publicação das decisões judiciais; b) a introdução da testemunha-chave (Kronzeuge), que poderia, em troca de uma restrição de seu apenamento, tornar publicas informações internas mais precisas acerca da corrupção sistêmica; c) reforma do Código Penal de maneiras a permitirse maior precisão e alcance dos tipos penais relacionados a corrupção; d)assegurar que a validez formal de normas principiológicas agremiem-se ao cumprimento de seus conteúdos (PRITZL 2000, ps. 346-7, tradução nossa).

Se e dado que a corrupção atua no marco nacional, mas de forma simultânea no âmbito internacional (geralmente com a participação de grandes empresas multinacionais ou suas filiais nacionais). À raiz dessa realidade, nações industrializadas também devem estar comprometidas a redobrar esforços na luta contra esse flagelo. Seria cínico lavar as mãos e

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atribuir à corrupção generalizada no terceiro mundo à responsabilidade exclusiva dos países em desenvolvimento (PRITZL 2000, tradução nossa). Ademais, há de se tomar em conta ser pouco realista a desaparição completa da administração publica e um nível de corrupção social igual a zero. Tendo em conta a gravidade do problema, devem-se sopesar os custos de luta e prevenção com os custos que gera o atual nível do flagelo, admitindo-se em todos os casos certo nível inevitável de corrupção (PRITZL 2000, tradução nossa). Bruner apud Pritzl (2000, tradução nossa) afirma que um Estado sem nenhum tipo de corrupção só e imaginável se existisse uma pressão suficientemente rigorosa como para impedir qualquer possível infração às normas ou se o discernimento levasse a identificar o interesse publico com o privado. O primeiro seria caso de um regime totalitário, o segundo, de uma utopia.

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5.2 A CONTRIBUIÇÃO DE THEOBALD

Em sociedades pré-modernas havia alguma noção do que seria abuso do public office, mas certamente restrito, pois havia uma imbricação entre o espaço público e os interesses pessoais do chefe da tribo, clã ou família. A exemplo das tribos sem chefia, como diversas comunidades indígenas na África e na América Latina, o chefe e sua família comandavam a comunidade e sua liderança era tão maior quanto seu patrimônio (e de sua família). Acusações de corrupção, acrescenta Theobald (1990, tradução nossa), tinham certo quê de arbitrariedade no sentido em que eles dificilmente conformavam-se a um critério legal objetivamente aplicado. Poder-se-ia dizer que as acusações advinham de grupos políticos adversários que objetavam o poder. Apenas com a industrialização e o capitalismo tornou-se possível a reestruturação do existir social baseado em princípios racionais e legais. Havia organizações formais cujo objetivo era eficiência, embora ainda conservassem certa dose de personalismo. Objetivos racionais eram constantemente subvertidos ou obscurecidos por um caleidoscópio de necessidades e interesses, que constituem uma interação normal entre role incumbents. Nada obstante a base da pirâmide possuir estrutura rígida com atividades racionalmente definidas, seu ápice - onde se concentram funções de comando e chefia – há maior espaço discricionário, não apenas para permitir uma maior autonomia, mas considerável a ponto de erodir a divisão entre esfera pública e privada. Esse é um dos motivos que explica a existência de certo patrimonialismo nos grupos dominantes em sociedades industriais. Esse patrimonialismo elitista pouco era percebido, prossegue Theobald (1990, p. 162-163, tradução nossa), pois havia uma distância social (social distance) entre a elite e as massas urbanas, agora cada vez mais compartimentalizadas, resultado do desenvolvimento da divisão do trabalho e a da estrutura de classes. Como resultado do crescimento da economia global e a disseminação do capitalismo através do colonialismo para o chamado terceiro mundo, suas ferramentas administrativas e ideológicas foram transplantadas para sociedades em estágios de desenvolvimento social e econômico muito diferentes. A uma administração pública desestruturada somava-se, nesse ponto, grande desequilíbrio entre oferta e demanda por recursos públicos (Estados inteiros deveriam ser erguidos). Ademais, práticas como suborno e clientelismo eram regulamente invocadas nas transações com a burocracia pública. Esse conjunto de condições cria uma abordagem extrativista para com a política que impede gravemente o desenvolvimento da estabilidade

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administrativa como um todo, o que a torna sensivelmente propensa à apropriação para fins privados (HODDER-WILLIANS apud THEOBALD, 1990, tradução nossa). Segundo essa abordagem, o desenvolvimento é função da corrupção, e tão logo se atinjam determinados patamares de progresso, reduzir-se-iam os níveis de corrupção. Muito disseminada na literatura sobre o tema, essa abordagem parece apresentar uma pobre relação de causalidade, que permitiria afirmar, à guisa de exemplo, que o problema da corrupção é um problema de países subdesenvolvidos – fato evidentemente falso: bastaria trazer à baila os inúmeros escândalos em países europeus nos últimos anos. Igualmente deixar-se-iam ignoradas inumeráveis outras variáveis macroeconômicas como taxa de inflação e desemprego, ou mesmo variáveis sociais como desigualdade e pobreza. Resumindo: asseverar que corrupção é simples consequência do subdesenvolvimento leva ao risco de abraçar-se um evolucionismo cru (crude evolucionism) que relaciona o volume de abuso (para com a coisa pública) com cada percentual de crescimento do produto interno bruto (THEOBALD, 1990, tradução nossa). Para Theobald apud Roth (1990, tradução nossa), o Estado, em circunstâncias extremas, pode tornar-se instrumento daqueles que são poderosos o suficiente para ganhar seu controle. Azayra e Chazan apud Theobald (1990, tradução nossa) aponta, valendo-se para tanto do Zaire, onde o nível de apropriação chega a tal ponto em que se questiona até a sua própria existência, que o afastamento do Estado do domínio público em direção a privados é paralela ao desengajamento das massas (“disengagement” of the masses). Exemplo disso ocorre nos enclaves de cocaína da Colômbia ou Bolívia: em ambientes de instabilidade política e inoperância econômica, os indivíduos afastam-se de atividades formais e passam a operar em mercados negros e/ou informais, os quais formam aparatos capazes de competir, ainda que de maneira descoordenada, com a própria economia nacional.

5.2.1 Medidas de combate à corrupção Theobald (1990) aponta no capítulo “A corrupção pode ser controlada?” (Can Corruption Be Controlled?), do seu ‘Corrupção, Desenvolvimento e Subdesenvolvimento’ (Corruption, Development and Underdevelopment), seis estratégias frequentemente adotadas no combate à corrupção: as chamadas one-off ou campaings, medidas jurídicoadministrativas, a despolitização (depolicisation), o rearmamento moral (moral re-armement), a accountability e a privatização.

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Antes de adentrar-se na análise de tais medidas, revela-se importante observar o constante combate ao abuso do public office em países em desenvolvimento, especialmente porque, embora a reforma administrativa seja um processo contínuo em todas as sociedades, onde o setor público desempenha papel crucial para o alcance das mudanças desejadas, o caráter do aparato administrativo torna-se central no processo de desenvolvimento (THEOBALD, 1990, tradução nossa). Nessa seara, a rearranjo da capacidade administrativa passa pelo aspecto dos arranjos estruturais – número, tamanho e funções de ministérios e departamentos e suas relações uns com os outros -, assim como pelo aspecto da qualidade dos funcionários que ocupam cargos públicos. Com relação à melhoria do quadro de pessoal do funcionalismo público em países em desenvolvimento, afirma Montgomery apud Theobald (1990, tradução nossa) ser suscetível devido às rápidas mudanças econômicas e sociais e a transição de formas tradicionais para modernas - a patologias como resistência à mudança, vinculação a relações e costumes tradicionais, formalismo burocrático no sentido de uma aderência rígida a regras e procedimentos com ignorância ou indiferença à racionalidade por detrás dessas regras e procedimentos, relutância em delegar, assim como nepotismo, favoritismo e corrupção. Tais “doenças” devem ser evitadas com programas de recrutamento, treinamento, desenvolvimento de equipes e, sobretudo, com a institucionalização de carreiras estáveis. Objetivo de ações como essas é incutir um senso de profissionalismo administrativo que, aliado a uma ética de respeito à coisa pública, são indispensáveis para a composição de um governo moderno. Ocorre que o rearranjo estrutural e a melhoria do funcionalismo são processos de longo prazo. Desde a concepção até o aparecimento de resultados sensíveis é raro um período menor que cinco anos. São necessárias, assim, não apenas medidas gerais, mas também ferramentas e procedimentos capazes de atacar o problema da corrupção no curto prazo, ou, pelo menos, de modo mais preciso. Diante dessas colocações, passa-se agora à análise das seis estratégias típicas de enfrentamento à corrupção, segundo Theobald (1990, tradução nossa).

5.2.2 Campanhas de expulsão

Trata-se de medida drástica, típica de transições entre governos, em que funcionários supostamente corruptos são afastados da máquina pública, seja para reduzir ilhas de corrupção, seja para impor exemplo aos demais burocratas de uma nova administração, mais moral e comprometida com o combate à corrupção.

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Exemplifica essa medida a demissão de membros antigos do partido, altas patentes militares administradores e funcionários do serviço secreto soviético (KGB) pelo então Primeiro-ministro da União Soviética, Gorbachev. Também o presidente eleito do México, Lopez Portillo, que assumiu poder em 1976 e promoveu a prisão de uma série de mandatários do antigo presidente, sob a alegação de crimes como extorsão e recebimento de propinas. Embora operações como essa possam ser justificáveis por extirparem um pouco da madeira podre (dead wood) – parentes, amigos e conhecidos dos líderes políticos, frequentemente destreinados e incompetentes -, são um sério risco ao Estado de Direito e à segurança jurídica, na medida em que muitos desses processos de demissão ocorrem sem o respeito a direitos como ampla defesa e presunção de inocência. Além disso, demissões sumárias sob alegação de corrupção sem o devido processo legal podem ser usados como instrumentos políticos de repressão de um grupo, agora no poder, sobre outro, que já não conta com o monopólio da força estatal. O impacto extremamente limitado dessa estratégia no efetivo combate à corrupção é a consequência do excessivo apego ao curto prazo em uma problemática sabidamente complexa. Muitos gestores o tomam como alternativa para simular produtividade no enfrentamento à corrupção.

5.2.3 Procedimentos jurídico-administrativos (Legal administrative measures)

Medidas jurídico-administrativas pretendem controlar a corrupção por meio de corpos especializados ou semiespecializados, cuja responsabilidade é investigar alegados infringimentos à lei relacionados ao cargo público e, se for o caso, levá-los à justiça. Apresenta uma vantagem essencial em relação aos expurgamentos: um corpo técnico treinado e capaz de desenvolver a expertise necessária para investigar casos de abuso, ainda mais quando se toma em conta a crescente complexidade das operações em que se envolve o Estado. Ademais, esse corpo estável tende a ser menos arbitrário em suas acusações, e baseálas, o que confere maior segurança jurídica ao processo acusatório e investigativo. Embora a Independent Comission Against Corruption (ICAC) de Hong Kong, a Central Bureau of Investigation indiano ou o Corrupt Practices Investigation Bureau (CPIB) da Nigeria, entre outros, demostrem resultados razoáveis na luta contra a corrupção em seus países, revelam-se insuficientes pois dependem, em última instância, do comprometimento e

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boa intenção daqueles que detêm poder político – os quais, muitas das vezes, objetos de investigação.

5.2.4 Despolitização

Típico de regimes autoritários, especialmente militares, onde se bane, da cena política, efetivamente, políticos e partidos para, em teoria, reduzir a pressão sobre a esfera pública, sob a lógica simplista assim formulada: “se você partidos e eleições, então você não tem que oferecer retorno aos seus apoiadores com empregos e contratos” (THEOBALD, 1990, tradução nossa). A despeito da variação quanto à estabilidade das forças armadas, não há indícios de que sua posição tenda menos para auto-promoção de objetivos pessoais em comparação a civis. Exemplifica Theobald (1990) com vários países africanos (Gana, por exemplo), onde parte relevante dos governos militares era altamente corrupta. Na Guiné Equatorial, o general presidente Macias Nguema armazenava toda a moeda-papel do Estado em sua villa: “sou chefe do meu povo e tudo pertence a mim”. A crença de que militares possam reduzir a corrupção perpassa um imaginário popular em que eles pertençam a um grupo social distinto, alheio às tensões e tendências sociais. Não há nada a comprovar a veracidade de afirmações que tais. Muito mais, se militares reagem e refletem tendências sociais como qualquer outro grupo, é muito improvável, acaso seja a política de um país uma ilha de corrupção, que eles sejam capazes de reverter essa realidade. Em países como o Brasil, cuja forma de governo é a democracia (Wahl auf Zeit: eleições periódicas), e cujas cláusulas pétreas (Ewigkeitsklauseln) da Constituição Federal impedem alterações quanto à natureza estrutural do Estado, medida como essa é inconstitucional e, dessa maneira, juridicamente impossível.

5.2.5 Rearmamento moral (moral re-armament)

É dominante na literatura referente ao tema desenvolvimento uma corrente que acentua a centralidade de uma revolução moral, um contínuo de reorientação ética no processo de modernização. Tornar-se moderno significa a aquisição de uma nova sorte de valores e atitudes. O “novo cidadão” seria cabeça-aberta (open-minded), “pronto para novas experiências e ideias”, “independente e autônomo”, “cognitivamente estável”, assim como um notável senso de eficiência pessoal. Deixa-se para trás, assim, o fatalismo, conservadorismo,

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superstição e tradições impensadas caracterizadores de uma sociedade tradicional (THEOBALD, 1990, tradução nossa) É inegável a semelhança entre esse tipo de abordagem e a ética protestante, fundada no trabalho e disciplina, que propulsionou o capitalismo e a industrialização da Europa ocidental. A santificação da aquisição e acumulação de bens foi uma Weltanschauung baseada em virtudes como a sobriedade, trabalho duro e honestidade. Esses eram elementos a compor o leque de deveres religiosos protestantistas. Lenin reconheceu que o desenvolvimento industrial soviético era possível tão somente se houvesse a internalização de uma ética do trabalho. Em seu Immediate Tasks of Soviet Power (1918), observava Lenin ser o trabalhador russo ruim se comparado àqueles de países mais avançados. Para ele, conseguinte, uma das tarefas mais importantes da moralidade leninista era ensinar o amor ao trabalho (THEOBALD, 1990, tradução nossa). A China revolucionária também enfatizou pesadamente na necessidade de mudanças culturais profundas para superação do então estado de desenvolvimento. Mao parece ter compreendido rapidamente que o sucesso do dos seus projetos comunitários requereria certas mudanças culturais e institucionais radicais, algumas das quais como […] the ability to apply rational calculation to the use of scarce resources; some simple appreciation of the ideia of controlled experiment; readiness to accept change; the ability to recognize new opportunities (...) the discipline to accept and carry out majority decisions; and the capacity for honest, diligent and economical administration (THEOBALD apud GRAY, 1990, p. 150)

Tais cruzadas morais (moral crusades) são muito mais visíveis em economias centralmente planejadas, dada sua rejeição moral ao lucro e a incentivos materiais (THEOBALD, 1990, tradução nossa). Parece descabida essa abordagem em sociedades plurais, onde os indivíduos possuem a potestatis de autodeterminar sua orientação (Selbstbestimmung), seja ela política, religiosa ou moral. Em sociedades onde imperam direitos de liberdade (Freiheitsrechte), a imposição de uma “moral adequada” abre perigosos precedentes. Além do mais, para Theobald (1990, tradução nossa), se há conexão entre certos tipos de estratégias de mobilização de massas e o atual grau de eficiência de determinadas sociedades, parece difícil determinar. Theobald apud Ritter (1990, tradução nossa) argumenta que, se o cristianismo em seus dois mil anos não logrou forjar um “novo cristão altruísta”, não seria a Cuba revolucionária a atingi-lo e cinco anos.

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Por conseguinte, dada a análise histórica que aponta circunstâncias materiais complexas levaram ao estado das coisas como hoje estão. Uma renovação de valores é algo de imaterial que provavelmente não afetará a disposição das elites econômicas e políticas a valerse do Estado para seus fins privados. Para Theobald (1990, tradução nossa), é no desenvolvimento da accountability pública, e não em uma suposta difusão de uma honestidade superior, que jaz o centro da questão sobre a corrupção política.

5.2.6 Accountability

A corruptibilidade do poder fundamentou a montesquiana tripartição dos poderes: se algum agente detém excessivo poder, tende a exercê-lo de modo temerário, inclusive corrupto, motivo porque, de acordo com essa linha de raciocínio, a forma mais efetiva de combate à corrupção consiste em restringir o exercício desse poder. Para Theobald (1990, tradução nossa), o aumento da accountability de governos europeus, inicialmente por com representantes eleitos, depois pela classe média e, em última instância, por uma massa eleitoral, agiu como controle majoritário ao comportamento daqueles detentores de cargos públicos. Para realizar esse desiderato, foram necessárias variáveis como a existência de direitos como o de associação, a emergência de grupos de interesse independentes e a mídia de massa. Essa realidade europeia destoa do cenário de países em desenvolvimento, nos quais: a) parcela considerável da população é rural, e geograficamente esparsa; b) há uma parca base para uma efetiva mobilização política, decorrente de baixos níveis de educação; c) qualquer identidade coletiva gerada pela divisão do trabalho (na urbe) gerada pela divisão do trabalho é mitigada por uma preferência na solução dos problemas na instância da vila, do clã ou da família, distante, dessa maneira, dos instrumentos do Estado (THEOBALD, 1990, p. 153). Contudo, verifica-se imensa dificuldade, em UDC (undeveloped countries), de deterse governos corporativos e autoritários, os quais até preveem instâncias formais que permitam um certo grau de envolvimento das massas no processo político, mas com questionável poder de ingerência sobre as autoridades executivas (THEOBALD, 1990, p. 153, tradução nossa). Há de se concluir, mais uma vez, a presenta de elemento formalístico, provedor de espaço legalmente previsto de controle de poder, mas sem efetividade no plano material, sem efeitos no mundo real, sem realmente conduzir à soberania de revisão popular necessária como contrapeso ao exercício representativo do poder soberano emanado do próprio povo.

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Parece, nesse sentido, para Theobald (1990, tradução nossa), que os instrumentos de accontability são insuficientes para fazer frente a um governo centralizado. À exemplo da China de Mao, à falta da garantia de determinados direitos fundamentais como a presunção de inocência, due process of law (devido processo legal) e liberdade de expressão e associação, o que se vê é violenta repressão àqueles tentaram implementar accountability, tornando essa alternativa pouco encorajadora para a solução de longo prazo da corrupção.

5.2.6 Privatização

Privatização implica na redução do tamanho do setor público pela venda da indústria nacional. Partindo-se da premissa de que o entusiasmo pela privatização vem da crença pelas virtudes advindas da competição irrestrita, a privatização resulta associada com desregulamentação.

Fewer controls in the form of deregulation is the best way of dealing with corruption since it reduces the opportunities for abuse. Corruption can be limited by striving to avoid administratively created scarcities of the kind which in centrally-planned economies have to led to the emergence of a second economy (THEOBALD, 1990, p. 157, tradução nossa).

5.3 A CONTRIBUIÇÃO DE GONÇALVES DA SILVA

Para Gonçalves da Silva (2004), há três visões principais sobre as causas e consequências da corrupção: primeira está ligada ao conjunto de teorias sobre a ação de rent seeking, a segunda, à teoria econômica da propina e a terceira, à relação entre eficiência, crescimento e desenvolvimento e corrupção.

A teoria dos caçadores de renda (rent seeking) foi desenvolvida basicamente por Krueger e Tullock. Essa visão parte da premissa de que os agentes econômicos possuem uma motivação básica: a busca do lucro econômico positivo a longo prazo. Tal busca ocorre dentro de um conjunto determinado de regras e, não raro, a existência de imperfeições de lucro econômico positivo está associada à existência de imperfeições institucionais. Os agentes procurarão obter o máximo renda possível, respeitando ou não as regras da conduta econômica e social. Essa ação pode implicar transferências dentro da sociedade, via monopólios e diversas formas de privilégios (GONÇALVES DA SILVA2004, p. 127) [grifo nosso].

Há no sistema de rent-seeking uma perda líquida para a sociedade, na medida em que o monopolista aloca recursos produtivos para atividades ligadas à obtenção e manutenção do

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seu direito de monopólio: lobbing, propaganda, etc. Ou seja, investe em talentos ligados a atividades improdutivas associadas à pressão política. Em casos de monopólio, as empresas que desfrutam de reservas de mercado empregam recursos financeiros e humanos em atividades improdutivas que visam garantir politicamente a existência dessa imperfeição (GONÇALVES DA SILVA, 2004, p. 127). Muitos talentos são alocados nessas atividades, que, apesar de improdutivas, são altamente rentáveis, fazendo com que as transferências de renda dentro da sociedade tendam a penalizar os talentos alocados em atividades produtivas: há, portanto, um elevado custo de oportunidade para esses últimos, segundo Gonçalves da Silva (2004, p. 128). Ainda de acordo com a supracitada autora, a alocação de recursos e talentos entre atividades caçadoras de renda e atividades produtivas é determinada por instituições econômicas, políticas e sociais que geram um sistema de incentivos. As regras do jogo formam os pay-offs e, confrontando-se com esses, os indivíduos e grupos tomam suas decisões. Essas regras, inclusive, podem obrigar racionalmente os agentes a exercer as atividades de caçadoras de renda (2004, p. 128). Dentro dessa perspectiva de corrupção, anota a autora, existem três formas de controlar o fenômeno: a) minimizar a regulamentação e buscar um desenho institucional que iniba as oportunidades de caçar renda ilegalmente; b) impor um sistema de crime e castigo que aumente o risco, na margem, da ação corrupta; c) criar um sistema de incentivos e uma cultura organizacional dentro da máquina pública que valore negativamente a corrupção. Vista a perspectiva de corrupção como rentismo, cabe também uma abordagem da corrupção sob o prisma da economia da propina.

A propina, no contexto aqui considerado, pode ser definida, a despeito da generalidade, como o meio financeiro de se transformar relações impessoais em pessoais, geralmente visando à transferência de renda ilegal dentro da sociedade ou a simples apropriação indevida de recursos de terceiros ou a garantia de tratamento diferenciado (GONÇALVES DA SILVA, 2004, p. 129).

A corrupção em geral, associada à propina, está relacionada às imperfeições de mercado. “Normalmente, os governos são grandes compradores de bens de capital e de obras de infra-estrutura cujos preços são definidos na forma de leilões ou processos de licitação em que há, em maior ou menos grau, assimetria de informações consideráveis” (GONÇALVES DA SILVA, 2004, p. 130). Nesse sentido, a solução do problema estaria na formação de um sistema de incentivos (pay-off) que o ambiente institucional gera na sociedade e que

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influencia a ação dos políticos, burocratas e clientes em geral, além da imposição de sistemas de punição. O maior custo da corrupção, contudo, está no frei que impõe ao crescimento, na medida em que se favorece a alocação de recursos em atividades improdutivas e gera custos de transação desnecessários. “Empresas e investidores preferem investir em países em que o nível de corrupção é menor, dado que esses ‘custos informais’ entram como fator de desconto no cálculo da rentabilidade de projetos”, para Gonçalves da Silva (2004, p. 130).

O principal insight aqui é a necessidade de estudar as motivações dos agentes e tentar explicar por que eles podem, sob determinadas situações institucionais, formar grupos de interesse com estrutura clientelística para implementar ações de corrupção. Nosso ponto básico aqui é mostrar a escolha democrática e, portanto, o Estado e o governo democráticos possuem falhas que abrem espaço para a separação entre o público e o estatal, entre os interesses de grupos de pressão e os interesses “coletivos”, os quais são, em verdade, hipotéticos (GONÇALVES DA SILVA, 2004, p. 131).

Superada a questão das abordagens de corrupção como rentismo, da economia da propina e da sua relação com o desenvolvimento, discute-se o aprofundamento da democracia, com melhores estruturas de controle e que garantam transparência como a solução para o problema do controle da corrupção. As escolhas públicas não são estritamente técnicas ou gerenciais. A elaboração de um arcabouço legal-constitucional para nortear processo orçamentário deve considerar a natureza política do mesmo, pelo menos se o objetivo das leis e instituições é controlar o desvirtuamento do orçamento. Por exemplo, agentes que vislumbram a possibilidade de receber privilégios com concorrências públicas dirigidas agirão racionalmente se levarem em consideração os benefícios criados pelas regras do jogo - ou pela ausência das mesmas. Entretanto, o resultado dessas ações racionais, do ponto de vista social e da eficiência econômica, pode ser custoso para a sociedade (GONÇALVES DA SILVA, 2004, p. 132).

O Estado e o mercado político não são perfeitos: políticos e burocratas representam seus interesses dentro do governo e os interesses de agentes privados que se organizam coletivamente para agir sobre a máquina governamental, e tal ação tem como objetivo caçar a renda de grupos da sociedade menos organizados (p. 132). Na medida em que a eficiência da administração pública depende do comportamento, nem sempre controlado e supervisionado, de agentes (burocratas), o principal (a sociedade, representada pelo governo) vê-se a mercê da perda de controle sobre a máquina estatal (GONÇALVES DA SILVA, 2004, p. 133).

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Considerações a respeito da economia da informação são relevantes para a melhor compreensão, juntamente com o problema principal-agente, do comportamento, legal ou ilegal, do agente público [...] Entretanto, a discussão em torno da administração pública e da relação entre o principal (a sociedade representada no governo) e os agentes (os burocratas) deve ser suficientemente realista, a ponto de incorporar a hipótese de que, na maior parte das vezes, a ação dos agentes não está sob total controle do principal. Ademais, considerando-se que os agentes possuem fins privados, o problema da supervisão de suas ações torna-se central (GONÇALVES DA SILVA, 2004, p. 133).

Nesse sentido, conclui Gonçalves da Silva (2004), o incentivo a trapaça é diretamente proporcional à possibilidade de as ações do agente serem ocultas e da incapacidade do principal de controla-las.

Podem-se imaginar esquemas de fiscalização e controle do comportamento dos burocratas. Entretanto, na maior parte dos casos, a fiscalização é cara ou impossível. A solução para isso seja a introdução de incentivos aos contratos: se o agente tem a priori incentivo para agir em seu próprio interesse, uma mudança no sistema de incentivos pode dirigir seu comportamento a um resultado ótimo do ponto de vista do principal e dele mesmo (GONÇALVES DA SILVA, 2004, ps. 133 e 134).

Na medida em que a eficiência da administração pública depende do comportamento, nem sempre controlado e supervisionado, de agentes (burocratas), o principal (a sociedade, representada pelo governo) vê-se a mercê da perda de controle sobre a máquina estatal (GONÇALVES DA SILVA, 2004, p. 133).

6.4 DIÁLOGO

Ao revisitar a evolução das organizações políticas, inclusive com uma revisão sobre o desenvolvimento político-constitucional brasileiro, além de tratar do tema formalismo e modelos da Administração Pública pretendeu-se prover elementos multidisciplinares para discutir o complexo fenômeno da corrupção. Para Van Creveld (2004), poder-se-ia comparar o Estado a uma corporação. Tal como um sindicato ou igreja, e à sua semelhança, tem diretores, funcionários e acionistas. Partindose dessa premissa de Estado-corporação, que lições podem extrair do estudo descritivo e prescritivo da corrupção pública? Parece indiscutível na literatura que o tamanho do Estado está diretamente ligado à corrupção e ineficiência. A privatização, assim como sugerida por Pritzl (2000), observandose uma estrutura básica de gestão pública capaz de geri-la para que não haja mera transposição da corrupção pública para a iniciativa privada, é alternativa para desinchar

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governos que atuam fora do seu core business: se uma carta constitucional afirma que o Estado deve ser zeloso com os direitos fundamentais dos cidadãos (liberdade, propriedade, vida, etc.), parece que produzir sapatos não condiga com tal desiderato. Esse enunciado para a esfera empresarial poderia ser traduzido com o que muitas organizações já procedem: terceirização daquilo que não seja objeto central de geração de valor. Se corrupção e ineficiência caminham juntos (THEOBALD, 1990), então a lição parece valer para a iniciativa pública e privada: ambas devem ser enxutas – o excesso de tamanho (número de secretarias, departamentos, encarregados) tende a criar centros de interesse desvinculados aos objetivos da organização estatal ou empresarial. O formalismo, enquanto dissonância entre uma norma oficial e sua realidade (RAMOS, 1983) existente no Estado brasileiro é lição para o mundo empresarial, ao confirmar a necessidade de um determinado consenso advindo de um processo de aprendizagem (PRITZL, 2000). Os valores e normas empresariais, tais como normas constitucionais e legais sem respaldo da realidade, importados e estranhos à realidade da organização em que se inserem, conduzem ou a sua não obediência ou a soluções alternativas para adequá-las, por vezes à margem da lei vigente, como o caso do jeito (RAMOS, 2000). Em Estados autoritários não há estímulos para que a sociedade civil organizada exerça accountability (THEOBALD, 1990). Novais (1997) exemplifica, na história brasileira aos tempos de império, inúmeras revoltas violentamente reprimidas por discordarem do modus operandi do regime. Da mesma maneira, e sempre mutatis mutandis, empresas em cujas estruturas não há espaço para controle ou revisão, ou ao menos apreciação crítica, posturas ineficientes e atitudes corruptas tendem a passar despercebidas. Assim, organizações menos hierarquizadas, mais planas e multifuncionais tendem a ser mais eficientes e menos corruptas. Estados onde não há normas racionais e objetivamente declaradas procede-se com dificuldade a verificação do que é público e do que é privado (THEOBALD, 1990). Empresas familiares, igualmente, tendem a ignorar a separação entre patrimônio público e privado. A ausência de limites claros entre ambos tende a criar espaços de corrupção (aqui, semelhantemente à corrupção pública, como desvio para uso privado da coisa não pública, mas empresarial). Dadas a imbricação entre corrupção e desenvolvimento (BRESSERPEREIRA, 2000), tanto Estados quanto empresas que levem a sério o estabelecimento de fronteiras (Grenzen) podem ser mais eficientes e menos corruptas. Outra lição que se pode extrair do debate acerca da temática corrupção, essa cuja densidade faz merecer estudos futuros mais aprofundados, é sua abordagem racionaleconômica, que admite, à semelhança do que a Economia chama de conflito de agência, o

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interesse racional, tanto do gestor público quanto do privado em, dentro (e eventualmente fora) das normas vigentes, buscar benefícios individuais em detrimento do objetivo público ou empresarial das organizações em que atuam. Cabe o desenvolvimento, segundo aponta Pritzl (2000), de um marco institucional que conjugue os interesses privados e públicos, criando instrumentos que tornem descartável (menos racional) a decisão corrupta. Essa racionalidade econômica aplicada aos agentes públicos e privados desmistifica uma visão muito difundida na literatura brasileira, de que o brasileiro seja corrupto, moralmente corrupto, à semelhança da análise lambrosiana, (anterior a Beccaria) no Direito Penal, segundo a qual existiam criminosos que cometiam crimes. A superação dessa teoria dáse no ponto em que se percebe que condições econômicas, sociais, culturais e políticas de certos grupos os expõe a maior propensão ao cometimento de atos criminosos, sem que isso signifique serem criminosos por natureza. Da mesma maneira, não existe empresa corrupta, Estado corrupto, burocrata corrupto: há sim, um ambiente institucional que favoreça mais ou menos o cometimento de atos corruptos. Consequentemente, desloca-se o problema de uma seara subjetiva (prioridade de punição a posteriori de agentes corruptos), para uma seara objetiva, na qual, ex ante, se possam desenvolver mecanismos inibidores da opção de corrupção e estimulem opções que se conformem seja com o interesse empresarial, seja com o interesse público.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A corrupção é tema que ocupa a agenda da ampla maioria dos países, em maior ou menos instância. Os recentes escândalos de desvio de verbas públicas podem ajudar a explicar a falência de alguns países europeus. Diversas nações encontram entraves para o desenvolvimento pelo fato de atos de corrupção estimularem a alocação ineficientes dos recursos públicos, além de enfraquecer o erário e exigir das instituições a formulação de mecanismos de controle cujo resultado são maiores custos de transação. Em um sentido ampliado, pode-se tratar a corrupção como resultado das instituições jurídicas, econômicas, culturais e políticas de um país, deve-se tomar em conta sua formação política para melhor compreender as instituições atuais. Esse foi o desiderato de revisar as diferentes formas de organização política, do desenvolvimento político constitucional particular do Brasil, além do fenômeno do formalismo. Diversas reformas na administração pública trouxeram modelos alternativos ao burocrático, como o governo empreendedor e a governança pública. Oferecem propostas normativas para aperfeiçoamento do governo e Estado, mas devem levar em conta parâmetros legais. O debate sobre o enfrentamento à corrupção deve ser ampliado. Algumas práticas como o a criação de órgãos de combate são de duvidosa eficácia, outros argumentos como “aperfeiçoamento moral” são falhas na medida em que depositam crença na “evolução” de um povo supondo a existência de outros superiores. Mecanismos de controle social podem ser eficientes, mas quando haja garantias de não represália por parte do Estado. Transparência na gestão pública afigura-se como importante inibidor da conduta corrupta. Sob uma perspectiva estrita ao ato de corrupção, leva-se em conta para a tomada de decisão corrupta os custos e benefícios de um ato corrupto no leque entre os tantos outros possíveis. É nesse sentido que há uma conexão entre um ambiente institucional, que favoreça mais ou menos essa decisão e para a qual a Nova Economia Institucional tem dedicado estudo, e para a qual se recomenda aprofundamento.

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